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— Capítulo?

Pobreza e desigualdade de renda:


duas faces de um problema

Á
Asrelações possíveis entre desigualdade e pobreza //
Como se viu no capítulo anterior, a diversidade de condições socioeconômicas
e culturais entre os países justifica a adoção de conceitos específicos de pobreza, o
que, no entanto, passa a se constituir um obstáculo quando se trata de estabelecer
comparações internacionais. Porém, para fins analíticos gerais, é possível conceber
uma tipologia que distingue os países no que diZespeito à pobreza em três grupos.
No primeiro grupo, são classificados os países nos quais a renda nacional é
insuficiente para garantir o mínimo considerado indispensável a cada um de seus
cidadãos. Desse modo, a renda per capita é baixa e a pobreza absoluta inevitável,
\ quaisquer que sejam as caracteristicas da distribuição da renda.
| Um segundo grupo é formado por países desenvolvidos, onde a renda per
| capita é elevada e a desigualdade de renda entre individuos é em grande parte
compensada por transferências de renda e pela universalização de acesso a servi-
\ ços ptiblicos de boa qualidade. Nesses pafses, as necessidades basicas já são atendi-
das, de modo que o conceito de pobreza relevante é necessariamente relativo, de-
| finido a partir do valor da renda média ou mediana.
Finalmente, um terceiro grupo de paises se situa numa posição intermedia-
ria. Nesse caso, o valor atingido pela renda per capita mostra que o montante de
recursos disponiveis seria suficiente para garantir o minimo essencial a todos, de
modo que a persisténcia de pobreza absoluta se deve à má distribuigéo de renda.
O Brasil se classifica neste terceiro grupo. Com renda per capita de R$3.500
20 ano em 2000 — portanto, bem acima de qualquer valor que possa ser realistica-
mente associado 2 linha de pobreza—!! a incidéncia de pobreza absoluta no Bra-
sil dícoy da forte desigualdade na distribuição do rendimento.

!! Por exemplo, uma linha de pobreza associada ao valor médio do salário mínimo de R$150
corresponderia a uma renda per capita de cerca de R$1.800 ao ano, em 2000.


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Pobreza no Brasil — Afinal, de que se trata? Sonia Rocha
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Desigualdade de renda: a estabilidade em níveis elevados tendo o Gini passado de 0,56 em 1970 para 0,59 em 1980 (Bonelli & Ramos, 1993).
É importante enfatizar que, embora a queda da pobreza absoluta que se observou
A repartição da pápulação com mais de 10 anos de idade com rendimento no periodo 1970-80 tenha sido significativa— a proporgao de pobres no pais caiu
positivo é apresentada na tabela 2.12 Pode-se constatar que, em 1999, 1% das pes- 3 metade —,!* ficou aquém da que seria possivel atingir sob condigdes distributivas
soas com os rendimentos mais elevados se apropriavam de 13% do rendimento mais favordveis.
total naquele ano, proporção quase idêntica aquela apropriada pelos 50% de indi-
víduos na base da distribuição. O coeficiente de Gini resultante, comumente utili- Tabela 2
zado como medida de desigualdade (ver box “Uma medida de desigualdade: o Distribuição da renda das pessoas*
índice de Gini”), é um dos mais elevados do mundo e, certamente, uma espantosa
9% das pessoasem
anomalia para um país com o tamanho populacional e a complexidade socioeco- ordem crescente
nômica do Brasil. É importante notar que o grau de desigualdade é tão elevado, da renda 1986 1989 1993 1995 1996 1997 1998 1999
que o coeficiente de Gini acaba sendo pouco afetado, mesmo por melhorias signi-
Até 50% 12,5 10,4 12,8 13,1 13,0 13,1 13,5 139
ficativas do rendimento na base da distribuição, como aquelas que ocorreram logo
após o plano de estabilização de 1994. Assim, embora a renda real dos 10% de De 50% a 90% 387 364 374 387 39,1 39,3 39,0 393
indivíduos com os rendimentos mais baixos tenha dobrado entre 1993 e 1995, o De 90% a 99% 336 359 338 343 344 339 338 338
que levou a uma significativa redução da pobreza absoluta, como se verá mais
adiante, essa mudança teve apenas um efeito marginal sobre o grau de desigualda-
De 99% a 100% 15,2 17,3 16,0 13,9 13,5 13,7 13,7 13,0

de de renda. Na verdade, uma parte considerável dessa desigualdade está associa-


da aos rendimentos mais elevados: o Gini calculado a partir de uma distribuição Gini** 100% 0,5804 0,6228 0,5822 0,5738 0,5714 0,5700 0,5646 0,5578
truncada em 99% se reduz significativamente, embora permanecendo ainda mui- 99% 0,5345 0,5762 0,5330 0,5324 0,5315 0,5290 0,5227 0,5180
to elevado quando se consideram os resultados verificados em outros países.!?
É evidente, portanto, que a extrema desigualdade na distribuição de renda, Fonte: IBGE/Pnad.
resultando numa dinâmica socioeconômica própria, está associada à persistência “Rendimentos positivos de todas as origens das pessoas de 10 anos ou mais.
**Gini no limite inferfor do intervalo, calculado a partir de dados agrupados.
da pobreza absoluta no Brasil. No período de crescimento econômico mais forte,
durante a década de 1970, o aumento da desigualdade foi tolerado na medida em
que era percebido como um fenômeno passageiro e inevitável, em face das novas Na década de 1980, chamada de década perdida no que se refere a evolução
necessidades de mão-de-obra e dos conseqiientes desequilibrioé no mercado de da renda, ocorreu confluéncia de duas tendéncias adversas. Por um lado, houve
trabalho: a expansão do produto acompanhada de rápida modernizagao produti- uma brutal redução do ritmo do crescimento da renda em relagao a década ante-
va resultou em demanda por trabalhadores qualificados, aumentando mais acen- rior — a do “milagre brasileiro” —, mas os resultados foram também insatisfatérios
tuadamente seus rendimentos em relação à grande massa de méo-de-obra pouco em comparagio aos dos anos 1960, respectivamente 7,0 e 2,2 % ao ano. Por outro
qualificada. O resultado foi um aumento substancial da desigualdade de renda, lado, a queda do rendimento ao longo da década (-1,5%) afetou de forma mais
adversa os mais pobres. Com exceção do segundo décimo da distribuição, a redu-
ção do rendimento foi tanto maior quanto mais baixo o nivel de renda (Barros &
Mendonga, 1992). Assim, acirraram-se os conflitos distributivos, que a inflação
12 Renda de todas as origens, isto é, todos os tipos de renda do trabalho, além de pagamentos
recebidos dos sistemas de previdéncia públicos e privados, rendimentos da propriedade ¢ do
capital, transferéncias etc.
13 Q Gini da distribuicdo truncada em 99% se situa préximo ao verificado na Venezuela em
1990 (0,53), enquanto paises desenvolvidos apresentam coeficientes bem mais baixos (Franga
'* A proporgio de pobres declinou de 68% em 1970 para 35% em 1980 (Rocha, 1996). Ver,
— 0,35) (Pnud, 1997). também, capitulo 4.

0
L.
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alta veio, sem dúvida, reforçar. O resultado da conjugação desses dois efeitos per-
versos — absoluto e distributivo — sobre a renda foi a ausência de melhorias sig- Assim, a curva de Lorenz delimita uma área de desigualdade o. — que, teoricamente,
nificativas na redução da pobreza, apesar das oscilações de curto prazo associadas varia de 0 (caso de perfeita igualdade) a 0,5 (caso de máxima desigualdade) — a qual
aos ciclos conjunturais dé stop and go da atividade econômica. corresponde à área do triângulo OAB.
0 índice de Gini é definido como o quociente entre a área de desigualdade o. verificada
e seu valor teórico máximo de 0,5:
Uma medida de desigualdade: o índice de Gini Gini=0/0,5
Trata-se de um índice de desigualdade proposto por Corrado Gini em 1914, Como já visto, o pode variar entre 0 e 0,5 (0 <= o <= 0,5). Sendo assim, o índice de
freqiientemente utilizado para expressar o grau de desigualdade de renda. Gini assume valores entre os limites teóricos mínimo de O (nenhuma desigualdade) e
Conceitualmente, o indice de Gini pode ser associado & chamada curva de Lorenz, que máximo de 1 (desigualdade máxima).
é definida pelo conjunto de pontos que, a partir das rendas ordenadas de forma crescen-
0 <= Gini <=1
te, relacionam a proporção acumulada de pessoas e a proporção acumulada da renda.
A curva em negrito representa a curva de Lorenz para uma situação de desigualdade
de renda hipotética, mas semelhante & que ocorre no Brasil. Assim, aos 40% de pessoas Essas caracteristicas relativas à estagnação do rendimento e à sua má distri-
com rendas mais baixas correspondem 10% da renda total. O segmento 0B representa a
buição se mantiveram no inicio da década de 1990 (Tolosa & Rocha, 1993). O
curva de Lorenz associada a uma situacdo teórica de desigualdade minima, em que toda plano de estabilizagio de 1994 rompeu esse padrao, ao proporcionar como
a populagdo tivesse a mesma renda, de modo que a qualquer proporção acumulada das subproduto, uma melhoria significativa do rendimento na base da distribui¢ao
pessoas corresponderia, exatamente, a mesma proporgdo da renda total: a 2% das pes- (ver capitulo 5), o que permitiu reduzir em 1/3 a proporção de pobres sem, no
soas corresponderia 2% da renda, a 10% das pessoas corresponderia 10% da renda, e entanto, afetar de forma sensivel a desigualdade de rendimentos. Como se consta-
assim por diante. Alternativamente, a desigualdade maxima ocorreria quando uma pes- ta a partir dos dados da tabela 2, o Gini pouco declinou entre 1993 e 1995, mas o
soa se apropriasse de toda a renda e as demais pessoas, numa população suficientemente grau elevado de desigualdade de renda brasileira permaneceu muito elevado, pois
grande, tivessem renda nula. Nesse caso, a curva de Lorenz se confundiria com a poligonal estd associado aos rendimentos mais altos.
0AB. Embora se saiba que redução da pobreza absoluta depende tanto do cresci-
mento da renda como da melhoria distributiva (Barros & Mendonga, 1997), este
tiltimo componente assume papel estratégico no Brasil por trés razoes básicas. Pri-
meiramente, por uma questão óbvia de justica social. Em segundo lugar, por ser
disfuncional: o nivel explosivo de desigualdade de renda já atingido gera inevita-
velmente situagdes de conflito insustentaveis, especialmente onde os contrastes de
renda, riqueza e poder são mais criticos. Em terceiro lugar, porque as oportunida-
Renda des “naturais” de crescimento econdmico são predominantemente concentradoras,
O que exige ações especificas do poder público no sentido não só de evitar o agra-
vamento, mas de promover a diminuição da desigualdade de renda objetivando,
particularmente, a redução da pobreza absoluta no país.

Desigualdade entre pessoas ou desigualdade entre familias?


—— —— — A
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Os estudos sobre distribuicdo de renda no Brasil tém privilegiado a investi-
Pessoas Bação do nivel de desigualdade de renda entre pessoas, com base em informagdes
Continua obtidas através de pesquisas domiciliares — Censo Demografico ou Pesquisa Nacio-

-
e
r
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nal por Amostra de Domicilios (Pnad). Trata-se da desigualdade de renda total Nesse sentido é mais relevante tratar aqui do nivel e da tendéncia evolutiva
das pessoas, como é o caso dos indices de Gini apresentados na tabela 2, ou da da desigualdade de renda entre as familias brasileiras, tendo por base a distribui-
desigualdade de algum tipo de renda individual mais estreitamente definida, como
40 da renda familiar e da renda familiar per capita (ver box “A familia, solidarie-
rendimentos do trabalho; ou mesmo da desigualdade salarial de forma ainda mais
dade narenda e no consumo”). Os indices de Gini apresentados na tabela 3 permi-
especifica.!® No entanto, o bem-estar das pessoas não depende apenas de suas
tem constatar que o nivel de desigualdade com base na renda familiar se situa em
rendas individuais, mas, principalmente, do resultado da repartição intrafamiliar
da renda de todos os membros de cada grupo familiar. Assim, a mensuragdo da patamares tão elevados quanto aqueles verificados em relação a renda das pessoas.
pobreza como insuficiéncia de renda e da desigualdade de renda, proxies do nivel e Isso significa que, infelizmente, a familia não está tendo um papel redistributivo
da distribuigdo do bem-estar, está mais associada à renda familiar, resultado da capaz de reduzir de forma significativa a desigualdade de renda entre pessoas, a
dinamica distributiva da familia como unidade solid4ria de consumo e rendimen- qual se tem como ponto de partida.
to, do que as rendas individuais. Os indices de Gini da tabela 3 mostram ainda que, tanto no caso da renda
familiar como da familiar per capita, a desigualdade é levemente ascendente num
periodo de quase 20 anos, isto é, os niveis de desigualdade em 1999 são mais eleva-
A familia, solidariedade na renda e no consumo
dos do que os observados em 1981. Essa trajetéria geral encobre evoluções distin-
Quando se trata de utilizar a renda como proxy do nivel e da distribuicdo de bem- tas em trés subperfodos. Um subperiodo inicial de crescimento da desigualdade
estar, a familia é a unidade estatistica relevante. Desde que se considerem também as
entre 1981 e 1989, interrompido apenas pelos efeitos distributivos temporérios do
familias unipessoais, a adoção da familia como unidade estatistica possibilita ser o mais
abrangente possivel em relação populagdo como um todo e levar em conta a estratégia Plano Cruzado, em 1986, e que culmina com um pico do rendimento médio em
de sobrevivéncia normalmente adotada pelas pessoas: recorrer aos individuos que tém 1989.' Um segundo subperiodo (1989-93) no qual a tendéncia é declinante, mas
rendimentos para o atendimento das necessidades daqueles sem rendimento na familia. com inflexdo correspondendo ao inicio da retomada do nivel de atividade em 1993.
Para fins analiticos, familia é definida como pessoas que moram no mesmo domicilio, Finalmente, verifica-se um patamar de redução muito timida da desigualdade de
ligadas por lagos de parentesco ou ndo, mas que funcionam como um grupo solidario em renda entre familias e entre pessoas com base na renda familiar per capita, no pe-
relação ao rendimento e ao consumo. Desse modo, a familia quando definida para fins de
riodo pés-estabilizagao do Plano Real.
estudo da pobreza e da desigualdade, como proposto aqui, inclui em cada domicilio,
Observe-se ainda que as mudangas anuais dos indices de Gini ocorrem no
aquelas que se vinculam ao chefe ou pessoa de referéncia, excluindo-se apenas os em-
pregados, parentes de empregados e pensionistas. mesmo sentido, mas com intensidade diversa para cada distribui¢ao de renda, o
Adotando a familia como unidade estatistica, a variavel de rendimento relevante é a que resulta em alteragdo dos diferenciais entre os indices. Comparando as situa-
renda familiar, constituida pelo somatério dos rendimentos de todas as origens (do tra- ções no inicio e no final do periodo, verifica-se um aumento relativo da desigualdade
balho, aposentadoria e pensdes, aluguéis recebidos, rendimentos de capital, transferén- da renda entre familias (total e per capita), enquanto a desigualdade entre pessoas,
cias etc.) de todos os membros da familia. O rendimento do trabalho como investigado pela passa a ser a mais baixa. Isso estaria indicando o impacto distributivo desfavoravel
Pnad inclui, além da remuneragdo monetéria, a estimativa do valor recebido em produtos
de familias menores e mais homogéneas internamente, no que se refere à insercao
ou mercadorias. No entanto, ndo é considerado rendimento o valor da producdo para
autoconsumo nem o valor da moradia propria. Desse modo, a utilização da renda da Pnad
no mercado de trabalho e ao rendimento decorrente de tal inserção. Assim, en-
para mensuração da pobreza implica alguma superestimação do fendmeno. quanto no inicio do periodo os coeficientes de Gini relativos a renda familiar eram
Para considerar explicitamente que, ao mesmo rendimento, o nivel de bem-estar das os mais baixos, revelando um efeito compensatério de rendas mais altas e mais
familias se diferencia em função do seu tamanho, adotou-se aqui, como é mais habitual, baixas das pessoas no interior de cada familia, especialmente a partir de 1990 esse
o rendimento familiar per capita, que consiste na divisão do rendimento familiar pelo efeito compensatério se reduz. Desde 1996, a desigualdade de renda entre familias
número total de pessoas na familia. Esse rateio permite levar em conta os diferenciais de se mostra superior a desigualdade entre pessoas.
tamanho das familias.

15 Para estudos sobre a distribuição da renda total das pessoas no Brasil ver, por exemplo, Bonelli e ' Em 1989, ocorre também um pico do rendimento médio total, que só voltard ao mesmo
Sedlacek (1989) e Hoffmann (1995). Em relação a desigualdade salarial, ver Reis e Barros (1989). Patamar após o Plano Real, em 1995.

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P
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Tabela 3 A questão da desigualdade de rendimento, que está intrinsecamente ligada


a persistência da pobreza absoluta, se configura, portanto, mais grave do que quando
Índices de Gini relativos à distribuição de renda bruta
medida através do índice de Gini de renda das pessoas. Com o objetivo de melhor
das pessoas"e. das familias — total e familiar per capita
" (Brasil, 1981-99) mostrar a desigualdade de renda no Brasil, Hoffmann (2001a) derivou o valor
Correspondente a fronteira entre os relativamente ricos e os relativamente pobres.
Renda —1981 1983 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1993 1995 1996 1997 1998 flgfl
Considerando a distribuição de renda de todos os brasileiros com base no rendi-
Pessoas* 0,583 0,599 0,609 0,601 0,611 0,629 0,647 0,620 0,574 0,603 0,592 0,590 0,583 0,583 0,576 mento familiar per capita de 1999, verificou que para pessoas com renda familiar
per capita superior a R$325 naquele ano qualquer aumento de sua renda resultava
Familias 0,563 0,573 0,578 0,577 0,586 0,602 0,623 0,601 0,573 0,595 0,591 0,593 0,59 0,591 0,585
em aumento da desigualdade, como medida pelo indice de Gini. Em contraparti-
Familiar da, o aumento de renda das pessoas com renda inferior aquele valor implicava
per capita 0,599 0,607 0,609 0,607 0,620 0,631 0,654 0,631 0,598 0,621 0,618 0,618 0,618 0,617 0,612
redução do indice de desigualdade. Cabe observar que o valor “fronteira” é supe-
rior ao rendimento médio mensal de R$255!7 e corresponde ao 80° percentil da
distribuição de rendimento familiar per capita, de modo que apenas 20% dos bra-
0,67 sileiros se qualificam como relativamente ricos.
0,65 Infelizmente, ndo existe panacéia capaz de reverter rapidamente o quadro
0,63 ———
e e grave de concentragao de renda que se configura no Brasil. Dada a reconhecida
0,61 N gravidade do problema, é essencial usar todos os mecanismos disponiveis, inclusi-
0,59
ve a tributação direta e indireta para soluciond-la. Além disso, é necessirio que
0,57
0,55 * — — decisdes de governo, tanto as econdmicas como aquelas no 4mbito da politica so-
1981 1983 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 cial, levem em conta os seus impactos distributivos, com vistas a introduzir medi-

— Familias — - Familiar per capita das compensatérias sempre que houver risco de efeito adverso sobre o nivel de
Pessoas (exclusive renda zero)
desigualdade. A muito almejada retomada do crescimento econémico, por exem-
Fonte: Microdados da Pnad (tabulagdes proprias). plo, requer a implementagao de mecanismos visando evitar o agravamento da de-
*Pessoas de 10 anos e mais com rendimentos positivos. sigualdade de renda, que, muito provavelmente, ocorrerd a partir do funciona-
mento espontdneo do mercado de trabatho.
Vale destacar que, de forma consistente, a distribuigao da renda familiar per É de amplo conhecimento que os indices de desigualdade de renda no Brasil
capitaapresenta indices de desigualdade mais elevados ao longo da série analisada, são elevadissimos e, o mais alarmante, que a tendéncia tem sido a de agravamento.
refletindo o fato de que as familias de renda mais baixa são mais numerosas, isto ¢, Sabe-se, outrossim, que a persisténcia da pobreza absoluta ao nivel de renda per
com maior ntimero de membros. Como este é o indice de desigualdade que mais capita atingido no pais se deve a desigualdade. Apesar dessas evidéncias e das reite-
importa aqui — pois leva em conta a renda das pessoas após o efeito distributivo radas declarações de todos os segmentos sociais quanto ao combate a pobreza como
que ocorre no interior das familias —, sua estabilidade em nivel elevado e superior prioridade nacional maior, há, na pratica, enorme resisténcia a implementagdo de
ao verificado no inicio do periodo mostra uma evolução desfavoravel. Isso indica medidas que operem, direta ou indiretamente, no sentido da redugao da desigual-
que a repartigio intrafamiliar da renda não tem significado redugao da desigual- dade de renda.
dade em relação à renda familiar, como seria desejavel. Portanto, pode-se concluir
que os fenômenos demogrificos e socioecondmicos que marcaram o periodo em
questao — por exemplo, a redução da fecundidade e o aumento da taxa de parti-
cipação no mercado de trabalho —, que, em principio, poderiam ter efeitos distri- "" Hoffmann (2001a) reconhece que existe subdeclaragao das rendas na Pnad e deriva uma fron-
butivos positivos, não foram capazes de levar a uma redução da desigualdade de teira alternativa com base em rendas corrigidas. A maior subdeclaração das rendas mais altas,
renda no Brasil. como é provavel, leva a subestimar o grau de desigualdade.

>—
r
40 Pobreza no Brasil — Afinal, de que se trata? Sonia Rocha 41

forma significativa para a melhoria da distribuição de renda. Ha algum efeito marginal a


O papel distributivo do imposto de renda
o ser obtido pelo aumento na progressividade das aliquotas e pela redução das renúncias
fiscais associadas as deduções autorizadas, reconhecidamente regressivas em sua natu-
Pode-se argumentar que a distribuição da renda familiar per capita disponível, isto é,
reza. Na verdade, os maiores efeitos distributivos do imposto se ddo de forma indireta,
a renda por integrante da família após a incidência dos tributos diretos, tenha mais
através das transferéncias de renda que o imposto possa vir a financiar, o que torna
relevância como determinante do bem-estar do que a do rendimento bruto das pessoas
relevante o debate em torno do poder arrecadador do imposto e da forma de utilização da
ou das familias. Nos países ricos, o imposto de renda tem um papel fundamental na melho-
receita tributéria obtida.
ria da distribuição de renda, reduzindo de forma significativa a desigualdade de rendimen-
tos medida pelo coeficiente de Gini, que se situa de maneira geral em torno de 0,3.
No Brasil, em função de sua base contributiva restrita, os efeitos distributivos do
imposto de renda são limitados, pouco reduzindo a desigualdade de renda bruta. Simula-
ções realizadas para o ano de 1999 permitiram estimar o impacto distributivo do imposto
de renda pessoa física, isto é, a redução da desigualdade de renda familiar per capita
medida pelo índice de Gini antes e depois da aplicação do imposto (Rocha, 2002a).
Tendo por base a distribuição de renda bruta e as caracteristicas das pessoas nas fami-
lias, a intensidade do efeito distributivo do IRPF depende, por um lado, da estrutura de
aliquotas, por outro, das regras de deduções autorizadas.

Rendimento — — Gini A% Gini da renda bruta

Renda familiar per capita bruta 0,6116 —

Renda líquida após alíquota 0,5870 -4,02

Renda líquida após alíquotas e deduções 0,6092 -0,39

Fontes: SRF e IBGE/Pnad (tabulagdes proprias).

0s dados apresentados permitem verificar que a aplicacdo somente das aliquotas do


imposto faz o indice de Gini declinar de 0,61 para 0,58, ou seja, uma reducdo de 4,02%.
Ao realizar simultaneamente as deduções autorizadas, o efeito distributivo total fica
reduzido a apenas 0,39%. Assim, aliquotas e deducdes têm potencial distributivo igual-
mente fraco, mas em sentido inverso, de modo que o impacto distributivo total do IRPF
seria praticamente nulo.
Considerando os baixos niveis de rendimento da grande maioria da populacéo, o que
a torna isenta do imposto, ha possibilidades limitadas para que o IRPF contribua de

Continua

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