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1732 ARTIGO ARTICLE

Práticas complementares, racionalidades médicas


e promoção da saúde: contribuições
poucos exploradas

Complementary practices, medical rationalities,


and health promotion: some overlooked
contributions

Charles Dalcanale Tesser 1

Abstract Introdução

1Centro de Ciências da This article presents some key contributions to Este artigo tem por objetivo apresentar contri-
Saúde, Universidade
Federal de Santa Catarina,
health promotion by complementary and alter- buições do campo das práticas complementares
Florianópolis, Brasil. native medicine (CAM). After contextualizing em saúde-doença, mais comumente conhecido
CAM, the article proposes a scheme for viewing como medicinas alternativas e complementares
Correspondência
C. D. Tesser the challenges and tensions in health promotion, (MAC) ou práticas integrativas e complementa-
Departamento de Saúde organized along four thematic lines: (1) actions res (PIC) à promoção da saúde no ambiente do
Pública, Centro de Ciências
impacting the collective (social, collective “em- Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de um
da Saúde, Universidade
Federal de Santa Catarina. powerment”) versus the individual; (2) inter- ensaio que sistematiza as contribuições desse
Campus Universitário – sector versus sectorial actions; (3) positive and campo para a promoção da saúde, dado que am-
Centro de Ciências da Saúde,
expanded conception of health versus health as bos têm crescido e se fortalecido mais ou menos
Florianópolis, SC
88040-900, Brasil. absence of disease; (4) directive versus dialogical em paralelo nas últimas décadas e apresentam
charlestesser@ccs.ufsc.br pedagogy. The paper argues that the contribu- várias intersecções e pontos em comum, embora
tions of CAM to health promotion are oriented pouco explorados.
towards individuals and groups and to the sec- A hipótese central, baseada tanto na litera-
torial pole of promotion; they are centered on tura quanto em experimentações individuais,
positive conceptions of health, especially vitalist coletivas e institucionais dispersas no SUS, é
medical paradigms, including health-strength- que várias práticas complementares e seus prati-
ening practices; and with “empowering” peda- cantes portam saberes/técnicas especificamente
gogical potential. The article highlights the rel- voltados à promoção da saúde, que podem ser
evance of these contributions, largely overlooked instrumentos/aliados nas missões a que se pro-
in the past, and the difficulties and guidelines põe esta última. Todavia, a exploração acadêmica
for enabling them in Brazil, related to their non- do campo das MAC tem repercutido pouco sobre
scientific and poorly institutionalized configura- a saúde coletiva e o SUS, a ponto de apenas em
tions and their steady commodification. 2006 ter havido uma política nacional a respeito 1.
Isso torna relevante a reflexão sobre as conver-
Complemetary Therapies; Health Promotion; gências e imbricações, teóricas e práticas, entre o
Professional Practice campo das MAC ou PIC e a promoção da saúde.
Contribuir para o reconhecimento, compreensão
e exploração dessas imbricações é o fio condutor
deste ensaio.

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PRÁTICAS COMPLEMENTARES E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1733

Sobre práticas complementares eficácia relativa associados ao pequeno acesso


e racionalidades médicas à biomedicina, escassa e cara nesses lugares 3.
Nos países ricos, há dois tipos de motivos para
As MAC são diversos sistemas médicos e de cui- essa procura crescente, um associado a insatisfa-
dado à saúde, práticas e produtos que não são ções com a biomedicina e outro com os méritos
presentemente considerados parte da medicina próprios das práticas complementares e tradi-
convencional 2. Obviamente, esse conjunto é ge- cionais.
nérico e heterogêneo demais, reunindo sob uma As insatisfações se devem aos limites diag-
mesma etiqueta ingredientes muito diferentes. nósticos (o saber científico biomédico é um sa-
No Brasil, Luz 3 produziu uma matriz de análise ber de resolução “grosseira” 10,11, sua prática não
de formas de cuidado à saúde útil para considera- consegue interpretar, ignora e desqualifica uma
ção desse conjunto. Trata-se da categoria “racio- grande parte dos sintomas “não enquadráveis”),
nalidade médica”, construída como um tipo ideal aos limites terapêuticos (as tecnologias de tra-
weberiano, definida como um conjunto estrutu- tamento são restritas, para muitos diagnósticos
rado e coerente de cinco dimensões interligadas: há severos limites de eficácia terapêutica, restri-
uma morfologia do homem (anatomia), uma di- ta ao controle de doenças ou sintomas, por ve-
nâmica vital (fisiologia), um sistema de diagnose, zes há ausência de terapêutica) e às iatrogenias
um sistema terapêutico e uma doutrina médi- (os efeitos adversos são por demais relevantes,
ca (explicativa dos adoecimentos, sua origem e muito acentuados com o envelhecimento po-
cura), embasadas em uma cosmologia implícita pulacional, com a maior prevalência das doen-
ou explícita. O estudo de sistemas de cuidado por ças crônicas e com o processo de medicalização
meio dessas dimensões permitiu distinguir en- social, que intensifica o uso de quimioterápicos
tre sistemas médicos complexos (racionalidades para cada vez mais experiências da vida; por
médicas), como a biomedicina, a medicina ayur- exemplo, as iatrogenias – incluindo os erros mé-
védica ou a medicina tradicional chinesa, de te- dicos – tornaram-se a terceira causa de morte
rapias ou métodos diagnósticos, como os florais nos Estados Unidos 12). Há ainda uma insatis-
de Bach, a iridologia, o reiki, entre outros. fação difusa e crescente com a abordagem bio-
Assim, nas MAC existem práticas que podem médica, caracterizada como mecanicista, ma-
estar ou não afiliadas a uma racionalidade médi- terialista, invasiva, intervencionista, restrita aos
ca e podem ainda estar inseridas em uma matriz sintomas e progressivamente mais impessoal,
histórico-cultural e ou tradicional mais ampla, dedicando pouco tempo ao paciente. Neste ca-
como as medicinas tradicionais da China ou da so, a relação curador-doente parece estar fican-
Índia, por exemplo, identificadas então como do menos harmoniosa, a fragmentação tende a
medicinas tradicionais (MT) 4. Usamos o rótu- tecnificar o cuidado, reduzi-lo aos aspectos do
lo MAC para designar o campo inespecífico de adoecimento e partes do corpo classificáveis e
tais práticas, incluídas ou não em racionalidades manipuláveis pela tecnologia científica, e assim
médicas, apenas e somente por ele estar já con- “desumanizá-lo”. Com isso, fica prejudicado o
sagrado na literatura internacional e na pesquisa pacto ancestral envolvido na “relação de cura”,
biomédica. Buscamos, entretanto, uma especi- construído sobre compromissos éticos calcados
ficação na designação das mesmas na medida na pessoa do doente. Em outras palavras, trata-
do possível, dentro da generalidade desta apre- se da insatisfação com a baixa integralidade da
sentação. atenção biomédica 13.
As MAC/MT continuam respondendo, nos Por outro lado, os méritos das práticas com-
países pobres, por grande parte do cuidado em plementares estão obtendo reconhecimento da
saúde que transcende o ambiente familiar; em população, da sociedade formal e em parte da
vários lugares (África, por exemplo), pela maior ciência biomédica; particularmente quanto à
parte. Nos países ricos, proliferam estudos que experiência com o processo adoecimento-cui-
vêm mostrando grande procura de suas popu- dado-cura e quanto ao estímulo do potencial de
lações pelas MAC. Além disso, cada vez mais reequilíbrio e cura do próprio paciente 14, com
profissionais de saúde indicam práticas comple- uma relação de maior solidariedade e proximida-
mentares e também procuram aprendê-las para de entre curador-doente, maior satisfação com a
“enriquecer” suas habilidades curadoras 4,5,6,7. abordagem filosófica, cosmológica e de significa-
Em que pese sempre ter havido, no Brasil, legi- ção (holística) dos adoecimentos proporcionada
timidade e procura popular dessas práticas 8,9, no campo das MAC, denotando certa convergên-
há um reconhecimento recente de uma maior cia entre os valores e crenças dos usuários com as
procura no ocidente por elas. mesmas 4,15,16,17,18,19,20.
Os motivos da procura nos países pobres
seriam sua adequação cultural, fácil acesso e

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A promoção da saúde na reorientação de hábitos e comportamentos,


desenvolvimento de “habilidades pessoais” e
A promoção da saúde é um campo de propos- de estilos de vida saudáveis, envolvendo com-
tas, idéias e práticas, crescente na saúde pública, ponentes educativos e sob controle maior dos
que parte de uma concepção ampla do processo indivíduos, como por exemplo, o hábito de fumar
saúde-doença e de seus determinantes e propõe e atividades físicas e dietéticas. Pela abordagem
a articulação de saberes técnicos e populares e a biomédica dos riscos, a promoção da saúde in-
mobilização de recursos institucionais e comu- dividual e seu “estilo de vida saudável” vem-se
nitários, públicos e privados para seu enfrenta- apresentando como importante para a promo-
mento e resolução 21. ção da saúde. Apesar de esse discurso/prática
Este movimento ganhou força em 1986, com ser muito criticável, como em Castiel & Diaz 28,
a I Conferência Internacional sobre Promoção da talvez a maior parte dos projetos, intervenções,
Saúde, no Canadá, que formalizou a Carta de Ot- tecnologias e pesquisas da biomedicina ligadas
tawa, documento histórico que se constitui num ao campo da promoção da saúde e da prevenção
marco de referência desse campo discursivo, cujas de doenças dirijam-se a este pólo do primeiro ei-
propostas delimitaram os principais campos de xo, dominando a formação profissional na saúde
ação da promoção da saúde: (1) elaboração e im- e a ação dos profissionais no SUS.
plementação de políticas públicas saudáveis; (2) No outro pólo deste primeiro eixo está a ênfa-
criação de ambientes favoráveis à saúde; (3) re- se no campo social. Este pólo, para Buss 21,22, é o
forço da ação comunitária; (4) desenvolvimento que caracteriza ou deve caracterizar a promoção
de habilidades pessoais e (5) reorientação do sis- da saúde modernamente. A ênfase na determi-
tema saúde. Várias conferências internacionais nação social da saúde-doença leva a ações insti-
ocorreram nestes vinte anos, ressaltando um ou tucionais, intersetoriais, políticas e culturais que
outro aspecto ou temática, mas sem alterar signi- visam o empowerment pessoal e coletivo, partici-
ficativamente os contornos do campo 22. pação social e política, solidariedade, construção
No Brasil, o movimento da promoção da de ambientes saudáveis, combate a desigualda-
saúde cresceu, com várias experiências muni- des, injustiças e iniqüidades sociais, almejando
cipais e no SUS e discussões acadêmicas sobre mudanças sócio-políticas, culturais e de valores
os significados, limites e disputas internas desse por uma sociedade mais justa, saudável e susten-
movimento e sua inserção na situação brasileira tável. Para Sutherland & Fulton 29, esta tensão é o
22,23,24,25,26. Mas, coincidentemente, apenas em grande divisor de águas da promoção da saúde:
2006 foi editada uma política nacional sobre o ação individual vs. social. O pólo social-coletivo é
tema. A Política Nacional de Promoção da Saúde ressaltado no discurso da saúde coletiva brasilei-
tem como objetivo geral promover a qualidade ra 22,24,26,28, a esfera individual (desenvolvimento
de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde de habilidades pessoais) é mencionada apenas
relacionados aos seus determinantes e condicio- uma vez nas diretrizes da política nacional bra-
nantes – modos de viver, condições de trabalho, sileira a respeito, sendo também apenas um dos
habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, cinco campos de atuação da promoção da Carta
acesso a bens e serviços essenciais 27. Nota-se de Ottawa.
uma convergência da política nacional brasilei- Ainda que seja defensável uma ênfase es-
ra com os campos de atuação da promoção da pecial no pólo social, especialmente no Brasil,
Carta de Ottawa e também a prioridade para a é inevitável reconhecer que deve haver uma
ação política, social, institucional, intersetorial e complementaridade entre esses pólos, para que
comunitária. ações intersetoriais e políticas comuniquem-se
Podemos vislumbrar quatro eixos temáticos melhor com o âmbito microssocial e as pesso-
bipolares com os quais podem ser demarcadas as. Os sujeitos e sua subjetividade devem poder
propostas, práticas e tensões internas da promo- aparecer na promoção da saúde 23,30, que requer
ção da saúde, quanto às suas ações, referenciais e se beneficia da ação voltada para os indivíduos
epistemológicos e perspectivas pedagógicas. Tais e pequenos grupos, em que a atividade dos pro-
eixos permitem um mapeamento de saberes, fissionais de saúde do SUS tem papel relevante
perspectivas, discussões e práticas envolvidas na e complementar a ações de maior escala e outra
promoção da saúde, com complementaridade dimensão.
e, por vezes, disputas entre seus pólos, em geral O segundo eixo refere-se à questão interseto-
assimétricos. Esse mapeamento facilita a consi- rialidade vs. setorialidade. O discurso promocio-
deração das contribuições das MAC à promoção nista sanitário brasileiro tende ao pólo interseto-
da saúde. rial, priorizando a construção de projetos e ações
O primeiro eixo refere-se, em um pólo, a fo- político-institucionais intersetoriais, em que o
car a ação da promoção da saúde nos indivíduos, setor saúde tem papel relativo ou pequeno 24. Já o

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PRÁTICAS COMPLEMENTARES E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1735

segundo pólo deste eixo leva a ação para o campo Neste eixo também encontramos outra ambi-
institucional e profissional da saúde. Claro está güidade ou polaridade, presente nos significados
que ambos os pólos devem se complementar, re- do termo e das propostas de empowerment. Há
alizando coisas que cada um isoladamente não um significado comportamentalista e individua-
consegue, embora o setor saúde tenha dificul- lista, chamado por Carvalho 32 de empowerment
dade em trabalhar articulado intersetorialmen- psicológico, focado no indivíduo e na sensação
te, pois tradicionalmente opera autocentrado, individual de segurança e controle sobre sua vi-
voltado para doenças e sua prevenção e mais na da pessoal, enfatizando o pertencimento a um
dimensão individual. grupo, a sensação de autoconfiança e a harmonia
O terceiro eixo refere-se a questões epistemo- com o meio social. Ações de promoção de saúde
lógicas relativas aos problemas da conceituação com este enfoque tendem a valorizar estratégias
da “saúde”. Ele apresenta em um de seus pólos para resgate e aumento de auto-estima, capaci-
uma conceituação ampliada e positiva de saú- dade de adaptação ao meio e auto-ajuda, mas
de, multidisciplinar e centrada na determinação podem desconectar artificialmente a pessoa do
social do processo saúde-doença. Tal pólo tende contexto sócio-político em que está inserida, re-
a desviar-se do terreno setorial da saúde, asso- forçando um conservadorismo social e cultural,
ciando-se ao pólo intersetorial do segundo eixo por vezes em situações sociais injustas em que
e ao pólo social do primeiro. No outro pólo deste as vítimas são responsabilizadas, para não dizer
eixo, encontramos a saúde como trabalhada no culpabilizadas. Esse enfoque pode esconder uma
setor saúde, capitaneado pela biomedicina e os perspectiva educativa em saúde controlista e ins-
saberes biomédicos, em que saúde é vista como a trumentalizar políticas sociais neoliberais restri-
ausência de doença 31, a qual, esta sim, é definida tivas, acirradoras da iniqüidade social.
e operacionalizada na prática clínica e sanitária. Outro significado, mais amplo, o chamado
São mobilizados, então, conceitos e tecnologias empowerment comunitário, toma por base uma
da clínica e da saúde públicas, que objetivam di- noção de poder como recurso, material e ima-
minuir riscos e prevenir e tratar precocemente terial, distribuído desigualmente na sociedade,
doenças específicas. Esse pólo tende a aproximar em grupos diversos, no qual convivem dimen-
a promoção da prevenção de doenças, do traba- sões produtivas, potencialmente criativas e insti-
lho setorial e da dimensão individual. Se ele per- tuintes, com elementos de conservação do status
mite operacionalizar prevenções, tratamentos e quo. Neste enfoque supõe-se alto teor de empo-
promoções em algum grau, deve-se reconhecer werment psicológico, mas, além disso, fatores as-
que ele é restrito na promoção, padecendo de sociados a distintas esferas da vida microssocial
certo reducionismo biologicista já muito critica- (apoio social, compartilhamento de projetos e
do. Sua ação é altamente desejável, mas parece interesses pessoais e comunitários, aprendizado
ser um pólo fraco na promoção da saúde, ainda social, político e de consciência crítica com essas
que mais atuante na dimensão individual rela- experiências) e macrossocial (ação coletiva, polí-
cionada a doenças específicas e recentemente tica e cultural, crítica social etc.) se fazem presen-
riscos, dominando a formação dos profissionais tes, e enriquecem a perspectiva político-filosófica
e sua prática no SUS. de forma coerente com valores de solidariedade,
O quarto e último eixo da promoção da saú- justiça, liberdade, fraternidade, redistribuição
de refere-se, em um pólo, à perspectiva comu- de poderes excessivamente concentrados etc. 32.
nicativa e educativa da promoção da saúde, e Este significado ampliado é convergente com
às suas ambições de empowerment, para que uma perspectiva emancipatória e solidária, que
indivíduos e coletividades possam participar assumimos aqui como envolvido e necessário no
ativamente na construção de uma vida e uma pólo dialogal desse eixo de dimensão pedagógica
sociedade mais saudável. Tais ambições exigem das práticas em saúde, que necessita ser desen-
uma prática educativa centrada no diálogo, na volvido, ampliado e fortalecido.
solidariedade, na construção de parcerias, fo- Os quatro eixos podem ser visualizados na
mentando a co-responsabilidade e a politização Figura 1, que apresenta um mapa esquemático
individual e coletiva. Aqui aparece um grande facilitador da visualização das práticas, saberes,
desafio e tensão, uma vez que no pólo oposto propostas e tensões presentes no campo da pro-
deste eixo encontra-se uma tradição pedagógica moção da saúde.
hegemônica na saúde pública e na biomedici-
na diretiva, autoritária, controladora e vincula-
da a uma perspectiva de enquadramento dos
indivíduos e comunidades em ordens sociais e
comportamentos ditados tecnocraticamente ou
politicamente alhures.

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Figura 1

Eixos de ação, saber e pedagogia.

PRIMEIRO EIXO

Ênfase no social e coletivo Ênfase no individual


(determinação social da saúde-doença) (desenvolvimento de
habilidades pessoais)
Ações comunitárias, institucionais,
intersetoriais, políticas e culturais Ênfase na reorientação de hábitos
que visam ao aumento do e comportamentos, desenvolvimento
“empoderamento” de “habilidades pessoais”e de
comunitário, participação social e estilos de vida saudáveis
política, solidariedade e cidadania

SEGUNDO EIXO

Ênfase na intersetorialidade Ênfase nas ações específicas do


campo institucional da saúde
Construção de projetos e ações
político-institucionais intersetoriais,
educativas, sociais, econômicas

TERCEIRO EIXO

Ênfase na conceituação ampliada Ênfase na saúde como ausência da


e positiva da saúde doença

Desvia do terreno setorial biomédico Noção biomédica e clínico-


e da saúde pública, dominado pela epidemiológica comumente usada
centralidade nas doenças, seus na prática médica
riscos e prevenção e sanitária (epidemiológica),
embora muito criticada

QUARTO EIXO

Educação emancipadora Educação autoritária e controlista


Ações dialogais, “empoderadoras”, Ênfase nos aspectos de adesão e
referenciadas na vida e nas condições cumprimento das orientações quanto
sócio-políticas dos indivíduos e comu- aos estilos de vida saudável, típica da
nidades, em que os saberes leigos são clínica biomédica, numa concepção
valorizados, assumidos e enriquecidos com tendência autoritária e
com saberes especia-lizados, na cons- normatizadora da educação em saúde
trução de parcerias e autonomias e dos comportamentos humanos
responsáveis e solidárias
Relação tensa, complementar
e/ou conflituosa

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PRÁTICAS COMPLEMENTARES E PROMOÇÃO DA SAÚDE 1737

Práticas complementares, racionalidades Quanto ao terceiro eixo, algumas racionali-


médicas e promoção da saúde dades médicas vitalistas e suas práticas (home-
opatia, medicina tradicional chinesa, medicina
Observemos que as práticas complementares, ayurvédica, pelo menos) estruturam-se e agem
desde as antigas até as mais recentes, afiliadas em termos de uma conceituação positiva de saú-
ou não a racionalidades médicas, dedicam-se de. Proporcionam técnicas, saberes e ações es-
eminentemente ao cuidado com a saúde dos in- pecificamente promotoras da saúde e, por vezes,
divíduos, localizando-se no pólo individual do integram com elas cuidados terapêuticos, esti-
primeiro eixo. Se a noção de “indivíduo” é uma mulando potenciais de cura autóctones e forta-
invenção recente da modernidade européia, de- lecendo a saúde. Isso é permitido, por exemplo,
vemos reconhecer que o cuidado com a saúde pelo uso de noções como a de “princípio vital”
individual, no sentido de voltado para a pessoa, (homeopatia), sopro ou energia vital (chi, dos
é tradição comum das culturas. A concepção de chineses; prana, dos indianos), que interligam
pessoa pode ser mais relacional que o indivíduo a pessoa interna e externamente, e de técnicas a
moderno, mas isso não obscurece o fato de que elas relacionadas 35. Por misteriosas que possam
são baseadas nas pessoas e suas relações que parecer tais noções para a biociência, é mister
as práticas tradicionais e suas racionalidades se reconhecer que elas organizam de modo opera-
desenvolveram. Inclusive, várias racionalidades cional a promoção e a terapêutica nessas outras
médicas insistem em que o cuidado com a saú- racionalidades médicas, e que há aprendizado
de é um meio para o objetivo final de realização disciplinado e organizado para compreensão,
enquanto ser humano (discurso também da pro- percepção, treino e uso da “matéria prima” da
moção da saúde), concebendo um processo de saúde que é essa “energia vital”, para o cuidado
transformação e realização pessoal como traje- e para a promoção da saúde, como na medicina
tória individual, ainda que seja para religar e re- chinesa 36,37. Essas racionalidades integram no-
harmonizar a pessoa com o cosmo, o mundo, os ção positiva de saúde com promoção e cuidado
outros. Esse é o objetivo do caminho das práticas terapêutico, missão difícil para os saberes/práti-
tradicionais do yoga ou do tai chi chuan, inseri- cas científicos, partindo do indivíduo em relação
das nas racionalidades médicas tradicionais da (microssocial).
Índia e da China. Várias racionalidades médicas, particular-
Contudo, é comum que essas racionalidades mente as tradicionais (mas também as práticas
ofereçam práticas, valores e técnicas de promo- complementares em geral, conforme Andrade 19),
ção de saúde que se realizam também coletiva- têm um potencial pedagógico relevante, incluin-
mente em pequenos grupos e valorizam e fomen- do aí um aspecto de autoconhecimento e cresci-
tam a solidariedade, a troca entre os praticantes, mento pessoal. Elas se baseiam na experimenta-
o empowerment comunitário. As meditações, as ção individual e coletiva das práticas e cuidados,
massagens e automassagens, os exercícios psico- explorando com maior riqueza (em relação à
físicos ou energéticos, se bem que voltados para o biomedicina) as ressignificações e aprendizados
indivíduo, mostram repercussões positivas na so- advindos da experiência do adoecimento, do so-
ciabilidade, na construção de redes de apoio so- frimento e da revisão de valores comumente aí
cial, na discussão da participação social e política envolvidos. Na medicina tradicional chinesa, na
33,34. Não é por acaso que profissionais do SUS yoga, em técnicas de meditação, por exemplo, os
envolvidos com atividades coletivas de tipos va- praticantes exemplificam pela prática pessoal do
riados, inclusive usando técnicas complementa- terapeuta a promoção da saúde. Neste caso, sua
res, não raro testemunham que os grupos costu- pedagogia é centrada na sua própria experiência
mam fomentar cidadãos mais atuantes e mesmo e na experiência das pessoas, por vezes com esti-
conselheiros locais de saúde. Portanto, é no pólo los comunicativos e valores convergentes com o
individual e grupal, numa perspectiva relacional ideário da promoção da saúde.
microssocial, que as práticas complementares Vale comentar a existência de certo senso
podem contribuir para a promoção da saúde. intelectual que vê apenas dogmatismo, conser-
Em relação ao segundo eixo proposto, as vadorismo e autoritarismo nas culturas não mo-
práticas complementares e racionalidades mé- dernas, em discordância com a valorização po-
dicas geralmente permanecem no “setor saúde” sitiva sintetizada acima quanto à sua pedagogia
(embora por vezes essas práticas sejam inseridas dialogal e emancipatória. A generalização dessa
numa secretaria de cultura ou esportes). Elas se questão implica avaliações grosseiras e homoge-
dedicam a permanecer no campo individual e neizadoras que obscurecem o problema. Nossa
grupal numa ação de fortalecimento, estímulo hipótese é que vários praticantes filiados a ra-
ou resgate da saúde e de qualidade de vida, para cionalidades médicas vitalistas e tradicionais, e
além do tratamento dos adoecimentos. mesmos outros executores de práticas comple-

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mentares, vivem em si mesmos experiências que correlato no saber científico. Elas esperam por
os possibilitam desenvolver um razoável grau de pesquisa e exploração no campo do desenvol-
sabedoria prática, ética e solidariedade, que dei- vimento de habilidades e capacidades pessoais,
xam seu proceder suficientemente “empodera- um dos cinco campos da promoção da saúde, de
dor”, dialogal e promotor de saúde. É claro que modo a contribuírem para seu enriquecimento.
posturas autoritárias são também comuns, de Além disso, em algumas dessas práticas e
modo que as racionalidades médicas vitalistas racionalidades médicas há uma valorização do
e as práticas complementares não estão imunes autoconhecimento e uma comunicação mais
a essa tendência. O que ressaltamos é que elas fácil com valores espirituais das várias cultu-
portam, sobretudo em seus extratos especiali- ras, religiões e tradições dos usuários. Algumas
zados tradicionais, associados não por acaso à já portam valores dessa natureza e possibilitam
“sabedoria” e à “maestria”, aspectos pedagógicos a incorporação e mobilização de aspectos ditos
“empoderadores”, sobre o qual podemos tomar “espirituais”, recentemente revalorizados no am-
como respaldo, por exemplo, as discussões de biente da saúde e desde sempre valorizados no
Jullien 38,39 e de Golemam 40, ou relatos como de seio das populações 43.
Kaiguo & Shunchao 41, sobre culturas orientais Experiências clínicas e grupais no SUS, de pro-
tradicionais e suas práticas. fissionais, serviços isolados ou municípios, pou-
Obviamente, não se deve esperar desses pra- co sistematizadas, têm revelado aos poucos essas
ticantes tradicionais discursos e práticas de em- potencialidades, como por exemplo, em Cam-
powerment comunitário explicitamente seme- pinas (São Paulo) 33, São Paulo, Rio de Janeiro,
lhantes aos modernos, identificados como politi- Brasília 34, Belo Horizonte (Minas Gerais) e vários
zados, reformadores ou transformadores sociais outros; alguns deles expostos no 1o Seminário
ou culturais (salvo exceções, como em Sarkar) 42. Internacional de Práticas Integrativas e Comple-
Mas seus valores, discursos e práticas pedagógi- mentares realizado pelo Ministério da Saúde em
cas certamente não se restringem ao empower- Brasília em julho de 2008 (disponíveis na página
ment psicológico, já que ensinam mediante ex- eletrônica: http://dtr2004.saude.gov.br/dab/se
periência vivida e valores que transcendem em mi_praticas_integrativas.php). Estes e outros ser-
muito as formações sociais diversas em que nas- viços abriram-se para práticas tão diversas co-
ceram, inclusive com grande similaridade e con- mo yoga, tai chi chuan, liang gong, reiki, toque
gruência. A solidariedade, a compaixão, a justiça, terapêutico, grupos de relaxamento e meditação,
a humildade, a flexibilidade, o discernimento e a homeopatia, acupuntura, biodança, automassa-
sobriedade, o desapego, o benefício aos outros gens, entre outras. Tais experiências vêm mos-
seres, o amor – em termos cristãos, a busca da trando aceitação da oferta de práticas comple-
percepção de realidades profundas além das apa- mentares tanto no plano da promoção como no
rências, a valorização do senso crítico, a busca do do tratamento pelos usuários do SUS, o que é
crescimento e da transformação humana culmi- coerente com a comum unanimidade local, mu-
nando na sua realização, vários desses valores fo- nicipal e nacional na manifestação política dos
ram e continuam sendo importantes nas práticas usuários nos Conselhos de Saúde brasileiros e
e pedagogias dessas racionalidades, que as levam nas Conferências de Saúde nos vários níveis de
muito além do conservadorismo social, comu- gestão, quanto ao desejo do oferecimento destas
mente apontando em sentido contrário, embora práticas e terapias pelo SUS.
sem elaborar propostas de mudança de estrutura Quanto aos profissionais de saúde, eles têm
social. Tais características as aproximam mais do mantido relações relativamente harmoniosas
empowerment comunitário (que do psicológico, com as práticas complementares, particular-
se utilizarmos estas categorias), mesmo que este mente com as de promoção da saúde, que sus-
linguajar carregue uma cosmovisão nitidamente citam menos disputas corporativas. Além dis-
moderna, alheia a várias culturas tradicionais e so, há crescente interesse dos profissionais por
suas racionalidades médicas. tais práticas e racionalidades 3,5,6,7,43,44,45. Via
Outro aspecto a ser ressaltado, envolvido no de regra, nos serviços que tomam iniciativas de
empowerment, que transcende em parte a dis- oferecer alguma prática complementar, ocorre
cussão acima ou independe dela, é o fato de que colaboração dos profissionais, com uma aprecia-
em racionalidades médicas vitalistas existem ção positiva quanto à diversificação de espaços
arcabouços de saberes e práticas individuais de promotores que acabam sendo sempre também
promoção da saúde num sentido estrito e literal “terapêuticos”, sob vários pontos de vista.
de ampliação e reforço da saúde (por exemplo: Um exemplo recente pode ilustrar algumas
técnicas de harmonização, fortalecimento, des- potencialidades das MAC, estudado por De Si-
bloqueio e treino da energia vital, na medicina moni 33. A oferta disseminada de grupos de lian
tradicional chinesa), que simplesmente não têm gong (técnica com séries de exercícios físicos

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derivada da medicina tradicional chinesa) por vidual e grupal. Sua contribuição não parece ser
toda a rede de Centros de Saúde de Campinas desprezível, ao contrário. Ela potencialmente
gerou entusiasmada participação de usuários ajuda a suprir uma falha estratégica na promo-
do SUS, com avaliação positiva generalizada ção da saúde no SUS, uma vez que a tradição do-
sobre sua eficácia clínica – empírica – e sobre o minante na ação educativa nos serviços de saúde
enriquecimento psicossocial dos participantes: é centrada na prevenção de doenças e controle
a mobilização, a aceitação massiva, a melhora de fatores de risco, sendo comuns o amedronta-
psicossocial e o “empoderamento” individual e mento da população e a pouca efetividade.
microcoletivo de usuários com as mais diversas Existem, é claro, dificuldades implicadas
situações existenciais e problemas de saúde pôde nessas contribuições, envolvendo concepções
ser observado, inclusive pelo autor destas linhas, diferentes, complementares ou alternativas, no
então profissional de saúde naquele município. tocante aos significados e orientações para as
Esquematizando as contribuições apresen- práticas. Essas dificuldades, porém, afligem mais
tadas das MAC à promoção da saúde, pode-se os profissionais de saúde, cientistas e intelectuais
visualizá-las no mesmo quadro geral dos eixos da do que os usuários e doentes, os quais, em geral,
promoção da saúde, na Figura 2. transitam sincreticamente pelos saberes, práti-
Assim, as práticas complementares podem cas, concepções e valores das várias medicinas e
ser recursos úteis na promoção da saúde indi- técnicas sem problemas relevantes, percorrendo

Figura 2

Práticas complementares e promoção da saúde.

Eixos de ação, saber e Práticas complementares


pedagogia

1- Social Grupal Individual

2- Intersetorialidade
Campo da saúde

3- Saúde como ausência de doença


Noção positiva
de saúde

4- Relação educativa Relação educativa autoritária


emancipatória (submissão, controle)

(”e o e e t” comunitário, solidariedade)

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diferentes itinerários terapêuticos e, porque não ria uma segunda ruptura epistemológica, agora
dizer, promotores de saúde, quando a eles têm com a própria ciência, para que esta reencontre
acesso. o senso comum e as outras tradições num movi-
No entanto, as racionalidades médicas e prá- mento de mútuo enriquecimento.
ticas complementares não são uma panacéia da Feyerabend 47 afirmou que as tradições dife-
promoção da saúde individual. Elas estão em rentes da tradição teórica hegemônica nas ciên-
processo de cientificização, transformando-se cias foram e continuam sendo menosprezadas
em procedimentos especializados mais ou me- por questões econômicas, militares e políticas.
nos desligados de seu contexto cultural tradicio- O autor defende o direito de todas poderem de-
nal e de suas racionalidades originais, bem como senvolver-se livremente na sociedade, enquanto
dos valores solidários e “empoderadores” caros nelas houver interessados, inclusive com incen-
à promoção da saúde. Juntamente com um pro- tivo e subsídio do Estado, que não deveria ser di-
cesso de mercantilização, elas vêm sendo frag- rigido apenas às ciências. Este autor propõe que
mentadas em técnicas isoladas e procedimentos é tempo de separar o Estado da ciência, assim
no mercado alternativo/complementar e estão como isso já ocorreu em relação à Igreja Católica
em transformação com a globalização. Isso re- no ocidente, de modo a democratizar decisões e
mete ao último tópico. o aprendizado de questões, inclusive na área da
saúde, na qual há praticamente um monopólio
de julgamento da ciência e seus especialistas so-
Dificuldades para legitimação bre o que pode ou não ser considerado válido co-
das práticas complementares mo forma de cuidado a ser oferecido às pessoas.
na promoção da saúde Outra grande dificuldade é que, no Brasil,
talvez não haja atores ou instituições bem esta-
A potencialidade das práticas complementares belecidos e vinculados a outras racionalidades
pode ser realizada na promoção da saúde com médicas ou tradições de cura em número signi-
base na suposição de que suas racionalidades, ficativo e ao mesmo tempo convergentes com
saberes e técnicas portam verdades dignas de o ideário do SUS e da promoção da saúde, para
crédito. Aqui aparece uma primeira dificuldade serem, de pronto, parceiros a serem reconheci-
simultaneamente epistemológica e política. A dos e valorizados como referências para práticas
diferenciação entre ciência e senso comum, no complementares e outras racionalidades médi-
desenvolvimento da modernidade, induz a ig- cas, formadores de praticantes para sua oferta
norar, desprezar e desqualificar outras verdades no SUS.
que não as das ciências 10. Essa restrição e a sub- Acrescenta-se a essa escassez, por último, o
valorização, espalhadas pelo planeta com a glo- já mencionado processo de mercantilização dos
balização, associam-se à supremacia científica e saberes, técnicas e práticas complementares, que
ao monopólio institucional da verdade adquirido transforma este universo, sobrevaloriza certos
pela ciência na saúde e estão ligadas a grupos so- procedimentos e técnicas heterônomas, descon-
ciais, corporações e relações de poder aguerridas. textualiza e alija ou mesmo exclui outros saberes
Isso significa uma dificuldade de maior ordem: e práticas, não raro justamente os mais conver-
a biociência, suas profissões e corporações cor- gentes com os valores da promoção da saúde.
relatas (lideradas pela biomedicina) dominam a Tais dificuldades sugerem algumas diretrizes
área da saúde institucional nos aspectos episte- e estratégias para legitimação sócio-institucional
mológicos e culturais, com grande força política dessas práticas, especialmente as inseridas em
– que se associa, comumente, ao poderoso e vas- racionalidades médicas, na promoção da saúde
to “complexo médico industrial”. Além do mais, no SUS. Há que diversificar o processo de vali-
no seu processo de estudo e interesse pelas MAC, dação e legitimação das práticas para além da
a biomedicina reduz algumas de suas técnicas a ciência e da biomedicina: democratizar o tema e
procedimentos e terapias isoladas, absorvendo- politizá-lo. A ciência pode ser um ponto de apoio
as aos pedaços e transformando-as. para legitimação, não o único nem tampouco ne-
Os estudos do grupo de Luz 3,35,46 sobre as ra- cessário sempre. Outros valores além dos cientí-
cionalidades médicas, as críticas de Feyerabend 47, ficos são desejáveis na promoção da saúde, bem
as crises das ciências 10,48, as crises ecológicas do como outros saberes de novas e antigas tradições
mundo e muitos outros fatores parecem susten- não científicas ou ocidentais. A sociedade e os
tar que esta lógica de guerra e de desqualificação usuários podem decidir, via gestão democrática
pode e deve ser substituída por uma atitude mais do SUS (Conselhos de Saúde), sobre a oferta e a
democrática, dialogal e sincrética, no espírito legitimação de iniciativas de oferta das MAC aos
da complementaridade entre distintos saberes e usuários. Isso significa, em certa medida, “dese-
ações em saúde. No dizer de Santos 48, é necessá- pistemologizar” a discussão, ou tirá-la do marco

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positivista restrito e ingênuo em que comumente saúde destas práticas, praticantes, tradições, ra-
se a coloca. cionalidades. Tais herdeiros e práticas (raros que
Outra estratégia é fomentar ativamente, no possam ser e por isso mesmo) merecem preser-
SUS e na saúde coletiva, pesquisas, estudo, ca- vação e fomento, pois podem contribuir na pro-
pacitação e oferta de saberes/técnicas presentes moção da saúde no âmbito individual e grupal.
nas práticas complementares e racionalidades A exploração dessas contribuições certamente
médicas convergentes com os valores da promo- significará, mesmo que de forma limitada, um
ção da saúde. Isso significa garimpar os remanes- incremento na promoção da saúde nos serviços
centes e herdeiros destes lados promotores da do SUS.

Resumo Referências

Apresentam-se contribuições das medicinas alternati- 1. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de


vas e complementares (MAC) ao campo da promoção Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política na-
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se que as contribuições das MAC à promoção da saúde 3. Luz MT. Medicina e racionalidades médicas: estu-
são dirigidas aos indivíduos e grupos e ao pólo setorial do comparativo da medicina ocidental contempo-
da promoção; são centradas em concepções positivas rânea, homeopática, chinesa e ayurvédica. In: Ca-
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