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21/02/2018 Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta – LavraPalavra

LavraPalavra

Reciclagem, comidas orgânicas, andar de


bicicleta… não é assim que nós salvaremos
o planeta

Por Slavoj Žižek, via BlibiObs, traduzido por Daniel Alves Teixeira

Em dezembro de 2016, milhares de cidadãos chineses asfixiados pela poluição atmosférica tiveram que
se refugiar no campo na esperança de nele encontrar uma atmosfera mais respirável. Esse “arpocalipse”
afetou 500 milhões de pessoas. Nas grandes aglomerações, a vida diária tomou a aparência de um filme
pós-apocalíptico: os transeuntes equipados com máscaras de gás circulavam em uma fumaça sinistra
que cobria as ruas como uma coberta.

Este contexto fez aparecer claramente a separação de classes: antes que a névoa não chegasse
a fechar os aeroportos, somente aqueles que possuíam os meios de comprar um bilhete de
avião puderam deixar as cidades. Para isentar as autoridades, os legisladores de Pequim
chegaram a classificar a névoa entre as catástrofes meteorológicas, como se fosse um
fenômeno natural, e não uma consequência da poluição industrial. Uma nova categoria veio
então se juntar a longa lista de refugiados que fogem das guerras, das secas, dos tsunamis,
dos terremotos e das crises econômicas: os refugiados da fumaça.

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21/02/2018 Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta – LavraPalavra

No entanto, o “arpocalipse” não tardou em ser objeto de uma normalização. As autoridades


chinesas, obrigadas a darem conta da situação, aplicaram medidas para permitir aos cidadãos
que continuassem com sua rotina diária. Eles lhes recomendaram ficar fechados em casa e
não saírem senão em caso de necessidade, munidos de uma máscara de gás. O fechamento
das escolas fez a alegria das crianças. Uma escapada para o campo se tornou um luxo e
Pequim viu prosperar as agências de viagem especializadas nessas pequenas excursões. O
essencial era não entrar em pânico, agir como se nada tivesse acontecido.

Uma reação compreensível, se consideramos que “quando somos confrontados com alguma
coisa tão completamente estranho a nossa experiência coletiva, nós não realmente a vemos,
mesmo que a prova seja esmagadora. Para nós, essa “alguma coisa” é um bombardeio de
imensas alterações biológicas e físicas do mundo que nos alimentou”. Nós níveis geológicos e
biológicos, o ensaísta Ed Ayres enumera quatro “picos” (desenvolvimento acelerados)
aproximando assintoticamente o ponto além do qual se desencadeará uma mudança
qualitativa: crescimento demográfico, o consumo de recursos limitados, emissão de gases
carbônicos, extinção em massa das espécies.

Diante dessas ameaças, a ideologia dominante mobiliza mecanismos de dissimulação e


cegueira: “Entre as sociedades humanas ameaçadas prevalece um padrão geral de
comportamento, uma tendência a fechar os olhos ao invés de se concentrar na crise, algo um
tanto vão.” Esta atitude é aquela que separa o saber e a crença: nós sabemos que a catástrofe
(ecológica) é possível, mesmo provável, mas nós nos recusamos a acreditar que ela vai
acontecer.

Quanto o impossível se torna normal

Lembre-se do sítio de Saravejo no início dos anos 1990: que uma cidade europeia “normal”
de cerca de 500.000 habitantes se encontrasse cercada, esfomeada, bombardeada e
aterrorizada por atiradores de elite durante três anos teria parecido inimaginável antes de
1992. Em um primeiro momento, os habitantes de Saravejo acreditaram que essa situação não
duraria. Eles pensavam em enviar seus filhos para um lugar seguro durante uma ou duas
semanas, até que as coisas se apaziguassem. Todavia, muito rapidamente, o estado de sítio se
normalizou.

Essa mesma alternância do impossível ao normal (com um breve interlúdio de choque e


pânico) é evidente na reação do establishment liberal americano em face da vitória de Trump.
Ela se manifesta igualmente na forma como os Estados e o grande capital enxergam as
ameaças ecológicas tais como o derretimento da calota glacial. Os políticos e gestores que,
ainda recentemente, excluíam a ameaça de aquecimento global como um complô crypto-
comunista ou, ao menos, como um prognóstico alarmista e infundado, nos asseguram que
não há qualquer razão para pânico, considerando agora o aquecimento global como um fato
estabelecido, como um elemento normal.

Em Julho de 2008, uma reportagem da CNN, “The Greening of Greenland” (“A Groenlândia
se torna verde”), exaltou as possibilidades abertas pelo derretimento do gelo: que felicidade,
os habitantes da Groenlândia vão agora cultivar seus jardins! Essa reportagem foi indecente
na medida em que ela aplaudia os benefícios marginais de uma catástrofe mundial, mas
sobretudo porque ela associava o “esverdeamento” da Groenlândia, consequência do
aquecimento global, a uma tomada de consciência ecológica. Em “A Doutrina do Choque”,
Naomi Klein mostrou como o capitalismo mundial explora as catástrofes (guerras, crises
políticas, catástrofes naturais) para fazer tábula rasa das velhas constrições sociais e impor
sua própria agenda. Longe de desacreditar o capitalismo, a ameaça ecológica não fará talvez
que promove-lo ainda mais.
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21/02/2018 Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta – LavraPalavra

Bata no seu peito

Paradoxalmente, as próprias tentativas para combater outras ameaças ambientais podem


agravar o aquecimento dos polos. O buraco na camada de ozônio ajuda a proteger a
Antártida do aquecimento global. Se ele fosse levado a diminuição, a Antártida poderia ser
pega no aquecimento do resto do planeta. Da mesma forma, está na moda enfatizar o papel
decisivo do “trabalho intelectual” em nossas sociedades pós-industriais. Ora, hoje, o
materialismo opera uma reação, como testemunha a luta por recursos escassos (alimentos,
água, energia, minerais) ou a poluição do ar.

Mesmo quando nós nos dizemos prontos para assumir a nossa responsabilidade, podemos
ver que existe aí um truque que visa esconder a sua verdadeira amplitude. Há algo
falsamente tranquilizador nesta prontidão para bater em nosso próprio peito. Sentimo-nos
culpados de bom grado porque, se somos culpados, é que tudo depende de nós, nós é que
puxamos as cordas, basta mudarmos o nosso estilo de vida para sairmos dessa. Aquilo que é
mais difícil para nós aceitar, nós ocidentais, é ser reduzido a um papel puramente passivo de
um observador impotente. Nós preferimos nos lançarmos a um frenesi de atividade, reciclar
nosso desperdício de papel, comer orgânicos, dar-nos a ilusão de fazer algo, dar a nossa
contribuição, como um torcedor de futebol bem acomodado em seu sofá na frente de uma
tela de TV, que acredita que as suas vociferações influenciarão o resultado do jogo.

Em matéria de ecologia, a negação típica consiste em dizer: “Eu sei que estamos em perigo,
mas eu não acredito realmente nisso, então por que mudar meus hábitos?” Mas há uma
negação inversa: “Eu sei que não podemos fazer muito para interromper o processo que
arrisca nos levar a nossa ruína, mas essa ideia é para mim tão insuportável que eu vou tentar,
mesmo que isso não sirva para nada”. Este é o raciocínio que nos leva a comprar produtos
orgânicos. Ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar que as maçãs rotuladas como
“orgânicas”, meio podres e muito caras, são mais saudáveis. Se nós optamos por compra-las,
não é simplesmente como consumidores, é na ilusão de fazer algo útil, dar provas da nossa
crença, nos dar boa consciência, participar de um vasto projeto coletivo.

Retorno a Mãe Terra?

Vamos parar de nos enganar. O “arpocalypse” chinês mostra claramente os limites deste
ambientalismo predominante, estranha combinação de catastrofismo e de rotina, de culpa e
indiferença. A ecologia é agora um grande campo de batalha ideológico onde se desenrola
uma série de estratégias para escamotear as reais implicações da ameaça ecológica:

A ignorância pura e simples: é um fenômeno marginal, que não merece que nós nos
preocupemos com ela, a vida (do capital) está em curso, a natureza se encarregará dela
mesma;

A ciência e a tecnologia podem nos salvar;

O mercado resolverá os problemas (pela taxação dos poluidores, etc.);

Insistência sobre a responsabilidade individual no lugar de vastas medidas sistemáticas:


cada um deve fazer aquilo que pode, reciclar, reduzir seu consumo, etc.;

O pior é sem dúvida um apelo a um retorno ao equilíbrio natural, a um modo de vida


mais modesto e mais tradicional pelo qual nós renunciamos a hubris humana e nos
tornamos novamente crianças respeitosas da Mãe Natureza.

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21/02/2018 Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta – LavraPalavra

O discurso ecológico dominante nos interpela como se fôssemos culpados a priori, em dívida
com nossa Mãe Natureza, sob a pressão constante de um superego ecológico: “O que você fez
hoje pela Mãe Natureza? Você jogou o seu velho papel no recipiente de reciclagem previsto
para ele? E as garrafas de vidro, as latas? Você pegou o seu carro enquanto você poderia ter
ido de bicicleta ou de transportes públicos? Você ligou o ar condicionado em vez de abrir as
janelas?”

As implicações ideológicas de tal individualização são evidentes: totalmente ocupado em


fazer meu exame de consciência pessoal, eu esqueço de me colocar questões muito mais
pertinentes sobre a nossa civilização industrial como um todo. Esta empreitada de
culpabilização encontra também uma saída mais fácil: reciclar, comer orgânicos, utilizar
fontes de energia renováveis, etc. Em boa consciência, nós podemos continuar nosso alegre
caminho.

Mas então, o que devemos fazer? Em sua última obra, “Was geschah im 20. Jahrhundert”
(ainda sem tradução N.T.) Sloterdijk denúncia a “paixão do real” característica do século
precedente, terreno fértil para o extremismo político que leva ao extermínio dos inimigos, e
formula propostas para o século XXI: nós, seres humanos, não podemos minimizar os danos
colaterais gerados pela nossa produtividade. A Terra não é mais o plano de fundo ou o
horizonte de nossa atividade produtiva, mas um objeto finito que nós arriscamos tornar
inabitável acidentalmente.

Mesmo quando nos tornamos poderosos o suficiente para afetar as condições elementares de
nossa existência, nós devemos reconhecer que somos uma espécie entre outras sobre um
pequeno planeta. Esta tomada de consciência exige uma nova maneira de nos inscrevermos
em nosso ambiente: não mais como um trabalhador heroico que expressa seu potencial
criativo através da exploração de seus recursos inesgotáveis, mas como um modesto agente
que colabora com o seu entorno e que negocia permanentemente um nível aceitável de
segurança e estabilidade.

A solução: Impor uma solidariedade internacional

O capitalismo não se defini justamente pelo desprezo dos danos colaterais? Em uma lógica
onde somente o lucro importa, os danos ambientais não estão incluídos nos custos de
produção e são em princípio ignorados. Mesmo as tentativas de taxar poluidores ou de
colocar um preço sobre os recursos naturais (incluindo o ar) estão condenadas ao fracasso.
Para estabelecer uma nova forma de interação com o nosso meio ambiente, é preciso uma
mudança política e econômica radical, isso que Sloterdijk chama de “domesticação da besta
selvagem Cultura”.

Até agora, cada cultura disciplina seus membros e lhes garante a paz civil através dos meios
do poder estatal. Mas as relações entre as diferentes culturas e Estados permanecem
constantemente ameaçadas por uma guerra potencial, a paz não sendo que um armistício
temporário. Hegel mostrou que a ética de um Estado culmina neste supremo ato de
heroísmo, a vontade de sacrificar sua vida para a nação. Em outras palavras, a barbárie das
relações interestatais serve de fundamento para a vida ética no próprio seio de um Estado. A
Coreia do Norte, lançada à corrida dos armamentos nucleares, ilustra bem essa lógica de
soberania incondicional do Estado-nação.

A necessidade de civilizar as próprias civilizações, de impor uma solidariedade e uma


cooperação universal entre todas as comunidades humanas se tornou muito mais difícil com
o aumento da violência sectária e étnica e pela vontade “heroica” de se sacrificar (assim como
o mundo inteiro) em nome de uma causa. Superar o expansionismo capitalista, estabelecer

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21/02/2018 Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta – LavraPalavra

uma cooperação e solidariedade internacional capaz de gerar um poder executivo que


transcenda a soberania do Estado: não é assim que poderemos esperar proteger nossos bens
comuns naturais e culturais? Se essas medidas não tendem em direção ao comunismo, se eles
não implicam um horizonte comunista, então o termo “comunismo” está vazio de sentido.

Publicado por LavraPalavra

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7 de março de 2017
Sem categoria

Capitalismo, China, Comunismo, Ecologia, Economia, Filosofia, Politica, Slavoj Zizek

20 comentários em “Reciclagem, comidas orgânicas,


andar de bicicleta… não é assim que nós
salvaremos o planeta”

1. Neto
disse:
7 de março de 2017 às 10:38
Muito bom.

Lembro de outros dois textos importantes na crítica ao ambientalismo:

“Carta sobre a libertação animal” h ps://comunism0.wordpress.com/carta-sobre-a-


libertacaoanimal/

e um trecho do “Manifesto antiecológico” h ps://comunism0.wordpress.com/o-


movimento-ecologico-e-hoje-o-inimigo-oculto/

abraços!

2. Pingback: Interessantíssimo – sergioviagens


3. Jéssica Magalhães
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