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O nome dele era Filipi, pelo menos era assim que gostava de ser
chamado nessa hora, e estava faminto.
Era um vampiro, e, claro, a pequena cidade que se desenvolvera
aos pés da montanha, extremamente próxima ao seu castelo, não o
sabia. Os anos passaram rapidamente e os cavalos foram
abandonados, as casas mudaram e as pessoas se multiplicaram. As
vacinas e remédios faziam-nas viverem mais e ter mais filhos,
embora hoje estivessem tendo poucos filhos por vez e ele não
entendia como isso era possível. Os postes trouxeram a revolução, a
energia elétrica, com suas lâmpadas e seus aparelhos, e o telefone,
com o qual os humanos se comunicavam com outros mais distantes.
E as mulheres, o que havia acontecido a elas? Tornaram-se
fascinantes e independentes, mas também um tanto displicentes com
seus filhos e maridos. Os impérios e reinados, já decadentes na era
em que Filipi respirava confirmaram sua decadência e
desapareceram, quando novas formas de governo um tanto
estranhas, ao ver dele, se desenvolveram rápida e caoticamente.
Seus olhos viraram e ele viu sua pele enegrecer. Sim, ele estava
faminto. As coisas mudaram, mas os humanos continuavam sendo
humanos e ele continuava a ser um vampiro, um vampiro que
precisava desesperadamente de alimento.
Andava. Seu corpo impelia-o a correr, mas ele preferia apreciar ao
máximo sua refeição, também apreciar sua sede, quanto mais
faminto estivesse mais doce e quente seria o sangue que lhe
escorreria pela garganta.
Uma pequena casa de madeira á beira da floresta, quieta naquela
hora da madrugada, podia sentir o cheiro humano que emanava dela,
seus dentes cresceram involuntariamente, a floresta iria lhe dar um
álibi, não eram raros os ataques de ursos, lobos e pumas naquela
região...
Dentro da casa viu um conjunto de móveis simples, alguns de
madeira, outros de um material que ainda não conhecia o nome,
alguns passos lentos e viu um espelho alto e não muito fino
encostado à parede, Filipi ainda achava estranho, durante muito
tempo na sua longa vida, espelhos eram extremamente caros, um
verdadeiro sinal de nobreza, hoje quase todas as casas os tinham.
Viu seu reflexo, há alguns anos atrás, Filipi ficaria extremamente
feliz em ser da geração de vampiros que não possuíam sombra nem
reflexo, mas hoje contemplava-se um príncipe saído das histórias
antigas. Seu maior poder, desenvolvido e aprimorado por anos e
anos, o poder de mudar de rosto e manipular sua imagem como bem
entendesse. Experimentou engrossar as sobrancelhas, a fome fez seu
corpo tremer e soltar uma respiração alta, não podia usar uma
energia que não possuía.
Mas logo possuiria, já podia ouvir os batimentos cardíacos dos
humanos que lá viviam, suas respirações, seus cheiros. Entrou no
quarto, um jovem casal, a camisola da mulher estava desabotoada no
colo em um grande decote que deixavam a mostra grande parte de
seus fartos seios, o homem estava com os braços e pernas abertas,
esparramado pela cama de casal, uma de suas mãos repousava no
ventre da mulher, respiravam compassadamente. Era uma cena bela,
mas Filipi não conseguia mais segurar a fome que agora fazia todo o
seu corpo vibrar e ofegar, deitou-se, suave como uma pluma, e
igualmente suave, ergueu a cabeça do homem, mordendo-lhe o
pescoço.
O sangue veio pulsante quente e cheio de energia, Filipi teve de
segurar um estremecimento quando sentiu as primeiras gotas, aquilo
descia por sua garganta enchendo-o de vida, levando-o ao êxtase.
Mas sim, tinha de se controlar, mesmo nessa hora, pois qualquer
movimento mais brusco, qualquer barulho involuntário poderia
acordar a mulher ao lado, ela veria a cena e provavelmente gritaria,
não gostava de gritos, estes o desconcentravam. E se se
desconcentrasse, poderia sugar além do sangue e da vida deles,
poderia sugar suas lembranças também. Filipi não gostava de ter as
lembranças de outrem ecoando em sua mente, normalmente sugava
apenas lembranças superficiais que o amaldiçoava ou remetia a
tempos felizes de seres humanos ou coisa parecida, sua vida já havia
sido muito longa mesmo sem ter de carregar a vida de outros nas
costas.
O coração do homem parou, e o sangue não mais escorria
naturalmente pela garganta do vampiro, Filipi sugou uma ultima gota
de despedida.
Suspirou. Ainda tinha fome. Olhou para o lado, a mulher se
aconchegara mais após a mão do homem ter saído de seu ventre.
Deixou seus instintos falarem por ele, com ela não precisava se
conter, não havia ninguém na região para vir em seu socorro.
Deixou sua respiração correr livremente, ofegante, como um
animal, embora não precisasse respirar realmente, não gostava de
ficar sem olfato, e quando estava com fome, sua respiração saía alta,
alta como quando era humano e estava muito próximo a uma
amante.
Elevou a mulher até si, sentindo todo seu aroma humano,
acordando-a, mas não completamente, ela não era capaz de entender
exatamente o quê estava acontecendo quando ele fincou suas presas
nela. O sangue escorreu suavemente para dentro dele, acompanhado
por um gemido baixo. Filipi sabia que parte do prazer que ele próprio
sentia ao beber sangue era passado às suas vítimas, embora não
soubesse exatamente quanto, naquele momento ficou feliz por isso
acontecer, pois a mulher morrera em um doce topor.
Agora tinha de encobrir seus rastros. E tinha de fazer isso bem
feito, caçadores de vampiros eram problemáticos e perigosos, se não
se cuidasse poderia ter um em seu encalço e isso não era bom.
Também havia agora esses investigadores, detetives, policiais... Não,
não queria problemas.
A arte da destruição, em pouco tempo aquela casa parecia um
campo de batalha como se os donos realmente tivessem encontrado
um urso, na verdade alguns ursos. Estava quase se voltando para
fora quando ouviu um choro um baixo e engasgado de bebê.
Num canto da sala, em um berço, um pequeno bebê de meses se
contorcia e chorava. Filipi não podia deixá-lo ali, era muito novo para
sobreviver sozinho, virou-se para partir, tolas preocupações humanas
inundavam sua mente, ele não conseguiria sobreviver por muito
tempo, morreria de fome, sede ou frio sem ninguém para cuidar dele,
o quê, até para alguém que ainda não tinha consciência própria esta
seria uma morte terrível, para o seu bem, teria de matá-lo ali
também.
Pegou o bebê no colo, ainda se lembrava de como fazer isso, ele
se aconchegou em seu corpo e parou de chorar, vestia roupas cor-de-
rosa, deveria ser uma menina, uma menina graciosa, ele percebeu
que não sentia mais fome, não tinha porque matá-la, o aroma
inocente do bebê inundava-o, aproximou-a aos seus lábios, suas
presas pareciam relutar em crescer, lembranças de um tempo
longínquo o inundaram, quando ele mesmo fora um pai excitado e
assustado, parte de um passado do qual não gostava de se lembrar,
sentimentos humanos explodiram em seu peito como um grito, o
ultimo grito de uma consciência humana já quase esquecida...
Beijou-lhe a face com carinho, não queria, não conseguiria e não
iria matá-la.
II
Medo.
O coração de Edmund disparava, enquanto sua respiração perdia o
cuidadoso compasso silencioso.
Medo.
Seus olhos tremiam se mexendo involuntariamente, acompanhado
pelo tremor dos músculos de todo o seu corpo.
Medo. Medo. Medo.
Edmund sentiu as lágrimas tão contidas em sua infância brotarem
livremente nos seus olhos. Queria correr. Não agüentava mais. Suas
pernas não respondiam. Queria voltar, queria ir para o colo de sua
mãe. Sentiu um grito se formando no fundo de sua garganta.
Olhos verdes, verdes como as chamas frias do inferno. Olhos
hostis, hostis como os demônios que povoam os pesadelos. Olhos
brilhantes, o brilho que carregava toda a punição, todo o terror do
julgamento de onde só se via medo. Olhos estes que se voltaram para
a cabeça do vampiro que passou rolando pelo seu campo de visão.
Na frente de Edmund, em pé, nas grades de um berço caído,
estava aquele que era a fonte de todo esse medo. Um bebê, entre o
primeiro ano de vida e o segundo, aquele que viera visitar desde o
começo, um membro da família Vermont. Willian Vermont. Seu
Sobrinho. Que nascera com a habilidade de induzir medo naqueles
que olha.
—Willian. Sou eu, o tio Mund. Se acalme. Eu estou aqui.
O bebê parecia ter entendido, ou reconhecido a voz de seu tio que
conhecia pelos telefonemas, quando o bebê voltou a olhá-lo, seus
olhos eram apenas verdes. Verdes como os de sua mãe, Esmeralda,
irmã de Edmund. Sem o brilho sobrenatural, sem a luz do medo. Aliás,
olhos que refletiam o medo, seu sobrinho estava induzindo medo
porque estava com medo.
Edmund pegou seu sobrinho no colo enquanto arrastava os restos
do vampiro para um lugar específico, já haviam ocorrido tantos
ataques de vampiros aos Vermonts que todas as casas deles eram
construídas para não pegarem fogo facilmente, o fogo era uma das
maiores fraquezas dos vampiros. Estando o corpo do vampiro na
parte onde o chão era de pedra, Edmund deixou seu sobrinho no chão
por um momento para atear fogo ao vampiro. Normalmente vampiros
não conseguiam se recuperar de ferimentos que os separavam em
partes, especialmente a decapitação, mas ao que diziam, seu pai, que
também fora um grande caçador, morrera ao achar que tinha se
livrado de um apenas em separar sua cabeça do corpo. Edmund não
cometeria o mesmo erro.
Vendo o fogo se alimentar dançante do vampiro, Edmund pegou
seu sobrinho e vasculhou a casa, estava imensamente preocupado
com Esmeralda, sua irmã mais velha.
Encontrou-os na cozinha. Havia um vestígio de cheiro de comida,
eles o estavam esperando. Esmeralda, ainda mais rechonchuda que
Edmund se lembrava, uma menina-mulher que se dedicava á sua
casa e sua família. Seu marido, tão magro quanto sua esposa era
gorda, treinado para ser um caçador em horas difíceis como aquela.
Dois empregados de confiança, sendo que um deles havia cuidado de
Edmund quando este ainda era um bebê.
Mortos. Todos mortos.
Seu cunhado tinha em mãos uma arma contra vampiros, mas não
aparentava ter tido tempo de desferir qualquer golpe. Havia tido
treinamento para se tornar caçador, mas não era um autentico
Vermont, sua esposa nunca havia sido uma guerreira, nascera para
realizar seu maior sonho, o de se tornar mãe.
Em um outro quarto no canto oposto ao do quarto de Willian, um
bebê se contorcia em um outro berço, o segundo sobrevivente da
noite, sua sobrinha mais nova, Edmund não conseguia lembrar o seu
nome.
Com as duas crianças bem aconchegadas em seu carro, o caçador
contatava a família. Certa vez ouvira que os Vermont estavam
fadados a perder as mulheres que amam para os vampiros. Edmund
já perdera sua esposa e sua irmã. Seus sobrinhos seriam separados e
criados por braços diferentes da família. Era a sina dos Vermont,
mesmo assim, eles sabiam que eram os guardiões da humanidade, se
eles desistissem, o mundo estaria nas mãos dos vampiros.
V
Filipi via a sua pequena Lúcia crescer.
Em um tempo muito curto já andava e falava, descobrindo o
mundo. E a cada nova descoberta dela, Filipi redescobria o mundo.
Ele a criava como filha, amiga e amante, sentia vivia e sorria para ela.
E com ela descobria as mil maravilhas dessa era. Pequenas
maravilhas como a eletricidade e o telefone deixaram de ser apenas
um espetáculo, começaram a fazer parte de suas vidas, algo a se
usufruir, e Filipi agora as procurava, procurava o máximo de conforto
para ele e para a sua pequena... E assim começou sua guerra
particular contra a prefeitura que havia transformado seu castelo em
patrimônio histórico da cidade.
Mais que frustrante essa guerra era inspiradora. Ele sempre fora
um senhor de castelo, um general estrategista, só que agora a guerra
era a favor de seus estritos interesses e caprichos, os soldados eram
os advogados, e a arma era o dinheiro.
O dinheiro... Como bem-dizia Daniel por ter preservado o dinheiro
e os pertences de sua família, como o tinha em grande estima, ele
que mesmo em forma de morcego o ajudara tanto, mantendo seu
banco sob seu controle.
Daniel que fora seu melhor criado, e agora era seu melhor amigo.
Ele também tinha a menina em grande estima, sabia que era por
conta dela unicamente que seu mestre havia deixado a decadência e
agora estava esplendoroso como tinha de ser. E assim como Filipi,
Daniel cuidava dela. Ensinava-a sobre as passagens secretas do
castelo, usava seus poderes para espantar animais nocivos de seus
caminhos, contava-lhe historias de sua infância, juventude e velhice
quando cuidar do mestre era a sua função e ele a desempenhava
com carinho.
Tanto Daniel falou que Lúcia pegou o hábito de chamar Filipi de
mestre.
No início Filipi discordou, mas em seguida percebeu que talvez
fosse algo bom, se Lúcia fosse criada como serviçal ela teria a
humildade no coração e não a arrogância como tinha a antiga
senhora do castelo que agora jazia esquecida fora de suas muralhas.
Lúcia crescia e ficava mais esperta, e seu sangue se tornava cada
vez mais perigosamente atraente para Filipi, que talvez por isso tenha
concentrado seus esforços em instalar rede elétrica e climatização no
castelo, obra que, claro, foi embargada pela prefeitura.
Estava com 10 anos, frenquentava uma escola durante a tarde e
no inicio da noite tinha aulas com um professor particular que dava
aulas de reforço a ela e ao “filho” do senhor do castelo que por
tradição da família também se chamava Filipi. Não foi necessário
pensar muito para saber que aquele garoto e seu mestre eram a
mesma pessoa.
Depois da aula ele em forma de criança guiava-a para um salão,
onde lhe ensinava a dançar e depois lhe contava uma historia
enquanto ela rodopiava pelo caminho ou lhe abraçava para mantê-lo
aquecido.
Aquilo para ele era mais que tentador sendo que por vezes seus
olhos e caninos se transformavam sem que ele percebesse, ansiando,
implorando pelo sangue que corria tão próximo a ele. Foi assim que
ela percebeu que ele era um vampiro, e guardou segredo, como
Daniel lhe ensinara a fazer. Apesar de toda a tentação que Filipi
sentia quando a pele quente dela lhe tocava, nas mãos durante as
danças, ou quando esta lhe abraçava com carinho, ele se sentia no
paraíso.
Certo dia ela lhe perguntara sobre seus pais, disse-lhe que Daniel
apenas havia lhe falado que eles eram seus serviçais, mas não lhe
disse porque não estavam com ela.
—Eles morreram — disse Filipi na ocasião — enquanto iam fazer
um serviço para mim, foi um terrível acidente na estrada, mas não
fique com essa cara. O acidente foi feio o bastante para que
morressem na hora, sem sentir dor.
Ela começara a chorar, mas em poucos dias sua alegria habitual
retornara e ela treinava com as empregadas durante o dia e com
Daniel durante a noite para se tornar uma boa serviçal.
Foi quando ela tinha 13 anos que Filipi decidiu que ela seria sua
serviçal mais íntima, ela seria sua Ama de Sangue. Comprou para ela
o mais belo vestido que pode encontrar, branco e amarelo, digno de
uma elegantíssima dama de honra, e pediu para que ela o usasse
durante a aula de dança. Usou a recém instalada eletricidade em seu
salão, cuja gloria de dias passados retornara após inúmeras
restaurações, para que a aula de dança se transformasse em um
verdadeiro baile, um baile a dois, e quando ela estava no auge da
alegria, ele a mordeu pela primeira vez, sentindo seu sangue cheio de
vida fluir para ele. Bebeu alguns goles, era quente e enchia-o de
sensações boas, e então parou. Ela quis se levantar, mas ele deixou-a
aconchegada em seu colo, estavam exatamente no centro do salão
embaixo do grande lustre recém-reformado para admitir lâmpadas
elétricas.
—Você agora é minha ama de sangue — dizia ele na ocasião —
minha serviçal mais importante a única que me serve com o próprio
sangue, e eu como pagamento irei servi-la em tudo o mais e você
deverá ser conhecida como senhora do castelo, mas deve sempre se
lembrar que é minha serviçal e serve somente a mim.
Ela confirmou com a cabeça, soltando um silvo de dor, ele então
se inclinou sobre ela usando um poder de cura nela para que seu
pequeno ferimento fechasse, o que não conseguiu exatamente, quase
não usava esse poder e não o tinha em grande força, ela então sorriu,
agradeceu pela festa e por fim perguntou:
—Eu não vou virar um vampiro por causa disso, vou?
Ele sorriu.
—Não é assim que vampiros nascem. — ele sentiu a necessidade
de acrescentar — Amanhã ou depois você estará totalmente
recuperada e continuará humana como tem de ser.
Lúcia subiu as escadas lentamente, sentia uma leve dormência
nos dedos dos pés e estava com sono, no meio do caminho Filipi a
pegou no colo, ele que normalmente frio, estava quente e
aconchegante, ela também pensava no que tinha acontecido, sabia
que devia servi-lo afinal ele era realmente o senhor do castelo, sabia
que ele era um vampiro e que vampiros mordem, e também não era
tão difícil assim lhe entregar um pouco de sangue, a mordida não
doía de verdade, na verdade a sensação era outra, ela não sabia
explicar direito, mas não era uma sensação ruim.
VI