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Em uma vila com casinhas velhas e históricas, em um dia qualquer como

outro, apareceu do céu um gato que, suavemente, descia por um guarda-


chuva preso em seu rabo. Daquele dia em diante, a vila é invadida por
inúmeros bichano de todas as cores, tamanhos e vontades. Eles passaram
a serem testemunhas de uma vila que até então ninguém mirava os olhos,
e são os olhos desses gatos que contarão as histórias desse lugar que
sempre fora silenciosa como as noites.. até os felinos aparecerem.
"Eu gostaria de poder escrever algo tão misterioso quanto um gato." - Edgar
Allan Poe

"Um gato tem honestidade emocional absoluta: os seres humanos, por uma razão
ou outra, podem esconder os seus sentimentos, mas um gato não o faz." - Ernest
Hemingway

"Se quiser escrever, arranje um gato" - Aldous Huxley

"Nós, gatos, já nascemos pobres. Porém, já nascemos livres" - Gatos

A li na vila, com rua sem saída, de casas antigas, tão antigas que delas não
mais existiam em outra parte da cidade, viviam gatos, desses sem donos,
desses vagabundos, sujos e esfomeados, porém gordos de tanto que de
comida alheia eles comem, logo a fome era pura gula, não mais uma necessidade
de suas eventuais realidades, que eram gatos sem dono. Eram bastantes
gatos,as contas não mais se têm, pois não se sabe se aquele grande e preto que
apareceu agora é o mesmo de ontem ou outro semelhante. Nomes não se dão,
que gato de rua irá aceitar graças de humanos? Contar já não se faz, eles vêm e
vão e deixar um número para um pode ser bobagem, já que corre o risco desse
não mais ali voltar se em outra vila, comida melhor achar.
E esses gatinhos, gatinhos sem donos, donos não podiam ter, a vila
entendeu que assim tinha que ser, a posse de um eu não posso ter, livres eles
são, assim sempre vão ser, mas comidinha uma vez ali, outra acolá, isso um ou
outro davam, carinho aqui na barriguinha, ou ali nas orelhinhas, dois ou três
ofereciam, eram trocas livres, disso a vila estava ciente, disso os gatos estavam
cientes, ora para que isso mudar? E eram tantos, mas tantos, mas, quem de fora
pela vila passava, nada via, há gatos aqui?, iam perguntar, há e muitos,
responderiam, mas eles são assim, jeitosos, cheios das opiniões, quase de vistas
não aparecem.O que se sabe é que são muitos, isso sim, senhor. Devem estar ali
pelos telhados, ali na fresta de uma janela aberta, ou ali nos corredores de piso
de taco envelhecido das casas, a aproveitar que seus moradores no local não
estão. Ah, esses gatos sem donos, eles são assim, aparecem quando querem,
onde querem, no momento que querem. Não são tímidos, nem temerosos, nem
orgulhosos, são apenas gatos, oras, e por acaso gato tem disso de agenda de
gente grande de ter hora para aparecer? Ou lugar marcado para chegar? Gatos
não têm disso, ainda mais esses sem donos, deixemos de impor nossos bobos
costumes à eles.
Vejam um gato ali agora em cima do telhado da casa 7, a verde, de três
andares. É um marrom, de pelos brilhosos, cara bochechuda, olhos maliciosos e
narizinho gelado. Ele olhava a dona da casa cinza, a de número 1A, que
cozinhava, hummm, fritava algo, passou a língua áspera nos lábios, parecia bom.
Mas ali, no telhado da casa 7 ficou, não foi incomodar a dona da casa 1A mesmo
estando com fome. Baixou seu corpo, sua cabeça, e, assim como apareceu no
telhado da casa verde, sumiu silencioso e sutilmente. E agora, cadê o gatinho
marrom de narizinho gelado? Quem sabe, fora encher, talvez, a pança com
outras frituras ou qualquer coisa. A dona da casa número 1A, se quer soubera
que, por breves momentos, estava sendo vigiada e sua comida desejada.
Mas, e esse montão de gatos, de onde vêm? Mandariam você perguntar
para o velho da casa 2A, a laranja, de 2 andares, era ele quem melhor saberia
contar como tudo começou, ele era o morador mais velho da vila, passava quase
que todo o dia sentado num tamborete na varanda laranja, da casa 2A de
mesma cor, fumando maços e maços de cigarros, o que juntava uma grande
nuvem de fumaça em sua volta. Era difícil vê-lo pronunciar alguma conversa,
melhor dizendo, alguma palavra, só mesmo quando das origens dos gatos lhe
perguntavam, e, mesmo com aquele modo rabugento de falar, a bufar e nunca a
encarar quem o ouvia, era sabido que uma leve pontada de alegria era como ele
ficava, ao contar a história que ele já repetira tantas e tantas vezes.
O que se sabia era que, um dia, desses como outro qualquer, quando as
nuvens cobriam o sol, mas sem ameaças de chuvas, surgiu do céu um guarda-
chuva vermelho, estava aberto e ziguezagueava para lá e para cá, ao ritmo de
um vento zombeteiro e calmo que não o deixava descer. Mas o curioso era que,
preso no cabo do guarda-chuva, havia um gatinho preto, estava firme e seguro
com seu rabo no cabo, o bichano também balançava para cá e para lá
suavemente, com suas patas esticadas, sua cabeça e pescoço ereto. Não parecia
se importarque o guarda-chuva não descia, para ele não fazia diferença se subia
mais ou se na terra logo pousava, afinal, bem firme seu rabo segurava o cabo do
guarda-chuva vermelho e dali não cairia. Contava o velho da casa 2A laranja,
que o guarda-chuva com o gato ia caiiiiindo, caiiiindo, caiiiindo, parecia não ter
fim essa agonia toda, e quando alguém lhe perguntava se ele havia visto, ele
dizia um seco, mas é claro que sim, moleque curioso, com esses olhos sem
graças que eu carrego e que evito te olhar agora. Continuava a dizer que, depois
de muito cair suavemente, ele apenas ouviu o baque forte em seu telhado, foi o
guarda-chuva que finalmente caiu, e o gato lá deve ter corrido pelo telhado,
aquele danado, devia estar agasturado de tanto que balançou para lá e para
cá.Só consegui pegar o guarda-chuva que pousava aberto no meu telhado, que
quase voou de novo. E o felino, senhor velho?, perguntavam curiosos. Disto, o
velho respondia que ficou um, dois, três, quatro dias sem ver o animal, ixi, meu
filho, só no quinto dia que o lazarento apareceu para comer, e eu tive que dar
um pouco de comida, né, ele estava com fome. E o velho não poupava de
detalhes do bichano: era preto, forte, olhos bem firmes, parecia que a todo
momento estava te testando ao lhe encarar, sumiu depois de pouco mais de um
mês. E o guarda-chuva, senhor velho? E era esse o momento que o velho tanto
aguardava, orgulhoso e com o peito estufado, ele se levantava do seu eterno
tamborete e ia em direção a sua sala, ali mesmo ao lado da varanda, e apontava
para uma pequena estante que, a um lado, havia uma parte com uma portinha
dupla de vidro e dentro dela havia um guarda-chuva vermelho fechado. Dizia o
velho, é este o guarda-chuva, o gato veio do céu segurando o cabo dele com o
rabo, o objeto é esse, só não está o gato aí com o rabo preso nele, mas é o
próprio.
E naquele mesmo dia, em uma lixeira próxima, três gatinhos malhados
viram cair do céu um guarda-chuva vermelho com um gato preto preso
nele.Correram para onde o objeto estava caindo, subiram em cima de uns
telhados de umas casas antigas de uma vila e ali, sorrateiros e escondidos,
esperaram o objeto cair. Numa rua ao lado, outros dois gatos, talvez um
casalzinho, também viram o objeto a cair lento numa vila de casas históricas, e,
se acuriosidade matou o gato, esses dois já ali morreriam, mas foram correndo
ver o objeto, aguardaram silenciosamente no telhado de outra casa da vila. E
logo, outro e outro e mais outros gatos olharam para o céu, e o ziguezague que o
guarda-chuva fazia, com o gato preto preso pelo rabo em seu cabo, roubaram de
todos as atenções e interesses. Em poucas horas, mesmo que nada os
moradores tivessem percebido, os gatos invadiram a vila, escondiam-se como
podiam até a hora certa de saírem e constatarem que perigo não mais tinha. E a
noite, quando todos já dormiam, e o guarda-chuva já guardado estava na casa
do velho da casa 2A laranja, os gatos todos saíram dos esconderijos, e ali, nos
telhados dos casebres da vila, eles aguardaram que o gato do guarda-chuva
também do seu esconderijo saísse. Fora uma noite de muitas festas felinas.

E logo, tantos e tantos gatinhos se juntaram à noite, a esperar aparecer
aquele que do céu caíra pelo guarda-chuva. E não tardou até ele
aparecer, lá estava ele a surgir em um telhado de uma casa dos fundos da
vila, era majestoso, preto, forte, olhos brilhantes, patinhas fofinhas, mas não
intimidava, não assustava aos demais gatinhos, porém respeito lhe era passado
em sua postura. E vieram dez gatos por outro telhado, e mais dez por outro, e
por outro telhado outros dez... da casa 7 verde, da 2A laranja, da 6 branca, da 3
amarela, daquelas ali dos fundos sem números, uau, quegataiada, quantos
bigodinhos, quantos rabinhos. De repente, todos estavam nos telhados, a
observar o gato que do céu caiu com o rabo preso em um cabo de guarda-chuva,
e o gato olhava cada um, miava a dizer-lhes, olá. Em gatês talvez outra
expressão além de um “oi” é o modo como se cumprimenta inicialmente, mas
como nós humanos de nada dessa felina língua sabemos, entendemos como
apenas um “Olá”, de gato para gatos.
Em gatês também os demais gatos miaram, foi apenas um miau, dizia, olá,
senhor gato, que do céu veio sobre um guarda-chuva. E o gato, do céu parecia
sorrir em respostas aos colegas, andava silenciosamente por entre os telhados,
aproximando-se de cada um que podia. Ali, ele sabia que o líder não era, nem
isso queria, os demais gatinhos também sabiam que líder ele não era, não eram
isso que procuravam, ali, o gato do céu era apenas o gato que do céu aparecera,
e os demais, os gatos que ali se juntaram, para que tantas ordens ou regras,
eram só gatos em cima de telhados de uma vila velha.
Em gatês, a noite fora transformada em miaus e miaus e miaus, de todos
os gatos, uma vez um, outra vez outro, outra vez todos ao mesmo tempo.
Diziam,muito bem-vindo, gato do céu. E em um miau gatês, o gato do céu
respondia, muita gentileza. E os miaus continuavam noite adentro, um gato
listrado miou perguntando, e como, e para quê, veio tu do céu em um guarda-
chuva? E o gato do céu respondeu-lhe, miau! Os outros todos arregalaram os
olhos, miaaaaauuuu, ooooooh, e de novo a miadeira começou, todos felizes e
surpresos, mas que coisa maravilhosa, que gato imaginaria algo semelhante
acontecer, que gato pensaria tal coisa fazer e ainda esse motivo ser? Realmente
surpreendente. Uma gata fêmea e branca miou, E como tudo isso aconteceu, e
em resposta, miou o gato do céu, miaumiau. Ooooohhhhh, arregalaram de novo
os olhos todos os bichanos, mas que coisa surpreendente, que feito, de inveja os
gatos egípcios morreriam, sem dúvida.
Então, a festa felina daqueles gatos sem donos, fora maior que da vila já se
teve notícias, uma vez que festa de outro animal nunca ali teve, e de lá os gatos
nunca tinham ido, e se quer agora sairiam, ali ficariam, e por que não? A noite
ainda era cedo, um pouco mais ficariam ali nos telhados, só um pouquinho mais,
miariam baixinho, se é que conseguiriam, pois não estavam nas latas de lixos,
nas ruas perigosas, não, neste momento em uma vila cheia de casinhas estavam,
não era os lugares a que acostumados estavam, logo não exagerariam nos
miados, porém, a vila não era deles naquele momento, mas ali ficariam, e deles
seriam, seria a vila dos gatos, de todos eles, dos que logo chegariam, uma vila de
todos, e os que de lá saíssem, que fosse em paz e obrigado, mas a vila dos gatos
depois dessa festa seria. E o céu sem lua de nada atrapalhou as alegrias deles, ia
para lá e para cá o gato do céu, pulavam de telhado em telhado outros,
namoram alguns, outros observavam, já a preparar território e demarcar
lugares estratégicos para os dias que viriam, as casas e seus telhados e seus
corredores e suas janelas deles agora seriam, então melhor tudo conhecer, mas
que deixe tudo isso para amanhã, agora festar é o melhor que façamos.
Era a festa felina, então, que acontecia, com miados ali, outros acolá, noite
a fora, de gatos a comemorar, o quê? Não importa, estavam comemorando. Até
que, de um quarto, uma luz fora acesa, alguém acordado foi, ou acordado já
estava, mas acontece que algo a fez acender a luz de seu quarto. Uma janela
dupla de madeira fora aberta, um rapaz de óculos grandes apareceu nela, olhou
para um lado e para outro, virou a cabeça para um dos telhados de uma casa a
frente, malditos gatos, resmungou consigo mesmo, morram todos, seus
vagabundos. E lá na janela continuou por mais algum tempo. Ele ouvia os
miados que sabia que do telhado vinha, mas ainda não conseguira mirar
nenhum bichano. Até que, depois de um pouco mais atento procurar, avistou
um gato branco e apontou seu dedo ameaçador, oh lá, veja você aí, seu
vagabundo, vá encher o saco de outro, porque aqui gato nunca houve de ter, que
faz tu agora aqui, vá e leve seus amigos fedorentos. Nisso, a luz do quarto de
baixo do quarto do moço de óculos grande também se acendera, uma senhora
corpulenta e de pijamas florido colocou sua cabeça pela janela também e olhou
para cima a querer mirar o rapaz de óculos grande, que diabos tu há essa hora
grita na janela, menino? O rapaz de óculos grande olhou para baixo, ajeitou
então os óculos, gesticulou o braço em direção ao telhado que viu o gato, está
por acaso cega, mulher, ou é de cegueira ou de surdez tu sofre, não ouve essa
barulhada de gatos na vila? A mulher fez cara feia e respondeu-lhe, com os gatos
estava eu cá em paz, agora com tu a gritar em cima de minha cabeça, dormir não
consigo. O rapaz, nervoso, tirou seus grandes óculos e saiu da janela batendo-a
forte para fechar, e saiu gritando, pois pegue toda essa gataiada e tranque-te no
teu guardo com eles, velha louca.
Enquanto das janelas o moço de óculos grande a mulher corpulenta
discutiam, o gato branco que foi avistado pelo rapaz voltou à festa. Com um
miado ele disse aos demais, já nos ouvem. Espantado todos ficaram. Um miou, e
já nos odeiam? Ora, isso era fato, eles sabiam que eram gatos de rua, sem donos
também, logo todos os odiariam, eram essas suas realidades. Mas diversões já
tiveram, logo dia com luz faria, começaram a se espalhar, e, mesmo sem nada
combinarem, era como se todos em um acordo estavam: na vila ficariam, fato
isso era. Apareceriam uma vez em uma janela ali, outra vez em um telhado ali,
mas sempre com muita cautela, vai que nos machucam. E, silenciosos e cheios
de habilidades como todo gato, esses sem donos começaram a sumir um por
um, para onde? Deixemos que esse mistério fique com eles, a nós não nos
interessa, mas em poucos minutos, gatos não se via mais, nem nos telhados,
nem em parte alguma, mas na vila era certo que todos estavam, ah isso era
certeza, dali não sairiam. O que teriam que fazer agora era ver como da vila não
seriam expulsos.

E ra manhã cedo . Alguns poucos moradores saiam para o trabalho, outros


iriam mais tarde, agora buscavam dormir o que lhes restavam de tempo.
Saiu a mulher corpulenta para varrer a calçada da casa. Passou a vizinha
da frente a empurrar o carrinho do seu bebê. Curiosa, a mulher corpulenta
perguntou para a vizinha do bebê se ela não ouvira miados e farras de gatos
durante a noite. A vizinha do bebê deu um salto, arregalou os olhos, respondeu
que sim, meu deus que barulheira, isso nunca que aqui aconteceu, o que será
que houve? Voltando a varrer o chão, a mulher corpulenta disse que eram
coisas de gatos de ruas mesmo, eles vêm e vão para todas as partes, nossa vila
cá foi sorteada essa noite. E disse a vizinha do bebê que, se assim a sorte lhe
permitir, essa gataiada hoje não volta. Passou apressado por elas o velho da
casa 2A laranja, aquele que viu do céu o gato chegar, carregando uma grande
sacola de pães e outra de algo a mais. Sem as olhar, mas sempre com uma boa
orelha a escutar, o velho disse, ora, deixem os gatos, acostumem-se, aqui agora
eles vão morar. Mas vejam só, que praga tu joga cá em nossa vila, velho,
resmungou a mulher corpulenta, do qual respondeu o velho que praga não era,
e sim fato, fato agora confirmado, afinal, tu não ouviu a festança de mudança
que eles aqui nos telhados ontem a noite fizeram? A vizinha do bebê, que
boquiaberta estava com tudo isso, questionou que, se ali agora eles iam morar,
onde, nesse momento, eles estavam? A vila só gente humana tem, gato nenhum
eu vejo, ela concluiu. O velho, com uma risada de canto da boca, a encarou, disse
que esperteza maior os gatos têm, mas que tu, ela e eu juntos, abra bem os
olhos, que em toda parte eles hão de estar, e quanto tu mesmo esperar,
miiiiauuu, um gato nas tuas costas cai, e saiu dando gargalhada, vendo tamanho
assombro na cara da vizinha do bebê e da moça corpulenta.
O moço de óculos grande apareceu na janela de seu quarto, gritou para
que a mulher corpulenta e a vizinha do bebê ouvissem, eu avisei, eu avise, eles
estão invadindo tudo, a tudo invadem, nossa vila agora é o alvo desses
perversos diabólicos, estamos em guerra, em guerra. Com a gritaria toda, saiu
outra vizinha de uma casa aos fundos, perguntou que acontece. A vizinha do
bebê respondeu que eram gatos, gatos vizinhos, que vão fazer miauuu nas tuas
costas. Ora, pois, nas minhas costas, perguntou horrorizada a vizinha dos
fundos, e porque diabos um gato vai miar em minhas costas? A mulher
corpulenta tentou explicar, disse que a vila fora invadida pelos felinos nessa
madrugada. Disse a vizinha dos fundos, eu os ouvi, mas pensei que agora de
manhã embora iriam eles. Eles não vão, eles não vãããaããão, gritou o moço de
óculos grande da sua janela. Saiu na janela da casa 6 branca, um vizinho
bigodudo, este nada disse, apenas fez um gesto com a cabeça e os demais
entenderam que ele queria saber o que se passava. A vizinha dos fundos, então,
lhe respondeu que gatos estavam na vila, e logo estarão em minhas costas. Em
suas costas?, perguntou surpreso o vizinho de bigode. O rapaz de óculos grande
virou seu corpo para o vizinho de bigode, disse que aquilo era uma invasão, de
lá os gatos não iam sair. Deixem os gatos, deixem os gatos, falava com tédio o
vizinho de bigode, que mal eles fariam a nós, nenhum, apenas os deixem livre aí
pela vila mesmo, bom que rato aqui não se cria.
Ah, mas como conviver com tantos gatinhos? A princípio, os moradores da
vila não tinham uma quantidade exata de quantos gatos migraram para a vila,
mas depois souberam que eram bem mais do que imaginavam, e ainda
souberam do acontecido do aparecimento do gato do céu, e claro que, quem
contou tudo foi o velho da casa 2A laranja. Vale lembrar que, apelo maior para
que os deixassem na vila veio das crianças, elas choravam pedindo para que os
pais deixassem os gatos morarem na vila, eles vão brincar com a gente,
choramingavam. Os moradores que estavam na vila, então, fizeram um tipo de
pequena assembléia, até aquele momento gato nenhum viam, eles estavam bem
escondidos, o que as pessoas ali presentes não sabiam era que a observar tudo
eles estavam, ahhhh, gatinhos danados, sim, a tudo viam, ouviam, estavam
atentos, afinal destinos eram os seus que estavam postos na mesa, não era?
Então, os moradores presentes, chegaram a um acordo que, se trabalho nenhum
dessem, que os gatos na vila ficassem, mau algum aconteceria, afinal, animal
nenhum ali tinha, que os gatos ao menos dos ratos se livravam. Para que o
processo fosse mais democrático, quando a noite chegou, os demais moradores
que ali não estavam foram anunciados do ocorrido, esses também não viram
mau algum dos gatos ficarem a vagabundar pela vila, ora ninguém ia cuidar
mesmo deles, então por que me importar vou, pensavam uns e outros. Mas
como tudo isso começou?, perguntou um morador. Então, o velho da casa 2A
laranja, da sua varanda, a fumar seu cigarro, tudo contou. Ele falava que, no dia
anterior caiu do céu um guarda-chuva e dele vinha preso pelo rabo um gato
preto, caiu beeeeem lento, ele contava. Vizinhos de suas janelas ouviam, outros
na calçada, a olhar para cima para a varanda do velho, outros ainda estavam em
outras varandas, quase sem visão do velho, apenas escutando do ocorrido. A
vila toda era ouvidos, todos estavam bem atentos a esse fato que em vila
nenhuma aconteceu, uau, mas que caso. Uma pontada de orgulho em cada um
crescia, mesmo que disfarçadamente, era um fato especial, convenhamos, que
gato cai do céu preso e num guarda-chuva? Ora, nenhum. E os moradores, por
breves minutos, ficaram em silêncio, ainda a digerir a história que o velho da
casa 2A laranja contara. Em nenhum momento, dúvida passou pela cabeça de
cada um, até mesmo dos mais céticos, neste caso do moço de óculos grande, que
resmungou, é uma invasão, escutem bem o que eu digo, eles querem dominar
tudo.
E aos poucos, um por um dos moradores foram entrando em suas casas.
Alguns já a esperar encontrar algum gato naquela mesma noite, mas todos
ficaram frustrados, gato nenhum apareceu, nem mesmo na madrugada para
outra noite de festa. Quisera o mesmo céu que trouxe o gato do guarda-chuva
permitisseque os demais da vila não saíssem, pediam os moradores. E naquela
mesma manhã, depois de assustar a vizinha do bebê com o gato nas costas, o
velho da casa 2A laranja entrou em sua residência. Quem detalhista fosse, iria
estranhar que ele carregava consigo um grande saco de pães e outra sacola de
produtos, algo que nunca em toda a existência do velho ali na vila, e olha que
eram anos e anos, acontecera. Mas, aquele não era um dia qualquer, o velho
tirou do saco, seu pão do seu café da manhã e depois pegou outro pão, colocou
em uma tigela e molhou com leite, e para ele que não era, pois leite ele não
tomava. Depositou a tigela com o pão molhado com leite a um canto e disse,
apareça, você deve estar com fome. Da porta da cozinha, apareceu um
majestoso e belo gato preto, com brilho nos pelos, olhos penetrantes. Foi direto
à tigela com a comida que o velho acabara de colocar. Imagino que cair do céu
deu muita fome, não é mesmo?

E , como se adaptar, ao menos nos primeiros dias, a algo que agora era
diferente? Por mais que donos os gatos não tivessem, lá na vila agora
eles estavam, e em todas as partes. Mas parecia que a vila fora formada
para eles e eles nascidos para a vila, apenas o tempo estava a esperar o
momento certo que as histórias dos dois se juntassem e o momento aconteceu,
depois que do céu um gato chegou. E ao longo dos dias, andava gato pelas
janelas, pulava gato pelos telhados, miava gato pela rua, rolava gato pelos
corredores de dentro das casas, às vezes sendo expulso, às vezes acariciado,
dependia do humor do morador da casa visitada. E misturados todos ficaram, a
vila logo ficou conhecida como a vila dos gatos, era lá que os encontrariam, lá
que ficavam a saber da história do gato que do céu veio por um guarda-chuva
(claro, contado pelo velho da casa 2A laranja), e os dias se passaram assim, em
rápida adaptação.
Comer, claro, os gatos precisavam, para isso, ora eles apareciam nas
janelas das cozinhas, onde cozinhar alguém estava, ora miavam em alguma
sacada para comida receber. Mas acontece que, alguém da vila, um morador da
casa 3 amarela, com dó dos gatos ficou, pobrezinhos, com fome devem estar,
comidinhas para eles vou dar. O morador da casa 3 amarela, era um rapaz
surdo/mudo, baixinho e magro, morava com a avó na vila. Na primeira semana
em que lá os gatos chegaram, o rapaz surdo/mudo foi ao petshop, comprara um
enorme saco de ração de gatos, mas antes, olhou para cada tipo de ração que o
estabelecimento oferecia, chegou a experimentar e comer algumas, sim, ele
pensou, essa é muito saborosa, é essa que vou levar, e fez um gesto para a moça
do petshop que era aquela que ia comprar.
Chegou à vila com uma grande sacola com ração felina. Ainda cedo era, a
rua da vila nenhum gato se via. Olhou para as varandas das casas, nenhum
também. Será que no telhado estão?, pensou. Foi para uma viela entre algumas
casas da vila, lá nos fundos eles deveriam estar. A vila estava silenciosa, ou seus
moradores no trabalho estavam ou em sesta depois do almoço nas suas casas. O
rapaz mudo/surdo encostou-se em umagrade de ferro que havia em um baixo
muro de uma das casas, mexeu a sacola com ração, arrastou o pé no chão, huf,
suspirou, cadê esses gatinhos?
Mas ali, atrás de um vaso de planta da mesma casa, onde o rapaz
surdo/mudo estava escorado na grade, observava um gatinho siamês,
queatento estava, cada movimento do rapaz observava. Balançou um pouco o
rabo e atentou sua orelha, mirou seu felino olhar para a sacola na mão do rapaz,
hummmm, que aquilo cheira comidinha. O gato saiu de trás do vaso de plantas,
se aproximou lentamente do rapaz surdo/mudo e miou timidamente. O rapaz,
surpreso, olhou para trás, os dois, o gato e ele, estavam separados pela grade de
ferro da casa, um do lado de fora, o outro para dentro. O rapaz fez um gesto com
a cabeça e sorriu, olá, senhor gatinho, pensou, e o gato em resposta inclinou sua
cabeça com dúvidas. Então, o humano acenou com a mão, fez outro gesto e
depois outro. Para o felino, aquilo sentido não fazia, afinal, porque gritando não
estava como os outros humanos, este ao contrário, calado estava e gesticulava
por demais. O felino inclinou um pouco mais a cabeça. Será que aqueles gestos
do humano eram ameaças de agressão? Suas patinhas deram uns passos para
trás, melhor se prevenir. Ele, então, viu o humano fazer outro gesto: apontou o
dedo para ele próprio, depois fez um movimento circular ao lado do peito e
depois apontou para ele, o gatinho, e este deu um pulo maior para trás,
miaaaaaau, socorro.
Agora, mais distantes eles estavam um do outro, invadir a casa o rapaz
surdo/mudo não podia. O gato ainda atento estava a ele. O que estava a planejar
esse humano silencioso, por que com ele não gritava como qualquer outro?
Esses seus movimentos muito me assustam, pensava o felino, será que de
ameaças o são?
E lá ficaram o rapaz surdo/mudo e o gato, um a observar o outro, um
calado, o outro a miar, um animado com tudo, e o outro a tudo duvidar. Mas
uma carta na manga aquele humano tinha, abriu a sacola que nas mãos tinha e
de lá, tirou bolinhas de ração, jogou no chão do lado de dentro da grade da casa
e fez outro gesto: moveu os dedos perto da boca, venha, coma.O gato, ainda
cuidadoso, observou o novo gesto do humano, ao menos para ele não apontava
ou ameaçava, ao contrário, esse gesto era para o próprio humano. Mais seguro,
o gato se aproximou, com cuidado, com medinho, passo por passo, patinha por
patinha, miauuuu, comida. Correu para perto da ração, comeu e comeu, relaxou
e baixou seu corpo.
Enquanto mastigava, o gato olhou para o humano, ele fez outro gesto: com
a mão direita, ergueu todos os dedos e depois fez sinal de positivo com o dedão,
muito bem. Então o felino volto a comer, hummm, que comidinha gostosa.
Comia como um louco faminto, quase a engasgar, e nhancnhancnhanc, não
parava de colocar mais ração na boquinha. Em pouco tempo, comeu tudo que o
humano tinha lhe dado, mas fominha ainda tinha, miou pidão, só mais um
pouco, um pouquinho só. O rapaz mirou a boquinha do gato, sabia que miando
estava, pedindo mais comida talvez, e ele fez outro gesto: com as duas mãos, os
dois dedos rígidos, ele fez um gesto rápido de cima para baixo, depois, deu uns
toques no peito esquerdo com a mão direita, em seguida, com a mesma mão,
levou em direção ao gatinho, apontando e finalizou balançando as mãos e
fazendo semblante de dúvida e pergunta. Ele perguntava ao gatinho, e seus
amigos, cadê? O gato, que o encarava, mas para que ele lhe desse mais comida,
inclinou novamente a cabeça, não tinha mais medo dos gestos do humano,
mesmo ainda a achar estranho que gritos como outro ele não fazia. Mas, alguma
coisa naquele momento fez com que o gato entendesse a gesticulação do
humano. O felino olhou para um telhado, miou, depois olhou para um canto da
casa onde ele estava e miou de novo. Logo, dois, três gatos ali apareceram. Os
que ali vinham, foram em direção ao humano, este, sorrindo e encantado,
apenas apontava para cada um e depois levava a mão para seu próprio rosto
animado, você, você, você e você, bonitos.
Os gatos olhavam o rapaz, e ficavam confusos com aquelas gesticulações
todas, mais do que o normal de um humano, mas ali ficaram, dando-lhe
confiança. O rapaz surdo/mudo colocou a mão na sacola de ração e tirou um
punhado de comidinha, jogou no chão do lado de dentro da grade, e depois
colocou um pouco mais e um pouco mais. Logo, os gatos que ali estavam
começaram a comer, um ou outro deram um miado, e mais outro gato apareceu,
outro miado e outros três gatos ali surgiram. O rapaz estava cercado de gatos,
que apareciam por toda parte da vila. E ele sorria feliz, que maravilha, que
gatinhos fominhas, tomem mais comida, tomem.
Durante todo tempo, o rapaz surdo/mudo espalhava ração pela vila, a
cada dois dias junto com potinhos de água, mas a maioria das vezes era ali,
naquela casa dos fundos, ao lado da grade de ferro. E ali, os gatinhos almoçavam
junto com o humano que nada falava, apenas movimentava as mãos e fazia
caras e caretas.

D e gatos espalhados, era um bocado ali, outro bocado aqui, em todas as


partes, e pelos soltos não se viam, nas roupas não pegavam, atchim de
alergia tão pouco se ouvia, na vila esses problemas felinos não se
tinham. E aquele xixizinho e aquele cocozinho? Ora, desses nenhum cheirinho
se sentia, se cá perguntassem, iam falar que das necessidades cá eles não fazem,
ou se fazem, cheiro nenhum tem, vai entender.
Aos poucos, cada gatinho fora arrumando seu lugar preferido, se ali no
telhado de uma casa ou de outra, ou se na varada daquela casa ou daquela
outra, ou ainda preferia ficar ao lado de um grande abacateiro que ficava no
meio da calçada de um dos lados da vila, onde, vez ou outra, caia de lá um
maduro abacate, que se esparramava no chão e de casa em casa se ouvia o pofff,
mais um abacate espatifou-se. Mas um gato branco tinha por lugar favorito a
janela do terceiro andar da casa 7 verde. Lá, ele passava quase que o dia todo,
saía apenas para comer um pouco daquela ração que o rapaz surdo/mudo na
outra casa deixava. A dona da casa, onde o gato ficava na janela nada dizia,
acostumara-se rápido com ele ali, é um bom gato, vocês têm que ver, dizia ela
para a vizinhança.
E tão acostumada ficou a dona da casa do terceiro andar da casa 7 verde
com o gato sempre à sua janela, que era como se de lá ele fizesse parte, tal qual
um felpudo e miante enfeite. Quem passava por lá e erguia as vistas para aquela
janela, via o gato lá, deitado, sempre a espiar e espiar, a tudo observar, a tudo
analisar, era um gato muito olheiro, o vejam ali novamente, diziam. Todas as
manhãs era a rotina; às 9 horas ia a dona da casa do terceiro andar a abrir a
janela dupla de madeira e esperar que o gato lá chegasse para ficar até dar
aquele momento de sua fominha e de lá, sair para comer algo. Não se demorava
muito, logo aparecia o gato que na janela se acomodava, esparramava seu
gordinho corpo e lá ficava por horas, a tudo olhar, sem ser incomodado, nem
mesmo pela dona da casa, queda janela tirou as plantinhas para não atrapalhar
o bichano.
Mas aquela mulher era tão apegada as suas coisas, a tudo ela dava-lhe seu
toque pessoal, se caso plantinhas arranjasse, nos potinhos roupinhas ia fazer, se
um jarro na estante colocasse, esse jarro logo um vestidinho de crochê ou umas
pinceladas de tinta ia ganhar, se um puff arrumava, este logo ganharia uma
carinha com bocas e olhos de algum material reciclado. E com aquele gatinho
não fora diferente; uma manhã, assim que na janela o animal chegou, a dona da
casa logo dele se aproximou. O gato, sem medo, permitiu a aproximação, tinha
preguiça, miau, que preguiça. Com muita praticidade, como se vestir roupinhas
nas coisas fosse sua maior especialidade, em pouco tempo a dona da casa
colocou no gatinho uma roupinha, era uma camiseta com as estampas do país,
ora, vejam só, que primor, que primor, tão fofo ficou, dava pulinhos de alegria a
colocar de volta o gato na janela. O gato mexeu a pata dianteira para lá, a outra
para cá, balançou a pata traseira um pouco, chacoalhou o corpinho, estranhou
um pouco aquela vestimenta, afinal gato de rua sempre fora, não estava
acostumado com a moda felina, uma roupinha nunca usara, mas logo gostou da
ideia, era tudo macio, gostoso, quentinho, parecia até que estava vestindo outro
gato de tão fofinho que era, voltou a deitar na janela, mas agora era o gato de
camiseta deitado na janela, e assim ficou conhecido. Você viu o gato de camiseta
deitado na janela?, iam perguntar, e quem dele não conhecia, era levado até em
frente a casa 7 verde e de lá era possível sempre ver o gato de camiseta ali na
janela.
E que não pense que era apenas uma roupinha que o gato tinha, não, isso
nunca, a dona da casa fizera muitas, todos do mesmo modelo, por isso que,
quem não soubesse dessa informação, achava que apenas uma camiseta o gato
tinha, mas a cada três dias a dona da casa mudava de peça no felino. E lá na
janela ele ficava, tal qual uma peça de enfeite, era como se ali era seu lugar, e
todos estranhavam quando ali não estava, deve estar comendo, diziam, ou
então, por onde será que anda o gato de camiseta, será que adoeceu? Mas não,
sempre que ali não estava, ou encontrava-se em algum telhado a conviver com
os demais gatos, ou dentro da casa estava, mas bagunçar ele nunca o fazia, era
um gato até que por comportado, e às vezes, mesmo ali dentro da casa, a dona
não reparava, de tanto que silencioso ele era.
Mas ali, naquela janela, da casa 7 verde, o gato tudo espiava. Até mesmo
em tempos de frio ali ficava, afinal agasalhado estava. E sua visão era
privilegiada, as coisas se passavam diante de seus felinos olhos. Ali, viu ao
menos três carros serem amassados quando estavam estacionados embaixo do
abacateiro e cair com uma forte força um abacate, acionando o alarme, e lá
vinham seus motoristas a correr, achando que era roubo, mas quando no local
chegavam, ficavam ainda mais chocados com o irônico destino que em seus
carros, jogou um abacate e amassou a carcaça do automóvel. Ainda na janela, o
gato de camiseta viu as traições humanas, tudo ali lhe era estranho, não
entendia essa mania dos humanos de ser de uma pessoa e por segredos ficar
com outras, miou confuso, ora, nós gatos gostamos de nós outros gatos, e
carinhos fazemos em todos, e por que esses humanos se limitam a uma pessoa
só? Na janela, lhe era estranho essa mania humana, mas, ainda mais estranho,
era esse segredo de com outra pessoa ficar. Tudo isso quando viu um senhor a
conversar de mansinho com outras duas moças jovens, trocavam risadas
maliciosas, mãos bobas, e as meninas sorriam tímidas, com vontades proibidas,
que galanteador barato, miava. O senhor, então, levou as duas moças para seu
quarto, a patroa hoje não está, agora trabalha, disse.O gato de camiseta bufou
indiferente.Ele também presenciou descobertas confusas das crianças,
meninotes que descobriam os prazeres escondidos de seus corpos, ali num vão
entre uma casa e outra, quase que por escondidos, os pecados repreendidos
pela sociedade eram postos em prática, um crime tão natural quando os
próprios instintos do felino que daquilo também achava confuso, ora, para que
desses segredos, miou questionador o gato.
Àtarde quase ao seu fim chegava, alguns cochilos aqui, outro acolá dava o
gato, preguiça gostosa de fim de tarde. A noite logo chegaria, a dona da casa iria
fechar a janela, cabia ao gato escolher se fora ou dentro da casa iria ficar, não
tinha interferências pela dona. Naquele dia ele optou por ficar, assim que ela
chegasse para fechar a janela, ele pularia para dentro de casa. Mas antes, viu ali
da janela uma moça chegar, estava completamente alterada, provável que com
algum tipo de droga, gritava e gritava, o gato miou desafiador. A moça alterada
tirara a tranqüilidade da vizinhança, seus gritos eram ouvidos de toda parte,
logo, não apenas o gato de camiseta presenciava tudo aquilo, mas outros gatos
ali apareceram, uns nos telhados, outros nas varandas, que dividiam espaço
com os moradores das casas que também queriam saber e ver o que se passava
com toda aquela gritaria. A moça gritava e gritava, minhas roupas, roubaram
minhas roupas. Mas ninguém sabia ao certo o que ela queria dizer com aquela
acusação ou para quem se dirigia. O que o gato sabia era que ela morava só,
quem havia de roubar suas roupas? Minhas roupas, quero minhas roupas,
continuava gritando. Os moradores, nada fizeram, apenas olhavam a cena, uns
com desdém e deboche, outros com pena e alguns com desprezo e nojo. Vocês
querem que eu saiapara a rua pelada, é?! E aos poucos, os moradores foram
entrando em suas casas, sem nenhuma interferência, era algo costumeiro
aquela gritaria da moça alterada. Todos dormiram com os gritos dela
madrugada adentro, inclusive o gato de camiseta, que naquele momento dormia
ao lado de um abajur na sala da casa 7 verde no terceiro andar.

A li na casa 2B laranja, na parte do lado direito, morava uma mulher alta e


que sofria de obesidade. Morava sozinha, a família lhe pagava um quarto
naquela casa da vila. Talvez por todas as demais casas, se assim sua vida
lhe interessasse, ela era um pequeno mistério. Algumas bocas mais fofoqueiras,
diziam que a família não gostava dela, por ela ser obesa e viciada e preferiam
pagar um lugar para que ela morasse e a deixassem em paz. Mas o que era
sabido era seu grau de quase miséria em que vivia ali naquele quarto. Ali, nos
corredores daqueles lados da casa 2B laranja, um gatinho foi testemunha da
rápida estadia da mulher alta e obesa na vila, logo ela fora embora, os motivos
que deixemos para ela e sua consciência.
Houve uma manhã, essa sem sol, apenas de céu nublado, em que acordou
cedo a mulher alta e obesa, abriu a porta de madeira velha de seu quarto, ali
dentro, os detalhes antigos da arquitetura colonial que exibiam as casas na
parte de fora não mais existiam, eram paredes de um branco novo, de tintas e
gessos toscos a cobrir mais de 100 anos de história. O silêncio era
predominante, a pessoa do quarto ao lado supostamente ainda dormia, ou se
quer viera para casa na última noite. O piso de madeira denunciava seus
pesados passos e, assim que se aproximou da velha escada, também de madeira
antiga, a mulher alta e obesa quase caiu para trás, tamanho foi o susto que teve;
ali, sorrateiro e silencioso, na escada, havia um gatinho tigrado, bege com cinza,
de orelhas pontudas. Ele certamente passara a noite ali, nos corredores dos
quartos da casa 2B laranja. Não conseguira se esconder a tempo, a mulher alta e
obesa chegou e o pegou no flagra. Ele, desesperado, tentou subir as escadas
correndo, mas a madeira estava polida e lisa, fazendo com que ele ficasse
derrapando e não conseguisse subir nenhum degrau. E seu desespero era
grande, queria sair dali, mas o susto da mulher era ainda maior, ainda não se
recuperava. Era o gato derrapando no meio da escada, querendo subir e a
mulher alta e obesa com a mão no coração sem conseguir descer. Com muitas
patinhas escorregando e unhas a arranhar, o gato conseguiu, enfim, dar um
impulso e do lugar pular. Correu para cima da escada, passou tão rápido pela
mulher alta e obesa como um raio. A mulher, depois de se recompor um pouco e
entender o que se passava, logo pensou que não é todo dia que há um gato
derrapando na escada de sua casa nas primeiras horas da manhã.Olhou para o
lado, sabia que o gato ali estava, ele sem dúvida entrara pelas portas dos fundos
que fica aberta o dia e a noite toda. Ela, então, caminhou até o outro lado do
corredor e lá estava ele a um canto, suspirando, cansado, assustado.
A mulher alta e obesa sorriu, mas vejam só, um ilustre visitante em minha
casa, ela disse, mas venha, não te assuste. Mas o gatinho ainda estava em modo
de defesa, com o corpo baixo, um pouco arisco, a encarar a mulher à sua frente.
Você é um belo gato abissínio da Etiópia, falou a mulher alta e obesa, ora, mas
que honra a minha poder ver um de sua raça assim pertinho e na minha casa
ainda. Ela se abaixou, levou sua mão com a palma virada para cima e aproximou
do gato que, aos poucos, foi lhe dando a confiança pedida. Logo, ela estava
acariciando o queixo dele, danado você, não é mesmo, e confesso que um tanto
veloz para sua espécie. Mesmo ali, em uma situação miserável, em um quarto
quase sem recursos, a mulher alta e obesa era de uma inteligência única, sábia,
falava muito bem e parecia que a tudo tinha suas faculdades, as situações são
tristezas e injustiças desgovernadas, sofremos nós todos com isso.
A mulher alta e obesa queria se aproximar mais do gatinho, mas sabia ela
que, caso isso fizesse, dificuldades teria em se levantar, os joelhos lhe eram
inimigos. Que destinos são esses os nossos, não é mesmo, meu amigo gato, falou
a mulher rindo e olhando o gatinho, veja só você aí ao canto encolhido e
amedrontado e eu aqui em pé e frágil. Mas ali na parede ela se encostou, o gato
aos poucos aceitava sua presença ali, seria uma chance dela também aceitar que
ele, o gato, percorresse aquele corredor tranqüilo e com total licença. Eu nunca
acreditei em fantasmas, disse a mulher para o gato, mas estava já a acreditar
que os barulhos que a noite ouvia eram de um, mas não passava de um gatinho,
não é mesmo? O gato balançou o rabo. Ela ainda deu umas três ou quatro frases
para o gato, mas tinha que sair.
Ao sair, a mulher alta e obesa encontrou, como de costume, o velho da
casa 2A laranja, ele morava na parte da esquerda a casa. Curiosa, a mulher
perguntou sobre o gato preto que caiu do céu, por onde ele anda, velho?
Suspirando, sem olhar a mulher na face, ele disse que por ali ele já não andava
mais, talvez assim fosse melhor, privacidade ele aqui não teria, completou. Ela
então olhou curiosa para o velho da casa 2A laranja, velho, velho, ela disse, não
queira dar de sábio da vila, que gatos não fogem assim tão rápidos dos lugares
que chegam, ainda mais se comida aqui tem. Arregalando os olhos, se
levantando da sua cadeira na varanda, o velho gritou com ira, mas vejam só, que
petulância, cale-se, mulher, que duvidar de mim é coisa que nunca se sucedeu!
Duvida de mim, por causa de um gato? Ele, então, caminhou para dentro de
casa, porém, antes virou a cabeça e falou alto, caso duvide, entre aqui em casa e
veja você mesmo que duvida que estou a esconder o gato, encontrará aqui
apenas o guarda-chuva que do céu ele veio preso, que é a única coisa que
guardo do ocorrido. Bateu a porta atrás dele e entrou em casa. A mulher alta e
obesa deu de ombros, ora, se o gato ali não mais estava, tudo bem. Saiu da vila,
para onde ela ia, quase ninguém sabia, mas quando voltava era sempre algo
curioso para alguns e disso muito se falavam por ali, a mulher do bebê, que na
calçada estava, olhava com olhar torto para a mulher alta e obesa que passava,
um homem de perna engessada, que na varanda da casa 5 azul estava
repousando, também a olhava, lá vai a viciada, ele falou, e a mulher do bebê, na
calçada, retribuiu o comentário falando, daqui a pouco chega toda horrorosa,
deus que me livre. E da janela do seu quarto, no segundo andar da casa 7 verde,
a mulher corpulenta fez cara de nojo, cuspiu lá para baixo no chão, isso que é
falta de vergonha na cara, ela vociferou. Benzeu-se a mulher do bebê, que pegou
seu filho nos braços e encaminhou para sua casa, eu vou é levar meu filho pra
casa pra ele não ver esses maus exemplos.
E, se das glórias humanas os gatos ali eram testemunhas, de suas
degradações e misérias também o eram. Que de tudo viam, até o mais
animalesco e de instintos selvagens dos homens eram possíveis ali ver, e isso
ficava a questionar se tais situações com os gatos, pobres e vagabundos animais,
se igualariam. Se dessas coisas os gatos pensavam, ali na casa 2 laranja, ao lado
dos quartos, ficou o gatinho abissínio nos seus corredores, de um lado para o
outro, o dia todo, até leve fome teve, mas dali não saiu, ali nada pediu, apenas de
um morador ali e outro acolá um pouco sumiu, mas esperou. E a noite, quando
quase toda a vila já dormia, e ali, naquele lado da casa 2 laranja o silêncio era
grande, o barulho da porta de entrada o gato ouviu, mas algo não parecia
normal, o gatinho sabia que todo humano, ao abrir aquela porta de entrada do
andar debaixo, logo subiam as escadas, mas agora a porta só fora aberta. Ouviu
um passo, estava pesado, culpado. O gato, silenciosamente, desceu alguns
degraus até que sua visão mirasse para a porta. E, ali, estava a mulher alta e
obesa, agarrada a maçaneta, quase a não suportar seu próprio corpo, suas
pernas tais quais colunas fracas. Ela levantou a cabeça com esforço, seus olhos
vermelhos estavam, sua boca babava. Abi...bissí... nio, gaguejou e em seguida
soluçou; era o álcool que invadia seu corpo, a controlava, num estado de
espírito dominador, cruel e mesquinho. Ela, enfim, conseguiu ficar firme, mas
bamboleava para lá e para cá, fechou a porta de forma desengonçada e sem
jeito, subir as escadas era a subida da maior humilhação, de seu estado humano
mais deplorável, algo nunca presenciado pelogatinho, era a própria figura da
decadência humana, nem sequer conseguira subir dois degraus, caiu ali mesmo,
batendo forte seu joelho na madeira, o gatinho ali tudo olhava, estava em um
patamar mais elevado que ela, nos degraus acima, olhava de baixo, quieto,
atento, mas sem qualquer julgamento, ora, os humanos são todos assim, essa
está na sua mais pura verdade, os demais apenas mascarados estão. Ela,
ajoelhada, de quatro, rastejando, subia as escadas, às vezes se deixava levar pela
leveza do álcool no cérebro e o peso do corpo já entregue. Chegara à metade da
escada e o gato subiu mais, miau. A mulher alta e obesa olhou para cima, viu
novamente o gato, seu corpo pesado não a permitia se levantar e ficar a altura
do animal, ela esticou a mão que tremia, e ali, era a mais baixa das espécies
pedindo socorro para um felino sujo e possivelmente faminto, ela babava e
pronunciava sons incompreensíveis. Já o gato, miava em um som audível. Você...
você... é um gato..., ela tentava falar.
Aos poucos, ela conseguiu subir toda a escada, e o gato tudo observava.
Tentou mais uma vez ficar em pé e, com dificuldade conseguiu.O felino teve que
se esquivar um pouco, tinha medo que nele a grande mulher caísse. E, se
segurando nas paredes, indo para lá e para cá cambaleante, tonta e sem
coragem, tentou chegar a seu quarto. O gato ficou para trás, mas ainda a
acompanhava. Ele não conseguia julgar a degradação do homem, se ali outra
pessoa em sãestado das normalidades que dizem ser certas chegasse, para ele
não faria diferença. Talvez ali, suja, babada, bêbada e humilhada, fosse a
verdadeira face da mulher alta e obesa. Ele miou e foi atrás de comida, tinha
fome.

D e instintos nenhum animal está livre, disso nem nossos gatinhos. Numa
noite, aquelas em que o céu limpo estava, as estrelas brilhavam forte, a
vila quase toda dormia, uma janela ou outra estavam com as luzes
acesas, mas, mais acesos estavam os olhos de muitos gatos. Nos telhados das
casas ao fundo do lado esquerdo da vila, miavam alguns gatos, era um gatês
danado, gatinhos indo e vindo, estavam agitados. Alguns moradores, de seus
quartos, reclamavam um pouco, não julguemos, afinal, há dias em que paz
queremos. Mas das agonias dos homens os gatos, ao menos naquele
momento,eram indiferentes, estavam apenas sendo gatos. Dos felinos, as
fêmeas namoradeiras, os machos namoradores, todos curtiam, se misturando
ou não, a isso nós nada temos a ver, os namoros são motivos particulares e cada
um sabe do seu, é como quiser, do jeito que quiser, mas claro que, vez ou outra,
as festas fora de casa são lá necessárias.Todos os gatos da vila ficaram a saber
que na rua do outro lado, uma tal de travessa dos desenhistas, iria rolar uma
festança e lá eles foram, outros gatos, de outras vilas, de outras latas de lixo, de
outras casas bem quentinhas, também foram para lá. Logo, a travessa dos
desenhistas cheia ficou, a grande festa rolou. E, para os casais que queriam suas
privacidades preservadas, na vila ficaram, a noite toda namoraram. Então, que
daquela noite fora feita uma nova festa, uma grande nova festa felina, e de
galanteios eles, bichanos, também viviam.Seus truques de conquistas eram
realmente bons, muito bons, mas que belo bigode felino a senhorita tem, miava
uma ou um gatinho. Era, são seus amarelos olhos de gato, respondia o outro em
galanteios. Em outro telhado, ali mesmo na vila dos gatos, já que na travessa dos
desenhistas uma grande festa rolava, namoradores alguns gatos estavam e seus
galanteios continuaram, dizia outro gato, se nossa espécie em extinção
estivesse, eu teria todos os gatinhos do mundo com você até que saíssemos
dessa lista de extinção. Já outros, mais animadinhos, miavam sedutores,
adoraria sentir sua áspera língua em todos os meus pelos.
Mas ali no terceiro andar da casa 7 verde, uma luz de um quarto acesa
estava, espiava tudo muito atento, ouvia a tudo no mais leve sussurro das noites
daquela cidade, os miados são bem elaborados, suspirava e falava o rapaz de
óculos grande no quarto. Pelas finas frestas da sua janela velha de madeira, ele
observava, não conseguia ver nenhum gato, esses danados são muito ágeis, se
escondem como ninguém, resmungava. Mas seus miados ele ouvia, semicerrava
os olhos, atentava suas orelhas, ora, a mim vocês não enganam, disfarçam esses
miados selvagens para que todos pensem que namorando estão, mas disso sei
que não, puro disfarce, puro disfarce, mas que audácia desses peludos fedidos.
Então, ele abriu com força sua janela, colocou a cabeça para fora e gritou, eu sei,
estão me ouvindo, sei o que fazem. E, logo, em seguida fechou a mesma janela,
batendo-a forte. Eu sei que doido você está, seu moleque, o rapaz de óculos
grande ouviu da vizinha de baixo, vá gritar e assustar tua vovozinha, que eu
quase que morro dos nervos agora. O rapaz voltou a abrir sua janela, olhou para
baixo e gritou, cuide da tua vida, que estou eu a cuidar da minha e me preparar
para coisas obscuras que virão. Disso, saiu da sua janela, a vizinha de baixo,
olhou para cima e falou, obscuro vai ficar teu destino se não parar de gritar,
estou vendo minha novela, e logo em seguida ela entrou e fechou sua janela. O
rapaz de óculos grande voltou a espiar pelas frestas da janela, novela, hum,
novela, isso seus humanos bobos, percam tempo com suas novelas, enquanto
esses gatos malditos estão todos com planos bem avançados e inteligentes para
dominar o mundo, hummmm...
E foi assim que, durante toda a noite, chegando a madrugada, ali nas
frestas da velha janela ficou o garoto de óculos grande, quieto, suspirando
fundo, com seus pensamentos rodopiando, indo e vindo a todo vapor, que não o
deixava numa leseira de jeito nenhum, muito pelo contrário, seu cérebro criava
milhares de ideias, essas sobre aqueles gatos que ali estavam, que ali na vila
vieram, mas que plano perfeito, ele falava baixinho, é brilhante, ah, malditos
bichanos, genial, genial. Ali, ficou toda a noite e madrugada, o sol nascia lento e
suavemente pelo horizonte, os olhos do rapaz de óculos grande estavam
ressecados e vermelhos, dormir não posso quando estão com um plano tão
grandioso no quintal de minha casa. Ele, então, viu um gatinho malhado indo
para a casa com comidinha que o rapaz mudo\surdo deixava. Vejam, o gato está
só, é uma ótima oportunidade. Ele desceu as escadas antigas da casa, estava
com presa, usava uma camiseta velha e amassada amarela e uma samba-canção,
era sua roupa de dormir e sequer tinha notado que ainda estava com aquelas
vestimentas. Chegou ali na casinha, onde o gatinho comia, sim, havia apenas um
ali. O rapaz de óculos grande se aproximou silencioso do bichano, nas pontas
dos pés. Mas se pelo instinto ou apenas classe, o gato já a muito havia notado a
presença, mas medo nenhum tinha, humano bobo. Vendo que, fugir o gatinho
não ia, o rapaz aproximou, dessa vez sem rodeios, baixou um pouco seu corpo, o
gatinho estava na grade de ferro da casa... os olhos vermelhos e secos do rapaz
estavam semicerrados, olhava atentamente o olhar amarelo e felino do bichano.
Eu sei, o rapaz disse, tão próximo sua face conseguia chegar do focinho do gato,
eu sei de tudo, sei dos seus planos de dominar o mundo, seus bichanos fedidos.
Miau, sussurrou tranquilo o gato, inclinando sua cabeça para a esquerda. O
rapaz estava respirando pesadamente, seus lábios estavam pressionados, não
me venha com charminho, que a mim vocês não enganam, ele disse e lhe
respondeu o gato, miau, dessa vez virando a cabeça para o lado direito.
O rapaz olhou para um lado e para o outro, claro que se certificando que
ali não poderia passar ninguém e, vendo que as sós com o gato ainda estava,
disse, vocês querem dominar o mundo e nos fazer de escravos, não é? Eu sei, eu
sei. O gato pulou da cerca de onde estava, pulou para os pés do rapaz que deu
um leve pulo, mas não saiu dali. O bichando começou a se esfregar nas pernas
do rapaz, ziguezagueando entre suas canelas. O rapaz de óculos grandes, então,
se afastou, já disse que não me venha com charminhos, que a mim não engana,
tudo é um plano, meu deus, um plano, que diabólico vocês são. Ele se abaixou,
queria chegar mais perto do gato de novo, o que há ai dentro de vocês, hein? Um
ET? Um robô ultramoderno? Não pode ser apenas seres peludos e fedidos. Mas
apenas, miau, respondeu o gato e voltou a tentar se esfregar no humano de
novo, mas este, esquivo, se afastou. Eu descobri o plano de vocês, o que vão
fazer comigo quando dominarem o mundo? Vão me fazer o maior humano
escravo? Mas bola nenhuma àquilo tudo o gato deu, saiu e pulou a cerca de ferro
da casinha e foi direto para a ração, ali encheu a barriga.
A observar ainda ficou o rapaz de óculos grande, hum, comportamento
estranho, será esta mais uma tática desses pulguentos quando alguém descobre
seus diabólicos planos? Quando já algum tempo ali estava, logo suas roupas
notara, meu deus, estou de pijamas. Correu para dentro da casa 7 verde, bateu a
porta da entrada, mas deu de cara com a vizinha de baixo. Ela estava com cara
fechada, parecia bem mal-humorada, não basta passar a noite gritando como
um cão selvagem, de dia anda pelado pela casa, ela disse. Pelado ainda não
estou, não percebe, ele retrucou, há mais homens pelados nas tuas novelas do
que eu. A vizinha de baixo arregalou os olhos, bufou de ira e entrou em seu
quarto. O garoto de óculos grande subiu de vagar as escadas, estava pensando,
como vou fazer para descobrir os planos desses gatos? Por que escolheram
nossa vila? E toda essa invasão deles, o que isso tudo significa? Entrou em seu
quarto cheio das perguntas, passou todo o dia a espiar por entre as fendas da
velha janela de madeira e não tirou as roupas de dormir.

M as nem de todas as coisas boas e felicidades podemos ser testemunhas.


Aconteceu ali na vila, uma fatalidade, nossa, que tristeza. Disso os
gatos também foram testemunhas, mas das tristezas dos homens eles
também se compadecem, os climas são todos iguais para todos os seres e todos
os universos. Era já sabido que o grande pé de abacate que ficava em frente a
casa 7 verde já amassara muitos carros, disso os moradores já atentos estavam,
e ali não mais estacionavam. Mas de transitar por debaixo da árvore é
impossível, vez ou outra por aqui alguém passa, nos dias de calor sua sombra é
muito bem-vinda, que delícia.
Estavam 3 crianças a brincar, ali, embaixo do pé de abacate. De gritos e
risos elas se divertiam. Um gato, ali ao lado, olhava a diversão das crianças, são
pequenos que precisam passar seus tempos. Na escada da casa da frente, outro
gato estava deitado e também olhava as crianças, a preguiça lhe deixava num
vai e vem de cochilos e atenção a brincadeira. E tantos outros gatos nos
telhados estavam, também, observando as crianças. Parecia que estavam
combinados, mas a ação dos pequenos lhe chamava a atenção de alguma forma.
Miau, um miou de um telhado, o que estava mais próximo da criança respondeu,
miau. Mas, era um miau triste, mais lento e calmo do que os miaus de costumes,
esses eram mais pálidos, se é que miados podem pálidos serem, eram miados
mais tristonhos, miau, falou um outro gatinho. Todavia, dos miados as crianças
não ligavam, estavam concentradas em suas traquinagens e, com os gatos já
estavam acostumadas.
As crianças brincavam com esses brinquedos modernos que inventam
para elas, gritos eufóricos e risadas são escutados, além de pequenas brigas, ora
são crianças, acontece. O gato que mais próximo estava, acompanhava com
olhar o brinquedo das crianças que ia e vinha, bem atento permanecia. Em um
momento, bem rápido, diga-se de passagem, quando o brinquedo chegava nas
mãos de uma das crianças, o gato deu um grande pulo, miaaauuuu, atacou o
brinquedo e ele, o gato e o brinquedo, caíram em cima da criança. As demais
gritaram, xingaram o gato, a criança que estava no chão e que fora atacada,
empurrou o felino e disse, seu gato doido, quer me matar. As outras crianças
expulsavam o gato com gritos e barulhos, doido, sai daqui. Vocês viram, ele
queria me matar, olha aqui, falou a criança atacada, mostrando um pequeno
arranhão que ficou na região do cotovelo, mas porque ralou no chão, quando
caiu. Uau, caramba, ficaram surpreso as demais crianças, vai ter que operar.
Porém, logo as crianças voltaram a brincar, das dores elas logo esquecem,
assim é melhor, as cicatrizes ficam abertas, por causa das memórias, mas nos
telhados e na escada da casa da frente, os gatos ainda observavam as crianças,
miau, miau, miau. Eram possíveis pedidos, lamentos, vontades. Dos costumes do
grande pé de abacate todos nós já conhecemos, a vila toda já conhece, até os
gatos já conhecem, e, de brincadeira em brincadeira, suas causas naturais não
podiam mudar, lá do alto, de um grosso galho do abacateiro, um abacate estava
a balançar. Miau, levantou-se o sonolento gato que estava na escada na casa da
frente. De risos e gritos, o último balanço deu o abacate, de repente, puf,
despencou-se do galho, caía numa grande velocidade até que, pooooc, caiu com
violência, a gravidade, tal qual ingrata eterna da terra, fez seu trabalho, mas o
fruto não caiu em um carro fazendo seu alarme soar, naquele dia caíra na
cabecinha de uma criança. Miau. Caiu desacordada a criança no chão, seu
cabelinho sujo com restos de abacate que espatifou-se em sua cabeça, e ao lado
o próprio abacate estatelado também no chão. Eitaaaaaa, gritaram as crianças,
olha lá, caiu um abacate na cabeça dele. A princípio, elas acharam que a outra
criança estava a brincar, que o desmaio era brincadeira, correram para perto do
corpinho abacatado no chão. Será que ele morreu, quis saber uma das crianças
em volta. A outra, tremendo, falou, temos que falar para a mãe dele. Está louco,
outra criança falou empurrado a outra, se ela ver que um abacate caiu na cabeça
dele, ele apanha.
Aos poucos, mais gatos apareceram no telhado, outros pela rua, nas
janelas, o gato de camiseta miava em sua janela, o gato abissínio também
apareceu, dois gatos negros surgiram. Todos olhavam a criança caída embaixo
do abacateiro, com as demais em sua volta. Nessa hora, ia passando a mulher
alta e obesa, estava levemente embriagada, cambaleava um pouco, mas estava
com suas ideias em ordens. Uma criança gritou, moça, moça, vem aqui, acho que
ele morreu. Rindo e com dificuldade em ir até as crianças, a mulher alta e obesa
respondeu, morreu o que, crianças, o que aprontam dessa vez? As crianças se
afastaram e a visão do menino no chão chegou até a mulher. Ainda rindo, ela
falou, e o que houve que ele morreu? Disso todas as crianças falaram ao mesmo
tempo, uma confusão só, calma, calma, apenas um fala. Caiu o abacate na cabeça
dele, enfim uma das crianças falou. Nisso, a mulher alta e obesa percebeu a
sujeira de abacate na cabeça do menino no chão e, ao seu lado o fruto
espatifado. Nossa, isso é sério? Outra criança disse que era bem sério, ele
morreu, não morreu? Apareceu a vizinha do bebê, o que você está fazendo com
essas crianças, ela perguntou olhando feio para a mulher alta e obesa. Esta,
irônica, respondeu, eu nada, já este abacate machucou um. Arregalando os olhos
e correndo para as crianças, a vizinha do bebê exclamou, meu sagrado coração,
o que aconteceu? Ele morreu, falou uma criança. A vizinha do bebê pediu para
que chamasse uma ambulância, ele está desacordado.
Vendo toda a “muvuca” das crianças e da vizinha do bebê, logo apareceu o
rapaz de óculos grande, o que agora esses gatos aprontaram? Logo em seguida,
apareceu a vizinha de baixo, depois o velho da casa 2A laranja. O homem da
perna engessada, logo apareceu na sua varanda na casa 5 azul, o que acontece?
Gritando, a vizinha do bebê disse, o abacate caiu na cabeça do menino, ele está
desmaiado, porque tu não vieste ajudar, homem? E lá posso eu acudir alguém
com essa perna desmantelada, vizinha, gritou em resposta o homem de perna
engessada. O velho da casa 2A laranja pediu para que parassem aquela
discussão boba, alguém já chamou a ambulância? Mas ambulância ninguém
havia chamado, as curiosidades e o caos eram maiores que qualquer fatalidade.
Uma mulher saiu gritando da casa 1A cinza, meu deus, meu filho, meu filho. Era
uma mulher jovem, chegou perto do corpinho do seu filho que ainda estava no
chão, o pegou no colo, acorda, querido, o que aconteceu? Da janela do seu
quarto, o rapaz de óculos grande falou, coisas desses gatos, escutem o que estou
falando, coisas desses gatos. Ora não fale besteira, jovem, falou o velho da casa
2A laranja, e, por acaso, gatos jogam abacates em cabeças de crianças? Esses
sim, fazem bem mais que isso.
Mas alguém chamou a ambulância, alguns minutos ela chegou, os
paramédicos fizeram os primeiros socorros, o que houve, perguntou um. Nisso,
a mulher alta e obesa falou, caiu um abacate na cabeça dele. A vizinha do bebê
falou, cale a boca, sua bêbada, deixe que os médicos façam seu trabalho. Sim, um
abacate caiu na cabeça dele, falaram as crianças que ali ainda estavam e que
testemunhas eram, ele morreu, não morreu, senhores médicos?
Pelas caras dos paramédicos todos notaram que coisa boa ali não tinha, algo
sério aconteceu, precisamos levar essa criança para o hospital o mais rápido
possível. E assim foi feito, colocaram o corpinho da criança na ambulância, a
mãe foi também, chorando, gritando, e toda a vila acompanhava a ambulância
dali sair.
Dos tempos a lentidão toma conta, quando se esperar por más notícias é
tomado. A tarde passará lenta e quente, a vila toda esperava alguma novidade
sobre o garoto que fora atingido pelo abacate, as crianças que presenciaram não
paravam de perguntar para seus pais o que iria acontecer, ele vai morrer? Os
gatos, nos telhados, nas calçadas, nos corredores das antigas casas, miavam,
sussurrava, entre si. O rapaz de óculos grande encontrou um desses gatos em
seu corredor, eu sei que vocês estão por trás disso tudo, seus peludos fedidos,
foram vocês, não foram, ele falou baixinho, se abaixando para chegar mais perto
do animal. Este, apenas respondeu, miau. Da janela do seu quarto, o moço
surdo/mudo olhou para um gatinho em outra janela, fez um gesto com seu
polegar, o encostou em um de seus olhos e foi descendo até perto do queixo,
com uma expressão de lamento, estou triste. Na sacada da casa 5 azul branca, o
homem da perna engessada, comentava consigo mesmo, ao menos nenhum
abacate caiu em minha perna.
E, logo, veio a notícia que todos esperavam, mesmo que triste: a criança
havia morrido. Naquela noite, toda a vila ficou silêncio, alguns moradores foram
dar seus pêsames para a mãe da criança, era tão jovem, sinto muito. Alguns,
indignados, se questionavam como um abacate poderia matar alguém, isso não
existe, nunca se ouviu na história tal caso. E da sua janela, gritava o rapaz de
óculos grandes, foram os gatos, acreditem foram os gatos. Vamos cortar o pé de
abacate agora, bracejavam alguns, sim, vamos cortar até a raiz. Logo,
apareceram homens com facões e machadinhos, não há espaço aqui para uma
árvore assassina. O mais raivoso e macho do grupo gritava, vamos, e deu um
golpe com seu facão na árvore. Efeito nenhum nela fez, deu um segundo golpe
com toda sua ira e macheza, nada novamente. Terceiro, quarto, quinto, sexto
golpe... passou a mão na testa que suava, tem casco duro, essa desgraçada. Um
segundo homem, esse com uma arma mais potente, um machadinho, afastou o
primeiro, disse, deixe comigo, que de hoje essa assassina não dorme aqui na
vila. Ele deu uma machadada na árvore, dessa vez um leve corte nela fez. Um
segundo golpe, um terceiro até cansar e também suar. E tal qual Excalibur,
homem nenhum ali foi digno de retirar a árvore dali, apenas leves cortes nela
fizeram, nada mais. Deixemos para outro dia, homens, viremos preparados com
máquinas potentes. Mas a vingança sobre a árvore fora deixada de lado, com os
dias o esquecimento de rancores sumira, a árvore permanece na vila até hoje.
A semana correu triste, fúnebre, a morte da criança fora o acontecimento
de dias. As pessoas tentavam entender como tal fatalidade, um abacate que na
cabeça caiu, poderia matar alguém. Os gatos, miavam com as respostas.

E agora, o que faremos, o que pensamos? Eram esses os pensamentos dos


moradores da vila, se dos gatos também o eram, provavelmente seriam
mais conscientes dos fatos ocorridos, aliás tudo viram, tudo notaram, os
reflexos dos homens muito têm a ser aprendido com os dos gatos. O clima
fúnebre tomou tudo ali, as casas estavam silenciosas. O abacateiro, logo, deixou
de ser o culpado de tudo, não culpemos a natureza, uns diziam, dela nada se
pode fazer, é uma senhora opiniosa.
Nesse clima sombrio os gatinhos todos notaram que acontecia, a tudo eles
sentiam, a tudo eles percebiam. Estavam quietos naquele dia, fora do alcance de
vista, nos telhados, silenciosos nos corredores, nas janelas não estavam, mas
apenas um gatinho, com várias cicatrizes de brigas e maus tratos por todo o
corpinho e tufos de pelos faltando, estava em uma janela do último andar, lá na
última casa da rua da vila, a casa 4 branca, a vista de todos. Era uma casa alta, de
lá, a tudo ele via, era uma visão privilegiada, conseguia ter um bom parâmetro
da cidade por além daquela inusitada vila, um mundo à parte, como dois
mundos paralelos. E ali, vendo tudo, tal como o senhor Borges que nessa casa
morava e que falava das cores mórbidas, dos homens sórdidos ou dos
temporais. Dali, daquela janela lateral, do quarto de dormir, o gatinho via uma
igreja, um sinal de glória, um muro branco, vôos de pássaros e uma grade num
velho sinal. Ali, ele era tal qual um mensageiro natural, de coisas naturais, e
quando ele miava dessas cores mórbidas, e quando miava sobre esses homens
sórdidos, ou quando miava desse temporal, os demais gatinhos não escutaram,
eles não quiseram acreditar, mas isso é tão normal, contudo, eles não quiseram
acreditar, mas, ali na janela, o gatinho apenas era um cavaleiro marginal lavado
em ribeirão, um gatinho cavaleiro que viveu mistérios, gatinho cavaleiro e
senhor de casa e telhados, sem querer descanso nem dominical. Naquele lugar,
ele conheceu as torres e os cemitérios, conheceu os homens e os seus velórios,
tudo quando ele olhava da janela lateral, do quarto de dormir, mas ainda assim,
os gatinhos nada quiseram acreditar, apenas, e tão somente, o senhor Borges
que ali morava, que daquilo também tudo via, acreditou, e assim o fez. E
naquele dia triste, com o sol que se punha num horizonte poluído, ele a tudo
observou novamente, os sinos da igreja badalaram, era o sinal da glória, dos
pecados e dos castigos divinos para com o homem, anunciavam a chegada do
desconhecido. Mas o senhor Borges não saíra aquele dia, as contemplações de
dois vôos pássaros foram deixadas para outros dias. O gatinho com cicatrizes
miou, era um cavaleirinho marginal, que dava sua última espiada em ondas
cheias de miragens nos quentes telhados daquele que fora um dia muito quente.
Já da sua janela, o gato de camiseta suspirava fundo, não ficou o dia todo
ali como de costume, o dia não estava para isso, miau, mas ficou todo o dia
dentro da casa.A dona da casa também não estava para muitas festas, estava
silenciosa, pobrezinho da criança, que destino, que sorte tão triste, lamentava.
Mas alegre ficou o gato de camiseta, foi dia de bolinhos de chuva, a barriguinha
rapidamente ficou cheia. Sabia ele, que na janela do quarto de dormir, ia ficar
todo o dia o gato com cicatrizes, miau, que gato louco, pensou. Ele deitou-se no
chão da cozinha, ali cheiro de gordura tinha, mas quem disso se importa, são
coisas normais, o que lhe causava agonias era o clima da vila, incrivelmente
atingindo a todos os bichanos, esses também entristecendo, humanos, não
fiquem tristes.
Neste momento, o velho da casa laranja, dessa vez dentro de sua casa,
pensava, cadê você, gato do guarda-chuva, o que tu farias nisso tudo? Esses
devaneios causavam-lhe desespero, queria estar na cabeça de um gato, como
será que eles agem sobre a morte? Que sentimentos o tomam com os destinos?
Devaneios esses que respostas o velho sabia que não teria, mas que diabos,
somos tão limitados, por que na cabeça de um gato não podemos nós todos
entrar? Mas quem iria lhe responder? Sozinho estava, pare de falar só, seu velho
louco, ele próprio lhe ordenava. E logo, um gatinho entrou na casa pela varanda.
Hum, olá.
Da sua janela, pelas frestas finas, o rapaz de óculos grande observava três
gatinhos no telhado da casa da frente. Ele semicerrava os olhos, cético,
duvidoso, ansioso por respostas. Naquele dia, com a vila fúnebre, deixou as
luzes do quarto apagadas, a janela fechada, apenas suas ideias estavam bem
acesas e abertas, buscava descobertas, respostas certas, ah, fedorentos gatinhos,
que querem? Os três gatos no telhado, tranquilos, notaram a miragem que o
grande óculos do rapaz lhes dirigiam, miaram, ficaram olhando a janela do
quarto do rapaz, eles sabiam que o clima também interferiu, naquele momento,
no rapaz, a tudo ele não é imune, mas os gatinhos sabiam que, ali, naquele
quarto, tranquilo, o rapaz, tal qual um vetor, tentava uma transmutação, era o
SOS que pedia, era domingo, missa e praia, o céu de anil, o rapaz de óculos
grande, queria as respostas, pedia, assim, como senhor maluco de uma
metamorfose, que o senhor moço o levasse com ele, pra onde ele fosse, seu
moço, não me deixe aqui, enquanto eu sei que tem tantas estrelas por aí, ele
repetia a frase que dele não o era, e ali, no seu quarto, ele também andou
rezando para Totens e Jesus, ele jamais olhou para o céu, mas ele sabia que as
mensagens que ali na vila chegavam sem parar, ninguém, ninguém podia notar,
estão todos muito ocupados para notar. Os gatos notaram essa angustia do
rapaz, mas as respostas que ele queria, os gatos não podiam dar, ora, somos
apenas gatos, deixe-nos em paz, rapaz dos óculos grande, dos mistérios do
universo nunca saberemos tudo, contente-se.
Se guardiões ou não, naquele dia, cada gatinho passou a olhar um
morador da vila diferente; um observou o homem com a perna engessada, que
ainda agradecia por estar apenas inválido, temporariamente, de uma perna,
mas com vida. O gatinho abissínio ficou na porta do quarto da mulher alta e
obesa, que desmaiada, por causa do álcool já estava, jogada em sua cama, ao
lado de vômito, mas de lá o gatinho não saiu. Outro ainda fora olhar como
estava a vizinha do bebê, esta apenas ficou o dia inteiro com seu bebê no colo,
parecia que o sentimento da perca de um filho, lhe invadiu e deixar seu bebê em
seus braços era uma tranquilidade.
Do mais, o movimento dos gatinhos ali na vila fora muito pouco, um deles,
curiosinho, entrou pela janela na casa da mãe da criança que morreu. Ele a viu
numa cadeira na mesa, chorava em silêncio, às vezes olhava para o nada, com o
olhar perdido e inchado, provavelmente procurava entender tudo aqui, um
abacate, um abacate matou meu filho. O gato miou baixinho, ela o olhou, mas
importância não deu. O pai da criança estava cercado por outros homens, vamos
ter que derrubar essa árvore, eles diziam, e o gato virava a cabeça para um lado,
pensou na árvore lá fora, miau, homens. Mas o gatinho logo cansou daquele
clima, e não pelo ar fúnebre, mas pelos defeitos do homem até mesmo diante da
morte que ainda estava de saída. Saiu pela janela, subiu no telhado, a noite caía
lenta e com céu limpo, olhou para o gato cavaleiro marginal, que ainda na sua
janela do quarto de dormir estava, miou, e o outro respondeu. O gatinho, então,
olhou para o céu, como uma viagem à lua, ele miou mais alto, era o miado mais
grave daquele dia. A lua ainda estava com sua face em movimento, e a bala de
um tiro que atingira seu olho direito, ainda estava cravada ali em seu
revestimento. Foi um longo dia.


A normalidade aos poucos tomava a vila. O vai e vem de seus moradores


tornou-se, novamente, rotineiros, ainda tinha que ser, das mortes o dia-
a-dia não pode ser também vítima. Os gatos também viviam, de telhado
em telhado, de janela em janela, de corredores em corredores, olha ali mais um
gatinho, vários deles de novo, em todas as partes estão, a vila é deles e, da vila
eles são. Se passa um ou outro morador, carinhos lhes querem dar, palavras
lhes querem dirigir, eles fazem parte do cenário dali. Os moradores ficaram tão
acostumados com gatos a toda parte que, andando tranquilos em outros
lugares, se gato via já gritavam, vejam, um gato da vila, ou então pensavam, ele
seria feliz com os outros gatos na vila. Mas ousar pegar e levar algum gato de
fora para a vila, nenhum morador ousava, eles sabiam que, para isso, o natural
era o gato que tinha que da vila ir, levar jamais, que eles façam suas escolhas, se
indo ou vindo, são livres, não esqueçamos.
Não apenas na vila os gatos influenciaram seus moradores, mas em todo
seu dia a dia, e uma moça que lá morava e trabalhava em uma clínica de
massagem, trocou o tradicional branco das paredes e da sala, por enfeites de
gatos, eram gatos grandes, pequenos, nos pôsteres, jarro decorativo em formato
de gatos, canecas de gato, reclamações dos clientes não vieram, satisfeita ela
ficou. O caderninho da escola da criança era de estampa de gatos, das meninas
até mesmo cabecinhas de gatos nas pontas de seus lápis, ah, eu amo gatos, elas
diziam quando lhe eram perguntado, por que aquilo, acaso você não gosta
deles? Com estampa de um gato sério na camiseta, aquele rapaz caminhava,
tinha outras estampas de outros gatos, um até ria, outro chorava, um até falava,
mas as homenagens aos gatos eram muitas.
Mas nem só das aparências e das modas os gatos influenciaram, na
humanidade de cada um também, porque, enquanto este mesmo rapaz, um
pequeno jovem, na flor da idade, caminhava, passou por um terminal de ônibus,
estava quase deserto, o horário não era de se pegar condução. Viu três outros
rapazes, estes maiores e aparentemente mais velhos, a rirem, risadas
zombeteiras, não deixa ele escapar, um dizia com prazer evocando na risonha
voz. O rapaz com camiseta de gato daria de ombros, sem importância alguma,
ou apenas a escondendo, caso não ouvisse, vindo da direção dos três rapazes
maiores, um miado de um gato. Ora, eles estavam brincando com um gato, ou ao
menos assim quis se tranquilizar o rapaz de camisetas de gato. Mas pelas
maliciosas risadinhas, brincadeira ali não era, pega ele, gritou um e o outro fez
um movimento brusco. Miauuuu, ouviu-se forte, era um miado de socorro, e
atendido o gatinho foi, porque correu na sua direção o rapaz de camisetas. Ali, já
perto dos outros meninos, ele viu que um deles puxava o rabinho do animal e
chacoalhava para lá e para cá, e os demais riam, mais rápido, pediam um, gira
como um relógio, pedia o outro, ambos a gargalhar. A barriga do rapaz de
camisetas de gato embrulhou, ficou levemente de mal-estar, por favor, deixe ele
em paz, pediu. Os outros rapazes viraram para ver quem falava, seus olhos
estavam arregalados, mas quando perceberam que era apenas um rapazola,
voltaram a rir, o que é, está com dózinha desse bicho fedorento, zombou um dos
rapazes. O outro, que tinha o gatinho na mão, ainda pelo rabo, riu alto, e, para
provocar, rodou e rodou o bichano pelo rabo, que gritava e pedia socorro. O
rapaz de camiseta de gatos deu um empurrão no agressor, que caiu no chão. Os
outros dois, então, pegaram o rapaz de camisetas e também o empurraram, qual
seu problema, é por acaso mariconas, que não gosta de brincar assim com o
gato, perguntou um com cara de bravo. Ele é marica, só pode, o outro
respondeu, para defender um gato, só pode ser marica. O garoto de camiseta se
levantou, os joelhos estavam ralados, viu que o gato conseguira escapar, deixa
ele em paz, mas antes que pudesse falar mais alguma coisa, os três rapazes
caíram em cima dele, dando-lhe fortes bancadas. Demorou, até os seguranças do
terminal chegarem e a tudo ali parar. Crianças dos diabos, diziam os seguranças,
vão brigar nas suas casas, vão. Para casa foi o garoto de camisetas de gatos,
porém, com esta suja e um pouco rasgada, ele despenteado, e arranhado, por
causa de um gato, e arrependimento não o tinha, era um gato, oras, quem faz de
um gato uma roleta a girar?
E, de tudo isso os gatos tiveram forte influência, mas não só dessas coisas
de mudanças eles foram responsáveis, também o foram por iras e estresses,
maldito gato, era o grito que se ouvia. Aconteceu ali mesmo na casa 2 laranja, do
lado onde morava a mulher alta e obesa, aliás acontecera com ela própria, que,
um dia estando a dormir tranquilamente em seu quarto, com uma forte ressaca
estourando em seus neurônios, com os olhos inchados, ela ouve barulho em seu
telhado, telhado este de forro e telha. Abre apenas um olho, não mais que isso, a
ressaca a impedia, devo estar ouvindo coisas, pensou, afinal o barulho parou.
Mas por pouco tempo, logo o mesmo barulho se fizera em seu telhado e foi
ficando cada vez mais escandaloso, mas que diabos é isso, se perguntava.
Parecia que algo caminhava ali em cima. Ela abriu os dois olhos, ficou mirando o
teto de forro branco, mas nada via, apenas ouvia. Logo, o barulho vira uma
tremenda algazarra, e de lá ouvira miados e mais barulhos de baques, tem gatos
em cima do meu telhado, ela falou tentando se levantar da cama. E não era só
isso, nem um também era, eram três gatos que, ali em cima, começaram a
brigar, se enrolando um no outro, miando e reclamando, parecia que o teto ia
cair em cima dela, miiiiauuuuu, miauuuuuuu. Logo uma vassoura ela pega, dá
umas leves pancadinhas no telhado, aos poucos a briga e os gatos ficam quietos,
devem ter ido embora, pensa. Voltara a cair na cama e roncar.
Mas dos gatos ali no teto ela não se livrara, as cutucadas com cabo de
vassoura apenas o aquietaram um pouco, logo os três gatos começaram a andar
de novo ali em cima, e em pouco tempo voltaram a brigar. Era uma briga épica,
a primeira desde que os gatos chegaram na vila, talvez a última, ali eles não são
muito de brigas, mas naquele momento uma terrível luta acontecia, mas a
ressaca da mulher alta e obesa, fez com que dessa vez ela não acordasse. Ela
roncava e babava, enquanto no telhado os gatos brigavam. Mas as pancadas e
golpes eram tão violentos que, sem suportar a briga, o forro do teto começa a
ceder, ceder, abrir até que... poooowwwww, o forro junto com os três gatos caem
em cima da mulher alta e obesa, que acorda gritando desesperada e assustada,
valei-me, meu senhor Jesus, o que é isso, falava. Difícil foi tirar os forros e os
gatos, que ainda brigavam, de cima dela. Malditos, malditos, derrubaram o teto
em cima de mim e ainda brigam. Assustados, os gatos tentam, sem sucesso, sair
de perto dos gritos dela, mas não tinham por onde, a porta estava fechada, a
janela do mesmo jeito, o que fez com que mais estressados eles ficassem e se
digladiassem ainda mais. Saiam do meu quarto, saiam, gritava a mulher alta e
obesa. Ela tentava se equilibrar, mas o efeito do álcool ainda estava em seu
organismo, sua cabeça explodia de ressaca. Ela enfim abriu a porta, os três gatos
correram pelo corredor a fora a se perderem de vista. Cambaleando pelo
corredor, se agarrando pelas paredes, gritava a mulher alta e obesa, caíra em
cima de mim, os gatos caíram em cima de mim, repete. Com muito sufoco, saiu
na rua, estava despenteada, babada, com ressaca, gritava alto, os gatos caíram
em cima de mim, derrubaram meu telhado. Logo, a vila inteira saiu nas suas
sacadas e janelas e presenciaram os gritos da mulher alta e obesa. Um absurdo,
ela falava alto, não vou pagar por um quarto onde gatos caem em cima de mim,
onde já se viu. Para muitos que a tudo aquilo presenciava, pensavam ser apenas
mais um dia de embriaguez, cala a boca sua bêbada, gritou um de sua janela e
entrou. Louca, para de fazer escândalo na vila, falava uma mulher. O homem da
perna engessada, na sua sacada sentado, ria, eita cachaça brava do cão. A
mulher alta e obesa continuava gritando e cambaleado, eles subiram no meu
telhado e caíram em cima de mim, na minha cama. Mas ouvidos ninguém lhe
dava, era apenas uma bêbada em seus delírios. Todos entraram em suas casas,
e, ali no meio da vila, já sem voz, dando seus últimos sons, a mulher alta e obesa
tentava falar, caíram... gatos... em cima de mim... mas naquele momento, fora ela
quem caíra no chão, o álcool ainda a consumindo. E, ali, ficou o dia e a noite
toda, ninguém a ajudou a se levantar ou a acordou, quem por ela passava, ou
revirava os olhos ou sentia pena, mas nada podia fazer. A mulher alta e obesa
passara a noite no chão da vila no lado de fora, enquanto no seu quarto, o forro
do teto caído ficou na sua cama.


E m frente à porta do seu quarto, a mulher alta e obesa tentava apontar


para o tento com o forro caído, ali, ali, o gato caiu em cima de mim, falava
para a dona do imóvel, um absurdo. A dona do imóvel pedia calma,
vamos tudo resolver, não se agonie tanto, mulher. Mas reclamar o dia inteiro foi
o que a mulher alta e obesa fez, o fato de gatos caírem em cima dela a deixava
perplexa, nunca nessa minha vida miserável ouvi falar de gatos que em cima das
pessoas caíam. Mas quase nada fora feito, a mulher alta e obesa dormira ainda
alguns dias com o teto aberto e forros caídos, só depois que a dona do imóvel
pedira para arrumar. Mas deixemos claro que, ódio dos gatinhos ela não pegou,
a vila era deles, eles eram da vila, o que mais poderia fazer? Nada, a não ser
aceitar que gatos ali tinham. Se nos corredores, nos tetos, ou nas calçadas, eles
em todas as partes estão, e ponto.
Vendo que, problemas deram por brigas em telhados, naquela noite, os
gatos todos, ou a maioria, se reuniram no telhado de uma casa dos fundos da
vila. Um deles miau, miau, caíram em cima da mulher, em cima. Os outros 3 que
eram os responsáveis pela situação, tranquilos pareciam estar, miau, acontece,
um deles miou, quem nunca caiu em cima de um humano? Mas ali decidido
ficou, miauuuu, não mais poderia haver brigas em telhados, principalmente os
de forros, miau, evitemos de cair em cima dos humanos, acho que eles não
gostam, em gatês, um miou. Os demais todos concordaram.
Aproveitaram que, como todos ali já reunidos estavam, decidiram também
sobre suas vidas, sobre suas observações, suas perspectivas da vila e de seus
moradores desde que ali chegaram. Uma gatinha miou, eles são estranhos, as
línguas nunca usam, eles têm língua? Vocês já viram as línguas dos humanos?
Todos arregalaram os olhos, miauuuu, verdade, por isso que eles gostam tanto
quando nós os lambemos, um miou sugerindo. Eles não usam a areia para as
necessidades, um outro gato miou e depois disso foi uma confusão, era certeza
que a vila inteira ouvira eles ali miando, nos telhados, mas do que falavam, as
pessoas nada entendiam. Um terceiro gato miou, tem humanos, os machos, que
tem bem menos pelos que nós, e ainda assim solta mais pelos que todos nós
juntos. E, novamente, os murmúrios foram maiores, e depois eles reclamam que
nós deixamos pelos soltos em seus sofás, miau. Alguns deles tem cheiro forte,
miou em gatês, um dos gatos, meu narizinho coça e eu espirro quando eles
passam aqueles cheirinhos nele. Com isso, os demais gatos todos apoiaram,
falaram ao mesmo tempo, nossa, verdade, nem me fale, é estranho, como eles
aguentam, o que será aquilo, eu sempre espirro também.
Enquanto todos debatiam sobre seus olhares para com a vila e para com
os humanos, um dos gatos afastou-se, ficou ali a beira do telhado, sentou-se,
ficou quieto, os outros, vendo aquilo, curiosos ficaram, miau, o que há? Suspirou
fundo o gatinho da beira do telhado, aquele humano de óculos grande, acha que
nós andamos a planejar algo. Os outros gatos todos se aproximaram, todos
olharam em direção a janela do quarto do rapaz de óculos grande. Miau,
deixemos ele nas dúvidas, o que seriam dos humanos com seus mistérios todos
resolvidos? A espécie deles precisa estar sempre em conflito, a ordem causam-
lhe o desespero e o caos o equilíbrio. Dali, do telhado onde estavam, discretos,
os gatinhos ouviram um grito, eu sabia, sabia que estavam tramando algo. Era o
rapaz de óculos grandes, que da fresta da sua velha janela, o observavam. Miau,
todos miaram em uníssono para que ele o ouvisse.
A contagem e quantidade de gatos ali na vida todos já sabemos que não é
exata, tinha também os que de lá saíram, os que para cá vinham. Mas, falta
alguns sempre fazem, perguntaram por onde anda o gato preto que veio do céu
no guarda-chuva, e neste momento, um silêncio cúmplice tomou conta de todos.
Quem arriscaria a tal pergunta responder? Quem ousaria tal questão entender?
São os mistérios dos gatos, mistérios esses, talvez aprendidos com os humanos.
Do gato do céu nada mais sabemos, respondiam para si próprio cada gatinho, ou
assim eles acreditavam não saber, era uma questão em aberto, eram respostas
ainda mais em abertas.
Mas não apenas do gato do céu que os demais ali, naquela noite, sob o
olhar do rapaz de óculos grande, sentiram falta. Miau, cadê o gato com
cicatrizes? Este, pois, a maioria sabia da estadia, que da janela lateral do quarto
que dormia quase não saia, vejam, ainda está lá, atento, observador, um gato
dedicado, miavam. E todos foram em direção a visão que dava para a janela do
quarto de dormir, um grande observador, miava um gato. Outro, ainda
respondeu, pode ficar tal qual um humano questionador sempre ali a pensar,
não acham? Mas, de novo, foi uma pergunta sem repostas, os gatos todos
ficaram um bom tempo ali a observar o gato com cicatrizes que observava, o
quê, ninguém sabia, mas sua concentração era inspiradora.
Porém, o que os gatos no telhado não sabiam, era que, ali da janela, o gato
com cicatrizes aprendia mais do comportamento dos humanos. Espiou quando
numa casa ali, em que conseguiu vista privilegiada, a mulher saíra para
trabalhar, pouco fora o tempo preciso para que, sozinho, o marido possuído em
suas vontades, chamara outra moça para lhe visitar, temos que ser rápidos, ela
logo chega, o gato ouviu o marido falar para a moça recém-chegada. E o gato de
cicatriz não entendeu o porquê dos segredos dos humanos, se nós gatos temos
nossos segredos e disfarces, nada mais é para fugir dos crimes que os humanos
nos condenam, não para escondermos de atos com nossa própria especial.
Naquela noite, o gato com cicatrizes não encontrara respostas para suas
dúvidas, as mentiras humanas lhe eram misteriosas. Ele estava cada vez mais
humano.


A rotatividade de moradores na vila até que era grande, se um ali ficava


um mês ou dois, não era de um todo estranho, essas casas de pensão ou
casas de alugueis são assim, uns saem, outros entram com frequência,
mas desde a chegada dos gatinhos ali, parecia que ninguém queria sair, aqui é
tão bom, daqui não saio. Mas a procura também se triplicou. Um dia, chegou à
vila um rapaz alto, barbudo, com cara de mau, tatuagens em todo seu corpo e
perguntou, com quem eu falo sobre uma vaga? Mandaram ele para o lugar certo
para quem procura vaga, mas, chegando no destino para se informar, a dona
dos imóveis lhe disse que vagas não mais tinham, nenhuma mesmo, e não temos
previsões de algum morador sair. Mas não era possível, pensou o cara barbudo
e tatuado, como isso pode ser, com uma vila tão grande? A dona do imóvel disse
que, muitas procuras acumularam, sinto muito. Ele, então, pediu um quartinho,
qualquer lugar será bem-vindo para mim. Mas nada havia de ser feito, nem
mesmo os depósitos ali sobreviveram, foram adaptados e reformados para mais
quartos e, logo, ocupados. Mas, curiosa, a dona do imóvel perguntou ao moço
barbudo e tatuado o que ele fazia, em que trabalhava, e por que a urgência em
se mudar para cá. Com um leve desconforto, baixando um pouco mais a voz, o
moço barbudo lhe respondeu que manicure era, eu pinto unhas. Vendo a
expressão de confusão e surpresa da dona do imóvel, ele complementou, eu faço
artes nas unhas das mulheres... e dos homens também. Manicure eu pensei que
era só mulher, disse a dona do imóvel ainda confusa, do qual o homem barbudo
lhe respondeu que manicure é quem o quer ser e se dele souber ser, pensei em
fazer alguns desenhos de gatinhos, já que a vila ficou famosa por eles,
completou o moço barbudo, sempre sem jeito de tudo isso falar, sabia que as
feições físicas não condiziam com as coisas que fazia e as que gostava, coisas
das pessoas grandes, de separar tudo. Mas nada pode ser feito, vaga não tinha,
eu sinto muito.
Mas o moço barbudo não fora o único. Outros vieram, outros quiseram,
outros da vila souberam. Lá apareceu as moças gêmeas idênticas, queremos um
quarto, mas quarto para uma não tinha, quem dirá para duas, eu sinto muito. Lá
apareceu a travesti que, muito elegante, pediu uma casa, moro só, mas gosto de
espaço, mas nem mesmo um pequeno espaço havia para ela, eu sinto muito. O
jovem que queria, urgentemente, sair da casa dos pais também ali apareceu, me
arrume um quarto, por favor, não aguento mais minha família, ele implorava,
mas família ali na vila ele não conseguira ter, não há mais vagas, eu sinto muito.
Apareceu uma bela mocinha, baixinha, cabelos curtos e coloridos, por favor, me
arrume um lugar para morar aqui, eu sou louca por gatos, quero todos para
mim. Mas gatos nenhum ali ela poderia ter, uma porque eles livrem serem,
outra por vagas não haver, eu sinto muito. Mas ela ainda insistira um pouco
mais, eu faço qualquer coisa, desde que dessa vila fiquei sabendo, não penso em
outra coisa se não aqui morar, eu imploro. Mas nada a dona do imóvel podia
fazer, coitada, estava a arrancar os cabelos, preciso fazer algo, e logo fez:
colocou em toda entrada e em todas as casas placas com os dizeres “NÃO HÁ
VAGAS!!!”. Mas, se resultados os avisos tivessem, boa parte dos nossos
problemas acabariam, deles quase ninguém os lê ou compreende, mesmo com
essas placas, lá se iam gente e mais gente procurar por vagas, até a moça que
gostava dos gatinhos ali voltou depois de dois dias, e aí, já tem vagas?
Curiosa, a dona do imóvel começara a perguntar para os interessados do
porquê de tantas procuras, todos respondiam, porque aqui é a vila dos gatos. E,
de boca em boca até mesmo quem ali não morava ficou conhecendo a vila, por
causa dos gatos. Uns eram mais ousados, já chegavam à vila e logo diziam, quero
morar na casa onde o gato caiu com o guarda-chuva, mas a ousadia logo era
cortada com uma frase, não há vagas, sinto muito. Já sem muita paciência, a
dona dos imóveis logo pediu para que os moradores da vila dessem a
mensagem, não há vagas, para quem por lá fosse isso procurar. E, logo naquele
dia, apareceu uma senhora de cabelos curtos, elegante, batom marcante, na vila
não encontrou ninguém, apenas o velho da casa 2 laranja em sua varanda, o
mirou, quero morar na vila dos gatos, ela lhe disse. O velho, a olhando ali de
cima, levantou um pouco a sobrancelha, sinto muito, senhora elegante, vagas
não temos mais aqui na vila. Sem se alarmar com a resposta, a senhora elegante
falou, especialistas em gatos eu sou, estudo-os e como tal, aqui será um ótimo
laboratório comportamental, quero morar aqui. Mas nem isso fez com que
vagas surgissem, a senhora elegante e especialista em gatos ali não podia
morar. Apenas aquele dia, o velho da casa 2 laranja, da sua varanda, disse, não
há vagas, para seis pessoas, uma ou outro ainda perguntaram, e como foi essa
história do gato que do céu veio por um guarda-chuva? Estufando o peito, o
velho falava, foi numa noite...
Mas nem só de interessados em morar na vila foram os visitantes por ali, a
imprensa também o foi. Primeiro um fotógrafo, que com sua grande câmera, já
chegara fotografando a tudo, quando questionado pelos moradores o que estava
a fazer, logo dizia, registrando, não há história sem registro. Ali, captou imagens
das casinhas, da vila inteira, mas os gatos, onde estão, ele perguntou, já estava
por ali a quase uma hora e gato algum viu. Os moradores davam de ombros, ora,
não sei, eles aparecem quando querem, não somos seus donos. Ficara ali mais
uma hora o fotógrafo, mas nenhum gato apareceu, ora, que maldição, volto
outro dia.
A TV também se rendeu a curiosidade, duas equipes de televisão lá na vila
foram, entrevistou um ou outro morador, capturou imagens, o velho da casa 2
laranja era sempre o mais procurado, e o senhor nada viu, perguntava os
repórteres, do qual o velho respondia, ouvi, e ouvi alto, só o baque no meu
telhado, quando voltei só estava o guarda-chuva, olha ele ali, e apontava para o
objeto que ele guardava numa estante. Quando o entrevistado era o rapaz de
óculos grande, este gritava na frente da câmera, tomando o microfone da mão
do repórter, eles vieram para colocar em prática seus planos de dominar o
mundo, me escutem, cuidado com esses gatos. Vendo o desespero do rapaz de
óculos escuro, os repórteres tentavam recuperar seus microfones tomados,
corta, corta, gritavam. Já quando o entrevistado era o homem de perna
engessada, em sua varanda, este apenas falava, não sei, eles viram, ficam aí,
ficam ali, sei de nada não, são só bichos peludos e fedidos. Mas a pergunta era
sempre, e os gatos, cadê? E nada, nem sequer um gatinho aparecia quando ali a
impressa estava, não houve, na história, sequer um registro, mesmo que sem
querer, de algum gato na vila. Nenhuma foto, nenhuma imagem de TV, nada,
nada. Eles não se deixaram filmar, não se deixaram captar. Os repórteres,
jornalistas, fotógrafos, blogueiros, ficavam ali por horas, a olhar para os
telhados, a procurarem pelos corredores, mas gato nenhum aparecia. Quando
perguntavam aos moradores sobre os bichanos, esses nada sabiam dizer a
respeito, ora, senhores, gatos livres eles são, não controlamos suas idas e
vindas, se para os senhores eles não querem aparecer, força ou mudar isso nós
não podemos fazer. E, foi embora dali a imprensa, apenas com os testemunhos
dos moradores, mas sem imagem alguma de gatos, você acha que à nós os
moradores mentiram, perguntava um repórter, e o outro lhe respondia, mentira
a nós não houve, apenas espertezas dos gatos.

N as bancas as revistas falaram da vila dos gatos, na TV, mesmo sem os


gatos, as reportagens foram ao ar, nas rádios, moradores e
entrevistados especialistas em gatos falavam ao vivo, inclusive a
especialista em gatos, que queria morar na vila e não deu certo. Isso fez com
que cada vez mais a vila ficasse conhecida, muitos queriam ir conhecê-la, morar
na vila, reportar a vila, e isso fez com que os moradores pensassem em uma
estratégia para cada situação: uma delas era sobre as vagas esgotadas e pessoas
interessadas em ali morar, só placas com aviso não lhes estavam mais sendo
suficiente. A vila também começara a virar algo do tipo pontos turísticos, isso
estava estressando os moradores e aos gatos também, que, vendo a grande
movimentação do vai e vem das pessoas que da vila não eram, escondiam-se
danadamente, ah gatinhos opiniosos. Mas disso podia se tirar algo de bom, pois,
vendo que os gatos não apareciam quando a imprensa ou quando curiosos ali
estavam, os moradores começaram a tirar proveito disso, ora, sem eles
aparecerem, logo vão parar de vir aqui, falaram. Alguns ainda questionaram
que, assim, vão nos chamar de mentirosos, que gatos nenhum aqui têm. Mas
logo outro morador replicava, que pensem, a vila com os gatos já temos, quem
de fora não acreditar, azar.
Mas até que de cansaço os curiosos e a imprensa desistissem, isso
demorou um pouco, os moradores tiveram que aguentar aquele assédio alguns
dias ainda, e durante aquele tempo nem eles mesmo viram os gatos, onde será
que eles estão? Ninguém sabia, mesmo os de fora, que achavam que aquilo não
era mentira, estavam achando que os moradores escondiam os gatos, mas isso
não era, os gatos quando queriam se esconder ninguém sabia de seus
esconderijos. Um dia, numa rádio, o rapaz de óculos grande falou, eles querem
dominar o mundo, tem um mega plano, e quem tem um mega plano tem que ser
discreto, cair em público seria uma catástrofe, por isso eles sumiram. Aquela
fala foi o suficiente para os teóricos de conspirações pirarem, ele tem razão,
dêem ouvidos a ele. Logo, o rapaz de óculos grande estava a ser convidado para
conferências e entrevistas e mais entrevistas.
Helicópteros sobrevoavam a vila, repórteres e fotógrafos ficavam de
plantão 24h em lugares estratégicos, os olhos todos estavam voltados à vila.
Saiam daqui, saiam, gritavam os moradores que sossego não estavam mais
tendo, queriam suas vidas de volta, nos deixem em paz, os gatos não querem
vocês aqui. O moço surdo/mudo ficou um pouco triste, ele sabia que os gatos
estavam muito estressados, nem mesmo a comidinha que ele colocava, eles
estavam vindo comer. O homem da perna engessada, em sua varanda, disse,
credo, povo louco, quero nem saber. Um dia, a mulher alta e obesa entrou na
casa, subia a escada em direção ao seu quarto, lá levou um susto, aaaaaaaa, o
que é isso? Ali, no corredor, tinha um repórter. Ela gritava, estava levemente
alcoolizada, ziguezagueava um pouco seu pesado corpo, socorro, socorro, sai
daqui, ela gritava. Tentou dar umas tapas no repórter, mas ele se esquivou, saiu
correndo e desceu a escada muito rápido. Absurdo, ela gritava, primeiro um
gato caindo em cima de mim, agora isso, só comigo, só comigo.
Vendo toda a repercussão dos gatos na vila, algumas entidades de
proteção ao animal também queriam saber mais sobre a vila. Quais estados eles
vivem? Como comem? Como é a convivência com eles e os moradores? A
princípio, os representantes dos órgãos chegavam decididos, firmes, vamos
fazer uma longa averiguação e tomarmos as devidas precauções. Foram de casa
em casa, questionando tudo que se podia imaginar, mas qual gato vive aqui, um
perguntou, e o morador lhe respondeu que nenhum, aliás, todos, eles vivem
onde querem, não os empatamos de nada. Mas os órgãos de proteção ainda não
estavam por satisfeitos, foram para outra casa, o que come, questionaram, foi,
então, que foram mostrar a casinha ao fundo da vila onde os moradores,
principalmente o rapaz surdo/mudo deixava suas comidinhas, e também os
alimentamos em nossas casas, alguns até compram comidinhas em saches para
eles, cada um faz como pode, diziam. Tudo isso era marcado com frenéticos
rabiscos em pranchetas. Em outra casa, eram mostradas as roupinhas que uma
fizera para os gatos, em outra casa fora mostrado a caminha, mas não é de um
apenas, é do gato que quer passar a noite aqui, falava-se. Na casa do velho da
casa 2 laranja, lhe foi pedido, com detalhes, o ocorrido daquela noite que,
supostamente, caíra do céu o gato preso com rabo em um guarda-chuva. Céticos
ficaram os membros dos órgãos de proteção. Passaram o dia inteiro ali, mas
com eles os gatos foram mais simpáticos, logo apareceu um em uma janela,
miou, depois aparecera outro em outro corredor, miau, em pouco tempo outros
surgiram nos telhados, nas calçadas, todos miando, felizes, simpáticos.
Surpresos ficaram os membros dos órgãos de proteção, vejam, mas parecem
muito bem cuidados, estão lindos, um falava. E parecem tão felizes, outro
respondia alisando um gatinho. Logo todos eles, os membros dos órgãos
protetores dos animais, baixaram a guarda, relaxaram, que vila maravilhosa,
que gatos adoráveis, aqui não poderia ser um melhor lugar, estão no paraíso.
Saíram de lá muitos satisfeitos, parabenizando os moradores, que sorte a de
vocês por serem escolhidos por esses adoráveis gatinhos.
Mas isso não fora tudo, passou por lá também a vigilância sanitária e
outros órgãos de proteção à saúde e bem-estar social. Aqui é a vila dos gatos,
perguntavam os agentes. Os moradores, já desconfiados, falavam que sim, é
aqui mesmo. Os agentes, então, esclareciam que estavam ali, porque precisavam
averiguar as condições de higiene da vila, por causa da quantidade de gatos.
Sem muito que fazer, os moradores cediam, fiquem à vontade. E, ao contrário do
que aconteceu com os membros de proteção aos animais, os gatos não se
apareceram para os agentes, não vemos gato algum aqui, o que há? Sem
respostas os moradores ficavam. Mas nada, nenhum felino, nenhum cocozinho
deles, nenhum cheirinho deles, nada, nada. Mas que vila de gatos é essa sem
gatos, os agentes questionavam, acho que estão de tiração de sarro com nossa
cara, vocês sabem quanto de dinheiro público é gasto apenas para nossa visita
aqui? Mas, de ombro deram os moradores, ora, ninguém os convidou. Um pouco
irados, os agentes decidiram, vamos procurar os gatos, e daqui levar, eles não
podem viver normalmente com os moradores aqui da vila. O desespero dos
moradores fora grande, como assim tirar os gatos daqui, mas o que os
pobrezinhos fizeram? Os agentes apenas respondiam que era prevenção a longo
prazo, deixá-los ali poderiam causar algum problema de saúde a algum
morador, algo do tipo respiratório, um dizia. Do pulmão, problema nenhum eu
tenho, falava, pela primeira vez alterado, o homem com o pé engessado em sua
varanda, apenas da perna, e gato nenhum foi o culpado disso, ora, vão caçar com
o que gastar nosso dinheiro, senhores agentes públicos.
Grande fora a revolta dos moradores, gato nenhum sai daqui, saiam vocês.
Chamaram a imprensa, esta quase que não veio, pois gato nenhum nunca
registraram. Quando perguntaram para os agentes onde acharam os gatos,
estes, tímidos e gaguejando, lhes respondiam, bem, gato, gato, ainda não vimos
nenhum, mas aqui é a vila dos gatos, não é? Protestos foram feitos, não vão tirar
os gatos daqui. Os moradores fizeram uma pequena barreira na entrada da vila
e expulsaram os agentes da vigilância. Os agentes ainda tentaram conversar
com os moradores, mas acordo não tinha, ou melhor tinha: deixem os gatos em
paz. A imprensa reportava tudo. Logo, a causa ganhou a internet, as ruas, foram
feitos protestos até de quem da vila não era. Era um mar de “deixem os gatos na
vila” em toda parte, nas redes sociais, em cartazes, páginas e blogs surgiam com
o apoio, debates acalorados em toda parte, afinal, algum mal gatos poderiam
causar a humanos em uma vila? O país inteiro entrara na causa da vila, todos
estavam contra a retirada dos gatinhos dali, o que tem os pobres bichinhos na
vila? Vejam, eles melhoraram a convivência na vila. Não vejo mal algum, são
humanos convivendo com a natureza, precisamos disso. Sei lá, algumas pessoas
podem ter algum problema de alergia ou respiratório, mas acho que isso só
acontece com frequência, porque estamos perdendo o costume com a
convivência com os animais, então acho legal eles ficarem. Tem que deixar os
gatinhos lá sim, eles não querem estar lá e os moradores da vila não o querem
lá? Então, que os deixem lá... essas eram algumas das opiniões de pessoas de
fora da vila. Todos viam, assistiam e acompanham o caso, todos na torcida.

E quem, em sã consciência, vence das vontades do povo? Dos agentes da


vigilância não seria diferente. Suas consciências eram tão humanas
quanto, da força não podiam usar, um ou outro agente ainda avistaram
algum gatinho, não é mentira, eles existem. Vendo toda a pressão popular, para
que os felinos em paz deixassem, os agentes da vigilância assim deixaram a vila.
A imprensa logo fora embora, para ela, os cadáveres lhe importam ainda
frescos, se frios, importância alguma tinha. As pessoas que entraram na causa
comemoraram, mandaram doações de rações de toda a parte do país.
Evidente, que, com tal exposição, o número de pessoas interessadas em
morar na vila agora triplicou. A dona dos imóveis queria sair correndo puxando
os cabelos, não aguentava mais aquilo, preferia que a vigilância levasse logo
esses gatos, assim teria paz, ela chorava, mas não a julguemos de má, quando
nervosos, tendemos a falar qualquer coisa triste. Curiosos visitavam a vila, mas
para esses, os gatos apareciam, felizes, simpáticos, de todas as cores, de todos os
tamanhos, de todas as raças, todos com narizinhos gelados, patinhas fofinhas. Se
de gatos a vila teve que se adaptar, também tiveram que se adaptar a esse
assédio que, provavelmente, não passaria tão rápido. Mas toda essa
movimentação era durante o dia, os curiosos pareciam entender a importância
do sossego noturno e ali não apareciam, eram curiosos conscientes.
No início, os gatos pareciam se esquivarem um pouco, mas logo se
acostumaram com as visitas constantes de não-moradores da vila, o estresse
não lhe eram mais constantes. Logo, o gato com cicatrizes voltara para sua
janela no quarto de dormir, o gato de camisetas voltara para sua janela, e assim
cada gato voltara a sua rotina de antes. Eles sabiam que, ao menos, ali na vila,
celebridades eram, não pareciam aqueles gatos vadios, famintos, maltratados,
machucados e fedidos de latas de lixos, de ruas escuras, marginalizados pelos
aspectos do mais vulgar dos seres. Não, ali a história era outra, mesmo
fedidinhos, mesmo machucadinhos, marginaiszinhos, ali eram gatinhos, como
deveriam sempre ser, e gatinhos celebridades.
E, para todo começo de celebridades, privilégios devem ter, assim com os
gatinhos também o fora. Se acaso alguém de fora visse um ou outro, pobrezinho,
deve estar com fome, tome aqui esta comidinha. Ou, acaso no sol um estava,
pobrezinho, sede deve estar, tome aqui minha água. Um dia, em um telhado um
gato estava, queria passar para outro telhado de outra casa, mas até mesmo os
bichanos às vezes pensam em facilidades para a vida e atalhos para supri-las, o
gato decidiu, então, que para passar para o outro telhado, iria pelo pé de
abacate, aquele mesmo que ficara no meio da vila, aquele mesmo que matar
uma criança, por fatalidade, matou. Pois assim o fez, do telhado pulou para o
alto abacateiro e de lá... ficou lá. Não conseguira mais pular da árvore para o
telhado próximo. Tentou uma, duas, três vezes, mas apenas dava sinais de
impulso, nada mais, pular não tinha coragem, miau, socorro, estou preso. E era
miau para lá, miau para cá, socorro, humanos, estou preso, não vêem? Até que,
finalmente, passou por ali um grupo de curiosos, um apontou para a árvore lá
em cima, um gatinho preso. Todos os demais olharam, fizeram em uníssono um,
ohhhhhhh, tadinho. O grupo de curiosos gritava para que os moradores da vila
vissem aquilo, queriam chamar a atenção para o triste ocorrido, ali, um gatinho
preso na árvore. Saíram os moradores em suas janelas, em suas varandas, nas
ruas, em volta do abacateiro, miau, façam logo alguma coisa, seus humanos
bobos. E, como todo lugar há um metido a herói, um visitante da vila logo disse,
saíam da frente, eu subo até lá e o pego. O visitante arregaçou as mangas da
camisa, fez um breve alongamento e agarrou a árvore, mas em vão, escorregava
na segunda escalada de pernas, não tinha qualquer jeito para aventuras da
natureza, nem sequer alcançou algum galho, essa árvore está muito
escorregadia, deve ser tempo de ela ficar suando, ele justificou seu fracassado
ato heroico. E, desesperadamente, o gatinho preso na árvore miava. Os demais
gatinhos ali se juntaram aos curiosos também. O rapaz de óculos grande gritava
de sua janela, porque não usam seus planos malignos de dominação para tirar
seu amigo da árvore, seus gatos espertinhos. Mas aquela situação não podia
ficar assim, temos que chamar os bombeiros, e rápido. Chamaram. O carro dos
bombeiros corria nas vias da movimentada cidade, com sua sirene gritando,
pedindo espaço, tinha um caso emergencial para cuidar, saiam todos da frente.
Cortou a cidade de ponta a ponta até chegar à vila, lá já estava um carro de
polícia, uma ambulância, veterinários, era como se toda a cidade parasse,
porque havia um gatinho preso na árvore. Ali, ali está ele, apontou uma
visitante da vila para os bombeiros que chegaram correndo, com grandes
escadas. Os bombeiros, tal quais boas encenações, pediu para que todos se
afastassem, se afastem todos, precisamos nos concentrar. Os curiosos e
moradores se afastaram, uns com a mão no peito, outros boquiabertos,
eufóricos, segurando a respiração. Os bombeiros, olhando lá para cima da
árvore, limpavam os suores das testas. Prepararam a escada, ajeitaram cordas,
miau, ande logo com isso. Fizeram os últimos ajustes na grande escada, está
firme, já posso ir. Subiu o bravo bombeiro. Degrau por degrau, sob os olhos de
expectativas dos espectadores. Mais um degrau, mais um e mais um, chegou ao
topo da árvore, fiquem quietos, não tirem a concentração dele, falou baixinho
alguém. Já no alto, o bombeiro estica a mão, mas o gato não colabora muito, se
esquiva, miau, estava assustado, venha, gatinho, suplicava o bombeiro. Deu mais
uma esticadinha no corpo e no braço, só mais um pouquinho. Nessa hora,
ninguém mais lá embaixo respirava. Até que, por fim, agarrou o gatinho que
miou desesperado, estava com medo e aliviado. Nas janelas, varandas, rua,
todos aplaudiam, se abraçavam, alguns choravam emocionados, oh, glória.
Desceu da escada o bombeiro salvador, fora recebido com festa, com fotos,
todos queriam tirar uma foto ao lado do bombeiro com o gatinho no colo e isso
durou toda a tarde, até comecinho da noite.
Por algum tempo, os gatinhos provaram do sabor da fama, da curiosidade,
e não fora por um todo ruim, também não tiveram apenas glórias, há de analisar
todos os fatos, que a vila sossegada não era mais, não naquele momento, porém
carinhos e mensagens otimistas andavam a receber. Eram tempos fartos.

O que se pode falar é que a vila dos gatos sempre fora a vila dos gatos,
daquilo para sempre ficou conhecida, não perdera esse título. As
curiosidades humanas aos poucos foram ficando mais tranquilas, as
pessoas entendiam que o charme daquela vila era, talvez, por assim dizer, a
tranquilidade de ser uma vila pacata com muitos gatos, transformá-la em outra
coisa era um crime de consciência muito grave. Os gatos iam e vinham
livremente, novos chegavam, outros sumiam, para onde ninguém precisava
saber, essa era a regra da continuidade da vida, o começo inesperado e um fim
inexplicado, basta. As rotinas mudavam vez ou outra, se a camiseta para um
gato servia neste mês, em outro mês, outro gato usava, aquele primeiro concluiu
seu ciclo com aquela roupinha. Se no corredor da mulher alta e obesa uma raça
rara aparecera, em outro dia, um vira-lata, se disso os gatos também o são,
surgirá. As vontades deles eram mutáveis, a aceitação dos moradores
constantes.
Mas, das maldades humanas bicho nenhum está ileso. A humanidade com
o homem em seu centro principal, fora um projeto que dera muito errado,
falhamos na evolução, se quer fomos capazes de pequena melhora. E aconteceu
que, uma noite, de céu claro, gato nenhum miou nos telhados, tão pouco miou
nas janelas, nos corredores nem sinal de suas patinhas que iam e viam. Será que
em alguma festa na travessa dos desenhistas eles estão, um morador se
perguntava em seu quarto trancado. Mas não, a travessa dos desenhistas estava
tão deserta, quanto o silêncio dos bichanos, mas que deixem os gatos em paz,
eles são cheios das vontades, assim pensava o morador. Mas era uma frase de
auto conforto, nem mesmo esse morador acreditava nisso. E tudo estava ali, a
vista de todos, a luz do dia, tendo uma vila inteira como testemunha da falha
humana. Um mar de gatos caídos na rua da vila, nas calçadas e portas. Caídos e
sem vida, um por um, jogados sem valor, tal qual como vieram para a vila
naquela noite, quando ainda vagabundos eram, mas naquele momento todos
mortos.
Por onde os moradores andavam era um mar de gatinhos jogados, com
seus corpinhos frios, alguns molhados da neblina que fizera na madrugada. Era
a cena que todas as tristezas humanas podiam alcançar, ao menos para os
moradores da vila. Era a cena final de algo macabro, bizarro, cruel. Era a cena
das trombetas dos anjos, que soavam egoístas, a cena do paraíso que virava
inferno. Mas o que houve aqui, questionavam os moradores em silêncio, dando
um passo de cada vez, com cuidado, como em câmera lenta, destacando tragédia
tamanha, o que houve aqui? Em pouco tempo, eram todos os moradores da vila
que ali se encontravam junto aos bichanos mortos. Ninguém acreditava no que
via, nem sequer tinham expressão em seus rostos para sentir algo, o susto não
lhe caíra ainda, até que por fim a mulher alta e obesa vomitou, e vomitou toda
pouca fé que ainda lhe restava sobre a humanidade, eles foram envenenados,
ela disse limpando sua boca de vômito. Balançava a cabeça afirmativamente o
moço surdo/mudo. Um morador caminhou um pouco mais, analisou um corpo
de um gatinho mais de perto, sim, foram envenenados. Mas por quem? Era essa
a próxima pergunta. E, como ninguém ali conseguia olhar um para a cara do
outro, mas não por culpa, e sim por medo de encontrar uma verdade em alguém
ali, todos chegaram à conclusão que tamanha desgraça não partira de alguém
dali da vila. Alguém de fora, de algum modo, matou, um por um, os gatinhos com
veneno, e que algo supremo do homem tenha piedade de quem fez isso, falou
um morador.
Não, não era alguma miragem, era fato, sim, era, vejam ali todos os gatos
jogados ao chão, envenenados, enganados. Chorou a vila, cada um do seu jeito. A
mãe do menino que morrera com o abacate na cabeça chorou em casa, na mesa,
com seu marido a consolá-la. A mulher que fazia as camisetas para os gatinhos
chorou guardando as pequenas peças de roupas. A mulher alta e obesa entrou
no seu quarto, olhou para o teto de forro que ainda torto estava, lembrou dos
gatos a cair em cima dela, chorou. O moço surdo/mudo foi até a casinha, onde
colocava a ração dos gatinhos, naquele momento, ele não experimentou a
comidinha, sabia que veneno ali tinha, não deixou cair-lhe uma lágrima do
rosto, mas, com um gesto da mão, desceu o polegar do olho até o queixo, chorou
do seu jeito. O homem da perna engessada, nesse dia não ficara na varanda,
entrou e chorou a falta que a vida lhe poderia fazer, mesmo que com a perna
inválida. Na janela lateral do quarto de dormir, onde ficava o gato com
cicatrizes, o vazio era preenchido, naquele dia ninguém olhava por além da vila.
O rapaz de óculos grande entrou no seu quarto, fechou a velha janela, olhou
entre as frestas, seus gatos burros, como podem morrer com tão pouco, se
tinham um plano tão grande? Naquele momento, ele tirou seus grandes óculos,
enxugou as lágrimas que caíam, burros demais, gatos burros.
Ninguém, absolutamente ninguém, conseguia tocar em nenhum corpinho
de algum gatinho ali. Parecia que era algum tipo de respeito, misturado com
dúvidas, com medo, com ânsia. E naquele dia, ninguém saiu de casa, apenas o
velho da casa 2 laranja, que caminhou canto por canto na vila. Com um carrinho,
foi recolhendo cada gatinho que encontrava no caminho. Ajeitava com cuidado
seus corpinhos, mesmo sem vida, lhe era importante a causa da matéria. E eram
tantos, nossa, quantos gatinhos sem vida. Mas ainda faltava um, ele sabia onde
procurar, subiu para sua varanda, lá, ao lado do banquinho onde o velho
passava horas sentado, estava o corpo de um grande gato preto, o que fizeram
com você, meu camarada, falou o velho se abaixando para próximo do corpo do
gato, eu pensei que um dia você sairia daqui no guarda-chuva que aqui
apareceu. Ali, morto aos pés do velho, estava o gato do céu, aquele que veio
preso com o rabo num guarda-chuva. Desde sempre ele estava na vila, o velho
apenas o acobertava, pois sabia ele que, caso as pessoas soubessem que o gato
ainda estava ali, o bichano não teria paz, seria muito assediado, por isso sempre
inventara que ele sumiu, mas todas as noites, ao lado de seu guarda-chuva o
grande gato preto dormia. O velho pegou o gato morto, levou junto com os
demais para um crematório de cães e gatos, colocou suas cinzas num bonito
jarro com desenhos de guarda-chuvas, pediu para que deixasse na janela lateral
do quarto de dormir, onde ficava o gato com cicatrizes, e lá está até hoje.
Naquela noite, ninguém saiu de casa, nem mesmo o velho ficou em sua
varanda, ele se levantou de seu banquinho, olhou um pouco para o céu que
estava limpo, entrou em casa. Na sua estante ainda estava o guarda-chuva que
caíra do céu com o gato. Foi uma noite silenciosa, o vento soprava tímido, mas,
quando todos da vila já dormiam, do céu, veio caindo lentamente um guarda-
chuva, nele havia um belo gato preto preso pelo rabo. O guarda-chuva ia
ziguezagueando para lá e para cá lentamente com o soprar do vento até que,
póc, pousou no telhado da casa 2A laranja. Logo em seguida, daquele mesmo
céu limpo, outro guarda-chuva caía lento e suave, neste, havia um gato malhado
preso pelo rabo. Não muito distante, outro e outro guarda-chuva caíam, todos
com um gato preso nele, de diferentes raças e cores, póc, póc, póc, pousavam os
gatos nos guarda-chuvas nos telhados de todas as casas. E outro, e outro, e
outros guarda-chuvas iam caindo do céu, cada um com um gato pendurado pelo
rabo, era uma chuva de gatos com guarda-chuvas, vindo em todas as direções,
caindo em todos os telhados das antigas casinhas da vila. Póc, póc, póc, póc, póc,
póc... era a vila dos gatos que dava boas vindas aqueles gatos sem donos, desses
vagabundos, sujos e esfomeados.

- SOBRE O AUTOR –


Jakson Nako sempre gostou de criar histórias, mas foi aos 15 anos que escreveu
pela primeira vez, para participar de um festival de poesias entre escolas
públicas e ficou entre os cinco premiados. Depois disso, escreveu um roteiro,
também para festivais escolar, e vários outros textos.

O autor estudou Jornalismo na Universidade Católica São Judas, Publicidade e
Propaganda pela FIC, estudou/estuda Pós em Literatura em Bizâncio, Poesia
Persa, Literatura Africana de Língua Portuguesa, O Cômico na Literatura
Italiana e Escravidão no Romantismo Brasileiro na USP, Literatura no
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - USP, além de História da Arte
na PUC-SP. Atualmente reside em São Paulo.

- Convidado para participar da coletânea poética "Palavra é Arte 2017" (estou
aceitando pedido de compra do livro);

- Poema classificado no concurso "Poesia Livre 2017" (estou aceitando pedido


de compra do livro);

- Vencedor do concurso "Escritores de Ouro", na categoria melhor livro de


Terror;

- 2˚ lugar no "Projeto Uma Dose a Mais", categoria "Terror".

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