Um dos aspectos mais importantes de Nga Muturi são os movimentos dialéticos
que compõem a obra, entre eles, o quadro que vai sendo pintado sobre a (de)formação da identidade da personagem principal, Nga Ndreza, ao longo da narrativa, sempre seguindo um embate de forças contrárias, causando uma constante desadaptação da personagem, assim como o retrato da própria sociedade luandense, marcada pela dialética cultural. Nga Ndreza sofreu diversas mudanças até o tempo presente da obra e, por meio de suas memórias, nós podemos percebê-las. A primeira mudança é a sua retirada forçada do meio rural em que viva, com a presença da mãe e do irmão recém-nascido, para a cidade. Nesse movimento campo x cidade, a personagem passa por um rito: ela dá adeus a seu penteado e a suas roupas, além dos búzios, das miçangas e dos enfeites, mostrando “uma limpeza cultural”, e, em seguida, “lhe vestiram panos bonitos”, iniciando o processo de assimilação à nova cultura. A segunda é a mudança para o status de mucama. Nesse momento, Nga Ndreza tenta se inserir nessa sociedade, assim “tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera”. Notamos certa consciência da personagem sobre a hierarquização cultural e social, assim, ela “conheceu o que era, e o que devia parecer”. Vendo que o branco era valorizado, assim como sua cultura, ela tenta se adequar a essa situação, “tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera”, além de mudar sua origem, espalhando boatos de que teria uma origem “branca”, já que era fula, uma negra mais clara, porém, as comadres que iam visita-la só concordavam para poderem comer e beber de graça, mostrando o movimento dialético de adequação à sociedade x inadequação à sociedade. A terceira mudança é a de mucama para Nga Muhatu, senhora casada. Agora, a personagem já possui uma escrava e certo status, além de se ver como uma “deles”, da elite da sociedade, dos brancos, porém, vemos uma dialética da “inserção na sociedade x exclusão da sociedade”, pois sua imagem e ideia de si mesma, entra em desacordo quando ela é açoitada pelo patrão, causando a indignação de Nga Ndreza, pois foi “açoitada como os negros”, o que “era demais”, por ter um relacionamento com o Etho. Ademais, vemos outro processo, presente em toda a obra, porém daqui em diante mais realçado, o de aculturação x reforço de identidade. A personagem principal, agora cristã, recorre à cultura africana, à feitiçaria, para tentar engravidar, tentando mais uma vez se inserir na sociedade, o que não ocorre. A personagem diversas vezes reforça a cultura “da terra”, porém tenta se aproximar da do branco, resultando num hibridismo. Esse ato de Nga Ndreza reflete um dos aspectos dessa sociedade luandense, na qual a diferenciação “eu – outro” torna-se uma aproximação, uma 3º esfera, o ser, e a própria sociedade luandense não é nem nativa-tribal nem portuguesa. Podemos perceber isso diversas vezes ao longo da narrativa, principalmente nas cenas do velório, onde a cultura cristã entra em contato com a cultura africana, que dá bastante valor à música e a dança, resultando numa interseção das duas culturas. Além disso, percebemos claramente essa natureza peculiar da sociedade luandense quando um escrivão-deputado estrangeiro vê Nga Ndreza, deitada ao lado do corpo, e estranha a cena, mas um escrivão local está acostumado e diz: “São os usos da terra, é óbito”. A última mudança é a de Nga Muhatu para Nga Muturi, senhora viúva. Aqui, vemos o auge da dialética de “inserção na sociedade x exclusão da sociedade”. Após o marido morrer, Nga Ndreza recebe uma herança, resultando numa ascensão social, que lhe abre as portas para a sociedade e para ser bem vista pelas elites, porém, ao mesmo tempo, não deixa de ser excluída socialmente. Ela passa, economicamente, a se inserir nos padrões das elites, mas é enganada 3 vezes, uma por não saber ler e a outra por não saber diferenciar ouro de latão, além disso nunca aprendeu a por a toalha da mesa e termina a noveleta errando a pronunciação de “flatos”, dizendo “falatos”.