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ARTIGOS REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV.

2001

EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM


PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

João Carlos Soares Zuin


Universidade Estadual de Londrina

RESUMO
Este artigo propõe-se a fornecer elementos para estudar o papel intelectual desempenhado por Paulo
Emílio Salles Gomes nos anos trinta e quarenta, especialmente na revista Clima. Por meio de um relato
biográfico, analisamos o processo de formação de um intelectual crítico em meio às lutas políticas e sociais
que caracterizaram o período, tanto no Brasil quanto em nível mundial. O relato esclarece o esforço de
Paulo Emílio em constituir e difundir a noção de um socialismo independente no Brasil, contrapondo-se
tanto ao fascismo e à ditadura de Getúlio Vargas quanto ao stalinismo e ao trotskismo, favorável à
emancipação do homem e à revolução social, e mantendo como valores básicos a liberdade individual e a
civilização ocidental.
PALAVRAS-CHAVE: Paulo Emílio Salles Gomes; intelectual; empenho político e cultural; socialismo
independente; democracia.

I. INTRODUÇÃO a cultura e a política num riacho que tenha


movimento próprio, autonomia, enfim: vida.
Empenhado em combater o avanço da corrente
Buscaremos, aqui, demonstrar que não outro foi
de idéias nostálgicas celebradas pelos filósofos e
outro o alvo do empenho político do jovem Paulo
escritores alemães avessos à marcha da liberdade
Emílio Salles Gomes. Com a categoria “empenho
do mundo moderno, o filósofo alemão Hegel
político” pretendemos caracterizar o modo como
afirmava que “os cursos de água que não são
o jovem Paulo Emílio buscou orientar-se e agir na
movidos pelo vento tornam-se pântanos” (apud
rarefeita atmosfera ideológica das décadas de trinta
LOSURDO, 1983, p. 159). Exprimia, assim, todo
e quarenta, período dos mais vivos e dramáticos
desconforto e aversão que sentia no cenário da
da civilização moderna.
vida cultural e política da sociedade alemã
estagnada e imóvel, bem como criticava a forte Seguimos, aqui, as observações do filósofo
tendência de evasão da realidade presente nas italiano Domenico Losurdo que contrapõe a
idéias que glorificavam o espírito teutônico e os categoria empenho, ou melhor, o termo
valores do passado, sobremodo expressa nos “engagement objetivo” desenvolvido por Arturo
desejos de volta à “idade de ouro” medieval. Tomo Massolo, ao termo francês engagement. Por
de empréstimo a sentença de Hegel para empenho ou “engagement objetivo” Losurdo
demonstrar o profundo empenho político e cultural compreende que “se Hegel tem ensinado a
de Paulo Emílio Salles Gomes na sociedade inevitabilidade da situação histórica, Marx ensina
brasileira dos anos quarenta. Desse modo, a inevitabilidade, no interior da situação histórica,
procuramos usar a expressão de Hegel para tentar dos conflitos político-sociais. É essa dupla radical
entender um dilema caro na vida cultural brasileira: imanência que define a nova qualidade do discurso
a profunda sensação de mal-estar e debilidade do filosófico. Após Marx, acrescenta Massolo, o
pensamento em orientar-se na problemática filósofo ‘sabe que está objetivamente engagé’”
realidade brasileira. Não seria de todo errado dizer (idem, p. 128). Se o empenho político ou o
que um sentimento de mal-estar e desconforto “engagement objetivo” possui raízes na tradição
atravessa a história das idéias no Brasil. Usando a que vai de Hegel a Marx, o termo francês
sentença de Hegel, podemos dizer que o intelectual engagement “pressupõe a imaculabilidade do
deve contribuir objetivamente para transformar a processo de produção intelectual [...]. É uma
sociedade brasileira do pântano em que está inserida forma de idealismo subjetivo que configura um

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retorno aquém de Marx, e ainda de Hegel, em procuraram “desperrepizar o Brasil” e do


última análise encontra-se em Fichte” (idem, p. marxismo. Nos ensaios do jovem Paulo Emílio
129). podemos observar a presença das duas fases que
marcam o modernismo paulista: a ironia contida
II.PRIMEIRA ENTRADA NA MODERNIDADE:
nas sentenças que buscavam livrar a literatura
O DESEJO DE SER MODERNO
nacional do “último heleno” Coelho Neto e a
No início dos anos trinta o jovem Paulo Emílio participação dos modernistas nos movimentos
Salles Gomes cultivava um forte desejo de ser políticos que procuraram renovar o Brasil no início
moderno. Conforme expôs no artigo Um discípulo dos anos 30. Décio de Almeida Prado acentua esses
de Oswald em 1935, resultado de um exercício de dois traços principais da personalidade juvenil de
volta ao passado que tanto lhe era caro (como Paulo Emílio, afirmando ainda que “é provável que
atesta Décio de Almeida Prado), tal desejo tomava no seu espírito os dois movimentos, o artístico e
forma “em 1935, pois aderia a tudo que me parecia o político, corressem paralelos”, pois “os dois
moderno: comunismo, aprismo, Flávio de significavam um começo, não um apogeu, muito
Carvalho, Mário de Andrade, Lasar Segall, Gilberto menos um fim de jornada” (PRADO, 1986, p. 21).
Freyre, Anita Malfati, André Dreyfus, Lenine, Logo, no início dos anos trinta, o jovem acadêmico
Stálin e Trotski, Meyerhold e Renato Viana. A extraía do modernismo e do marxismo os argu-
confusão era maior ainda. Quando fui ao Rio mentos e modelos de orientação no interior da
recolher artigos para a revista que estava fundando sociedade brasileira.
com Décio de Almeida Prado, Movimento, visitei
Sua concepção de mundo juvenil era
Lúcia Miguel Pereira, Gilberto Amado, Pontes de
constituída pelos valores e normas oriundos do
Miranda e Maurício de Medeiros...” (GOMES,
comunismo romântico dos anos vitoriosos da
1982a, p. 440). Um arrebatador impulso de adesão
Revolução de Outubro. Uma verdadeira “paixão
às idéias e aos autores que fossem ou
pela Rússia” (GOMES, 1982c, p. 358) norteava
estimulassem alguma expressão do moderno, tal
todo o seu modo de agir e sentir o mundo moderno.
era o sentimento que dirigia os esforços do jovem
Numa passagem escrita nos anos sessenta sobre
acadêmico na vida cultural e política na
a sua ação política na tumultuada década de 30,
provinciana cidade de São Paulo. Muito impulso e
Paulo Emílio traçou um importante auto-retrato:
pouco senso, como não poderia deixar de ser,
“a Rússia foi o país que mais me interessou e
emanavam de seu desejo de adesão ao moderno.
durante mais tempo. O motivo era político, mas
Na descrição de sua eclética imagem do moderno,
eu me pergunto se esta expressão é a mais
cuja discrepância e confusão não foram ocultadas
adequada para resumir o estado de espírito dos
trinta anos mais tarde, Paulo Emílio retratou a sua
jovens brasileiros que abordavam os problemas
procura por orientação no interior da sociedade
russos nos anos imediatamente anteriores e
brasileira.
posteriores a 1930. Durante os últimos cento e
Paulo Emílio viveu e refletiu profundamente a tantos anos não houve país que suscitasse, como
desventura de crescer e envelhecer na atmosfera a Rússia, tanta paixão. Para encontrar algo de
rarefeita de uma sociedade autoritária, elitista e semelhante é preciso reportar aos fins do século
golpista. Dilema que se iniciou em dezembro de dezoito e início do dezenove, à França nova e
1935, quando então completara dezenove anos e modelada pela Revolução. Os estímulos afetivos
era membro da Juventude Comunista paulistana. provocados pela transformação da Rússia em
O jovem estudante preso na onda de repressão ao União Soviética ultrapassaram amplamente o que
movimento comunista era conhecido pela polícia se designa por política. Ou melhor, a política
por suas participações políticas nos comícios da naquele tempo aparecia para muitos como a
Aliança Nacional Libertadora e pelos artigos atividade humana mais completa que se pudesse
publicados nos periódicos de esquerda como imaginar, envolvendo todas as preocupações, das
Vanguarda estudantil, A platéia e no jornal Correio morais às estéticas. Era difícil encontrar pessoas
paulistano. Seus artigos de juventude resultavam com o sentimento de estarem sacrificando à
de uma mistura fina formada pelo uso do humor e política o desenvolvimento destas ou daquelas
da piada originários do primeiro momento do facetas de sua personalidade. O comunismo
modernismo paulista (o da “descoelhonização” da oferecia uma concepção de mundo e normas de
literatura nacional), por uma disposição ideológica comportamento” (idem, p. 357).
proveniente dos modernistas paulistas que

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Na narração de Paulo Emílio sobre os dilemas 446). Nosso autor passou quase dois anos nos
políticos de sua juventude e de sua geração, é claro presídios Maria Zélia e Paraíso, nomes sutis para
o sentido originário de sua adesão ao comunismo. cenários de crueldade e violência. Uma experiência
Paulo Emílio concebia o comunismo como um que será permanentemente recordada e avaliada
movimento libertário da humanidade, a nova luz ao longo da sua produção intelectual,
que iluminava o caminho que deveria ser trilhado particularmente no que se refere à fuga por meio
pela humanidade após a barbárie da Primeira de um túnel construído junto com outros presos
Guerra Mundial e a crise da modernidade. Logo, no Presídio do Paraíso; tão marcante que Décio
para o jovem militante comunista a participação de Almeida Prado procurou sempre enfatizar em
na vida política estava ligada à convicção de que seus ensaios sobre Paulo Emílio: “os meses na
os antigos conteúdos culturais se haviam tornado prisão, prolongando-se, começaram a marcar
obsoletos e sem vida e, em conseqüência, Paulo Emílio, talvez para sempre. Mas não, ou
vinculada também a uma atenção apaixonada à nem sempre, em sentido desfavorável. Em outubro
história entendida como locus da renovação radical, de 1936, numa carta escrita em termos livres e
da emancipação humana. Uma crença que pessoais porque não passaria pela censura, ele dizia
norteava suas ações e juízos, a ponto de que na o seguinte a seu respeito: ‘eu pessoalmente vou
sua revista Movimento definir o tempo histórico bem. Você não pode imaginar, Décio, a quantidade
em que vivia como aquele no qual “todas as de ilusões que perdi, os erros que enxerguei e as
energias devem ser empregadas tendo em vista coisas que aprendi durante esses nove meses de
um só objetivo – o socialismo” (GOMES, 1986b, prisão. E aqui também se firmaram certas
p. 31). tendências da minha personalidade que até então
estavam incertas, como por exemplo a minha
No final de julho de 1935, poucos meses antes
decidida vocação para a política e meu
de ser preso, Paulo Emílio idealizou a criação de
irremediável fracasso em relação à existência
uma revista chamada Movimento – “revista do
normal’” (PRADO, 1997, p. 152; sem grifos no
presente que enxerga o futuro”, cujo sentido era
original).
assim concebido: “de uns tempos para cá, a
mocidade brasileira tornou-se consciente de que, Na carta endereçada ao amigo de juventude, e
por um determinismo histórico, fora extem- de sempre, na qual retrata a vida simultaneamente
poraneamente [...] chamada a uma situação social prejudicada e repleta de aprendizados, o jovem
ativa, situação em desequilíbrio com a sua cultura, militante revela a sua “decidida vocação para a
que era escassa, e a sua experiência, que era política”. Um importante auto-retrato, consciente
pouca” (apud PRADO, 1986, p. 17). e sólido, próprio de um momento cindido,
“Determinismo histórico” que condicionava a angustiante e contraditório, que revela para aquele
escolha de campo da “novíssima geração”. que o vive a possibilidade de encontrar uma nova
Compartilhava, assim, de uma nova linguagem, identidade. Não seria exagero dizer que o trauma
de uma nova postura frente à política e à sociedade da vida na prisão e a espetacular fuga do presídio
brasileira. possibilitaram a Paulo Emílio experiências
marcantes e duradouras.
Nos anos que se anunciavam como anos de
chumbo e desilusão, Paulo Emílio acabaria detido Sua concepção de mundo moderna foi
após o malogrado movimento comunista de 1935. reafirmada nos momentos marcados pelo “caos
De certo modo, sabia que não poderia sair ileso regenerador”, pela situação cruel e autoritária que
da empreitada, como afirmou anos mais tarde: impunha para aquele que a vivenciava a
“tenho a impressão de que meus 18 anos duraram necessidade de compreendê-la, passo necessário
anos. Tudo aconteceu em alguns poucos meses na direção de efetuar uma decidida superação.
de 1935. No fim desse ano os comunistas Fugitivo, permaneceu escondido pela família até
ensaiaram um golpe militar. Oswald se escondeu. o momento em que pôde embarcar para Paris - e
Eu fui preso, provavelmente de acordo com meus uma outra experiência tremendamente significativa
secretos desejos, mas sem imaginar que a prisão ocorreria na capital francesa.
pudesse durar tanto tempo. Quando um ano e meio
III. ESTADA EM PARIS: UM MOMENTO
mais tarde consegui fugir do Presídio do Paraíso,
ILUMINADOR
mal revi Oswald e viajei. E quando voltei havia
acabado a idade de ouro” (GOMES, 1982c, p. Paulo Emílio viveu dois anos em Paris, entre

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1937 e 1939, período que pode ser considerado alemães que fugiam do nazismo, entre outros.
como um processo de profunda redefinição Relembrando algumas experiências pessoais
política e de uma estimulante descoberta do cinema ocorridas em Paris, durante o governo da Frente
como arte moderna. Nesse curto intervalo de Popular - como a de ver o filme A grande ilusão,
tempo, o então jovem comunista experimentou “a que lhe “evocava de forma viva minha experiência
descoberta crucial do século — o apocalipse recente” (refere-se, aqui, à fuga que empreendeu
stalinista — que ferreteou tantas gerações, também da Prisão do Paraíso que o filme de Jean Renoir o
para sempre, e de uma forma que a mesquinharia fazia recordar mediante as cenas que retratavam
conservadora nunca compreenderá” (GOMES, a fuga de prisioneiros franceses na Alemanha
1974, p. 162), como afirmou anos mais tarde. O durante a Primeira Guerra Mundial) - Paulo Emílio
desgosto político sofrido mediante o conhecimento retratou o momento em que viveu na França com
dos processos de Moscou e da face sombria do as seguintes palavras: “a França vivia naqueles
stalinismo seria compensado com a assimilação anos um profundo movimento de opinião que
apaixonada do cinema de vanguarda, passo inicial assumiria em 1936 a forma do triunfo da Frente
na direção daquilo que seria anos mais tarde a sua Popular e da série de leis sociais ligadas ao nome
verdadeira vocação, o exercício profissional da de Léon Blum. Os filmes de Renoir tinham o
crítica de cinema. Num par de frases Antônio colorido social característico da época [...]. A
Cândido sintetizou a importância de Paris na vida Frente Popular era muito mais um fenômeno de
e na obra de Paulo Emílio: a “estada em Paris foi defesa e suas formações heterogêneas exigiam
dos fatos mais importantes da sua vida: ela lhe como cimento de uma unidade, aliás precária, não
revelou o cinema e alterou a fundo sua visão uma ideologia de combate mas o sentimento de
política” (CÂNDIDO, 1986, p. 56). De fato, Paris generosidade difusa, denominador comum de
significou algo mais do que um exílio forçado pelos todas as correntes esquerdistas, que só é utilizado
acontecimentos políticos ocorridos na cidade de de forma calculada pelos quadros dirigentes
São Paulo em 1935. Na verdade, Paris foi um comunistas. Esse clima particular de compromisso
momento iluminado na trajetória de nosso autor, reinava na Frente Popular e se espelhava com
marcado por experiências políticas e culturais muita fidelidade em La Marseillaise e também em
plenamente vivenciadas. Um momento A grande ilusão, filme igualmente sem vilões mas
fundamental, como podemos observar através da onde se demonstrava que a demarcação das classes
reflexão de Décio de Almeida Prado: “porém, só sociais é mais nítida e profunda do que as
quando recobrou a liberdade, na França, liberdade fronteiras nacionais” (GOMES, 1982b, p. 330).
plena, inexistente no Brasil, não só jurídica mas
Assim, nos filmes a que assistia junto com
de irrestrita informação e reflexão política, é que
Plínio Sussekind Rocha, na participação nos
fixou em definitivo a sua personalidade. E só veio
movimentos culturais e políticos que eclodiam em
a estrear em livro, fato surpreendente em pessoa
Paris, Paulo Emílio procurava absorver a
tão precoce e à primeira vista tão ansiosa por
efervescente atmosfera política e cultural que
aparecer, vinte anos depois de ter fugido da prisão
agitava a cidade - nela soube viver e dela soube
e ter partido para a Europa. Mas já aí, em 1957,
tirar proveito. O jovem que desembarcara
com o estudo publicado em Paris sobre Jean Vigo
stalinista, conforme a norma do Partido Comunista
– outro mal ajustado ‘à existência normal’, que
Brasileiro, teria contato com o “apocalipse
exprimia através da arte o seu não-conformismo
stalinista” mediante a leitura da literatura de
–, que lhe daria renome internacional” (PRADO,
denúncia e com o contato pessoal mantido com
1997, p. 153).
antigos bolchevistas dissidentes. Antônio Cândido,
Nos meados dos anos trinta, a França da Frente refletindo sobre a influência política de Paulo
Popular representava um país no qual os Emílio, afirma que nosso autor manteve relações
intelectuais perseguidos pelas ondas repressivas e pessoais com dissidentes de esquerda, sobretudo
destrutivas do fascismo, nazismo e stalinismo com Victor Serge e Andrea Caffi, que o ajudaram
poderiam viver com alguma segurança. Em Paris, a “desenvolver uma atitude bastante crítica em
viviam os exilados políticos italianos, dentre eles relação aos partidos comunistas, que atuavam
os fundadores do movimento Giustizia e Libertà, segundo os estritos interesses soviéticos, não os
os dissidentes russos que fugiam dos processos do proletariado de seus países” (CÂNDIDO, 1986,
de Moscou, os escritores, poetas e intelectuais p. 57). O depoimento de Antônio Cândido revela-

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nos uma aproximação importante para que colaborou em O Estado de São Paulo, com as
possamos compreender a formação da atitude iniciais K. V. (Victor Kibol’cic), escrevendo
política de Paulo Emílio na cidade de Paris. Por interessantíssimos artigos sobre política,
meio de Victor Serge e Andrea Caffi, Paulo Emílio especialmente européia e asiática” (AZEVEDO,
manteve contato com intelectuais e políticos que 1978, p. 16). Com Victor Serge, o jovem Paulo
promoviam um socialismo “irregular”, Emílio conhecera os processos de Moscou, o
independente do imperativo modelo político assassinato de toda uma geração revolucionária
oriundo de Moscou. (Zinoviev, Bukharin), o stalinismo. Todavia, não
somente o desencantamento com a URSS de Stálin
É importante, aqui, ressaltarmos o peso da
foi absorvido das relações com Victor Serge: do
influência de Victor Serge e de Andrea Caffi na
exilado russo, Paulo Emílio manteve o gosto pela
vida e na obra de Paulo Emílio. Victor Serge chegou
independência ideológica, a valorização do ideal
à França em 1936, um ano antes de nosso autor,
socialista, a defesa da liberdade e da dignidade
após um longo exílio na Sibéria. Libertado por
humanas.
Stálin, após uma série de pedidos e intervenções
de André Gide e de Romain Rolland, Victor Serge Semelhante desencantamento com o curso da
desembarcou na França trazendo consigo a Revolução de Outubro também era compartilhado
decepção e os pontos de vistas críticos em relação por Andrea Caffi. É o que podemos observar
ao rumo da Revolução de Outubro. No seu livro através da abordagem de Nicola Tranfaglia sobre
Destin d’une révolution, publicado em Paris, a singularidade da participação de Andrea Caffi
Victor Serge denunciava a produção do regime no grupo Giustizia e Libertà na Paris dos anos de
soviético “em contradição com tudo aquilo que 1932: “é Andrea Caffi que conhece melhor do que
havia sido dito, proclamado, desejado, pensado, os outros a realidade soviética, quem escreve já
durante a revolução”, chegando a chamar o no segundo número dos Quaderni (março de
stalinismo de regime totalitário. Todavia, a 1932) um longo artigo sobre a revolução russa,
manutenção da independência ideológica e a crença que Rosselli publica tomando nitidamente a
na sua convicção revolucionária resultaram tanto distância uma vez que o escrito aparece como
no seu isolamento intelectual como numa vida apêndice ao fascículo com o título Opiniões sobre
marcada por dificuldades financeiras. De certo a revolução russa. Além do discurso
modo, sua posição de absoluta solidão política e a circunstanciado que Caffi propõe, importa notar
crescente dificuldade econômica chamou a atenção a interpretação do regime staliniano como
do jovem Paulo Emílio. É o que podemos observar verdadeira e própria negação do humanismo
através de Victor de Azevedo: “foi com Victor socialista e a afinidade evidente que o autor
Serge que Paulo Emílio travou relações em Paris, individua entre aquele fenômeno e os outros
verificando as dificuldades com que então ele vivia. ‘monstruosos partos da nossa época’ como os
Generoso como era, o emigrado brasileiro teve fascismos” (TRANFAGLIA, 1995, p. 723). É no
uma idéia: não seria possível a colaboração de interior da “crise de civilização e crise moral”,
Victor Serge para O Estado de São Paulo. fórmula empregada por Carlo Rosseli, e adotada
Naturalmente seria pago em dólares... A idéia lhe pelos outros membros do grupo Giustizia e
veio porque nessa mesma fase visitava a capital Libertà, que Paulo Emílio reavaliou a sua
francesa o diretor do grande diário, o jornalista concepção de mundo e de ação política.
Júlio de Mesquita Filho [...]. O encontro, contudo,
Não é preciso dizer que o depoimento de Andrea
resultou satisfatório. Os objetivos de Paulo Emílio
Caffi sobre a União Soviética de Stálin deve ter
foram plenamente atingidos. Quando Victor Serge
causado uma profunda autocrítica na concepção
faleceu na cidade do México, em novembro de
de mundo do jovem comunista Paulo Emílio. É
1947, o Estado, ao pé de um breve telegrama de
emblemático o modo como nosso autor associa o
meia dúzia de linhas da Agence France Presse,
desfecho trágico de sua idade do ouro com a
que noticiava secamente o fato, publicou uma
revelação do stalinismo, conforme podemos
“Nota da Redação”, em que os traços biográficos
observar no artigo chamado Com Arnaldo Pedrosa
do extinto eram resumidos com objetividade e
d’Horta, escrito em 1974: “na militância juvenil
informações muito precisas. Na sua parte final,
aprendi a admirá-lo e estimá-lo mas éramos então
essa “Nota da Redação” advertia textualmente: “de
apenas companheiros empenhados. A amizade
1939 a 1940, esse notável revolucionário e escritor
gratuita, irresponsável e para sempre, nasceu

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depois de cada um ter experimentado ao seu jeito de libertação e emancipação do gênero humano,
a revelação crucial do século – o apocalipse co- concebendo, assim, o socialismo como a con-
munista – que ferreteou tantas gerações, também tinuação dos acontecimentos culturais e políticos
para sempre, e de uma forma que a mesquinharia oriundos da Europa do século XVIII, sobremodo
conservadora nunca compreenderá” (GOMES, dos ideais universais da Revolução Francesa:
1974, p. 162; sem grifos no original). Foi com liberdade, igualdade e fraternidade. O teor da dura
Andrea Caffi que Paulo Emílio experimentou “a crítica que Andrea Caffi tecia contra o fascismo e
revelação crucial do século - o apocalipse comu- o stalinismo foi plenamente absorvido por Paulo
nista”, bem como com o amigo apreendeu sobre Emílio. Sua concepção de mundo socialista
a crise dos regimes democráticos após 1914 e o independente ou irregular que iria praticar no Brasil,
totalitarismo, aguçou o não-conformismo, desen- após o seu regresso em 1939, é muito próxima do
volveu uma postura crítica com respeito ao soci- modelo que apreendeu nos anos de estada em
alismo e ao marxismo, adquiriu o gosto pela auto- Paris. Num ensaio sobre Andrea Caffi escrito por
nomia do juízo político e aprofundou o desejo de Gino Bianco, apontado por Nicola Tranfaglia,
ativa participação no destino de seu tempo histó- podemos visualizar no seu título uma clara
rico. aproximação entre ambos: Um socialista
“irregolare”: Andrea Caffi intellettuali e politico
Nicola Tranfaglia cita uma outra passagem de
d’avanguardia. Assim Bianco retrata o empenho
Andrea Caffi, escrita nos Quaderni do agrupamento
político de Andrea Caffi; de modo semelhante,
antifascista Giustizia e Libertà, muito escla-
poderíamos escrever a mesma frase para esboçar
recedora acerca dos posicionamentos políticos de
os contornos do empenho político que Paulo
Caffi e que, de certo modo, revela-nos algumas
Emílio realizou na sociedade brasileira.
das transformações políticas que sofria o jovem
Paulo Emílio em Paris: “Andrea Caffi, por Como conseqüência direta de tal postura
exemplo, que viveu diretamente a revolução de ideológica independente desenvolvida com a ajuda
outubro na Rússia e tem, por assim dizer, provado de Andrea Caffi e Victor Serge, nosso autor
na sua pele a conseqüência das agitações ocorridas “chegou a uma visão fortemente anti-stalinista”,
na maioria dos países no conflito mundial assinala, bem como “sem prejuízo da admiração pela figura
no final de setembro de 1932 nos Quaderni (n. e os escritos de Trotski, rejeitava também o
4), que a peculiaridade do fenômeno nazista não trotskismo” (CÂNDIDO, 1986, p. 57). Repu-
pode ser explicada simplesmente com a categoria diando tanto o stalinismo como o trotskismo,
da luta de classe. O exilado sublinhava, invés, a avaliados como modelos centralistas, Paulo Emílio
coexistência no movimento hitleriano da mitologia buscava salvaguardar sua fidelidade à tradição
irracionalista e da exaltação da técnica e da comunista, sobretudo para com as conquistas
moderna civilização da máquina” (TRANFAGLIA, históricas da Revolução de Outubro. Sua crítica
1995, p. 720). Acrescentava ao problema do ao stalinismo, entendido como totalitarismo,
fascismo, da “crise da civilização e da crise moral” almejava manter firme a paixão que sentia com o
exposta desde 1914, o problema do stalinismo: “a “enérgico fluxo progressista” oriundo de 1917.
ditadura de Stálin é aquilo que é porque foi
Durante a sua estada na França, nos contur-
constituída com os métodos da ‘inútil carnificina’
bados anos trinta, Paulo Emílio valorizava os
e porque não tem encontrado ainda outra âncora
movimentos políticos radicais que mantinham
de salvação que a centralização burocrática, o
vínculos com a originária tradição comunista. Foi
militarismo, os arbítrios policialescos. Não é uma
o que salientou, numa entrevista ocorrida nos anos
‘contraposição’ aos regimes de reação capitalista
setenta: “minha opção socialista era radical: só teria
que sofrem muitos países da Europa e da América;
sentido um movimento socialista, revolucionário,
é um elemento daquela constelação reacionária;
que repudiasse, ao mesmo tempo, o comunismo
nela e por ela se sustenta” (idem, p. 723). Na
stalinista e a ambigüidade dos partidos socialistas
postura socialista de Caffi ocupa um lugar central
tradicionais [...]. O PSOR – Parti Socialiste Ouvrier
a crítica ao Estado-nação entendido como uma
Révolucionaire – francês, de Marceau Pivert, seria
gigantesca máquina de opressão social e de
o modelo”, sugerindo, ainda, à entrevistadora que
destruição da natureza e do homem. No intervalo
“Você deve ler a Plataforma da nova geração, que
temporal entre as duas guerras mundiais, Caffi
foi publicada em suplemento do Estadão, com o
buscou repensar o socialismo como força social
resumo das posições de nosso grupo na época”

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(BENEVIDES, 1979, p. 97). compreender a formação do empenho político de


Paulo Emílio, ao revelar a sua aproximação com o
O PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan)
socialismo democrático do movimento político
fundado por Marceau Souverain Pivert era uma
italiano Giustizia e Libertà dos irmãos Carlo e Nello
expressão própria do conturbado clima interna-
Rosselli. De fato, se examinarmos os textos
cional dos anos trinta na Europa. Em 1938 Mar-
escritos por Paulo Emílio no início dos anos
ceau S. Pivert rompeu com o Parti Socialiste
quarenta, quando retornou ao Brasil, sobretudo o
fundando uma “Esquerda revolucionária” cujo alvo
seu “Depoimento” na Plataforma da nova geração
girava em torno do seguinte programa de ação:
de Mário Neme e no “Manifesto” de fundação da
“eu creio servir ao máximo os interesses do prole-
União Democrática Socialista, veremos que
tariado e da humanidade inteira perseguindo minha
existem algumas semelhanças que devem ser
tarefa sobre dois planos, como havia feito desde
analisadas. É o que procuraremos examinar no
os vinte anos. Fazer compreender aos operários
tópico seguinte.
que o ideal de fraternidade universal não pode
tomar uma forma concreta, em nossa época, senão Nos dois anos em que viveu em Paris ocorreu
através de um processo de uma revolução o primeiro contato significativo de nosso autor
proletária internacional à qual eles devem participar com o cinema. Plínio Sussekind Rocha foi o seu
para destruir o sistema capitalista e construir o mestre na adesão ao cinema, iniciando-o no juízo
socialismo. Fazer compreender aos trabalhadores de ver e entender o cinema como uma arte tão
que suas aspirações revolucionárias não podem importante como as outras artes tradicionais. Com
atingir definitivamente o alvo, senão mediante um Plínio Sussekind Rocha, físico que realizava seu
esforço permanente de observação científica dos doutorado em Paris, Paulo Emílio assistiu às fitas
fatos, da autocrítica, isto é, da laicidade filosófica clássicas do cinema como Outubro, Tempos
ou da livre consciência” (apud RAYMOND, 1980, modernos, A grande ilusão, aprendendo com o
p. 30). amigo a “ver filmes e de falar sobre cinema, de
forma empenhada, militante” (GOMES, 1986b,
Na postura inconformista e no ímpeto revo-
p. 197; sem grifos no original), conforme as
lucionário de Marceau S. Pivert, que reascendia a
palavras que usou para homenagear e definir seu
chama da crença na revolução comunista como
mestre em 1972. Contudo, na atmosfera
emblema de uma filosofia da história que deveria
efervescente do Front Populaire e da guerra civil
ser realizada, Paulo Emílio encontrava um exemplo
espanhola, a política era o principal interesse de
de ação política na atmosfera em crise do final
Paulo Emílio. A experiência com o cinema não
dos anos trinta. No ideário de ação desenhado por
alargaria o círculo inicial da paixão, ficando para
Marceau Pivert estava presente uma decidida
o pós-guerra a passagem que daria em direção a
“condenação aos métodos sectários do trotskismo,
assumir sua vocação, a de crítico profissional de
de suas pretensões à hegemonia, sua tática da
cinema. No curto intervalo de dois anos em que
desorganização [noyautage]. Ele rejeitou o partido-
permaneceu em Paris, nosso autor estabeleceu um
estado-maior centralizado e se manifestou pela
forte vínculo com a política e o cinema.
espontaneidade revolucionária da classe operária
Poderíamos dizer que ao retornar da Europa, que
que um partido, avant-guarde democrático, deve
marchava rumo ao abismo de uma nova guerra
estimular e não asfixiar” (ibidem). Relativo desin-
de destruição total, a vocação para a política e a
teresse pelas Internacionais, repúdio à intolerância
paixão pelo cinema formavam uma espécie de
ideológica e ao totalitarismo, valorização da
unidade na qual nosso autor encontrava subsídios
autonomia dos pequenos partidos de esquerda com
e informações para como que se orientar na
relação aos interesses de Moscou, defesa de um
sociedade brasileira.
socialismo vivo que se orienta segundo as pecu-
liaridades de cada país, enfim, tais eram as idéias IV. EMPENHO POLÍTICO E DESEJO DE AÇÃO
presentes na concepção de mundo de Marceau NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Pivert compartilhadas por Paulo Emílio.
Empenho político e paixão pelo cinema, tais
Ainda no terreno especulativo a respeito das eram os dois interesses que Paulo Emílio cultivava
influências que Paulo Emílio absorveu em Paris, ao regressar ao Brasil. A Europa mergulhada no
acreditamos que Antônio Cândido identificou uma pântano do sectarismo ideológico e às vésperas
chave importante, que nos ajuda na tarefa de da realização de fato das sinistras palavras de

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EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

ordem que grassavam no cotidiano, como que, “para pôr em prática esse programa, con-
“mobilização total” e “guerra total”, não era mais tamos, porém, com o apoio dos mais velhos, da-
um lugar seguro para o jovem socialista. queles que se interessam seriamente pelo futuro,
Desembarcando no final de 1939, nosso autor daqueles que já lutaram – que devem lutar ainda,
trouxe consigo um forte desejo de participar já que viver é lutar – daqueles que, apesar de
coletivamente dos problemas da sociedade vencedores, não se fossilizaram, pondo-se a
brasileira. Contudo, o jovem comunista que se cochilar sobre os louros traiçoeiros da vitória,
desiludira com o stalinismo e que se decepcionara daqueles que já se fizeram na vida, mas que ainda
com o trotskismo, não teve boa recepção na vida não se esqueceram do que isso lhes custou” (Cli-
política da provinciana cidade de São Paulo. Sua ma, 1941, p. 5-6).
nova posição política causava desconforto e mal-
O sentido originário da revista que preconizava
estar entre os companheiros da Juventude
a “abstenção política” não significava que “os
Comunista e no meio político da esquerda como
diretores, redatores e colaboradores mais íntimos
um todo. Desse modo, foi com os jovens
de Clima não tivessem uma unidade de vistas
universitários que pôde desenvolver seus novos
diante dos problemas essenciais do nosso tempo”,
valores e a sua concepção socialista independente.
conforme Paulo Emílio procura deixar claro logo
Membro e mentor político dos jovens universitários
no início do editorial “Declaração”. Contudo, o
que fundariam a revista Clima, sua ação política
estabelecimento da política de aliança do governo
manifestou-se de modo similar no combate ao
de Getúlio Vargas com os países aliados permitiu
fascismo e na luta pela redemocratização da
que a norma inicial fosse rompida pelos membros
sociedade brasileira1.
da revista Clima que, de ora em diante, são
Em agosto de 1942 Paulo Emílio redigiu um retratados como “moços intelectuais, e logo sol-
editorial na revista Clima chamado “Declaração”, dados”. Identidade clara e nítida que se mani-
no qual aproveitou a entrada do Brasil no estado festava na seguinte palavra de ordem: “funda-
de guerra para enfatizar a postura antifascista e mentalmente, a guerra de que agora participamos
democrática do grupo de estudantes universitários. é uma guerra contra o fascismo” (GOMES, 1942,
Nesse conturbado momento histórico, nosso autor p. 3). Nesse artigo, Paulo Emílio utilizou a palavra
iniciou seu texto afirmando uma alteração fascismo para revelar algo mais do que o regime
substancial na composição da revista, criada em ideológico italiano. Seu emprego era usado
1941, na qual seus membros haviam definido que taticamente para diagnosticar as diversas formas
nela “não seriam debatidos assuntos de política, de autoritarismo existentes na conjuntura política
nacional ou internacional. Esta orientação foi internacional: “Fascismo é o regime político ins-
escrupulosamente seguida até o número 10. Clima taurado notadamente na Alemanha, na Itália e na
recebeu, pediu e publicou ensaios, críticas e poesias Espanha. Fascismo é o conteúdo político do movi-
de intelectuais da mais variada procedência mento da ‘Union of Britsh Fascists’, de Oswald
ideológica, desde que não contrariassem a norma Mosley; do movimento do padre Coughlin, na
de abstenção ideológica política estabelecida” América do Norte; do ‘Rexismo’, de Léon
(GOMES, 1942, p. 3). Criada na atmosfera política Degrelle, na Bélgica; dos partidos de La Rocque e
rarefeita do Estado Novo, a revista Clima surgiu Doriot, na França, e do integralismo, de Plínio Sal-
como um veículo de renovação cultural, de estudos gado e outros, no Brasil. Quisling e Laval são
científicos voltados para a compreensão das obras fascismo. Velhas glórias militares decrépitas e
e dos autores que surgiam no cinema, na literatura, inconscientes, como Hindenburg e Pétain, também
no teatro, na música e nas artes plásticas. Seu são fascismo. Fascismo é o ataque do Japão à
vínculo de nascimento era tecido diretamente com Manchúria; é o ataque da Itália à Abissínia; é o
o modernismo paulista conforme podemos obser- apoio da Alemanha e da Itália aos facciosos espa-
var no final do Manifesto de lançamento da revista, nhóis; é a invasão da Áustria e da Tchecoslováquia,
publicado no número inicial, no qual podemos ler é a fraqueza das grandes democracias diante dessa
invasão — o pacto de Munique; é a invasão da
Albânia e da Grécia pela Itália; é o ataque da
Alemanha à Polônia, Noruega, Dinamarca,
1 Sobre a trajetória intelectual dos jovens universitários da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Iugoslávia; é a
geração Clima, ver, entre outros, Pontes (1998). traição de vastos setores das classes dirigentes e

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militares da França; é o ataque da Alemanha à novas condições que se abriram, do programa e


Rússia; é o ataque do Japão aos Estados Unidos; da tática daquilo que foi um dia a Terceira
é, finalmente, o ataque da Alemanha e da Itália ao Internacional” (GOMES, 1943, p. 90). Essa
Brasil” (idem, p. 4). ruptura processou-se durante a sua estada em
Paris, como vimos no tópico anterior, quando
Nesta didática exposição panorâmica sobre o
então rejeitara o stalinismo e o trotskismo como
fascismo, em suas várias formas e nos mais
modelos únicos de ação prática e teórica do
diversos países, nosso autor ressalta a brutalização
comunismo. Uma posição pioneira na época, que
da política como a principal característica deste
despertou várias críticas de setores da esquerda
regime político totalitário. De certo modo, buscava
que seriam respondidas no editorial “Comentário”.
lançar farpas na direção dos defensores locais da
política de neutralidade e aos simpatizantes do “Comentário” pode ser entendido como o
fascismo no Brasil, na medida em que também os primeiro texto no qual Paulo Emílio esboçou as
reduzia a um mesmo denominador, isto é, como idéias políticas que aprendera na Europa durante
parte daquele “conteúdo político” comum presente a sua permanência em Paris. Sua redação é toda
nos movimentos fascistas dos anos trinta em países voltada para a afirmação da atitude antifascista do
como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. grupo Clima presente no editorial “Declaração”.
Sua intenção era clara: sem poder nomear como Comentando algumas críticas que foram dirigidas
fascista o regime político do Estado Novo, devido pelos comunistas e integralistas, Paulo Emílio
ao estado de censura e repressão ainda existente, procura enfatizar com maior amplitude o raio de
apenas insinuava ao leitor aquilo que era manifesto. sua concepção política. Respondendo às críticas
Seu alvo era o de mostrar aos leitores a necessidade feitas por alguns membros do integralismo que o
objetiva de combater o fascismo “no plano interna- censuravam pelo uso abusivo que fizera da palavra
cional e nacional”, pois “esta é uma guerra contra fascismo no editorial “Declaração”, Paulo Emílio
o fascismo”. Logo, caberia ao leitor a tomada de cita algumas passagens dos livros publicados por
consciência de que “os inimigos de Hitler e de Miguel Reale no início dos anos trinta, ABC do
Mussolini, na Alemanha e na Itália, são nossos integralismo e O Estado moderno, no qual este
amigos. Os amigos de Hitler e de Mussolini, no evocava a missão histórica desenhada por Hitler e
Brasil, são nossos inimigos. Quando se fala de Mussolini que “se universalizava, sacudindo a alma
quinta coluna no Brasil, não se deve pensar inglesa com Mosley, a francesa com o ‘francismo’
unicamente em alemães, italianos e japoneses. e o Coronel La Rocque, a holandesa, a polaca, a
Estes não são quinta coluna. São, em princípio, americana, a mexicana, a polonesa, a belga, a
inimigos. A quinta-coluna característica é sempre austríaca etc. etc., fazendo surgir, pela energia do
formada por naturais do país. No Brasil, em Brasil novo, um maravilhoso movimento inte-
primeiro lugar, pelos integralistas. Os fascistas de gralista, orgulho do continente americano”
todo o mundo têm um chefe, e este chefe é Adolf (ibidem). Com a peculiar ironia que possuía,
Hitler” (ibidem). comentava Paulo Emílio que “não podemos agora
perder tempo no exame dessa inesperada distinção
Um outro elemento importante no seu texto é
entre a alma polonesa e a alma polaca” procurando,
a crítica dirigida às Internacionais comunistas.
antes, deixar claro através do próprio Miguel Reale
Mencionadas apenas de passagem, pois nesse
o vínculo existente entre o integralismo brasileiro
editorial o alvo proposto era o de marcar a posição
e a brutalização da política promovida pelo fascismo
enérgica e radical dos membros da revista Clima
e o nazismo na Europa.
contra o fascismo, essa posição foi aprofundada
no próximo número da revista no editorial O diálogo com os setores da esquerda que
chamado “Comentário”. Destacado por Antônio cobravam de Paulo Emílio uma retratação pela
Cândido como sendo “um escrito político impor- crítica que fizera às Internacionais era mais
tante para o tempo, exprimindo a sua posição de profundo e denso. Seu interesse, aqui, não é o de
socialista independente de base marxista, que marcar a fronteira com o inimigo, como o fez
alguns de nós adotariam por sua influência” com os integralistas, mas sim o de definir sua nova
(CÂNDIDO, 1986, p. 59), nele nosso autor postura intelectual e política: “a nossa posição
enfatizou sua crítica ao stalinismo e às Interna- crítica em relação à ortodoxia marxista e às suas
cionais comunistas, dizendo que “negamos a habituais expressões políticas provocou, de uma
eficácia, para o progresso humano, diante das maneira geral, reações sadias. É claro que os

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EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

espíritos presos à rigidez da nova escolástica re- que as aulas de Maugüé sobre eles figurem entre
cebem sempre com desconfiança a expressão de as primeiras tentativas universitárias de abordar
um não conformismo. Aquelas raras pessoas que esses autores à primeira vista refratários, na época
julgam a crítica dos dogmas das internacionais um lance de ousadia em todos os sentidos” (idem,
históricas como um trabalho intelectual nefasto p. 66). Importa destacar a presença de autores
às perspectivas humanas abertas pela causa como Kant, Hegel, Marx, que legitimaram a
defendida pelas Nações Unidas, aquelas que superioridade do mundo moderno com relação ao
acreditam que se pôr em cheque as verdades antigo regime, autores que pensaram a construção
envelhecidas redunda automaticamente no de novas formas de sociedade e de um novo senso
reforçamento das possibilidades fascistas - essas de vida, sobretudo através da centralidade da
pessoas, que pretendem forjar as verdades inéditas política na modernidade.
do futuro com as noções gastas do passado, essas
É o que podemos vislumbrar em Paulo Emílio,
pessoas, é claro, não podem nos aceitar. Não
então responsável pela postura política da revista
pensamos absolutamente, com essas observações,
Clima, escrevendo editoriais e influenciando
em provocar polêmica. Isso seria de nossa parte
diretamente a concepção de mundo de seus
um ato de má fé, porque sabemos perfeitamente
amigos, que desenvolveu uma abordagem crítica
que esse gênero de polêmica é, nos dias que
sobre as Internacionais comunistas, construída
correm, impossível. Alguém poderia sugerir que
também com o auxílio dos argumentos prove-
esse tipo de reflexão é também válido para os
nientes das novas ciências humanas que eram
fascistas. Nós respondemos que com os fascistas
ministradas pelos professores estrangeiros nos
não se trata hoje propriamente de polemizar, mas
cursos de Filosofia e Ciências Humanas. Tal pos-
de lutar” (idem, p. 89-90).
tura intelectual aparece nitidamente nesta
Nesse trecho podemos observar a presença de abordagem sobre as Internacionais: “[...] negamos
dois elementos fundamentais para o entendimento a eficácia, para o progresso humano, diante das
dos editoriais escritos por Paulo Emílio na revista novas condições que se abriram, do programa e
Clima: o empenho político e a nova postura da tática daquilo que foi um dia a Terceira
intelectual crítica que surgia com a organização Internacional. Temos por ela um grande interesse
científica do discurso adquirido na Universidade histórico assim como pela Segunda ou pela Quarta.
de São Paulo. Em Certidão de nascimento, Paulo Respeitamos a dignidade de um León Blum
E. Arantes cita um depoimento de Antônio Cândido prisioneiro e temos sempre presente o drama final
sobre a influência do professor de Filosofia Jean da vida exemplar do incorruptível León Trotski.
Maugüé nos jovens universitários da USP: Mas sabemos a função histórica da Segunda
“Discípulo de Alain, era um espírito extremamente Internacional há muito terminada, e não conse-
livre, que tencionava principalmente nos ensinar a guimos nos interessar, senão intelectualmente,
refletir sobre os fatos: as paixões, os namoros, os pelas abstrações políticas daqueles que se esfor-
problemas de família, o noticiário dos jornais, os çam em acreditar numa Quarta Internacional. No
problemas sociais, a política. E para isso utilizava conjunto, olhamos com admiração para esse ciclo
largamente reflexões e análises sobre literatura, de internacionais e, vendo perpassar por elas as
pintura, cinema. As suas aulas eram extraordinárias melhores energias do espírito, temos a convicção
como expressão e criação, sendo assistidas por de que colaboraram de maneira decidida para o
várias turmas sucessivas de estudantes já formados enriquecimento do homem” (GOMES, 1943, p.
que não conseguiam se desprender do seu fascínio. 90).
Com ele fiz cursos sobre Kant, Hegel,
Assim define Paulo Emílio sua posição de
Schopenhauer, Nietzsche, Max Scheler, Freud; de
socialismo independente, destacado das fórmulas
todos se desprendia uma espécie de inspiração que
oriundas do stalinismo, do trotskismo e do ideário
aguçava o senso da vida, da arte, da literatura, da
das Internacionais. É importante ressaltamos,
história, dos problemas sociais” (ARANTES,
novamente, que a edificação dessa postura política
1994, p. 65; sem grifo no original). Na constelação
era afirmada com o auxílio das ferramentas
de autores que pensaram e criticaram o sentido e
provenientes das novas ciências humanas que
os limites do mundo moderno, Paulo Arantes
eram ensinadas na Universidade de São Paulo. No
acrescenta que “quanto a Marx (mencionado
final do editorial “Comentário”, Paulo Emílio
noutros depoimentos) e Freud, é bem provável
responde à última objeção que fora feita pelos

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leitores ou adversários políticos, a saber, que o única classe capaz de operar uma subversão de
editorial “Declaração” era substancialmente instituições e de valores para os quais se propõe;
negativo, contra o fascismo mas sem apresentar não somente porque no seio do movimento os
novas diretrizes. Assim sendo, afirma nosso autor elementos proletários têm sempre o maior peso;
que, de fato, a redação anterior carecia de pro- mas porque na experiência concreta desta luta tem
postas positivas que agora seriam apresentadas. demonstrado toda a incapacidade e o esgotamento
Nessa explanação final surge a similitude apontada da burguesia italiana como classe dirigente [...].
por Antônio Cândido entre Paulo Emílio e o ideário Devemos nos definir simultaneamente como
do grupo italiano Giustizia e Libertà dos irmãos socialistas, comunistas e liberais (socialista-
Carlo e Nello Rosselli. A primeira aproximação revolucionário, comunista-liberal), de modo que
aparece quando Paulo Emílio estabelece a crença possamos reconhecer a vitalidade existente em
nos “princípios teóricos” dos ideais de liberdade e cada uma dessas posições. No socialismo, vemos
igualdade provenientes das tradições liberais e a força de ânimo de todo o movimento operário, a
socialistas: “num plano, o mais geral possível, substância de toda democracia real – a religião do
acreditamos em dois princípios teóricos funda- século. No comunismo, a primeira aplicação
mentais que são defendidos pelo conjunto das histórica do socialismo, o mito (infelizmente muito
Nações Unidas. Primeiro – a igualdade não só enfraquecido), mas sobretudo a mais enérgica
política mas econômica de todos os homens. força revolucionária. No liberalismo, o elemento
Segundo – o respeito devido à personalidade de utopia, o sonho do prepotente, ainda que tosco
humana, o direito da pessoa humana à liberdade e primitivo – a religião da pessoa” (apud
[...]. No fascismo – que se opõe a esses dois TRANFAGLIA, 1994, p. 103).
princípios, na teoria e na prática, pelas suas castas
Um dos principais argumentos presentes na
de super-homens e pelo esmagamento da perso-
concepção do Socialismo liberal de Carlo Rosselli
nalidade humana – no fascismo denunciamos o
é o juízo crítico dirigido sobre o stalinismo e sobre
perigo de ruptura histórica da civilização ocidental.
as Internacionais comunistas. O Socialismo
Denunciamos o perigo e a possibilidade da morte
Liberale de Carlo Rosselli pode ser entendido como
dessa civilização ocidental. Denunciamos o
um impegno politico centrado na procura de um
cesarismo” (idem, p. 90-91).
espaço comum entre as idéias na conturbada arena
Trata-se de um argumento importante, escrito da ação política dos anos 30. Sua virtude maior
num momento histórico ainda nebuloso, no qual encontra-se na ampla disposição de somar as
nosso autor denuncia a concepção antidemocrática experiências políticas contidas na história de
e anti-racionalista presente no regime fascista. tradições tão distintas como o socialismo e o libe-
Contra este adversário que promovia o culto ao ralismo. Mas como entendia tal possibilidade de
super-homem, o irracionalismo e o caos, a fuga síntese entre o binômio liberalismo-socialismo?
da história e a manipulação dos mitos, Paulo Emílio Rosselli compreendia o liberalismo, basicamente,
empenha-se na tarefa de resgatar os valores como uma valorização da autonomia e dos desejos
fundamentais da civilização ocidental. Um em- do indivíduo. Com relação ao socialismo, valo-
penho político que ocorre mediante a valorização rizava Rosselli a adoção da perspectiva de pensar
da história, das conquistas históricas que foram o universal, o valor da realização prática do ideal
solapadas pelos movimentos políticos totalitários de igualdade política. O que poderia, então,
nos anos trinta. Vejamos como essa explanação significar a mescla de tarefas entre a concepção
feita por Paulo Emílio é próxima daquela que os do liberalismo e do socialismo para Rosselli?
irmãos Rosselli desenvolveram durante o exílio na Possivelmente, tratava-se de, primeiro, operar uma
cidade de Paris nos meados dos anos 30. Num maturação na consciência civil dos indivíduos,
artigo escrito em 1937, um mês antes de ser tarefa proposta pelo liberalismo na defesa da auto-
assassinado pela milícia fascista em Paris, Carlo nomia da vontade, e, segundo, da universalização
Rosselli, repensando o movimento à luz da vitória da igualdade política, tarefa do socialismo en-
do nacional-socialismo na Alemanha e na quanto força de mobilização civil das massas.
atmosfera da guerra civil espanhola, afirmava que: Rosselli procurava entender as vantagens que tanto
“Giustizia e Libertà é um movimento que possui o liberalismo quanto o socialismo poderiam ganhar
um nítido caráter proletário. Não somente porque no momento em que são somadas suas forças e
o proletário, em qualquer parte, se mostra como a conquistas históricas. No raio de ação de seu

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pensamento, as idéias ganham potência à medida Para o grupo de jovens universitários que
que somam, e não enquanto servem como divisor mantinham a revista Clima em circulação, os
de água e polarizadoras de verdades absolutas. editoriais e a postura política de Paulo Emílio
Para Carlo Rosselli, a luta contra o fascismo estimulavam a prática de um empenho intelectual
possuía um lado prático através da criação de uma e político. Antônio Cândido e Décio de Almeida
Frente Popular Italiana, que deveria incitar o povo Prado, em mais de uma ocasião, afirmaram o
italiano à defesa da liberdade, combatendo, crédito da formação política que possuíam para
portanto, o regime de Mussolini com o intuito de com o amigo e mentor. Respondendo sobre a sua
criar uma sociedade livre e civil. Uma concepção formação política, numa entrevista nos anos oitenta,
política que acreditava na luta pela autoconquista Antônio Cândido definiu toda a importância do
da liberdade que surgiria através do combate a empenho político de Paulo Emílio afirmando que
toda tentativa de supressão da liberdade pelos foi ele “o fixador de idéias, o definidor da posição
regimes totalitários. política” que o “levou a não ficar nem stalinista
nem trotskista, mas aceitar a posição preconizada
Não é meu intuito afirmar que Paulo Emílio
por Paulo de um socialismo democrático desin-
efetuou uma espécie de transplante ideológico,
teressado das Internacionais, procurando soluções
nem mesmo, insinuar que fosse um adepto do
adequadas ao país, empenhado na luta contra o
Socialismo Liberale de Carlo Rosselli, investigando
fascismo, porque esta era a manifestação
uma pista apontada por Antônio Cândido a respeito
contemporânea do cesarismo, oposto à tradição
da eventual ligação entre ambos via Andrea Caffi,
humanista, que provinha do cristianismo através
que o teria influenciado em Paris. Se não forçamos
das Revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX”
a mão, cremos que em “Comentário” podemos
(CÂNDIDO, 1988, p. 32). Um empenho político
vislumbrar tal influência em quatro pontos: 1)
independente, tal era o sentido da ação política
combate enérgico ao fascismo mediante a criação
desenvolvida por Paulo Emílio no início dos anos
de uma frente de resistência antifascista; 2) crítica
quarenta, mas que se constituía através do diálogo
ao stalinismo e ao programa de ação das
com outras tendências políticas, na medida em
Internacionais comunistas; 3) postura intelectual
que o momento histórico exigia a formação de
e política voltada para a síntese entre os princípios
uma frente única antifascista, combativa do
da liberdade e da igualdade; 4) valorização da
cesarismo nas suas várias formas. Uma concepção
autonomia política fundada na especificidade de
de mundo que via no cristianismo uma força
cada país e desvinculada dos interesses de
revolucionária e que buscava contribuir na tarefa
Moscou. No final do editorial “Comentário”,
imperiosa de restaurar a “trilogia clássica –
podemos observar claramente algumas seme-
liberdade, igualdade, fraternidade – que o ceticismo
lhanças entre o discurso de ação de Paulo Emílio
e as forças inimigas do progresso humano tinham
e as idéias dos irmãos Rosselli: “os princípios de
conseguido desmoralizar, terão sido arrancadas
igualdade e liberdade, transformados freqüen-
pelos fascistas dos edifícios públicos da França
temente pela história em antinomias, acham-se no
para, ainda uma vez, penetrarem no espírito e no
momento representados, ora um com mais desta-
coração dos homens” (GOMES, 1943, p. 91).
que, ora outro com mais ênfase, pelas três nações
antifascistas mais enérgicas: Estados Unidos, V. DENTRO DO LABIRINTO DA MODER-
Inglaterra e Rússia. A união dos três países no NIDADE: O DESEJO DE AÇÃO POLÍTICA
quadro das Nação Unidas para o esforço de
O depoimento de Paulo Emílio Salles Gomes
destruição do fascismo e de reconstrução posterior
marca um momento particular na Plataforma da
é um dos motivos que nos permitem esperar que
nova geração, livro que reunia os depoimentos
o mundo melhor que desejamos construir se baseie
dos jovens artistas e críticos que estreavam no
numa síntese e numa efetivação final dos
campo da cultura nos anos quarenta. Único
princípios de igualdade e liberdade. Um mundo
depoimento que não foi publicado no jornal, devido
em que a igualdade baseada numa estrutura
ao fato de ser substancialmente político, nele é
econômica planificada não tenha como condição
possível observar uma abordagem lúcida e variada
o aniquilamento da liberdade. Um mundo em que
de Paulo Emílio sobre a sociedade brasileira. Se
a liberdade não precise estar necessariamente
quiséssemos usar uma imagem para expressar o
condicionada pelo sistema capitalista de produção”
motivo que estruturou o ensaio de Paulo Emílio,
(GOMES, 1943, p. 91).

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poderíamos dizer que se trata de um intelectual Diante da importância do sr. Alceu Amoroso Lima
situando, na linha de frente, as batalhas que como orientador reconhecido de um considerável
estavam sendo travadas nos jornais, nos partidos número de jovens da nova geração é necessário
políticos clandestinos e na cultura brasileira. De dizer inicialmente que ele não pode merecer
todos os depoimentos dos dois livros, seja no confiança. Porque um homem com a sua respon-
Testamento de uma geração seja na Plataforma sabilidade e informação não poderia ter indicado,
da nova geração, o de Paulo Emílio revela a como indicou, aos jovens católicos brasileiros com
presença de um empenho político que não pode vocação política o caminho integralista” (GOMES,
ser reprimido e que não se deixava cercear. Por 1945, p. 282-283). Marcar posição e assumir
todos esses motivos, seu depoimento foi o único conseqüências, eis um itinerário sempre presente
censurado nos jornais e somente pôde aparecer na trajetória política de Paulo Emílio. Um outro
no livro organizado por Mário Neme em 1945, ponto importante na estrutura da crítica de Paulo
quando a ditadura havia terminado. Assim, vere- Emílio foi a procura incessante pela identidade de
mos um intelectual inquieto com o destino vazio si mesmo, seja através do contraponto com o
oferecido pelo tempo monstruoso em sua volta, outro, seja numa aventura que se iniciou solitária
que se debatia pela defesa da liberdade e das rumo a um ideal de coletividade a ser descoberto.
conquistas democráticas ameaçadas de extinção Na afirmação de que é preciso demarcar posição
pelas forças do fascismo e do nazismo. Um jovem com o pensamento de Tristão de Athayde era a
que exercitava sua vocação política, portanto, que procura da afirmação da identidade que estava em
procurava com essa vocação traçar uma postura questão, e que era, por excelência, o terreno onde
efetiva de ação num tempo histórico no qual, para Paulo Emílio atuava com mais vontade para agir e
milhares de pessoas, o simples fato de poder criticar.
desejar já adquiria status de prazer realizado.
Na seqüência da crítica dirigida ao catolicismo
Paulo Emílio iniciou o seu depoimento e ao liberalismo, ideologias que não possuía força
mapeando as várias tendências das idéias políticas e autonomia para sugerir caminhos alternativos
na sociedade brasileira, por meio da postura de para o Brasil, Paulo Emílio dirigiu a sua atenção
observação crítica. Para ele, o dado mais signi- para a análise da esquerda, promovendo uma
ficativo do momento histórico era a inexistência importante crítica sobre a sua geração. Nessa parte
de uma “unidade ideológica em nossa geração”. do depoimento, encontramos um traço que lhe é
Como vimos anteriormente, no momento histórico muito caro, a saber, o ato de refletir sobre as
mundial que estilhaçava as certezas e convicções, experiências vividas procurando compreender e,
a vida ficara reduzida a uma dimensão pequena e portanto, dominar aquilo que ocorrera no passado
sem esperança de ação. Partindo dessa convicção recente. Assim, discorrendo sobre a esquerda,
Paulo Emílio procurou repensar as tendências nosso autor narrou a experiência que compartilhara
políticas que ainda mantinham uma posição efetiva em 1935 na Juventude Comunista e na prisão do
na estrutura da sociedade brasileira e que, bem ou Paraíso, conforme podemos observar: “passados
mal, guardavam uma perspectiva de futuro. Assim, em revista os setores secundários, podemos entrar
enumerou o integralismo derrotado pela adesão naquele que tem realmente significação pela
do governo de Vargas a favor das forças aliadas qualidade intelectual de muitos de seus membros:
que compunham as Nações Unidas, o catolicismo a corrente de esquerda da jovem intelectualidade
que procurava servir de tábua de salvação e o do Brasil. Também neste campo delimitado não
liberalismo inoperante e estéril das elites locais. existe unidade de pensamento. Pior do que isto,
Seu interesse era o de pensar um projeto político há uma grande confusão” (idem, p. 284).
para a sociedade na qual a política nunca mostrava
Em seu conjunto tratava-se de uma exposição
o seu interesse à luz do dia e em projetos maiores
panorâmica das diferentes ideologias contidas no
e significativos. Nesse reino da confusão, Paulo
cenário nacional como o integralismo, catolicismo,
Emílio afirmava que: “é sabido que o meio de
liberalismo e socialismo, buscando mostrar ao
cultura ideal para a proliferação fascista e
leitor o estado e o valor de cada qual na conjuntura
neofascista é confusão. A confusão, sobretudo,
política brasileira. O que se iniciou como um painel
entre os adversários [...]. Creio que é o momento
ilustrativo acabou por tornar-se uma significativa
de marcar uma posição diante da personalidade
descrição de uma chave importante para o
de Tristão de Athayde, o sr. Alceu Amoroso Lima.
entendimento de uma dinâmica própria da vida

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EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

intelectual e política brasileira, a saber, a fragilidade todos mais ou menos se lançaram pelos vários
do engajamento político do intelectual e o seu caminhos do conhecimento científico e artísticos,
estado de disponibilidade moral e política. No da física à psicanálise, da pintura ao cinema.
balanço crítico do passado político recente Paulo Conheceram o amor. Foram independentes, foram
Emílio descreveu as contradições e alienações mesmo mais do que isso. Conheceram a gratuidade
vividas nos anos seguintes ao movimento e a disponibilidade, com as facilidades que lhes
esquerdista de novembro de 1935, dizendo que permitiam as suas condições de classe. Puderam
“Os moços que têm hoje pouco menos ou pouco se dar ao luxo de usar o processo de conhecimento
mais de trinta anos fizeram uma primeira que consiste em acreditar-e-depois-não-mais-
aproximação com as idéias políticas e sociais de acreditar naquilo pelo que momentaneamente se
seu tempo há uns dez anos atrás. No extenso e está interessado” (ibidem).
superficial debate de idéias sociais, literárias,
Na reflexão crítica do movimento comunista
artísticas e científicas (marxismo, psicanálise, pós-
de 1935, são várias as questões apresentadas por
modernismo artístico etc.) que acompanhou a
Paulo Emílio Salles Gomes: crise da modernidade;
vitória da também extensa e superficial revolução
amor pela Rússia como nova expressão do
de 1930, avultava o interesse em torno da Rússia
moderno; passado que se apaga na memória dos
forjada pela revolução de outubro de 1917 [...].
indivíduos sem deixar vestígio; engajamento
Falava-se muito em dialética mas dificilmente se
político que se desdobra no nível ameno da
aprendia nesses meios a pensar dialeticamente. Mas
consciência subjetiva e que se desfaz conforme a
amava-se a Rússia. Amava-se a Rússia nos dois
intensidade dos conflitos objetivos em cena; evasão
campos. Através do entusiasmo pelas realizações
da realidade como norma. Nesse longo trecho,
stalinistas, ou pelo criticismo trotskista, amava-
emotivo e límpido, o que está em questão é o frágil
se a Rússia” (idem, p. 285-286).
engajamento político do intelectual brasileiro de
Contudo, malograda a Revolução de 1935, classe média. A debilidade da sua orientação e a
“Vieram os dias terríveis, e passados alguns anos renúncia à luta política comum a esse tipo de
desapareceu no Brasil toda a espécie de organização intelectual serve como uma expressão da carência
política legal ou ilegal. Aqueles que mais profun- de senso político que reina solto na sociedade
damente se haviam integrado no Partido, e viveram brasileira, diagnosticada por Paulo Emílio com a
a sua penosa dissolução interna, tinham a sensação boa fórmula “acreditar-e-depois-não-mais-
de uma completa esterilização interior, quando isto acreditar naquilo pelo que momentaneamente se
na realidade era uma impressão passageira, e eles está interessado”. Uma frase que ainda hoje poderia
saíram da prova tremendamente enriquecidos. bem ser escrita para diagnosticar a fragilidade de
Outros se transformaram em autônomos [sic], muitos “intelectuais” na sociedade brasileira.
com o pensamento e o riso mecanizados, e o brilho “Intelectuais” tão duramente criticados por Paulo
dos olhos perdido. Outros ainda fugiram para cada Emílio pois renunciaram ao que há de mais caro
vez mais longe, para as Guianas e para a loucura. no papel do intelectual: a consciência histórica.
E para alguns esses processos lentos precisaram Livre de qualquer vínculo com o passado e imune
ser vividos dentro da geografia limitada das prisões. a qualquer sentimento de responsabilidade acerca
do curso do presente, acreditando e depois não
Com a maioria, entretanto, dos jovens inte-
mais acreditando “naquilo pelo que momen-
lectuais das classes médias ou burguesas, não
taneamente está interessado”, regride o falso
aconteceu nada disso. Eles seguiram suas vidas
intelectual à cômoda posição no interior da torre
pessoais e houve um momento em que aparen-
de marfim.
temente não havia mais na maioria deles, nenhuma
marca do passado. Pelo fato de nunca terem Criticando a postura rígida do dogmatismo que
estado completamente integrados no Partido, e cercava os homens de esquerda, principalmente
portanto sem ligação profunda com a massa de o stalinismo, Paulo Emílio rejeita as poucas opções
homens sobre a qual o Partido se apoiava, não foi históricas apresentadas pelas forças de esquerda
difícil a esses jovens se desligarem a tempo, e nos portadoras da perspectiva de futuro. Sua crítica
casos em que houve a continuação de um processo procurava valorizar o sentido originário da Revo-
político este se desenvolvia livremente no plano lução Russa como um momento histórico que
da consciência. Para estes o rompimento era só deveria ser resgatado para oxigenar as então atuais
um drama de consciência [...]. Alguns viajaram, concepções dogmáticas e sectárias. No seu

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esforço de pensar a conjuntura política nacional e de Vargas e, sobretudo, lutar pela extinção “de um
internacional, Paulo Emílio promoveu uma Brasil formal e do nascimento de uma nação”. Um
recuperação analítica renovadora do passado, projeto moderno2 , sem sombra de dúvidas,
enaltecendo as conquistas históricas que deveriam voltado para a construção de uma sociedade na
ser mantidas a todo custo pelas forças demo- qual os valores universais que fundam a era
cráticas. Desse modo, enfatizou os princípios da moderna, a liberdade e a igualdade, existissem de
liberdade e da igualdade como conquistas modo real, efetivo e pleno. Um projeto de fôlego,
ameaçadas no interior do conflito mundial e, de que se iniciava mediante a efetiva compreensão
maneira velada, pela ditadura de Vargas. Para ele, do passado histórico, passo primeiro em busca
os países aliados representavam a junção dos ideais de orientação e posicionamento no presente. Afinal,
de liberdade e de igualdade de condições (uma como lutar pelo surgimento de uma efetiva nação
fórmula do tipo (liberdade) + (igualdade) = (Ingla- sem a orientação advinda da compreensão da
terra, França e Estados Unidos) + (União Sovié- origem dos problemas históricos? Como fazer
tica)), e aqueles que não se alinhavam com esses vingar nas terras esterilizadas pelo fogo tenaz do
ideais estavam do lado da opressão e da barbárie. autoritarismo e do passado escravocrata os direitos
Numa frase muito significativa, afirma que “aos universais que constituíam o homem e a sociedade
nossos dirigentes, eu sugeriria que contribuíssem moderna? Como encontrar uma fórmula local de
para isso com a promulgação de um decreto de um socialismo revolucionário que levasse em conta
anistia e liberdade de imprensa, seguidos de a necessidade de construção das liberdades
liberdade de organização política para as oposições. democráticas?
Às personalidades políticas da oposição, tanto
No momento em que o amanhã estava
liberais como esquerdistas, eu sugeriria uma linha
ameaçado de não existir, Paulo Emílio portava-se
de reivindicações em relação aos nossos dirigentes
como um intelectual empenhado na linha de frente
que facilitasse a hipótese de uma orientação como
das várias batalhas que deveriam ser travadas
a que ficou expressa na sugestão anterior. Ainda
contra o pensamento reacionário. Numa
restam muitos problemas que exigem um estudo
observação de Antônio Cândido a propósito de
urgente e que se enquadrariam bem num inquérito
Paulo Emílio podemos encontrar uma síntese do
como este. Por exemplo: a questão da participação
espírito de luta que fazia surgir no interior da revista
do intelectual e da torre de marfim, de que se fala
Clima: “inquietação e fervor; busca difícil de uma
tanto hoje e que tem sido sempre desenvolvida de
ação socialista compreensiva e eficaz, sem
uma maneira errada. Sem falar de toda uma série
sectarismo mas sem transigência; antistalinismo,
de problemas literários e de estética. Estes últimos
mas fidelidade à Revolução Russa; marxismo como
ficariam deslocados neste depoimento. Estou,
base, mas receptividade às correntes filosóficas e
aliás, convencido de que por maiores que sejam
políticas do século; como tarefa imediata, luta
as realizações que possam estar reservadas à minha
contra o Estado Novo e o fascismo, seu modelo.
geração no campo literário, artístico e científico,
Creio que era mais ou menos este clima intelectual
esse conjunto não pode deixar de aparecer como
e afetivo que banhava as suas idéias e que ele
um detalhe, diante do destino político, militar e
irradiava” (CÂNDIDO, 1986, p. 61). Nesse
religioso de uma juventude chamada a participar
depoimento de Antônio Cândido podemos ver
do desaparecimento de um Brasil formal e do
ressaltado o empenho político que Paulo Emílio
nascimento de uma nação” (idem, p. 292; sem
projetou ao longo dos anos quarenta no combate
grifos no original).
ao fascismo e na luta pela redemocratização da
Na conclusão de seu depoimento, Paulo Emílio sociedade brasileira, um retrato do projeto de ação
Salles Gomes chama a atenção para a necessidade que os jovens universitários iniciavam em Clima
imperativa da soma de esforços num tempo que a partir dos editoriais escritos por nosso autor.
poderia transformar-se em numa opressão
absoluta, se vingasse a promessa nazista do
império dos mil anos. No seu argumento podemos
estabelecer a presença de duas batalhas em dois
planos, no internacional e no local. No plano 2 Sobre as idéias políticas do grupo Clima ver, entre outros.
internacional, tratava-se de derrotar o fascismo e Cândido (1977), Mota (1977), Arantes (1992) e Lafer
o nazismo e, no plano local, derrubar a ditadura (1992).

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EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

Quando lemos os 14 números da revista, lança- ressaltar no discurso de formatura. Para Paulo
dos entre 1941 e 1944, encontramos a presença Emílio, no mundo em crise e no pântano do
de um processo de formação de uma nova identi- golpismo e autoritarismo construído pelo Estado
dade do intelectual na cidade de São Paulo. Novo, a função do intelectual era a de lutar pela
efetiva democratização da sociedade brasileira.
VI. O GOSTO PELO CONCRETO
Uma tarefa histórica que acreditava ser o
Em 1944 Paulo Emílio foi escolhido como ora- verdadeiro destino de sua geração. Vimos que no
dor da turma de bacharéis da Universidade de São seu depoimento à Plataforma da nova geração
Paulo. Todavia, nosso autor redigiu um discurso nosso autor concluiu dizendo que “estou, aliás,
voltado para enfatizar a necessidade de abater de- convencido de que por maiores que sejam as
finitivamente o Estado Novo e tornar impossível realizações que possam estar reservadas à minha
qualquer retorno ao estado ditatorial. Conferindo geração no campo literário, artístico e científico,
argumentos de alcance coletivo aos esforços de esse conjunto não pode deixar de aparecer como
construção de uma sociedade democrática, o seu um detalhe, diante do destino político, militar e
discurso em nada lembra uma cerimônia marcada religioso de uma juventude chamada a participar
pela pompa e festividade dos formandos e convi- do desaparecimento de um Brasil formal e do
dados. Seu conteúdo é todo ele político, e não nascimento de uma nação” (GOMES, 1945, p.
seria um exagero dizer que mais se parece com 293). Ao deslocar o acento da sabedoria edificante
um discurso de persuasão política: “as necessida- do douto para a arena da luta política, farpa dirigida
des políticas do momento se exprimem numa pa- à castidade política do intelectual brasileiro bem-
lavra: Democratização. Democratização significa situado au-dessus de la melée, nosso autor redigia
muito. Significa levar o Brasil a um regime legal, um importante manifesto a favor de uma cultura
dotado de suficiente dinamismo para todas as política militante empenhada na tarefa de
transformações. Democratização significa abrir o construção de uma efetiva sociedade democrática.
debate mais amplo e livre sobre todos os proble-
A palavra de ordem lançada no final do
mas políticos, sociais, econômicos e culturais da
depoimento à Plataforma da nova geração,
nação. Democratização significa que este debate
“participar do desaparecimento de um Brasil formal
não pode se processar sem liberdade de impren-
e do nascimento de uma nação”, seria plenamente
sa, de reunião e de organização de partidos políti-
desenvolvida no Manifesto da União Democrática
cos. Democratização significa a completa
Socialista. A União Democrática Socialista surgia
integração na vida política do país, das forças de-
no clima de esfacelamento do Estado Novo e,
mocráticas, conservadoras, liberais ou da esquer-
sobretudo, com o acirramento das divergências
da. Democratização significa anistia aos presos e
ideológicas entre os participantes da Frente de
exilados políticos. Ao nosso ver, são grandes os
Resistência contida na União Democrática
males que o regime do Estado Novo causou ao
Nacional. Com o processo de derrocada do Estado
Brasil [...]. Cremos na democracia. Cremos na
Novo chegava o momento do acerto de contas
liberdade cada vez maior para o homem. Cremos
entre os liberais, os socialistas e os comunistas,
na igualdade cada vez maior entre os homens.
até então aliados práticos na resistência à opressão
Sentimo-nos solidários com todas as forças que
do Estado Novo. A respeito desse momento
no mundo trabalham para a emancipação humana.
histórico, da ruína da ditadura e dos atritos na
As tiranias e as explorações do homem serão
composição política no interior da UDN, observava
varridas da face da terra” (GOMES, 1978b, p.
Paulo Emílio que “começamos a ter reuniões
20).
decisivas, nas quais nossas diferenças com os
Seu discurso foi formulado por meio de liberais, antes irrelevantes, revelavam-se cruciais.
argumentos coletivos, chamando os jovens Se a defesa do stalinismo nos separava dos
universitários à luta pela eventual reorganização comunistas, a defesa do capitalismo nos afastava
democrática da sociedade brasileira no pós-guerra. dos liberais. A fase das coisas prioritariamente
Como podemos ver, Paulo Emílio utilizou práticas passara” (BENEVIDES, 1979, p. 95).
abusivamente a palavra “democracia” para indicar Logo, com o fim da atmosfera de compromisso
sua inexistência na vida cultural e política brasileira. político comum compartilhado com os liberais e
Um alvo que deveria ser construído por sua os comunistas surgia na cidade de São Paulo a
geração, tal era a crença que possuía e buscava União Socialista Democrática.

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Escrito em 1945, mas originário do clima de cepção política de Paulo Emílio na metade dos
fermentação política da resistência contra o Estado anos quarenta. Na verdade, a defesa do socialismo
Novo, o Manifesto da União Democrática democrático significava um esforço duplo que
Socialista esquadrinhava as tarefas e os valores partia da tarefa de repensar o socialismo, ao
do socialismo democrático na sociedade brasileira. mesmo tempo que este deveria ajudar a redefinir
Antônio Cândido, relatando o clima político em os sentidos das abstrações que reinavam soltas na
que surgiu esse Manifesto, recorda que, “embora nação malformada. Repensando o sentido do
exprimisse posições do grupo, Paulo o elaborou socialismo democrático desenvolvido pelos
de maneira pessoal com base nas suas idéias, membros da UDS nos anos quarenta – processo
englobando contribuições de Antonio Costa que era capitaneado por Paulo Emílio –, Antônio
Correia e Paulo Zingg. O manifesto exprimia uma Cândido comentou que “[...] fiz parte de um grupo
esquerda lúcida, realista, e independente, coroando de jovens que tentou, obscura e por vezes
dois anos de tateio e agitação clandestina” pateticamente, com dilacerações e tensões de todo
(CÂNDIDO, 1986, p. 64). Paulo Emílio condensou tipo, encontrar a fórmula de um socialismo de teor
já na primeira frase a finalidade do movimento ao revolucionário que não sacrificasse, no processo
dizer que “no Brasil nunca houve democracia”. A da sua construção, as liberdades democráticas.
origem aqui é o fim, no caso a inexistência da ‘Quadraturas do círculo’, ‘sonho de intelectual
democracia era diagnosticada como a meta que pequeno-burguês’, ‘ideologia de social-traidores’,
deveria ajudar a construir mediante uma efetiva – eis alguns qualificativos que recebíamos, à direita
luta pela democratização da sociedade, tarefa essa e à esquerda. Achávamos que era preciso superar
que somente seria possível mediante a instauração o sistema capitalista, promover a humanização das
de um “regime socialista, por uma democracia sem massas escravizadas e abrir para elas o jogo
classes”. Contudo, a prioridade ainda era “a político; achávamos que era preciso, numa palavra,
liquidação definitiva do Estado Novo, cujo fazer a revolução. Mas achávamos também que o
aparelhamento de repressão continua de pé, e o direito à integridade física, a liberdade individual,
combate às manobras continuístas do ditador”, o voto desimpedido, a liberdade de expressão, o
ressaltando que “a destruição definitiva do fascismo habeas corpus etc. não eram traços inerentes à
só estará consumada depois de reformas políticas, civilização burguesa, que pudessem ser
econômicas e sociais, pois o predomínio das descartados à vista de fins maiores. Mas a
oligarquias poderá conduzir-nos à instauração de conquista da humanidade, a serem preservadas
uma nova ditadura” (GOMES, 1986a, p. 104). em qualquer regime e completadas por outros
Destruir completamente todas as influências do princípios mais recentes, como liberdade sindical,
Estado Novo, nesse momento podendo ser direito de greve, participação nos lucros etc. O
identificado como um regime do tipo fascista, fato de terem sido desenvolvidas por teóricos
significava combater a estrutura política, social e burgueses, na fase da ascensão ideológica da
econômica construída e reformulada pelas burguesia, não lhes tira o caráter de valores
oligarquias brasileiras. Logo, no momento em que ‘gerais’” (CÂNDIDO, 1977, p. 37).
o Estado Novo estava em processo de
Um programa político de fôlego, que não
desmoronamento, importava lutar pela “instalação
resistiria às “dificuldades de arregimentar e
de um regime estável, capaz de resistir a futuras
coordenar as tarefas para a luta eleitoral que se
investidas das forças reacionárias, porém depende
anunciava” (CÂNDIDO, 1986, p. 65). Dissolvida
de uma exata compreensão das bases sociais do
a UDS em 1945, Paulo Emílio ainda participaria
Estado Novo e dos problemas da sua liquidação”
da Esquerda Democrática juntamente com os
(idem, p. 102-103).
amigos da revista Clima Antônio Cândido, Décio
No Manifesto, Paulo Emílio estabelecia que a de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado.
orientação política do movimento deveria estar Todavia, sua participação foi reduzida e sem o
“estritamente de acordo com as peculiaridades mesmo brilho e estímulo que manifestou em outros
históricas e sociais do Brasil, longe das fórmulas projetos políticos.
esquemáticas e dos sectarismos facciosos” (idem,
Numa frase escrita por Antônio Cândido no
p. 101-102). Socialismo democrático independente
ensaio sobre Arnaldo Pedrosa d’Horta, podemos
que se orientava pela necessidade de estudo e
vislumbrar o sentido da participação política que
conhecimento da realidade brasileira, tal era a con-
ambos realizaram na União Democrática Socialis-

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EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

ta. Segundo ele, “passamos juntos por muita mu- cialista pode ser compreendido como uma das
dança, lutamos horas sem conta em lutas sem “colheitas que não brotaram”, fruto de um empe-
perspectivas, esperamos sem esperança colheitas nho político que não conseguia ultrapassar os li-
que não brotaram, ficamos homens numa ditadura mites constritores da dura realidade brasileira.
e envelhecemos noutra” (CÂNDIDO, 1993, p. Assim, o fim da União Democrática Socialista
196). Drama da condição de intelectual que marca na vida de Paulo Emílio um ciclo que estava
juntamente com o amigo Paulo Emílio desem- por ser encerrado. Um outro ciclo estava sendo
penhou nos anos quarenta, “lutando sem gerado e seria aberto com a sua viagem rumo ao
perspectivas” pelo socialismo democrático numa cinema, na Paris do pós-guerra.
sociedade na qual o liberalismo não existia de Recebido para publicação em 26 de setembro de 2001.
maneira efetiva e real. De certo modo, o curto Artigo aprovado em 17 de novembro de 2001.
período de existência da União Democrática So-

João Carlos Soares Zuin (jczuin@uel.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Londrina (UEL).

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