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DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo?

A filosofia de Foucault apresenta-se


frequentemente como uma análise de dispositivos
concretos. Mas o que é um dispositivo?1 É antes de
mais nada um emaranhado, um conjunto multilinear.
Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas
linhas do dispositivo não cercam ou não delimitam
sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua,
etc., mas seguem direções, traçam processos sempre
em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se
afastam umas das outras. Cada linha é quebrada,
submetida a variações de direção, bifurcante e
engalhada, submetida a derivações. Os objetos
visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em
exercício, os sujeitos em posição são como vetores ou
tensores. Assim as três grandes instâncias que
Foucault distinguirá sucessivamente, Saber, Poder e
Subjetividade, não têm de maneira alguma contornos
fixos, mas são correntes de variáveis em luta umas
com as outras. É sempre numa crise que Foucault
descobre uma nova dimensão, uma nova linha. Os
grandes pensadores são um pouco sísmicos, eles não
evoluem mas procedem por crises e por abalos. Pensar
em termos de linhas móveis, é a operação de Herman
Melville, e havia linhas de pesca, linhas de submersão,
perigosas, até mesmo mortais. Há linhas de
sedimentação, disse Foucault, mas há linhas de
"ruptura", de "fratura". Separar as linhas de um
dispositivo, em cada caso, é desenhar um mapa,
cartografar, medir a passos terras desconhecidas, e é
isso que ele chama de "trabalho sobre o terreno". É
necessário instalar-se sobre as próprias linhas, que não
se limitam a compor um dispositivo, mas que o
atravessam e o arrastam, do norte ao sul, do leste ao
oeste ou em diagonal.
As duas primeiras dimensões de um dispositivo,
ou aquelas que Foucault separa no início, são as
curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. Os
dispositivos são como máquinas de Raymond Roussel
analisadas por Foucault, são máquinas de fazer ver e
de fazer falar. A visibilidade não remete a uma luz em
geral que viria iluminar os objetos preexistentes, ela é
feita de linhas de luz que formam figuras variáveis
inseparáveis deste ou daquele dispositivo. Cada
dispositivo tem seu regime de luz, maneira pela qual a
luz cai, se esfuma, se expande, distribuindo o visível e
o invisível, fazendo nascer ou desaparecer um objeto
que não existe sem ela. Não é só a pintura mas a
arquitetura: assim o "dispositivo prisão" como
máquina óptica, para ver sem ser visto. Se há uma
historicidade dos dispositivos, é a dos regimes de luz,
mas também a dos regimes de enunciados. Pois os
enunciados, por sua vez, remetem a linhas de
enunciação sobre as quais se distribuem as posições
diferenciais de seus elementos: e, se as curvas são elas
próprias enunciados, é porque as enunciações são
curvas que distribuem variáveis, de modo que uma
ciência nesse momento, ou um gênero literário, ou um
estado de direito, ou um movimento social, se definem
precisamente através de regimes de enunciados que
eles fazem nascer. Não são nem os sujeitos nem os
objetos, mas os regimes que devem se definir para o
visível e para o enunciável, com suas derivações, suas
transformações, suas mutações. E, em cada
dispositivo, as linhas transpõem alguns limiares, em
função dos quais elas são estéticas, científicas,
políticas, etc.
Em terceiro lugar, um dispositivo comporta as
linhas de força. Dir-se-ia que elas vão de um ponto
singular a um outro nas linhas precedentes; de certa
maneira elas "retificam" as curvas precedentes, traçam
tangentes, envolvem os trajetos de uma linha à outra,
operam o vai e vem do ver ao dizer e inversamente,
agindo como flechas que não param de entrecruzar as
coisas e as palavras, levando adiante a batalha entre
elas. A linha de força se produz "em toda a relação de
um ponto a outro", e passa por todos os lugares de um
dispositivo. Invisível e indizível, ela está estreitamente
embaraçada às outras, e, no entanto, pode ser
desembaraçada. É ela que Foucault traça, é sua
trajetória que ele encontra em Roussel, em Brisset, nos
pintores Magritte ou Rebeyrolle. É a "dimensão do
poder", e o poder é a terceira dimensão do espaço,
interior ao dispositivo, variável com os dispositivos.
Ela se compõe, com o poder, com o saber.
Enfim Foucault descobre as linhas de
subjetivação. Essa nova dimensão já suscitou tantos
mal entendidos que passamos por dificuldades em
precisar suas condições. Mais que qualquer outra, sua
descoberta nasce de uma crise do pensamento de
Foucault, como se ele tivesse que remanejar o mapa
dos dispositivos, encontrar para eles uma nova
orientação possível, para não deixá-los simplesmente
se fechar sobre as linhas de força intransponíveis,
impondo contornos definitivos. Leibniz exprimia de
maneira exemplar esse estado de crise que relança o
pensamento quando se crê que tudo está quase
resolvido: pensávamos ter chegado ao porto, mas
somos jogados de novo em alto mar. E Foucault, por
sua vez, pressente que os dispositivos que analisa não
podem ser circunscritos por uma linha que os envolve,
sem que outros vetores passem por cima ou por baixo:
"transpor a linha", ele diz, como "passar do outro
lado"? Essa ultrapassagem da linha de força, é o que
se produz quando ela se recurva, faz meandros,
afunda, e torna-se subterrânea, ou antes quando a
força, em vez de entrar numa concordância linear com
outra força, volta-se sobre si própria e se exerce sobre
si própria ou se afeta a si mesma. Esta dimensão do Si
não é de maneira alguma uma determinação
preexistente que se encontraria pronta. Antes de mais
nada, uma linha de subjetivação é um processo, uma
produção de subjetividade em um dispositivo: ela tem
que se fazer, contanto que o dispositivo o permita ou
possibilite. É uma linha de fuga. Ela escapa às linhas
precedentes, ela se lhes escapa. O Si não é nem um
saber nem um poder. É um processo de individuação
que age nos grupos ou nas pessoas, e se subtrai tanto
às relações de forças estabelecidas quanto aos saberes
constituídos: uma espécie de mais-valia. Não é seguro
que todo dispositivo comporte isto.
Foucault considera o dispositivo da cidade
ateniense como o primeiro lugar da invenção de uma
subjetivação: é que, de acordo com a definição
original que ele propõe, a cidade inventa uma linha de
força que passa pela rivalidade dos homens livres.
Ora, desta linha sobre a qual um homem livre pode
comandar outros, separa-se outra muito diferente,
segundo a qual aquele que comanda os homens livres
deve ele mesmo ser mestre de si. São estas regras
facultativas do domínio de si que constituem uma
subjetivação, autônoma, mesmo se, na sequência, ela é
chamada a fornecer novos saberes e a inspirar novos
poderes. Perguntar-se-á se as linhas de subjetivação
não são a borda extrema de um dispositivo, e se elas
não esboçam a passagem de um dispositivo a outro:
elas preparariam neste sentido as "linhas de fratura".
E, assim como as outras linhas, as de subjetivação não
têm uma fórmula geral. Brutalmente interrompida, a
pesquisa de Foucault deveria mostrar que os processos
de subjetivação apresentam eventualmente
modalidades totalmente diferente do grego, por
exemplo os dispositivos cristãos, os das sociedades
modernas, etc. Não se pode invocar dispositivos onde
a subjetivação não passe pela vida aristocrática ou
pela existência estilizada do homem livre, mas pela
existência marginalizada do "excluído"? Assim o
sinólogo Tokeï explica como o escravo alforriado
perdia de certa forma seu estado social, e se
encontrava remetido a uma subjetividade isolada,
queixosa, existência elegíaca, de onde ele iria retirar
novas formas de poder e saber. O estudo das variações
dos processos de subjetivação parece mesmo ser umas
das tarefas fundamentais que Foucault deixou àqueles
que o seguiriam. Nós cremos na fecundidade extrema
desta pesquisa, que os projetos atuais, no que concerne
a uma história da vida privada, abrangem apenas
parcialmente. Quem se subjetiva são às vezes os
nobres, aqueles que dizem, segundo Nietzsche, "nós
os bons...", mas sob outras condições são os excluídos,
os maus, os pecadores, ou podem também ser os
eremitas, ou também as comunidades monacais ou
mesmo os hereges: toda uma tipologia de formação
subjetiva em dispositivos móveis. E por toda parte
misturas a serem desfeitas: as produções de
subjetividade escapam dos poderes e dos saberes de
um dispositivo para se reinvestirem nos poderes e
saberes de um outro dispositivo, sob outras formas
ainda por nascer.
Os dispositivos têm portanto como
componentes linhas de visibilidade, de enunciação,
linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de
ruptura, de fissura, de fratura, e todas se entrecruzam e
se misturam, de modo que umas repõem as outras ou
suscitam outras, através de variações ou mesmo de
mutações de agenciamento. Duas consequências
importantes decorrem disto para uma filosofia dos
dispositivos. A primeira é o repúdio aos universais. O
universal na verdade não explica nada, é ele que deve
ser explicado. Todas as linhas são linhas de variação,
que não têm nem mesmo coordenadas constantes. O
Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito, não
são universais, mas processos singulares, de
unificação, de totalização, de verificação, de
objetivação, de subjetivação imanentes a um
determinado dispositivo. E ainda, cada dispositivo é
uma multiplicidade na qual operam determinados
processos em devir, distintos daqueles que operam em
outro. É neste sentido que a filosofia de Foucault é um
pragmatismo, um funcionalismo, um positivismo, um
pluralismo. Talvez seja a Razão que apresente o maior
problema , porque processos de racionalização podem
operar sobre segmentos ou regiões de todas as linhas
consideradas. Foucault homenageia a Nietzsche com
uma historicidade da razão; ele assinala toda a
importância de uma pesquisa epistemológica sobre as
diversas formas de racionalidade de saber (Koyré,
Bachelard, Canguilhem), de uma pesquisa
sociopolítica dos modos de racionalidade do poder
(Max Weber). Ele reserva, talvez, para si mesmo, a
terceira linha, os estudos dos tipos de "razão" em
sujeitos eventuais. Mas o que ele recusa
essencialmente, é a identificação destes processos em
uma Razão por excelência. Ele recusa toda restauração
dos universais de reflexão, de comunicação, de
consenso. Pode-se dizer desta maneira que suas
relações com a Escola de Frankfurt, e com os
sucessores desta escola, são uma longa sequência de
mal entendidos pelos quais ele não é responsável. Da
mesma forma que não há a universalidade de um
sujeito fundador ou de uma Razão por excelência que
permitiria julgar os dispositivos, não há universais da
catástrofe onde a razão se alienaria, desmoronaria de
uma vez por todas. Como Foucault diz a Gerard
Raulet, não há uma bifurcação da razão mas ela não
para de se bifurcar, há tantas bifurcações e
desdobramentos quanto instaurações, tantos
desabamentos quanto construções, segundo os cortes
operados pelos dispositivos, e "não há nenhum sentido
sob a proposição segundo a qual a razão é um longo
discurso que agora terminou". Deste ponto de vista, a
questão que se coloca a Foucault, de saber se é
possível avaliar o valor relativo de um dispositivo, se
não se pode invocar valores transcendentes como
coordenadas universais, é uma questão com a qual se
corre o risco de retroceder e de perder o sentido. Dir-
se-á que todos os dispositivos se equivalem
(niilismo)? Há muito tempo que pensadores como
Espinosa ou Nietzsche demonstraram que os modos
de existência deviam ser avaliados de acordo com
critérios imanentes, segundo seu teor de
"possibilidades", de liberdade, de criatividade sem
apelar-se a valores transcendentes. Foucault fará a
mesma alusão a critérios "estéticos", compreendidos
como critérios de vida, que substituem as pretensões
de um julgamento transcendente por uma avaliação
imanente. Quando lemos os últimos livros de
Foucault, devemos nos esforçar para compreender o
programa que ele propõe aos seus leitores. Uma
estética intrínseca dos modos de existência, como
última dimensão dos dispositivos?
A segunda conseqüência2 de uma filosofia dos
dispositivos é uma mudança de orientação, ela se
desvia do Eterno para apreender o novo. Não se supõe
que o novo designe a moda, mas pelo contrário, a
criatividade variável segundo os dispositivos: de
acordo com a questão que começou a ser formulada
no século XX, como é possível no mundo a produção
de alguma coisa nova? É verdade que, em toda sua
teoria da enunciação, Foucault recusa explicitamente a
"originalidade" de um enunciado como critério pouco
pertinente, pouco interessante. Ele quer considerar
somente a "regularidade" dos enunciados. Mas o que
ele entende por regularidade, é o traçado da curva que
passa pelos pontos singulares, ou os valores
diferenciais do conjunto enunciativo (assim ele
definirá as relações de força por distribuições de
singularidades em um campo social). Quando ele
recusa a originalidade de um enunciado, ele quer dizer
que a eventual contradição de dois enunciados não é
suficiente para distingui-los, nem para marcar a
novidade de um em relação ao outro. Pois o que conta
é a novidade do próprio regime de enunciação, na
medida em que ele pode abranger enunciados
contraditórios. Por exemplo, pode se perguntar qual
regime de enunciado aparece com o dispositivo da
Revolução francesa ou da Revolução bolchevique: é a
novidade do regime que conta, e não a originalidade
do enunciado. Todo dispositivo se define assim por
seu teor de novidade e criatividade, que marca ao
mesmo tempo sua capacidade de se transformar, ou de
se cindir em proveito de um dispositivo futuro, ou ao
contrário, de fortificar-se sobre suas linhas mais duras,
mais rígidas ou sólidas. Na medida em que elas
escapam das dimensões do saber e poder, as linhas de
subjetivação parecem particularmente capazes de
traçar caminhos de criação, que não param de abortar,
mas também, de serem retomados, modificados, até a
ruptura do antigo dispositivo. Os estudos ainda
inéditos de Foucault sobre os diversos processos
cristãos, abrem sem dúvida numerosas vias a este
respeito. Contudo, não se acreditará que a produção de
subjetividade seja devolvida à religião: as lutas
antirreligiosas são também criadoras assim como os
regimes de luz, de enunciação ou de dominação,
passam pelos domínios os mais diversos. As
subjetivações modernas não se parecem mais nem
com a dos Gregos nem com a dos cristãos, e o mesmo
ocorre com a luz, com os enunciados e os poderes.
Nós pertencemos a dispositivos e agimos neles.
A novidade de um dispositivo em relação aos
precedentes pode ser chamada de sua atualidade,
nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que
somos, mas antes o que nós nos tornamos, aquilo que
estamos nos tornando, isto é o Outro, nosso tornar-se
outro. Em todo dispositivo, é preciso distinguir aquilo
que nós somos (aquilo que nós já não somos mais) e
aquilo que nós estamos nos tornando: a parte da
história, e a parte do atual. A história é o arquivo, o
desenho daquilo que nós somos e que paramos de ser,
enquanto que o atual é o esboço daquilo que nós nos
tornamos. De modo que a história ou o arquivo é o
que nos separa ainda de nós mesmos enquanto que o
atual é este Outro com o qual nós já coincidimos.
Acreditou-se, às vezes, que Foucault desenhava o
quadro da sociedade moderna com o dispositivo das
sociedades disciplinares em oposição aos velhos
dispositivos de soberania. Mas isto não quer dizer
nada: as disciplinas descritas por Foucault são a
história daquilo que nós deixamos de ser pouco a
pouco, e nossa atualidade se delineia nas disposições
de controle aberto e contínuo, muito diferentes das
recentes disciplinas fechadas. Foucault concorda com
Burroughs, que anuncia nosso futuro controlado ao
invés de disciplinado. A questão não é saber se é pior.
Pois também nós apelamos para produções de
subjetividade capazes de resistir a esta nova
dominação, muito diferente daquelas que se exerciam
antigamente contra as disciplinas. Uma nova luz,
novos enunciados, uma nova potência, novas formas
de subjetivação? Em todo dispositivo, nós temos que
desembaraçar as linhas do passado recente das do
futuro próximo: a parte do arquivo da parte do atual, a
parte da história daquela do devir, a parte da analítica
e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo,
é porque ele se serviu da história em proveito de outra
coisa: como dizia Nietzsche, agir contra o tempo e
assim mesmo sobre o tempo, em favor espero de um
tempo que está porvir. Pois o que aparece como o
atual ou o novo segundo Foucault, é o que Nietzsche
chamava de intempestivo, do inatual, este devir que se
bifurca com a história, este diagnóstico que continua a
análise por outros caminhos. Não predizer mas estar
atento ao desconhecido que bate à porta. Nada o
mostra melhor que uma passagem fundamental da
Arqueologia do saber, e que vale por toda a obra:
"A análise do arquivo comporta, pois,
uma região privilegiada: ao mesmo tempo
próxima de nós, mas diferente de nossa
atualidade, trata-se da orla do tempo que
cerca nosso presente, que o domina e que o
indica em sua alteridade; é aquilo que, fora
de nós, nos delimita. A descrição do arquivo
desenvolve suas possibilidades (e o controle
de suas possibilidades) a partir dos discursos
que começam a deixar justamente de ser os
nossos; seu limiar de existência é instaurado
pelo corte que nos separa do que não
podemos mais dizer e do que fica fora de
nossa prática discursiva; começa com o
exterior de nossa própria linguagem; seu
lugar é o afastamento de nossas próprias
práticas discursivas. Nesse sentido, vale
para nosso diagnóstico. Não porque nos
permitiria levantar o quadro de nossos
traços distintivos e esboçar,
antecipadamente, o perfil que teremos no
futuro, mas porque nos desprende de nossas
continuidades; dissipa essa identidade
temporal em que gostamos de nos olhar para
conjurar as rupturas da história; rompe o fio
das teleologias transcendentais e aí onde o
pensamento antropológico interrogava o ser
do homem ou sua subjetividade, faz com
que o outro e o externo se manifestem com
evidência. O diagnóstico assim entendido
não estabelece a autenticação de nossa
identidade pelo jogo das distinções. Ele
estabelece que somos diferença, que nossa
razão é a diferença dos discursos, nossa
história a diferença dos tempos, nosso eu a
diferença das máscaras.” (FOUCAULT,
[1969], 1987: 150 e 151)3.
As diferentes linhas de um dispositivo se
dividem em dois grupos: linhas de estratificação ou de
sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade.
A última consequência deste método é o que trata toda
a obra de Foucault. Na maior parte dos seus livros, ele
determina um arquivo preciso, com meios históricos
extremamente novos, sobre o Hospital Geral no século
XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão
no século XIX, sobre a subjetividade na Grécia antiga,
depois no cristianismo. Mas é a metade de sua tarefa.
Pois por causa do rigor, por vontade de não misturar
tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra
metade. Ele a formula somente e explicitamente nas
entrevistas contemporâneas a cada um de seus livros:
o que é hoje em dia a loucura, a prisão, a sexualidade?
Quais modos novos de subjetivação nós vemos
aparecer hoje que, certamente, não são gregos nem
cristãos? Esta última questão, principalmente,
persegue Foucault até o fim (nós que não somos mais
gregos nem mesmo cristãos...). Se Foucault até o fim
da sua vida dava tanta importância às suas entrevistas,
na França e mais ainda no estrangeiro, não é por gosto
da entrevista, é porque ele ali traçava linhas de
atualização que exigiam um modo de expressão
diverso daquele exigido pelas linhas assimiláveis nos
grandes livros. As entrevistas são diagnósticos. Como
em Nietzsche, onde é difícil ler as obras sem juntar o
Nachlass4 contemporâneo de cada uma destas obras.
A obra completa de Foucault, tal como a concebiam
Defert e Edwald, não pode separar os livros que nos
marcaram a todos, e as entrevistas que nos levam a um
porvir, a um devir: os estratos e as atualidades.

Resumo das discussões.


Sr. Karkeits nota que Gilles Deleuze não
empregou a palavra "verdade". Onde deve se colocar o
dizer verdadeiro que Foucault fala nas suas últimas
entrevistas? Trata-se de um dispositivo em si? Ou é
uma dimensão de todo dispositivo?
Gilles Deleuze responde que, em Foucault, não
há nenhuma universalidade do verdadeiro. A verdade
designa o conjunto das produções que se fazem no
interior de um dispositivo. Um dispositivo abrange
verdades de enunciação, verdades de luz e de
visibilidade, verdades de força, verdades de
subjetivação. A verdade é a efetuação das linhas que
constituem o dispositivo. Extrair do conjunto dos
dispositivos uma vontade de verdade que passasse de
uma à outra como uma constante é uma proposição
sem sentido segundo Foucault.
Manfred Franck observa que a filosofia de
Foucault pertence a uma tradição pós-hegeliana e pós-
marxista que queria romper com o universal do
pensamento do Iluminismo. Contudo, acha-se em
Foucault universais de toda a sorte: dispositivos,
discursos, arquivos, etc., que provam que a ruptura
com o universal não é radical. No lugar de um
universal, encontram-se vários, em vários níveis.
Gilles Deleuze sublinha que a verdadeira
fronteira está entre constantes e variáveis. A crítica
dos universais pode se traduzir numa questão: como é
possível que alguma coisa nova surgisse no mundo?
Outros filósofos, Whitehead, Bergson, fizeram desta
questão a questão fundamental da filosofia moderna.
Pouco importa que se empregue os termos gerais para
pensar os dispositivos: são nomes de variáveis. Toda
constante é suprimida. As linhas que compõem os
dispositivos afirmam variações contínuas. Não há
mais universais, isto quer dizer que não há nada mais
do que linhas de variação. Os termos gerais são
coordenadas cujo sentido é tão somente o de tornar
possível a avaliação de uma variação contínua.
Raymond Bellour pergunta onde se deve situar
os textos de Foucault que se relacionam com a arte: do
lado do livro, e portanto do arquivo, ou do lado das
entrevistas e portanto do atual?
Gilles Deleuze lembra o projeto de Foucault de
escrever um livro sobre Manet. Nesse livro Foucault
teria sem dúvida analisado mais que as linhas e as
cores, o regime de luz de Manet. Esse livro teria
pertencido ao arquivo. As entrevistas teriam tirado do
arquivo as linhas de atualidade.
Foucault poderia ter dito: Manet é o que o
pintor deixa de ser. Isso não retira nada do valor de
Manet. Pois a grandeza de Manet é o devir de Manet
no momento em que ele pinta. Essas entrevistas teriam
consistido em separar linhas de fissura e de fratura que
fazem com que os pintores de hoje entrem em regime
de luz dos quais se dirá: eles são outros, isto é, há um
devir outro da luz.
Para as artes também, há a complementariedade
dos dois aspectos da analítica (do que nós somos e por
isso mesmo do que nós deixamos de ser) e do
diagnóstico (o devir outro no qual nós chegamos). A
analítica de Manet implica num diagnóstico daquilo
que se torna a luz a partir de Manet e depois dele.
Walter Seitter se espanta com o "fisicalismo"
que permeia a apresentação de Gilles Deleuze.
Gilles Deleuze refuta a expressão na medida em
que ela deixaria supor que, sob regimes de luz, haveria
uma luz bruta fisicamente enunciável. O físico é um
limiar de visibilidade e de enunciação. Não há
nenhum dado, em um dispositivo, que esteja no seu
estado selvagem, mas que haja um regime físico da
luz, de linhas de luz, de ondas e vibrações, por que
não?
Fati Tricki pergunta como e onde introduzir nos
dispositivos a possibilidade de demolição das técnicas
modernas da servidão. Onde podem se localizar as
práticas de Michel Foucault?
Gilles Deleuze indica que não há uma resposta
geral. Se há diagnóstico em Foucault, é porque é
preciso assinalar, para cada dispositivo, suas linhas de
fissura e de fratura. Em certos momentos elas se
situam no nível dos poderes, noutros no nível dos
saberes. De um modo geral, pode-se dizer que as
linhas de subjetivação indicam as fissuras e as
fraturas. Mas trata-se de uma casuística. Tem-se que
avaliar de acordo com o caso, de acordo com o teor
dos dispositivos. Dando-se uma resposta geral,
suprimisse esta disciplina que é tão importante quanto
a arqueologia, isto é, a disciplina do diagnóstico.
Faiti Tricki pergunta se a filosofia de Foucault
pode chegar a romper os muros do ocidente. É uma
filosofia extramuros?
Gilles Deleuze: Foucault restringiu por muito
tempo seu método às sequências curtas da história
francesa. Mas com os últimos livros, ele visa uma
sequência longa, desde os gregos. Uma mesma
extensão pode-se fazer geograficamente? Pode-se
servir de métodos análogos aos de Foucault para
estudar os dispositivos orientais ou aqueles do Oriente
Médio? Certamente, pois a linguagem de Foucault,
que considera as coisas como feixes de linhas, como
emaranhado, como conjuntos multilineares, é como
oriental.
Notas da tradução:
1. Tradução de Ruy de Souza Dias (com
agradecimentos a Fernando Cazarini) e Helio Rebello
(revisão técnica), finalizada em março de 2001, a
partir do texto: DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce qu'un
disposif? IN Michel Foucault philosophe. Rencontre
internationale. Paris 9, 10, 11 janvier 1988. Paris,
Seuil. 1989.
2. A partir deste parágrafo e até o Resumo das
discussões este texto foi traduzido e publicado como
Foucault, historiador do presente IN ESCOBAR,
Carlos Henrique (org.) Dossier Deleuze. Rio de
Janeiro: Hólon, 1991:85-88.
3. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do
Saber. [1969].Tradução de Luiz Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
4. Nachlass: [Do Alemão: nach: depois; lass:
deixado.] deixado pra depois; rascunhos; escritos não
publicados; espólio; herança.

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