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REVISTA DE FFLCH-USP

Revista de Historia 135 2asemestre de 1996

NOTAS SOBRE AS REVOLTAS


E AS REVOLUÇÕES DA EUROPA MODERNA"

Profa. Dra. Laura Mello e Souza


Depto. de História-FFLCH/USP

RESUMO: Este artigo procura fazer um balanço geral da historiografia européia referente às revoltas e revoluções da
Europa Moderna, enfatizando sua incidência no século XVII, e apontando para possibilidades d e pesquisa que, fora d o
recorte meramente político, ofereçam alternativas analíticas.

ABSTRACT: This article presents an overall balance of the European historiography c o n c e r n i n g the revolts and revolu-
tions in Modern Europe, emphasizing its incidence in the seventeenth century and pointing out the possibilities of
research which, apart from the merely political context, offer analytical alternatives.

PALAVRAS-CHAVE: Revoltas, revoluções, crise, sociedade d o Antigo R e g i m e , Século XVII

KEYWORDS: revolts, revolutions, crisis, Ancient Regime society, seventeenth century

"As revoluções são quase tao difíceis de I. O d e b a t e s o b r e a s c o n v u l s õ e s p o l í t i c a s e s o c i -


reconstruir quanto de prever". ais que, no b o j o d e u m a crise e c o n ô m i c a secular, aba-
Forster e Greene teram-se sobre a Europa no decorrer do século XVII,
um dos mais significativos d a historiografia européia
dos anos 5 0 e 6 0 deste s é c u l o . Para Christopher Hill,
o estudo desses fenômenos seria m e s m o "o teatro
' Este é o texto da prova escrita do Concurso para a Livre-
Docência junto ao Departamento ile História, na Disciplina de mais i m p o r t a n t e no qual se livrava a batalha pelo
História Moderna, que realizei no final de agosto de 1993. A banca marxismo" ( V I L L A R I , 1981). N o que diz respeito
examinadora era composta dos Profs. Drs. María Manuela Lígeti
Carneiro da Cunha (DA-FFLCH-USP), José Jobson de Andrade ao enfoque e c o n ô m i c o , a g r a n d e crise de c r e s c i m e n t o
Arruda (DH-FFLCH-USP), Francisco Iglesias (DE-FCE-UFMG), evidenciada, segundo Ruggiero Romano, por volta
Gilberto Cardoso Alves Velho (DA-PPCAS-MN/UFGJ) e Stuart
B.Schwarz (HD-UM). Mantive o texto original, com um ou outro
de 1620 permitiria que Eric J. Hobsbawm questio-
acréscimo bibliográfico, e umas poucas linhas acerca do texto de nasse os descaminhos da pujança material do sécu-
Giovanni Bi rugo, que me chegou as mãos dois anos depois, no lo XVI, formulando pergunta bem ao gosto do mar-
final de 1995. Devo a referência a meu amigo Robert Rowland, a
quem, mais uma vez, sou pro fundamente grata. xismo de então: "por que a expansão dos séculos
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XV-XVI não conduziu diretamente à época da revo- perseguição às bruxas, têm se reportado à crise
lução industrial dos séculos XVIH-XIX? Quais os multifacetada do século XVII em busca de balizas
obstáculos à expansão capitalista?" (HOBSBAWM, cronológicas mais definidas e de explicações mais
1971). No que diz respeito a abordagem mais vol- convincentes (LEVACK, 1987). O próprio Roper,
tada para o social e o político, Hugh-Trevor-Roper historiador polêmico, paradoxal, inquieto e brilhan-
veria, na sucessão setecentista de levantes e sedi- te como poucos, arrisca a relação entre crise geral
ções, o coroamento da irracionalidade do Estado do século XVII c perseguição generalizada às bru-
Renascentista, excessivamente pesado e dispendio- xas no ocidente europeu (ROPER, 1988).
so, cada vez mais distante do corpo social (ROPER, Seria impossível, no âmbito deste texto, esgotar
1972). Roper, evidentemente, destoava das análi- as relações possíveis suscitadas pela questão das re-
ses marxistas, gerando uma célebre discussão com voltas e revoluções da Europa Moderna. Procuran-
o grupo "new-left" da Past and Present e sendo do apenas encaminhar alguns problemas e arriscar
execrado entre os marxistas num âmbito tão ou conclusões, optei por uma discussão historiográfica
mais internacional quanto o da crise que se anali- restrita que, partindo da problemática da construção
sava. Já no tocante ao recorte de cunho mais ideo- de modelos e de sistematizações gerais, passa, a se-
lógico, ou melhor, no que tange ao estudo das ideo- guir, para a busca de ccrlos encaminhamentos espe-
logias, George Rude e Robert Mandrou procuraram cíficos. Tais encaminhamentos redimensionam o
refletir sobre o caráter de lais levantes, valendo-se, problema que envolve revolução enquanto conceito
no primeiro caso, das abordagens de G. Luckács c universal e absoluto c sugerem outras grades de lei-
A. Gramsci e, no segundo, de uma apropriação li- tura, influenciadas pela história antropológica c pela
vre e interessante das idéias de Lucien Goldmann renovação da historiografia marxista.
(RUDE, 1981; MANDRÒU, 1965).
Pela amplitude dos enfoques c pela abundância II. Para melhor encaminhar o debate historiográ-
dos estudos, nota-se que C. Hill eslave certo, mas, fico, é necessário demorar-se um pouco sobre os fa-
também, que tal debate extrapolava o âmbito da tos históricos que caracterizam o período em estu-
historiografia marxista, provocando adesões tam- do. Na perspectiva que vê a História como progres-
bém à direita, como o referido Trevor-Roper c ain- so e que, desde a Ilustração, tem tido tanta impor-
da Roland Mousnier, o teórico francês da socieda- tância nos estudos historiográficos, fornecendo in-
de de ordens, o estudioso da Fronda e do Estado clusive os contornos da História como disciplina,
Absoluto sob os Bourbons. Alem da já menciona- ficava difícil entender por quê a explosão de rique-
da discussão sobre crescimento econômico e crise, za que atinge a Europa do Renascimento não havia
o século XVIII, nos seus infortúnios, funcionava tido, como decorrência necessária, a revolução in-
como laboratório para reflexões sobre a natureza dustrial ou, pelo menos, o desenvolvimento econô-
das lutas sociais, sobre a historicidade da luta de mico continuado c uma correspondente paz social e
classes, sobre a possibilidade de tais lutas ocorre- estabilidade política.
rem em formações sociais em que os grupos inte- Com o arrefecimento dos surtos mortíferos de
grantes ainda não haviam amadurecido a consciên-
peste e de fome, verifica-se entre os séculos XV e
cia de si etc. Mais recentemente, até estudos vis-
XVI um considerável desenvolvimento demográfico
tos como mais soft em termos de ideologia e mes-
c urbano; a expansão marítima propiciava o surgi-
mo de relevância historiográfica, como a análise da
mento de portos extremamente dinâmicos - Cádiz,
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Sevilha, Antuérpia, Amslerdam, Lisboa ... -, o aque- 94). Aliás, o século de ouro espanhol é também o sé-
cimento das trocas comerciais favorecendo a acumu- culo dos pícaros e da moderna idéia de pobreza; em
lação de capitai e o surgimento de riquezas consi- 1525, o judeu espanhol Juan Luís Vives publicava a
deráveis (BRAUDEL, 1979). Aliada, entretanto, a De Subvencione pauperum. Por toda a Europa portan-
transformações agrárias que, em grande parte da to, abria-se o abismo entre pobres e ricos, acentuava-
Europa, diminuíram e fracionaram as posses cam- se a distinção entre capital e trabalho. "Uma pessoa
ponesas de terra (os enclosures ingleses são o possui o dinheiro, e outra faz o trabalho", dizia-se
paradigma do processo), a pujança do capitalismo então (LIS e SOLI, 1984, p. 94).
comercial fez-se acompanhar de um custo social No àmbito das classes proprietárias, a burguesia
altíssimo. Junto com a riqueza moderna, capitalis- ia adquirindo terras e títulos de nobreza, traindo sua
ta, surge a pobreza também moderna e capitalista. "vocação", na bela formulação de F. Braudel. Ridi-
O pobre deixa de ser o coitadinho de Cristo para se cularizando os "parvenus" como M. Jourdain, a
tornar, na expressão recorrente em tantos escritos da paradigmática personagem de O Burguês Fidalgo de
época, "o peso inútil da terra" (VVAA, 1979; Molière, os pobres de velha linhagem não despre-
GEREMECK, 1976). Muda, então, o sentimento zavam, entretanto, a riqueza fertilizadora que fluía
com relação aos despossuídos; a iconografia fixou destes membros do terceiro estado. Como disse
muito bem tal mutação de sensibilidade: lembrem- muito bem Mme. de Sévigné, tais ingressos eram o
se os pobres odiosos, deformados, de olhar feroz e esterco necessário para revitalizar os seculares tron-
maldoso que povoam as telas flamengas (e holan- cos nobres.
desas) desde J. Bosch e P. Brueghel; lembre-se igual- Uma sociedade polarizada em que o tom ainda
mente que, para muitos, a Holanda é a expressão era dado pela nobreza, lembrando a formulação
mais feliz do capitalismo moderno (ZUMTHOR, clássica de Hans Freycr acerca da sociedade de
1959; SHAMA, 1988). estados (IANNI, p. 168). Mas uma sociedade em
Homens que vagavam eram pobres por incúria e que também as classes proprietárias se viam sob
imprevidência. Mas o que dizer dos novos pobres, que impasses vários: dominante, na França, a nobreza
trabalhavam c continuavam miseráveis? Em 1577, de sangue tinha que se haver com a "toga"; rare-
informava Jan van Houtte, secretário Geral de feita sob o impacto da Guerra das Duas Rosas, na
Lcyden: "os trabalhadores pobres - melhor chamá-los Inglaterra, a velha nobreza via seus privilégios se-
escravos - depois de lerem trabalhado toda a semana, rem devorados pela "gentry"; acossada pela pujan-
vêm-se obrigados a mendigar nos domingos para com- ça dos súditos das Províncias Unidas, na Espanha,
pletarem seus salários." (LIS e SOLY, 1984, p. 88). as famílias dos "grandes" castelhanos se lançam na
Na Inglaterra, no momento cm que se abria a crise Guerra, deixando para trás os doze anos de trégua
secular, em 1618, Robert Reycc escreve que, nas par- c arrastando, conforme a bela análise de Trevor
tes de Suffolk em que "vivem ou viveram os tecelões, Roper, a Europa toda para a sua primeira Confla-
nelas se encontra o maior número de pobres" (idem). gração Geral (ROPER, 1985).
Dos trabalhadores c cottars, Francis Bacon dizia que Por loda a parle, como que tentando orquestrar a
eram "but house beggars". No ocaso do século XVI, crise econômica, a miséria social, o fosso entre ri-
Castela via-se ás voltas com a subalimentação crôni- cos c pobres, os desentendimentos entre várias ga-
ca; 50% da população rural não linha terras, 65% vi- mas de nobres e burgueses, cresce o Estado Absolu-
via no limite da subsistência (LIS c SOLY, 1984, p. to. Por toda a parte, em diferentes gradações, o Rei
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deixa de convocar suas assembléias - Cortes em tra os holandeses (BIRAGO, 1653, pp. 160-171 ). Tal
Portugal e na Espanha, Parlamento na Inglaterra, inclusão é, no mínimo, intrigante: indício, talvez,
Estados Gerais na França - solapando as bases ori- de que, na época, o mundo ultramarino ainda era
ginárias sobre que se assentara a sociedade de esta- visto como parte integrante dos impérios europeus,
dos. Daf as análises historiográficas falarem de cri- não se estabelecendo diferenças substantivas entre
se geral: da economia, da política, da sociedade. O a Sicília e Pernambuco. O primeiro grande impac-
indicador da crise, no plano econômico, é, para to sobre o sistema europeu dos impérios modernos
muitos, o fim do crescimento econômico frenético viria com o término da Guerra dos Trinta Anos
que caracterizara o século XVI; no plano político c (TILLY, 1996, p. 215 e segs), e só cm meados do
social, a sucessão de revoltas, que atingem dimen- século seguinte - no plano das idéias, com Raynal;
são inaudita entre 1640 c 1660: na Inglaterra, o ápi- no plano das ações práticas, com a revolta dos co-
ce da Revolução de Cronwell, entre 1648 c 1653; na lonos ingleses da América do Norte - é que se tor-
França, o da Fronda, entre 1648 e 1653; na Cata- naria nítido, para a consciênciacuropéia, o real sig-
lunha, a sedição separatista, auxiliada pelo governo nificado da sublevação em colônias.
francês entre 1640 e 1652; em Portugal, a guerra da Mas voltemos à historiografia de nosso século;
Restauração, entre 1640 e 1648; cm Nápoles, a re- o pioneiro do enfoque das revoltas da Época Moder-
volta de Masaniello, nos anos de 1647-48; na na como sendo "universais" foi Roger Bigelow
Holanda, a tentativa de golpe de estado de Guilher- Mcrriman cm Six contemporaneous revolutions,
me II; na Ucrania, a insurreição de 1650; na Suíça, publicado cm 1938. Tal obra fez escola, e seus ecos
a guerra camponesa de 1653; na Rússia, a rebelião podem ser encontrados no já mencionado artigo de
de Stenka Razin cm 1672. Trcvor-Ropcr e ainda cm trabalhos como o de Perez
Zagorin, Rebels and Rulers - 1500-1660, e a coletâ-
III. Os autores que defendem a idéia de que ocor- nea organizada por Robert Forster e Jack P. Greene
rera na Europa de então uma "revolução universal" Revoluções e Rebeliões na Europa Moderna. Nes-
invocam o exemplo de contemporâneos às sedições, tes dois estudos, entretanto, há a ultrapassagem do
para quem sua generalidade era evidente. R. Mousnicr enfoque universalista c a preocupação em criar
lembra a Histoire des troubles de la Grande Bretagne, tipologias. Mousnicr fica um pouco â margem: ado-
de Robert Mentet de Salmonct, pubiicada em Paris em tando a perspectiva universalista, estabelece compa-
1649 o que vê, no século XVII, "um século difícil, rações entre levantes no Ocidente e no Oriente pro-
curando encontrar, neles, antes um nexo comum do
um século de ferro": "Toujours est-il fameux pour les
que tipologias específicas.
grandes et étranges révolutions qui y sont arrivés. (...)
Les revolts y ont cle fréquentes tout dans l'Orient Tome-se o caso de Zagorin. Comparando c cri-
que dans 1'OccideM" (MOUSNIER, 1967, p. 9). ando tipologias, o autor procura compreender o ca-
Curiosíssimo é o caso de Giovanni Battista Birago, ráter do fenômeno revolucionário, observando tal-
que cm 1653 publicou em Veneza, no âmbito das vez com justeza que, para os contemporâneos, revo-
Historie memorabili de Alessandro Zilioli, urna par- lução c rebelião são sinônimos, o conceito de revo-
te sobre as Sollevat'toni di stato de' nostri tempi, lução tendo migrado do contexto cosmológico - onde
nela incluindo, ao lado da Catalunha, da Inglater- descrevia rotações de corpos celestes - para o soci-
ra, da França, de Portugal, da Sicília e de Nápoles, al: "Quando se transplantou a atos humanos, a pala-
o Nordeste da América Portuguesa, que lutava con- vra continuou a recordar a idéia de circularidade e
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se referia ao ciclo de mudanças nos estados com sua transformar-se cfn revolução (como a catalã e a fran-
concomitante agitação. Ainda não se via em revolu- cesa); a rebelião regional em grande escala com
ção a associação com inovação deliberada c consci- potencial limitado para se converter em revolução
ente, ou com progresso. Até o século XVII, não se (como a de Pugochov), o golpe de estado secessio-
usou revolução em sentido político. A primeira re- nista (o português) e as jacqueries urbanas (na Sicília
belião na história européia que foi considerada pe- c em Nápoles). Mais uma vez, a tipologia não con-
los contemporâneos como revolução foi a inglesa de segue captar as especificidades, e o caráter univer-
1688; mesmo assim, concebiam-na em termos salista-neutralizador leva a melhor. Se os ótimos
cíclicos como uma restauração da ordem legal, que estudos de Mousnier e Stone já mencionados apon-
o monarca deposto, Jaime II, tinha violado tiránica- tam a riqueza das situações particulares em Histó-
mente" (ZAGORIN, 1985, p.37). ria, a introdução dos autores insiste na camisa-de-
Procurando tipologias e invocando a "Consciên- força da generalização, e acaba enveredando pela
cia cíclica" de revolução dos homens do século seara do indistinto. Os movimentos do século XVII
XVII, Zaforin abraça, na verdade, posição conser- são assim apresentados como "antecedentes" das
vadora no tocante às revoluções: cias não são capa- "grandes revoluções do final do século XVIII"
zes de ultrapassar o caráter da sociedade de que fa- (ZAGORIN, 1985, p. 12).
zem parte, insere vendo-se nos limites de sua época Por fim, entre os adeptos da idéia de "revolução
(ZAGORIN, 1985, p. 42). Valorizando o âmbito universal", Mousnier busca, para além de suas re-
geográfico em que ocorrem, estendendo para o sé- voltas, da França à China, a persistência dos "furo-
culo XV o arco da periodização, endossando tipolo- res camponeses", de um caráter informe e assiste-
gia mista para elas - rebeliões agrárias, como a guerra mático, próprio ao momento histórico em estudo e,
camponesa da Alemanha ou a rebelião de Kelt na em última instância, incapaz e/ou insuficiente de
Inglaterra dos Tudor; rebeliões urbanas, como as subverter a ordem, instaurando uma outra, nova:
francesas c espanholas, na verdade tão distintas umas impotente, portanto, para realizar a revolução
das outras; rebeliões provinciais, como a dos Nu- (MOUSNIER, 1967). A todas essas formulações
Pied na França, a Restauração Portuguesa, as revol- cabe aplicar a crítica aguda que A. Lublinskaya fez
tas de Aragão, da Irlanda, da Escócia; guerras civis, sobre o trabalho de T. Roper: criam multidões de
como a da França sob os últimos Valois, a dos Paí- revoluções para, em seguida, destrui-las; homoge-
ses Baixos contra a Espanha, a Fronda, a revolução neizam fenômenos radicalmente distintos, tendo
inglesa de 1640 - Zagorin esvazia lais fenômenos do como base comum tão-somente a simultaneidade
seu conteúdo virulento c, homogeneizando-os, no (LUBLINSKAYA, 1983).
limite, os neutraliza.
A coletânea de Forster c Greene, rica cm ques- IV. Sem se aterem ao caráter "universal" das re-
tões c contendo alguns ensaios clássicos, como o de voltas, ou, pelo menos, sem procurar erigi-lo em ca-
Mousnier sobre a Fronda c o de Laurence Stone so- tegoria explicativa, há um outro grupo de historia-
bre a Revolução Inglesa, acaba sendo engolfada pela dores que ainda persegue modelos e sistematiza-
mesma vertigem universalista-tipológica. Da con- ções, mesmo que de forma implícita. Tais sistema-
vulsão seiscentista, destaca as grandes revoluções tizações não se pautam, portanto, na simultaneida-
nacionais (a inglesa c a holandesa, que surge no sé- de das revoltas, e sim no seu caráter: em outras pa-
culo XVI); as revoltas nacionais com potencial para lavras, procuram detectar a existência ou não da
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luta de classes ou da revolução burguesa nos fenô- crateras" (MANDROU, I965,p.26) em que os trá-
menos em estudo. gicos conflitos sociais se mostram, na maior parte
Para a discussão sobre a existência de luta de das vezes, inconsistentes, imersos no "patético co-
classes nas revoltas do século XVII, o caso francês tidiano". Considerando que a condição de existên-
foi especialmente importante, sobre ele tendo se de- cia da luta de classes é a consciência de classe (o ser
bruçado alguns dos principais estudiosos do assun- coletivo), Mandrou frisa que esta implica, por um
to; houve inclusive polêmicas, simbolizadas na opo- lado, na solidariedade entre os diferentes membros
sição entre R. Mousnier e B. Porshnev. Se Mousnier da classe:e, por outro, na hostilidade ante outros
não vê luta de classes, destacando o caráter esponta- grupos. Vê" a nobreza como consciente do seu papel
neísta e assistcmático dos levantes, Porschncv ma- dominante; a burguesia como "esquartejada" e os
tiza a questão detectando, nos levantes, o choque movimentos populares como oscilando entre a pró-
entre duas "frentes de classes": de um lado, a massa pria força revolucionária e a própria cegueira. A si-
dos artesãos e dos camponeses, opositores do fisco tuação francesa, paradoxal, se caracterizaria, assim,
e do feudalismo ao mesmo tempo; do outro, a bur- por classes superiores capazes de promover a trans-
guesia e a nobreza, defensoras da preservação da formação política mas incapazes de imporem suas
ordem feudal-absolutista. No limite, tal luta entre concepções de forma eficiente; por classes popula-
frentes de classes seria uma forma, seiscentista e res que, representando considerável massa de mano-
moderna, da luta de classes (MOUSNIER, 1967; bra, sempre prestes a entrar cm lula, não tinham pro-
PORCHNEV, 1972) . jeto político c, em última instância, não tinham cons-
ciência de classe.
A. Lublinskaya apresenta pontos de aproximação
com Porschncv ao ver nas convulsões seiscentistas Para Mandrou. portanto, as sublevações france-
lutas de classes sem serem, entretanto, forma superi- sas não leriam sido luta de classes, apesar de terem
or de luta de classes. No contexto francês, vê a no- aparência de luta de classes, sobretudo na violência
breza e o campesinato como classes doladas de cons- demonstrada. Por outro lado, eram virtuais as suas
ciência, c complementares, enquanto considera a aspirações de transformação. "Uma classe que vir-
burguesia como classe cm nível local, mas não nacio- tualmente deseja fazer a revolução, mas que não tem
nal. A luta movida foi revolucionária na medida cm consciência de que pode fazê-la, não 6 uma classe
que se dirigia contra diferentes formas de exploração; revolucionaria" (MANDROU, 1965, p. 78).
para os camponeses, passar da luta contra os senho-
res feudais, típica do século XIV, para a luta contra o V. Cabe, por fim, apresentar os autores que, dc-
Estado feudal, própria ao século XVII, correspondeu bruçando-se sobre as revoltas do século XVII, pro-
a um amadurecimento ideológico. Não havendo, por- curam se abster de tipologias ou modelos, buscando
tanto, "forma superior de luta de classes", ocorreu uma antes a sua especificidade. Nesta perspectiva, não faz
outra forma, tão consciente e moderna quanto aque- sentido questionar o seu caráter de luta de classes,
la, e assentada sobre contradições das classes - mes- ou a sua força revolucionária com base nos mode-
mo que estas não se expressassem tão claramente los criados a partir dos eventos de 1789 c 1848. Para
quanto viriam a faze-lo em 1789.
eles, considerar a Revolução Francesa como mode-
Cabe por fim lembrar o estudo sugestivo de lo de revolução c, a partir dela, examinar fenôme-
Mandrou, acima citado, que caracteriza a França do nos anteriores seria realizar a famosa "previsão do
século XVII como "espécie de vulcão de múltiplas passado", o que distorceria o enfoque histórico no
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que tem de rico e particular. Há assim uma relativi- consciência revolucionaria en el siglo XVII", o his-
zação do enfoque marxista no sentido em que este toriador italiano mostra que, mesmo se meramente
vincula, inextrincavelmente, revolução com luta de anti-fiscal e espontánea, a revolta seiscentista é um
classes, vendo a revolução francesa como o exem- momento revelador de ampla crise nas relações so-
plo supremo de tal relação. ciais. Mais ainda: que, naquela época, o anti-fisca-
A posição alternativa de Thompson é hoje céle- lismo é pleno de significado político: é anti-feudal;
bre; sem sair do marxismo, vê as convulsões do mun- vincula-se a um discurso mais amplo sobre a hierar-
do pré-indu stri ai como "luta de classes sem classes". quia das ordens, o sistema de poder, as relações en-
A consciência de classe c, portanto, a realização da tre a ação do governo c o desenvolvimento da eco-
própria classe seria decorrência do processo de luta; nomia; vincula-se, por fim, a discursos sobre a re-
"as classes não existem como entidades separadas, que volução da ordem política e social que, apesar de
olham em volta, encontram uma classe inimiga e logo fragmentários e interrompidos, vinham se constitu-
começam a lutar. Pelo contrário, as pessoas se encon- indo na época. Finalizando, Villari lembra que o
tram numa sociedade estruturada em modos determi- século XVII foi mais importante que o XVI na for-
nados (crucialmente, porém não exclusivamente em mulação de discursos políticos. Em outras palavras,
relações de produção), experimentam a exploração é importante atentar para a relação existente entre o
(com a necessidade de se manterem sobre os explo- alto índice de sublevações e o fato de, concomitan-
rados), identificam pontos de interesse antagônicos, temente, estar sendo gestada a moderna idéia de re-
começam a lutar por estas questões e no processo de volução como subversão da ordem.Tal idéia, por sua
luta se descobrem enquanto classe, e chegam a conhe- vez, não se constituía apenas num lugar específico -
cer este descobrimento como consciência de classe" na Inglaterra, como se quis durante muito tempo -,
(THOMPSON, 1981, p. 359). pipocando aqui e ali, das Províncias Unidas insur-
Numa situação como a da Inglaterra setecentista gentes à França dos huguenotes (VILLARI, 1981).
- campo de estudo preferencial para Thompson - é Lublinskaya, por sua vez, fornece nova chave de
necessário captar as resistências simbólicas ofereci- compreensão aos levantes através de vias oblíquas.
das pelos grupos sociais, pois as classes têm de ser Ao contestar a idéia de Hobsbawn de que o século
possíveis no conhecimento antes que encontrem XVII sofrera uma crise econômica geral, a historia-
expressão institucional. No contexto da cultura po- dora russa o acusa de se pautar no modelo de desen-
pular, tradicionalismo e rebeldia coexistem: pode- volvimento industrial para, por meio dele, 1er outras
se ser rebelde cm defesa do costume, e invocando formas de desenvolvimento econômico. Ora, se o
preceitos morais. Assim, o povo se revolta de forma ritmo industrial é rápido, o ritmo e o desenvolvimen-
violenta clamando pelo preço justo do pão: é o que to manufatureiros, próprios à Europa do século XVII
Thompson, cm outro artigo fundamental, "A econo- - e Lublinskaya exemplifica quase sempre com o
mia moral das classes populares inglesas no século caso francês - é lento. Assim, cabe questionar se
XVIII" chama de "economia moral" das classes houve crise de crescimento, ou, pelo menos, se é
populares (THOMPSON, 1981, pp.57-136). pertinente a pergunta de Hobsbawm mencionada no
Rosario Villari e A. Lublinskaya, por vias dife- início deste texto.
rentes, contribuem também para uma melhor com- O desenvolvimento económico do século XVIII
preensão dos levantes seiscentistas na medida em inglês não vale para o exame da situação européia
que destacam sua especificidade. Em "Revueltas y setecentista, e para a proclamação apressada de uma
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crise geral. Os modelos de revolução c de lula de se mais cálculo e ordem nos levantes anti-fiscais e
classes próprios ao século XVIII - leia-se à revolu- nas revoltas "es pon tan e ís tas" do século XVII do que
ção francesa - não servem para examinar os confli- poderia supor Roland Mousnier.
tos do século XVII nem esvazia seu conteúdo revo- Olhar para o simbólico certamente ajudará a
lucionário. A própria idéia de revolução ganha for- compreender a natureza dos levantes do século XVII
ças naquele contexto, como observa Villari. Os co- europeu. Ainda há poucas certezas sobre o assunto,
mentários deThompson para os conflitos ingleses do e por isso termino este texto com algumas interro-
século XVIII valem também para os levantes euro- gações. Talvez o grande esforço da revolução sete-
peus do século XVII: vê-los apenas como espontâ- centista tenha sido subtrair a violência do âmbito do
neos c espasmódicos não corresponderia ao endos- cotidiano, inscrevendo-o no âmbito da exceção. Tal-
so de visão condicionada pela economia política, que vez o que tenha calado fundo na mentalidade seis-
reduz as trocas humanas a trocas salariais? centista - daí os contemporâneos estarem atentos à
Por fim, sem querer alongar demais a lista dos "revolução universal" de que falava Robert Menici
autores aqui examinados, há que atentar para de Salmone! em 1649 - tenha sido justamente esse
enfoques que, sem se debruçarem especificamente caráter cotidiano c generalizado da violência. Vio-
sobre as revoltas c revoluções do Seiscentos, podem, lência que permeava as diversas instâncias da vida,
contudo, ajudar a melhor compreendê-los. Lem- da política ao imaginário, fundindo-as. "Rebellion
brem-se os ensaios de Robert Darnton sobre O gran- is as the sin of witchcraft", dizia-se na Inglaterra
de massacre de gatos e o de Natalie Z. Davis sobre seiscentista (CLARK, 1980). No final do século
Os atos da violência e As razões do desgoverno XVI, às vésperas da derrocada espanhola de 1588 -
(DARNTON, 1986; DAVIS, 1990). Perscrutando as quando a Invencível Armada de Filipe II seria sin-
relações entre a sociedade moderna (do Quinhentos tomaticamente destruída por uma tempestade -,
e do Setecentos) e a violência, tais estudos mostram Lucrécia de Leon tinha sonhos em que imagens ter-
o seu caráter ritual c simbólico, por um 'ado profun- ríveis e violentas representavam o fim da grande
damente diferente do que vemos hoje, por outro, tão Espanha do Século de Ouro. Para R. Kagan, auior
fundamentais na constituição do moderno conceito de um belo livro sobre Lucrécia, seus sonhos expres-
de revolução. Se a violência passou a ser constitutiva savam a consciência social c política do Espanha do
da ruptura revolucionária- para invocar um só exem- século XVI, sendo indicadores do imaginário da
plo, tenha-se cm mente o terror revolucionário de época. Mais ainda: através de imagens, durante o
1793 -, ela já vinha sendo expressa, simbólica ou sono, Lucrécia vivia c previa a crise da Espanha. A
efetivamente, pelas práticas sociais desde o século Inquisição a levou a sério: foi presa e processada
XVI. Havia cálculo e ordem nos ritos da violência, (KAGAN, 1990). Indício bastante forte da forçado
mostra Natalie Davis - sugerindo que talvez houves- simbólico na sociedade de então.

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Endereço da Autora: Departamento de História-FFLCH/USP • Avenida Professor Lineu Prestes, 338 • CEP 05508-900 • Cidade Univer-
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