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Psicologia: Reflexão e Crítica

ISSN: 0102-7972
prcrev@ufrgs.br
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil

Beividas, Waldir
The excess of transference in psychoanalytic research
Psicologia: Reflexão e Crítica, vol. 12, núm. 3, 1999, p. 0
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=18812308

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PSICOLOGÍA REFLEXAO E CRÍTICA

O excesso de transferência na pesquisa


em psicanálise1
"Moi, la vérité, je parle" (Lacan)
Waldir Beividas 2
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
Toda reflexão sobre a pesquisa em psicanálise se concentra em geral: (a) na mútua implicação
que se espera aí entre a dimensão teórica e a clínica; (b) num debate entre a pesquisa
psicanalítica e a pesquisa «científica», onde a psicanálise é levada a confrontar-se com a ciência
cartesiana, experimental, positivista ou neo-positivista, e assim adiante… O presente estudo
quer abordar uma região menos explorada nesse debate; quer demonstrar que a psicanálise
freudiana, sobretudo com Lacan e após Lacan, acabou sendo levada a uma «submissão pânica»
ao a priori da enunciação do fundador (Freud) ou do re-fundador (Lacan). A pesquisa ficou
embaraçada numa teia excessivamente «transferencial», sob o regime de um dixit Lacan
sobreposto a um dixit Freud. O autor defende uma saída para isso: conceber a pesquisa
psicanalítica como uma conceituação estruturante do inconsciente com Lacan e Freud, e não sob
Lacan e Freud.

Palavras-chave: Psicanálise; transferência; estrutura.

The Excess of Transference in Psychoanalytic Research

Abstract
Reflection about research in psychoanalysis generally focus on: (a) the mutual implications
supposed to exist between the theoretical and clinical dimensions; (b) the discussion between
psychoanalytical and "scientific" research, in which psychoanalysis in confronted with Cartesian,
Experimentalist, Positivist, or Neo-Positivis models, among others. The present study intended to
approach a field that has been poorly explored on this debate, aiming to demonstrate that
Freudian psychoanalysis, specially with and beyond Lacan, was led to a "panicky surrender" to
he a priori enunciation of the founder (Freud) or to the re-founder (Lacan). Research got
entrapped on a web of excessive transference regulated by a Lacan dixit over a Freud dixit. I
suggest that the way out of this puzzle is to conceptualize psychoanalytical research as a
"structuring conceptualization" of the unconscious with Lacan and Freud rather than under Lacan
and Freud.

Keywords: Structure; transference; Psychoanalysis.

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Certamente o aforismo acima tem as aparências de uma provocação. E cumpre tê-lo mesmo,
porquanto quero enfatizar pela expressão um de seus sentidos etimológicos primeiros: chamar
para fora, fazer vir, apelar em direito. No presente caso quero tentar chamar para fora um
sentido metodológico que a meu ver esse belo aforismo de Lacan pode representar, quem sabe,
para os destinos futuros da pesquisa em psicanálise – no campo freudo-lacaniano, o único aqui
em foco –, em contraposição ao sentido transferencial que ele parece exibir ainda hoje, com
uma pregnância talvez desmesurada e, por isso, metodologicamente injustificável, como
pretendo demonstrar.

Desde o conhecido texto de Foucault (1969) "O que é um autor" é comum ouvir que a
psicanálise tem estatuto discursivo, na sua história e constituição, bastante diferente daquele
das ciências mais exatas. Segundo ele, Freud não estaria propriamente na origem da «fundação
de uma cientificidade», tal como Newton ou Galileu, mas na origem de uma «instauração de
discursividade». Em três ou quatro páginas de reflexão, Foucault não prolonga todos os
desdobramentos dessa diferença, mas já aponta algumas implicações decisivas, que nos cabe
explorar: (a) "a conseqüência, diz Foucault, é que se define a validade teórica de uma
proposição por relação à obra" do autor (itálicos meus) e não por relação à estrutura interna dos
seus objetos conceituais; (b) todo «retorno a», diferentemente quanto à ciência, em que um
eventual reexame do texto de Galileu modifica o nosso conhecimento da sua história, mas não a
própria mecânica, todo retorno a (Freud), em psicanálise, "modifica a própria Psicanálise"
(p.842).

A brevidade com que Foucault (1969) emite essas duas implicações não impede de dizer que
praticamente tocam no coração de uma dificuldade monstruosa, no que se refere à pesquisa em
psicanálise (freudo-lacaniana), dificuldade que me permitiria assim formular: quem ou o que
deve ter a prioridade de determinar os destinos e rumos da pesquisa e das descobertas no
campo? Noutros termos, quem ou o que deve figurar como a priori ou como apodicidade
fundante do discurso psicanalítico? 3 Será esse lugar ocupado pelo próprio inconsciente, suas
«estruturas» internas de linguagem, suas vicissitudes «afetivas» ou suas «ocorrências» ad hoc –
para tentar abranger com os termos as correntes várias, estruturalistas ou não? Ou tal lugar
será ocupado pelo dixit Freud, referendado ou corrigido pelo dixit Lacan? Noutros termos: quem
diz «Eu, a verdade, eu falo»? Será o inconsciente, que fala, ou devemos ver aí o espectro de
Freud, sobreposto pelo espectro de Lacan?

Ora, o texto lacaniano, que contém o aforismo acima, é soberbamente elegante em precisar que
"a coisa fala de si mesma", que a verdade (do inconsciente) empresta a boca de Freud a fim de
dizer: "…para que me encontreis onde estou, vou ensinar-vos por que sinal reconhecer-me.
Homens, escutai, eu vos dou o segredo. Eu, a verdade, falo" (Lacan, 1998, p.410).

Por mais que a meu ver deva-se reconhecer aí a prioridade da coisa, a verdade do inconsciente,
por sobre a boca do homem (de Freud) que a diz, no entanto a psicanálise dos discípulos de
Freud e de Lacan entronizou a ambos os homens nesse lugar da verdade. A pesquisa em
psicanálise passou desde então a se mobilizar submissa ao argumento de autoridade (do autor);
acabou por ficar subordinada a um circuito «transferencial», excessivamente transferencial, sob
o regime do dixit: o inconsciente, a pulsão, o desejo, enfim a coisa toda é isso porque assim o
disse Freud, ou é aquilo porque assim o corrigiu o dixit de Lacan4. E isso introduz graves
impasses não apenas nas formações subjetivas e produções individuais dos futuros
pesquisadores, nas políticas institucionais, mas também, o que é mais grave e que merece um
assento na mesa das discussões, nas estratégias metodológicas e nos novos procedimentos
heurísticos, de novas descobertas sobre a propria coisa.

Alguns autores no campo já lamentaram esse regime excessivamente transferencial que


assombra a discursividade psicanalítica mesmo desde antes de Lacan, quando adquiriu seu
ápice. Roustang (1976), por exemplo, nos mostrava há mais de vinte anos que, desde a época
da primeira geração de discípulos freudianos, a psicanálise já exibia os primeiros sinais daquilo
que ele considera como um «destino tão funesto». Aos primeiros discípulos de Freud, dizia

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Roustang, não restava muita alternativa: "ou bem permanecer nos domínios analíticos, o que
supõe um ato de submissão permanente com respeito à pessoa de Freud, ou então proclamar
independência e se encontrar fora das vias da psicanálise, estar perdido para ela" [itálicos
meus]. Roustang já notava e ressaltava as dificuldades que tinha o movimento psicanalítico,
haja vista a excessiva "identificação da causa e da pessoa de Freud" (pp.17-29 ). Roustang
estende sua avaliação para os anos setenta, quando já instaurada a discursividade lacaniana,
para reconhecer também aí nada de diferente: "por antecipação e para o futuro se põe confiança
em Lacan. A relação a Freud pôde ficar para trás, mas nada mudou, visto que uma nova
transferência vem tomar o mesmo lugar cego por relação a Lacan" [itálicos meus]. Também aqui
não é permitida a contestação de seus ditos ou seus pressupostos, "a citação de Lacan funciona
como ponto final ou como veredicto." (p.36)

Esses fatos são sobejamente comentados e urdidos dentro do campo lacaniano, para bem e para
mal. Não é necessário que nos estendamos aqui. Talvez bastasse dizer, com crua brevidade, que
a «batalha dos cem anos» que historizou Roudinesco (1986) – com a condição de que
concordemos com que Lacan tenha sido desde os anos cinquenta seu pivô, e que acrescentemos
nela mais uma quinzena de anos para chegar até hoje –, tal batalha talvez não tenha sido outra
coisa do que uma guerra de transferências, trans-ferências cruzadas entre Lacan e seus
discípulos, quando em vida, transfe-rências truncadas entre seus discípulos, após sua morte.

Não quero insistir aqui sobre o aspecto, não obstante fundamental, da formação de futuros
analistas ou sobre a transmissão da discursividade psicanalítica freudo-lacaniana, sob o regime
desse excesso transferencial que ainda vige. Também não quero insistir nas injunções que ele
impõe à natureza e aos modos de constituição e de funcionamento das instituições, sociedades,
colegiados ou agrupamentos que empunham a bandeira dessa discursividade. Como
pesquisador, que se considera amante da psicanálise lacaniana, no sentido com que dota o
termo Garcia-Roza (1995, p.9) – em que não cabe nenhum respeito religioso à palavra do
mestre, mas a atitude de suspeita e de irreverência, na prática de desnudamento e de devassa,
diante do texto sob exame – talvez me caiba, mais do que entrar na alta temperatura
institucional, onde se forja em brasa esse excesso transferencial, procurar uma saída para isso,
ou ao menos riscar alguma direção, e correr os riscos desse risco, em dois movimentos.

O primeiro movimento, sinistro e incômodo, é o da denúncia do status quo; o segundo,


movimento destro mas difícil, é o da renúncia dele, em prol de outra coisa. O primeiro é de mau
agouro porque nos põe o desconforto da crítica, o lado das considerações mal vistas e malditas
que, no entanto, não podem ser silenciadas; põe-nos diante de alguns sofismas que habitam o
campo psicanalítico.

Sofismas em Psicanálise

"Um sofisma assombra (hante) a psicanálise". Assim se expressa Petitot (1981), sobre a
psicanálise lacaniana, num texto cuja acuidade de avaliação dos móbeis que determinam o curso
(e impasses) em alguns segmentos da teoria e prática psicanalíticas só pode fazer-nos lamentar
que tal texto não tenha obtido nenhuma repercussão nos meios psicanalíticos:

"Sob o pretexto de que seu objeto é antinômico – prossegue Petitot –, e que sua
teoria só se sustenta num ponto de acmé (intransmissível) da imaginação
transcendental, ela se crê legitimada a violar as prescrições da intersubjetividade
racional. Ao invés de conceber sua tarefa como uma tarefa coletiva de
inteligibilidade requerida pela própria natureza de seu objeto, ela delega esse
lugar ao gênio e ao idioma de um texto fundador. Substitui um processo de
objetivação determinante para o sentido interno por um assentimento voltado a
uma teoria revelada. Desde então não pode mais conceber sua instituição a não
ser como a propriedade (literalmente e em todos os sentidos) daquele que se
esforça por ensiná-la. Donde seu argumento constante contra os «dissidentes»
[…]: não tendo que sustentar uma tarefa coletiva de inteligibilidade mas
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sancionar uma adequada enfeudação, é natural, realista e legítimo que a


instituição traduza em termos de traição as vontades de autonomia" (pp.176-
177, itálicos meus).

Segundo Petitot (1981), isso constitui uma subordinação da teoria à transferência e um


"impasse tão desastroso quanto injustificável", que acabou por transformar a psicanálise numa
"textualidade idiomática que, tomando valor de lei, desenraizou irreversivelmente a experiência
analítica do solo da experiência possível e […] conduziu o discurso analítico a um momento
dogmático […] a identificar sua verdade ao uso incondicionado (dialético, não crítico) das
categorias lacanianas" (p.181). Diante disso, cabe-nos verificar e discutir na pesquisa de hoje as
seqüelas dessa subordinação generalizada da teoria à transferência, desse assentimento voltado
a uma teoria revelada ou ainda, na fórmula que julgo a mais lapidar, dessa submissão pânica ao
a priori da enunciação do instaurador (Freud ou Lacan) (cf. Petitot, 1978, p.28).

Uma primeira seqüela, das mais imediatamente tangíveis, é que, subordinada a teoria ao a priori
da enunciação do(s) mestre(s), nenhuma nova descoberta, nenhum novo conceito tem boas
chances de entrar na discursividade, salvo se já estiver implícito, sugerido, acenado ou embutido
nas entrelinhas da discursividade dos instauradores (Freud e Lacan). Via de regra, as
contribuições no campo pouco têm chances de ir além de comentários apendiculares, de
paráfrases estirantes, nos casos melhores, de mímeses, repetições e meras justaposições de
frases e aforismos freudo-lacanianos, nos piores. Deixa-se freqüentemente às citações o encargo
(difícil) de trabalharem por si, suficientemente, e de concluírem sozinhas a peroração. Nessa
discursividade, que entroniza a Freud e a Lacan, como «sujeito-suposto-saber» último, não se
permite muito descobrir, permite-se apenas adornar fartamente o já visto, tanto quanto o já dito
por ambos. E quando o pesquisador tem saltada a veia forte da criação, ser-lhe-á difícil manter-
se no interior da discursividade em voga. Terá de ser liminarmente excluído dela, por
«excentricidade». Terá de sentir o peso subjetivo da exclusão e pôr a fúria da sua criatividade a
construir para si (e eventuais adeptos) uma nova discursividade, de pertença difícil de ser
absorvida por aquela já instaurada, mais ou menos «oficialmente» 5 .

Uma segunda seqüela desse grande sofisma, que é a submissão pânica da teoria ao Outro
oracular, é a força centrípeta que se exerce na discursividade, assim instaurada, no sentido de
torná-la voltada para dentro, refratária e impermeável a qualquer «intromissão» conceitual,
porventura proveniente de outras plagas (Filosofia, Psicologia, Lingüística, Biologia…). Erigem-se
barreiras intransponíveis, portais fortemente guarnecidos por guardiães zelosos que levantam
trincheiras altamente apofáticas, argumentos do não 6 : o inconsciente da psicanálise não tem
correspondência nenhuma com nenhuma filosofia; o afeto em psicanálise não é nada do que a
psicologia entende por isso; a pulsão nada tem a ver com quaisquer indícios de biologia; a
topologia de Lacan é "in-édita"; o significante de Lacan não se confunde minimamente com o
significante em lingüística; a linguagem como a qual se estrutura o inconsciente não é a
linguagem dos lingüistas. Empurram-se assim os conceitos para a região do "in-sondável" 7. A
coisa freudiana está sempre alhures, tudo é sempre outra coisa, enfim, estipulações esotéricas e
obscurantistas, maneira um tanto entusiástica e paralógica de entender, num contexto histórico
outro, o gesto rebelde e jovial, e necessário então, de Freud e Jung (1911/1975) a estipular que
a psicanálise farà da sè, por si própria (p.230).

Uma discursividade que se proteje das afluências «ameaçadoras» vindas do exterior, que
expurga as influências criativas vindas do seu interior, porventura insubmissas ao pânico
transferencial aí instaurado, que zela calorosa a contemplação repetida de suas formulações e
aforismos gerais, só pode a meu ver estar correndo o risco de ser vitimada pelo que chamaria de
um narcisismo cognitivo ou «refluxo autista» para tomar emprestada expressão de Petitot
(1978, p.28):

"Não lhe resta mais, como conceito da liberdade, a não ser a «adesão
imotivada», a submissão transferencial a um garante externo, a obrigação
incondicionada frente a algum Outro hipostasiado. É a «lógica» do «crédito

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ilimitado», deixando o campo livre a todos os sofismas e a todas as depurações


[épurations]" (Petitot, 1988, p.122)

Petitot (1981) é incisivo em demonstrar o grave risco que representa o «excesso de


transferência» – expressão que atribui a Piera C.-Aulagnier –que, a seu ver, representa para a
psicanálise a "fonte de seu impasse teórico" (p.183); é incisivo em demonstrar que "se o
discurso analítico fracassa existencialmente, é porque está filosoficamente desertado" (p.182).
E, mesmo que não nos caiba aqui acompanhar toda a demonstração que empreende sob o título
"A análise lacaniana como aventura da dialética" – parafraseando no léxico psicanalítico As
Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty (pp.182-190) –, cabe-nos apontar, de igual modo, que
a psicanálise lacaniana, sobretudo após a morte de Lacan, e com a atitude apofática já
denunciada acima, acabou por se desertar também da lingüística – outrora verdadeira alavanca
no pensamento de Lacan –, como também até mesmo, mais genericamente, por se desertar
igualmente do solo estrutural, onde fincara a bandeira primeira de sua re-fundação.

De modo que, passando agora ao segundo movimento da reflexão, cabe-nos imaginar uma saída
que renuncie à saga transferencial excessiva que assombra ainda a pesquisa psicanalítica. Cabe-
nos pleitear, como Petitot (1981), uma "objetividade alternativa perfeitamente identificável"
(p.196). Não exatamente na direção da matematização catastrofista que ele mesmo busca
(legitimamente) defender a partir da Teoria das Catástrofes de René Thom, mas, desta vez,
numa espécie de «retorno» às linhas fundamentais da episteme estrutural, sobretudo no modo
como esta propicia a construção paulatina de uma (meta-)linguagem e método, coerentes e
rigorosos, na conceitualização do inconsciente e suas vicissitudes, no nosso caso,
conceitualização com Freud e Lacan, e não necessariamente sob Freud ou Lacan (isto é, sob o
terrorismo do excesso transferencial) 8 .

A Abordagem Estrutural: Uma Linguagem e Um Método Conceitual

É curioso observar a divergência de opiniões que a abordagem estrutural representa para os


pesquisadores dependendo da sua formação teórica. De um lado, do ponto de vista dos estudos
mais históricos, hermenêuticos, ou literários, ela recebe a interpretação de ser um método
excessivamente formal, logicizante, uma linguagem demasiadamente abstrata e sintaxizante e,
por isso mesmo, redutora da «riqueza» dos conteúdos, destruidora da «beleza» do semantismo
dos textos. De outro lado, do ponto de vista das ciências duras, ela é vista como uma veleidade
– uma "divagação de literatos, indigna da atenção de um verdadeiro cientista" – como nos
informa Thom (1974a), que lamenta o caráter obscurantista da opinião (p.133).

Para Thom (1974a), mesmo que a abordagem estrutural não atinja mais que um pequeno
número de disciplinas (lingüística, antropologia, semiótica, psicanálise…) sua importância na
história geral das ciências é tal que ele a faz equivaler, no plano qualitativo, àquilo que o célebre
hipotheses non fingo de Newton representara para o plano quantitativo que desencadeou a
ciência moderna (p.132). A lingüística estrutural, a seu ver, trouxe uma contribuição essencial
às ciências, ao levá-las a questionar a própria noção de explicação científica : "a lingüística nos
obriga – a nós, especialistas das ciências exatas, matemáticos, físicos, biólogos – a um exame
radical, uma reavaliação fundamental dos fins do próprio empreendimento científico" (Thom,
1974b, p.235). A reflexão dessas disciplinas estruturais obriga o cientista a reavaliar a própria
noção de fato ou das leis da natureza. Thom (1978a) reconhece que as próprias leis físicas, em
grande parte, "não são outra coisa senão as coerções da comunicação entre observadores", que
as leis físicas "não descrevem fenômenos, descrevem as leis que permitem comparar as visões
de dois observadores" (p.101). Ou seja, mais do que métodos de observação, as próprias
ciências físicas se vêem diante da questão de uma linguagem que organize a própria observação
e sua comunicação.

Por sua vez, no caso das disciplinas humanas, em que os fenômenos não apresentam uma
«existência material» não há como prosseguir no sonho de uma ciência segundo os critérios
rígidos da experimentação, da observação, da verificabilidade ou falseabilidade 9 . Com efeito,
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no nosso caso presente, de que modo reproduzir «ex-peri-mental-mente» um ato de discurso,


um ato de enunciação ou um ato falho do inconsciente? O sentido não se reproduz, ele se
transpõe; o inconsciente não se reproduz, produz continuamente. Se o critério da
verificabilidade estrita deve ser abandonado nas humanidades, voltemos a Thom (1978b), temos
que nos defrontar com "uma teorização conjectural fundada sobre conceitos", isto é, "opor aos
cientistas puros abrigados na certeza do fato experimental o critério de interesse de uma
proposição especulativa" (p.55 – itálicos meus).

Ora, essas duas exigências, uma nova concepção da explicação científica e a introdução do novo
critério de interesse, constituem a meu ver o núcleo básico a partir do qual inscrever a
linguagem concetual a que estou me referindo. Thom (1978b) define a explicação científica
como sendo uma contínua «redução do arbitrário» da descrição dos fenômenos. A sua aplicação
mais imediata para o caso das ciências humanas leva-me a entendê-la como o máximo rigor
possível na coerência e nas inferências que o pesquisador deve promover na descrição de seus
objetos, ou na evolução dos seus argumentos. Trata-se da tarefa de eliminar da descrição e da
argumentação os «saltos» mágicos, analogias apressadas, interpretações demasiadamente
intuitivas, aforismos insondáveis, sem respaldo na pertinência do enfoque dado: uma espécie de
disciplina da intuição na descrição dos fenômenos, um retorno constante às formulações e
definições propostas, isto é, uma contínua re-definição dos conceitos, para reparar as zonas
obscuras, os «buracos negros», as passagens mágicas deixadas no caminho das incursões
anteriores 10. O «critério de interesse» também advoga a coerência da descrição. Segundo Thom
(1978b) não se trata de entendê-lo apenas quanto à eficácia pragmática da teoria. Deve ser
entendido como "a preocupação de economia conceptual, de simplificação da descrição, de
coerência interna da dedução" (p.55).

Quero insistir, nesse breve exame sobre a abordagem estrutural, que, no caso das disciplinas
humanas, tal como a psicanálise, a sua discursividade não pode provir dos critérios rígidos, da
verificação experimental. De modo que, por sua vez, sem o lastro experimental, uma forma de
evitar que a teoria escape para um derivado oposto, e se deixe acomodar no idiomatismo sob
transferência pânica (ao dito de Freud ou ao «estilo» de Lacan), é a de concebê-la como uma
linguagem conceitual, coerente nas formulações, elegante e simples nos modelos criados, e
exaustiva no respeito à finura de articulações dos seus objetos de conhecimento. Sem poder se
definir como ciência experimental, a psicanálise tem a meu ver uma saída de discursividade
aliviada do terrorismo da saga transferencial: construir-se como um método, tendencialmente
coerente, simples e exaustivo, e como uma linguagem conceitual, tendencialmente bem
formada. Infelizmente, porém, ocorre que tais requisitos não são uma aquisição de partida. São
uma conquista de chegada.

O Nascimento de uma Ciência: Uma Terminologia

Não é difícil convencer-se de que toda disciplina – cujos votos de base estejam nutridos por uma
«vocação científica» – tende a passar por sucessivas fases, na sua construção e
desenvolvimento. Numa primeira fase, quando sonda o terreno de seus objetos, ou, no caso das
humanidades, quando sonda o campo semântico das suas cogitações, ela atravessa uma etapa
que poderíamos entender, usando uma expressão de Benveniste (1974), como de constituição
de uma terminologia. Vale a pena citar esse autor, em extensão, para medir a importância que
ele atribui a isso:

"A constituição de uma terminologia própria marca em toda ciência a chegada e


o desenvolvimento de uma conceitualização nova, e assinala nisso um momento
decisivo da sua história. Poderíamos mesmo dizer que a história própria de uma
ciência só começa a existir e só pode se impor na medida em que ela faz existir
e impõe seus conceitos na sua denominação. Ela não tem outro meio de
estabelecer sua legitimidade a não ser ao especificar, denominando-o, seu
objeto, podendo este ser uma ordem de fenômenos, um domínio novo ou um
modo novo de relação entre certos dados" (p.247)

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Esse momento terminológico, Benveniste (1974) considera-o não apenas decisivo no nascimento
de uma ciência, mas também constante no seu andamento, a tal ponto que denominar, isto é,
criar um conceito, continua o autor, é "a operação ao mesmo tempo primeira e última de uma
ciência" (p.247). Poderíamos entender essa operação terminológica não apenas como a simples
denominação ou elencagem dos conceitos, mas também como abrangendo uma primeira fase
descritiva deles. Isto é, ao mesmo tempo que os denomina, – quer retomando-os à linguagem
natural, quer construindo neologismos, quer ainda emprestando-os de outras teo-rias –, a
disciplina já procede a um primeiro gesto teórico de delimitação desses conceitos, de definição
da zona semântica que eles recobrem, enfim, já executa uma primeira descrição do que
poderíamos chamar as esferas de irradiação que tais conceitos exercem no campo semântico em
exame, os centros organizadores de tal campo.

Não é difícil identificar esse primeiro passo seja no nascimento, seja na evolução da psicanálise
freudiana. Observemos já de saída que o próprio termo psicanálise não era um termo disponível.
Se Freud fabricara o neologismo o fora sobretudo porque o novo ponto de vista ou, na expressão
de Benveniste (1974), a nova ordem de fenômenos em que Freud se situou para observar e
descrever o psiquismo humano – as patologias propriamente ditas e, posteriormente, o
psiquismo geral da «vida cotidiana» –, se colocava um tanto quanto fora dos parâmetros e das
conceitualizações existentes na clínica médica de então, na psicologia vigente ou nas filosofias
disponíveis. Nesse sentido o «inconsciente» é uma criação conceitual de Freud: antes dele,
observou uma vez Lacan (1966), o inconsciente "não é, pura e simplesmente" (p.612)11.

A partir daí, numerosos são os conceitos que Freud forjará para descrever as leis do
inconsciente: resistência, recalcamento, transferência, condensação, deslocamento, denegação,
pulsão, libido, complexo de Édipo, narcisismo… O «desejo» será conceitualizado fora da sua
acepção do senso comum; os «atos falhos» deixarão de ser uma leve impropriedade lingüística,
e os «esquecimentos» uma leve amnese, para se postarem como conceitos indutores dos
meandros pelos quais o inconsciente fala subrepticiamente. Posteriormente Freud organizará as
‘forças’ atuantes no inconsciente numa tópica que o redistribuirá em «id, ego, superego»,
mostrando-nos, enfim, que estava nascida nessa terminologia, e na compreensão atribuída a
esses conceitos, a nova disciplina da psicanálise.

Conceituação

Dizia atrás que a constituição terminológica de uma disciplina de «vocação científica» não se
resumia num mero elenco de denominações e conceitos, mas que abrangia uma primeira fase
descritiva das esferas de irradiação semântica que eles recobrem. Quero dizer agora, um pouco
mais precisamente, que tal esforço procura na verdade dotar os conceitos de sucessivas
definições. Isto é, o pesquisador procura recolher das múltiplas formulações que foram sendo
trabalhadas nos seus raciocínios aquelas que lhe parecem captar com mais precisão, com mais
elegância ou da forma mais econômica, o próprio núcleo daquilo que representam enquanto
conceitos, a própria razão pela qual tiveram que ser introduzidas como conceitos para a
disciplina. É o que se entende comumente como a fase de conceituação da disciplina.

São múltiplas as etapas cognitivas dessa fase conceitual. É quando se dão os axiomas diretivos
da disciplina, os aforismos mais sugestivos que, por sua vez, revelam a fase mais estimulante
das suas aberturas. É quando o pesquisador põe a serviço da construção da disciplina a veia
mais rica da sua intuição, os saltos cognitivos fecundos – a "estimulação da intuição" de que fala
Thom (1985, p.77)– que por sua vez vão determinar o proprio futuro dela, as direções
específicas que a farão captar na intrincada matéria bruta do «real» um ponto de vista
particular, sua «ontologia regional», a determiná-la como «teoria», isto é um ato de ver. É
quando também o pesquisador aciona sua imaginação teórica no sentido de «saturar» os
aforismos e axiomas, entendendo por isso a tarefa de examiná-los em todas as direções
possíveis, de arrancar todos os seus efeitos evocatórios, de fazê-los estimular novas
conseqüências conceptuais, novos desdobramentos conceituais, novas «simetrias implícitas»,
para retomar a Thom (cf.1985, p.76).

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A psicanálise de Lacan é um exemplo de mão cheia disso. Basta termos em mente o trabalho de
cognição que Lacan efetuou sobre uma frase de Freud em que, num momento de reflexão, este
dizia, de passagem: «Wo Es war soll Ich werden». Sabemos que Lacan transformou essa simples
frase, que poderia muito bem passar desapercebida a qualquer pesquisador – como de fato
ocorreu até sua intervenção – transformou-a num verdadeiro aforismo diretivo de sua
psicanálise. Trata-se de um claro exemplo de como se inicia o gesto de verdadeira
conceitualização numa disciplina: transformar as intuições em aforismos e axiomas e prepará-las
na direção de conceitos.

Um outro exemplo marcante dessa tarefa de conceitualização está na maneira como Lacan
organizou toda a reflexão que Freud (1898/1996) inserira no movimento cognitivo do clássico
exemplo do Boticelli, dentre outros que Freud atribuíra à nossa psicopatologia da vida cotidiana
ou, mais largamente, em toda a ‘lingüística’ implícita de Freud. Nada mais, nada menos, a
«bricolagem» inusitada de Lacan com essa lingüística de Freud o levou a seu axioma maior: «o
inconsciente está estruturado como uma linguagem», proposição a tal ponto diretiva de seu
pensamento que não restam dúvidas dever entendê-la, reconhece J. A. Miller (1988, p.94),
como o «ponto» de Arquimedes, a alavanca com que Lacan levantou a Psicanálise de Freud: "o
que é o discurso de Lacan, pergunta-se Miller, seu avanço, seu traçado? É a seqüência, talvez
intrinsecamente infinita, das decorrências da tese de que o inconsciente está estruturado como
uma linguagem" (Miller, 1978, p.15). As formulações de Lacan, tendendo a depositar no
significante a base conceitual por meio da qual entender todos os ‘mecanismos’ do inconsciente
(condensação, deslocamento, resistência...) e a própria definição que lhe estipula – "o
significante é o que representa o sujeito para um outro significante" – constituem fartos
exemplos que marcam o início da tarefa de uma verdadeira conceitualização da psicanálise
(infelizmente não levada a termo pelos seus discípulos, no sentido que estamos aqui
desenhando-a).

Formalização (Matematização ou Esquematização)

Sem prejuízo do fato de que o movimento de conceituação de uma disciplina constitui a extensa
arena da batalha cognitiva onde ela nasce, se constrói e amadurece, parece ser inevitável uma
nova etapa. Parece ser uma coerção inelutável do imaginário teórico levá-la à etapa de sua
formalização. É aqui que se ela corre, de um lado, o risco de cair em «formalismos
insignificantes», para usar a reflexão de Thom (1985) – em que o excesso de fórmulas (lógicas,
simbólicas, matemáticas, algébricas…) atraem o pesquisador para um redemoinho quantitativo,
"ao grande mito do quantitativo, que permit[e] a milhares de autores escrever equações sem
significação", levando-os ao risco de perder a dimensão do «interesse» ou da «importância»
humana das suas pesquisas –, de outro, ela não pode se dispensar de um esforço meta-teórico
de "justificação dinâmica das estruturas" (p.23). É nesse momento de formalização que lhe cabe
a tarefa da «redução do arbitrário» nas descrições, isto é, de tentar justificar cada passagem de
nível das articulações das suas morfologias, eliminar as «magias» que a intuição põe em cena
para vencer os pequenos buracos negros que vão ficando no caminho da conceitualização. É
onde rivalizam, como soluções metodológicas, a utilização da simbolização lógica, da
matematização, da topologização ou da geometrização dos conceitos e das estruturas. A
psicanálise de Lacan mostra cabalmente a tentativa, nas suas fórmulas lógico-simbólicas da
sexuação, na sua topologia borromeana ou no seu matema.

Conceituação Estruturante

A apresentação linear dessas três fases – operação terminológica, conceitualização,


formalização – não deve causar-nos a impressão de que sejam etapas a se darem linear e/ou
isoladamente no andamento das pesquisas. Mais correto seria dizer que se imbricam uma na
outra. A terminologia é já uma conceitualização a caminho, e esta já ensaia a viabilidade da
formalização. Poderíamos entender as três fases como três forças de pressão a estimular
continuamente a disciplina: a primeira, derivada da exigência de novos campos de indagação, ou
de novos recortes nos campos já em exame; a segunda, derivada da necessidade de contínuo

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aprimoramento nas definições dos conceitos e no contínuo refinamento dos instrumentos de


descrição das estruturas intervenientes; a terceira, derivada da pressão meta-teórica de uma
justificação (topológico-matemática) dos conceitos e das estruturas.

Desses três momentos, a fase de conceituação propriamente dita é a meu ver a que maiores
desafios antepõe ao amadurecimento da disciplina. Mesmo sob o risco de que a falta de
competência nos domínios da matemática, da topologia ou da lógica coloquem em suspeição tal
entendimento, penso que a conceituação é o desafio crucial na identidade de uma disciplina. Ela
é o vasto movimento cognitivo que, nas suas proposições especulativas e conjecturais
(hipotético-dedutivas), não apenas consolida a terminologia, como ainda prepara (bem ou mal)
o terreno para a fase posterior, da sua formalização/esquematização. A conceituação, se
conduzida com lucidez, é aquilo que prepara a disciplina para um «fazer científico», de modo a
evitar que se inche como discursividade esotérica e se acomode na contemplação iniciática,
repetida e calorosa de seus próprios aforismos gerais. É a conceituação que responde pela
conversão das formulações de sondagem, dos aforismos estimulantes em conceitos e em
definições cada vez mais dispostos estruturalmente.

Porque nem só de aforismos e axiomas se nutre a conceituação. Eles são o ponto de partida
dela; constituem a intuição cognitiva que abrem o campo de exploração. Os aforismos e axiomas
intuem o conjunto das «simetrias implícitas» dos objetos de conhecimento – para retomar a
expressão de Thom. A conceituação vem atrás para explicitá-las na forma de conceitos e
definições. É uma tarefa que exige forte lucidez não de um, mas de muitos pesquisadores, uma
tarefa coletiva.

Porém, mais importante ainda do que a conversão dos aforismos e axiomas em conceitos,
convém aduzir que a conceituação não se limita apenas ao corpo de definições. Mais
fundamental que isso é a exigência da coesão desse corpo conceitual, a necessidade de que a
definição de um conceito não mine, destrua ou contradiga a definição de um outro. Trata-se aqui
da exigência da coerência no corpo dos conceitos, isto é uma coerência entre as definições dos
conceitos. Dito de outro modo, a conceituação se compõe de dois movimentos cognitivos: é um
movimento de definição e ao mesmo tempo é um movimento de interdefinição entre os
conceitos. De modo que, tal como para o princípio «estrutural» da linguagem comum, onde os
termos (os significantes) só se definem pela relação que têm com os outros membros da cadeia
significante, do mesmo modo, a conceituação não terá sentido se as definições de seus conceitos
se apresentam atomizadas, se os conceitos vagam livremente, como cometas, no universo da
teoria. Um conceito só tem sua definição coerente, elegante e pertinente aos desafios da
disciplina se ele se interdefine com os outros conceitos da cadeia teórica.

É assim que a conceituação introduz na teoria a exigência de um sistema de definições que se


fundamente num sistema de relações entre os conceitos, ou, dito de outro modo, introduz na
teoria a exigência de uma linguagem relacional a possibilitar um arranjo «estrutural» entre os
conceitos12. Essa exigência de uma (meta-) linguagem relacional provém da necessária
adequação que a metodologia deve buscar com relação ao seu objeto de estudos. Porque, seja o
objeto da lingüística ou da semiótica, a linguagem em geral, seja o objeto da psicanálise, a
‘linguagem’ do inconsciente, ela não se define como um aglomerado fortuito de elementos, de
signos ou de «formações». Ela compõe, para usar a expressão de Hjelmslev (1971), uma
«entidade autônoma de dependências internas», em que tudo está relacionado, em que "tudo se
sustenta" (p.123).

Assim, na linguagem de conceituação da disciplina um conceito pressuporá um outro, mas não


inversamente (pressuposição unilateral); haverá conceitos que se pressupõem reciprocamente;
haverá um conceito cuja presença é condição necessária de um outro, mas não inversamente.
Tudo isso quer dizer que a conceituação se organiza de uma forma hierarquizada. Uma disciplina
não pode se apresentar como um conglomerado difuso de denominações ou de conceitos
atomizados, ou ainda como uma justaposição linear de «pontos importantes», mas como uma
hierarquia de conceitos, de definições e de interdefinições. Uma linguagem conceitual é uma

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hierarquia de pressuposições e de interdependências. A hierarquização de seus conceitos nada


mais é do que conceber a disciplina, tal como seu objeto, como uma «estrutura». A conceituação
é pois a tarefa de estruturar os conceitos de uma disciplina, de converter sucessivamente as
formulações intuitivas, os axiomas de partida ou os aforismos de estimulação, numa
conceituação estruturante: transformar «simetrias implícitas» ou a «organização escondida» em
hierarquias conceituais explicitadas 13 .

Ora, se a maneira de conceber a discursividade psicanalítica, como acima, puder ser considerada
legítima, ela abre para a teoria psicanalítica uma nova perspectiva de avanço, um pouco aliviada
do circuito excessivamente transferencial a Lacan, tendencialmente liberada da submissão
pânica ao a priori da enunciação do fundador (Freud ou Lacan). Explico-me: se se abre à
psicanálise lacaniana a possibilidade de se construir como uma conceituação estruturante do
inconsciente; se houver a possibilidade de construção de uma (meta-)linguagem explícita de
definições e interdefinições de seus conceitos intervenientes, uma viragem significativa pode ter
aí seu lugar. Tem-se aí a chance de transferir sua apodicidade interna, isto é, sua base
demonstrativa, do idioma de seu fundador ou do estilo de Lacan, para o próprio inconsciente
como estrutura de linguagem. Isto é, o que passará a regular e legitimar a «verdade»
psicanalítica ou a «evidência» do inconsciente não será obrigatoriamente o fato de isso ter sido
dito por Freud, ou por Lacan, mas o fato de que a coisa fala de si mesma na sua objetividade de
estrutura 14 . Mesmo porque, permito-me uma comparação um tanto incongruente, temos de
estar advertidos de que o inconsciente é maior do que Lacan (ou do que Freud).

Estou bem ciente da dificuldade que uma tal viragem pode significar para o campo psicanalítico.
Não me escapa o caráter «herético» com que tal hipótese possa parecer aos olhos de
psicanalistas aferrados ao estilo de Lacan, sobre cuja apreciação, mais do que um exame sério e
conseqüente, corre muita tinta de coloração fortemente passional (cf. Beividas, 1994 e 1995).
Menos ainda me escapa a imensidão de um programa assim esboçado, não apenas porque se
choca com resistências bastante solidificadas no contexto psicanalítico geral, ainda em
transferência pregnante com o homem-Lacan, mas sobretudo porque toca fundo na questão de
uma metodologia de manuseio dos conceitos elaborados, isto é, implica uma ampla
reestruturação na abordagem (teórica) dos conceitos legados por Freud e Lacan. Quanto a isso,
só posso aqui resignar-me a entender que a ética de uma pesquisa não se alimenta da facilidade
no presente, mas da esperança de novos horizontes no futuro.

Quando muito, podemos ao menos tentar evitar desde aqui um mal entendido prévio. Se tal
hipótese implica transferir a apodicidade interna da psicanálise do estilo de Lacan para a
estrutura do inconsciente ou, num entendimento mais psicanalítico, considerar o inconsciente
(como estrutura), e não a Lacan, como o «sujeito-suposto-saber» da psicanálise – «a coisa fala
de si mesma […] Eu, a verdade, eu falo» – isso não significa um gesto iconoclasta. A hipótese
não destitui o valor heurístico dos aforismos e dos ensinamentos de Lacan; implica restituir-lhes
o valor de estrutura, que as contingências históricas pós-lacanianas parecem pouco a pouco
estar na iminência de perder. Por paradoxal que possa parecer, resgatar a estruturalidade dos
aforismos de Lacan significa antes de tudo admiti-los como gesto de fundação da psicanálise. O
programa de tentar submetê-los ao teste de uma metalinguagem explícita de definições e
interdefinições, de uma conceituação estruturante, significa preservá-los como diretrizes da
intuição, significa querer saturar-lhes as «simetrias» estruturais escondidas sob seu arranjo
estilístico.

E por surpreendente que possa parecê-lo, um tal programa é a condição de se evitar o paradoxo
maior, até hoje no meu entendimento jamais colocado em psicanálise sob tal forma: apegar-se
ao estilo de Lacan – no regime assumidamente transferencial – como único instrumento de
cognição da psicanálise, e fazê-lo radicalmente, isto é, até as raízes, não significará ter de
repetir necessariamente novos gestos de fundação do inconsciente tantos quantos forem os
psicanalistas que se formem no campo? Para ser honesto com minhas convicções me obrigo a
cortar a resposta no raso: não acredito que Dama Natureza tenha distribuído tão fartamente a
genialidade entre os mortais.

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1 Texto apresentado no Grupo de Trabalho "Pesquisa em Psicanálise". VII Simpósio de Pesquisa


e Intercâmbio Científico da ANPEPP, Gramado, maio de 1998.

2 Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica -


Instituto de Psicologia - UFRJ - Av. Pasteur, 250 - Fundos, 22290-240, Rio de Janeiro - RJ.
E-mail: beividas@yahoo.com

3 O termo «apodicidade» não figura em dicionário de uso comum. Substantivação de


«apodíctico», na Filosofia Grega se refere a tudo o que concerne à «demonstração» (apo-deixis).
Utilizo-o para indicar o que seria uma base demonstrativa primeira, ou, em termos husserlianos,
as realidades primeiras-em-si que devem sustentar o edifício da ciência e, como tal, ser o motor
essencial da pesquisa (cf. o verbete apodictique da Encyclopédie Philosophique Universelle II.
Les notions philosophiques, por Sinaceur (1990, p. 122-125)

4 Tomo aqui o conceito de transferência na acepção mais diretamente circunscrita ao que Lacan
enfatizou como sendo seu pivô: o «sujeito-suposto-saber».

5 Por exemplo: a comunidade psicanalítica lacaniana de hoje reconheceria os trabalhos, a bem


dizer fortemente instigantes e criativos, de alguém como M.D.Magno, como fazendo parte da
psicanálise «oficial»?

6 Também de uso não dicionarizado no senso comum, apofático vem do grego apophasis,
negação. O apofatismo caracterizava uma teologia chamada «negativa» porque propunha um
discurso sobre Deus por proposições negativas: ele é inefável, indizível…, levando até mesmo a
desqualificar qualquer saber positivo, na sua forma mais radical (cf. verbete apophatismes da
Encyclopédie Philosophique Universelle II. Les notions philosophiques, por Texier, 1990, p. 131).

7… e expõe a teoria a críticas mordazes (cf. Reisinger, 1991).

8 Ainda que devamos entender por episteme estruturalista, ou por estrutura de linguagem do
inconsciente, não a sua «verdade» ou realidade última, mas ao menos uma «ontologia regional»
(na acepção husserliana), isto é, uma das camadas ou fibrilas do real (cf. Thom, 1986).

9 Thom (1978b) denuncia vigorosamente o "mito da Ciência (sobretudo experimental) como


fonte exclusiva de conhecimentos", que leva a maior parte dos cientistas a se acantonarem
"numa filosofia sumária, de caráter neo-positivista ou popperiano, segundo o qual somente as
asserções experimentalmente verificáveis (ou infirmáveis) fazem sentido" (p.53).

10 Não é simples entender a «redução do arbitrário» que advoga Thom porque tal concepção
vem lançada desde contextos minuciosamente técnicos a outros mais amplos (comparem-se:
1974a e 1978b ou 1985). Mas penso ser legítimo entendê-la como acima quando o vemos
requerer uma "prudência ontológica" que evite a metafísica descontrolada, no "desejo de não
dar «salto» excessivo na dedução" (1978b, p.56) ou quando, um pouco mais tecnicamente,
pleiteia uma justificação dos axiomas da descrição, a fim de pôr em evidência, nos fenômenos
descritos, as suas "simetrias implícitas, sua organização escondida." (Thom, 1985, p.76)

11 A frase pode parecer à primeira vista como um certo abuso de retórica porquanto o próprio
Freud, no fim da vida, atribuia aos poetas e filósofos a descoberta do inconsciente e a ele
próprio apenas um método de acesso às suas leis. Mas a retórica de Lacan deixa de ser abusiva
quando entendemos que é apenas no momento de uma ruptura conceitual, tal como o gesto de
Freud, que nasce uma disciplina, e não nas intuições, mesmo geniais, que ocorrem aqui ou ali,
despretensiosamente.

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12 É aqui que intervém o problema espinhoso da «metalinguagem» (científica), isto é, uma


linguagem que não flui com os termos de uso comum, com as acepções do uso cotidiano, mas
com termos já previamente conceitualizados, isto é previamente re-definidos no interior da
disciplina. Não quero prosseguir aqui no raciocínio diretamente ligado à questão da
metalinguagem, porque o axioma lacaniano, pesado de conseqüências – «não há
metalinguagem» – exigiria uma reflexão à parte, impossível de ser feita nos limites deste artigo.

13 As observações desses últimos itens talvez pequem pelo seu cunho abstrato, sobretudo no
âmbito da reflexão psicanalítica tal como caminhou e imperou após Lacan. Mas se queremos
retomar os laços fortes da psicanálise com a episteme estrutural, talvez esse preço não seja tão
alto assim.

14 Entenda-se tal objetividade não uma existência material, empírica (no sentido
observacional), mas a objetividade que tem a(s) estrutura(s) que subjaz a todo ato de
linguagem, a toda manifestação discursiva, isto é, uma existência semiótica

Referências

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Sobre o autor:

Waldir Beividas é Doutor em Semiótica e Linguística pela Universidade de São Paulo (1992);
Pós-doutorado na École das Hautes Études em Sciences Sociales - EHESS - Paris (1999);
Professor Adjunto II da UFRJ - Instituto de Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, desde 1993.

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