Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Semana 5
Texto base 2
O olhar do gestor
cultural
Semana 5
Texto base 2
3
Podemos dizer que um requisito comum, tanto ao produtor quanto ao gestor cultural, é
a necessária atenção ao planejamento, que envolve a análise de cenários, o estabelecimento
de objetivos, metas e públicos prioritários, o desenvolvimento de estratégias, a definição
e mobilização da equipe, o dimensionamento e a captação de recursos, entre outras
responsabilidades.
Espera-se do gestor cultural, e em especial do gestor público, que ocupe uma pasta de
cultura, uma percepção contemporânea desse campo, bem como de suas transversalidades
e potencialidades, coisa que você, certamente, já desenvolveu ao longo deste curso.
Ao lado dessa compreensão ampliada, a abordagem do gestor cultural deve partir sempre
da identificação das oportunidades, desafios, vocações e singularidades de seu campo
específico de atuação – seja este uma região, um equipamento público ou privado, uma
organização de qualquer porte e abrangência – nacional, estadual, municipal ou local.
No caso dos gestores, e mais ainda dos gestores culturais na esfera pública, essa percepção
é essencial, uma vez que, como já vimos em nossos textos, a ele caberá fazer escolhas e
definir prioridades na formulação e na gestão de mecanismos que promovam equidade,
corrijam distorções e priorizem o interesse coletivo, zelando ainda pela transparência de seus
processos.
O olhar da gestão cultural deve também ser amplo, não se limitando apenas ao aspecto da
produção de bens e serviços culturais, mas também às possibilidades de circulação e consumo
dessa produção, gargalo que se apresenta em todos os segmentos culturais. Esse olhar deve
igualmente se estender às práticas e manifestações culturais diversas, bem como às questões
relacionadas à sua fruição, preservação e memória, à pesquisa e ao desenvolvimento de
linguagens, à formação de públicos e a recortes específicos, como os que se referem à questão
étnica ou a da infância. O gestor cultural deve, portanto, ter olhos para o presente, o passado
e o futuro.
Como temos visto até aqui, a gestão cultural de natureza pública (ou mesmo de natureza
privada, porém voltada ao interesse público) deve pautar-se, sobretudo, pela ótica da
cidadania e do pleno exercício dos direitos. Essencial é, também, a perspectiva da diversidade,
Semana 5
Texto base 2
4
que deve se mostrar no âmbito dos públicos, das linguagens artísticas e dos segmentos
culturais envolvidos, do porte e da complexidade das iniciativas apoiadas, da distribuição
regional dos recursos e dos elos das cadeias produtivas atingidas. Assim, se a gestão cultural
em uma empresa pode definir um recorte específico em sua atuação – por exemplo, focar seu
patrocínio apenas ao setor das artes cênicas – isso não pode ocorrer na gestão cultural de um
município, que deve priorizar um olhar mais generoso e democrático à complexidade de seu
campo de atuação.
Um dos maiores desafios no campo cultural é o que se relaciona à cena do fomento, ou,
mais especificamente, às possibilidades de viabilização financeira de iniciativas culturais. Esse
desafio estabelece um pano de fundo estrutural, que interpela os gestores culturais em todas
as esferas, e interessa diretamente aos produtores, aos artistas, aos agentes culturais de
todas as naturezas e ao próprio público.
A cena do fomento à cultura no Brasil gira em torno das leis de incentivo, que se baseiam no
mecanismo da renúncia fiscal. A chamada renúncia representa o montante de recursos que
o governo deixa de recolher sob a forma de impostos, a fim de incentivar determinado setor
ou atividade. O mecanismo pode existir em qualquer das três esferas federativas: federal,
estadual e municipal, representando, respectivamente, deduções de Imposto de Renda, ICMS
e ISS (existem também leis municipais de incentivo, inclusive no campo cultural, envolvendo
o IPTU).
Logo após sua criação, na década de 1990, as leis de incentivo passaram de meros
mecanismos de financiamento à principal política do governo para o setor cultural. Na ocasião,
deixando de atuar como indutor direto da cultura e passando a incentivar o patrocínio privado
mediante benefício fiscal, o próprio Estado deu os primeiros passos para a consolidação de
Semana 5
Texto base 2
5
um quadro no qual o recurso público (do imposto) é aplicado de acordo com prioridades e
escolhas privadas (dos patrocinadores). A prevalência da lógica do mercado sobre o interesse
público cristalizou, como era de se esperar, inúmeras distorções, desequilíbrios regionais e
práticas viciadas.
Para que se tenha uma ideia do problema, consultemos o sistema SalicNet (http://sistemas.
cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php), do Ministério da Cultura, que traz informações
públicas e consolidadas sobre esse assunto. Vemos, por exemplo, que, em 2015, o mecenato
totalizou R$ 1,19 bilhão. Desse montante, 96% corresponderam à renúncia fiscal (isto é,
tornaram-se deduções no imposto de renda dos patrocinadores), enquanto que o desembolso
efetivo das empresas (chamado usualmente, no meio cultural, de “dinheiro bom”), foi de
apenas 4%. Pode-se também observar que esse último percentual, que era de 70% em 1993,
veio diminuindo ano a ano.
Tal constatação mostra a falência da ideia de que a Lei Rouanet iria injetar recursos na
cena cultural: ao contrário, fica evidente que as empresas estão, cada vez mais, preferindo se
concentrar nos projetos 100% incentivados, o que, na prática, significa não injetar dinheiro
algum, recuperando, via abatimento em seu imposto de renda, a integralidade do valor
investido em cultura. Mostra-se questionável, portanto, a ideia de que as leis de incentivo
configuram efetivas parcerias público-privadas.
empresas, o que representa apenas 27% de êxito: mais de 70% dos projetos que obtêm o
incentivo fiscal não chegam a ser patrocinados, apesar de toda a energia e recursos envolvidos,
tanto dos produtores culturais, quanto da própria estrutura do ministério.
1
Disponível em: http://farofafa.cartacapital.com.br/2016/02/18/as-energias-causticas-estao-predominando-
sobre-as-energias-agregadoras/
Semana 5
Texto base 2
7
As empresas patrocinadoras não olham com bons olhos a perda do beneficio fiscal de
100%. A mudança traz também profunda preocupação aos produtores culturais, artistas e
demais agentes do campo da cultura que, com razão, alegam já ser difícil o patrocínio 100%
incentivado. Todos parecem concordar, no entanto, que a cena do fomento à cultura é
complexa e portadora de inúmeros desequilíbrios e distorções. Enquanto isso, o ProCultura
prossegue em sua longa tramitação no Congresso Nacional.
Para aquecer ainda mais o debate, vale a pena registrar que, nas últimas semanas
(4/2/2016) o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou determinação de que projetos e
eventos culturais com “potencial lucrativo” ou que “possam atrair investimento privado” serão
proibidos de receber incentivos fiscais por meio da Lei Rouanet. A decisão do tribunal foi
tomada ao analisar a regularidade do incentivo fiscal ao Rock in Rio e a outros eventos culturais
com cobrança de ingresso, patrocínio e outras fontes de receitas. Só o festival de rock de 2011
captou R$ 6 milhões de empresas, que depois puderam abater 30% desse valor do Imposto
de Renda.