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Gestão cultural

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O olhar do gestor
cultural
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O olhar do gestor cultural

Podemos dizer que um requisito comum, tanto ao produtor quanto ao gestor cultural, é
a necessária atenção ao planejamento, que envolve a análise de cenários, o estabelecimento
de objetivos, metas e públicos prioritários, o desenvolvimento de estratégias, a definição
e mobilização da equipe, o dimensionamento e a captação de recursos, entre outras
responsabilidades.

Espera-se do gestor cultural, e em especial do gestor público, que ocupe uma pasta de
cultura, uma percepção contemporânea desse campo, bem como de suas transversalidades
e potencialidades, coisa que você, certamente, já desenvolveu ao longo deste curso.

Ao lado dessa compreensão ampliada, a abordagem do gestor cultural deve partir sempre
da identificação das oportunidades, desafios, vocações e singularidades de seu campo
específico de atuação – seja este uma região, um equipamento público ou privado, uma
organização de qualquer porte e abrangência – nacional, estadual, municipal ou local.

No caso dos gestores, e mais ainda dos gestores culturais na esfera pública, essa percepção
é essencial, uma vez que, como já vimos em nossos textos, a ele caberá fazer escolhas e
definir prioridades na formulação e na gestão de mecanismos que promovam equidade,
corrijam distorções e priorizem o interesse coletivo, zelando ainda pela transparência de seus
processos.

O olhar da gestão cultural deve também ser amplo, não se limitando apenas ao aspecto da
produção de bens e serviços culturais, mas também às possibilidades de circulação e consumo
dessa produção, gargalo que se apresenta em todos os segmentos culturais. Esse olhar deve
igualmente se estender às práticas e manifestações culturais diversas, bem como às questões
relacionadas à sua fruição, preservação e memória, à pesquisa e ao desenvolvimento de
linguagens, à formação de públicos e a recortes específicos, como os que se referem à questão
étnica ou a da infância. O gestor cultural deve, portanto, ter olhos para o presente, o passado
e o futuro.

Como temos visto até aqui, a gestão cultural de natureza pública (ou mesmo de natureza
privada, porém voltada ao interesse público) deve pautar-se, sobretudo, pela ótica da
cidadania e do pleno exercício dos direitos. Essencial é, também, a perspectiva da diversidade,
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que deve se mostrar no âmbito dos públicos, das linguagens artísticas e dos segmentos
culturais envolvidos, do porte e da complexidade das iniciativas apoiadas, da distribuição
regional dos recursos e dos elos das cadeias produtivas atingidas. Assim, se a gestão cultural
em uma empresa pode definir um recorte específico em sua atuação – por exemplo, focar seu
patrocínio apenas ao setor das artes cênicas – isso não pode ocorrer na gestão cultural de um
município, que deve priorizar um olhar mais generoso e democrático à complexidade de seu
campo de atuação.

A cena do financiamento à cultura no Brasil

Um dos maiores desafios no campo cultural é o que se relaciona à cena do fomento, ou,
mais especificamente, às possibilidades de viabilização financeira de iniciativas culturais. Esse
desafio estabelece um pano de fundo estrutural, que interpela os gestores culturais em todas
as esferas, e interessa diretamente aos produtores, aos artistas, aos agentes culturais de
todas as naturezas e ao próprio público.

A cena do fomento à cultura no Brasil gira em torno das leis de incentivo, que se baseiam no
mecanismo da renúncia fiscal. A chamada renúncia representa o montante de recursos que
o governo deixa de recolher sob a forma de impostos, a fim de incentivar determinado setor
ou atividade. O mecanismo pode existir em qualquer das três esferas federativas: federal,
estadual e municipal, representando, respectivamente, deduções de Imposto de Renda, ICMS
e ISS (existem também leis municipais de incentivo, inclusive no campo cultural, envolvendo
o IPTU).

Na esfera nacional, o procedimento tem responsabilidade tripartite: o Ministério da


Cultura (MinC) examina propostas de projetos e autoriza o proponente a captar recursos;
o proponente dialoga com a empresa patrocinadora no sentido de convencê-la a se tornar
parceira, financiando integral ou parcialmente a sua proposta; e o investidor conta com o apoio
do MinC para obter as informações e garantias que assegurem sua decisão de patrocínio.

Logo após sua criação, na década de 1990, as leis de incentivo passaram de meros
mecanismos de financiamento à principal política do governo para o setor cultural. Na ocasião,
deixando de atuar como indutor direto da cultura e passando a incentivar o patrocínio privado
mediante benefício fiscal, o próprio Estado deu os primeiros passos para a consolidação de
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um quadro no qual o recurso público (do imposto) é aplicado de acordo com prioridades e
escolhas privadas (dos patrocinadores). A prevalência da lógica do mercado sobre o interesse
público cristalizou, como era de se esperar, inúmeras distorções, desequilíbrios regionais e
práticas viciadas.

Para que se tenha uma ideia do problema, consultemos o sistema SalicNet (http://sistemas.
cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php), do Ministério da Cultura, que traz informações
públicas e consolidadas sobre esse assunto. Vemos, por exemplo, que, em 2015, o mecenato
totalizou R$ 1,19 bilhão. Desse montante, 96% corresponderam à renúncia fiscal (isto é,
tornaram-se deduções no imposto de renda dos patrocinadores), enquanto que o desembolso
efetivo das empresas (chamado usualmente, no meio cultural, de “dinheiro bom”), foi de
apenas 4%. Pode-se também observar que esse último percentual, que era de 70% em 1993,
veio diminuindo ano a ano.

Tal constatação mostra a falência da ideia de que a Lei Rouanet iria injetar recursos na
cena cultural: ao contrário, fica evidente que as empresas estão, cada vez mais, preferindo se
concentrar nos projetos 100% incentivados, o que, na prática, significa não injetar dinheiro
algum, recuperando, via abatimento em seu imposto de renda, a integralidade do valor
investido em cultura. Mostra-se questionável, portanto, a ideia de que as leis de incentivo
configuram efetivas parcerias público-privadas.

O desequilíbrio entre recursos públicos e privados no âmbito do patrocínio incentivado


fica ainda mais evidente quando se leva em conta que parte significativa do percentual
aqui identificado como de origem “privada” provém, na verdade, de empresas estatais, ou
de economia mista – Petrobras, Banco do Brasil, BNDES, Eletrobrás, Correios – que, há 20
anos, têm presença expressiva na lista anual dos dez maiores patrocinadores, fortemente
concentrada nas mesmas organizações.

Mas é no quesito distribuição regional que o SalicNet aponta o maior desequilíbrio:


observamos no mesmo SalicNet que em torno de 80% dos recursos captados via mecenato
vão, a cada ano, para a região sudeste, o que, na prática, significa dizer Rio de Janeiro e São
Paulo, ou melhor, suas capitais. A região norte, a menos aquinhoada, fica com cerca de 0,5%.

Reforçando a complexidade do quadro, o SalicNet mostra que, dos 11.270 projetos


apresentados ao MinC, apenas 3.134 conseguiram efetivamente obter o patrocínio das
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empresas, o que representa apenas 27% de êxito: mais de 70% dos projetos que obtêm o
incentivo fiscal não chegam a ser patrocinados, apesar de toda a energia e recursos envolvidos,
tanto dos produtores culturais, quanto da própria estrutura do ministério.

Essas disparidades e distorções vêm sendo alvo de inúmeros debates envolvendo o


próprio ministro da cultura Juca Ferreira e personalidades reconhecidas do meio artístico.
O ministro entende que a solução para esses impasses está no ProCultura, mecanismo de
substituição à Lei Rouanet, elaborado em 2010, ainda em sua primeira gestão. Tendo sofrido
inúmeras modificações nas gestões subsequentes do Ministério, e novamente priorizado na
nova gestão de Ferreira, o projeto ainda tramita no Congresso.

Uma das propostas mais importantes do ProCultura é a definição de um percentual de


benefício fiscal variável (hoje apenas 30% e 100%), que dependerá das características do
projeto e valorizará iniciativas que se realizam em áreas com pouca oferta de equipamentos
e opções culturais e apresentem baixo potencial de visibilidade, não costumando, por isso,
interessar as empresas patrocinadoras. Hoje, a Lei Rouanet trata diferentes como iguais, o
que traz inúmeras dificuldades de financiamento aos projetos menos midiáticos.

Em uma de suas recentes entrevistas, Ferreira declarou:

Os produtores de Rio e São Paulo captaram no ano de 2014


mais do que todos os estados do Norte e Nordeste captaram
em toda a história da Lei Rouanet, desde 1992. Só esse dado
já é suficiente. O Nordeste chega a 5% da captação por causa
de Pernambuco e Bahia, o resto é insignificante [...]. É uma
distorção absoluta, dinheiro público sendo posto à disposição
para reforçar marca de empresa. [...] O problema não são as
empresas, os artistas consagrados. O problema é a lei. A lei é
que é o erro. E precisa ser modificada.1

1
Disponível em: http://farofafa.cartacapital.com.br/2016/02/18/as-energias-causticas-estao-predominando-
sobre-as-energias-agregadoras/
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Outra importante proposta do ProCultura é a criação de mecanismos de alimentação do


Fundo Nacional de Cultura (FNC) diretamente pelas empresas. A medida poderia representar
um enfrentamento do desequilíbrio causado pela tradição de recursos exíguos do FNC frente
à enorme centralidade do mecanismo de renúncia fiscal. O fortalecimento do FNC permitiria
que ele cumprisse sua missão essencial – reguladora e equalizadora – viabilizando diretamente
os projetos que, por sua natureza, não se mostram sedutores à iniciativa privada.

As empresas patrocinadoras não olham com bons olhos a perda do beneficio fiscal de
100%. A mudança traz também profunda preocupação aos produtores culturais, artistas e
demais agentes do campo da cultura que, com razão, alegam já ser difícil o patrocínio 100%
incentivado. Todos parecem concordar, no entanto, que a cena do fomento à cultura é
complexa e portadora de inúmeros desequilíbrios e distorções. Enquanto isso, o ProCultura
prossegue em sua longa tramitação no Congresso Nacional.

Para aquecer ainda mais o debate, vale a pena registrar que, nas últimas semanas
(4/2/2016) o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou determinação de que projetos e
eventos culturais com “potencial lucrativo” ou que “possam atrair investimento privado” serão
proibidos de receber incentivos fiscais por meio da Lei Rouanet. A decisão do tribunal foi
tomada ao analisar a regularidade do incentivo fiscal ao Rock in Rio e a outros eventos culturais
com cobrança de ingresso, patrocínio e outras fontes de receitas. Só o festival de rock de 2011
captou R$ 6 milhões de empresas, que depois puderam abater 30% desse valor do Imposto
de Renda.

A determinação causou grande apreensão na classe artística e cultural, pela dificuldade


de se definir previamente o “potencial lucrativo” de uma iniciativa cultural antes de sua efetiva
realização ou lançamento. Além disso, a decisão mostra incoerência com o texto da própria
Lei Roaunet, que permite que produtoras culturais com natureza lucrativa submetam seus
projetos à aprovação do MinC. Não há ainda previsão de quando a proibição entrará em vigor.

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