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Dossiê desigualdade

DESIGUALDADE E
POBREZA NO BRASIL:
retrato de uma estabilidade
inaceitável

Ricardo Paes de Barros


Ricardo Henriques
Rosane Mendonça

Introdução Procuramos, ainda, demonstrar a viabilidade


econômica do combate à pobreza e justificar a
O Brasil, nas últimas décadas, vem confir- importância, no atual contexto econômico e insti-
mando, infelizmente, uma tendência de enorme tucional brasileiro, de estabelecer estratégias que
desigualdade na distribuição de renda e elevados não descartem a via do crescimento econômico
níveis de pobreza. Um país desigual, exposto ao mas que enfatizem, sobretudo, o papel de políticas
desafio histórico de enfrentar uma herança de redistributivas que enfrentem a desigualdade.
injustiça social que exclui parte significativa de sua O trabalho está organizado em três partes. A
população do acesso a condições mínimas de primeira parte visa mensurar a pobreza no país,
dignidade e cidadania. Como uma contribuição ao descrevendo sua evolução nas últimas duas déca-
entendimento dessa realidade, este artigo procura das. A segunda parte procura estabelecer um diag-
descrever a situação atual e a evolução da magni- nóstico genérico sobre os principais determinantes
tude e da natureza da pobreza e da desigualdade da pobreza, documentando em que medida o grau
no Brasil, estabelecendo inter-relações causais en- de pobreza observado no país deve-se à insuficiên-
tre essas dimensões. cia agregada de recursos ou à má distribuição dos
Trata-se de um relato empírico e descritivo, recursos existentes. Nesta parte, realizamos uma
que retrata a realidade da pobreza e da desigualda- comparação internacional e uma análise da evolu-
de. Nossa hipótese central, presente em estudos ção dessas dimensões ao longo do período estuda-
anteriores,1 é que, em primeiro lugar, o Brasil não do. Em seguida, procuramos descrever a estrutura
é um país pobre, mas um país com muitos pobres. da distribuição de renda entre as famílias brasilei-
Em segundo lugar, acreditamos que os elevados ras. A terceira e última parte do artigo pretende
níveis de pobreza que afligem a sociedade encon- retratar em que medida as modestas reduções no
tram seu principal determinante na estrutura da nível de pobreza observadas no período analisado
desigualdade brasileira — uma perversa desigual- resultam do crescimento econômico ou da redistri-
dade na distribuição da renda e das oportunidades buição de renda. Em conclusão, e de acordo com
de inclusão econômica e social. o diagnóstico proposto ao longo do texto, destaca-

RBCS Vol. 15 no 42 fevereiro/2000


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mos a necessidade de as políticas públicas de em famílias com renda inferior à linha de indigên-
combate à pobreza concederem prioridade à redu- cia e 33% em famílias com renda inferior à linha de
ção da desigualdade. pobreza. Deste modo, como vemos na Tabela 1,
cerca de 21 milhões de brasileiros podem ser
classificados como indigentes e 50 milhões como
Pobreza no Brasil: afinal, qual o seu
pobres. 7
tamanho?
Ao longo das últimas duas décadas, como
A evolução da pobreza e da indigência no observamos na tabela, a intensidade da pobreza
Brasil entre 1977 e 1998 pode ser reconstruída a manteve um comportamento de relativa estabilida-
partir da análise das Pesquisas Nacionais por Amos- de, com apenas duas pequenas contrações, con-
tra de Domicílios (PNADs) realizadas pelo Instituto centradas nos momentos de implantação dos pla-
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estas nos Cruzado e Real. Este comportamento estável,
pesquisas domiciliares anuais2 permitem construir com a porcentagem de pobres oscilando entre 40%
uma diversidade de indicadores sociais que retra- e 45% da população, apresenta flutuações associa-
tam, entre outros, a evolução da estrutura da distri- das, sobretudo, à instável dinâmica macroeconô-
buição dos padrões de vida e da apropriação de mica do período. O grau de pobreza atingiu seus
renda dos indivíduos e das famílias brasileiras.3 valores máximos durante a recessão do início dos
A pobreza, evidentemente, não pode ser anos 80, em 1983 e 1984, quando a porcentagem
definida de forma única e universal. Contudo, de pobres ultrapassou a barreira dos 50%. As
podemos afirmar que se refere a situações de maiores quedas resultaram, como dissemos, dos
carência em que os indivíduos não conseguem impactos dos planos Cruzado e Real, fazendo a
manter um padrão mínimo de vida condizente com porcentagem de pobres cair abaixo dos 30% e 35%,
as referências socialmente estabelecidas em cada respectivamente.
contexto histórico. Deste modo, a abordagem con- Considerando o período como um todo,
ceitual da pobreza absoluta requer que possamos, constatamos que a porcentagem de pobres decli-
inicialmente, construir uma medida invariante no nou de cerca de 39% em 1977 para cerca de 33%
tempo das condições de vida dos indivíduos em em 1998. Este valor ao final da série histórica
uma sociedade. A noção de linha de pobreza analisada, apesar de ainda ser extremamente alto,
equivale a esta medida. Em última instância, uma aparenta representar um novo patamar do nível de
linha de pobreza pretende ser o parâmetro que pobreza nacional. A intensidade da queda na
permite a uma sociedade específica considerar magnitude da pobreza ocorrida entre 1993 e 1995
como pobres todos aqueles indivíduos que se foi menor do que em 1986. No entanto, a queda de
encontrem abaixo do seu valor. 1986 não gerou resultados sustentados, com o
Neste trabalho consideramos a pobreza na valor da pobreza retornando no ano seguinte ao
sua dimensão particular (evidentemente simplifi- patamar vigente antes do Plano Cruzado. Entre
cadora) de insuficiência de renda, isto é, há pobre- 1995 e 1998 a porcentagem de pobres permaneceu
za apenas na medida em que existem famílias estável em torno do patamar de 34%, indicando a
vivendo com renda familiar4 per capita inferior ao manutenção dos impactos do Plano Real.
nível mínimo necessário para que possam satisfa- Apesar da pequena queda observada no grau
zer suas necessidades mais básicas.5 A magnitude de pobreza, o número de pobres no Brasil, em
da pobreza está diretamente relacionada ao núme- decorrência do processo de crescimento popula-
ro de pessoas vivendo em famílias com renda per cional, aumentou em cerca de 10 milhões, passan-
capita abaixo da linha de pobreza e à distância do de 40 milhões em 1977 para 50 milhões em
entre a renda per capita de cada família pobre e a 1998. A combinação entre as flutuações macroeco-
linha de pobreza.6 nômicas e o crescimento populacional fez com que
Os resultados das PNADs revelam que, em o número de pobres chegasse a quase 64 milhões
1998, cerca de 14% da população brasileira vivia na crise de 1984 e a menos de 38 milhões em 1986.
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 125

Tabela 1
Evolução temporal da indigência e da pobreza no Brasil*
Indigência Pobreza
Ano Percentual Hiato médio Número de indigentes Percentual Hiato médio Número de pobres
de indigentes da renda (em milhões) de pobres da renda (em milhões)
1977 16,3 5,8 16,8 39,6 17,2 40,7
1978 20,7 9,7 22,0 42,6 21,0 45,2
1979 15,9 5,7 17,3 38,8 16,9 42,0
1981 18,8 7,2 22,0 43,1 19,5 50,6
1982 19,4 7,4 23,4 43,1 19,8 51,9
1983 25,0 9,8 30,7 51,0 24,5 62,7
1984 23,6 8,8 29,8 50,4 23,5 63,5
1985 19,2 7,1 25,1 43,5 19,7 56,9
1986 9,8 3,4 13,1 28,2 11,3 37,6
1987 18,5 7,2 25,1 40,8 18,7 55,4
1988 22,1 9,1 30,5 45,3 21,8 62,5
1989 20,7 8,5 29,3 42,9 20,6 60,6
1990 21,3 8,8 30,8 43,8 21,1 63,1
1992 19,3 8,6 27,1 40,8 19,7 57,3
1993 19,5 8,5 27,8 41,7 19,8 59,4
1995 14,6 6,0 21,6 33,9 15,3 50,2
1996 15,0 6,6 22,4 33,5 15,6 50,1
1997 14,8 6,3 22,5 33,9 15,4 51,5
1998 13,9 5,8 21,4 32,7 14,7 50,1

(*) As linhas de indigência e pobreza utilizadas foram as da Região Metropolitana de São Paulo.
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD).

No final dos anos 80 registra-se uma aceleração no estável no padrão da pobreza, mas este valor
contingente da população pobre e, no período continua moralmente inaceitável para a entrada do
recente, após a implantação do Plano Real, cerca Brasil no próximo século.
de 10 milhões de brasileiros deixaram de ser
pobres.
Determinantes imediatos da pobreza:
Os atuais 50 milhões de pessoas pobres, por
escassez de recursos e desigualdade
sua vez, encontram-se heterogeneamente distribu-
na distribuição de recursos
ídos abaixo da linha de pobreza e sua renda média
encontra-se cerca de 55% abaixo do valor da linha A pobreza, como ressaltamos anteriormente,
de pobreza. Os 21 milhões de pessoas indigentes, está sendo analisada neste artigo exclusivamente
que correspondem a um subconjunto da popula- na dimensão de insuficiência de renda. Neste
ção pobre, estão igualmente distribuídos de forma sentido, a pobreza responde a dois determinantes
heterogênea e encontram-se mais próximos de seu imediatos: a escassez agregada de recursos e a má
valor de referência, com sua renda média manten- distribuição dos recursos existentes. Esta parte do
do-se cerca de 60% abaixo da linha de indigência. trabalho investiga essas relações causais, procuran-
Portanto, a magnitude da pobreza, mensura- do avaliar os pesos relativos da escassez agregada
da tanto em termos do volume e da porcentagem de recursos e da sua distribuição na determinação
da população como do hiato de renda, apresenta, da pobreza no Brasil.
na segunda metade da década de 90, a tendência
de manutenção de um novo patamar, inferior ao Escassez de recursos
observado desde o final dos anos 70. Isto indica, A importância da escassez de recursos na
sem dúvida alguma, uma melhoria aparentemente determinação da pobreza brasileira é avaliada, a
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seguir, a partir de três critérios: a comparação do vante sobre a pobreza em um país que dispõe de
Brasil com o resto do mundo, a análise da estrutura uma renda per capita bastante superior à sua linha
da renda média do país e, finalmente, o exame do de pobreza.
padrão de consumo médio da família brasileira. Ao Em terceiro lugar, descrevemos brevemente
analisarmos, de forma exaustiva e a partir de o padrão de consumo das famílias brasileiras com
diversos critérios, esse aspecto da determinação da renda per capita em torno da média nacional. Na
pobreza, pretendemos demonstrar que a pobreza medida em que o padrão de consumo dessas
no Brasil não deve ser associada prioritariamente à famílias é satisfatório, obtemos uma demonstração
escassez, absoluta ou relativa, de recursos. Assim, adicional de que a pobreza no Brasil é sobretudo
podemos confirmar a primeira parte de nosso um problema relacionado à distribuição dos recur-
diagnóstico: o Brasil, apesar de dispor de um sos e não à sua escassez.
enorme contigente de sua população abaixo da
linha de pobreza, não pode ser considerado um O Brasil e o mundo: uma comparação da
país pobre e a origem dessa pobreza, não residin- estrutura da pobreza
do na escassez de recursos, deve ser investigada Analisar a estrutura da distribuição de renda
em outra esfera. mundial permite contextualizar a posição relativa
Em primeiro lugar, contrastamos a renda per do Brasil no cenário internacional. Observamos
capita e o grau de pobreza no Brasil com os que cerca de 64% dos países do mundo têm renda
demais países do mundo. Esta comparação nos per capita inferior à brasileira. Por outro lado, na
permite verificar se o grau de pobreza no Brasil é medida em que alguns países com enorme popu-
mais elevado do que o que se encontra em países lação encontram-se abaixo do Brasil nesta estrutu-
com renda per capita similar. Podemos decompor ra da distribuição de renda, concluímos que cerca
o grau de pobreza em duas dimensões: (a) a baixa de 77% da população mundial vive em países com
renda per capita brasileira e (b) o elevado grau de renda per capita inferior à do Brasil. Assim, essa
desigualdade na distribuição dos recursos existen- distribuição da renda mundial, construída a partir
tes no Brasil. A primeira dimensão, dada pelo grau do Relatório de desenvolvimento humano de 1999
de pobreza médio dos países com nível de renda e apresentada no Gráfico 1, nos revela que, apesar
per capita similar à brasileira, está associada ao de o Brasil ser um país com muitos pobres, sua
baixo valor da renda per capita em relação aos população não está entre as mais pobres do mun-
países mais ricos do mundo. A segunda dimensão do. A comparação internacional quanto a renda per
resulta da diferença entre o grau de pobreza capita coloca o Brasil entre o terço mais rico dos
brasileiro e o dos demais países com renda similar países do mundo e, portanto, não nos permite
à brasileira. considerá-lo um país pobre.
Em segundo lugar, comparamos a renda per Na medida em que se trata de uma análise
capita brasileira com a linha de pobreza nacional. comparativa, sabemos que a posição relativa razo-
Na medida em que a renda média brasileira é ável do Brasil pode ser atribuída à natureza con-
significativamente superior à linha de pobreza, centradora da distribuição de renda mundial. As-
podemos associar a intensidade da pobreza à sim, comparado aos países industrializados o Brasil
concentração de renda. Nesta seção definimos um não é um país rico8 mas, comparado a outros
exercício redistributivo que contempla tanto o países em desenvolvimento, estaria, a princípio,
cenário ideal (de execução impossível e não neces- entre os que apresentam melhores condições de
sariamente desejável) de distribuição perfeitamen- enfrentar a pobreza de sua população.
te eqüitativa da renda, como o cenário de redução Mantendo a perspectiva de comparação in-
do grau de pobreza a partir da repartição progres- ternacional e explicitando as determinações eco-
siva dos recursos disponíveis. O principal objetivo nômicas da pobreza, vemos que, para explicar a
desse exercício é demonstrar que uma divisão mais posição relativa do Brasil, necessitamos considerar
eqüitativa dos recursos pode ter um impacto rele- as determinações que decorrem, de modo alterna-
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 127

Gráfico 1
Distribuição acumulada da população mundial e dos países
segundo o PIB real per capita

100

90

Brasil (76,8)
80

70
Porcentagem da população

60 Brasil (64,4)

50

40

30

20

10

0
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32
PIB real per capita (US$ 1.000 PPC)

População mundial Países

Nota: O PIB real per capita do Brasil é igual a US$ 6.500 PPC.
Fonte: Construído com base no Relatório de desenvolvimento humano 1999 (PNUD).

tivo, da escassez ou da distribuição de recursos no pobreza no Brasil é significativamente superior à


contexto mundial. Nestes termos, a pobreza no média dos países com renda per capita similar à
Brasil pode estar associada ao fato de os países do nossa, sugerindo a relevância da má distribuição
mundo, em seu conjunto, permanecerem relativa- dos recursos para explicar a intensidade da pobre-
mente pobres, significando que estar entre os mais za nacional. O Gráfico 2 mostra que enquanto, no
ricos não impede a existência de uma severa Brasil, a população pobre representa cerca de 30%
escassez de recursos, ou, de modo alternativo, ao da população total, nos países com renda per
fato de o Brasil apresentar um elevado grau de capita similar à brasileira este valor corresponde a
desigualdade na distribuição dos recursos. menos de 10%.
Para procurar esclarecer esta questão, defi- De fato, considerando a renda e o grau de
nindo qual a capacidade explicativa das duas pobreza reportados pelos países no Relatório de
alternativas propostas, comparamos o grau de desenvolvimento humano, podemos definir uma
pobreza no Brasil com o observado nos demais norma internacional9 que imputaria um valor pre-
países com renda per capita similar. Esta compara- visto de somente 8% de pobres para países com a
ção revela, com extrema clareza, que o grau de renda per capita equivalente à brasileira. Assim,
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Gráfico 2
Relação entre nível de pobreza e renda per capita
para um conjunto selecionado de países
100

90
GUB
80
Porcentagem de pobres (PO)

70

60
IND GUA
KEN
50 UGA HON
RUA
40 BOT
ETI ZIM
MAU
Brasil (4.271;28,7)
30 FIL PAN
GUI DOM COS
20 COM MEX
CHI VEN
PAQ COL
10 BOL EGI MAL
SRI TUN BUL
MAR ARL TAI
0
0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 4500 5000 5500 6000 6500 7000
Renda per capita (US$PPC)

Nota: A seguir apresenta-se a sigla do país e o ano referente aos dados: ARL: Argélia (88), BOL: Bolívia (90/91), BOT: Botsuana
(85/86), Brasil (89), BUL: Bulgária (92), CHI: Chile (92), COL: Colômbia (91), COM: Costa do Marfim (88), COS: Costa Rica
(89), DOM: República Dominicana (89), EGI: Egito (90/91), ETI: Etiópia (81/82), FIL: Finlândia (81/82), GUA: Guatemala (89),
GUB: Guiné Bissau (91), GUI: Guiné (91), HON: Honduras (92), IND: Índia (92), KEN: Quênia (92), LES: Lesoto (86/87), MAL:
Malásia (89), MAR: Marrocos (90/91), MAU: Mauritânia (88), MEX: México (92), PAN: Panamá (89), PAQ: Paquistão (91), RUA:
Ruanda (83/85), SRI: Sri Lanka (90), TAI: Tailândia (92), TUN: Tunísia (90), UGA: Uganda (89/90), VEN: Venezuela (91) e ZIM:
Zimbabwe (90/91).
Fonte: Construído com base no Relatório do desenvolvimento humano 1999 (PNUD).

caso o grau de desigualdade de renda no Brasil questão crucial traz à tona o possível problema
correspondesse à desigualdade mundial média de enfrentarmos empiricamente uma realidade
associada a cada nível de renda per capita, apenas onde impera a pobreza para uma parte significa-
8% da população brasileira deveria ser pobre. Este tiva da população, mas, além disso, os recursos
valor seria, de modo consistente com a norma disponíveis são insuficientes para retirar esta par-
internacional, aquele que poderíamos associar es- cela da população de condições de vida identifi-
tritamente à escassez agregada de recursos no país. cadas como precárias. Assim, nossa questão diz
Todo o restante da distância do Brasil em relação a respeito à condição da riqueza relativa do Brasil
esta norma — o valor nada desprezível de cerca de ante a possibilidade de erradicar sua pobreza
22 pontos percentuais — deve-se, portanto, ao endogenamente definida.
elevado grau de desigualdade na distribuição dos Podemos construir estimativas da evolução
recursos nacionais. do Produto Interno Bruto (PIB) per capita e da
renda familiar per capita como múltiplos das
Pobreza relativa e riqueza relativa: é possível linhas de indigência e de pobreza, respectivamen-
enfrentar a pobreza no Brasil? te. Estas estimativas, presentes na Tabela 2, reve-
Definir o horizonte de enfrentamento da lam que a renda familiar per capita e o PIB per
pobreza requer que explicitemos uma questão: capita representam, hoje, valores cinco a oito
pode a sociedade brasileira, com a dotação de vezes superiores à linha de indigência e três a
recursos que possui, erradicar a pobreza? Esta quatro vezes superiores à linha de pobreza. Assim,
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 129

Tabela 2
Evolução da renda em múltiplos das linhas de indigência e de pobreza no Brasil
Indigência Pobreza
PIB Renda familiar Volume de recursos PIB Renda familiar Volume de recursos
per capita per capita necessários para per capita per capita necessários
Ano em múltiplos em múltiplos erradicar em múltiplos em múltiplos para erradicar
da linha da linha a indigência da linha da linha a pobreza
de indigência* de indigência (em bilhões R$)** de pobreza* de pobreza (em bilhões R$)**
1977 6,6 4,7 3,8 3,3 2,3 22,7
1978 6,8 3,9 6,6 3,4 1,9 28,7
1979 7,1 4,3 3,9 3,5 2,1 23,6
1981 7,1 4,2 5,4 3,6 2,1 29,4
1982 7,0 4,3 5,8 3,5 2,1 30,6
1983 6,7 3,6 7,7 3,3 1,8 38,7
1984 6,9 3,6 7,1 3,4 1,8 38,1
1985 7,3 4,3 6,0 3,6 2,1 33,0
1986 7,7 5,6 2,9 3,8 2,8 19,4
1987 7,8 4,3 6,3 3,9 2,2 32,6
1988 7,6 4,4 8,1 3,8 2,2 38,7
1989 7,7 4,9 7,7 3,9 2,5 37,3
1990 7,3 4,9 8,2 3,6 2,5 39,0
1992 7,1 3,9 7,8 3,5 2,0 35,5
1993 7,3 4,1 7,8 3,7 2,0 36,3
1995 7,8 5,5 5,7 3,9 2,7 29,1
1996 7,9 5,7 6,3 4,0 2,8 30,0
1997 8,1 5,7 6,2 4,1 2,8 30,1
1998 8,7 5,5 5,7 4,3 2,8 28,9

(*) As linhas de indigência e pobreza utilizadas foram as da Região Metropolitana de São Paulo.
(**) Valores deflacionados para setembro de 1998.
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).

confirmamos a hipótese de inexistência de escas- valor da linha de pobreza. Assim, como reportado
sez de recursos, na medida em que uma distribui- na Tabela 2, seria necessário transferir anualmente
ção eqüitativa dos recursos nacionais disponíveis cerca de R$ 6 bilhões (2% da renda das famílias)
seria muito mais do que suficiente para eliminar para retirar da indigência o limite extremo da
toda pobreza. população pobre, ou, ainda, R$ 29 bilhões (7% da
A distribuição perfeitamente eqüitativa dos renda das famílias) para atingir uma meta social
recursos, produzindo uma sociedade de indivídu- mais ambiciosa: retirar da pobreza toda a popula-
os idênticos no que se refere à renda, não necessa- ção excluída.
riamente é justa, nem desejada. No entanto, pode- Este exercício, como dissemos, hipotético e
mos fazer um exercício de construção de um ideal, não sucumbe à ingenuidade supondo que
estado da natureza hipotético onde estimemos o a efetiva implantação de um programa de comba-
volume de recursos necessários para erradicar a te à pobreza possa desconsiderar, entre outros,
indigência e a pobreza. O exercício supõe que o os custos de administração e os diversos proble-
poder público disporia da capacidade de identifi- mas de focalização do programa. No entanto,
car todos os indivíduos da população pobre e acreditamos que ele é de grande importância,
poderia transferir, com focalização perfeita e cali- pois coloca em perspectiva o volume de recursos
bragem precisa entre as famílias, os recursos estri- potencialmente necessários para um programa
tamente necessários para que todos esses indiví- desse tipo. Tal exercício permite, em princípio,
duos pobres obtivessem a renda equivalente ao avaliar a factiblilidade de uma política pública de
130 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

combate à pobreza. Assim, respeitando os parâ- americanos. Assim, tomando como marco de re-
metros de nosso exercício, sabemos, por um ferência o Uruguai — país com o menor grau de
lado, que a renda familiar per capita brasileira é desigualdade entre os países latino-americanos,
mais do que suficiente para erradicar a pobreza com coeficiente de Gini próximo a 0,40 — e
no Brasil e, por outro, que transferências equiva- reduzindo o grau de desigualdade brasileiro de
lentes a 2% da renda das famílias poderiam ser a modo a ficar idêntico ao uruguaio, teríamos que
base para acabar com a indigência que aflige 14% a porcentagem de pobres no Brasil seria reduzida
da população. Para erradicar toda a pobreza, este em 20 pontos percentuais. A partir desse exercí-
valor de base, sobre o qual, como alertamos, cio, podemos sugerir que quase dois terços da
seria necessário adicionar os custos de adminis- pobreza no Brasil podem estar associados ao
tração e de focalização, corresponde a 8% da diferencial no grau de desigualdade da distribui-
renda das famílias. ção de renda existente entre o Brasil e o Uruguai.
Além de identificar o valor e a viabilidade Este exercício estático e comparativo, mais uma
dos recursos que devem ser mobilizados para vez, pretende tornar evidente o peso da estrutura
erradicar a pobreza, podemos simular a intensi- da distribuição de renda brasileira na explicação
dade com que reduções no grau de desigualdade da existência de um enorme contigente de po-
podem afetar o grau de pobreza. Uma simulação bres no país.
relevante, proposta no Gráfico 3, implica manter
constante a renda média brasileira e reduzir o O padrão de consumo da família brasileira
grau de concentração de renda de modo a elimi- Esta seção apresenta uma breve descrição do
nar o hiato de desigualdade existente entre a padrão de consumo e das condições habitacionais
realidade brasileira e a de vários países latino- das famílias brasileiras com renda per capita pró-

Gráfico 3
Porcentagem de pobres no Brasil com a renda média mantida constante
e a desigualdade de renda igual à verificada em cada um dos países

Honduras

Costa Rica

Venezuela

Uruguai Brasil

Peru

Paraguai

México

Equador

El Salvador

Bolívia

Argentina

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45
Porcentagem de pobres (P0)

Fonte: Construído com base em dados do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID).


DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 131

xima à média nacional.10 A intenção, aqui, é e três vezes o da linha de pobreza. Constatamos
propor mais um ângulo de entendimento da situa- ainda, ao desagregarmos a estrutura dos gastos per
ção de escassez de recursos na sociedade, gerando capita, que os gastos com alimentação represen-
um sinal adicional sobre a possibilidade de mobi- tam cerca de 47% dos gastos totais e correspondem
lização de recursos para a erradicação da indigên- a quase quatro vezes a linha de indigência e duas
cia e da pobreza no país. vezes a linha de pobreza. No que se refere às
A Tabela 3 apresenta estimativas do padrão condições habitacionais, vemos que a grande mai-
de consumo e das condições habitacionais das oria dos domicílios localizados nas regiões Nordes-
famílias brasileiras que auferem, mensalmente, te e Sudeste tem acesso a condições básicas de
uma renda domiciliar per capita média no valor abastecimento de água e coleta de lixo. O indica-
de cerca de R$ 480. É importante destacar que dor de esgotamento sanitário não é tão positivo,
essas estimativas baseiam-se na Pesquisa sobre com apenas 85% dos domicílios dispondo de
Padrões de Vida (PPV) de 1996-1997, realizada esgoto sanitário via rede coletora de esgoto.
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) apenas nas regiões Nordeste e Sudeste. Desigualdade de renda
Os resultados apresentados revelam que, de A desigualdade, em particular a desigualdade
acordo com as informações disponíveis na PPV, a de renda, é tão parte da história brasileira que
renda domiciliar per capita média corresponde a adquire fórum de coisa natural. Além disso, como
cerca de seis vezes o valor da linha de indigência discutimos anteriormente, nosso extremo grau de

Tabela 3
Padrão de consumo da família e condições habitacionais
do domicílio brasileiro
Gasto Em múltiplos Em múltiplos
Variável per capita da linha de da linha de Porcentagem
(R$) indigência* pobreza**
Padrão de consumo
Alimentação 272,5 3,7 1,8 46,6
Vestuário 62,3 0,8 0,4 10,6
Transporte 80,6 1,1 0,5 13,8
Higiene 41,4 0,5 0,3 7,1
Assistência a s aúde 22,7 0,3 0,1 3,9
Educação 7,2 0,1 0,0 1,2
Recreação e cultura 24,0 0,3 0,2 4,1
Fumo 17,5 0,2 0,1 3,0
Serviços pessoais 11,7 0,2 0,1 2,0
Despesas diversas 45,5 0,6 0,3 7,8
Condições de habitação
Abastecimento de água no domicílio em rede geral 98,5
Esgoto sanitário no domicílio via rede coletora de esgoto 84,8
Lixo do domicílio é coletado 96,3
Há calçada na frente do domicílio 87,1
Rua onde se localiza o domicílio é asfaltada 71,2
Renda domiciliar per capita média: (R$ 483.92)
Em múltiplos da linha de indigência* 6,3
Em múltiplos da linha de pobreza** 3,2
Notas: (*) Baseada na linha de indigência da Região Metropolitana de São Paulo (R$ 76,36).
(**) Baseada na linha de pobreza da Região Metropolitana de São Paulo (R$ 152,73).
Fonte: Construída com base na Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV) - 1996/1997.
132 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

desigualdade distributiva representa o principal de Gini do Brasil, com valor próximo de 0,60,
determinante da pobreza. Nesta seção discutimos representa, no conjunto de 92 países com informa-
dois aspectos referentes ao grau de desigualdade ções disponíveis, um padrão alcançado apenas
de renda no Brasil que confirmam a força de pelos quatro países com maior grau de desigualda-
nossos argumentos. de: Guatemala, Brasil, África do Sul e Malawi. Na
Em primeiro lugar, comparamos o grau de realidade, 40 dos 92 países dispõem de um coefi-
desigualdade de renda no Brasil com o observado ciente de Gini no intervalo entre 0,30 e 0,40, sendo
em outros países. Nosso objetivo é comprovar que que a maioria dos países sul-americanos apresenta
o grau de desigualdade na sociedade brasileira é valores mais elevados, no intervalo entre 0,45 e
dos mais elevados em todo o mundo e justificar, 0,60.
portanto, o fato algo inusitado de um país com O Gráfico 5 apresenta a razão entre a renda
renda per capita relativamente elevada manter, média dos 10% mais ricos e a renda média dos 40%
nos últimos 20 anos, cerca de 40% da sua popula- mais pobres para cerca de 50 países. Devemos
ção abaixo da linha de pobreza. Em segundo lugar, lembrar que quanto menor for a razão entre essas
investigamos a evolução do grau de desigualdade rendas médias, mais eqüânime será a estrutura
de renda ao longo das últimas décadas, indicando distributiva, com os mais ricos retendo uma renda
que, apesar das diversas transformações e flutua- média de valor relativamente próximo à dos mais
ções macroeconômicas ocorridas no período, a pobres. Esta medida da estrutura de concentração
desigualdade exibiu uma estabilidade surpreen- da renda revela, para a grande maioria dos países,
dente. uma razão com valor inferior a 10, sendo que
A análise da desigualdade foi desenvolvida, somente em seis países essa razão é superior a 20.
principalmente, a partir da interpretação de quatro De fato, podemos identificar um certo padrão na
medidas tradicionais: (a) o coeficiente de Gini; (b) distribuição internacional, com alguns países,
o índice de Theil; (c) a razão entre a renda média como os Estados Unidos, gravitando em torno do
dos 10% mais ricos e a renda média dos 40% mais valor 5, outros, como a Argentina, em torno de 10
pobres e (d) a razão entre a renda média dos 20% e, finalmente, alguns, como a Colômbia, em torno
mais ricos e a renda média dos 20% mais pobres. O do valor 15. O Brasil, por sua vez, é o país com o
coeficiente de Gini e o índice de Theil são dois maior grau de desigualdade dentre os que dispo-
indicadores consagrados e de uso difundido na mos de informações, com a renda média dos 10%
literatura que revelam o grau da desigualdade de mais ricos representando 28 vezes a renda média
renda de uma realidade específica.11 As duas dos 40% mais pobres. Um valor que coloca o Brasil
últimas medidas correspondem a distintas razões como um país distante de qualquer padrão reco-
entre segmentos extremos da distribuição de ren- nhecível, no cenário internacional, como razoável
da, traduzindo, em termos econômicos, uma no- em termos de justiça distributiva.
ção de (in)justiça social. Preservando este olhar O Gráfico 6 apresenta a razão entre a renda
econômico sobre o perfil distributivo, podemos média dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres
supor, a princípio, que quanto maior for a distância para cerca de 45 países, confirmando o diagnóstico
entre o valor da renda média dos mais ricos e o do indicador anterior. Na grande maioria dos
valor da renda média dos mais pobres, menos justa países essa razão é inferior a 10 e em apenas cinco
deve ser considerada a sociedade. países essa razão é superior a 20. O Brasil, nova-
mente, é o país com o maior grau de desigualdade
O Brasil e o mundo: uma comparação da segundo as informações presentes no Relatório de
estrutura da desigualdade desenvolvimento humano de 1999, o único dos
A comparação internacional entre os coefici- países analisados em que a razão entre a renda
entes de Gini, presente no Gráfico 4, revela que média dos 20% mais ricos da população e a renda
apenas a África do Sul e Malawi têm um grau de média dos 20% mais pobres supera o dilatado valor
desigualdade maior que o do Brasil. O coeficiente de 30.
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL
Gráfico 4
Grau de desigualdade da renda
Coeficiente de Gini
República República Eslováquia
Tchecoslováquia
Ucrânia
Espanha

Bélgica Bélgica
Canadá
Hungria
Eslovênia

Bangladesh Bangladesh

Romênia
Holanda
Sri Lanka

União siviética União siviética

Paquistão
Indonésia
Iugoslávia

Índia Índia
Reino Unido
Suécia
Cazaquistão
Dinamarca Dinamarca

Lituânia
Gana
Bulgária

Japão Japão

Portugal
Vietname
Niger

Maurício Maurício

China
Mauritânia
Jamaica

Costa do Marfim Costa do Marfim

Djibouti
Burkina Faso
Gâmbia
Marrocos Marrocos

Nova Zelândia
Guiana
Tunísia

Jordânia Jordânia
Austrália
Bolívia
Equador

Etiópia Etiópia

Filipinas
Hong Kong
Bahamas

Malásia Malásia

México
Nicarágua
PortoRico

Tailândia Tailândia
Venezuela
Mali
Honduras

Quênia Quênia
Guiné-Bissau
Panamá
Chile

Guatemala Guatemala

Malawi
ÁfricadoSul

15 20 25 30 35 40 45 50 55 60
Coeficente de Gini

133
Fonte: Banco Mundial.
134 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

Gráfico 5
Grau de desigualdade da renda
Razão entre a renda dos ricos (10+) e dos pobres (40-)
Holanda
Bélgica
Hungria
Japão
Alemanha
Suíça
Finlândia
Noruega
Iugoslávia
Irlanda
Israel
Espanha
Reino Unido
Dinamarca
Paquistão
Estados Unidos
Suécia
Canadá
França
Barbados
Itália
Coréia do Sul
Bangladesh
Nova Zelândia
Uganda
El Salvador
Hong Kong
Austrália
Egito
Índia
Sri Lanka
Portugal
Tailândia
Indonésia
Trinidad e Tobago
Argentina
Rep. Dominicana
Filipinas
Bahamas
Fiji
Costa Rica
Venezuela
Turquia
Nepal
Malásia
Colômbia
Maurício
México
Zâmbia
Costa do Marfim
Quênia
Botswana
Peru
Panamá
Brasil

0 5 10 15 20 25 30 35
Razão entre a renda média dos 10% mais ricos e 40% mais pobres

Fonte: Barros e Mendonça (1995).

Os valores contundentes reportados nesta Ao longo do período, o grau de desigualdade


seção não deixam dúvidas quanto à posição singu- é surpreendentemente estável, exceto por uma
lar do Brasil, com o seu grau de desigualdade importante flutuação ascendente ao final da déca-
figurando entre os mais elevados do mundo. Desta da de 80. Entre 1986 e 1989 o grau de desigualdade
constatação podemos derivar, com grande segu- apresenta crescimento acelerado, atingindo níveis
rança, que o extraordinário grau de desigualdade extremos no auge da instabilidade macroeconômi-
de renda brasileiro encontra-se no núcleo da expli- ca de 1989: o coeficiente de Gini chega a 0,64 e o
cação do fato de o grau de pobreza no Brasil ser coeficiente de Theil a cerca de 0,91; os 10% mais
significativamente mais elevado que o de outros ricos recebem uma renda média cerca de 30 vezes
países com renda per capita similar. superior à dos 40% mais pobres e a razão entre a
renda média dos 20% mais ricos e a renda média
Evolução da desigualdade: a decepção de uma dos 20% mais pobres alcança o valor de 35 vezes.
regularidade Analisando a década de 90, vemos, na Tabela
A análise da evolução da desigualdade de ren- 4, que o maior declínio no grau de desigualdade,
da no Brasil ao longo das duas últimas décadas é de- apesar de pouco relevante, encontra-se na entrada
senvolvida a partir das mesmas medidas de desigual- da década, entre os anos de 1989 e 1992. Em
dade descritas anteriormente. Todos indicadores se- particular, no que se refere ao Plano Real, não
lecionados, conforme observamos nas Tabelas 4 e 5, dispomos de evidência alguma de que tenha pro-
revelam um elevado grau de desigualdade, sem qual- duzido qualquer impacto significativo sobre a re-
quer tendência ao declínio. O grau de desigualdade dução no grau de desigualdade, apesar de a pobre-
observado em 1998 é bastante similar ao do início da za ter sofrido uma redução importante, conforme
série, no final da década de 70. descrito anteriormente. De fato, o grau de desi-
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL
Gráfico 6
Grau de desigualdade da renda
Razão entre a renda dos ricos (20+) e dos pobres (20-)
Eslováquia
Belarus
Rep. Checa
Ucrânia
Letônia
Romênia
Hungria
Polônia
Rwanda
Bangladesh
Laos
Japão
Nepal
Sri Lanka
Espanha
Holanda
Suécia
Bélgica
Bulgária
Egipto
Paquistão
Indonésia
Índia
Lituânia
Gana
Cazaquistão
Vietname
Alemanha
Niger
Noruega
Moldova
Finlândia
Itália
Turquemenistão
Costa do Marfim
Tanzânia
Israel
Argélia
Marrocos
Estônia
Canadá
Uganga
China
Dinamarca
Filipinas
França
Tunísia
Jamaica
Jordânia
Madagáscar
Bolívia
Suíça
Hong Kong
Nova Zelândia
EUA
Tailândia
Reino Unido
Cingapura
Austrália
Equador
Peru
Malásia
Nigéria
Costa Rica
Mauritânia
Zâmbia
Nicarágua
Rep. Dominicana
México
Federação Russa
Honduras
Colômbia
Zimbabwe
Venezuela
Guiné
Senegal
Chile
Quênia
África do Sul
Panamá
Lesotho
Guiné-Bissau
Guatemala
Brasil

0 5 10 15 20 25 30
Razão entre a renda média dos 20% mais ricos e 20% mais pobres

135
Fonte: Construído com base no Relatório do Desenvolvimento Humano 1999 (PNUD).
136 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

gualdade nos anos posteriores à implantação do A perversa estrutura de distribuição de renda


Plano Real é estável e similar ao valor observado no Brasil pode ser traduzida em números nada
em 1993, mas sempre superior ao valor de 1992. frios e plenos de significado. O clássico coeficiente
Em virtude desse crescimento no grau de desigual- de Gini, por exemplo, a despeito de pequenos
dade entre os anos de 1992 e 1993 e da manuten- soluços, mantém-se impassível no incômodo pata-
ção desse novo patamar, constatamos que o grau mar de 0,60. As duas décadas analisadas desvelam
de desigualdade em 1998 é dos mais elevados nas um cenário de concentração da renda onde os
últimas décadas, sendo apenas inferior aos valores indivíduos que correspondem à parcela dos 20%
observados no final dos anos 70 (1977-1978) e 80 mais ricos da população se apropriam de uma
(1988-1990). renda média entre 24 e 35 vezes superior à dos 20%
mais pobres; os 10% mais ricos, por sua vez,
dispõem de uma renda que oscila entre 22 e 31
Tabela 4 vezes acima do valor da renda obtida pelos 40%
Evolução temporal dos indicadores mais pobres da população brasileira. A magnitude
de desigualdade de renda
despropositada desses valores fica ainda mais evi-
Razão entre Razão entre dente se nos recordarmos dos valores correspon-
Coeficiente Índice a renda média a renda média
Ano de de dos 20% mais dos 10% mais dentes a inúmeros países da comunidade interna-
Gini Theil ricos e 20% ricos e 40% cional, descritos na seção anterior.
mais pobres mais pobres
1977 0,62 0,91 27,5 26,8
1978 0,60 0,74 31,2 25,0 Tabela 5
1979 0,59 0,72 24,0 22,6
1981 0,59 0,69 24,2 22,0
Evolução temporal da desigualdade de renda
1982 0,60 0,72 25,9 23,2 Ano Porcentagem da renda apropriada pelas pessoas
1983 0,60 0,73 25,9 23,7 20% 40% 50% 20% 10% 1%
1984 0,59 0,71 23,8 22,6 mais mais mais mais mais mais
1985 0,60 0,76 25,6 23,8 pobres pobres pobres ricos ricos rico
1986 0,59 0,73 24,2 22,3 1977 2,4 7,7 11,7 66,6 51,6 18,5
1987 0,60 0,75 27,9 24,7 1978 2,1 7,6 12,0 64,1 47,7 13,6
1988 0,62 0,79 31,1 27,3 1979 2,7 8,4 12,7 63,8 47,5 13,6
1989 0,64 0,91 34,5 30,7 1981 2,6 8,5 13,0 63,2 46,9 12,8
1990 0,62 0,78 31,4 27,1 1982 2,5 8,2 12,5 63,9 47,4 13,2
1992 0,58 0,70 26,8 21,8 1983 2,5 8,1 12,3 64,5 47,9 13,6
1993 0,60 0,77 28,9 24,5 1984 2,7 8,5 12,8 64,0 47,7 13,3
1985 2,5 8,1 12,4 64,5 48,3 14,3
1995 0,60 0,74 28,1 24,1
1986 2,6 8,5 12,9 63,5 47,3 13,9
1996 0,60 0,73 29,9 24,6
1987 2,3 7,8 12,0 64,5 48,2 14,3
1997 0,60 0,74 29,2 24,5
1988 2,1 7,3 11,3 66,0 49,8 14,4
1998 0,60 0,74 28,2 24,1 1989 2,0 6,8 10,5 68,0 51,9 16,7
Notas: Os índices de Gini e Theil medem o grau de desi- 1990 2,1 7,3 11,3 65,8 49,2 14,3
gualdade na distribuição de renda. A distribuição 1992 2,3 8,4 13,1 62,2 45,8 13,3
utilizada foi a de domicílios segundo a renda domi- 1993 2,2 7,9 12,3 64,5 48,6 15,1
ciliar per capita. 1995 2,3 8,0 12,3 64,2 47,9 13,9
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). 1996 2,1 7,7 12,1 64,2 47,6 13,6
1997 2,2 7,8 12,1 64,2 47,7 13,8
1998 2,3 8,0 12,3 64,2 47,9 13,9
A análise atenta do período 1977-1998 revela, Nota: A distribuição utilizada foi a de domicílios segundo a
de forma contundente, que muito mais importante renda domiciliar per capita.
do que as pequenas flutuações observadas na Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).
desigualdade é a inacreditável estabilidade da in-
tensa desigualdade de renda que acompanha a Reconhecendo, novamente, a relevância con-
sociedade brasileira ao longo de todos esses anos. ceitual da relação entre as rendas auferidas pelos
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 137

segmentos extremos de uma sociedade como um Enfim, do ponto de vista do exercício empí-
parâmetro econômico de justiça social, não pode- rico e descritivo deste artigo, cremos que palavras
mos deixar de ficar perturbados e atônitos com os não são mais necessárias. Talvez, uma última ilus-
valores reportados. Como último destaque, descrito tração visual, gráfica e contundente, que nas linhas
na Tabela 5, vemos que os indivíduos que se do Gráfico 7 desenha a injusta realidade com os
encontram entre os 10% mais ricos da população se valores da inaceitável estabilidade da desigualdade
apropriam de cerca de 50% do total da renda das de renda no Brasil.
famílias. No outro extremo, os 50% mais pobres da
população detêm, ao longo de todo período anali-
Crescimento e eqüidade: desafios do
sado, pouco mais de 10% da renda. Vemos ainda
desenvolvimento social
que o grupo dos 20% mais pobres se apropria, em
conjunto, somente de cerca de 2% do total da renda. A estratégia de redução da pobreza solicita o
Por fim, o seleto grupo composto pelos 1% mais crescimento da renda per capita ou a distribuição
ricos da sociedade concentram uma parcela da mais igualitária da renda. Uma combinação de
renda superior à apropriada pelos 50% mais pobres. políticas que estimulem o crescimento econômico
Resumindo, vivemos uma perversa simetria social, e diminuam a desigualdade, a princípio, aparenta
em que os 10% mais ricos se apropriam de 50% do conceder maior eficácia e velocidade ao processo
total da renda das famílias e, como por espelhamen- de combate à pobreza. Partindo dessa reflexão, a
to, os 50% mais pobres possuem cerca de 10% da última parte do artigo estrutura-se em dois blocos.
renda. Além disso, 1% da população, o 1% mais Inicialmente, procura identificar, a partir da
rico, detém uma parcela da renda superior à apro- simulação de impactos da redução no grau de
priada por metade de toda a população brasileira. desigualdade ou da aceleração no crescimento

Gráfico 7
Proporção da renda apropriada pelos
10% mais ricos, 50% seguintes e 40% mais pobres
100
1% mais ricos
90

80

70

60

50

40

30

20

10

0
1977 1978 1979 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1993 1995 1996 1997 1998
Ano

40% mais pobres 50% intermediários 10% mais ricos

Fonte: Construído com base nas informações contidas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).
Nota: A área correspondente aos 10% mais ricos está recortada pela linha que representa a parcela da renda apropriada
somente pelos 1% mais ricos.
138 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

econômico, quais as possibilidades de integração Deste gráfico podemos extrair duas conclu-
entre essas alternativas, tornando evidente a im- sões básicas. Em primeiro lugar, ele confirma a
portância do redesenho de estratégias de enfrenta- sensibilidade da pobreza ao comportamento da
mento da pobreza. Em seguida, pretende avaliar desigualdade de renda. Mesmo considerando os
como, na experiência concreta das últimas déca- valores relativamente elevados da desigualdade
das, o Brasil tem combinado esses dois caminhos nos países da América Latina, vemos, por exemplo,
alternativos para o combate à pobreza. De forma que a implementação de políticas que alterassem a
consistente com o nosso diagnóstico sobre as desigualdade no Brasil para o perfil da desigualda-
causas da pobreza no país, pretendemos ressaltar o de no México, sob a condição de inexistência de
potencial inexplorado de políticas geradoras de crescimento econômico, implicaria uma redução
eqüidade no combate à pobreza brasileira.12 na proporção de pobres de cerca de 34% para
Para pensarmos o horizonte potencial da 25%.14 A definição de uma meta social mais ambi-
combinação entre políticas de crescimento econô- ciosa, que reconhecesse o perfil da desigualdade
mico e políticas de redução da desigualdade, da Costa Rica como o padrão a ser atingido,
podemos estimar como o grau de pobreza respon- implicaria o esforço equivalente a reduzir o coefi-
deria, alternativamente, ao crescimento e a varia- ciente de Gini de 0,60 para 0,46 e produziria uma
ções no grau de desigualdade da renda. O Gráfico queda de 12,5 pontos percentuais na pobreza
8 apresenta os impactos potenciais sobre a propor- brasileira.
ção de pobres, simulando, por um lado, políticas Em segundo lugar, o gráfico nos permite
que sustentem taxas médias decenais estáveis de perceber que os níveis de pobreza são mais sensí-
crescimento econômico e, por outro, políticas que veis a alterações no grau de desigualdade do que
viabilizem a convergência do grau de desigualda- a alterações no crescimento econômico. Tendo
de brasileiro para os valores de alguns países como referência as variações na magnitude da
latino-americanos selecionados.13 pobreza assinaladas no parágrafo anterior, vemos

Gráfico 8
Impacto sobre a pobreza: crescimento econômico versus
redução no grau de desigualdade
40

35

Honduras
30
México
Proporção de pobres (%)

25 El Salvador
Costa Rica
Argentina
20 Equador
Bolívia
Venezuela Peru
15

10

0
0 1 2 3 4 5 6
Crescimento econômico (%)

Fonte: Construído com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e dados do Banco Internacional de
Desenvolvimento (BID).
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 139

que o esforço de uma década de crescimento desigualdade. Podemos demonstrar a dominância


econômico à taxa de 2,75% ao ano, com nenhuma desse processo analisando o comportamento da
alteração da estrutura distributiva da renda per renda familiar brasileira entre 1977 e 1997 e esti-
capita, produziria o mesmo impacto sobre a redu- mando os fatores determinantes das reduções nos
ção da pobreza que a eliminação do diferencial de níveis de pobreza ao longo do período.
desigualdade entre o Brasil e o México. Para Como vimos anteriormente, as reduções no
obtermos um impacto sobre a pobreza equivalente grau de pobreza observadas nesse período são de
ao gerado pela redução do diferencial da desigual- dimensão modesta, mas, mesmo diante dessa pe-
dade entre o Brasil e a Costa Rica seria necessário quena magnitude, podemos decompor as causali-
uma elevação na renda per capita de cerca de 50%, dades atribuíveis ao crescimento e à eqüidade.
o que solicitaria um processo contínuo de cresci- Nosso ponto de referência será o ano de 1997, na
mento da renda per capita à taxa anual de 4% medida em que, nas duas décadas analisadas, este
durante dez anos consecutivos. ano encontra-se entre os de maior renda familiar
O crescimento econômico, evidentemente, per capita e os de menor grau de desigualdade.
representa uma via importante, apesar de lenta, Como decorrência disso, evidenciamos que o grau
para combater a pobreza. Um crescimento de 3% de pobreza em 1997 foi o menor relativamente aos
ao ano na renda per capita, por exemplo, tende a demais anos do período, com exceção de 1986.
reduzir a pobreza em aproximadamente um ponto Para verificarmos em que medida a queda
percentual a cada dois anos. Ou ainda, um cresci- na pobreza ocorrida ao longo dos últimos 20
mento contínuo e sustentado de 3% ao ano na anos deriva de reduções no grau de desigualdade
renda per capita levaria, no Brasil, mais de 25 anos ou do crescimento econômico, apresentamos, no
para reduzir a proporção de pobres abaixo de 15%. Gráfico 9, a decomposição da queda na pobreza
Assim, embora conduza a uma redução da pobre- em relação ao ano de 1997. Esta decomposição,
za, a via do crescimento econômico necessita um construída para cada ano individuamente, é reali-
longo período de tempo para produzir uma trans- zada em duas etapas. Em primeiro lugar, identifi-
formação relevante na magnitude da pobreza. ca a diferença observada entre o nível de pobre-
A realidade atual da sociedade brasileira nos za efetivo de cada ano e o nível de pobreza do
permite considerar, portanto, que a pobreza reage nosso ano de referência, o ano de 1997. Em
com maior sensibilidade aos esforços de aumento segundo lugar, simula um exercício contrafactual
da eqüidade do que aos de aumento do crescimen- que dimensiona, em termos potenciais, a contri-
to. A alternativa, aparentemente difundida entre buição da redução na desigualdade para explicar
vários especialistas, do modelo culinário do “cres- a referida diferença entre os níveis de pobreza
cer o bolo para depois distribuir” ou, então, a sua observados em 1997 e em cada um dos anos da
versão mais refinada do “crescer, crescer e crescer” série.
como via única de combate à pobreza, parece Assim, a estimativa da contribuição da redu-
sucumbir à inércia do pensamento e deve, no ção na desigualdade para a queda no grau de
mínimo, ser relativizada. Talvez a sociedade brasi- pobreza entre um ano específico e o ano de 1997
leira possa ousar com responsabilidade, definindo decorre de uma simulação contrafactual que pro-
a busca de maior eqüidade social como elemento cura identificar qual teria sido a queda na pobreza
central de uma estratégia de combate à pobreza. caso somente a desigualdade variasse e a renda
Nesta última seção do trabalho necessitamos, familiar per capita fosse mantida constante. A
por fim, investigar a experiência brasileira recente contribuição do crescimento econômico, por sua
de redução na magnitude da pobreza. Ao longo das vez, é obtida por resíduo. Deste modo, a seqüência
duas últimas décadas, esta experiência de redução do exercício contrafactual é fundamental, na medi-
da pobreza encontra-se associada, sobretudo, aos da em que a estimativa da contribuição do cresci-
efeitos do crescimento econômico, relegando-se a mento econômico para a redução da pobreza é
um plano secundário as alternativas de combate à obtida a partir da mensuração da diferença entre o
140 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

Gráfico 9
Contribuição do crescimento e de reduções
na desigualdade para queda na pobreza
20

15 Contribuição de reduções na
desigualdade para queda na
pobreza

10

0
1977 1978 1979 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1993 1995 1996 1997

-5
Contribuição do crescimento
para queda na pobreza

-10

Fonte: Construído com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e dados do Banco Internacional de
Desenvolvimento (BID).

total da queda na pobreza efetivamente observado responde por 84% da queda na pobreza observada
e a parcela atribuída, por simulação, ao impacto da entre 1993 e 1995, ou seja, o impacto sobre a
redução na desigualdade. pobreza decorrente do Plano Real, apesar do inegá-
O Gráfico 9 apresenta, de forma consolidada, vel êxito do programa de estabilização monetária,
o conjunto dessas simulações realizadas ano a ano. não é tributário de mecanismos redutores da desi-
Seguindo a metodologia descrita, isolamos, para gualdade de renda entre as famílias brasileiras.
cada ano da série ilustrado no gráfico, o quanto da Devemos concluir, com algum incômodo,
diferença entres os níveis de pobreza observados que apesar da evidente importância da redistribui-
em cada ano e o ano de referência de 1997 resulta ção de renda para o combate à pobreza no Brasil, os
de reduções na desigualdade ou do crescimento da únicos mecanismos utilizados para reduzir a pobre-
economia.15 Esta evidência empírica demonstra, ex za, além de extremamente limitados quanto ao seu
post, uma regularidade surpreendente nos mecanis- impacto, resultam, de modo sistemático, do cresci-
mos de redução da pobreza: as quedas observadas mento econômico. Acreditamos que essa estratégia,
na magnitude da pobreza em todos os anos posteri- no limite uma “não-estratégia”, é responsável, em
ores a 1977 resultam, primordialmente, do cresci- grande medida, pela ineficácia no combate à pobre-
mento econômico. O papel da redistribuição de za ao longo das últimas décadas no país.
renda é bastante limitado durante todo o período,
com exceção do final da década de 80, em particu-
Conclusão
lar no ajuste posterior a 1989, quando vigorava o
maior grau de desigualdade das duas décadas. Este artigo procurou, por um lado, desen-
Se nos concentramos, em particular, no perío- volver uma descrição empírica exaustiva da estru-
do recente, vemos que o crescimento econômico tura da pobreza e da desigualdade no Brasil e,
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL 141

por outro, sugerir os marcos referenciais para a rais das últimas décadas. Desigualdade que atra-
construção de estratégias consistentes de comba- vessou impassível o regime militar, governos de-
te à desigualdade e à pobreza. Em vários mo- mocraticamente eleitos e incontáveis laboratórios
mentos apresentamos exercícios de natureza emi- de política econômica, além de diversas crises
nentemente estática para perseguir, de forma mi- políticas, econômicas e internacionais.
nuciosa, variados ângulos que pudessem contri- É imperativo reduzir a desigualdade tanto
buir no esclarecimento de nosso diagnóstico. Es- por razões morais, como por motivações relativas
peramos ter alertado, ao longo de todo o traba- à implementação de políticas eficazes para erradi-
lho, para as limitações, além das vantagens, des- car a pobreza. A tradição brasileira, contudo, tem
ses exercícios. reforçado a via única do crescimento econômico,
O diagnóstico básico referente à estrutura da sem gerar, como vimos, resultados satisfatórios no
pobreza é o de que o Brasil, no limiar do século que diz respeito à redução da pobreza. É óbvio que
XXI, não é um país pobre, mas um país extrema- reconhecemos a importância crucial de estimular
mente injusto e desigual, com muitos pobres. A políticas de crescimento para alimentar a dinâmica
desigualdade encontra-se na origem da pobreza e econômica e social do país. No entanto, para
combatê-la torna-se um imperativo. Imperativo de erradicar a pobreza no Brasil é necessário definir
um projeto de sociedade que deve enfrentar o uma estratégia que confira prioridade à redução da
desafio de combinar democracia com eficiência desigualdade.
econômica e justiça social. Desafio clássico da era
moderna, mas que toma contornos de urgência no
NOTAS
Brasil contemporâneo.
Na elaboração deste trabalho evidentemente
reconhecemos, mas não discutimos, os condicio- 1 Diversos elementos para a construção dessa hipótese
nantes políticos e institucionais básicos para o podem ser encontrados em Barros, Henriques e Men-
donça (1999) e Barros e Mendonça (1996, 1995a e
estabelecimento de um novo pacto social que 1995b).
contemple a prioridade de uma estratégia de redu- 2 Observe-se que não existem PNADs para os anos
ção da desigualdade. Também não nos propomos censitários (1980 e 1991) e para o ano de 1994.
a discutir o desenho e os limites de uma política 3 A relevância das pesquisas domiciliares para a análise da
redistributiva que integre programas estruturais, pobreza e dos padrões de vida de uma sociedade é
atestada por M. Ravallion (1992, p. 8): “Household
redefinindo o controle e a distribuição dos capitais surveys are the single most important source of data for
físico, humano e da terra, com programas compen- making poverty comparisions; indeed, they are the only
satórios de redistribuição de renda.16 data source which can tell us directly about the distribu-
tion of living standards in a society, such as how many
Esperamos ter demonstrado não só que o households do not attain consumption level.”
Brasil não é um país pobre, mas também que 4 Na verdade, a unidade de análise neste trabalho é o
apresenta farta disponibilidade de recursos para domicílio e não a família. A utilização do domicílio
combater a pobreza. Enfim, a sociedade brasileira como unidade de análise é o que mais se aproxima do
conceito de unidade orçamentária utilizado na PNAD.
não enfrenta problemas de escassez, absoluta ou
5 A linha de indigência, endogenamente construída, refe-
relativa, de recursos para erradicar o seu atual nível
re-se somente à estrutura de custos de uma cesta
de pobreza. alimentar, regionalmente definida, que contemple as
Além disso, procuramos construir, exaustiva- necessidades de consumo calórico mínimo de um indi-
mente, diversos prismas de entendimento da desi- víduo. A linha de pobreza é calculada como múltiplo da
linha de indigência, considerando os gastos com ali-
gualdade econômica brasileira, colocando-a no mentação como uma parte dos gastos totais mínimos,
eixo da causalidade que explica o elevado grau de referentes, entre outros, a vestuário, habitação e trans-
pobreza. Desigualdade que surpreende tanto por portes. Para uma discussão metodológica sobre a cons-
trução das linhas de indigência e de pobreza, ver Barros
sua intensidade como, sobretudo, por sua estabili- e Henriques (1999).
dade. Desigualdade extrema que se mantém iner- 6 Nas tabelas e gráficos correspondentes, os valores que
te, resistindo às mudanças estruturais e conjuntu- dimensionam a pobreza são denominados, respectiva-
142 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 42

mente, como proporção de pobres (indigentes) e hiato BARROS, Ricardo Paes de, HENRIQUES, Ricardo e
médio da renda. MENDONÇA, Rosane. (1999), “O combate à
7 Observe-se que toda população indigente está incluída pobreza no Brasil: dilemas entre políticas de
no conjunto da população pobre. crescimento e políticas de redução da desi-
8 A renda do trabalho no Brasil é cerca de um terço da gualdade”, in R. Henriques (org.), Anais do
renda do trabalho nos países industrializados. Para uma Seminário Desigualdade e Pobreza no Brasil,
análise dos determinantes deste diferencial de renda ver Rio de Janeiro, IPEA, agosto.
Barros e Camargo (1993).
__________. (2000), “Education and equitable econo-
9 A norma internacional, construída no Gráfico 2, foi mic development”, Economia, 1 (1).
obtida regredindo-se o ln(P0/(1-P0)) contra o PIB per
capita dos países. Esta norma procura traduzir a BARROS, Ricardo Paes de e MENDONÇA, Rosane.
estrutura observada (portanto, não se trata de uma (1995a), “A evolução do bem-estar, pobreza e
estrutura prescritiva) de renda e pobreza dos países, desigualdade no Brasil ao longo das três últi-
apresentando-nos a porcentagem de população pobre mas décadas – 1960/1990”. Pesquisa e Planeja-
potencialmente associada a cada nível de renda per mento Econômico, 25(1).
capita.
10 Este grupo comporta 20% do total das famílias brasilei- __________. (1995b), “A evolução do bem-estar e da
ras e é representado pelos 10% com renda imediatamen- desigualdade no Brasil desde 1960”. Revista
te abaixo da média e os 10% com renda imediatamente Brasileira de Economia, 49(2).
acima da média.
__________. (1996), “Os determinantes da desigual-
11 Para uma análise conceitual, consultar, em português, o dade no Brasil”, in IPEA, A economia brasilei-
excelente livro de Rodolfo Hoffmann (1998). ra em perspectiva – 1996, Rio de Janeiro, IPEA.
12 Neste artigo não discutiremos os possíveis contornos de
políticas redistributivas (estruturais, de preços ou com- HOFFMANN, Rodolfo. (1998), Distribuição de renda:
pensatórias) para o combate à pobreza. Sobre este tema medidas de desigualdade e pobreza. São Pau-
ver Barros, Henriques e Mendonça (1999). lo, Ed. da USP.
13 A curva construída neste gráfico parte do valor corres- RAVALLION, M. (1992), “Poverty comparisons: a gui-
pondente aos atuais 34% da população pobre no Brasil de to concepts and methods”. Living Standar-
e ordena os países latino-americanos a partir de suas ds Measurement Study, World Bank, Working
respectivas curvas de Lorenz.
Paper nº 88.
14 Observe-se que os coeficientes de Gini do Brasil e do
México correspondem a 0,60 e 0,55, respectivamente.
15 O valor negativo observado no ano de 1986 decorre do
fato de este ser o único ano com menor grau de pobreza
do que o ano eleito como referência.
16 Nesta linha de reflexão, ver Barros, Henriques e Men-
donça (1999 e 2000).

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Ricardo Paes de e CAMARGO, José Márcio.


(1993), “Em busca dos determinantes do nível
de bem-estar social na América Latina”. Pes-
quisa e Planejamento Econômico, 23 (3), de-
zembro.
BARROS, Ricardo Paes de e HENRIQUES, Ricardo.
(1999), Magnitude e estrutura da pobreza nas
regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. Rio de
Janeiro, IPEA, mimeo.

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