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Resenhas

O Bildungsroman afro -brasileiro de


Conceição Evaristo
Ponciá Vicêncio. 2. ed. Apesar de tudo, assim se fez: a menina
cumpriu sua formação básica em escolas
públicas da capital mineira, mas só terminou o
EVARISTO, Conceição. antigo Curso Normal aos 25 anos. Pertencente a
uma estirpe de cozinheiras, arrumadeiras e
lavadeiras que serviram a tradicionais famílias da
Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005. cidade, encontrou dificuldades imensas quando
132 p. se dispôs a estudar. Muitas dessas famílias,
temendo perder alguém que continuaria o
trabalho de suas antigas domésticas,
desencorajavam seus planos. Em depoimento,
“Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, afirma a escritora:
tudo do sinhô-moço, nada do sinhô-moço. Um Enquanto trabalhava como doméstica e após
dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou concluir o Curso Normal, eu sonhava em dar
curioso para ver se negro aprendia os sinais, as aula em Belo Horizonte. Mas aí entra uma
letras de branco e começou a ensinar o pai de questão seríssima. Em 1971, não havia
Ponciá. O menino respondeu logo ao concurso para o magistério e, para ser
ensinamento do distraído mestre. Em pouco contratada como professora, era necessário
tempo reconhecia todas as letras. Quando apadrinhamento. E as famílias tradicionais
sinhô-moço se certificou que o negro aprendia, para quem nós trabalhávamos não me
parou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o indicariam e nunca indicaram; não
que o negro ia fazer com o saber de branco? O imaginavam e não queriam para mim um outro
pai de Ponciá Vicêncio, em matéria de livros e lugar a não ser aquele que “naturalmente”
letras, nunca foi além daquele saber.” haviam me reservado. Houve mesmo uma
patroa de minha tia, numa casa em que eu
Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio
ainda menina e já mocinha ia fazer limpeza,
lavar fraldas de bebês, ajudar nas festas,
entregar roupas limpas e buscar as sujas, que
Conceição Evaristo nasceu em 1946, numa fez a seguinte observação: “Maria, não sei
favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, porquê você esforça tanto para a Preta
estudar!”2
uma das áreas mais valorizadas da zona sul de
Belo Horizonte. 1 Com o tempo, barracos e Logo depois, a jovem se transfere para o
moradores foram sendo removidos, a avenida Rio de Janeiro, vence concurso público para o
ganhou um prolongamento, novos prédios se magistério, e conquista uma vaga na
ergueram e os becos e vielas da infância tiveram Universidade Federal. A escolha do curso de Letras
que se alojar na memória afetiva da futura decorre da paixão que, desde cedo, dedica à
escritora. Sua mãe, Dona Joana, depois de lavar literatura: na adolescência, Jorge Amado, José
e passar a roupa das freguesas, encontrava Lins, Carolina Maria de Jesus e tantos outros; mais
tempo para contar histórias aos pequenos e ainda tarde, Graciliano, Rosa, Drummond, Bandeira e,
lançar muitas delas em cadernos grafados a lápis. também, Solano Trindade, Abdias do Nascimento,
Zelosa, a filha guarda até hoje esses escritos e Adão Ventura.
recorda a dura rotina de trabalho e estudo, Nos anos 1980, a autora toma
exigência da mãe severa, preocupada com o conhecimento das atividades do Grupo
futuro da prole de nove filhos. Quilombhoje e da publicação, em São Paulo, da

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série Cadernos Negros. Esse é um momento de A vontade de aprofundar conhecimentos e
efervescência dos movimentos pela igualdade aprimorar seu ofício leva a autora à pós-
racial, com mobilizações nas principais capitais graduação. Evaristo ingressa no mestrado em
brasileiras. É também tempo de descoberta da Letras da PUC do Rio de Janeiro, onde defende,
escrita literária como trabalho de processamento em 1996, a dissertação Literatura Negra: uma
e depuração, com rascunhos e mais rascunhos poética da nossa afro-brasilidade.4 Mais tarde,
recheando suas gavetas. é a vez do doutorado em Literatura Comparada
Em 1990, o número 13 de Cadernos Negros na Universidade Federal Fluminense, cuja pesquisa
traz impressos os primeiros poemas de Conceição de tese contempla a produção de autores
Evaristo, entre eles, o conhecido “Vozes-mulheres”, africanos de língua portuguesa em confronto com
que figura até hoje como espécie de manifesto- a literatura afro-brasileira.
síntese de sua poética: Desde então, a série Cadernos Negros vem
A voz de minha bisavó ecoou
publicando seus escritos, que logo se destacam
criança pela forma poética com que representa a
nos porões do navio. crueldade do cotidiano dos excluídos. A mescla
Ecoou lamentos de violência e sentimento, de realismo cru e
de uma infância perdida. ternura, revela o compromisso e a identificação
da intelectual afrodescendente com os irmãos
A voz de minha avó
colocados à margem do desenvolvimento. Dessa
ecoou obediência
aos brancos donos de tudo.
postura surgem personagens como Di Lixão,
menino de rua e filho de uma prostituta
A voz de minha mãe assassinada; Ana Davenga, favelada cujo
ecoou baixinho revolta aniversário é interrompido pelos tiros da polícia;
no fundo das cozinhas alheias Duzu-Querença, migrante desterrada e
debaixo das trouxas
prostituída; ou ainda como a empregada Maria,
roupagens sujas dos brancos
linchada pelos “pacatos cidadãos” da metrópole
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
globalizada após escapar de um assalto num
ônibus, por ser ex-mulher de um dos bandidos. A
A minha voz ainda linguagem desses contos, pautada por
ecoa versos perplexos surpreendentes irrupções de violência, distingue-
com rimas de sangue se, todavia, dos procedimentos de um Rubem
e
Fonseca, por exemplo, devido à adoção daquele
fome.
ponto de vista interno que, mais tarde, Roberto
A voz de minha filha Schwarz saudaria como o grande mérito de
recolhe todas as nossas vozes Cidade de Deus, de Paulo Lins.
recolhe em si Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o
as vozes mudas caladas procedimento – que arriscaria chamar de
engasgadas nas gargantas. brutalismo poético – ao narrar, numa linguagem
[...].3 concisa e densa de sentido, a vida de uma mulher
oriunda do mundo rural, desde a infância até a
Os versos enfatizam a necessidade do eu “maturidade” desterritorializada na favela em que
poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito vegeta junto ao companheiro. A narrativa
de enunciação, ao mesmo tempo individual e configura-se como um Bildusgsroman feminino e
coletivo, caracteriza não apenas os escritos de negro ao dramatizar a busca quase intemporal
Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos da protagonista, a fim de recuperar e reconstituir
autores afro-brasileiros, voltados para a família, memória, identidade. No entanto, o
construção de uma imagem do povo negro ímpeto antropofágico se faz presente na postura
infensa aos estereótipos e empenhada em não de rasurar o modelo europeu para conformá-lo
deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, às peculiaridades da matéria representada. Assim,
igualmente, de resistência à opressão. Essa a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha
presença do passado como referência para as contornos paródicos, pois em lugar da trajetória
demandas do presente confere à escrita dos ascendente do personagem em formação,
afrodescendentes uma dimensão histórica e oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é
política específica, que a distingue da literatura um percurso de perdas materiais, familiares e
brasileira tout court. culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do
herói romanesco, temos uma narrativa complexa

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e entrecortada, a mesclar de forma tensa de forma sincrônica e a posteriori, desconhe-
passado e presente, recordação e devaneio. cendo a encarnação do espírito de nacionali-
Descendente de escravos africanos, já de dade que marca boa parte da literatura
início Ponciá surge despojada do nome de canônica.
família, pois o “Vicêncio”, que todos os seus usam Exemplo de romance afro-brasileiro, Ponciá
como sobrenome, provém do antigo dono da Vicêncio polemiza com a tese segundo a qual a
terra e era como “lâmina afiada a torturar-lhe o escrita dos descendentes de escravos estaria
corpo”. Essa marca de subalternidade, que restrita ao conto e à poesia... Em que consistiria
denuncia a ausência entre os remanescentes de esse romance? Se entendido como texto de
escravos dos mínimos requisitos de cidadania, autoria afrodescendente, tratando de tema
estende-se pelo penoso circuito de vazios e vinculado à presença desse segmento nas
derrotas, no qual tanto a menina quanto a mulher relações sociais vividas no país, a partir de uma
vão sendo alijadas dos entes queridos e de tudo perspectiva identificada politicamente com as
o que possa significar enraizamento identitário. E demandas e com o universo cultural afro-
depois de perder também os sete filhos que brasileiro e destacando ainda o protagonismo
gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se negro nas ações, em especial aquelas em que
de si mesma. se defronta com o poder e com seus donos, não
O interesse da narrativa cresce justamente há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só
nos gestos de resistência a esse processo de preenche tais requisitos, como ocupa o lugar
espoliação. Nele, vão surgindo as histórias supostamente vazio do romance afro-brasileiro.
dolorosas como a do pai, que, quando criança No entanto, o texto de Conceição Evaristo
e já no período posterior à Lei Áurea, tinha que não é exemplo único e tem, sim, seus precursores.
ser o pajem do filho do patrão, o cavalo no qual Além de estabelecer um saudável contraponto
este montava, e até aparar com a boca o mijo com o abolicionismo branco do século XIX e com
do sinhô-moço... A passagem retoma de forma o negrismo modernista de um Jorge Amado, um
ampliada e crua a cena do menino Brás Cubas José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá
de Machado de Assis, reposicionando-a num nível Vicêncio remete ao Isaías Caminha, de Lima
inédito de violência. Já o avô, suicida frustrado, Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de
decepara parte do braço e matara a própria Machado de Assis; e, com certeza, ao
esposa depois de ver quatro de seus filhos serem memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao
vendidos em plena vigência da Lei do Ventre Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre
Livre... Essas histórias surgem desgarradas umas outros.
das outras, e vão sendo evocadas em meio aos A narrativa de Conceição Evaristo filia-se,
hiatos de racionalidade da protagonista. Formam, portanto, a esse veio afrodescendente que
todavia, uma rede discursiva pela qual se mescla história não-oficial, memória individual e
recupera a memória de uma dor que é física e coletiva com invenção literária, iniciado com a
moral, individual e coletiva. E o corpo feito de publicação de Úrsula, em 1859.5 O texto de Maria
ausências de Ponciá se recupera na arte da Firmina dos Reis, a exemplo da poesia satírica de
cerâmica, reatando no barro moldado o fio da seu contemporâneo Luiz Gama, destoa
existência. A terra, antes paliativo para a fome cabalmente do projeto literário romântico,
da menina, passa a matéria-prima para a empenhado na missão conservadora de unir o
afirmação da mulher. Ao final, o desterro na país assolado pelas recentes revoltas separatistas,
cidade grande se ameniza no reencontro com a através do reforço literário das narrativas e
mãe e o irmão, que parece pôr fim à errância conceitos de nação e de identidade nacional.
sofrida da personagem. O texto de Úrsula, ao contrário das ficções de
Herdeira da memória familiar, Ponciá fundação comuns em seu tempo, recusa-se a
Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo, propagar a ideologia de uma identidade
também esta herdeira de uma forte linhagem nacional una e coesa, que apaga as diferenças
memorialística existente na literatura afro- e naturaliza hierarquias. Em vez disso, enfatiza a
brasileira. Como Maria Firmina dos Reis e Carolina diferença étnica transformada em desigualdade
Maria de Jesus, Conceição traz a narrativa dos social e subalternizada pelo escravismo. Ao
despojados da liberdade, mas não da colocar o negro como referência axiológica de
consciência. E a repetição insistente dessa seu texto, verdadeiro exemplo para personagens
presença desvalida nos incomoda e nos diz de e leitores brancos; e ao inscrever senhores e
uma aurora ainda à espera do sol... A fala escravos como “filhos de Deus” e “irmãos” perante
diaspórica desses condenados da terra se articula os desígnios divinos, a escritora maranhense

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apropria-se da moral hegemônica para e negra num país que faz dela vítima de olhares
desmascarar o rebaixamento dos afrodes- e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser
cendentes. construído pelas relações de gênero se inscreve
A vertente inaugurada por Maria Firmina dos de forma indelével no romance de Conceição
Reis, contemplando o resgate de uma memória Evaristo, que, sem descartar a necessidade
coletiva apagada pelo discurso colonial, terá histórica do testemunho, supera-o para torná-lo
seqüência, em seus diversos matizes, na prosa perene na ficção.
afro-brasileira: passa por Cruz e Souza e por Lima Notas
Barreto; por Ruth Guimarães e por Carolina Maria 1
Este texto retoma parte de comunicação apresentada
de Jesus; e deságua em autores contem-
no XI Seminário Nacional Mulher & Literatura, realizado
porâneos, tais como Oswaldo de Camargo, Geni
no Rio de Janeiro em 2005.
Guimarães, Conceição Evaristo e tantos outros. 2
Depoimento de Conceição Evaristo concedido a
Em seu conto “Metamorfose”, Geni Guimarães Eduardo de Assis Duarte em 2 de março de 2006.
vale-se da própria história de vida para 3
VÁRIOS AUTORES, 1990, p. 32-33.
“ficcionalizar” a autoflagelação de uma menina, 4
EVARISTO, 1996.
que busca clarear a pele esfolando-a com o pó 5
REIS, 2004.
de tijolo moído usado pela mãe para lavar as 6
GUIMARÃES, 1988, p. 71.
panelas tisnadas no fogão a lenha... Num
depoimento recente, a autora surpreendeu o Referências bibliográficas
público ao exibir as cicatrizes deixadas pela
atabalhoada tentativa da criança. EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma
Sintomaticamente, o conto termina num poética da nossa afro-brasilidade. 1996.
desabafo: “só ficaram as chagas da alma Dissertação (Mestrado em Letras), Pontifícia
esperando”.6 Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Irmanado a essa vertente afro, o texto de GUIMARÃES, Geni. Leite do peito. São Paulo:
Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo Fundação Nestlé de Cultura, 1988.
território feminino de onde emana um olhar outro REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 4. ed.
e uma discursividade específica. É desse lugar Organização, atualização e posfácio por
marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Editora
e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se Mulheres; Belo Horizonte: Editora PUC Minas,
que no romance fala um sujeito étnico, com as 2004.
marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer VÁRIOS AUTORES. Cadernos Negros 13, São Paulo:
nosso passado em contraponto com a história dos Quilombhoje, 1990.
vencedores e seus mitos de cordialidade e
democracia racial. Mas, também, fala um sujeito Eduardo de Assis Duarte
gendrado, tocado pela condição de ser mulher Universidade Federal de Minas Gerais

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