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Imagem, matéria: imanências

Georges Didi-Huberman

F. NOUDELMANN: A noção de matéria se desenvolve desde o início em uma


história da metafísica ocidental que distingue, particularmente depois de Aristóteles,
matéria e forma. Também o empreendimento teórico que você desenvolve depois de
seus primeiros trabalhos parecem permitir reconsiderar essa distinção, desde o seu
estudo sobre a personificação até seus trabalhos sobre os vestígios ou sobre o
inacabado (?)
GEORGES DIDI-HUBERMAN: Um historiador da arte só pode ser um metafísico ao
negar aquilo que está diante de seus olhos. Este é, claramente, o caso de muitos
historiadores impregnados por uma estética tradicional. Este foi o caso do primeiro
historiador da arte, Vasari, que, na sua metafísica do disegno, queria negar tudo o que
(gesto, mão, material) não se rendesse à idea e não pudesse se subjugar totalmente ao
mundo do intelletto, como ele mesmo disse. Porém a sua negação foi sempre estranha:
trabalhador, ele não poderia se abster de voltar à “cozinha” da oficina, de modo que seu
discurso aparece muitas vezes como uma costura de contradições teóricas.

Assim como um artista, o historiador da arte não pode aceitar até o fim a separação
entre forma e matéria. Quando Derrida critica o teor da metafísica da forma, em seu
famoso artigo sobre “A forma e o querer-dizer”, ele fala de um uso da palavra forma que
certamente não teriam aceitado Konrad Fiedler e Heinrich Wöllfflin, ou, mais tarde,
Victor Chklovski e S. M. Eisenstein. Uma forma, para um pintor, para um escultor ou
para um cineasta, trata-se de encarnar, colocar em movimento e produzir materialmente,
jogando tinta em uma tela, atacando um bloco de granito com um martelo ou alterando a
estrutura química em um filme sensível. Em nenhum momento, a forma – que se move,
que é transformada – se separa da matéria, que com a qual se move e se transforma. A
cada momento, a forma se forma, como um organismo, ou ganha forma, como um sangue
que coagula. As noções de personificação (?), de vestígio (?) e de inacabado (?), que você
destacou, tentavam, a cada vez mais, pensar este emaranhado e forçar as oposições
seculares, onde a palavra forma está imobilizada: não somente oposta à matéria, mas
também à presença (?), ao conteúdo... até a ela mesma.

O que a obra de arte tenta fazer – como os desenhos de Victor Hugo que você vê
aqui (fig. 1-2) – é precisamente o que se produz não esteja mais em oposição lógica a
qualquer coisa que distinga nela uma matéria e uma forma, um conteúdo e um estilo etc.
Quando se tenta contrastar uma história da arte do “conteúdo” (Walburg e as iconografias)
e uma história da arte da “forma” (Wöllflin e o estudo dos estilos, renova-se uma antiga
oposição filosófica que a história da arte, em sua própria prática, deve se permitir superar.

F. NOUDELMANN: Há algum sentido hoje em distinguir matéria e material? “Material”


é um conceito utilizado tanto na música quanto nas artes visuais. Parece libertar, dessa
forma, a questão dos conceitos do materialismo filosófico (da Antiguidade, do
Iluminismo ou marxismo). No entanto, não vai de encontro com o perigo de suas
conotações tecnicistas (a transformação da matéria em acúmulo manipulável)?

GEORGES DIDI-HUBERMAN: Devemos tomar uma decisão nesse tipo de pergunta?


Não há boas e más palavras em si mesmas. O seu significado depende, é claro, do seu
valor de uso, do contexto e dos ricos por quais são utilizadas. Eu gosto da palavra matéria
porque ela é feminina, eu gosto da palavra material porque seu emprego, antes de tudo, é
singular. Seria necessário, sempre, perante a qualquer objeto, pensar o “feminino-
singular” de sua matéria-material. Se eu disser que a cera é o “material” de uma escultura
de Medardo Rosso (fig. 3), posso sugerir que outro material poderia ter sido igualmente
adequado, o que não é o caso. É dito que a carne é o material do corpo? Pode ser melhor
dizer “matéria”, nesse caso. Contudo, se descrevo Medardo Rosso trabalhando, a cera
torna-se um “material” em um certo sentido; não tecnicista, como você pergunta, mas
técnico: um material enquanto matéria trabalhada por uma técnica específica, isto é, o
trabalho de um artista.

F. NOUDELMANN: Realçar a materialidade também é uma questão estratégica para


colocar em causa o privilégio do olhar tanto na história da arte quanto na tradição
filosófica. Merleau-Ponty desafiou a prevalência da visão e da ótica na tradição
cartesiana. Quanto a você, você volta à imago romana, em contato com a massa, à imagem
inscrita no próprio material, pela sua releitura de Plínio e da pintura como matéria
colorida. Esse retorno à materialidade matricial (ou da matriz?*) visa encontrar a imagem
antes da representação? E pensar a experiência de uma integração da imagem?

GEORGES DIDI-HUBERMAN: Trata-se de proceder a uma crítica filosófica da


representação. Contudo, desde o início, impus a mim não tentar essa crítica em termos de
uma história rigorosa da filosofia. Podemos sempre desconstituir ou desconstruir a Crítica
do juízo, e ainda a Crítica do juízo – que é uma obra genial – terá para te dizer... Muitas
vezes, há uma intensidade que se perde em localizar todas as coisas no plano dos grandes
princípios, de situar todas as coisas de texto a texto, quando se trata de questionar um
trabalho das artes visuais. Quando Kant discorre sobre o espaço arquitetônico de São
Pedro, em Roma, ainda que seja genial, não fala da experiência (você reparou o quanto a
experiência nos deixa primariamente estupefatos, desarmados, sem ideias?).

Desde o início, foi a experiência que me mobilizou, porque é a experiência, com


a surpresa filosófica que a caracteriza, que começa sempre por questionar tudo o que
pensávamos acreditar até então. A experiência modifica até o pensar. Ela tem a sua
fragilidade, certamente, mas também tem uma capacidade extraordinária de fazer surgir
singularidades inesperadas, férteis e capazes de transformar, de repente, toda a nossa
visão de mundo... Fra Angelico decide projetar sobre uma parede comum uma chuva
aleatória de tinta, e toda representação platônica leva um golpe. Veja, Victor Hugo decide
mergulhar sua pena na tinta pela outra ponta (isto é, pelas penas), e toda representação
kantiana se fissura... Estes são os artistas que primeiramente inventam imagens capazes
de criticar, a partir delas mesmas, o conceito de representação. Como estes são o grupo
que primeiro inventam experiências capazes de criticar por si mesmas a nossa noção de
percepção, por exemplo (?): é baseado em um campo de experiência fascinante oriundo
da fisiologia e da psicopatologia que Merleau-Ponty foi capaz de desafiar a preeminência
cartesiana da ótica que você se refere (guardadas as proporções, a exploração da clínica
histérica, sem dúvida, desempenhou em meu trabalho um papel semelhante).

Encontrar a imagem que a representação quer ignorar é, um pouco, encontrar a


carne que quer ignorar este corpo que se diz “limpo”. Seu paralelo com Merleau-Ponty
se justifica nesse aspecto. Suspeito, porém, da expressão “encontrar a imagem antes da
representação”. Por que diz antes? São dois regimes coexistentes, já coexistiram no
tempo de Plínio, o Velho. Eu simplesmente insisti no significado não-artístico da imago,
para o qual os romanos atribuíam considerável valor genealógico, posteriormente
esquecido, por assim dizer, na era da estética (?). Hoje, muitos artistas, acredito, estão
produzindo imagens posteriores à representação. O que não significa, de maneira alguma,
que a representação – como é reivindicada na arte e na história em geral – estaria “morta”
hoje. Você pode entender isso como um paradoxo, mas acredito que o filósofo deve ser
cauteloso com generalizações (incluindo Bachelard, se me lembro bem, costumava dizer
que era o especialista (?)). O conceito mais relevante não necessariamente é aquele que é
aplicado em geral.

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