Você está na página 1de 212

Marxismo Vivo - Nova Época

Orgão teórico da Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional (LIT-QI)

Revista ao serviço da investigação, elaboração e debate da teoria revolucionária.


O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos seus autores.

Todos os artigos, citando a fonte, podem ser reproducidos.


Os artigos assinados são de responsabilidade dos seus autores.

Editor Responsável: Martín Hernández

Conselho Editorial
Alicia Sagra (Argentina - asagra2@yahoo.com.ar)
Daniel Ruiz (Argentina - danielruiz45@yahoo.com.ar)
Felipe Alegría (Estado espanhol - fealegria1@gmail.com)
Florence Oppen (Estados Unidos - petitmercure@yahoo.fr)
Francesco Ricci (Itália - ricci.francesco2@gmail.com)
José Welmowicki (Brasil - josweil@ig.com.br)
Marcos Margarido (Brasil - margarido7@gmail.com)
Martín Hernández (Brasil - martinhernandez@terra.com.br)
Nazareno Godeiro (Brasil - jpotyguar@terra.com.br)
Óscar Iván Ángel (Colômbia - arqangelo2703@gmail.com)
Ricardo Ayala (Brasil - rayala361@gmail.com)
Roberto Herrera Zúñiga (Costa Rica - xherrera16@yahoo.com)
Ronald León Núñez (Paraguai - ronald.leon.nunez@gmail.com)

Projeto gráfico: Adriana Alvarenga


Revisão: Alicia Sagra - Marcos Margarido
Traduções: Ariana Gonçalves - Flávia Bischain - Otavio Calegari - Rosangela Botelho
Desenho de capa: Martin Garcia
Diagramação: Natalia Estrada
Normalização técnica: Iraci Borges - CRB 8-2263
Marxismo Vivo: nova época. v. 11, n. 16, novembro, 2020. São Paulo: Liga Internacional dos
Trabalhadores: 2020.
Quadrimestral

ISSN: 2175-2281

Nota: circulou no período de setembro de 2000 até setembro de 2009 com o título Marxismo Vivo
1. Marxismo - teoria revolucionária
edições
marxismo
vivo Subscricões e pedidos de números avulsos: marxismovivo.org

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 1­212 ­ Novembro de 2020


Marxismo Vivo
Orgão teórico da Liga Internacional dos Trabalhadores - IV Internacional

n ova
época

edições

São Paulo - 2020


TEMAS E CONTEÚDOS

08 Aos nossos leitores

10 A questão negra na revolução socialista


Teses sobre a questão negra
Nazareno Godeiro - Brasil

28 A estatização dos meios de produção,

t
é uma medida socialista?
Marcos Margarido - Brasil

30 Engels sobre a nacionalização


dos meios de produção

34 A proposta de nacionalização de Lenin em 1917

36 Trotsky e as nacionalizações da década de 1930

39 A política de nacionalização e o controle operário


no programa revolucionário

44 Dossiê: A 200 anos do nascimento de Engels

45 Em defesa de Friedrich Engels,


em defesa do marxismo
Daniel Sugasti - Paraguai

55 As contribuições de Engels ao marxismo


José Welmowicki - Brasil

57 O primeiro ataque: Lukács

60 Outros críticos

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 4­7 ­ Novembro de 2020


62 O materialismo mecanicista na sua versão stalinista
é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?

64 Robert Havemann: o combate ao stalinismo


na ex‐Alemanha Oriental, apoiado em Engels

66 Engels tinha uma concepção oposta à de Marx


na aplicação da dialética à natureza?

69 Consequências programáticas das distintas


críticas à obra de Engels
José Welmowicki - Brasil

78 Rosa Luxemburgo recorre a Engels na luta


contra os reformistas da Segunda Internacional

79 Lenin teria superado Engels e seu ‘mecanicismo’?

83 Trotsky e Engels

t
85 Por que reivindicar Engels contra os ataques infundados
é decisivo hoje para desenvolver o marxismo?

90 Engels teria se transformado


em um reformista ao final da sua vida?
Marcos Margarido - Brasil

92 A relação entre Marx e Engels e o partido alemão

94 O contexto histórico no que Engels interveio

101 O que Engels defendia ?

105 O que dizia a Introdução?

111 Engels, o general


Américo Gomes - Brasil

114 A arte da insurreição

115 Guerra Civil norte‐americana

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 4­7­ Novembro de 2020 ­


119 Lutas de barricadas

124 Engels e a violência

127 O trabalho militar na Alemanha

129 As conclusões de Engels sobre a tomada do poder


pelo proletariado

132 Debates Programáticos


133 Não existe uma lógica marxista?
Alicia Sagra - Argentina

135 Lógica dialética como sinônimo de idealismo?

136 As leis da dialética

138 Marx, Engels, Lenin e Trotsky

t
sobre a dialética materialista

140 Engels: as leis da dialética

142 O método marxista‐ a dialética


como método de conhecimento

143 Lenin: Relação dialética ‐ teoria do conhecimento

144 A dialética como método ‐ Aplicação do materialismo


dialético à história

145 Relação da dialética com as ciências naturais

145 Trotsky: a dialética como método de conhecimento

146 A dialética materialista e sua aplicação


no Materialismo Histórico

148 A luta contra a deformação stalinista

152 Por fim, o que diz Marx de seu método dialético,


existe ou não?

156 Com quem debate Gustavo Machado?

156 Algumas perguntas finais


­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 4­7 ­ Novembro de 2020
158 As categorias e seus conteúdos
Alejandro Iturbe - Brasil

158 A relação entre análise e definição

159 Trotsky sobre a URSS

160 A relação entre definição e categoria

161 A definição de situação revolucionária de Lenin

162 A análise de Trotsky em 1931

164 A formulação de 1940

165 Moreno retoma a definição de Lenin

166 As diferentes “revoluções de fevereiro”

167 A necessidade de categorias mais flexíveis

t
168 A contradição na elaboração e o uso das categorias

169 “Os de cima” em nível mundial

171 A “ordem mundial”

172 “Os de baixo”

173 Os quatro primeiros congressos da III Internacional

176 Algumas questões


sobre Ditadura do Proletariado
Hans Meyer - Alemanha

179 I ‐ Ditadura do Proletariado: para além da definição social


do Estado

192 II ‐ Ditadura do proletariado, stalinismo e restauração

203 III ‐ A crise do trotskismo diante da restauração capitalista

210 IV ‐ A Ditadura do Proletariado e o nosso programa

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 4­7­ Novembro de 2020 ­


Aos nossos leitores

Depois de onze meses, voltamos a publicar a Revista Marxismo Vivo – Nova


Época, agora em versão digital.
A pandemia do coronavírus nos obrigou, por prudência contra possíveis
novos contágios, a parar com a publicação da revista em papel.
No entanto, a decisão de não publicar a revista durante a pandemia entrou
em contradição com as necessidades da vanguarda operária e popular, para
quem a mesma está dirigida.
A nova situação mundial, marcada pelo coronavírus de um lado e a brutal
crise econômica do outro, nos exige levar a cabo estudos profundos de uma
realidade que muda todos os dias. Mas, para a análise e a política, se faz neces-
sário que a vanguarda operária e popular se fortaleça teoricamente, pois, como
dizia Lenin, sem teoria revolucionária não há política revolucionária.
Por todos os motivos anteriores e porque a pandemia continuará, decidimos
publicar esta revista em forma digital.
Em um primeiro momento, a pandemia era uma ameaça à vida de milhões
de pessoas, especialmente as mais pobres. Da mesma maneira, a crise da eco-
nomia capitalista ameaçava também a sobrevivência de um número ainda
maior de pessoas.
Hoje a pandemia deixou de ser uma ameaça e se tornou uma realidade.
Todos os países do mundo já sofrem suas consequências. Da mesma forma,

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 8­9 ­ Novembro de 2020


uma segunda onda deixou de ser uma possibilidade para se transformar em
uma realidade, como confirma a atual situação de toda Europa e, por sua vez,
há países que já sofrem uma terceira onda, como o Irã.
Num primeiro momento, muitos consideraram que era um exagero falar da
possiblidade de milhares de mortos. Mas, quase um ano depois do início da
pandemia, os números não deixam dúvidas. Oficialmente já há, em nível mun-
dial, mais de 55 milhões de pessoas contaminadas e mais de um milhão e tre-
zentos mil mortos, cifra que pode chegar, segundo vários especialistas, a mais
de cinco milhões, levando-se em conta a subnotificação que existe por parte
da maioria dos governos.
Frente a esta realidade, os setores mais pobres, que são as grandes vítimas
da pandemia e da crise econômica, depois de um período de refluxo, estão pro-
tagonizando levantamentos de massas em muitos países, sendo os Estados Uni-
dos um dos maiores. Por outro lado, esta resposta inicial das massas à ofensiva
do capital começa a ter reflexos superestruturais como se pode ver na recente
derrota eleitoral de Trump nos Estados Unidos.
Esta nova situação mundial coloca velhos e novos desafios, no terreno pro-
gramático, aos revolucionários de todo o mundo.
Nossa revista não é e não pretende se transformar em um manual de res-
postas para cada um dos desafios colocados. Ao contrário, com ela pretendemos
abordar os problemas teóricos que estão por trás de cada situação, para ajudar
a ter uma compreensão dos mesmos e, desta forma, facilitar respostas políticas.
Enquanto durar a pandemia manteremos a revista em forma digital.
Quando a pandemia terminar, veremos se voltamos à edição impressa, se man-
temos apenas a edição digital, ou as duas. Em grande medida, a resposta a esta
pergunta dependerá do balanço que fizermos sobre a experiência da Marxismo
Vivo digital.
Os editores

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 8­9­ Novembro de 2020 ­


T
sobre
e
s
e
s

a questão
negra
A QUESTÃO NEGRA
NA REVOLUÇÃO SOCIALISTA

Nazareno Godeiro - Brasil

Apresentação
Este texto foi finalizado em dezembro de 2019, logo após a Conferência Na-
cional de Negros e Negras do PSTU (B), onde participei como convidado.

Apesar destas teses se referirem à questão negra no Brasil, o tema extrapola


as fronteiras deste país.

A importância do tema se tornou evidente depois do levante negro nos Es-


tados Unidos, em maio de 2020, em plena pandemia do coronavírus.

Este levante é apenas a ponta do iceberg da luta negra que percorrerá, junto
com a luta indígena, todo o continente americano, que por sua vez está ligado
ao continente africano e influenciará a luta dos imigrantes em todo o mundo,
levando a revolução para dentro dos países imperialistas.

Estas teses são produto de um estudo sobre a resistência ao genocídio indí-


gena na América e à resistência negra aos 400 anos de escravização.

No estudo, pude verificar uma completa subestimação do papel revolucio-


nário dos povos afro-indígenas na história do continente, pelos mais diversos
autores, inclusive renomados autores de esquerda.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­


12 Nazareno Godeiro

A burguesia conta “sua” história, onde as grandes transformações foram rea-


lizadas pela bondade de uma princesa branca (como a libertação dos escravos
no Brasil) e genocidas se transformam em heróis nacionais, como o Duque de
Caxias, que devastou o Paraguai na guerra e derrotou todos os processos revo-
lucionários ocorridos no Brasil entre 1835 e 1850.

O Partido Comunista, por sua vez, cometeu o mesmo erro histórico, bus-
cando encontrar uma burguesia “progressista” e revolucionária nos aconteci-
mentos históricos, dando proeminência a figuras da monarquia constitucional
(que afogou em sangue os brotos de revolução burguesa, centralizando um im-
pério em decomposição) ou da “república”, cuja primeira atividade foi massa-
crar Canudos, uma guerra camponesa por terra, incrustrada no sertão
nordestino.

Em ambos casos, perpassa uma visão histórica deformada que superestima


o papel da burguesia e da pequena burguesia e subestima totalmente os 200
anos de guerras e resistência indígena e 350 anos de resistência negra, que de-
terminou a situação na região por vários séculos, desde 1492.

Essa resistência assumiu um caráter continental porque se enfrentou com


um projeto de acumulação primitiva que terminaria por formar o mercado
mundial capitalista e tornou a economia, a política e a luta de classes num fe-
nômeno mundial.

Também se pode concluir do estudo desta resistência secular que a revolu-


ção do século XXI, uma revolução de caráter socialista já que enfrenta a bur-
guesia mundial e tem como força motriz o proletariado, trará estampada no
seu programa a marca desse passado colonial, genocida e escravista.

O nexo entre o passado e o presente é a reparação histórica aos povos afro-


indígenas.

Portanto, o proletariado, unido com centenas de milhões de pobres da ci-

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020


A questão negra 13

dade e do campo, semiproletários e pequenos proprietários pobres, iniciará sua


revolução resolvendo as tarefas que a burguesia abandonou ao renegar sua re-
volução.

Assim, nestas revoluções terão peso o fim da dominação colonial e a expul-


são do imperialismo, a reparação histórica aos povos afro-indígenas, o fim de
toda opressão nacional, de raça, de gênero, cultural, de credo, de orientação se-
xual. A industrialização dos países, com a reestatização de todas as empresas
privatizadas, garantindo pleno emprego, a reforma agrária (que garanta a so-
berania alimentar do país) e urbana (que garanta moradia e serviços sociais
públicos e gratuitos), que se vinculam diretamente com a expropriação da
grande propriedade burguesa, nacional e multinacional, avançando para uma
unificação continental de repúblicas socialistas, baseada em Estados multiét-
nicos e plurinacionais, em uma democracia dos explorados e oprimidos.

Estas tarefas, não resolvidas pelas revoluções burguesas do passado, se liga-


rão imediatamente com a expropriação da grande propriedade burguesa e con-
verterão as revoluções nacionais em alavancas da revolução continental e
mundial.

Nazareno Godeiro
2 de outubro de 2020

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­


14 Nazareno Godeiro

TESES

1. O Brasil nasceu como parte de um empreendimento capitalista (a


formação do mercado mundial), dominado por portugueses, depois
ingleses e norte-americanos. Na ausência de uma classe assalariada,
o capitalismo, na sua fase mercantil, foi obrigado a utilizar formas
pré-capitalistas de exploração do trabalho, como a escravização
afro-indígena. No início, essa escravização foi a base do capitalismo
comercial e, posteriormente, foi parte integrante do capitalismo in-
dustrial europeu.

2. 350 anos de escravização e resistência de negros e negras africanas


enxertou o DNA negro na história, na economia, na política e na
cultura brasileira. O Brasil que existe hoje foi construído pelo suor,
sangue e lágrimas de mais de 4 milhões de negros e negras escravi-
zadas e sua descendência.

3. Vindos de diversas regiões do continente africano, em especial de


Angola, Guiné, Costa do Marfim, Congo e Moçambique, reunidos
em várias nações e etnias, aqui foi forjado como um povo-classe.[1]
Durante séculos, negros e negras eram, junto com os sobreviventes
indígenas, a classe trabalhadora brasileira.

[1]
Ver conceito, relacionado ao povo judeu, em livro de Abraham Leon, Concepção materialista
da questão judaica.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020


A questão negra 15

4. Nos engenhos de cana-de-açúcar, indústrias capitalistas com a tec-


nologia mais avançada da época e financiadas por banqueiros eu-
ropeus, no café e outros produtos primários, na criação de animais
e nas minas de ouro, diamante e prata, se forjou como classe.

5. Na resistência se forjou como povo. De 1600 a 1900, tivemos mi-


lhares de quilombos, com cerca de 500 mil negros rebelados e 38
insurreições negras, que cumpriram um papel revolucionário no
Brasil. Os quilombos eram territórios sitiados, acampamentos de
guerra que fundiu, no combate, o povo negro brasileiro. Lutadores
negros tiveram papel importante nas revoltas e revoluções brasilei-
ras, como a Cabanagem, Balaiada, Cabanada, Revolução Farroupi-
lha, Revolta dos Malês, Revolução dos Alfaiates, Revolta da Chibata,
entre outras tantas.

6. Esse ascenso negro, com suas especificidades, era parte do levante


revolucionário negro que atingiu todo o continente americano
entre 1630 e 1880, onde ocorreram 75 grandes revoltas dirigidas por
negros africanos escravizados, cujo ápice foi a revolução haitiana de
1798-1804.

7. As insurreições afro-indígenas no continente americano eram elos


da revolução democrática-burguesa mundial, se constituindo na sua
parte específica nos países coloniais e semicoloniais americanos.
Em vários países, foram detonantes das revoluções de libertação
nacional e ajudaram a impulsionar o mundo moderno como o
conhecemos hoje.

8. O ascenso revolucionário negro continental e a guerra civil dos Es-


tados Unidos, iniciada em 1861, que derrotou o Sul escravista, foram
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
16 Nazareno Godeiro

os elementos determinantes para o fim da escravização negra afri-


cana no continente e não o mito “abolicionista” dos ingleses e seus
agentes locais, que institucionalizaram a luta abolicionista para evi-
tar a revolução negra.

9. Até 1850, aproximadamente, apenas negros e negras, tendo como


aliados indígenas e camponeses pobres, lutaram no Brasil pelo fim
da escravidão no país e terminaram vitoriosos, apesar desta vitória
ter sido arrebatada pelos ingleses, pela princesa branca e pelos in-
telectuais abolicionistas. O fator decisivo para o fim da escravidão
no Brasil foi a insurreição dos escravos, na forma de quilombos e
insurreições urbanas durante dois séculos e meio e, em meados do
século XIX, a fuga de escravizados, precedida pela queima das pro-
priedades dos ricos.

10. A explicação deste fato é que a classe dominante brasileira não cum-
priu um papel revolucionário em nenhum momento da história
do país. Aliada aos dominadores estrangeiros, não só não impulsio-
nou como enfrentou sua própria revolução, que explodiu regional-
mente e terminou sendo dirigida por negros, indígenas e
camponeses pobres. Revoluções regionais que foram afogadas em
sangue, com líderes enforcados e degolados, depois esquartejados
e expostos em praça pública, para “ensinar” o povo brasileiro a não
se levantar contra o sistema.

11. O medo da burguesia brasileira diante do ascenso negro continental


e o exemplo do Haiti, onde escravizados africanos fizeram uma re-
volução que expulsou os colonizadores brancos, levou-a a diminuir
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020
A questão negra 17

o papel do negro na economia do país, importando assalariados po-


bres europeus. Uma política de embranquecimento da sociedade
com o objetivo de tornar o negro minoria da população e assim evi-
tar as insurreições negras. Uma política racista de embranqueci-
mento do Brasil, incluiu invisibilizar o papel econômico, social e
político dos negros e negras na construção do Brasil. Nova cara da
ideologia racista, que foi uma criação da burguesia, para justificar a
escravização do negro africano e para torná-lo uma mercadoria. A
“teoria” da mestiçagem (democracia racial) foi a cobertura ideoló-
gica para a dissolução do povo-classe negro na população pobre em
geral.

12. Esse medo da burguesia do povo negro foi tão profundo que, à di-
ferença do Haiti ou dos Estados Unidos, ela impediu o surgimento
de uma burguesia ou pequena-burguesia negra no Brasil, ao negar
a distribuição de terras aos negros na Lei de Terras de 1850. Ser
negro se transformou em sinônimo de trabalhador ou pobre. A isso
se somou a propaganda racista que mostrava o negro como ser in-
ferior para se tornar trabalhador livre assalariado. O imperialismo
europeu exigiu a utilização do seu excedente populacional, uma le-
gião de camponeses pobres, para ser utilizada como mão-de-obra
assalariada no Brasil em detrimento do povo negro. O imigrante
pobre europeu era considerado “descendente das raças civilizadas”.

13. A “república” brasileira não deu terra aos camponeses nem trabalho
digno para negros e negras. Por isso, eles foram empurrados para
os arredores das cidades, realizando os trabalhos mais precários e
de menor remuneração. Um imenso exército industrial de reserva
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
18 Nazareno Godeiro

que serviu para diminuir o salário geral e remunerar o capital in-


ternacional e nacional. Ao mesmo tempo criou uma legião de cam-
poneses sem-terra. Hoje, esse imenso exército de reserva, composto
por 78 milhões de trabalhadores (entre desempregados, subempre-
gados ou “autônomos”), é de maioria negra e duplamente invisibi-
lizado, como negro e como trabalhador.

14. Por tudo isso, recuperar a história do povo-classe negro brasileiro


é vital para a vitória da revolução brasileira. É preciso recuperar o
orgulho de ser negro e negra. Essa é uma condição importante para
recuperar a confiança da classe trabalhadora nas suas próprias for-
ças. Da mesma forma é importante recuperar a história da resistên-
cia negra e indígena nos seus 500 anos de motins, revoltas e
revoluções que a burguesia tenta esconder, espalhando o mito de
que o povo brasileiro é “fraco”. Recuperar esta tradição é o início
da preparação da revolução proletária que se avizinha e que, muito
provavelmente, terá os trabalhadores negros e negras na vanguarda
revolucionária.

15. O sistema capitalista mundial só existe hoje porque se assentou no


maior genocídio da história. Exterminou 63 milhões de indígenas
na América, de uma população de 70 milhões que habitavam o con-
tinente americano quando os invasores europeus chegaram aqui.
Ademais, restaurou a escravização de mais de 10 milhões de negros
e negras africanas na América, tornando este comércio de seres hu-
manos o negócio mais lucrativo do mundo naquele momento. Com
a partilha do continente africano entre os invasores imperialistas
europeus, de 1860 a 1900, o imperialismo dizimou 55 milhões de
africanos, de uma população de 150 milhões. Portanto a riqueza do
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020
A questão negra 19

capitalismo mundial se assentou numa montanha de cadáveres: o


capitalismo nasceu jorrando sangue por todos os poros, como falou
Karl Marx. Uma política sistemática de extermínio da classe traba-
lhadora negra, especialmente da sua juventude, que continua até
hoje, de forma generalizada. Não podemos esquecer que o racismo
(e a política de extermínio por parte do Estado) surgiu com o capi-
talismo e continuou tanto no regime democrático-burguês quanto
com o ditatorial.

16. A riqueza da Europa e dos Estados Unidos foi roubada da África,


Ásia e da América, dos povos não-brancos e dos povos originários
americanos. Assim nasceram os grandes bancos Barclays, Baring,
Rothschild, Rockefeller e suas indústrias multinacionais. Hoje, ape-
nas 147 grandes conglomerados transnacionais dominam toda eco-
nomia mundial e cinco países imperialistas dominam mais de 180
países coloniais e semicoloniais.

17. A invasão do branco europeu do continente americano teve uma


expressão sexual: o estupro da indígena e da negra africana. Nosso
“descobrimento” foi uma invasão. Nossa “miscigenação” foi uma
violação (estupro, violência sexual). Por isso, é uma falsidade com-
pleta a teoria da democracia racial no Brasil, onde o povo brasileiro
seria resultado da “fusão harmônica” entre as três raças (branca, in-
dígena e negra). A violência sexual foi um componente importante
do genocídio afro-indígena e deve ser realçada pois continua até
hoje no estupro trivializado e no feminicídio generalizado, princi-
palmente de mulheres negras.

18. A responsabilidade pela reparação, portanto, recai sobre o capita-


São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
20 Nazareno Godeiro

lismo imperialista. Ele é que deve pagar por este sofrimento secular.
Os povos originários e o povo negro têm direito ao território (in-
clusive à autodeterminação nacional, se assim desejarem e decidi-
rem democraticamente em uma região quilombola), ao trabalho (e
seus direitos básicos como saúde, educação, aposentadoria etc.), e à
soberania nacional, uma verdadeira independência nacional, com
a expulsão dos invasores imperialistas. Tudo isto só pode ser con-
quistado na luta contra a burguesia mundial imperialista e seus ca-
pitães-do-mato locais. A reparação histórica ao povo afro-indígena
se tornou uma ponte para a revolução socialista internacional por-
que a reparação é uma tarefa da classe trabalhadora contra a bur-
guesia mundial, já que une os povos afro-indígenas de diferentes
continentes e é uma reivindicação transitória que parte das neces-
sidades imediatas dos povos oprimidos e se conecta diretamente
com a revolução proletária internacional. O extermínio e a supe-
rexploração dos povos afro-indígenas estão marcados no DNA dos
países coloniais e semicoloniais americanos e isto deve determinar
a dinâmica da revolução no século XXI. Resumindo: “reparação
rima com revolução”.

19. Por isso, a bandeira de reparação histórica ao povo negro deve ser
utilizada de forma revolucionária e não reformista. As pequenas
conquistas democráticas dos negros (como as cotas na universidade,
por exemplo), não têm um fim em si mesmo. São apenas alavancas
para exigir tudo o que o povo negro, setor mais explorado e oprimido
da sociedade, tem direito. A burguesia e seus agentes no interior do
movimento proletário vão tratar de utilizar as conquistas parciais
afro-indígenas, produtos da luta de classes, para transformá-las em
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020
A questão negra 21

políticas assistenciais com o objetivo de perpetuar o capitalismo. O


governo “negro” na África do Sul e o governo “indígena” na Bolívia
são expressões da orientação da burguesia para dividir os de baixo,
cooptando líderes provenientes da classe trabalhadora, para perpe-
tuar o capitalismo. Com isso, divide a classe trabalhadora e o movi-
mento afro-indígena. Por um lado, mostra que o imperialismo
maneja as aspirações das massas, mutilando-as, utilizando suas ilu-
sões constitucionais e o atraso da consciência de classe, para desviar
as revoluções para o terreno gangrenado da democracia burguesa.
Por outro lado, mostra a potencialidade revolucionária da questão
afro-indígena na atualidade. A classe trabalhadora, unida com o
movimento afro-indígena, deve utilizar as conquistas parciais como
alavancas de transformação social, como meios de mobilização
permanente. Visto assim, a questão negra torna-se uma ponte para
a revolução socialista, que necessariamente temos que cruzar para
instalar uma ditadura revolucionária do proletariado.

20. A reparação histórica ao povo negro brasileiro não pode ser efeti-
vada pelo sistema capitalista. A recuperação das terras, da riqueza
criada em 520 anos, da existência do próprio país que foi construído
pelo povo negro, do direito a uma vida digna, só pode ser garantido
pela ditadura do proletariado. Isso não justifica adiar a luta em de-
fesa do povo negro para depois da vitória da revolução justamente
porque esta luta pode e deve se converter no estopim e alavanca da
revolução brasileira e mundial. Por isso, torna-se obrigatório, para
os revolucionários, vincular a luta pela libertação negra à revolução
socialista.

21. Quem separa e opõe as tarefas democráticas que a revolução de-


São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
22 Nazareno Godeiro

mocrático-burguesa não realizou (a luta contra todo tipo de opres-


são, a independência nacional nos países semicoloniais, o direito ao
território, a reparação histórica aos povos afro-indígenas) das tare-
fas socialistas, termina por não resolver nenhuma demanda demo-
crática justamente porque a burguesia não vai realizar a
democratização da sociedade. Só o proletariado é uma classe ver-
dadeiramente revolucionária. Por isso, a luta negra deve estar en-
trelaçada com a luta socialista, uma completando a outra.

22. A demonstração da tese anterior se revelou na revolução haitiana


de 1798-1804. Como a burguesia atuou ao lado da contrarrevolução,
negros escravizados africanos assumiram a luta e se tornaram a
força motriz da revolução democrática-burguesa vitoriosa. Porém,
como o proletariado ainda estava engatinhando como classe, im-
possibilitou o avanço ao socialismo e o país retrocedeu. A solução
para a questão negra no Haiti resultaria da luta proletária pelo so-
cialismo internacional.

23. Por outro lado, se o proletariado não assume para si a luta afro-in-
dígena e a dirige, em unidade com os pobres do campo e da cidade,
a burguesia ou a pequena-burguesia reformista se apropriarão da
luta contra as opressões, tratarão de dividir a classe trabalhadora
entre homens e mulheres, negros e brancos, indígenas e negros, he-
terossexuais e LGBTs, imigrantes e nativos, trabalhadores diretos e
terceirizados, etc. para com isso enfrentar uns aos outros e derrotar
a todos. Dividir para reinar é o lema histórico da burguesia, que
aprendeu a usar este método vitoriosamente na América, desde
1492. Essa é a única forma de conseguir manter-se no poder, já que
ela representa 1% da população e não poderia governar sem atrair
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020
A questão negra 23

um setor da classe trabalhadora para seu lado. Por ser uma classe
extremamente minoritária, ela utiliza os intelectuais e dirigentes ne-
gros, de extração social pequeno-burguesa ou de classe média, para
dividir os trabalhadores negros dos trabalhadores brancos através
do racialismo, diluindo a natureza de classes desta sociedade. Uti-
liza-se também de concessões formais para cooptar os setores bur-
gueses e pequeno-burgueses do movimento e da repressão violenta
aos setores pobres e mais radicais do movimento. Sistema bastante
eficaz onde a opressão de uns é utilizada para aumentar a explo-
ração de outros.

24. Por tudo isso, a questão negra se tornou vital para a revolução
mundial e ocupará um papel de primeira grandeza na revolução
brasileira, junto com a luta pelo território, pelo trabalho e pela li-
bertação nacional diante do domínio imperialista. Ela não pode ser
resolvida no capitalismo a não ser muito parcial ou formalmente,
fato que empurrará os negros para uma ação revolucionária. Nossa
luta é para que eles se convertam na vanguarda da luta revolucio-
nária. A queda do apartheid e a subida de um governo negro de “es-
querda” na África do Sul demonstrou que a questão negra não tem
solução no sistema capitalista.

25. A burguesia brasileira tratou de invisibilizar o papel do povo negro


na construção do país e na luta de classes, com o objetivo de dividir
a classe trabalhadora, arraigar o racismo nas outras camadas de tra-
balhadores e com isso, isolar, humilhar, superexplorar e derrotar ne-
gros e negras. Ganhar os trabalhadores não negros para lutar
contra a opressão racial é uma tarefa fundamental para a vitória
da revolução socialista.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
24 Nazareno Godeiro

26. Portanto, a revolução socialista brasileira terá um componente


muito importante de raça. A periferia das grandes cidades brasilei-
ras são barris de pólvora prestes a explodir. São 78 milhões de de-
sempregados e subempregados, sofrendo todo tipo de violência
diariamente. Este exército de desempregados e subempregados é
maior que a população da França, quase uma Alemanha, sete Chiles
e dez Haitis. Sua explosão será uma onda revolucionária feroz que,
se não for dirigida contra o sistema capitalista, será usada para di-
vidir os trabalhadores e perpetuar o capitalismo. Diluir ou menos-
prezar a questão negra levará à derrota da revolução já que a
burguesia se aproveitará das divisões no interior da classe trabalha-
dora para atiçar os ódios entre trabalhadores, como tenta instigar o
ódio dos trabalhadores nativos contra os imigrantes ou dos sulistas
contra os nordestinos.

27. Por isso, é vital ganhar os trabalhadores não negros para lutar
contra a opressão e o racismo. A questão racial só pode encontrar
uma saída positiva no socialismo, único sistema que acabará com
toda divisão de classes na sociedade, tornando iguais todos os seres
humanos, incorporando as diferenças de raça, nacionalidade, credo,
gênero ou orientação sexual para evitar que tais diferenças se con-
vertam em desigualdades. Por isso, comete um erro grave o racia-
lismo ou o nacionalismo negro, que buscam organizar todos os
negros independentemente da classe social, separados dos outros
trabalhadores. Quem opõe a luta de raça à luta de classes está invia-
bilizando tanto uma quanto a outra.

28. A desigualdade do processo histórico de conformação do capita-


lismo mundial, no continente americano, originou uma combinação
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020
A questão negra 25

particular de tarefas aparentemente contraditórias, mas que são


combinadas: apoiar o direito à reparação histórica afro-indígena
(que deve incluir o direito ao território na forma em que creiam con-
veniente) é a condição para realizar a unidade nacional e interna-
cional da classe trabalhadora. É natural que, por sua composição
social, a revolução no Equador, Bolívia, Guatemala, Peru etc. tenha
como elemento galvanizador a questão indígena assim como a re-
volução no Haiti, Brasil, Jamaica etc. tenha como estopim a questão
negra.

29. Na agitação que realizamos no proletariado não negro-indígena, de-


fendemos o direito dos povos negro-indígena-imigrantes-coloniais
à autodeterminação, à auto-organização, inclusive à separação, caso
seja essa a sua vontade decidida democraticamente. Debater isso no
interior da classe trabalhadora em geral, o direito específico afro-
indígena à reparação e o fim de toda opressão no interior da nossa
classe, tratando de explicar pacientemente a ideia de Marx de que
“não pode ser livre um povo que oprime outro”. Aqui prevalece o di-
reito dos povos e setores oprimidos decidirem seu destino.

30. Debater no interior do movimento negro-indígena-imigrantes-co-


loniais o dever de se unir com o proletariado, contra a burguesia
e o imperialismo. A questão afro-indígena só terá solução se for di-
recionada contra o imperialismo, o sistema capitalista e a burguesia.
Os setores oprimidos, isolados da classe trabalhadora, por mais im-
portantes que sejam, não têm a potência de mudar o sistema de con-
junto. Em sua aliança com todos os trabalhadores é que adquirem
a força que pode derrubar o sistema capitalista. Portanto, reconhe-
cendo que existem indígenas, negros e imigrantes burgueses, reali-
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
26 Nazareno Godeiro

zamos uma delimitação de classe, subordinando (sem diluir ou


menosprezar) a luta negra e indígena à luta de classes pelo socia-
lismo, que una os povos não brancos ao proletariado.

31. Em qualquer circunstância, o apoio e a defesa dos movimentos afro-


indígenas que lutam contra o capitalismo e o imperialismo não
podem comprometer a independência política e organizativa do
proletariado.[2]

32. A questão negra, com toda a importância que tem, não abarca todas
as contradições da sociedade brasileira. A revolução aqui pode ter
outros detonantes, como a dominação estrangeira sobre o país, a
miséria e o desemprego generalizados, o feminicídio, a violência es-
tatal contra os pobres, a corrupção generalizada etc.

33. Concluindo, por mais importante que seja, a questão negra está
subordinada à luta pelo socialismo. Separar a luta negra da luta
pelo socialismo, levará a uma capitulação à burguesia, que dividirá
a classe trabalhadora pela cor da pele e derrotará a revolução. Pos-
tergar a luta negra para um futuro indeterminado, argumentando
uma suposta unidade de classe, como fez o stalinismo, através dos
partidos comunistas, é uma traição aos interesses do conjunto do
proletariado.

34. Assim, dirigindo a revolução proletária, o antigo povo-classe negro


reencontrará sua identidade, antes de dissolver-se na classe traba-
[2]
“A Internacional Comunista deve colaborar provisoriamente com o movimento revolucionário
das colônias e países atrasados, e até mesmo formar uma aliança com ele, mas não deve se misturar
com ele; deve manter incondicionalmente a independência do movimento proletário, mesmo se es-
tiver apenas em um estágio embrionário.” Teses sobre a questão nacional e colonial, do segundo
Congresso da Internacional Comunista, 1920.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020


A questão negra 27

lhadora em geral. Porém, antes disso, passará, necessariamente, por


sua afirmação através da ditadura revolucionária do proletariado
com maioria negra, verdadeira democracia da classe trabalhadora,
que impedirá a volta de todo tipo de opressão. Isso só será possível
se, desde hoje, combatemos o racismo dentro da classe trabalha-
dora.

35. O trotskismo, o marxismo-leninismo do século XXI, deve ser a ex-


pressão consciente da reparação histórica afro-indígena, unindo
em uma só luta dois continentes: a África e a América! Trotsky afir-
mou que as raças não brancas terão a última palavra no desenvol-
vimento da humanidade, por isso nosso dever é de empunhar e
levantar bem alto a bandeira da reparação.

36. A desigualdade e a combinação do processo histórico empurraram


o início da revolução internacional para a periferia do sistema (“elos
débeis da cadeia imperialista”, segundo Lênin), unindo a luta de clas-
ses à luta nacional e afro-indígena num feixe só. As revoluções dos
povos coloniais e semicoloniais, com forte composição afro-indí-
gena, devem iniciar pela questão racial-nacional, porém se comple-
tarão como revoluções de classe contra o capitalismo. Deverão
começar como revoluções de independência nacional na periferia
do sistema, mas se completarão nos países imperialistas, como re-
volução mundial. Serão estopins da revolução internacional, única
que pode derrotar definitivamente o imperialismo.

18 de dezembro de 2019.

***
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 10­27 ­ Novembro de 2020 ­
A porte

sobre a estatização
dos meios de produção
A ESTATIZAÇÃO
DOS MEIOS DE PRODUÇÃO
É UMA MEDIDA SOCIALISTA?

Marcos Margarido - Brasil

A palavra de ordem de estatização, ou nacionalização, dos meios de


produção adquiriu um peso grande entre os partidos revolucionários
com a onda de privatizações dos governos neoliberais a partir da década
de 1990. Muitos passaram a ver a estatização como uma palavra de
ordem diretamente socialista.
É conhecido o fato da Tendência Marxista Internacional (TMI) ter
aconselhado o governo de Hugo Chávez a prosseguir com sua política
de estatização para “aprofundar a revolução” e conseguir uma “transfor-
mação da sociedade” de forma pacífica[1]. Embora esse seja um exemplo
extremo de uma corrente adaptada à democracia burguesa, não são os
únicos a colocar suas fichas na estatização.
Mas, é essa uma unanimidade entre nossos mestres? É o que procu-
ramos responder com este artigo.

[1]
Ver, por exemplo, World Perspectives: 2018 – A Year of Capitalist Crisis e Alan Woods, Where
Is the Venezuelan Revolution Going?

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


30 Marcos Margarido

Engels sobre a nacionalização dos meios de produção

A discussão de nacionalização dos meios de produção surgiria no Par-


tido Socialdemocrata alemão na polêmica com as propostas de Ferdinand
Lassalle e outros “falsos socialistas”, no final do século 19.
Engels explica, em uma carta a Bebel de 24 de novembro de 1879, por-
que os deputados socialdemocratas deveriam ser contrários a qualquer
tipo de nacionalização (como a nacionalização das ferrovias, uma de-
manda muito discutida na época). Ele dizia que eles “deveriam ater-se ao
princípio vital de não aprovar nada que aumentasse o poder do governo
em relação ao povo”.
Uma das poucas alusões de Marx à questão da nacionalização está em
uma carta a Engels, de 20 de maio de 1882, mostrando sua concordância
com a posição de princípio de Engels:
Ele (Singer) pertence àqueles que consideram a nacionalização de qualquer coisa
uma medida semi ou, em todo o caso, pré-socialista e são, portanto, devotos se-
cretos de tarifas protecionistas, do monopólio do tabaco, de ferrovias nacionaliza-
das etc.

Em 1882, Engels chegou a propor a Bernstein escrever uma série de


artigos para o Sozialdemokrat “sobre o tipo de falso socialismo que agora
prolifera na Alemanha”. Entre os tópicos dos artigos estava a denúncia
da nacionalização das ferrovias e do monopólio do tabaco.
Como vemos, Marx e Engels rejeitavam as propostas de nacionaliza-
ção em voga na Alemanha na época por ser uma medida que reforça o
estado burguês, dificultava o livre comércio entre nações, aumentando
a opressão sobre o povo e colocando os trabalhadores sob uma dupla ex-
ploração, e por não ser uma medida socialista.
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020
Estatizações e socialismo 31

A conclusão dessa polêmica deu-se com a discussão de um novo pro-


grama para o Partido Socialdemocrata Alemão, em 1891 (que viria a ser
o conhecido Programa de Erfurt, após revisões do projeto feitas por En-
gels e Kautsky). Um de seus artigos dizia, claramente em oposição às pro-
postas de Lassalle:

O Partido Social-Democrata não tem nada em comum com o chamado socialismo


de Estado: um sistema de nacionalização fiscal que coloca o Estado no lugar do
empreendedor privado e impõe ao trabalhador o duplo jugo de exploração econô-
mica e opressão política[2].

Engels, em carta a Bebel (1884), faz uma comparação interessante


entre o chamado socialismo de estado e colonização:

Se você deseja estudar um modelo de socialismo de estado, dê uma olhada em


Java. Lá, o governo holandês, com base nas antigas comunidades baseadas em
vilas comunistas, organizou a produção como um todo de acordo com tais belas
linhas socialistas e assumiu o controle da venda de todos os produtos que, além de
cerca de 100 milhões de marcos destinados à manutenção do exército e pagamento
dos serviços públicos, sobra a cada ano um lucro de cerca de 70 milhões de marcos
para pagamento de juros aos infelizes credores do estado holandês. Bismarck é um
mero aprendiz em comparação!

Hoje, o imperialismo arranca bilhões de dólares das empresas estatais


de todo o mundo semicolonizado, como é o caso das estatais de petróleo
(poderíamos citar a Venezuela, os estados árabes, o Brasil), das estatais
de energia etc.
O capitalismo imperialista é um sistema mundial que suga as riquezas
dos países submetidos em todo o mundo através de mecanismos como
as bolsas de valores e a dívida pública, e transformar as empresas privadas
em estatais não as livra de tal destino.

[2]
Obras Completas de Marx e Engels, Notas, V. 27, p. 595.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


32 Marcos Margarido

E continuava criticando as várias propostas de nacionalização que


existiam na Alemanha, que sempre surgiam com a perspectiva lassalle-
ana de “socialismo de estado”. Em carta a Max Oppenheim, de 24 de
março de 1891, ele deixa claro que não há diferença, do ponto de vista
do proletariado, entre uma empresa privada e outra nacionalizada.

O emprego de trabalhadores excedentes pelo estado ou pelos municípios e a na-


cionalização do comércio de alimentos são assuntos que, a meu ver, precisam ser
vistos em um contexto mais amplo do que ocorre em sua carta. ... Como isso seria
feito e qual seria o resultado se Junkers[3] fossem obrigados a expropriar Junkers
pode ser visto aqui na Inglaterra, onde, apesar de todas as armadilhas medievais,
a vida política geral é muito mais moderna do que nos dois lados do Erzgebirge.
Aí reside precisamente o atrito; pois, enquanto as classes proprietárias permane-
cerem no comando, a nacionalização nunca abole a exploração, mas apenas
muda de forma – tanto nas repúblicas francesa, americana ou suíça, quanto na
Europa central monárquica e despótica do Leste[4].

Para Engels, da mesma forma que seria necessário expropriar a classe


proprietária de terras (os Junkers) da Alemanha para garantir alimentos
e empregos aos trabalhadores excedentes (desempregados), seria neces-
sário expropriar a burguesia inglesa para garantir o mesmo aos operários
do país. Porém, como o estado poderia expropriar as terras dos Junkers
se o estado é comandado pelos próprios Junkers? Da mesma forma,
como exigir do estado burguês a expropriação das fábricas de proprie-
dade da própria burguesia? Mesmo que isso acontecesse, “a nacionalização
nunca abole a exploração, mas apenas muda de forma”, isto é, muda ape-
nas o tipo de patrão, do patrão individual ao patrão coletivo na forma
do estado burguês.
[3]
Junker: nome dado à nobreza proprietária de terras na Alemanha.
[4]
Carta de Engels a Max Oppenheim, Londres, 24 de março de 1891, Obras Completas, V. 49,
p.152.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020


Estatizações e socialismo 33

Alguns anos depois, surge uma corrente sindical operária na Inglate-


rra, chamada de Novo Sindicalismo, que defendia a nacionalização de
todos os meios de produção. Esta proposta foi assumida politicamente
pelo ILP (Independent Labour Party), um dos precursores do atual La-
bour Party (fundado em 1900) e foi apoiada por Engels.
Para Engels, o Novo Sindicalismo caminhava rumo às propostas so-
cialistas e qualquer sectarismo (como o praticado pela Federação Social-
democrata) seria prejudicial. Em carta a Paul Lafargue, ele afirma:
No Congresso realizado em Londres, duas ou três semanas atrás, o delegado de
Liverpool propôs que nas próximas eleições gerais eles deveriam apoiar os candi-
datos do Partido Trabalhista Independente (ILP), desde que se declarassem publi-
camente socialistas. Isso, contra todas as regras do congresso, foi recusado em favor
de uma moção adotada por 42 a 12, segundo a qual o dever de todo socialista era
pertencer a uma organização socialista abertamente revolucionária, como a Fe-
deração Social-democrata (e como a FSD afirma que, além de si mesmo, não há
outra, isso significa: pertencer à SDF)... Você sabe, é claro, que a nacionalização
dos meios de produção é parte integrante do programa do I.L.P. … Causarão eles
uma divisão entre os delegados que são socialistas completos e aqueles que ainda
não o são, mas que estão prestes a se tornar?[5]

Como se vê, a discussão na Inglaterra era oposta à feita na Alemanha.


O movimento sindical inglês não delegava ao Estado burguês a nacio-
nalização deste ou daquele ramo da economia, como era feito pelos se-
guidores de Lassalle, mas dava a si próprio a tarefa de nacionalização de
todos os meios de produção. Por isso, Engels afirmava que eles estavam
no caminho do socialismo, cuja proposta equivalia à tomada do poder.
Estavam a um passo de se tornarem marxistas.
A história mostrou, porém, que este passo nunca foi dado, mas a pos-
sibilidade era real.

[5]
Carta de Engels a Paul Lafargue, 1894, Obras Completas, v. 50, p. 342-343.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


34 Marcos Margarido

A proposta de nacionalização de Lenin em 1917

A partir da revolução de fevereiro de 1917, Lenin aborda a questão


da nacionalização em vários momentos. Em sua “quinta carta de longe”,
ele fala de medidas de “transição para o socialismo”, como o controle da
produção e distribuição de produtos básicos e, nas Teses de Abril, de-
fende a “união imediata de todos os bancos do país em um único banco
nacional e a instituição de controle sobre ele pelo Soviete de Deputados
Operários” e, mais uma vez, o controle da produção e distribuição de
produtos pelos sovietes.
Mas, foi em A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la[6] que Lenin
detalhou suas propostas. O texto tem uma linguagem popular, destinado
às grandes massas operárias e camponesas. Foi escrito em setembro de
1917 quando, de fato, o controle pelos sovietes já era uma realidade em
vários aspectos da vida dos trabalhadores nas grandes cidades.
Lenin defendia a aplicação de “medidas revolucionárias” que, ademais,
já haviam sido “frequentemente aplicadas por vários estados burgueses du-
rante a guerra”, como “a nacionalização da terra, de todos os bancos e
monopólios capitalistas, ou, pelo menos, o estabelecimento imediato do
controle pelos Sovietes de Deputados Operários”.
Mas, dizia que “de nenhuma forma constituem a ‘introdução’ ao socia-
lismo” e que não tinham sido adotadas pelo governo de “coalizão somente
porque, exclusivamente porque, sua realização afetaria os fabulosos lucros
de um punhado de proprietários de terras e capitalistas”.
Vejamos mais de perto duas dessas medidas, que interessam ao nosso
estudo:

[6]
LENIN, V. I. The Impending Catastrophe and How to Combat It.
www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/ichtci/index.htm. Todas as citações de Lenin a partir
daqui fazem parte desse texto.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020


Estatizações e socialismo 35

Fusão de todos os bancos em um único banco e controle estatal sobre


suas operações, ou nacionalização dos bancos.
Para Lenin, nacionalização dos bancos não se confunde com “confis-
car a propriedade privada”, pois “não tiraria um único centavo de nenhum
‘proprietário’”. “A propriedade do capital exercido e concentrado nos bancos
é garantida por títulos impressos e escritos chamados ações, títulos, notas,
recibos etc. Nenhum desses títulos seria invalidado ou alterado se os bancos
fossem nacionalizados...”
Em relação à propriedade dos meios de produção, Lenin propunha a
“nacionalização dos cartéis (syndicates, em inglês), ou seja, das maiores
associações capitalistas monopolistas (açúcar, petróleo, carvão, ferro e aço
e outros cartéis)”.
No entanto, da mesma forma que no caso da nacionalização dos ban-
cos, isto não significava a expropriação dos capitalistas individuais. Sua
proposta era a criação de “um monopólio estatal dos grandes cartéis in-
dustriais e comerciais” e submetê-lo ao controle dos sovietes.
Isto seria feito “através de simples decretos de convocação de um con-
gresso de empregados, engenheiros, diretores e acionistas, para a introdução
de uma contabilidade uniforme, para introduzir o controle pelos sindicatos
operários etc.”. Como se vê, os diretores e acionistas fariam parte de tal
congresso. A grande tarefa era “transformar a regulamentação reacioná-
ria-burocrática em regulamentação revolucionária-democrática”.
Como vemos, não estava em jogo, para Lenin, a expropriação da pro-
priedade privada, isto é, sua transferência para outras mãos, mesmo que
fossem para as mãos do Estado.
A exceção ficava por conta daqueles capitalistas que se recusassem a
ter seus negócios controlados pelo governo “democrático-revolucionário”
dos sovietes de deputados operários.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­
36 Marcos Margarido

Trotsky e as nacionalizações da década de 1930

Trotsky vivia exilado no México quando, em 1938, o presidente do


país, General Cárdenas, nacionalizou as empresas de petróleo britânicas,
desencadeando uma feroz resposta do governo britânico, que estabeleceu
o boicote do petróleo mexicano, e da imprensa burguesa mundial, bem
como da imprensa stalinista, que considerava a Grã-Bretanha um aliado
democrático.
No México, a nacionalização envolvia a expropriação de empresas es-
trangeiras, isto é, foi uma medida anti-imperialista. Por isso, Trotsky
apoiou tal medida do ponto de vista da libertação nacional dos países
colonizados ou semicolonizados. No artigo México e o imperialismo bri-
tânico, ele explica:

O México semicolonial luta por sua independência nacional política e eco-


nômica. Tal é, em seu estado atual, o conteúdo fundamental da revolução
mexicana... Nestas condições, a expropriação é o único meio sério de sal-
vaguardar a independência nacional e as condições elementares da demo-
cracia[7].

Trotsky chega a comparar, tanto em relação à grandeza histórica


quanto em relação ao caráter de classe, a estatização mexicana com a
guerra civil norte-americana, “que abriu o caminho para o desenvolvi-
mento democrático independente da sociedade burguesa” nos Estados Uni-
dos.
E deixa claro o conteúdo daquela medida ao afirmar que “a expropria-
ção do petróleo não é nem comunismo nem socialismo: é uma medida pro-
fundamente progressista de autodefesa nacional”.

[7]
Todos os artigos citados fazem parte da coleção Escritos de Leon Trotsky, da Editorial Pluma
(1979), v. X.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020


Estatizações e socialismo 37

Em Discussão sobre a América Latina, de novembro de 1938, ele


afirma: “Criaram um capitalismo de estado que não tem nada a ver com
o socialismo. É a forma mais pura de capitalismo de estado”.
Temos, então, a expropriação de empresas imperialistas feita por um
Estado burguês, que reforça o caráter capitalista daquele estado, mas que
devia ser defendida uma vez realizada:
A Quarta Internacional reconhece todas as tarefas democráticas do Estado na luta
pela independência nacional, mas a seção mexicana da IV Internacional compete
com a burguesia nacional perante os trabalhadores, perante os camponeses”, pois
“esta [a IV Internacional] é a única direção capaz de assegurar a vitória das massas
na luta contra o imperialismo estrangeiro.

Isto é, o reconhecimento da realização de tarefas democráticas pelo


Estado burguês não significa o apoio à burguesia dirigente. O partido
revolucionário disputa com a burguesia nacional e seu governo a direção
do movimento operário e camponês, pois é a única garantia de que a luta
contra o imperialismo seja levada até o fim, até a tomada do poder pela
classe operária.
Não se trata, porém, de propor que o Estado burguês realize nacio-
nalizações. Trotsky deixa claro que: “O próprio governo burguês levou
a cabo a nacionalização e viu-se obrigado a pedir a participação dos ope-
rários na administração da indústria nacionalizada”[8].
Mas, adverte aos sectários que “evitar a questão mencionando o fato
de que, se o proletariado não tomar o poder, sua participação na adminis-
tração das empresas do capitalismo estatal não pode dar resultados socia-
listas”, o partido não seria compreendido pelas massas.
[8]
TROTSKY, Leon. A Administração operária e a indústria nacionalizada. Bogotá: Ed. Pluma
(1979), Tomo X, p. 482.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


38 Marcos Margarido

Para o marxismo, não se trata de construir o socialismo com as mãos da bur-


guesia, mas de utilizar as situações tal como se apresentam no capitalismo de es-
tado e fazer o movimento operário revolucionário avançar.

Isto é, o partido revolucionário não propõe a nacionalização, mas par-


ticipa da luta anti-imperialista que se desenrola a partir de medidas de
libertação nacional tomadas pelo governo burguês para fazer avançar a
revolução.

Posições distintas?

À primeira vista, as posições de Engels, Lenin e Trotsky analisadas


aqui são opostas em alguns aspectos. Engels rejeitava a nacionalização à
maneira lassalleana, porque esta reforçava o poder do Estado, e era uma
questão de princípio ser contra qualquer medida que o fortalecesse. Além
disso, a propriedade só mudaria de mãos burguesas. Do proprietário pri-
vado individual ao proprietário coletivo estatal. Mas, defendia a “nacio-
nalização de todos os meios de produção” proposta pelos sindicalistas
ingleses, uma medida que, segundo ele, estava a um passo do socialismo.
Lenin, às vésperas da tomada do poder, defendia a nacionalização do
sistema financeiro e dos cartéis (associações) industriais capitalistas
como uma medida de salvação nacional, mas sem expropriação. A na-
cionalização significava colocar a propriedade privada sob o controle dos
sovietes, embora continuassem capitalistas.
Trotsky, tinha a mesma opinião de Engels, de que o capitalismo de es-
tado não ia em direção ao socialismo, e que servia para fortalecer o Es-
tado burguês, mas defendia a participação dos partidos da IV
Internacional nas mobilizações anti-imperialistas que pudessem ocorrer.
Era uma situação que Engels não viveu.
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020
Estatizações e socialismo 39

Na verdade, as diferentes políticas decorrem das diferentes situações


e épocas da luta de classes. A principal política do Partido Socialdemo-
crata Alemão quando Engels escreveu sua posição era a derrubada da
monarquia e do Estado baseado em uma superestrutura feudal e a con-
quista da república parlamentar, através de uma revolução política. Seu
lema era: “Para este sistema, nenhum homem, nenhum centavo”. Qualquer
ação que pudesse fortalecer o Estado que se pretendia derrubar era vista
como uma quebra de princípios.
Já Lenin vivia uma situação completamente diferente. Não só a mo-
narquia czarista havia sido derrubada como a política do partido bol-
chevique de “Todo Poder aos Sovietes” começava a colher seus frutos,
com a conquista da maioria nos sovietes de Petrogrado e Moscou. Por
isso, defendia o controle da economia pelos sovietes (embora sem ex-
propriação imediata) como uma medida de transição ao socialismo. E
podia ser feita em uma “canetada”, segundo suas próprias palavras, pelo
governo provisório “se ele fosse realmente democrático revolucionário”.
Trotsky, embora afirmasse que as nacionalizações das empresas de
petróleo estrangeiras eram puro capitalismo de estado, reconhecia que
era uma política progressista, de libertação nacional, e defendia que a
seção mexicana da IV Internacional participasse das mobilizações para
disputar a direção do movimento operário com a burguesia e se postu-
lasse como a direção anti-imperialista consequente.

A política de nacionalização e o controle operário


no programa revolucionário

Como toda tarefa democrática burguesa, a nacionalização/estatização


é uma questão tática. Deve ser incluída no programa do partido revolu-
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­
40 Marcos Margarido

cionário sempre com cautela para não ser confundida com uma medida
socialista. E não pode ser vista como uma panaceia para todos os males,
tampouco como substituta (ou com o mesmo significado) da política de
expropriação.
A Internacional Comunista avaliava negativamente esta política como
“substituta” da expropriação. As Teses sobre Tática e Estratégia aprovadas
em seu terceiro congresso afirmavam que tal política “é um retorno ao
programa mínimo de reforma do capitalismo da social-democracia”:
A reivindicação de socialização ou nacionalização das indústrias mais importan-
tes, promovida pelos partidos centristas, é igualmente enganosa. Os centristas en-
ganam as massas, tentando convencê-las de que todos os ramos mais importantes
da indústria podem ser arrancados das garras do capitalismo sem a derrubada
da burguesia. Além disso, eles procuram desviar os trabalhadores da luta real e
viva por suas necessidades imediatas, na esperança de que os ramos da indústria
possam ser retomados, um após o outro, criando a base para a construção econô-
mica ‘planejada’[9].

Tampouco o Programa de Transição propõe a nacionalização de em-


presas estrangeiras pelos Estados submetidos ao imperialismo, e sim a
“expropriação de certos grupos capitalistas”, quando “a expropriação de
vários ramos chaves da indústria, vitais para a existência nacional, ou dos
grupos mais parasitários da burguesia” for justificada.
Além disso, previne que:
A diferença entre estas reivindicações e a confusa palavra de ordem reformista de
‘nacionalização’ consiste em que:
1) rejeitamos a indenização;
2) prevenimos as massas contra os demagogos da Frente Popular que, propondo a
nacionalização em palavras, continuam de fato agentes do capital;
[9]
Proceedings of the Third Congress of the Communist International, 1921, editor: J. Riddell. Lei-
den: Brill Ed., p. 935.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020


Estatizações e socialismo 41

3) conclamamos as massas a contar apenas com sua própria força revolucionária;


4) ligamos o problema da expropriação à questão da tomada do poder pelos ope-
rários e camponeses[10].

Da mesma maneira, o programa defende a “expropriação dos bancos


privados e a estatização do sistema de crédito”, mas lembrando que esta
“não produzirá os resultados favoráveis a não ser que o poder do próprio
Estado passe inteiramente das mãos dos exploradores às mãos dos trabal-
hadores”.
Uma posição similar à das Teses sobre Tática e Estratégia da Interna-
cional Comunista. As quatro condições expostas no programa são pra-
ticamente um guia para a elaboração da tática de expropriação dos
grupos capitalistas.
Ressaltamos que:
I) as massas devem contar apenas com suas próprias forças. Isto é,
não é uma tarefa do Estado burguês;
II) existe uma diferença de qualidade entre expropriação e nacionali-
zação. Esta última é uma palavra de ordem reformista e confusa utilizada
pelo stalinismo para enganar as massas.
E, por fim:
III) esta palavra de ordem só tem eficácia se estiver ligada à questão
da tomada do poder. Sem ela, nenhuma nacionalização/estatização trará
“resultados favoráveis” para a classe trabalhadora.
Esta observação de Trotsky faz-nos lembrar das palavras de James
Connolly, um revolucionário escocês muito apreciado por Lenin, que
disse em 1899:

[10]
TROTSKY, Leon. Programa de Transição, em Documentos de Fundação da IV Internacional.
São Paulo: Ed. Sundermann, 2008, p. 53.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


42 Marcos Margarido

Ao choro dos reformadores da classe média, ‘Faça com que esta ou aquela pro-
priedade seja estatal’ nós respondemos, ‘Sim, à medida que os operários estejam
prontos para fazer do Estado sua propriedade’![11].

A questão do poder está diretamente ligada à política de controle ope-


rário de empresas nacionalizadas.
Como vimos, a IC, Lenin e Trotsky enfatizaram o controle operário
como fundamental para o sucesso de qualquer política de expropriação,
mas este controle sempre esteve ligado à necessidade da tomada do poder
pela classe operária.
No caso das empresas de petróleo nacionalizadas por Cárdenas,
Trotsky defendeu a participação dos operários na sua administração,
proposta pelo próprio governo, de forma puramente tática, para não per-
der o contato com as massas. Isto é, a defesa do controle operário na-
quelas circunstâncias (empresa nacionalizada pelo Estado burguês) não
conferia uma diferença qualitativa à política do governo.
No entanto, não deveria ser ignorada por não ter resultados direta-
mente socialistas, mas utilizar a situação apresentada na realidade pelo
partido mexicano para “fazer o movimento operário revolucionário
avançar”.
É claro que isso não lhe impede ressaltar a importância da luta pelas
tarefas democráticas nos países dominados pelo imperialismo, que se
combinam com as tarefas diretamente socialistas, pois não estão separa-
das por um período histórico. Combinam-se, mas não se confundem.

[11]
CONNOLLY, J. State Monopoly Versus Socialism. Em:
www.marxists.org/archive/connolly/1901/evangel/stmonsoc.htm. Connoly foi um dos dirigentes
da revolução irlandesa de 1916 e executado após sua derrota. Lenin lamentaria muito sua morte
e disse que “o infortúnio dos irlandeses é que eles se levantaram prematuramente, quando a revolta
europeia do proletariado ainda não havia amadurecido”.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020


Estatizações e socialismo 43

São todas tarefas importantíssimas, mas não são de ruptura com o ca-
pitalismo. Por isso, quando apresentadas, devem sempre ser acompan-
hadas de palavras de ordem de poder operário pois, como disse Trotsky
em relação à expropriação de bancos privados no Programa de Transição:

Porém, a estatização dos bancos não produzirá esses resultados favoráveis a não
ser que o poder do próprio Estado passe inteiramente das mãos dos exploradores
às mãos dos trabalhadores.

***

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 28­43 ­ Novembro de 2020 ­


Friedrich Engels

A 200 anos
de seu
nascimento
EM DEFESA DE FRIEDRICH ENGELS,
EM DEFESA DO MARXISMO

Daniel Sugasti - Paraguai

“Depois de seu amigo Karl Marx (falecido em 1883),


Engels foi o mais notável cientista e mestre do proletariado
contemporâneo de todo o mundo civilizado. Desde que o destino
juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra à qual
ambos amigos consagraram suas vidas se converteu em comum”
Lenin, 1895.

Apresentação

O dia 28 de novembro marcou o bicentenário do nascimento de Frie-


drich Engels. Esta data, além de exigir a devida homenagem a uma das
mentes mais brilhantes ao serviço da emancipação do proletariado das
correntes forjadas pela sociedade de classes, é particularmente propícia
para abordar importantes problemas teóricos – derivados do estudo da
obra de Engels – que interessam à elaboração de um programa revolu-
cionário que responda aos desafios do século XXI.
Neste contexto, a revista Marxismo Vivo entende que o melhor modo
de recordar Engels é resgatar o verdadeiro significado de seu papel como
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020 ­
46 Daniel Sugasti

um dos pais do socialismo científico. Esta tarefa, mesmo que muito di-
fícil, é indispensável. Em primeiro lugar, implica intervir em antigas e
novas polêmicas colocadas por intelectuais e correntes políticas que afir-
mam reivindicar o marxismo, mas se empenham em separar o pensa-
mento e o trabalho prático de Engels do de Marx, apontando supostas
diferenças teóricas, programáticas e metodológicas entre ambos. Não
compartilhamos desta visão. Não porque sustentamos que Engels, assim
como Marx, tenha sido um dirigente infalível, longe disso. A obra de
ambos, exatamente por não constituir um dogma petrificado, contém
erros, imprecisões ou prognósticos não confirmados. Podemos mencio-
nar, por exemplo, aqueles que Trotsky assinalou no texto que publicou
por ocasião dos noventa anos do Manifesto Comunista. A razão porque
combatemos uma campanha “anti-Engels” é porque estas têm um caráter
falacioso e reacionário. Em última instância, como veremos, está a ser-
viço de um questionamento global do marxismo. Portanto, a defesa do
essencial do imenso legado de Engels implica em uma defesa do mar-
xismo como única ciência e único programa capazes de conduzir a hu-
manidade até a vitória do comunismo. Lenin escreveu, com razão, que
ambos mestres do proletariado cumpriram um papel insubstituível na
tarefa de ensinar a classe operária “... a se conhecer e tomar consciência
de si mesma, e substituir as quimeras pela ciência”[1].
Não se pode separar a obrar de Marx da de Engels. Até para os estu-
diosos que mais conhecem seus escritos, é muito difícil diferenciar quem
escreveu cada parte nas obras assinadas conjuntamente. Existem textos
que levam unicamente a assinatura de Marx, mas foram completados
por Engels ou, como se soube depois, temos o caso dos artigos publica-

[1]
LENIN, V. I. Federico Engels. Disponível em:
<https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1890s/engels.htm>.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 47

dos com o nome de Marx no jornal estadunidense The New York Daily
Tribune na década de 1850, que foram escritos inteiramente por Engels.
Ou também o capítulo que Marx escreveu para a célebre obra de Engels,
o Anti-Dühring (tão criticado por certos “marxianos”), fato que talvez
ninguém tivesse notado sem a revelação espontânea que fez seu autor
no prefácio à segunda edição de 1885[2].
O mesmo se pode dizer sobre sua longa trajetória de militância em
comum. Durante quarenta anos assumiram incontáveis batalhas teóricas,
políticas, organizativas para se demarcar programaticamente de qualquer
outra corrente reformista ou centrista. Tanto na primitiva Liga dos Justos
–que se transformou em Liga dos Comunistas em 1847, o grupo que logo
encarregaria os dois da redação do célebre Manifesto Comunista– como,
anos depois, na Primeira Internacional, lutaram contra a nociva influên-
cia dos mazzinianos (adeptos de Giuseppe Mazzini), dos lassallianos (de
Lassalle), dos proudhonianos (de Pierre-Joseph Proudhon), dos blan-
quistas (de Louis Auguste Blanqui), dos tradeunionistas (sindicalistas
ingleses) e dos bakuninistas (de Mikhail Bakunin).
A partir de 1870, Engels assumiu um papel protagonista no Conselho
Geral, a condução cotidiana da Internacional. Participou energicamente
em todo tipo de disputas programáticas, aliviando assim o trabalho po-
lítico e organizativo que até então Marx havia levado adiante, deixando-
o assim se dedicar totalmente aos seus estudos para O Capital. É quase
impossível encontrar na história moderna semelhante simbiose intelec-
tual e prática.
[2]
Escreve Engels: “Devo notar de passagem que, como o modo de exposição neste livro foi fun-
dado e desenvolvido em medida muito maior por Marx, e apenas em grau insignificante por
mim, era óbvio entre nós que esta minha exposição não deveria ser publicada sem o seu conhe-
cimento. Eu li todo o manuscrito para ele antes de ser impresso, e o décimo capítulo da seção
sobre economia ("Da História Crítica") foi escrito por Marx, mas infelizmente teve que ser abre-
viado um pouco por mim por razões puramente externas. De fato, sempre estivemos acostuma-
dos a nos ajudar mutuamente em assuntos especiais”.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020 ­


48 Daniel Sugasti

Mesmo que seja fato que na dupla Marx e Engels o primeiro é muito
mais reconhecido, é sem dúvida um erro reduzir o papel de Engels ao de
amigo e financiador de Marx e sua família. Em sua juventude, escreve-
ram juntos A Sagrada Família, A ideologia alemã e o Manifesto do Partido
Comunista. Participaram das revoluções burguesas de 1848. Durante o
tempo em que Engels residiu em Manchester – de 1850 à 1870 – e Marx
em Londres, mantiveram correspondência quase diariamente sobre os
mais diversos problemas teóricos e políticos. Em muitas ocasiões, Marx
lhe pediu opiniões ou dados para O Capital. Quando Engels pôde se re-
tirar de suas funções na indústria de sua família, a Ermen & Engels, vol-
tou a Londres e ambos voltaram a trabalhar juntos, de maneira
presencial. É interessante, para se ter uma ideia da divisão de trabalho
entre os revolucionários, este fragmento escrito por Engels em 1873 na
sua obra Sobre a questão da moradia:

Como consequência da divisão do trabalho que existia entre Marx e eu, coube a
mim defender nossas opiniões na imprensa, o que, em particular, significava lutar
contra as ideias opostas, a fim de que Marx tivesse tempo de acabar sua grande
obra principal. Isto me conduziu a expor nossa concepção, na maioria dos casos
em forma de polêmica, contrapondo-a a outras concepções[3].

Em suas conferências de 1922, David Riazanov comentou sobre o tra-


balho infatigável de divulgador:

Engels se serve de um artigo qualquer que o tenha impressionado ou de um fato


da atualidade para mostrar a profunda diferença entre o socialismo científico e os
outros sistemas socialistas, para elucidar um problema prático desde o ponto de
vista científico e ensinar a maneira de aplicar o método...[4]

[3]
ENGELS, F. Contribución al problema de la vivienda. Disponível em:
<https://www.marxists.org/espanol/m-e/1870s/vivienda/index.htm>.
[4]
RIAZANOV, David. Marx y Engels. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2012, p. 273.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 49

A estreita colaboração intelectual também oferecia momentos de pro-


funda emoção que, à sua maneira, ajudam a ilustrar os laços de camara-
dagem e a humanidade de ambos. Entre outras, existe uma carta
comovedora que Marx escreve a Engels para lhe informar que havia fi-
nalizado o primeiro tomo de O Capital:

Por fim este tomo está finalizado. Devo só a você poder concluí-lo. Sem tua ajuda
ilimitada jamais poderia dar por terminado o trabalho prodigioso de três tomos.
Te agradeço com todo o coração e te abraço[5].

Depois da morte de Marx, Engels suportou todo o peso que implicava


continuar a tarefa empreendida junto com seu companheiro. Passou a
ocupar o primeiro plano depois de ter ocupado toda sua vida, segundo
suas próprias palavras, o segundo. Assumiu sua nova responsabilidade
não sem preocupação. Ninguém compreendia melhor que ele a gravi-
dade de ter perdido Marx. Em 1884, escreveu a Becker:

Passei uma vida inteira fazendo aquilo para que estava preparado, ou seja, brin-
cando de segundo violino, e de fato acredito que me absolvi razoavelmente bem...
Mas agora que, de repente, espera-se que eu tome o lugar de Marx...[6].

Manteve esta ideia até sua morte. Em uma carta a Mehring de 1893 es-
clareceu, com a mesma honestidade, sua opinião sobre o papel de cada um:

Se encontro algo a questionar é que você me atribui mais crédito que eu mereço, embora
tenha em conta tudo o que – com o tempo – possivelmente poderia ter descoberto por
mim mesmo, mas que Marx, com seu cop d’oeil[7] mais rápido, e sua visão mais ampla,
descobriu muito mais rapidamente. Quando se tem a sorte de trabalhar durante qua-
renta anos com um homem como Marx, geralmente não se reconhece em vida o que
uma pessoa acredita merecer. Se morre o grande homem, o menor é facilmente super-

[5]
Idem, p. 264.
[6]
Engels a Johann Philipp Becker, 15/10/1884.
[7]
Golpe de vista.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020 ­


50 Daniel Sugasti

estimado, e este parece ser justamente meu caso na atualidade; a história terminará
colocando as coisas em seu lugar[...][8].

Exagerado ou não, a modéstia de Engels não difere da atitude que


Marx expressara durante sua vida. Ambos se aborreciam com a adulação.
Uma passagem desta carta ilustra bem esse sentimento: “Não damos um
centavo pela popularidade” – escrevia Marx a Blos –:
Deixe-me citar uma prova disso: tal era minha aversão ao culto da personalidade que
na época da Internacional, quando atormentado por inúmeros movimentos - originá-
rios de vários países - para me conceder honra pública, nunca permiti que um deles
entrasse no domínio da publicidade, nem nunca respondi a eles, a não ser com uma
ocasional indiferença. Quando Engels e eu entramos na sociedade comunista secreta[9],
o fizemos apenas com a condição de que qualquer coisa que levasse a uma crença su-
persticiosa na autoridade fosse eliminada dos estatutos. (Lassalle posteriormente pro-
cedeu na direção inversa). ...[10]

É importante notar que esta postura oposta pelo vértice ao odioso


culto à personalidade foi a que o estalinismo utilizou para consolidar seu
poder e, com ele uma aberrante “crença supersticiosa”, diria Marx, que
contaminou uma boa parte das organizações operárias e as contamina
até a atualidade.
Havia muito por fazer. Engels se dispôs a organizar o legado científico
de Marx. Entre seus papeis, encontrou os manuscritos inacabados de O
Capital. Quando Marx compreendeu que, devido à sua saúde debilitada,
não poderia terminar o trabalho, disse à sua filha mais nova que talvez

[8]
Engels a Franz Mehring, 14/07/1893. Disponível em: < https://marxists.catbull.com/espanol/m-
e/cartas/e1893-7-14.htm?fbclid=IwAR1E0R33desRtrjOX10Oy3mkomK_Gi4Kzns-
TWFZ7F2d5jjFl5jmTZ8Zt1Q#n3>.
[9]
Se refere à Liga dos Comunistas.
[10]
Marx a Wilhelm Blos, 10/11/1877. Disponível em: < https://marxists.catbull.com/espanol/m-
e/cartas/m101177.htm?fbclid=IwAR0mrywALPUNayrbwJS1vYGmif9dWa_ReiMpIY6is-
MaKHLjghJPsRwo2EKM>.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 51

Engels aproveitasse algo de seus rascunhos. De fato, Engels deixou de


lado suas próprias obras e se dedicou a completar e publicar o que con-
hecemos como o segundo e terceiro volumes de O Capital. O segundo
foi impresso em 1885 e o terceiro levou quase uma década de trabalho
até sair à luz em 1894. Engels não teve tempo de preparar para a imprensa
o quarto tomo, que ficou conhecido como Teorias da Mais Valia, título
dado por Kautsky quando o publicou em alemão entre 1905-1910.
Se Engels sacrificou-se por muitos anos em um “trabalho de cão” na
empresa familiar para que Marx pudesse terminar o primeiro volume, a
edição dos dois últimos tomos exigiu um imenso trabalho. Engels teve
que organizar os papéis e retomar o trabalho de onde Marx o deixara in-
completo, especialmente os materiais do terceiro tomo, que eram um
pouco mais do que anotações. Teve que realizar novas pesquisas e apro-
fundar outras; organizar manuscritos e entender notas e abreviações com
a caligrafia quase ilegível de Marx; cortar; editar; verificar rigorosamente
as traduções. Sem Engels, a obra magna de Marx – a mais profunda aná-
lise científica sobre o funcionamento da produção capitalista e da luta
que sobre sua base travam o burguês e o operário – ficaria incompleta.
Esta tarefa adquire peso histórico, visto que não existia outra pessoa
capaz de concluí-la. De fato, foi Engels, a partir de um artigo crítico à
economia política burguesa, publicado em 1843 nos Anais franco-ale-
mães, que contribuiu extremamente para que Marx se interessasse pelo
estudo da economia capitalista. Com justiça, Lenin sentenciou que: “De
fato, esses tomos de O Capital são a obra dos dois, Marx e Engels”.
Apesar de tudo isso, Engels pôde publicar importantes obras como A
origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884); Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886); os manuscritos que
compuseram Dialética da Natureza, além de escrever prefácios às edições
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020 ­
52 Daniel Sugasti

de textos anteriores. Isto, sem contar que depois de 1883, Engels também
se tornou o principal dirigente do processo de construção que seria a II
Internacional, no contexto de um notável fortalecimento do movimento
operário europeu, e do marxismo entre suas fileiras, aconselhando qua-
dros e partidos de diversos países sobre problemas de princípios, de tática
e de organização.
Considerando esta ousada síntese da obra de Engels, é difícil admitir
sua modesta autodenominação de “segundo violino” com relação a Marx.
Wilhelm Liebknecht – o pai de Karl – faz notar a estéril discussão sobre
o peso dos dois:

Com o que contribuiu um? Com o que contribuiu o outro? Uma pergunta ociosa! É
uma obra comun, e Marx e Engels são uma só alma, tão inseparáveis no Manifesto
Comunista como seguiram sendo até a morte em todos os seus trabalhos e planos[11].

Como adiantamos, apesar do grande papel de Engels na gênese e na


consolidação da concepção comunista do mundo, desde as primeiras
décadas do século XX surgiram intelectuais e correntes políticas que se
dedicaram a criar toda uma construção ideológica para combater seu
legado. A maioria das críticas ao “general”, como era apelidado por seu
círculo próximo, é dirigida ao seu suposto “cientificismo” no Anti-
Dühring e ao seu “positivismo” na incompleta Dialética da natureza. Há
quem diga que tentou “naturalizar” a história humana; outros, que tentou
“humanizar” a natureza.
Mas o “antiengelsismo” renovou suas forças, motorizado pelo venda-
val oportunista que tomou conta da chamada esquerda logo depois dos
processos do Leste Europeu entre 1989 – 1991. Muitos acadêmicos, so-
bretudo aqueles adeptos do chamado “marxismo ocidental”, sugerem que
[11]
La izquierda diario. El joven Engels. Disponível em: <https://www.laizquierdadiario.com/El-
joven-Engels>.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 53

Engels distorceu o pensamento de Marx, quase ao ponto de transformá-


lo em seu oposto. Engels é frequentemente apresentado como o respon-
sável de ter contaminado o marxismo com postulados próprios do
positivismo, do cientificismo, do determinismo antidialético, em suma,
é tachado de não marxista. Esse “marxismo acadêmico” apontou suas
armas, principalmente, para a Dialética da Natureza, suposta prova de
que Engels havia inventado uma dialética no mundo material que seria
uma transposição mecânica da dialética da sociedade humana à da na-
tureza, ignorando assim a diferença entre a natureza e sociedade. Assim
afirmou Georg Lukács. Outro intelectual que não poupou esforços em
sua crítica a Engels foi Sartre. Não faltaram aqueles que, chegando ao cú-
mulo, apontaram Engels de precursor teórico da degeneração da II In-
ternacional e do próprio stalinismo.
Este dossiê tem por objetivo explicar porque a tentativa de desassociar
Engels de Marx nunca passou de uma sofisticada maneira de atacar o
marxismo em seu conjunto. Devido à estatura histórica de Marx – e em
parte a própria modéstia de Engels – aparentemente resulta menos tra-
balhoso atacar a este último para dar um golpe no socialismo científico.
Se com isso se consegue neutralizar as concepções revolucionárias do
próprio Marx, tanto melhor…
O conteúdo desse dossiê inclui um artigo de José Welmowicki, que
assume a defesa do legado de Engels como uma defesa do marxismo
como método de análise e guia para a ação. Seu texto responde a um pro-
blema central: Engels foi um positivista, determinista, economicista, em
suma, um deformador da obra de Marx?
Por sua vez, Marcos Margarido discute com aqueles que dizem que a
obra de Engels, sobretudo a de seus últimos anos, serviu como base para
a degeneração parlamentarista do Partido Operário Social-democrata
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020 ­
54 Daniel Sugasti

alemão, da outrora poderosa II Internacional e, posteriormente, para a


consolidação do stalinismo na antiga URSS.
Finalmente, Américo Gomes polemiza com quem propõe uma su-
posta concepção pacifista na obra de Engels. Ele se aprofunda no estudo
de como o amigo de Marx encarava o estudo da questão militar, especi-
ficamente da “arte da insurreição”, um problema básico para conceber a
vitória do proletariado sobre o poder burguês.
Esperamos que esta seleção de temas e, sobretudo, a abordagem que
realizam nossos autores, constitua um aporte válido para os debates da
atualidade.

***

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 44­54 ­ Novembro de 2020


AS CONTRIBUIÇÕES DE ENGELS

AO MARXISMO

José Welmowicki - Brasil

Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no le-


gado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha
inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecani-
cismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de
Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer de-
terminismo, econômico ou natural. Como afirma Nahuel Moreno: “todas
as correntes revisionistas modernas atacam a Engels em nome do mar-
xismo”[1]. Devido ao imenso prestigio de Marx, o alvo escolhido foi En-
gels, que lhes pareceu um alvo menos difícil de atingir, apesar de ser um
dos pais do próprio marxismo.
Em seus últimos anos, Engels foi um deformador da obra de Marx?
Foi um determinista? Sua aplicação do materialismo dialético à natureza
constitui uma extrapolação indevida de uma dialética que se aplica uni-
camente à sociedade? Sua visão sobre o tema preparou o terreno para a
degeneração da II Internacional e para o stalinismo? Engels terminou
[1]
MORENO, Nahuel. Lógica marxista y ciencias modernas, México: Xolotl, 1973, p. 33.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


56 José Welmowicki

caindo numa lógica positivista, isto é, numa visão de que o progresso da


sociedade ocorre a partir de uma crescente incorporação da ciência em
seu seio?
A polêmica ao redor desses assuntos tem mais de um século; são
temas recorrentes sempre que se discute a figura de Engels. Por isso,
vamos aqui sistematizar os principais questionamentos que foram sur-
gindo, ainda que não seja possível incluir todos. Entre os críticos mais
conhecidos estão Lukács e vários de seus seguidores, alguns dos princi-
pais filósofos da Escola de Frankfurt (como Herbert Marcuse), Jean Paul
Sartre, e correntes como os chamados “marxistas humanistas”, oriunda
da Tendência Johnson-Forrest (pseudônimos de C.R.L. James e Raya Du-
nayevskaia, respectivamente), uma cisão do antigo SWP norte-ameri-
cano na década de 1950, assim como boa parte dos intelectuais que,
embora se reivindiquem marxistas, não defendem a revolução socialista,
mas apenas a radicalização da democracia.
Por outro lado, não partiremos do zero, porque já existe uma polêmica
desenvolvida contra intelectuais anti-engelsistas. Rosa Luxemburgo,
Lenin e Trotsky, durante toda sua vida apoiaram-se explicitamente nas
elaborações de Marx e Engels, e defenderam-nas contra os revisionistas
da II Internacional e contra o stalinismo no caso de Trotsky.
Como essa polêmica não é nova, muitos autores estudaram a obra de
Engels e demonstraram sua identidade com o pensamento de Marx, co-
meçando por David Riazanov. Mais recentemente, autores como Nahuel
Moreno[2], John Rees[3] e o economista marxista Michael Roberts tam-
bém se posicionaram nesse sentido.
[2]
Moreno em seu texto aborda também esse tema em relação aos críticos de Engels da época,
Sartre e Della Volpe.
[3]
Foi membro da direção do SWP inglês. Rompeu com outros dirigentes em 2009 e fundou o
grupo Counterfire.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 57

Entre estas contribuições, uma muito importante foi a do físico-quí-


mico Robert Havemann, que viveu na Alemanha Oriental, sobre a rela-
ção entre o materialismo dialético e as ciências.
Havemann foi um cientista defensor do marxismo e também um ati-
vista político contra o regime vigente. Ele se enfrentava no campo teórico
com a concepção stalinista da burocracia da RDA e do Kremlin nas dé-
cadas de 1960 e 1970.

O primeiro ataque: Lukács

Uma das primeiras vozes nas fileiras marxistas a questionar Engels,


argumentando contra a utilização do método dialético para analisar a
natureza, foi o filósofo húngaro Georg Lukács. Seus primeiros comentá-
rios críticos aos conceitos de Engels sobre a relação entre homem e na-
tureza aparecem no livro História e consciência de classe, publicado em
1923. No artigo “¿Qué es el marxismo ortodoxo?”, incluído no livro, ele
afirma numa nota de rodapé, em que fica mais claro o questionamento
a Engels.

Esta limitação do método à realidade histórico-social é muito importante. Os mal-


entendidos que o modo engelsiano de expor a dialética tem causado derivam es-
sencialmente do fato de Engels - seguindo o mau exemplo de Hegel - ter estendido
o método dialético ao conhecimento dos natureza; sendo assim as determinações
decisivas da dialética; ação recíproca entre sujeito e objeto, unidade de teoria e
prática, modificação histórica do substrato das categorias como base de sua mo-
dificação no pensamento, etc., não são encontrados no conhecimento da natureza.
Infelizmente, não tenho espaço para discutir essas questões em detalhes[4].

[4]
LUKÁCS, Georg. Historia y conciencia de clase. Buenos Aires: Ediciones R. y R., 2013, p. 91.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


58 José Welmowicki

Para Lukács, Engels ignora a questão da dialética sujeito-objeto no


processo histórico, segundo ele essencial ao marxismo. Essa determina-
ção, de acordo com essa leitura, levaria a retirar do método dialético a
questão da transformação prática, sua dimensão prática-revolucionária,
e isso acarretaria uma volta ao materialismo contemplativo, ao estilo de
Feuerbach. Ou seja, a busca de uma dialética que ligasse a história hu-
mana à história natural seria incorreta. Por isso, Lukács acusava Engels
de obscurecer a dialética autenticamente revolucionária de Marx[5].
O problema é que a realidade não pode ser separada em planos ou
compartimentos intransponíveis, sujeitos a leis completamente diferen-
tes, pois se um desses planos é considerado “real”, que nome poderia ser
dado aos demais? Se existe um plano que não pertence àquilo que é real,
só pode ser algo irreal, algo que não está no mundo objetivo e só tem
significado enquanto obra da imaginação; portanto, a ideia criaria um
outro mundo, e recaímos no idealismo. Ou seja, se a natureza forma
uma totalidade, na qual está contemplada o mundo objetivo – e a huma-
nidade faz parte dele –, não há sentido em isolar a humanidade ou isolar
a natureza, vendo seu desenvolvimento em oposição ao homem e à so-
ciedade. Por isso, é um erro ver a dialética “somente” na sociedade, não
na natureza.
Uma parte do chamado “marxismo ocidental[6] posteriormente iria
além e negaria completamente a existência de uma dialética na natureza.
Isto leva diretamente ao idealismo filosófico.

[5]
Por outro lado, é verdade que Lukács, nesse mesmo livro História e consciência de classe, tem
uma variação sobre esse tema: primeiro nega que o método dialético seja aplicável à natureza,
por falta de dimensão subjetiva; e em outro trecho do mesmo livro reconhece a existência de
uma dialética distinta e objetiva na natureza.
[6]
Apesar de ser um termo muito genérico, optei por utilizar o conceito de Perry Anderson, que
serve para abarcar uma série de correntes que tiveram em comum essa localização teórica, apesar
das diferenças entre elas.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 59

Afinal, se a natureza é alheia à dialética, se ela não tem um desenvol-


vimento através da história, e só quem tem uma história é a humanidade,
isso significa que existem duas esferas paralelas e isoladas: a sociedade
humana, que tem história, e a natureza[7]. Assim, a humanidade estaria
se movendo em base a leis próprias de sua esfera. E a natureza, por não
possuir tais leis, seria estática e teria surgido de alguma origem/causa ex-
terna – o que era a convicção de Hegel. Lembremos que Hegel defendia
que a ideia era a geradora da realidade objetiva (por isso, Lenin chama
sua concepção de “idealismo objetivo”).
As teorias científicas sobre a evolução do sistema solar e dos planetas,
assim como a teoria da evolução das espécies de Darwin, dão base uma
visão dialética da natureza, independente da ação humana até seu surgi-
mento. A partir do surgimento da humanidade passa a haver uma inter-
ação em que o ser humano, diferentemente dos demais animais, atua
sobre o mundo real, tal como ele é.
A crítica de Lukács não teve grande repercussão imediata e ele se re-
tratou depois, quando aderiu ao stalinismo. Mais tarde, em textos como
Prolegômenos para uma Ontologia do ser social, publicado postuma-
mente, voltou a fazer críticas às formulações filosóficas de Engels, ainda
que reivindicando seu papel na elaboração e divulgação do marxismo.
Mas o importante aqui não é seguir todo o percurso teórico de Lu-
kács, com suas idas e vindas. O central é entender que essa crítica do
jovem Lukács inaugurou uma linha de contestação às posições de Engels,
assumida depois por vários intelectuais, lukacsianos ou não.

[7]
Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, escreve: “o pensamento que é alienado e abstrato
e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato... a natureza
como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo,
e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alie-
nado”.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


60 José Welmowicki

Outros críticos

A maioria dos chamados “marxistas ocidentais” inspira-se nessa crí-


tica para considerar o materialismo dialético e o materialismo histórico,
além do conceito de socialismo científico, como parte de uma visão de-
terminista, atribuída a Engels, e não a Marx (ou pelo menos não ao
jovem Marx[8]).
A Escola de Frankfurt ficou conhecida no período pós-guerra, quando
defendeu que houve um desvio do marxismo após os Manuscritos eco-
nômico-filosóficos de 1844, onde está o texto O Trabalho Alienado, con-
siderado por Erich Fromm como o texto central da “concepção marxista
do homem”.
Para alguns deles, após este texto, Marx e em particular Engels teriam
supostamente abandonado o “humanismo” e caído numa visão cientifi-
cista. Coerente com essa revisão, alguns dos críticos da Escola de Frank-
furt afirmavam que não é possível associar a luta pela liberdade humana
e pela desalienação da humanidade a uma determinada classe, no caso
o proletariado. Herbert Marcuse, um dos principais filósofos dessa es-
cola, elaborou uma análise sobre o proletariado dos países avançados
considerando que haveriam perdido seu caráter revolucionário pela
transformação do capitalismo em ‘capitalismo dirigido’, com sua organi-
zação que incorporava a maior parte dos trabalhadores na sociedade es-
tabelecida[9]. Eles rejeitavam o papel do proletariado como sujeito social
e, nessa linha, deveria retomar-se conceitos como “essência humana” que
estaria submetida a uma alienação na sociedade atual e passaram a de-
[8]
Apoiam-se em particular nos Manuscritos econômico-filosóficos.
[9]
“Mas precisamente nos países industriais avançados, já por volta da passagem do século, as
contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente,
e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”, Razão e revolução, Rio,
Paz e Terra, 1978, p. 404.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 61

fender como estratégia uma luta pela desalienação do ser humano em


geral e centrada na libertação do indivíduo[10].
O mesmo acabou acontecendo com o “marxismo humanista” de Raya
Dunayevskaia[11], dos anos 1950-60. Após sair do SWP, focou sua estra-
tégia nos conselhos operários, sem necessidade de um partido revolu-
cionário, para logo depois deixar de ver a classe operária como sujeito
social da revolução. O grupo foi pioneiro na procura de outros sujeitos
sociais que substituíssem a classe operária, a partir dos setores oprimidos
como os negros, as mulheres e outros. Esta tendência acabou deixando
de se considerar um partido e permaneceu como um grupo intelectual
de propaganda[12].
Jean Paul Sartre, filósofo de grande influência no pós-guerra, atacava
Engels por repetir a mesma concepção que havia criticado em Hegel:
impor as leis do pensamento à matéria. Segundo Sartre, Engels estenderia
arbitrariamente a razão dialética, as leis que descobriu no mundo social,
à natureza e às ciências[13]. Como observa Nahuel Moreno, por meio
dessa crítica Sartre pensava valorizar a escolha individual, com sua filo-

[10]
Idem, p. 407.
[11]
Raya Dunayevskaia foi uma militante russo-americana que trabalhou por um curto período
como tradutora e secretária de Trotsky em seu exílio no México. Rompeu com o SWP junto com
Schatchman e Burnham em 1940, voltou a este partido em 1947 para afinal romper definitiva-
mente no início dos anos 1950. Considerava a ex-URSS como “capitalismo de estado”.
[12]
Alguns de seus integrantes, como o professor universitário Kevin Anderson, autor de Marx
nas margens defendem essas posições nos debates sobre o marxismo na academia.
[13]
Sartre escreve: “O resultado desse belo esforço [de Engels] é paradoxal: Engels censura Hegel
por impor as leis do pensamento à matéria. Mas é precisamente o que ele mesmo faz, pois obriga
as ciências a verificar uma razão dialética que ele descobriu no mundo social. Somente no mundo
histórico e social, como veremos, existe verdadeiramente uma razão dialética; ao transportá-lo
para o mundo "natural", dando-lhe força, Engels tira sua racionalidade; Não se trata mais de uma
dialética que o homem faz , fazendo-se a si mesmo, mas de uma lei contingente da qual só se
pode dizer: é assim e não de outra forma”. in Marxismo y Existencialismo. Buenos Aires: Sur, p.
128, apud Moreno, Lógica marxista y ciencias modernas, p. 38.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


62 José Welmowicki

sofia existencialista – opondo-a ao determinismo stalinista, contra quem


lutava nas décadas de 1950 e 60. Tal concepção o levou a “levantar uma
muralha chinesa entre o humano e a natureza orgânica e inorgânica”[14].
Assim, Sartre também caiu numa separação completa entre homem e
natureza, ignorando a elaboração marxista sobre essa relação e absolu-
tizando a opção política individual, independente da realidade, das con-
dições objetivas.

O materialismo mecanicista em sua versão stalinista


é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?

Estas críticas levantam uma questão: a afirmação de uma lógica dia-


lética aplicada à natureza seria uma base para o materialismo vulgar e
mecanicista dos stalinistas? Muitos críticos de Engels opinam que o con-
ceito de uma dialética da natureza presta-se inevitavelmente ao materia-
lismo vulgar e ao positivismo.
A maioria dos antiengelsistas toma os textos filosóficos de Engels –
Anti Dhuring, Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da filo-
sofia clássica alemã – como demonstração de um suposto enrijecimento
mecanicista, comparando-o negativamente com Marx, que escaparia a
esse processo de vulgarização. Marx não teria conseguido impedir o
companheiro de luta e de elaboração teórica de toda a vida de cair em
semelhante deriva e, ao morrer em 1883, teria deixado Engels ainda mais
livre para dar asas a seus supostos desvios cientificistas e mecanicistas.
Em particular, a Dialética da Natureza é permanentemente denunciada
como uma aplicação que se afasta completamente da concepção mate-
rialista dialética de Marx.
[14]
MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y ciencias modernas. México: Ed. Xolotl, 1981, p. 39.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 63

No entanto, neste texto, Engels foi explícito sobre a relação dialética


entre o homem e a natureza. Como fundamento dessa visão está sua re-
cusa à tese de Hegel de que a natureza, no sistema idealista hegeliano é
um atributo da Ideia que viveria uma eterna repetição, não seria susce-
tível a um desdobramento histórico. Engels ressalta a posição ativa do
homem em relação à natureza. E antecipa como essa relação pode leva-
lo a modificar e até mesmo destruir a natureza, antecipando a preocu-
pação atual com a crise climática.
Em um capítulo dessa obra, “O Papel do Trabalho na Transformação
do Macaco em Homem”, ele escreve

Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre
a natureza [...] A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma
delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar,
mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas,
que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Me-
sopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para
obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando
origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos
centros de captação e acumulação de umidade. [...] Somos a cada passo advertidos
de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo
estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos,
com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que
todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres
de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente [...] Na realidade,
a cada dia que passa, aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a
conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossa intervenção no pro-
cesso que a mesma leva a cabo[15].

[15]
Citados por Michael Roberts, Engels sobre a natureza e a humanidad, em:
<litci.org/pt/michel-roberts-engels-sobre-natureza-e-humanidade/>

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


64 José Welmowicki

É interessante notar como, já nesse texto, Engels problematiza a


relação homem-natureza, a relação dialética entre o progresso econômico
e científico de determinada sociedade e as possíveis consequências sociais
contraditórias:

Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, den-
tro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sen-
tido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais
remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não
podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde
muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro[16].

Robert Havemann: o combate ao stalinismo


na ex-Alemanha Oriental, apoiado em Engels

Durante o domínio stalinista na antiga Alemanha Oriental, o cientista


Robert Havemann escreveu o livro Dialética sem dogma. Havemann in-
tervinha nos debates científicos quando a academia oficial da ex-URSS
e da ex-Alemanha Oriental se recusavam a aceitar as descobertas de cien-
tistas como Linus Pauling[17], porque seriam uma “negação do materia-
lismo dialético”[18].
Robert Havemann viu-se obrigado a defender as descobertas cientí-
ficas de Pauling e mostrar como a tentativa de vetar determinadas evi-
dências, supostamente passíveis de um “idealismo burguês”, conduzia à
negação do marxismo. Nesta defesa, Havemann colocava-se em defesa
[16]
Idem.
[17]
Pauling foi pioneiro na aplicação da Mecânica Quântica em química e recebeu o prêmio Nobel
de Química em 1954.
[18]
Houve também o famoso caso Lyssenko, cientista russo que defendeu que a genética era es-
tranha ao materialismo dialético e conseguiu impor esse ponto de vista e banir a genética da
URSS por anos. Lyssenko não se cansou de atribuir suas teses diretamente a Stalin e ao suposto
mérito deste último como o “maior cientista” dos tempos atuais.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 65

do marxismo contra o stalinismo, do materialismo dialético contra a de-


formação mecanicista da burocracia e, para contestar a burocracia so-
viética, apoiava-se em Marx e, particularmente, nos trabalhos filosóficos
sobre a relação entre natureza e sociedade feitos por Engels.
Sobre a relação entre ciência e método dialético, o cientista alemão
escreve:
Vamos lembrar mais uma vez o que os clássicos falam sobre isso. Eles sempre en-
fatizaram que o problema capital das ciências naturais, como de todas as ciências
para o resto, consiste em passar do pensamento mecanicista, metafísico, a um
pensamento dialético cada vez mais consciente... Nenhum filósofo em todo o
mundo pode dizer como a teoria das partículas elementares deve ser posta diale-
ticamente. Mas essa teoria não pode ser desenvolvida sem o pensamento dialético,
nem o conhecimento já adquirido nelas será compreendido em toda a sua pro-
fundidade sem assimilar o pensamento dialético[19].
Essas ideias[20], não apenas admiravelmente confirmadas pela teoria científico-
natural mas, além disso, aprofundados por ela, têm grande importância para toda
a nossa relação com o mundo. A imagem do mundo traçada pelo materialismo
mecânico não nos deixou liberdade para uma ação real. Todo o futuro, incluindo
todas as nossas ações, já estava totalmente determinado pelo passado.
A imagem do mundo traçada pelo materialismo mecanicista não nos deixou li-
berdade para uma ação real. Para ele, todo o futuro, incluindo todas as nossas
ações, já estava totalmente determinado pelo passado. A primeira ruptura com
esse determinismo rígido e, além disso, com a reinterpretação dos conceitos de pas-
sado, presente e futuro, ocorreu motivado pelos resultados da teoria da relatividade
[...] o passado é tudo aquilo de que podemos ter conhecimento; futuro é tudo em

[19]
ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Berlim 1952, p. 223.
[20]
Havemann refere-se à seguinte citação da Dialética da Natureza: “Os pesquisadores da natu-
reza, ainda que se revolvam são dominados pela filosofia. A questão é se eles querem sê-lo por uma
má filosofia que esteja na moda ou por uma forma de pensamento teórico que se baseia no conhe-
cimento da história do pensamento e de suas conquistas. Os pesquisadores da natureza ainda estão
permitindo uma vida vegetativa para a filosofia, ao utilizar os restos da antiga metafísica. Somente
quando a dialética haja sido assimilada pelas ciências da natureza e da história e tornar supérflua
a velha bugiganga filosófica - exceto para a pura teoria do pensamento - então desaparecerá absor-
vida pela ciência positiva”.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


66 José Welmowicki

que ainda podemos intervir. Nem uma coisa nem outra existem no mundo do de-
terminismo metafísico clássico.
… O fato de que desafiamos a ideia mecanicista clássica de que o futuro é total-
mente determinado não significa, é claro, que vamos declarar que o futuro
é totalmente indeterminado. O futuro é co-determinado pelo passado, mas não é
determinado de forma definitiva e absoluta. […]. O homem, com a sua atividade,
não é uma mera bola com a qual jogam as casualidades fantásticas, mas justa-
mente o inverso: o homem utiliza praticamente a casualidade dos acontecimentos
para conseguir o que deseja. Se esse acaso cego não existisse, não poderíamos trans-
formar o mundo com nossos olhos videntes.
A liberdade do homem baseia-se precisamente no fato de que o futuro do mundo
pode ser determinado porque ainda não está determinado[21].

Como explicaremos mais adiante, o raciocínio de Havemann é bem


semelhante ao de Lenin e Trotsky sobre como o materialismo dialético
pode e deve ser aplicado à ciência e ao estudo da natureza: não como
uma filosofia externa que se impõe à realidade, mas um auxílio para os
cientistas melhor entenderem os processos complexos das ciências na-
turais.
Evidentemente, há diferenças na aplicação das leis da dialética na na-
tureza e na história, mas ambas são parte do real, do mundo objetivo.

Engels tinha uma concepção oposta à de Marx


na aplicação da dialética à natureza?

De modo algum. Não só porque Engels trabalhou em equipe com


Marx, havendo uma divisão de tarefas entre ambos em relação às suas
áreas de estudo, mas porque a visão de Marx, elaborada em conjunto
com Engels, permaneceu fundamentalmente a mesma quanto à interação
entre homem, natureza e sociedade.

[21]
HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma, 10ª lección, p. 87.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 67

No texto A Ideologia alemã – que, segundo Marx[22], serviu para co-


locar no papel a concepção materialista da história desenvolvida por ele
e por Engels –, há uma série de referências a essa questão:

Por exemplo, a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (ou
então, como afirma Bruno na p. 110, as ‘oposições em natureza e história’, como
se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem não
tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da
qual surgiram todas as ‘obras de insondável grandeza’ sobre a ‘substância’ e a ‘au-
toconsciência’, desfaz-se em si mesma na concepção de que a célebre ‘unidade do
homem com a natureza’ sempre se deu na indústria e se apresenta de modo dife-
rente em cada época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indús-
tria; o mesmo vale no que diz respeito à ‘luta’ do homem com a natureza, até o
desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A in-
dústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicio-
nam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são,
por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento – e é por isso
que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde
cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre
apenas pastagens e pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto
não teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos
capitalistas romanos[23].

E será que Marx modificou essa posição em uma fase posterior? Veja-
mos o trecho do Capital em que Marx defende uma concepção idêntica:
Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por
Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mu-

[22]
No Prefácio à Contribuição à crítica da economia política: “Friedrich Engels, com quem man-
tive uma troca constante de ideias por correspondência desde que a publicação de seu brilhante
ensaio sobre a crítica das categorias econômicas ... chegou por outro caminho (compare sua A
Situação da classe trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu, e quando, na prima-
vera de 1845, ele também veio morar em Bruxelas, decidimos apresentar em conjunto nossa con-
cepção, em oposição à concepção ideológica da filosofia alemã, de fato, para prestar contas com
nossa antiga consciência filosófica”.
[23]
In A Ideologia alemã, Feuerbach, História, S. Paulo, Boitempo p. 31.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020 ­


68 José Welmowicki

danças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas. E, em


uma nota de rodapé, Marx desenvolve essa ideia: a teoria molecular da química
moderna…baseia-se em nenhuma outra lei além dessa[24].

Riazanov, o maior estudioso sobre a obra de Marx e Engels e respon-


sável pela formação do Instituto Marx-Engels na antiga URSS, resgatou
várias obras inéditas ou publicadas de forma fragmentada pelos seus exe-
cutores testamentários alemães (entre eles, Bernstein). Segundo ele,
Entre o ponto de vista da Ideologia Alemã e o que se desenvolveu no primeiro vo-
lume de O Capital não há qualquer tipo de ‘salto’. As concepções básicas que Engels
desenvolveu no Anti-Dühring na seção de Filosofia, mesmo nas partes relaciona-
das às ciências naturais, já tinham sido completamente formuladas em O Capital
em uma série de observações, que foram tão distorcidas por Dühring. No Anti-
Dühring, Engels desenvolve o método dialético que Marx e ele tinham criado e
que tinham empregado desde 1846, desde o tempo da Ideologia alemã.
Quando publiquei Dialética da Natureza de Engels, que eu tinha descoberto, meu
prefácio enfatizou que, em comparação com o que Engels havia dito no Anti-Düh-
ring, este não continha nenhuma ideia nova. Eu escrevi ‘nenhuma ideia nova’ in-
tencionalmente. A tentativa insustentável de alguns companheiros de encontrar
algumas diferenças entre o Anti-Dühring e Engels da década de oitenta, que tinha
‘concepções completamente opostas’, surge do entendimento pouco claro de algu-
mas observações no Anti-Dühring e de uma leitura desatenta do prefácio de Engels
para a segunda edição do Anti-Dühring[25].

Colocadas as premissas do problema e da discussão, no próximo texto


veremos as consequências das críticas às elaborações de Engels na ela-
boração teórico-programática.

***

[24]
Citado em: Anti-Dühring, Parte I, Dialética, Capítulo XII: “Quantidade e qualidade”.
[25]
RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, 1928.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 55­68 ­ Novembro de 2020


CONSEQUÊNCIAS PROGRAMÁTICAS
DAS DISTINTAS CRÍTICAS
À OBRA DE ENGELS

J. W – Brasil

Como analisamos, uma miríade de tendências questiona o legado de


Engels. Alguns o acusam de responsável pela deriva reformista na so-
cialdemocracia do século XX, outros veem nele a justificação dos totali-
tarismos stalinistas e da crise que estes geraram no interior do marxismo.
Temos um exemplo desta última visão no texto de Hector Benoit, “Da
dialética da natureza à derradeira estratégia política de Engels”, publicado
no livro A obra teórica de Marx.
Hector Benoit foi um dos fundadores e referência teórica do grupo
brasileiro Negação da Negação, que atualmente tem o nome de Transição
Socialista. Embora este seja um grupo de pequena influência política,
Benoit, que leciona na Universidade Estadual de Campinas tem certa in-
fluência no ‘marxismo acadêmico’ na área de filosofia. Segundo Benoit,
daquela obra de Engels partiria a visão determinista – que teria se ex-
pressado na Introdução de 1895 à Luta de classes na França, de Marx –
que consistiria na base teórica não só de toda a orientação reformista e
revisionista posterior do SPD, mas também do stalinismo. O materia-
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­
70 José Welmowicki

lismo dialético e o materialismo histórico seriam criações de Engels, que


serviram aos desígnios do stalinismo:

Nessa obra, ‘dialética da natureza’, assim como em algumas páginas do Anti-Düh-


ring, de fato, citando muitas vezes Hegel, Engels desenvolve justamente a teoria de
que existe uma dialética objetiva presente na natureza. Esta dialética apareceria
espelhada nas leis gerais descobertas pelas modernas ciências naturais, nas leis do
pensamento e seria reencontrada e confirmada na concepção dita ‘científica’ da
história humana (aquela desenvolvida por Marx e ele próprio). Engels esboça
assim a hipótese de que existiria uma certa legislação dialética única governando
a história da natureza, o pensamento e a história humana, estas últimas subsu-
midas naquela. Essa hipótese apoiava-se fundamentalmente em três fontes teóri-
cas: a dialética hegeliana, a concepção marxista da História e as modernas ciências
naturais (…) Por outro lado, onde encontraremos seguidores dessas concepções
políticas do último Engels? Exatamente nos mesmos que se notabilizarão também
por adotarem uma versão cientificista do marxismo: Bernstein, Kautsky e o stali-
nismo (...) ambos, Bernstein e Kautsky são assumidamente seguidores de um ma-
terialismo evolucionista e, não por acaso, inspiradores teóricos diretos do
reformismo que desembocou em agosto de 1914, e que se desenvolveu, posterior-
mente provocando sucessivas derrotas da classe operária europeia, derrotas que
levaram finalmente ao fascismo e ao nazismo. Paralelamente encontraremos a
doutrina engelsiana, sobretudo, nos manuais do marxismo stalinista, os quais re-
almente repetem os grandes esquemas de Engels a respeito da dialética da natu-
reza, as leis lógicas gerais que seriam válidas no domínio da natureza e da
História, e que fundariam assim de um lado, o materialismo dialético (uma espécie
de epistemologia marxista que conteria as leis da teoria do conhecimento mar-
xista) e, de outro lado, o materialismo histórico (uma sociologia dinâmica antro-
pologizante que conteria as leis do desenvolvimento humano). Estaríamos assim
com o materialismo dialético e com o materialismo histórico, diante do ‘sistema
de mundo marxista’, um sistema naturalista-positivista que permitiria prever pre-
cisamente, com rigor científico inexorável, o curso da natureza e da História[1].

[1]
A Obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã, 2000, pp. 91-104.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 71

Em primeiro lugar, Benoit reproduz uma versão vulgarizada da com-


preensão de Engels sobre a dialética da natureza, “uma certa legislação
dialética única governando a história da natureza, o pensamento e a his-
tória humana, estas últimas subsumidas naquela”, e repete as acusações
infundadas de que Engels simplesmente aplica essas leis gerais à natureza
e à história como se fossem um todo idêntico, numa visão mecânica e
evolucionista.
Em segundo lugar, busca as raízes do reformismo da II Internacional
somente nas ideias, e não nas contradições concretas que perpassaram a
socialdemocracia diante da ascensão do imperialismo, e mais adiante as
bases do stalinismo. Considera que todo o desenvolvimento do refor-
mismo e do stalinismo já estava implícito nas teses do último período
de Engels, sucedendo-se em uma evolução linear: do último Engels a
Bernstein, depois Kautsky, depois... o stalinismo. Aí estaria a explicação
da falência da II Internacional e do papel contrarrevolucionário do sta-
linismo. Por essa versão, o “pecado original” estava em Engels desde pelo
menos o Anti-Dühring (1877-78) e a Dialética da Natureza (póstumo).
O artigo de Benoit associa os últimos anos de Engels diretamente ao
revisionismo e ao reformismo, aceitando a falsificação de Bernstein, que
considera a Introdução de 1895 de Engels à Luta de classes na França, de
Marx, como seu Testamento.
Um artigo de Francesco Ricci[2] já mostrou que a versão popularizada
é uma edição deturpada do texto original de Engels. O artigo de Marcos
Margarido nesse dossiê mostra que outro artigo[3] usado por Benoit não
resiste a uma análise séria. Como mostra Lenin em O Estado e a Revolu-

[2]
O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas, na revista Marxismo Vivo
– Nova Época n.° 11, 2018.
[3]
MARGARIDO, Marcos. “Teria se transformado Engels en un reformista…?”, neste dossiê.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


72 José Welmowicki

ção[4], entre 1878 e 1895 Engels escreve várias obras nas quais reafirma
as concepções marxistas de Estado e da necessidade de uma revolução
violenta, extraídas das lições da Comuna de Paris de 1871.
Em 1879 (ou seja, depois da publicação do Anti-Dühring), Marx e En-
gels escrevem uma circular ao partido alemã[5], atacando impiedosa-
mente um grupo sediado em Zurique, do qual fazia parte Bernstein,
como pequeno-burgueses que querem retornar ao socialismo verda-
deiro[6] e contagiar o SPD com ideias reformistas[7], repudiando-os ener-
gicamente. Alguns dos textos desse período são clássicos, como A origem
da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, do qual Lenin
extraiu boa parte das citações para escrever O Estado e a Revolução, para
demonstrar que o Estado é constituído essencialmente pelo aparelho re-
pressivo militar, cujo objetivo é impor o poder burguês e explorar as clas-
ses dominadas. E que é necessário quebrar a máquina do Estado burguês
inclusive em suas formas republicanas.
Em 1891, Engels, por ocasião do 20º aniversário da Comuna, publica
um prefácio ao texto de Marx, A guerra civil na França[8], de 1871, e re-
fere-se ao “filisteu social-democrata” que expressava “horror” à “ditadura

[4]
“Como conciliar na mesma doutrina essa apologia da revolução violenta, insistentemente re-
petida por Engels, aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até a sua morte, com a
teoria do ‘definhamento’ do Estado?”, in O estado e a Revolução, parte I, item 4. ‘Definhamento’
do Estado e a Revolução Violenta.
[5]
Carta-circular de Marx e Engels a August Bebel, Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e outros
(1879), M&E Collected Works, V. 45. Londres: Lawrence & Wishart, 2010, p. 394.
[6]
Refere-se a uma corrente “socialista” da Alemanha que é duramente criticada no Manifesto
Comunista,
[7]
Na circular, Marx e Engels reproduzem e condenam o seguinte trecho do texto dos três socia-
listas sediados na Suíça: “Precisamente agora, sob a pressão da lei antissocialista, o Partido mostra
que não deseja seguir o caminho da revolução sangrenta, violenta, mas que está decidido... a tril-
har o caminho da legalidade, isto é, da reforma”.
[8]
“Segundo a concepção filosófica, o Estado é a ‘realização da ideia’, isto é, traduzido na lenguagem
filosófica, o reino de Deus na Terra, o campo onde se fazem ou devem se fazer realidade a verdade

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 73

do proletariado”. Em 1894, escreve uma carta a Paul Lafargue, comba-


tendo a intervenção reformista de Jean Jaurès no parlamento francês.
Lenin se referiu a todos esses textos em suas anotações para escrever O
Estado e a Revolução, publicados em suas obras completas, no tomo 33
como Cadernos sobre Marxismo e o Estado.
Mas, para poder justificar o argumento da “derradeira fase de Engels”,
era necessário ignorar esses textos, incluídos trechos do próprio Anti-
Dühring, citados por Lenin.
Além disso, a incoerência é de tal magnitude que não percebe uma
contradição evidente em seu raciocínio: como os dirigentes marxistas
revolucionários mais importantes do século XX, como Rosa Luxem-
burgo, Lenin e Trotsky, seguiram reivindicando toda a obra de Engels?
Lenin e Trotsky reivindicam explicitamente a elaboração filosófica dos
textos de Engels, que Benoit ataca como mecanicista e base para o refor-
mismo. Todos eles foram categóricos em defender, até o fim de suas
vidas, a Marx e Engels como seus mestres. Ou será que os três não con-
seguiram perceber o grau de revisionismo presente em Engels nessa fase?
Mas até mesmo nessa visão de sucessão linear e esquemática, que vai
de Engels a Bernstein, passando por Kautsky, Benoit está equivocado,
pois vê Kautsky como um revisionista desde o início de seu papel como

(cont. 8) … e a justiça eternas. (…). E as pessoas acreditam ter dado um passo enormemente audaz
ao libertar se da fé na monarquia hereditária e jurar pela República democrática. Na realidade, o
Estado não é mais que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na Repú-
blica democrática quanto sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que o proletariado
herda depois que triunfa na sua luta pela dominação de classe. O proletariado vitorioso, tal como
fez a Comuna, não poderá menos que amputar imediatamente os piores aspectos deste mal, até que
uma geração futura, educada em condições sociais novas e livres, possa se desfazer de todo esse
velho lixo do Estado. Ultimamente as palavras “ditadura do proletariado” têm voltado a colocar
em terror o filisteu social-democrata. Pois bem, cavalheiros, querem saber o que atualmente re-
presenta essa ditadura? Olhem a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!” (original
em espanhol, tradução nossa, destaques meus).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


74 José Welmowicki

teórico no SPD. Porém, a realidade é dialética. Kautsky era reivindicado


tanto por Lenin quanto por Trotsky até a I Guerra Mundial, quando se
dá a grande traição que marca a falência da II Internacional.
Portanto, essa tese de uma sucessão evolutiva de teorias carece de uma
base na realidade no que diz respeito à evolução da própria socialdemo-
cracia e ignora todo o complexo processo de luta de classes e da sua adap-
tação contraditória à democracia burguesa, que, segundo Lenin[9], foi
produto do surgimento de uma base social – a aristocracia operária –
que sustentasse a revisão socialdemocrata. Ignora um duro processo de
luta política interna, sob a pressão da burguesia imperialista e dos Esta-
dos burgueses sobre os partidos socialdemocratas e a burocracia sindical,
que levou a II Internacional à degeneração.
Da mesma forma, o surgimento da burocracia soviética e de Stalin
ocorreu devido ao processo objetivo de isolamento da revolução russa
em um país atrasado e da criação de uma base social na burocracia do
próprio Estado operário soviético. Para controlar o poder, a burocracia
travou uma feroz luta contrarrevolucionária, renegando o programa e a
teoria marxistas, a herança teórica de Marx e de Engels.
Stalin rejeitou explicitamente princípios como o internacionalismo
que Marx e Engels expressaram claramente, tanto no Manifesto Comu-
nista quanto na I e na II Internacionais, de que o socialismo se realizaria
em escala mundial, uma ideia oposta à do socialismo em um só país do
stalinismo. Para Marx e Engels, o desenvolvimento internacional do ca-
pitalismo determina o caráter internacional da revolução proletária.
Isso mostra como o stalinismo é oposto a Marx e Engels e o retrocesso
que a teoria do “socialismo em um só país” significou.

[9]
Vide, entre outros, A Falência da II Internacional (1915).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 75

Stalin teve que liquidar fisicamente a ala revolucionária, que lutou


para manter as bases programáticas e teóricas de Marx e de Engels: a
oposição de esquerda na URSS e seu principal dirigente, Trotsky.
Entre aqueles que consideram os textos de Engels como os precurso-
res do stalinismo, existe outra vertente: aquela que critica a proposta de
chegar ao socialismo apenas por meio da tomada do poder pela classe
operária e a destruição do estado burguês. Segundo eles, seria uma visão
reducionista, por ser de classe, o que necessariamente levaria a uma visão
destrutiva e autoritária expressa na defesa da ditadura do proletariado.
Para este tipo de posição, Engels cometia o pecado de não ver o papel
da política, das mediações no terreno do Estado, variantes das medidas
de corte “democrática radical”.
Essa corrente de pensamento teve grande difusão e atingiu uma série
de setores que se reivindicavam marxistas, inclusive uma corrente que
surgiu do trotskismo, a maioria do Secretariado Unificado da IV inter-
nacional, cujo maior dirigente e teórico foi Ernst Mandel. Já nos anos
70-80, este refletia a pressão do eurocomunismo para abandonar a defesa
da ditadura do proletariado. Após a restauração do capitalismo no leste
europeu, teóricos como Daniel Bensaïd e Michael Lowy levaram-na a
uma dinâmica em direção ao reformismo. No Brasil, Juarez Guimarães,
dirigente e teórico da DS, uma tendência do PT, em seu livro Democracia
e Marxismo[10], acusa Engels de só ver como saída socialista a ditadura
do proletariado, numa perspectiva classista (para ele equivocada). Coe-
rente com essa interpretação, Guimarães passou a defender uma “revo-
lução democrática” e a combater a “ditadura do proletariado”[11].

[10]
GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo, São Paulo: Xamã, 1999.
[11]
Em seu texto “Marx e a Revolução democrática”, publicado em Democracia Socialista nº 1,
dezembro de 2013.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


76 José Welmowicki

É verdade que Guimarães identifica a origem dos problemas em


Marx, onde já haveria “tensões constitutivas”. Ou seja, haveria contradi-
ções entre o determinismo presente em obras como O Capital e o Prólogo
à Contribuição da Crítica da Economia Política e uma visão “praxiológica
da história”, presente em obras anteriores, como o 18 Brumário de Luiz
Bonaparte[12]. Engels seria responsável pela “primeira onda determinista”,
que acabaria por preparar o terreno para o determinismo de Kautsky e
do “DIAMAT”[13] de Stalin.
De uma forma bastante superficial, com citações fora do contexto e
interpretadas de maneira unilateral, Guimarães afirma que, a partir do
Anti-Dühring, Engels teria uma visão de que “o marxismo seria, então,
compreendido de forma dual: materialismo histórico (a ciência da socie-
dade e da natureza) e materialismo dialético (o estudo das leis do conhe-
cimento). O Capital seria a expressão máxima do primeiro e a
sistematização contida na obra filosófica de Engels, a referência fundante
para a edificação do segundo. O edifício dogmático do marxismo estava
de pé, subordinando ou restringindo o mundo polimórfico e variante da
política às rígidas certezas das ciências, paradoxalmente, ancorando toda
esta construção em um método exterior e datado do paradigma das ciên-
cias naturais da época”.
De forma semelhante a Benoit, Guimarães coloca-se contra o mate-
rialismo dialético e histórico e acusa Engels de ser o responsável pela
construção do “edifício dogmático” do marxismo, que seria depois as-
sumido pelo stalinismo. Guimarães cita as cartas de Engels a Joseph
Bloch e C. Schmidt de 1890, comentando que seu conteúdo apenas “re-
vela as inconsistências lógicas contidas no sistema formulado por En-

[12]
Segundo Juarez Guimarães, essa posição de Marx teria primado no período 1845-1857.
[13]
Sigla com que se notabilizou o chamado “materialismo dialético” do período stalinista.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 77

gels”[14], embora justamente nelas Engels alertasse contra a distorção de


alguns seguidores, a ponto de tornar “absurda” a concepção marxista.
Na verdade, o que Guimarães questiona é que a política tenha que se
basear numa concepção materialista da história, elaborando sua proposta
a partir da definição das bases econômicas e sociais concretas da socie-
dade, em uma perspectiva de classe. Para ele, isso seria “subordinar ou
restringir o mundo polimórfico e variante da política”, embora Engels jus-
tamente alerte contra alguns seguidores que tentam extrair das suas ela-
borações e de Marx conclusões materialistas vulgares e deterministas,
baseadas exclusivamente na estrutura econômica da sociedade, o que
Engels refuta com firmeza, dizendo que é necessário entender a relação
entre a economia e as formas políticas, jurídicas e culturais não de forma
mecânica, mas sim a existência de uma ação recíproca entre os fatores
superestruturais, culturais, ou ideológicos da sociedade e a economia,
deixando nítido que estes seguidores não compreenderam que a deter-
minação econômica prevalece em última instância, não como uma rela-
ção direta e mecânica[15].
Podemos deduzir que, para Guimarães, no mundo polimórfico da po-
lítica, as propostas devem ser completamente autônomas da base social
e econômica, abandonando a visão marxista contida em A Ideologia
Alemã.
[14]
GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo. São Paulo: Xamã, 1999, p. 83.
[15]
Na carta de Engels a Bloch, Londres 21/22 de setembro de 1890: “(...) Segundo a concepção
materialista da história, o fator que, em última instância determina a história é a produção e a re-
produção da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos uma vez sequer, algo mais do que isso. Se
alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela
tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores
da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados,
as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurí-
dicas e, inclusive os reflexos de todas essas lutas no cérebro dos que nela participam, as teorias po-
líticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a …

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


78 José Welmowicki

Rosa Luxemburgo recorre a Engels


na luta contra os reformistas da II internacional

Vejamos como os revolucionários que encabeçaram o combate teórico


e político contra a degeneração reformista da II Internacional e, depois,
contra a contrarrevolução stalinista, apelaram a ensinamentos deixados
por Engels.
Comecemos dizendo algo sobre Rosa Luxemburgo. Rosa havia sido a
vanguarda do combate ao revisionismo de Eduard Bernstein, já em 1899
em seu texto clássico, Reforma e Revolução. Rosa nunca aceitou a tentativa
de Bernstein de pintar a Engels como se tivesse se transformado em um
reformista ao final de sua vida. Coerente com essa posição, em seu famoso
texto escrito na prisão, em que faz a denúncia da traição da Social demo-
cracia na I Guerra, A crise da social democracia, conhecido como o Pan-
fleto Junius, ela se apoia nas elaborações de Engels para contestar a posição
do Partido social democrata e da maioria da IIª Internacional:

Os homens não fazem arbitrariamente a história, mas, apesar disso, fazem-na eles
mesmos. A ação do proletariado depende do grau de maturidade do desenvolvi-
mento social, mas o desenvolvimento social não é independente do proletariado.
Este é em igual medida sua força motriz e sua causa, assim como seu produto e
sua consequência. Sua própria ação faz parte da história, contribuindo para de-
terminá-la (…)

(cont. nota 15) … converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência nas lutas
históricas e, em muitos casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um
jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita
multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão di-
fícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-
se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a uma
época histórica qualquer seria mais fácil do que resolver uma simples equação de primeiro grau.
Nós mesmos fazemos nossa história, mas isso se dá, em primeiro lugar, de acordo com premissas e
condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições econômicas as que decidem em
última instância.”

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 79

(…) é por isso que Friedrich Engels chama a vitória definitiva do proletariado de
salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade. Este salto também
está ligado às leis de bronze da história, aos mil elos de um desenvolvimento an-
terior, doloroso e demasiadamente lento. Mas nunca poderia ser realizado se do
conjunto dos pré-requisitos materiais acumulados pelo desenvolvimento não bro-
tasse a centelha da vontade consciente das grandes massas populares[16].

Lenin teria superado Engels e seu ‘mecanicismo’?

Existe uma outra lenda também transmitida por diversos autores que
Lenin teria superado Engels no terreno filosófico. Entre eles, Raya Du-
nayevskaia, fundadora do marxismo humanista[17], e que fez a primeira
tradução ao inglês dos Cadernos Filosóficos de 1915.
No entanto, vejamos a verdadeira história. Na homenagem a Engels,
quando este falece em 1895, Lenin disse:

A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idea-


lista. Do desenvolvimento do espírito, a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvi-
mento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade.
Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento, Marx
e Engels rejeitaram a sua preconcebida concepção idealista; analisando a vida real,
viram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o da natureza, mas
que, pelo contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da maté-
ria... Contrariamente a Hegel e outros hegelianos, Marx e Engels eram materia-
listas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade,
verificaram que, tal como todos os fenômenos da natureza têm causas materiais,

[16]
LUXEMBURGO, Rosa. Panfleto Junius, A crise da social-democracia (1915).
[17]
Ela manteve um intenso intercâmbio de ideias com Marcuse e Erich Fromm. No livro Filosofia
e revolução, prefaciado por Fromm, ela afirmaria: “Em contraste com a perspectiva multilinear,
graças à qual Marx se absteve de traçar um programa para as gerações futuras, a interpretação
unilinear conduziu Engels pelo caminho do positivismo e o mecanicismo”. Filosofía y revolución,
México, cap.9, p. 329.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


80 José Welmowicki

igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desen-


volvimento de forças materiais, as forças produtivas[18].

Em 1913, Lenin escreve As 3 fontes e as três partes constitutivas do


marxismo e, em 1914, escreve, para uma enciclopédia, Karl Marx, um
Breve Esboço Biográfico seguido de uma Exposição do Marxismo, em que
mantém a mesma compreensão do texto de 1895.
Os Cadernos Filosóficos são a edição de um caderno de anotações de
Lenin sobre suas leituras dos clássicos de Hegel durante a I Guerra Mun-
dial, decisivas para o avanço da elaboração do principal dirigente do Par-
tido bolchevique em relação ao caráter da Revolução russa, ao
imperialismo, e para entender as raízes da falência da II Internacional e
seu revisionismo. Esse estudo, portanto, foi decisivo para Lenin avançar
em sua elaboração.
Mas vários intelectuais usam-nos como uma suposta demonstração
da superação dos limites de Engels por Lenin. Segundo eles, Lenin teria
seguido Engels acriticamente até 1914, mas, ao ler Hegel, deu-se conta
dos erros de Engels e passou a negá-lo e superá-lo. Como eram cadernos
de anotações de suas leituras, são formados por observações pontuais
para sua auto compreensão e uso posterior. Mesmo assim, não é difícil
perceber que é falsa a interpretação de que Lenin questiona Engels em
uma forma semelhante à desses intelectuais. Em relação ao tema da dia-
lética da natureza e a elaboração de Engels, Lenin fez os seguintes co-
mentários, a partir da leitura de Hegel:

‘Na natureza’, os conceitos têm ‘carne e osso’ – isso é excelente! Mas isso é exa-
tamente materialismo. Os conceitos humanos são a alma da natureza – isso é
apenas uma maneira mística de dizer que, nos conceitos humanos, a natureza

[18]
LENIN, V. I. Friedrich Engels, 1895.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 81

reflete-se de modo peculiar (isso NB[19]: de modo peculiar e dialético!!), NB De


onde vem essa coincidência?[20] De Deus (eu, ideia, pensamento, etc., etc.) ou
da natureza? Engels tem razão em seu modo de colocar a questão[21].

Como se elucida na edição da Boitempo editora, Lenin apoia-se no


texto de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã para
mostrar que a dialética se aplica à natureza, mas de modo peculiar, ou
particular, assim como faz Engels em seu texto.

O conceito (o conhecimento) revela no ser (nos aparecimentos imediatos) a essên-


cia, a lei da causa, da identidade, da diferença, etc. – é esse realmente o curso
geral de todo conhecer (toda a ciência) humano em geral. Esse é o curso tanto da
ciência da natureza como da economia política ‘e da história’. A dialética de
Hegel é, nessa medida, a generalização da história do pensamento. Parece uma
tarefa extraordinariamente grata seguir isso mais concretamente, mais detalha-
damente, na história das ciências singulares. Na lógica, a história do pensamento
deve, no geral, coincidir com as leis do pensamento[22].

Mais uma vez Lenin afirma ter a mesma posição de Engels (e Marx):
a dialética se aplica tanto nas ciências naturais quanto na história. Mais
adiante, ele volta a ressaltar que a ciência natural mostra as mesmas leis
da dialética, aplicadas à natureza:

… a ciência da natureza contudo mostra-nos (e aqui, mais uma vez, é preciso


mostrar isso em qualquer exemplo simplicíssimo) a natureza objetiva em suas
próprias qualidades, a transformação do singular no universal, do contingente no
necessário, transições, fluíres, e a conexão mútua dos opostos...[23].

[19]
Nota Bene - termo latino que significa ‘preste atenção’.
[20]
LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo Ed. (2010), p. 291.
[21]
Idem, p. 292. Nessa citação há uma Nota da edição da Boitempo: ver “Engels, Ludwig Feuer-
bach e o fim da filosofia clássica alemã”, cit. p. 390. (Os negritos de Lenin, os destaques em itálica
são meus).
[22]
Idem, p. 326. (Os negritos e destaques são de Lenin).
[23]
Idem, p. 335.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


82 José Welmowicki

A afirmação de que Lenin “supera o determinismo de Engels” é base-


ada em uma citação:

A exatidão deste aspecto do conteúdo da dialética deve ser comprovada por meio
da história da ciência. Habitualmente (por exemplo, em Plekhanov) dá-se insufi-
ciente atenção a este aspecto da dialética: a identidade dos opostos é tomada como
somatório de exemplos (‘por exemplo, o grão’; ‘por exemplo o comunismo primi-
tivo’. Isso também em Engels. Mas isto ‘a fim de popularizar’ e não como lei do
conhecimento (e lei do mundo objetivo)[24].

A única coisa que Lenin diz, ao criticar o materialismo de Plekhanov,


para quem a identidade dos opostos é tomada como soma de exemplos
e transformada em lei do conhecimento, é que Engels, sem cair nesse
tipo de interpretação mecânica, apresenta alguns problemas em textos
de divulgação.
Enfim, na quase totalidade dos casos, Lenin cita Engels para reivin-
dicar sua elaboração filosófica nos livros Anti-Dühring e Ludwig Feuer-
bach e o fim da filosofia clássica alemã, e como base de apoio para suas
críticas a Hegel.
Anos depois, em 1922, Lenin faz uma conferência na Academia de
Ciências da URSS, publicada sob o título O materialismo militante, onde
ele se refere com toda clareza à necessidade de aplicar o materialismo
dialético às ciências naturais, em forma semelhante a Engels:

E, para não abordar semelhante fenômeno de um modo inconsciente, devemos


compreender que, sem uma sólida fundamentação filosófica, não há ciência da
natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra a investida das ideias
burguesas e o restabelecimento da concepção burguesa do mundo [...] Os cientistas
modernos encontrarão (se souberem procurar e se nós aprendermos a ajudá-los)

[23]
Ídem, p. 335.
[24]
Ídem, p. 331 (negritas de Lenin).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 83

na interpretação materialista da dialética de Hegel uma série de respostas às ques-


tões filosóficas colocadas pela revolução nas ciências naturais e que fazem ‘esco-
rregar’ para a reação os admiradores intelectuais da moda burguesa[25].

Como se pode ver, Lenin, em seu processo de elaboração sobre a dia-


lética materialista, teve importantes avanços, mas mantendo um ponto
de vista idêntico a Engels sobre a relação natureza, homem e sociedade
e sobre a aplicação da dialética na natureza e, portanto, nas ciências na-
turais.

Trotsky e Engels

O grande dirigente da Revolução russa e fundador da IV Internacio-


nal defendeu o materialismo dialético durante toda sua trajetória, e a
aplicação da dialética à ciência, como fizeram Engels e Lenin. Na luta
contra a burocracia stalinista, escreveu o texto As tendências filosóficas
do burocratismo, de dezembro de 1928, onde afirma:
Que, claro, é a principal função social da burocracia e a fonte de sua preeminência
- inevitavelmente deixa uma impressão bem marcada em todo o seu modo de pen-
sar. Não é por acaso que palavras como 'burocrático' e 'formalismo' se aplicam
não apenas a um sistema de administração ou gestão, mas também a um modo
definido de pensamento humano ... Essas características também podem ser en-
contradas na filosofia (...) O materialismo não rejeita os fatores, assim como a
dialética não rejeita a lógica. O materialismo usa os fatores como um sistema de
classificação dos fenômenos que surgiram historicamente - qualquer que seja o
modo em que sua essência espiritual possa ser 'delimitada' - a partir das forças
produtivas subjacentes e das relações sociais e das bases naturais, históricas, isto
é, materiais, da natureza (…) Não há dúvida de que uma aplicação consciente da

[25]
“El significado del materialismo militante”, 1922 en Obras Completas, Tomo 45, ed. Progreso
(original em espanhol, tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


84 José Welmowicki

dialética materialista às ciências naturais, com uma compreensão científica da in-


fluência da sociedade de classes nos objetivos, métodos, nos objetivos da investi-
gação científica, enriqueceriam as ciências naturais e as reestruturariam em
muitos aspectos, revelando novos laços e conexões, e dando às ciências naturais
um lugar de importância renovada em nossa compreensão do mundo (...)[26].

Pouco antes de ser assassinado, em 1939, Trotsky volta sobre o assunto


no livro Em defesa do marxismo:
Chamamos “materialista” a nossa dialética porque suas raízes não estão no céu,
nem nas profundezas do “livre-arbítrio”, senão na realidade objetiva, na natureza.
A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico
do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os graus dessa escala de
desenvolvimento, as mudanças quantitativas se transformaram em qualitativas.
Nosso pensamento, inclusive o pensamento dialético, é apenas uma das formas de
expressão da matéria mutável. Neste sistema não existe lugar nem para Deus, nem
para o Diabo, nem para a alma imortal, nem normas eternas de leis e morais. A
dialética do pensamento, tendo surgido da dialética da natureza, possui em con-
sequência um caráter profundamente materialista[27].

Por que reivindicar Engels contra os ataques infundados


é decisivo hoje para desenvolver o marxismo?

Não estamos diante de uma discussão abstrata. As correntes que ques-


tionaram Engels em nome de um marxismo “crítico”, “autêntico”, “hu-
manista”, cresceram na esteira da crise do stalinismo e foram ganhando
peso especialmente no chamado “marxismo acadêmico”.
Muitos, em nome de um marxismo “não determinista”, afastaram-se
da concepção materialista da história, negando que ela possa ter qualquer
desenvolvimento dialético. Terminaram, assim, golpeando os pilares do

[26]
“Las tendencias filosóficas del burocratismo”, in Escritos filosóficos. Buenos Aires: CEIP, 2011,
p. 157 y pp. 159-160 (original em espanhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 85

marxismo. Como demonstraram Havemann e Trotsky o stalinismo é


uma distorção total de Marx e Engels, e não a “extensão” das posições de
Engels, que seria uma suposta primeira onda determinista ou uma versão
cientificista do marxismo.
Por outro lado, recusar a ideia clássica mecanicista de que o futuro
esteja plenamente determinado não pode levar à conclusão de que o fu-
turo esteja plenamente indeterminado. Como diz Havemann, “o futuro
está codeterminado pelo passado, mas não está determinado de um modo
definitivo e absoluto”, ou, em palavras de Marx em O 18 Brumário:

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos[28].

Na origem do stalinismo, tanto os adversários declarados do mar-


xismo como o próprio Stalin divulgavam a ideia de que sua “doutrina”
era a real continuidade de Lenin. Os stalinistas opunham Trotsky a
Lenin, falsificando a história e se colocando como os continuadores de
Lenin, atacando o trotskismo.
Em que pontos atacavam Trotsky? Justamente nos princípios do in-
ternacionalismo, na visão de que a revolução socialista não deveria passar
por uma etapa burguesa nos países atrasados, nem haveria uma separa-
ção mecânica entre os países maduros ou não para o socialismo. Todos
eram pontos nos quais Trotsky tinha profundo acordo com Lenin de
1917 em diante.

[27]
TROTSKY, León. En defensa del marxismo. Disponível em:
https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1940s/dm/09.htm#03 (original em espanhol, tradução
nossa).
[28]
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: ed. Escriba, 1968, p. 15.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


86 José Welmowicki

A recusa do materialismo histórico pelos anti-engelsistas abre o te-


rreno, por um lado, para a defesa do acaso absoluto na história, onde o
que prevalece é nossa consciência. Portanto, tenta nos convencer da vir-
tude da democracia, da igualdade e da justiça para que, dessa forma, a
humanidade chegue em forma orgânica ao socialismo. Nesse caso, ele
seria essencialmente fruto da afirmação de um ideal, uma proposta ética,
de cunho moral, não uma proposta cientifica baseada na realidade, de
uma análise rigorosa e verificável das tendências do desenvolvimento da
nossa sociedade.
Isto não tem nada a ver com as posições de Marx e Engels, com o so-
cialismo científico. Estaríamos de volta, por mais que esses setores não
o mencionem, ao socialismo utópico, à defesa do “homem novo”, da es-
sência humana, etc. Em pleno século XXI, isso se materializa na proposta
de uma democracia radical como sucedânea do socialismo.
Contra os socialistas utópicos do século XIX, Engels assinalou a ne-
cessidade de se basear no desenvolvimento real da sociedade e do domí-
nio crescente do homem sobre a natureza e, ao mesmo tempo, na
contradição antagônica entre o caráter social da produção e sua apro-
priação individual pelos capitalistas.
Para Benoit, só existem leis no capitalismo. As teses de Benoit levam
a um reducionismo que limita o marxismo ao estudo da sociedade capi-
talista. Considera o materialismo histórico, assim como o materialismo
dialético, um “sistema naturalista-positivista que permitiria prever o
curso da natureza e da história”, que, portanto, deveria ser abandonado
como herança nefasta do stalinismo apoiado no “derradeiro Engels”.
Benoit deixa o proletariado sem qualquer ferramenta teórica, pois
nega a possibilidade de se ter uma teoria que permita ter uma perspectiva
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020
A 200 anos do nascimento de Engels 87

histórica. Qual seria a guia para a estratégia da revolução? Como escre-


veu Trotsky, essa concepção materialista da história foi que permitiu ela-
borar o Manifesto Comunista em 1847, que foi aplicada de modo
magistral em O 18 Brumário e outras obras de Marx e Engels.
Toda a elaboração posterior, incluindo as de Lenin e Trotsky, a Teoria
da Revolução permanente, as Teses da III Internacional e o programa da
IV, se apoia numa análise materialista da história da sociedade capitalista,
uma análise marxista da sociedade, da economia e da luta de classes.
Como seguir desenvolvendo o programa revolucionário, sem uma
concepção materialista da história? Apoiando-se somente na crítica da
economia política? Essa posição aparentemente esquerdista acaba des-
armando a classe operária para ter um programa e responder às tarefas
políticas concretas.
Trotsky, em sua elaboração da teoria da revolução permanente, expli-
cava que se baseia na aplicação consequente do materialismo histórico à
realidade concreta e contra o materialismo vulgar:
Imaginar que a ditadura do proletariado é de alguma forma automaticamente de-
pendente do desenvolvimento técnico e dos recursos de um país é um preconceito
do materialismo ‘econômico’ simplificado ao absurdo. Este ponto de vista nada
tem em comum com o marxismo[29].

O primeiro programa operário escrito por Marx e Engels, o Manifesto


Comunista, foi baseado no materialismo histórico. Em suas páginas estão
concentradas as descobertas feitas um pouco antes pelos fundadores do
marxismo e transformadas em um guia de ação para todos os militantes
revolucionários, que continua válido até hoje.

[29]
TROTSKY, Leon. Resultados e Perspectivas (1906).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


88 José Welmowicki

Trotsky, em seu texto “90 anos do Manifesto Comunista”, afirma:

1. A concepção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes


da aparição do texto e que nele se encontra aplicada com perfeita maestria, resistiu
completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Consti-
tui-se, atualmente, em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento hu-
mano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo
significado científico. Podemos afirmar, com segurança, que atualmente é impos-
sível não apenas ser um militante revolucionário, mas simplesmente um observa-
dor politicamente instruído sem assimilar a concepção materialista da História.

2. ‘A história de todas as sociedades até os nossos dias não foi senão a história
das lutas de classes’. O primeiro capítulo do Manifesto começa por esta frase. Esta
tese, que constitui a mais importante conclusão da concepção materialista da His-
tória, em pouco tempo transformou-se em elemento da luta de classes. A teoria
que trocava o ‘bem estar comum’, a ‘unidade nacional’ e as ‘verdades eternas da
moral’ pela luta entre interesses materiais, considerados como a força motriz da
História, sofreu ataques particularmente ferozes da parte de reacionários hipócri-
tas, doutrinários liberais e democratas idealistas. A eles acrescentaram-se mais
tarde, desta vez a partir do próprio movimento operário, os ataques dos chamados
revisionistas, isto é, dos partidários da revisão do marxismo em favor da colabo-
ração e conciliação de classes. Finalmente, em nossa época, os desprezíveis epígonos
da Internacional Comunista (os stalinistas) tornaram o mesmo caminho: a política
daquilo a que se dá o nome ‘frentes populares’ decorre, inteiramente, da negação
das leis da luta de classes. Entretanto, vivemos na época do imperialismo que, le-
vando todas as contradições sociais ao seu extremo, demonstra o triunfo teórico
do Manifesto do Partido Comunista[30].

Essas palavras de Trotsky nos alertam contra os que querem separar


a teoria do programa, desprezar a contribuição de Engels ao marxismo

[30]
TROTSKY, Leon. “A 90 anos do Manifesto Comunista”, 1937.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 89

e abandonar a concepção materialista da história. Essa postura só pode


abrir espaço para um idealismo tardio, que acaba por propor uma saída
por dentro do capitalismo, ou para um desarmamento teórico na elabo-
ração do programa revolucionário.

***

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 69­89 ­ Novembro de 2020 ­


TERIA ENGELS SE TRANSFORMADO EM
UM REFORMISTA NO FINAL DE SUA VIDA?

Marcos Margarido – Brasil

Em 1895, Engels preparou uma coletânea de artigos de Marx sobre a


revolução de 1848 na França, publicados anteriormente na Neue Reinish
Zeitung, a pedido de Richard Fischer, membro da direção nacional do
Partido Socialista da Alemanha, o futuro Partido Social-democrata ale-
mão (SPD).
Engels também concordou em escrever um prefácio, mas, além do
curto prazo para finalizá-lo, deveria evitar menções diretas à necessidade
de derrubada do governo pela via revolucionária, devido à discussão no
parlamento de um projeto de lei, chamado de “Lei Antissubversão”[1],
que tinha como objetivo reeditar a lei antissocialista que baniu o SPD
por 12 anos, entre 1878 e 1890, da vida política legal da Alemanha, o
que não o impediu de ter um crescimento sindical e parlamentar verti-
ginoso.
Seu Prefácio ao As Lutas de Classes na França – 1848-1850 de Karl
Marx, ou Introdução, sofreu alterações, deturpações e falsificações de
[1]
A lei antissubversão foi uma tentativa de banir, pela segunda vez, o partido social-democrata
alemão, desta vez sob o disfarce de uma lei mais abrangente. Ela estava em discussão no parla-
mento em 1895, mas nunca chegou a ser aprovada.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 91

tal monta que se converteu em um dos documentos mais enigmáticos


da história do marxismo.
Por um lado, os setores reformistas do SPD, capitaneados por Berns-
tein, e de outros partidos socialistas reivindicavam a Introdução como
uma mudança estratégica da concepção de Engels sobre os meios de se
chegar ao socialismo. De acordo com esta interpretação, os meios vio-
lentos, simbolizados pelas lutas de barricadas nas revoluções de 1848,
demonstraram sua inutilidade e a via pacífica através da conquista de
uma maioria parlamentar seria agora a única opção para aquele obje-
tivo.
Por outro lado, setores ultraesquerdistas de todos os quilates acusam
Engels de ter capitulado ao reformismo e renegado seu passado revolu-
cionário ao lado de Marx. Engels seria, assim, um dos inspiradores da
política de traição da II Internacional em 1914, quando seus partidos
(com exceção do POSDR e dos partidos italiano e sérvio) aderiram ao
esforço de guerra dos governos de seus países, abandonando a tradição
internacionalista com a qual o próprio Engels e Marx haviam dotado o
movimento operário a partir do Manifesto Comunista e consolidado
com a fundação da I Internacional.
São, portanto, duas faces da mesma moeda, que chegam a uma con-
clusão idêntica: a do Engels pacifista e reformista. A “prova indiscutível”
é a Introdução aos artigos de Marx.
Não pretendemos aqui recapitular sua história atribulada. Para isso,
recomendamos a leitura do excelente artigo de Francesco Ricci, O “tes-
tamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas, na revista
Marxismo Vivo - Nova Época n.° 11, mas faremos referências às trocas
de cartas de Engels com Fischer, Kautsky, Lafargue, que mostram com
clareza suas posições em relação à publicação de seu texto.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­
92 Marcos Margarido

Porém, é necessário esclarecer desde já a primeira e mais simbólica de-


turpação: o nome de “testamento político” dado à Introdução. Bernstein
cunhou este termo para dar-lhe uma importância transcendental - que
nunca foi dada por Engels - para utilizá-lo como uma prova do apoio de
Engels à sua nova concepção de marxismo, expressada principalmente em
Socialismo Evolucionário[2]. Engels estava envolvido em projetos muito
mais importantes, como a publicação do Livro 3 do Capital em outras lín-
guas, que envolvia escrever prefácios, ou a reedição do seu Guerras Cam-
ponesas na Alemanha com um novo prefácio, e uma biografia de Marx,
que “nos últimos anos, eu tinha pensado em escrever, a partir de material
em minha posse, ... e, de fato, é isto, como é a parte mais importante [de seus
objetivos, nda], que eu farei primeiro”, conforme carta a Kautsky em 25 de
março de 1895. Além disso, nunca existe, para um marxista, uma palavra
final, escrita em testamento, sobre questões teóricas e políticas.

A relação entre Marx e Engels e o partido alemão

Após as revoluções de 1848, Marx e Engels tiveram que se exilar, na


maior parte do tempo, na Inglaterra. Assim, sempre orientaram os
socialistas alemães de fora do país. E sempre houve uma tensão entre
eles e os dirigentes alemães, que eram pressionados pela realidade local
e carentes de uma formação teórica e programática. Segundo Riazanov[3],
eles eram conscientes da baixa formação teórica dos dirigentes que
estavam sob sua influência direta, os eisenachianos. O primeiro fato
importante em que ficou mais evidente essa fragilidade foi a discussão
ao redor do programa de unificação entre os eisenachianos (com Bebel e
[2]
Publicado no Brasil pela Editora Jorge Zahar (1977).
[3]
RIAZANOV, David. Marx-Engels e a História do Movimento Operário. São Paulo: Global Edi-
tora (1984).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 93

Liebknecht à frente) e os lassalleanos[4] no Congresso de Gotha (1876),


que resultou em uma carta de Engels a Bebel e em um texto de Marx, que
ganhou o peso de um clássico, conhecido como Crítica ao Programa de
Gotha.
Outro fato que os alarmou foi o estrago causado no partido pelo
trabalho do Dr. Dühring, um professor universitário, no final dos anos
1870, a ponto de obrigar Engels, com a colaboração de Marx, a dedicar
uma série de artigos na revista do partido alemão para polemizar com
esse intelectual, depois reunidos no livro conhecido como o Anti-Dühring.
Há uma série de correspondências específicas nesses anos, como a
circular de 1879[5], na qual ambos classificam impiedosamente um grupo
sediado em Zurique como pequenos burgueses que querem retornar ao
socialismo verdadeiro[6] e contagiar o SPD com ideias reformistas. En-
gels, que continuou residindo na Inglaterra após a morte de Marx, man-
teve essa relação com a direção do SPD, assim como com outros partidos
da II Internacional, após sua fundação, como o francês, o italiano, etc.
Engels manteve as críticas aos erros políticos da direção do SPD, tais
como os desvios pacifistas de dirigentes que, impactados pelo sucesso
obtido na representação parlamentar e pressionados pelas leis repressoras
de Bismarck, tendiam a transformar a tática em estratégia. Isso passa a
se manifestar em forma permanente, inclusive no episódio da Introdução
de 1895.
Em 9 de março de 1890, por exemplo, ele advertia em carta a Liebk-
necht quanto à insistência em uma política pacifista permanente:

[4]
Seguidores de Ferdinand Lassalle, que faleceu em um duelo em 1864.
[5]
MARX, K. Y ENGELS, F. Circular Letter to August Bebel, Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke
and Others. M&E Collected Works, V. 24. Ed. Lawrence & Wishart (2010), p. 253.
[6]
Refere-se a uma corrente socialista da Alemanha, “adequadamente criticada no Manifesto [Co-
munista]”.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


94 Marcos Margarido

Isto é algo que devemos evitar. Não devemos, em nosso progresso triunfante, nos
deixar desviar de nosso propósito, não devemos estragar nosso próprio jogo ou im-
pedir nossos inimigos de fazer nosso trabalho por nós. Portanto, concordo com
você ao ponto de dizer que, por hora, devemos nos comportar da maneira mais
pacífica e constitucional possível e evitar todo pretexto para um confronto. Porém,
na verdade, seus discursos contra o uso da força em qualquer forma e sob qualquer
circunstância parecem-me inoportunos, primeiro porque nenhum de seus adver-
sários acreditaria em você, eles não são tão estúpidos quanto a isso e, segundo,
porque sua teoria transformaria até mesmo a Marx e a mim mesmo em anarquis-
tas, já que nunca estivemos inclinados, como bons Quakers, a dar a outra face.
Desta vez, você definitivamente ultrapassou um pouco os limites (M&E Collected
Works, V. 48, p. 459).

Isto é, mesmo quando Engels concordava em não dar pretexto para


um golpe por parte do governo, deixava claro que esta era uma tática que
estava correta “por hora”, mas não podia ser transformada em uma es-
tratégia, como Liebknecht deixava transparecer em alguns discursos no
parlamento.
A imagem cristã de “dar a outra face” ao inimigo era frequentemente
utilizada por Engels ao descrever esse tipo de política pacifista da direção
do partido. A sua era o oposto:
… se derem o primeiro tiro, não daremos a outra face, mas atacaremos com nossos
batalhões de operários e soldados e derrubaremos o império alemão, pois sabemos
manejar as armas mais modernas, pistolas de agulha e canhões estriados tão bem
quanto vocês, como veremos na Introdução[7].

O contexto histórico em que Engels interveio

Muitas das versões sobre o suposto reformismo de Engels partem de

[7]
Esta afirmação pode ser inferida de vários de seus textos e cartas, como a própria Introdução
(M&E Collected Works, V. 27, p. 506), Socialismo na Alemanha (M&E Collected Works, V. 27, p.
235), As eleições de 1890 na Alemanha (M&E Collected Works, V. 27, p. 3), “Carta a Fischer (M&E
Collected Works, V. 50, p. 457), entre outros.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 95

uma visão anacrônica, ou seja, analisam sua política como se ele vivesse
em uma época e uma etapa posteriores da luta de classes. Por isso, é im-
portante recordar alguns elementos do contexto histórico em que Marx
e Engels viveram, ou seja, qual era a etapa da luta de classes, a situação
da Alemanha e da Europa.
Foi Lenin (precedido por Hilferding e Bukharin), em 1916, que con-
solida o termo imperialismo como uma nova época do sistema capita-
lista, seu auge e fase final.
No mesmo livro, Imperialismo, fase superior do capitalismo, ele des-
envolve uma explicação dos fundamentos econômicos para o surgimento
do reformismo no seio dos partidos social-democratas, cuja base social
ele chamou de aristocracia operária.
A época imperialista teve início na virada do século 19 para o século
20 com o surgimento do chamado capital financeiro, a fusão do capital
bancário com o industrial. Os monopólios, as sociedades por ações, a co-
lonização de países de outros continentes adquiriam um novo significado
a partir da análise de Lenin: o capitalismo atingia seu máximo desenvol-
vimento social, técnico e econômico; abria-se uma época de guerras e
revoluções socialistas, mesmo em países menos desenvolvidos economi-
camente, como a Rússia, devido à unidade do sistema capitalista-impe-
rialista.
É claro que Engels já pressentia mudanças fundamentais na economia
capitalista. A formação de monopólios e as sociedades por ações não eram
novidades, seu estudo era parte do Livro 1 do Capital, de Marx, quando
ele analisa a concentração e centralização do capital. Mas o capitalismo
dá um salto após sua morte, e eleva países capitalistas com desenvolvi-
mento posterior, como a Alemanha e os Estados Unidos, ao mesmo nível
que a Inglaterra, o país capitalista mais avançado até então.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­
96 Marcos Margarido

Em seus últimos anos de vida, os países europeus já viviam disputas


que poderiam desembocar em guerras, como o próprio Engels previu,
antecipando em vários anos a eclosão da primeira guerra mundial em
alguns de seus textos[8]. Mas, tratavam-se, ainda, de guerras pelos inte-
resses nacionais, como a disputa pela Alsácia-Lorena, que a França havia
perdido para a Alemanha devido à sua derrota na guerra franco-prus-
siana de 1871.
Do ponto de vista social, as tarefas também se desenvolviam sob um
prisma nacional. As revoluções inglesa ou francesa seriam socialistas,
mas, na Alemanha, Rússia ou Itália a tarefa era a revolução democrática
burguesa, pela república. Nestes países, apesar de uma economia capita-
lista relativamente desenvolvida nas cidades, com um proletariado po-
deroso, principalmente na Alemanha, o domínio político e suas
instituições pertenciam às castas feudais, como os Junkers na Alemanha,
com base social no campo ainda atrasado. Embora Marx e Engels tenham
avançado, logo após as revoluções de 1848, nas considerações sobre o
caráter da burguesia e a necessidade de construir desde já a alternativa
do proletariado nesse processo, ainda não tinham chegado a uma con-
clusão sobre o caráter da revolução nos países em que havia predomínio
político das monarquias absolutistas e em que as revoluções burguesas
haviam sido derrotadas, como na Alemanha, ou no Império Austro-
Húngaro, em 1848.
Essa discussão voltou a ter importância apenas no início do século
XX: os fundadores do marxismo russo viam as tarefas da revolução em
seu país como democráticas burguesas, mas a revolução russa de 1905
abriu a polêmica sobre seu caráter.
[8]
Ver, por exemplo, Engels, Socialism in Germany. M&E Collected Works, V. 27. Londres: Ed.
Lawrence & Wishart (2010), p. 235.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 97

Em Balanço e Perspectivas, Trotsky anunciava a unidade da revolução


socialista europeia a partir da análise das particularidades do desenvol-
vimento econômico russo: “Mas agora já podemos formular a pergunta:
‘a ditadura do proletariado deve, obrigatoriamente, confinar-se nos marcos
determinados pela revolução burguesa, ou pode, sobre as bases da história
universal, abrir para si a perspectiva da vitória, rompendo esse marco li-
mitado?’”[9] (grifo nosso)
Trotsky conclui dizendo que não restaria alternativa ao destino da re-
volução russa a não ser ligar-se ao destino da revolução socialista de toda
a Europa. Sua interpretação, na qual o imperialismo já era levado em
conta, embora sem ser mencionado, foi uma novidade na elaboração do
marxismo russo e europeu. Apenas alguns socialistas defenderam o
mesmo ponto de vista de Trotsky, como Kautsky em sua análise da re-
volução de 1905.
Da mesma forma, o reformismo como setor social ainda engatinhava.
Fincava suas trincheiras na burocracia sindical, mas ainda não tinha uma
expressão política consolidada. Esta aparece com clareza após a morte
de Engels, com a publicação do livro de Bernstein e que sofre duríssimas
críticas de Rosa Luxemburgo em seu Reforma ou Revolução, de 1899. A
maioria da direção do partido alemão, incluindo Kautsky, Liebknecht e
Bebel, combatia as teses de Bernstein, que foram derrotadas no congresso
do partido em 1899, depois de três dias de discussão. Rosa via mais de
perto as contradições entre teoria e prática, e a pressão do sindicalismo
e do parlamento, por isso era mais dura na crítica ao ‘centro’ kautskista.
Mas, do ponto de vista programático, o SPD ainda estava no terreno do
marxismo[10].

[9]
TROTSKY, Leon. Balanço e Perspectivas, “A Teoria da Revolución Permanente”. São Paulo: Ed.
Sundermann (2010), p. 78.
[10]
Ao não ter, ainda, a mesma convicção de Rosa, Lenin leu, atônito, na Suíça, a notícia de que
o SPD havia apoiado o orçamento de guerra do governo alemão no parlamento, visando sua par-
ticipação na primeira guerra mundial, e considerou-a o que hoje chamaríamos uma “fake-news”.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


98 Marcos Margarido

Vale a pena relembrar os argumentos de Lenin contra Kautsky quando


este tentou utilizar os escritos de Marx para justificar sua própria capi-
tulação. Lenin explicava (não pacientemente, diríamos nós) o que são as
leis marxistas em relação à história:

Se Kautsky quisesse raciocinar séria e honestamente, teria perguntado a si próprio:


existem leis históricas relativas à revolução e que não conheçam exceções? A res-
posta seria: não, não existem tais leis. Estas leis têm em vista apenas aquilo que é
típico, aquilo a que Marx uma vez chamou «ideal», no sentido de capitalismo
médio, normal, típico[11].

Em primeiro lugar, as leis são históricas, isto é, têm um caráter rela-


tivo, não são permanentes. Estão ligadas a cada época econômica, que
leva em conta o sistema produtivo, mas também as superestruturas po-
lítica, cultural e jurídica particulares a cada situação ou país. Em segundo
lugar, não são leis absolutas, são leis cujos limites de aplicação variam de
país a país.
Quando Kautsky, em 1918, utiliza um texto de Marx de 1872, sobre a
possibilidade dos trabalhadores alcançarem seus fins por meios pacíficos
na Inglaterra e nos Estados Unidos, para apresentá-lo como ‘pacifista e
parlamentarista’ convicto, bem como fazia com Engels, Lenin responde:
O ‘historiador’ Kautsky falsifica a história com tanto descaramento que «es-
quece» o fundamental: o capitalismo pré-monopolista, cujo apogeu corresponde
precisamente aos anos 70 do século XIX, em consequência das suas particula-
ridades econômicas essenciais, que na Inglaterra e na América se manifestavam
de um modo particularmente típico, distinguia-se por um apego relativamente
maior à paz e à liberdade. Mas o imperialismo, isto é, o capitalismo monopolista,
que só atingiu a plena maturidade no século XX, pelas suas particularidades

[11]
LENIN, V. I. A revolução proletária e o renegado Kautsky. São Paulo: Ed. Sundermann (2005),
p. 135.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 99

econômicas essenciais, distingue-se por um apego mínimo à paz e à liberdade,


por um desenvolvimento máximo da camarilha militarista em toda a parte. ‘Não
notar’ isto ao examinar em que medida uma revolução pacífica ou violenta é tí-
pica ou provável, é descer ao nível do mais vulgar lacaio da burguesia[12].

Engels viveu nesta época de apogeu do capitalismo pré-monopolista,


e não na do imperialismo, que só atingiria sua maturidade no século 20,
e suas elaborações políticas não poderiam fugir dessa realidade, sob pena
de tornar-se um utópico, e não um marxista. Sua época, na Alemanha,
estava atravessada pela luta pela república, e a ascensão eleitoral do SPD
era uma consequência da enorme conquista do sufrágio universal (para
os homens a partir dos 25 anos), que permitiu às camadas proletárias do
país ver sua expressão política crescer em forma sustentada. Era a época
em que as forças produtivas do capitalismo ainda se desenvolviam, o que
permitia a conquista de inúmeras reivindicações operárias, como a jor-
nada de 8 horas e o sufrágio universal para homens.
Mesmo assim, o estado alemão colocava permanentemente obstácu-
los à organização do partido, temendo que esse espaço pudesse abrir uma
perspectiva de que o partido operário chegasse a ter uma força política
tal que abrisse uma crise política no país. Por essa razão, o governo ale-
mão baniu o SPD das eleições, com a lei antissocialista[13] de 1878, pelo
temor que sentiam ao vislumbrar uma possível maioria parlamentar so-
cialista.
As Teses da III Internacional sobre o parlamentarismo, aprovadas no
II Congresso de 1920, já em pleno combate ao reformismo da II Inter-
nacional e sua adaptação ao parlamento burguês, afirmam:

[12]
Idem, p. 136.
[13]
A lei antissocialista baniu todas as atividades políticas e a imprensa do Partido Social-Demo-
crata (SPD), mas permitia a apresentação de candidatos socialistas individuais, o que foi habil-
mente aproveitado pelo partido.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


100 Marcos Margarido

1. […] Em virtude do aumento contínuo das forças produtivas e do alargamento


do domínio da exploração capitalista, o capitalismo e, com ele, os Estados parla-
mentares adquiriram uma maior estabilidade. Daí a adaptação da tática parla-
mentar dos partidos socialistas à ação legislativa ‘orgânica’ nos Parlamentos
burgueses e a importância cada vez maior da luta pela introdução de reformas no
quadro do capitalismo, o predomínio do programa mínimo dos partidos socialistas,
a transformação do programa máximo numa plataforma destinada às discussões
sobre ‘o objetivo final’, longínquo. Foi sobre estas bases que se desenvolveu o arri-
vismo parlamentar, a corrupção, a traição aberta ou camuflada dos interesses mais
elementares da classe operária.

[...] Na época precedente, o Parlamento enquanto instrumento do capitalismo


em vias de desenvolvimento, contribuiu, num certo sentido, para o progresso
histórico. Mas, nas condições atuais, na época da decadência do imperialismo, o
Parlamento tornou-se, ao mesmo tempo, um instrumento de mentira, de fraude,
de violência e um moinho exasperante de palavras. Perante as devastações, as pil-
hagens, as violências, os atos de banditismo e as destruições levadas a cabo pelo
imperialismo, as reformas parlamentares, desprovidas de espírito de continuidade
e estabilidade, concebidas sem um plano de conjunto, perderam toda a eficácia
prática para as massas trabalhadoras.[14] (grifo nosso)

Portanto, nessa época de “progresso histórico”, havia uma ênfase em


aproveitar os espaços políticos para organizar o partido operário, cujo
crescimento no número de votos e na representação parlamentar eram
vistos como uma expressão desse processo de organização e preparação
para a conquista do poder político. Mas, Marx e Engels, que viveram
nesta época, nunca transformaram essa política em uma nova estratégia,
em uma espécie de via pacífica para a tomada do poder.

[14]
O Partido Comunista e o Parlamentarismo, em III Internacional Comunista: Manifestos, Teses
e Resoluções do 2º Congresso. São Paulo: Brasil Debates Editora (1989), p. 109.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 101

Basta ler vários de seus textos programáticos onde, desde o Manifesto


Comunista, ficam claras a base teórica e a estratégia de revolução prole-
tária socialista e destruição do Estado burguês e de seu parlamento para
construir uma ditadura do proletariado, baseada na auto-organização da
classe operária. Podemos citar as conclusões sobre a Comuna de Paris
em A Guerra Civil na França, que foram incorporadas ao Manifesto Co-
munista por um prefácio de ambos em 1872; a Crítica ao Programa de
Gotha de 1876, e depois mantidas por Engels em vários textos, como o
prefácio à Guerra Civil na França, por ocasião do 20º aniversario da Co-
muna, em 1891.

O que Engels defendia?

É com a régua da época em que Engels viveu que devemos medir sua
política, que tinha como objetivo a conquista do poder político pelo par-
tido socialista. É esta política que foi acusada de pregar o abandono da
luta direta da classe para adotar uma pacífica conquista de maioria elei-
toral no parlamento alemão, o Reichstag.
Será correta esta avaliação? Para nós, não. O que Engels defendia era
o aproveitamento máximo da legalidade como tática para, através das
eleições, ganhar para suas posições a maioria do proletariado alemão e,
a partir daí, conquistar a república. Engels dizia que os resultados elei-
torais serviam como uma avaliação da influência do partido entre as
massas. Mas não ficava por aí. Dizia que era necessário trazer para seu
lado as bases do exército, para impedir qualquer tentativa de reação, que,
evidentemente, ocorreria.
Vejamos algumas destas elaborações. Em 13 de fevereiro de 1877, En-
gels escrevia para Enrico Bignami, editor do jornal italiano La Plebe,
sobre o resultado eleitoral daquele ano:
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­
102 Marcos Margarido

Em 10 de Janeiro de 1874 tivemos 350.000 votos; em 10 de Janeiro de 1877 con-


seguimos pelo menos 600.000. A votação permite-nos calcular as nossas forças; os
batalhões estão agora em condições de vos dizer o que é o corpo militar do socia-
lismo alemão a passar em revista no dia das eleições… E quando digo batalhões e
corpo do exército, não estou falando metaforicamente. Pelo menos metade, se não
mais destes homens de 25 (a idade mínima) que votaram em nós, passaram dois
a três anos de uniforme e sabem perfeitamente como manejar uma pistola de
agulha e um canhão estriado, e são reservistas do exército. Mais alguns anos deste
tipo de progresso e teremos conosco os reservistas e a Landwehr (três quartos do
exército de guerra) de modo a imobilizar as forças armadas como um todo e tornar
impossível qualquer tipo de guerra ofensiva… É óbvio que os nossos adversários
não se deixarão vencer facilmente, que os prussianos não vão deixar que o seu
exército de guerra se infecte com o socialismo sem reagir contra ele. Mas, quanto
mais reação e repressão houver, mais alta será a inundação, até varrer as compor-
tas contra inundação […] (M&E Collected Works, V. 24, p. 172).

Não há nada de eleitoralismo ou pacifismo aqui e sim a preparação


para a conquista do poder político.
Jamais Engels disse que, uma vez conquistada a república, um governo
do SPD deveria defender o novo regime político e, obviamente, jamais
levantou como estratégia associar-se à república burguesa para cumprir
as funções de guardião da propriedade privada, como o SPD fez após a
queda do império em 1918, fruto do levantamento das massas, e como
os partidos reformistas fazem atualmente quando estão no governo.
Ao contrário, não diferenciava, do ponto de vista da classe operária, a
monarquia da república burguesa, a não ser pela forma dos ataques des-
feridos por ambos tipos de regimes. Em carta a Lafargue, de 6 de março
de 1894, ele afirma:

Uma república, em relação ao proletariado, difere de uma monarquia apenas por


ser a forma política pronta para o futuro governo do proletariado... Mas uma re-

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 103

pública, como qualquer outra forma de governo, é determinada pelo que a compõe.
Desde que seja a forma de governo burguês, ela é tão hostil para nós como qual-
quer monarquia (exceto nas formas dessa hostilidade). Portanto, é uma ilusão
gratuita tratá-la como uma forma essencialmente socialista; confiar a ela, en-
quanto é dominada pela burguesia, tarefas socialistas. Podemos arrancar conces-
sões, mas nunca esperar que ela faça nosso trabalho. Mesmo se fôssemos capazes
de controlá-la com uma minoria tão forte que pudesse tornar-se uma maioria de
um dia para o outro (M&E Collected Works, V. 50, p. 274).

E confirmava esse antagonismo irreconciliável entre as classes em ar-


tigo de 1894 sobre o programa agrário eleitoral de um futuro governo
socialista:

Somente os grandes latifúndios apresentam um caso perfeitamente simples. Aqui,


estamos lidando com uma produção capitalista não disfarçada e nenhum escrú-
pulo de qualquer tipo precisa nos conter. Aqui, somos confrontados por proletários
rurais em massa e nossa tarefa é clara. Assim que nosso partido estiver de posse
do poder político, terá simplesmente que expropriar os grandes proprietários
de terras, assim como os fabricantes industriais[15] (grifo nosso).

Finalmente, Engels escreve Socialismo na Alemanha, em 1890, a pe-


dido do partido socialista francês, no qual, baseado no avanço eleitoral
dos socialistas, prevê o “fim do século” para a burguesia alemã, aludindo
à passagem para o século XX. “Assim, nas eleições de 1892 poderemos
contar com, pelo menos, dois milhões e meio de votos, que aumentarão
em 1900 para três milhões e meio a quatro milhões dos dez milhões de
eleitores registrados, um número que parecerá curiosamente ‘fin de siè-
cle’ para nossos burgueses”[16].

[15]
Engels, The peasant question in France and Germany. M&E Collected Works, Ed. Lawrence &
Wishart (2010), V. 27, cap. 2, p. 500.
[16]
Engels, Socialism in Germany, M&E Collected Works, Ed. Lawrence & Wishart (2010), V. 27,
p. 7.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


104 Marcos Margarido

E enfatiza a necessidade de ganhar a base do exército, não apenas os


reservistas como em texto anterior, mas os soldados da ativa:
Mas os votos dos eleitores estão longe de constituir a principal força do socia-
lismo alemão. Em nosso país, ninguém se torna eleitor até os vinte e cinco anos,
mas aos vinte anos já é um soldado... Hoje temos um soldado em cinco, dentro
de poucos anos teremos um em três, até 1900 o exército, até então o mais des-
tacado elemento prussiano da Alemanha, terá uma maioria socialista. Isso está
surgindo como se pelo destino. O governo de Berlim pode ver isso acontecer
tão claramente quanto nós, mas ele é impotente. O exército está rompendo com
ele (Socialismo na Alemanha).

E convida a burguesia a dar o primeiro tiro, convicto de que a resposta


da classe operária seria vitoriosa.
Para quê? Com repressão, é possível esmagar uma pequena seita, … mas não
há força no mundo que possa exterminar uma organização de dois milhões de
homens espalhados por toda a área de um grande império. A violência contra-
rrevolucionária será capaz de retardar a vitória do socialismo por alguns anos;
mas apenas para torná-la ainda mais completa quando ela chegar (Socialismo
na Alemanha).

Pode-se criticar Engels por ter tido um prognóstico otimista, com ex-
pectativas exageradas no crescimento do partido baseado nos resultados
eleitorais, mas sua confiança estava baseada na força do proletariado ale-
mão, não na força das instituições burguesas. O estereótipo do Engels
pacifista e reformista não passa de uma lenda criada pelo próprio refor-
mismo (ou revisionismo, como a concepção de Bernstein era chamada).

O que dizia a Introdução?

Afinal, o que Engels escreveu em sua Introdução que desse margem


às especulações sobre sua adesão ao reformismo e pacifismo?
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020
A 200 anos do nascimento de Engels 105

Como vimos, suas elaborações políticas do período não permitem


fazer essa dedução. E a Introdução não traz nada diferente (além de fazer
uma resenha dos textos de Marx na primeira parte) dessas elaborações,
apenas as situa historicamente.
Porém, o texto foi manipulado para publicação – parte sem seu con-
sentimento, parte em acordo - para evitar dar pretextos para um novo
banimento do partido socialista, devido à possibilidade de aprovação da
lei antissubversão. E Engels protestou contra as deturpações feitas em
seu texto, nos dois casos:
Houve a publicação de uma primeira versão, mutilada, no jornal Vor-
wärts, cujo editor era Liebknecht. Engels demonstrou sua ira em pelos
menos duas cartas; uma para Kautsky, outra para o marxista francês Paul
Lafargue[17].
Para Kautsky, Engels escreveu, em 1º de abril de 1895:
Fiquei surpreso ao ver hoje no Vorwärts trechos de minha Introdução, publicados
sem meu conhecimento prévio e arranjados de tal forma que pareço ser um ado-
rador pacifista da legalidade quand même (a qualquer custo)... Não deixarei dú-
vidas a Liebknecht quanto ao que penso sobre isso e o mesmo se aplica àqueles,
quem quer que sejam, que lhe deram a oportunidade de perverter meus pontos de
vista e, o que é pior, sem sequer uma palavra para mim sobre isso (M&E Collected
Works, V. 50, p. 285) (grifo do autor).

E para Lafargue, dois dias depois:

Liebknecht acaba de me pregar uma bela peça. Ele tomou de minha introdução
aos artigos de Marx sobre a França 1848-50 tudo o que poderia servir a seu pro-

[17]
Membro do Partido Socialista francês, autor de O Direito à Preguiça, e casado com Laura,
uma das filhas de Marx. Ambos cometeram suicídio em 1911. Em sua carta de despedida, Paul
Lafargue escreveu: “Morro com a alegria suprema de ter a certeza de que, num futuro próximo, a
causa a que me dediquei durante 45 anos triunfará. Viva o Comunismo. Viva o socialismo inter-
nacional!”

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


106 Marcos Margarido

pósito em apoio a táticas pacíficas e não-violentas a qualquer preço, que ele decidiu
defender há algum tempo, particularmente nesta conjuntura em que leis coerciti-
vas estão sendo elaboradas em Berlim (M&E Collected Works, V. 50, p. 487).

A segunda versão foi publicada no jornal Neue Zeit, também com cor-
tes, que Engels aceitou com muita contrariedade, como mostra sua carta
a Richard Fischer, da direção do SPD, de 8 de março de 1895:

Levei o máximo possível em conta suas graves objeções [i.e., as justificativas para
os cortes propostos pela direção do SPD], embora não possa, por mais que eu
tente, ver o que seja censurável em, digamos, metade dos casos que você cita. Pois
não posso, afinal, assumir que você pretenda subscrever de corpo e alma a absoluta
legalidade, legalidade em qualquer circunstância, legalidade mesmo em relação
às leis infringidas por seus promulgadores, em suma, à política de oferecer a face
esquerda para quem o atingiu na direita. Na verdade, o Vorwärts às vezes gasta
quase tanta energia repudiando a revolução como uma vez gastou defendendo-a
– e, talvez, volte a fazê-lo em breve. Mas eu não posso considerar isso como um
critério.
Meu ponto de vista é que você não tem nada a ganhar defendendo o abandono
do uso da força. Ninguém acreditaria em você, nem qualquer partido em qualquer
país chegaria ao ponto de abdicar do direito de resistir à ilegalidade pela força
das armas. […]

Eu aceitei, no entanto, suas emendas, com as seguintes exceções: […]

Bem, eu posso ir até aqui, mas não mais. [...] Fiz tudo o que estava ao meu alcance
para poupá-lo de embaraços no debate. […] Mas vocês - um ou dois de vocês de
qualquer forma – têm sido suficientemente fracos para não se oporem às preten-
sões de seus adversários como deveriam ter feito […] (M&E Collected Works, V.
50, p. 457).

A carta continua fazendo várias considerações, todas elas contra a po-


lítica da direção do SPD de acatar e, inclusive, de se antecipar a todas as
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020
A 200 anos do nascimento de Engels 107

imposições do governo, pois “essas pessoas sabem tão bem quanto nós
que a vitória está quase ao nosso alcance e que, dentro de alguns anos,
nada conseguirá nos impedir, e é por isso que estão ansiosas para nos
agarrar pelo pescoço, embora infelizmente não saibam como”.
Ou seja, esse texto, tal como foi publicado nas duas versões, pode ser
tudo, menos um testamento político de Engels.
Vejamos o que Engels escreveu na Introdução:

De fato, também aqui as condições de luta se tinham alterado essencialmente. A


rebelião de velho estilo, a luta de ruas com barricadas, que até 1848 tinha sido de-
cisiva em toda a parte, tornou-se consideravelmente antiquada[18].

Engels explica, então, que o pequeno efetivo de rebeldes reunidos em


barricadas, exercem uma “defesa passiva”, que se transforma, “só excep-
cionalmente, em ocasionais investidas e ataques aos flancos, mas via de
regra se limitará a ocupar as posições abandonadas pelas tropas em re-
tirada”.
Mas, em um dos trechos suprimidos, afirma:

Mas isso significa que no futuro a luta de rua não terá mais nenhuma importân-
cia? De modo algum. Isso significa que, desde 1848 as condições se tornaram muito
menos favoráveis para os combatentes civis e muito mais favoráveis para os mili-
tares.

Portanto, não houve nenhum abandono da luta direta.


E enumera 3 questões que tornavam a luta de barricadas desfavorável:
a falta de apoio dos estratos médios ao proletariado a partir de 1848,
quando a burguesia havia passado para o lado da reação; a superioridade

[18]
ENGELS, Friedrich. “Prefácio” [ao As lutas de classes na França - 1848-1850, de Karl Marx].
As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo Editorial (2012). Todas as citações seguintes
fazem parte desse texto.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­


108 Marcos Margarido

militar das forças governamentais, que agora contavam com canhões,


“armas de retrocarga de pequeno calibre com pentes de repetição, armas
que atiram quatro vezes mais longe, com precisão dez vezes maior e dez
vezes mais rapidamente que as anteriores” e bananas de dinamite para
destroçar as barricadas, enquanto o proletariado contava apenas com es-
pingardas das lojas de armas; e “os novos bairros das grandes cidades,
construídos a partir de 1848, [que] são dispostos em ruas longas, retas e
amplas, feitas de encomenda para maximizar o efeito da nova artilharia
pesada e das novas espingardas”.
Trotsky refere-se à polêmica sobre a luta de barricadas na História da
Revolução Russa, rejeitando qualquer interpretação de abandono da luta
direta pelo poder, da revolução violenta:

A crítica de Engels não tinha nada em comum com a renúncia dos métodos revo-
lucionários a favor do parlamentarismo puro, como os filisteus da social-demo-
cracia alemã, cooperando com a censura dos Hohenzollern, tentaram demonstrar.
Para Engels, a questão das barricadas continuava como um dos elementos técnicos
de uma insurreição. Os reformistas tentaram deduzir desta rejeição da importân-
cia decisiva da barricada a rejeição da violência revolucionária em geral[19].

É, por isso que, levando em conta a superioridade militar do inimigo,


Engels alertava contra uma investida prematura da vanguarda operária,
para impedir que se transformasse em “carne de canhão”. O que Engels
defendia? A luta de massas:

Foi-se o tempo dos ataques de surpresa, das revoluções realizadas por pequenas
minorias conscientes à testa de massas sem consciência. Quando se trata de uma
remodelagem total da organização social, as próprias massas precisam estar pre-

[19]
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa, capítulo “A arte da insurreição”. São Paulo:
Editora Sundermann (2007), V. II, p. 934.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 109

sentes, precisam já ter compreendido o que está em jogo, pelo que empenham o
corpo e a vida. Isso nos foi ensinado pela história dos últimos cinquenta anos.
Porém, para que as massas compreendam o que deve ser feito, faz-se necessário
um trabalho longo e persistente, e é justamente esse trabalho que estamos fazendo
agora e com um êxito tal que leva os nossos adversários ao desespero.

Para isso, defendia aproveitar todas as vantagens da legalidade con-


quistada pela social-democracia, pois “os 2 milhões de eleitores que ela
manda para as urnas, junto com os jovens homens e as jovens mulheres
que os acompanham como não eleitores, formam a massa mais nume-
rosa e mais compacta, a ‘tropa de choque’ decisiva do exército proletário
internacional”. E previa, como já havia feito em textos anteriores, que o
fim de século estava chegando para a burguesia.
Esta previsão do futuro da luta de classes foi confirmada em detalhes
na revolução russa de 1905, quando a luta das massas operárias suplan-
tou a luta de barricadas, mas foi derrotada pela superioridade militar do
inimigo. É em 1905 que o primeiro organismo revolucionário da classe
operária é criado, o Soviete de Petersburgo. E, em 1917, encontraria sua
demonstração definitiva. Não apenas as massas, através de inumeráveis
formas de luta, enterravam definitivamente a luta de barricadas, como
também a revolução divide as forças armadas e atrai para si a base do
exército, uma condição estabelecida por Engels como essencial para a
vitória da revolução.
Mas não só na Rússia. A revolução alemã de 1918 derrubou o império
e estabeleceu a república, com a classe operária sob a direção da social-
democracia. Foram criados Conselhos Operários, com funções muito
parecidas às dos sovietes russos; os soldados que vinham, derrotados, da
frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, olhavam desconfiados
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020 ­
110 Marcos Margarido

para os novos líderes sociais-democratas do país, que os atiçavam contra


os operários.
Mas, aqui já se trata de outro partido, de outra direção, não de erros
oportunistas passíveis de ser corrigi-dos ou de falta de formação mar-
xista. Já era uma direção reformista, fruto da adaptação ao Estado bur-
guês, como ficou claro no apoio à sua burguesia na Primeira Guerra
Mundial, com o apoio de Bernstein e, também, de Kautsky. Para isso,
abandonaram e traíram o programa de Marx e Engels, o Manifesto Co-
munista e a própria história do partido e da II Internacional. Agora, já
eram agentes contrarrevolucionários do imperia-lismo no interior do
movimento operário.
Possibilitaram o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht
(filho de Wilhelm), dissolveram o caráter revolucionário dos Conselhos
em uma Assembleia Constituinte insípida, e imprimiram a mais brutal
repressão para impedir que a classe operária alemã chegasse ao socia-
lismo, pelo qual Engels havia lutado por toda sua vida.
Engels não veria essa degeneração. Um câncer levou-o em 5 de agosto
de 1895, poucos meses depois de escrever sua Introdução.

***

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 90­110 ­ Novembro de 2020


ENGELS, O GENERAL

Américo Gomes – Brasil

Engels era chamado por seus amigos de “General”[1], isso por que,
mesmo sendo filho de um industrial da Renânia ingressou no movi-
mento revolucionário como um jovem estudante, logo aderindo ao mo-
vimento comunismo e se envolvendo, pessoalmente, em conflitos
militares. Depois passou a estuda-los com afinco, como uma arte. Se nas
questões de economia política e filosofia Marx era o especialista, na po-
lítica militar Engels era o mestre. Ele foi o responsavel pelas principais
elaborações, artigos e ensaios político-militares que foram publicados
pela dupla, mesmo que alguns tenham sido assinados por Marx.
Engels passou um ano (1841-1842) na artilharia prussiana de Berlim,
depois que tentou servir como Bombardier (cabo), em sua cidade natal
Elberfeld, onde não o aceitaram por causa de suas posições políticas.
Em 1849, teve uma participação ativa no nas trincheiras de Baden-
Palatinado[2], ao lado do exército dos insurgentes que buscavam criar
uma República.

[1]
O título foi dado pela família de Karl Marx por causa dos artigos e comentários sobre a Guerra
Franco-Prussiana de 1870-1871 para o Pall Mall Gazette.
[2]
Esta foi a revolta no Grão Ducado de Baden, onde os revoltosos buscavam criar a República
de Baden. Em 1849 a revolta assumiu proporções de guerra civil, e foi derrotada pelas tropas
prussianas.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


112 Américo Gomes

Quando os insurgentes foram derrotados pelas tropas prussianas, e


com uma ordem de prisão contra ele, fugiu primeiramente para Colônia,
depois para Frankfurt, e ao final se exilou na Suiça.
Nessas trincheiras, serviu ai sob o comando do ex-oficial prussiano
Otto von Mirbach[3], ao lado de lutadores revolucionários como August
Willich e Gustav Kammerling, que depois serviram no 9º Regimento de
Infantaria alemão de Ohio, durante a Guerra Civil norte-americana, de
onde mandavam informações para os artigos que Engels e Marx escre-
veram sobre o tema.
Engles se dedicou ao estudo de obras militares e científicas sobre a
guerra, e também analisando-as em tempo real sob condições concretas,
levando em conta as questões de organização, armamento, política in-
ternacional, questões de comando e qualidade dos generais. Publicou ar-
tigos sobre o tema, se especializando nesta area e nos combates realizados
pela classe trabalhadora contra a repressão. Com dedicação especial ao
constantemente desenvolvimento da tecnologia.
Escreveu sobre os principais episódios de sua época como: a "Prima-
vera dos Povos" de 1848-1849, a Guerra da Crimeia de 1853-55, a cam-
panha de Garibaldi na Itália em 1860, a Guerra Civil nos Estados Unidos
de 1861 a 1865, a Guerra Austro-Prussiana em 1866 e a Guerra Franco-
Prussiana de 1870-71.
Este interesse não era casual, mas sim porque tinha o entendimento
da importância que os conflitos armados teriam para a revolução socia-
lista e a tomada de poder pelo proletariado. Este entendimento vai no
sentido oposto a que dirigentes reformistas e intelectuais acadêmicos
atualmente acusam Engels, de que, no final de sua vida, ter acreditado

[3]
Que tinha combatido na revolução polonesa, na Grécia e no Egito como organizador militar.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 113

na possibilidade uma via pacífica para o proletariado poder chegar ao


poder.
Até hoje seus trabalhos e publicações estabelecem conceitos gerais
que podem e devem ser aplicados à análise das lutas de rua, guerras e
revoluções. Muitas destas obras são reconhecidas por especialistas mili-
tares burgueses.
Por isso passou a ser uma referência teórica militar sobre a guerra, a
insurreição e as revoluções. Wollemberg[4] escreveu:

Seus artigos sobre a guerra Franco-prussiana (que precede a Comuna), publicados


no Pall Mall Gazette, foram cuidadosamente estudados por Trotsky quando lhe
foi dada a tarefa de construir o Exército Vermelho[5].

E Wilhelm Liebknecht:

Se houvesse outra revolução em sua vida, teríamos tido em Engels


nosso Carnot, o organizador de exércitos e vitórias, o cérebro mili-
tar[6].
///

[4]
Erich Wollemberg, na revolução de 1918 na Alemanha, comandou um destacamento de ma-
rinheiros revolucionários, na cidade de Könisberg; foi um dos líderes militares da Revolução na
Baviera (1919), foi editor-chefe da Bandeira Vermelha do Leste e responsável por construção de
células comunistas no Reichswehr, também foi chefe militar na insurreição do Ruhr em 1923,
após a derrota fugiu para a URSS onde foi oficial do Exército Vermelho entre 1924 e 1926. Em
1927 foi assistente de pesquisa no Instituto Marx-Engels-Lenin e a partir de 1928 professor de
história do movimento operário internacional na Escola Internacional Lenin. Volta a Alemanha
em 1930 e passa a ser editor da revista Rote Front e depois do Red Flag. Por divergências com a
direção do KPD vai novamente a URSS. Acusado de “conspiração contrarrevolucionária trots-
kista-terrorista” foge para Paris em 1934 e adere a resistência antifacista, por esta atividade é
preso no Marrocos até 1942, depois da guerra trabalhou como especialista e informante sobre a
situação no Leste para o SPD.
[5]
WOLLENBERG, Erich. “O General do Proletariado”, http://www.scientific-socialism.de/Ar-
teGeneralProlet.htm#_ftn1
[6]
LIEBKNECHT, Wilhelm. “Reminiscences of Engels” (1897), en: W. A. Pelz (ed), Wilhelm
Liebknecht and German Social Democracy.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


114 Américo Gomes

A arte da insurreição

Dentro do estudo das questões militares do proletariado a “Arte da


Insurreição” foi profundamente estudada por Engels e seus aportes foram
a referência para Lenin e Trotsky organizarem a tomada do poder na Re-
volução de novembro de 1917. Contra qualquer concepção mecanicista
da análise de um processo revolucionário, os detalhes devem ser profun-
damente observados no curso de uma insurreição, pois podem determi-
nar o desfecho dos combates.
Ora, a insurreição é uma arte, exatamente como a guerra ou qualquer outro tipo
de arte. A insurreição está sujeita a certas regras cuja inobservância leva à ruína
do seu responsável[7]. E advertia: Em primeiro lugar, não se pode brincar com a
insurreição se não estiver firmemente determinado a assumir todas as consequên-
cias do jogo”. Pois a insurreição é “um cálculo com grandezas altamente indeter-
minadas, cujos valores podem ser modificados todos os dias. Isso porque as forças
do adversário têm todas as vantagens de organização, disciplina e autoridade tra-
dicional ao seu lado. (...) uma vez iniciado o caminho da insurreição deve-se agir
com a maior determinação e partir para a ofensiva. A defensiva é a morte de toda
e qualquer insurreição armada[8].

Este material foi construído por Engels para se delimitar das teorias
"blanquistas", "putschistas" e "aventureiras", que acreditavam que a insu-
rreição seria apenas um problema militar levada a cabo por uma orga-
nização vanguardista descolada do movimento de massas, e que, se
simplesmente certas regras fossem seguidas, ela sairia vitoriosa. Esta foi
a posição defendida por August Blanqui[9], em seu livro Instruções para

[7]
ENGELS, Friedrich. “La insurrección: reglas fundamentales”, publicado en: Revolución y Con-
trarrevolución en Alemania, capítulo XVII: Consultado em: http://www.scientific-
socialism.de/ArteEngelsIns.htm.
[8]
Ibidem.
[9]
Blanqui era um revolucionário francês, referência política para muitos lutadores de sua época,
por exemplo tinha muito adeptos entre os dirigentes da Comuna de Paris.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 115

uma Insurreição Armada, publicado em 1861. Engels se contrapôs a ele


afirmando que a insurreição necessita apoiar-se no setor do proletariado
avançado, ou, na “ascensão revolucionária do povo”, como um elemento
fundamental para ser vitoriosa[10].
Lenin teve este material como referência, para tirar conclusões do
aprendizado da Revolução de 1905, na Rússia, e sistematizar aspectos
dos enfrentamentos militares do proletariado em um processo revolu-
cionário. Concluindo que preparar o momento da insurreição passa a
ser uma tarefa chave e precisa, para a qual teria que se ponderar as com-
binações de situações objetivas e subjetivas, e onde todos os detalhes
devem ser levados em conta “uma vez que existam essas condições, recu-
sar-se a tratar a insurreição como uma arte significa trair o marxismo e
trair a revolução” [11].

Guerra Civil norte-americana

Marx e Engels tiveram um grande interesse no desenvolvimento da


Guerra Civil nos Estados Unidos, nos anos de 1860, e sobre ela elabora-
ram no terreno político como militar, ao longo dos acontecimentos.
A escravidão direta é em grande medida o pivô ao redor do qual nossos sistemas
industriais hoje rodam, tão importante quanto o maquinário, o crédito, etc. Sem
a escravidão não haveria algodão, sem algodão não haveria indústria moderna.
Foi à escravidão que conferiu valor as colônias que criaram o mercado global, e o
mercado global é a condição necessária para a indústria mecanizada em grande
escala[12].

[10]
BARBOZA, Asdrúbal. “La Guardia Roja”, en: https://litci.org/es/teoria/historia/la-guardia-
roja/#_ftn9
[11]
LENIN, V. I. “O Marxismo e a Insurreção”, Carta ao Comité Central, 26-27 de setembro de
1917. Disponível no link do artigo,
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/27-1.htm.
[12]
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia, 1847. 

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


116 Américo Gomes

Isso por si só já evidenciava a importância deste conflito militar que


levou ao fim da escravidão nos Estados Unidos e mudanças na realidade
mundial.
A partir de abril de 1860 quando ocorreu o ataque sulista ao Forte
Sumter, na Carolina do Sul, eles fizeram centenas de artigos para o New
York Tribune e para o vienense Die Presse sobre as questões políticas e
militares, dedicando atenção a cada aspecto do evento.
Diferente de todos os analistas da época, viram a Guerra Civil, corre-
tamente, como resultado de profundos antagonismos econômicos entre
os Estados escravistas e os Estados livres. De um lado o setor da burgue-
sia nortista industrial para impulsionar a produção com trabalhadores
assalariados, ainda que permitisse a escravidão por mais um tempo em
vários estados. E de outro os plantadores do sul, necessitando de mais
terra para expandir o cultivo, utilizando a escravidão em grande escala,
em virtude da crescente demanda da indústria têxtil britânica. “A atual
batalha entre sul e norte (...) não é nada além de uma batalha entre dois
sistemas sociais, o sistema da escravidão e o sistema do trabalho livre”.
Consequentemente estes dois sistemas não poderiam viver lado a lado
por muito tempo. “Ele só pode terminar com a vitória de um destes siste-
mas”[13].
Para os escravocratas, a aquisição de novos territórios era absoluta-
mente necessária. O que os levou a caracterizar a guerra declarada pelos
Confederados como uma guerra de conquista[14].
A Guerra durou quatro anos, com um total combinado de pelo menos
620.000 mortos em combate e doenças. Era normal que o Sul começasse

[13]
Guerra Civil nos Estados Unidos, Die Press, 07 de novembro de 1861. Escritos sobre a Guerra
Civil Americana, Aetia Editorial
[14]
NOVACK, George. Marx e Engels sobre a Guerra Civil dos Estados Unidos.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 117

em vantagem, mas os dois primeiros anos da guerra foram um desastre


para a União. Ao Marx se encarregar da análise mais abrangente do con-
flito, do desenvolvimento econômico e das relações políticas nacionais e
internacionais, tinha uma visão mais geral da dinâmica da guerra. Engels
como analisava mais os aspectos militares, tinha uma visão mais pessi-
mista, no início, e em setembro de 1862 escreveu a Marx, após a vitória
dos Confederados na segunda Batalha de Bull Run, se este ainda acredi-
tava na vitória dos “cavaleiros do norte”[15]. Marx lhe respondeu: “No que
diz respeito aos Yankees, ainda tenho a minha opinião anterior de que o
Norte finalmente prevalecerá”. Acreditava que a base econômica exigida
pelos escravocratas do ponto de vista estratégico não poderia ser vito-
riosa. Alertando o amigo: “Parece-me que você se deixa influenciar um
pouco demais pelos aspectos militares das coisas”[16].
Embora Marx estivesse certo sobre o resultado da guerra, Engels ao
levar em conta os aspectos militares via as contradições do enfrenta-
mento gerada pela política capituladora da burguesia do norte que po-
deria levar uma derrota ou prolongamento do conflito.
Engels criticou duramente a não formação de batalhões negros e a
falta de armamento dos negros (livres, fugidos ou escravos) e que dis-
cursos “benevolentes” não iriam convencer os escravocratas, e sim a vio-
lência e o uso da força. Estudou a geografia, as linhas ferroviárias, os rios
e o terreno dos Estados Unidos e apontou que do ponto de vista militar
a estratégia para a vitória passava por abrir caminho pelo norte do Ala-
bama até a Geórgia, como a chave de entrada no território dos secessio-
nistas[17]. Políticas que foram aplicadas pela burguesia nortistas e se
[15]
Carta de Engels a Marx, 9 de setembro de 1862, La Guerra Civil en los Estados Unidos, Edi-
ciones Rosa Blindada, 1973
[16]
MARX, K. y ENGELS, F., 10 de setembro de 1862, La Guerra Civil em los Estados Unidos,
Ediciones Rosa Blindada, 1973.
[17]
“Para uma crítica dos assuntos americanos”, 4 de agosto de 1862, Escritos Sobre a Guerra
Civil Americana, Aetia Editorial.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


118 Américo Gomes

concretizaram na Proclamação de Emancipação, em 1 de janeiro de 1863,


elemento decisivo para transformar o conflito em uma Guerra Civil Re-
volucionária, e, em termos militares, nas ações do general Ulysses Grant
e “A Marcha de Sherman até o mar”, campanha dirigida pelo general Wi-
lliam Sherman depois de Gettysburg e Vicksburg, em meados de 1863
na ofensiva do Tennessee até a Georgia tomando Atlanta, em agosto de
1864, naquilo que passou a ser chamado de “Guerra Total”. Que se trans-
formou na garantia da vitória do segundo mandato de Lincoln, em no-
vembro, selando a sorte do sul.
Os dois revolucionários não se limitaram a acompanhar o desenvol-
vimento da guerra, mas também tiveram uma atuação ativa contra os
esforços da burguesia britânica de envolver a Inglaterra na guerra contra
a União. A indústria têxtil sofreu com a falta do algodão, por isso este
setor da burguesia pressionava pela intervenção do governo britânico ao
lado da Confederação. Mesmo com milhares de trabalhadores demitidos,
a classe trabalhadora britânica se solidarizou com a luta da União.
Marx e Engels fizeram parte do movimento contra a intervenção bri-
tânica.
A classe trabalhadora inglesa conquistou uma honra histórica imortal por si
mesma, frustrando as repetidas tentativas das classes dominantes de intervir em
nome dos proprietários de escravos americanos com suas entusiasmadas reuniões
de massa, embora o prolongamento da Guerra Civil Americana sujeite um milhão
de trabalhadores ingleses aos mais terríveis sofrimentos e privações[18].

Marx e Engels apesar do apoio ao norte, nunca tiveram ilusões no go-


verno Lincoln. Eles o consideravam sem ímpeto idealista ou brilhan-
tismo intelectual, mas que fora levado a atuar como fruto de uma
revolução popular, arrastado pelos eventos objetivos da realidade. Lin-

[18]
NOVACK, George. “Marx e Engels sobre a Guerra Civil dos Estados Unidos”.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 119

coln não tinha o objetivo de destruir a escravidão, no início da Guerra


Civil, sua política era restaurar a União. Foi a resistência dos escravos e
ex-escravos, fugindo e negando seu trabalho à Confederação; a comba-
tividade de alguns batalhões como o Nono de Ohio e as tropas da Nova
Inglaterra e do Noroeste; e as manifestações realizadas pelos abolicionis-
tas, negros e brancos, que garantiram a vitória nesta guerra, transfor-
mando-a em um processo revolucionário e Lincoln fruto dela, como ele
mesmo disse foi “um prisioneiro de eventos”.
Por isso ao saber da reeleição de Lincoln, a nova Associação Interna-
cional dos Trabalhadores, escreveu uma carta de felicitações, escrita por
Karl Marx[19].
Os últimos atos revolucionários da classe capitalista dos EUA seria
incorporar a Constituição a décima terceira, décima quarta e décima
quinta emenda, que aboliram a escravidão em todo o país, sem compen-
sação aos antigos proprietários de escravos, e concederam cidadania a
todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, com o
direito de votar e ocupar cargos públicos. Ainda que os negros norte-
americanos lutem até hoje para preservar e conquistar direitos que se
originaram com a Guerra Civil e a Reconstrução, e que os capitalistas e
supremacistas brancos tenham tido várias vitorias ao longo da história,
como retirar direitos civis dos negros do Sul até meados do século XX,
a vitória do fim da escravidão nunca foi revertida.

Luta de barricadas

A polarização da luta de classes na atual conjuntura coloca na ordem


do dia, novamente, debates sobre os enfretamentos nas ruas entre as ma-
nifestações da nossa classe que se chocam contra a violência policial,

[19]
La Guerra Civil en los Estados Unidos. Ediciones Rosa Blindada, 1973.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


120 Américo Gomes

como está ocorrendo no Chile, Estados Unidos e Bielorrússia. O que faz


com que o estudo e as conclusões de Engels sobre a luta de rua e as lutas
de barricadas seja muito atual.
O Prefácio ao texto de Marx, A luta de classes na França, publicado
em 1891, se tornou um clássico sobre o tema. Construído a partir do es-
tudo dos conflitos de ruas e das barricadas em Paris, que se iniciaram
em 1588[20], tiveram seu auge em julho de 1830 (quando se ergueram ba-
rricadas em maior número e em mais lugares que em todos os tempos)
e chegaram a Comuna de Paris, 1871, e sua heroica, mas ineficiente re-
sistência, principalmente nos bairros como Montmartre e Belleville.
Engels concluiu que as lutas de barricadas, assim como os conflitos
de rua, são parte de uma “estratégia defensiva” no sentido de visar prin-
cipalmente “a divisão das forças repressivas”, mais do que derrota-las mi-
litarmente.

(…) Não tenhamos ilusões: uma efetiva vitória da rebelião sobre a tropa na luta
de ruas, uma vitória como a que um exército obtém sobre outro, só muito rara-
mente ocorre. Mas os insurrectos também raramente a pretendiam. Para eles tra-
tava-se apenas de desgastar as tropas por meio de influências morais (...). Se
isso resulta, a tropa recusa-se a obedecer ou os comandantes perdem a cabeça
e a revolta vence. (...) Mesmo no período clássico das lutas de ruas, a barricada
tinha, portanto, um efeito mais moral do que material. Era um meio de abalar
a firmeza da tropa. Se se aguentava até se conseguir este objetivo, alcançava-se a
vitória; se não, era a derrota[21].

Além disso, como toda tática, deveria ser reavaliada em suas formas,

[20]
El día de las barricadas de 1588,levantamiento popular que estalló en París el 12 de mayo de
dicho año, durante la Octava Guerra de Religión de Francia. Esta sublevación tuvo por causa
principal la animosidad del pueblo hacia el rey Enrique III, sospechoso de tratar de nombrar
como sucesor al trono a un protestante, Enrique de Navarra, futuro Enrique IV de Francia.
[21]
https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/introducao.htm

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 121

em virtude do desenvolvimento das técnicas militares, das novas armas


que surgissem e da urbanização das cidades.
Lenin que estudou este material caminhou no mesmo sentido.

A tática militar depende do nível da técnica militar, sensível verdade que Engels
demostrou e se esforçou por levar a compreensão de todos os marxistas. Kautsky
tinha razão quando escreveu, depois de Moscou, e de revisar as conclusões de En-
gels, que Moscou fez surgir uma “nova tática de barricadas”[22].

O que foi confirmado por Larisa Reisner[23], em Hamburgo.


A antiga barricada romântica, teve, em geral, seu dia a muito tempo (...) A arte
da guerra recolocou todo este amor romântico nas páginas dos livros escolares
onde vive cercada de lendas e fumaça. Hoje a luta é diferente. Como muro fortifi-
cado, entres rifles revolucionários e canhões do governo, a barricada se tornou há
muito tempo um fantasma. Não serve mais como proteção para ninguém, mas
apenas como impedimento. É uma parede montada por arvores, pedras e veículos
virados para cima, cobrindo-se como uma vala profunda, cova ou trincheira que
impede o caminho de carros blindados, ou inimigos mais perigosos de um levante.
É nessa trincheira que reside o significado da existência da barricada moderna.
(...) A barricada pega corajosamente com o peito todo o fogo cego e frenético que
as tropas chovem sobre seus inimigos invisíveis. (...) Os trabalhadores tornam-se
invisíveis, ilusórios e quase invulneráveis[24].

Com a evolução das táticas dos combates de rua, os trabalhadores


passaram a utilizar os prédios dos bairros operários como novas trin-

[22]
“Enseñanzas de la insurrección de Moscú”, publicado en Proletari, número 2 del 29 de agosto
de 1906, Obras Completas, Tomo XIII. https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oc/pro-
greso/tomo13.pdf
[23]
Escritora, poetisa e revolucionária polonesa-russa, ajudou Lunacharsky, no ministério da cul-
tura, depois serviu no Exército Vermelho ao lado de Trotsky durante a Guerra Civil, sendo chefe
de uma seção de inteligência da flotilha do rio Volga na batalha de agosto de 1918 por Sviazhsk;
viajou em 1923 para a Alemanha, para participar do processo revolucionário, sobre isso escreveu
dois livros: Hamburgo nas barricadas e Berlim, outubro de 1923.
[24]
REISNER, Larisa. Hamburgo nas barricadas, parte 2.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


122 Américo Gomes

cheiras para atacar seus inimigos mortais. Além de Hamburgo, esta tática
foi extremamente aplicada em Madri durante a Revolução Espanhola e
pelo comandante Vasili Tchuikov nas batalhas em defesa de Stalingrado
contra o exército nazista[25].
Atualmente a luta de rua não só continua, com a flexibilização técnica
necessária e iniciativa suficiente utilizada pelos novos ativistas lutadores,
como continua cumprindo o objetivo de desmoralizar, dividir e paralisar
os aparatos de repressão.
Muitos acadêmicos e intelectuais, tentaram deformar as conclusões
de Engels alegando que ao questionar a necessidade de atualização téc-
nica para as lutas de rua ele teria abandonado a defesa da violência re-
volucionária, optado por uma política reformistas de chegar aos
socialismos através de vias pacíficas, como as eleições parlamentares.
Tais falsificações foram colocadas por terra pelos estudos das cartas de
Richard Fischer e a leitura do trabalho de David Riazanov, diretor do
Instituto Marx-Engels[26].
No que Trotsky foi categórico:
A crítica de Engels dirigida contra o fetichismo da barricada apoiava-se na evo-
lução da técnica em geral e da técnica militar. A tática insurrecional do blan-
quismo correspondia ao caráter da velha Paris, ao proletariado semiartesanal, a
ruas estreitas e ao sistema militar de Luís Filipe. (...) A crítica de Engels nada tin-
ham em comum com uma renúncia aos métodos revolucionários em proveito do
puro parlamentarismo, como tentaram demonstrar em seu tempo os filisteus da
socialdemocracia alemã, em cooperação com a censura dos Hohenzollern. Para
Engels, a questão das barricadas continuava sendo a questão sobre um dos ele-

Mariscal del Ejército Soviético, La Batalla de Stalingrado. Civilização Brasileira.


[25]

[26]
Ver el artículo completo sobre el tema en: Francesco Ricci, “El ‘testamento’ falsificado de En-
gels: una leyenda de los oportunistas”, en revista Marxismo Vivo – Nueva Época n.° 11, 2018.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 123

mentos técnicos da insurreição. Os reformistas tentaram deduzir da negação do


papel decisivo da barricada a negação da violência revolucionária em geral[27].

Para completar a política para a divisão e possível derrota do aparato


repressivo do Estado Engels defendia que a “luta de rua” deveria estar
combinada com uma política para arrebentar o exército burguês por
dentro: “o rompimento do interior do militarismo e com ele de todos os
exércitos permanentes”[28]. Condição indispensável para o sucesso da re-
volução. Uma tarefa a ser realizada por meio da propaganda e agitação
política, e pela “interpenetração” entre o exército e a população. Uma
orientação que foi assumida pela IIIa Internacional, expressa na 4ª das
21 condições para a admissão na Internacional Comunista: “a obrigação
especial de fazer propaganda sistemática e enérgica no exército” [29].
Ao comentar uma carta de Engels a Kautsky[30] sobre este tema Trotsky
escreveu:

Engels corrige a Kautsky (...) É necessário que a terceira, ou, melhor ainda, as dois
quintas partes do exercito (logicamente estas proporções se mencionam como
exemplo ilustrativo) adquiram simpatia pelo socialismo; neste caso, a insurreição
não seria um ‘putsch’; as barricadas voltariam ao auge, claro que não as barricadas
de 1848, mas as barricadas “novas”, que, no entanto, serviriam ao mesmo propo-
sito; deter a ofensiva do exercito contra os operários, brindando aos soldados a
oportunidade e o tempo necessário para sentir o poder da insurreição e criar com
eles as melhores condições para que o exercito passe ao bando dos insurrectos[31].

[27]
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa, citação do capítulo “A arte da insurreição”.
Mondadori, 1969.
[28]
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring, part II, cap. III, in K. Marx and F. Engels, Collected Works,
op cit, vol XXV, p. 158
[29]
The Communist International 1919 -1943, vol. 1.
[30]
3 de novembro de 1893.
[31]
TROTSKY, Leon. “El ILP y la Cuarta Internacional, en medio del camino”, 1935, Escritos
Tomo VII, Volumen I.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


124 Américo Gomes

Engels e a violência

Engels apresentou o texto “Teoria da Violência” integrado a obra Anti-


Dühring, publicado em 1878, onde polemizava profundamente com
Duhring, o qual seus materiais estavam influenciando todo um setor re-
formista dentro da socialdemocracia. Para isso utiliza sua análise do
ponto de vista do processo histórico em uma perspectiva dialética, isso
é, este processo história atuando e refletindo as relações de classe.
Duhring defendia que, a violência como “uma maldade absoluta, a
ser demonizada” era a matriz da política, como um modelo moral a-his-
tórico que surgisse do nada. Engels demonstra tudo ao contrário, que é
o elemento econômico, a apropriação privada e a diferença social, que
se utiliza da violência, está se tornando um instrumento nas mãos da
classe possuidora contra os setores que são oprimidos, o que significa,
que a violência está relacionada com a manutenção das desigualdades
sociais no capitalismo. Despois de estruturada ela só poderá ser abolida
pela violência da classe oprimida na sua luta de resistência contra a classe
dominante e exploradora.
Na política só há dois poderes decisivos: a violência organizada do Estado, o exér-
cito, e a violência inorganizada, elementar, das massas populares[32].

Assim como Marx, Engels entendia a violência como um instrumento


para o desenvolvimento das forças produtivas. Fundamental para o sur-
gimento do modo de produção capitalista[33], visualizado nas terríveis
condições históricas da “acumulação originaria do capital”. Concluíram:
“A violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma
sociedade nova” [34].
[32]
“O papel da violência na história”, em O Papel da Violência na História, Centelha Cultural
Editoração.
[33]
Capítulo 24 do Primeiro Tomo do Capital.
[34]
MARX, Karl. O Capital, livro I.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 125

Engels esteve na vanguarda da defesa desta concepção contra todas


as variantes reformistas.
Para Herr Dühring, a força (violência) é o mal absoluto; o primeiro ato de força é
para ele o pecado original (...) Essa força, (violência) entretanto, desempenha ainda
outro papel na história, um papel revolucionário; que, nas palavras de Marx, é a
parteira de toda velha sociedade grávida de uma nova, que é o instrumento com
o qual o movimento social abre caminho e estilhaça as formas políticas mortas e
fossilizadas[35].

Neste sentido, Marx e Engels deram especial atenção ao estudo da his-


tória e composição dos exércitos e as técnicas militares, por compreen-
derem que há uma relação dialética entre estes e o desenvolvimento das
forças produtivas, as relações sociais e o desenvolvimento económico da
sociedade[36].
Nada pode depender tanto dos fatores econômicos como o exército e a marinha.
O armamento, a composição, a tática e a estratégia, dependem antes de tudo, do
grau de produção imperante e do sistema de comunicações[37].

As forças de repressão concretizam o monopólio do Estado no arma-


mento e na violência.
Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado[38], de
1884, Engels abordou este aspecto do ponto de vista concreto, ao expor
o Estado, para refrear os antagonismos e conflitos de classe, garantir o
monopólio da violência nas mãos da classe economicamente dominante,
com seus aparatos de repressão. Sendo necessário quebrar a máquina do
Estado burguês e constituir novas instituições, revolucionarias e prole-
[35]
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring, 1877. Parte II: Economía Política, IV.
[36]
Carta de Marx a Engels, de 25 de setembro de 1857.
(http://es.wikisource.org/wiki/Carta_de_Marx_a_Engels_(25_de_setiembre_de_1857).
[37]
ENGELS, Friedrich. Teoria da Violência, em Engels, O Papel da Violência na História, Cen-
telha Cultural Editoração.
[38]
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1884.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


126 Américo Gomes

tárias. Este conceito foi largamente incorporado por Lenin em O Estado


e a Revolução.
Em O Papel da Violência na História[39] Engels faz uma ampla abor-
dagem sobre o papel da violência na constituição dos Estados na Europa
(vinculadas as guerras e revoluções) e particularmente para o Estado ale-
mão, construído sob a prática da “violência pelo sangue e pelo ferro”. A
própria proclamação do Império prusso-alemão foi realizada em Ver-
salhes, na sala de cerimónias de Luís XIV, com a França, desarmada e
ocupada, e com a “Paris Rebelde”, depois massacrada em sangue pelas
tropas de Thiers, com soldados franceses libertos pelos alemães para seu
sufocamento.
Neste material, identificou o papel da burguesia alemã: a “estupidez
dos senhores Junkers” e o crescimento da socialdemocracia na década de
1890, após o fim da “Lei Antissocialista”, formando “o antagonismo de
classe entre os capitalistas e os trabalhadores”, e previu um conflito inevi-
tável entre as classes. O que foi agravado pelo governo do chanceler Ho-
henlohe-Schillingsfürst, que esperava o momento para acabar com o
sufrágio e utilizar a força armada para varrer o Reichstag[40].
Engels rechaçava os temores da direção da socialdemocracia alemã
em fazer propaganda revolucionaria da Ditadura do Proletariado, de-
nunciando como “profunda a ilusão de que neste país se possa instaurar
por via idilicamente pacífica a república, e não só a república, mas até a
sociedade comunista”, como apregoava a ala oportunista[41].
Mediava a possibilidade deste conflito com a ocorrência de uma nova

[39]
O Papel da Violência na História, de março de 1888, ficou inacabado e foi publicado (com al-
terações) por Eduard Bernstein em Die Neue Zeit em 1896. Em O Papel da Violência na História
Centelha Editorial Editoração
[40]
HOHENLOHE, Denkwürdigkeiten, in James Retallack, Bismarck and Engels, The Role of Force
in History.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 127

guerra para a Alemanha, entendendo que se isso ocorresse, o conflito


entre as classes poderia ser postergado.

Uma guerra, por outro lado, nos faria recuar anos. O chauvinismo inundaria tudo,
pois seria uma luta pela existência (...) seria uma devastação como a Guerra dos
Trinta Anos. (...) é bastante possível que derrotas parciais e o prolongamento da
guerra decisiva produzam uma convulsão interna. Mas se os alemães fossem de-
rrotados desde o início ou forçados a uma defensiva prolongada, então a coisa cer-
tamente começaria”. Reafirmada no texto “Pode a Europa desarmar-se?”[42] o
sistema de exércitos permanentes foi levado a tais extremos em toda a Europa que
deve, ou levar os povos à ruína econômica devido ao peso militar, ou degenerar
em uma guerra geral de extermínio.

O trabalho militar na Alemanha

Já tocamos no tema que alguns autores afirmam que Engels insuflou


ilusões, na década de 1890, de uma chegada ao poder do Partido Social-
democrata por via eleitoral ou reformista.
Realmente ele fez alguns textos em que destacava a importância da
massificação da votação do partido alemão, e apresentava como fato a
votação na eleição de 1890, quando foram obtidos quase 1,5 milhão de
votos, e apontou a perspectiva de que nas eleições de 1895 a socialde-
mocracia poderia chegar a 2,5 milhões de votos e em 1900 a 3,5 milhões,
dos 10 milhões de eleitores “tornando-o o partido mais forte da Ale-
manha”. (…)

O partido socialista que derrubou Bismarck, o partido que após onze anos de luta
violou a Lei Antissocialista; o partido socialista, que como uma maré alta trans-

[41]
ENGELS, Friedrich. “Contribución a la crítica del proyecto de programa socialdemócrata de
1891”, https://www.marxists.org/espanol/m-e/1890s/1891criti.htm
[42]
ENGELS, Friedrich. Can Europe disarm, “Introdução”, Londres, 28 de março de 1893.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


128 Américo Gomes

borda todos os diques, invadindo cidades e campos, mesmo nos Vendees mais re-
acionários - este partido hoje chegou ao ponto em que é possível determinar a data
em que chegará ao poder quase pela calculo matemático[43].

Mas apontar esta perspectiva eleitoral não significava diretamente ter


ilusões de que a conquista do poder se daria de maneira pacífica[43]. Ele
advogava que, se houvesse uma vitória eleitoral, a burguesia não aceitaria
este resultado e seria necessária uma ação insurrecional para garantir o
poder para o partido revolucionário.
Um belo dia a burguesia alemã e seu governo, cansados de ficar de braços cruzados
testemunhando os avanços cada vez maiores do socialismo, recorrerão à ilegali-
dade e à violência. [...] A violência contrarrevolucionária será capaz de retardar
a vitória do socialismo em alguns anos; mas apenas para torná-la ainda mais
completa quando vier.

Para Engels, “os votos dos eleitores estão longe de constituir a principal
força do socialismo alemão”[45]. Por isso, defendia que o partido deveria
aumentar seu trabalho entre os jovens soldados do exército, aos quais,
ele acreditava, as ideias socialistas já estavam “impregnando”, bem como
a todo o exército alemão.

Hoje nós temos um soldado [social-democrata] em cinco, em poucos anos teremos


um em três; em 1900, o exército, até então o elemento mais notavelmente prussiano
na Alemanha, terá uma maioria socialista”. O governo vê que “o exército está es-
corregando de suas mãos[46].
///
[43]
Socialism in Germany, in K. Marx e F. Engels,
https://www.marxists.org/archive/marx/works/1892/01/socialism-germany.htm
[44]
Também sobre este tema ver o artigo de Marcos Margarido nesse dossiê.
[45]
ENGELS, Friedrich. “A critique of the Draft Social-Democratic program of 1891”. Disponível
em: https://marxists.catbull.com/archive/marx/works/1891/06/29.htm
[46]
ENGELS, Friedrich. Socialism in Germany. Disponível em:
https://marxists.catbull.com/archive/marx/works/1892/01/socialism-germany.htm

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 129

O plano era conquistar a República com um “partido de dois milhões


de homens espalhados por toda a superfície de um grande império”[47]; entre
eles, haveria um setor da juventude operaria transformada em soldados[48].

As conclusões de Engels sobre a tomada do poder


pelo proletariado

Engels em toda sua vida intelectual trabalhou com o critério revolu-


cionário sobre a tomada do poder e consequentemente a insurreição, os
combates de rua e os enfrentamentos militares da classe operária, no sen-
tido de que tinham que ser preparados cientificamente, em todos os seus
aspectos, por que entendia que só uma revolução violenta pode destruir
o Estado burguês e abrir o caminho para o socialismo.
Esta política era um desdobramento de uma análise marxista da rea-
lidade e da evolução dos processos históricos. Da mesma maneira que
Marx em 18 Brumário de Luís Bonaparte detalhou sobre o golpe de Es-
tado de Napoleão III, em 1851 e o fim da segunda republica, a partir da
análise da luta de classes na França, observando as reciprocas influências
da crise econômica, do governo bonapartista, com as classes sociais e
suas frações, partidos e representação política.
Engels utilizou a mesma metodologia para analisar os principais acon-
tecimentos históricos. Foi assim com a guerra Franco-prussiana e os pos-
teriores enfrentamentos militares da Comuna de Paris; com a Guerra
Civil norte-americana; e o com a possibilidade da tomada de poder pela
Socialdemocracia na Alemanha. E o mais importante: para determinar
a política a ser aplicada.

[47]
Ibidem.
[48]
Na Alemanha um trabalhador se tornava eleitor com vinte e cinco anos e aos vinte soldado.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


130 Américo Gomes

Entendendo que evolução histórica caminha regida por “leis”, no sen-


tido hegeliano, isso é, são envolvidas em contradições dialéticas, o que
faz, na verdade, que estas “leis” sejam “tendências”, que ao final serão de-
cididas no âmbito da luta de classes.
Ou como o próprio Engels afirmava:
A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se
levanta sobre ela (...) exercem sua influência nas lutas históricas e, em muitos
casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo re-
cíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma
infinita multidão de ocasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna
é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente
ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento
econômico[49].

Neste sentido, manteve até o final de sua vida a defesa da violência


revolucionaria como uma necessidade histórica para se chegar a Dita-
dura do Proletariado, por isso, foi contra a exigência da direção da So-
cialdemocracia alemã para que moderasse suas opiniões expressas em
seu prefácio de A luta de classes na França, alegadamente por causa das
“leis anterroristas”[50]. Fiel à teoria revolucionária, Engels não estava dis-
posto a esperar por uma eventual maioria socialista no Reichstag, não
apostava na estabilidade e nas eleições para chegar ao poder, e sim que o
triunfo revolucionaria se daria partir da auto-organização da classe ope-
raria, da preparação da insurreição, e pelo armamento do proletariado.
Nas palavras de Trotsky:
Que distancia entre as linhas de Engels, não do jovem senão do homem de setenta
e três anos, e atitude estupida e reacionária de quem tacha a barricada de ‘roman-

[49]
Carta de Engels a Bloch, Londes, 21/22 de setembro de 1890.
“Li hoje com assombro no Vorwârtz um extrato de minha “Introdução” publicado sem con-
[50]

hecimento meu, truncado de tal maneira que eu apareço nele como um adorador pacífico da le-
galidade, custe o que custe”. Carta de Engels a Kautsky, de 1 de abril de 1895.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020


A 200 anos do nascimento de Engels 131

ticismo’”, (como...) Kautsky não tem vergonha de nos contar (...que) havia publi-
cado um artigo onde ‘desenvolvia as vantagens do método de luta democrático-
proletário nos países democráticos, em contraposição à política da violência’[51].

São as bases teóricas desenvolvidas por Marx e Engels, e a defesa des-


tas bases, principalmente depois da morte de Marx, que estabeleceram
os fundamentos para que Lenin, Trotsky e os bolcheviques realizassem
a Revolução de Outubro, com a Guarda Vermelha e a constituição do
Comitê Militar Revolucionário, e instituíssem a Republica dos Sovietes
com os organismos que tinham a função de assegurar este Estado, como:
o Exército Vermelho, os Tribunais Populares e as forças de repressão para
derrotar as tentativas contras revolucionárias da burguesia e do impe-
rialismo. No sentido da destruição da máquina do Estado burguês e
substitui-la por uma nova, “proletária”[52].

***

[51]
TROTSKY, Leon. “El ILP y la Cuarta Internacional, en medio del camino”, 1935, Escritos,
Tomo VII, Volumen I.
[52]
Materiais preparatórios para o livro O Estado e a Revolução, sobre “Marxismo e o Estado”,
tomo 33, en: https://archivoleontrotsky.org/view?mfn=29067

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 111­131 ­ Novembro de 2020 ­


D
Programáticos
ebates

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


NÃO EXISTE UMA LÓGICA MARXISTA?

Alicia Sagra - Argentina

Minha intenção é polemizar com o artigo publicado por Gustavo Ma-


chado na Marxismo Vivo – Nova Época n.° 15, Lógica Marxista e corre-
lação de forças mundial.
Não pretendo discutir a correlação de forças mundial e a utilização
ou não das nossas velhas categorias. Por um lado, porque não concordo
em estabelecer uma relação mecânica entre essa discussão funcional das
categorias e a lógica marxista. E, por outro lado, porque essa discussão
sobre a utilização ou não de determinadas categorias é, para mim, total-
mente secundária em relação à questão abordada por Gustavo a respeito
do materialismo dialético, que é o centro do seu artigo, e é sobre isso o
que pretendo debater.
Gustavo manifesta: “ao contrário de Hegel, não se encontra em Marx
nenhuma lógica dialética, nenhuma lógica com L maiúsculo”[1].
Se menciona o fato de que ele não deixou uma Grande Lógica como
a de Hegel com a pretensão de chegar à “verdade absoluta”, estou de
acordo, já que “verdade absoluta” não existe, ou, como disse Lenin em

[1]
MACHADO, Gustavo. Marxismo Vivo – Nova Época n.° 15, ed. em espanhol, 2019, p. 103.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


134 Alicia Sagra

Materialismo e Empiriocriticismo[2], só existe em “determinados limites”.


Mas não me parece que se refira a isso, já que para chegar a essa conclu-
são, não se justificaria o artigo na MV e muito menos o estudo de vários
anos aos quais faz referência.
Nunca me pareceu razoável desenvolver longos debates em torno de
termos, para depois descobrir que se está atribuindo diferentes conteúdos
a estes termos. Então, para que não haja confusão:
Quando falo e defendo que existe uma Lógica Marxista, me refiro a
uma lógica objetiva, concreta, quer dizer, um método de conhecimento,
de análise da realidade. Certamente isso não significa que a dialética é
uma chave mestra universal, que pode resolver tudo ignorando as demais
esferas do conhecimento. A dialética não substitui a química, mas como
disse Trotsky, ela dá elasticidade ao pensamento investigativo, o ajuda a
superar os preconceitos cristalizados, arma-o com analogias valiosas.
Trotsky coloca como exemplo Mendeleiev, cujo desconhecimento do mé-
todo dialético o impediu de reconhecer a mútua transformação dos ele-
mentos, apesar do grande avanço que havia alcançado com sua tabela
periódica[3].
Gustavo disse que não há dialética por fora da realidade. Está correto.
Segundo a interpretação materialista, a dialética está no exterior, na na-
tureza e na história, mas também no cérebro que pode aplicá-la, utili-
zando leis gerais que surgem desta dialética que está no interior da
realidade à qual é preciso se introduzir para estudar, utilizando esse mé-
todo marxista de análise do qual falava Trotsky.

[2]
Materialismo e Empiriocriticismo foi escrito em 1908 para enfrentar desvios na fração
bolchevique, que Lenin considerava de caráter idealista ou agnósticos, influenciados pelas
posições de Ernest Mach. Em 1920, é feita uma segunda edição com um prefácio de Lenin, onde
disse que espera ela não seja inútil, independente da polêmica com os partidários russos de Mach,
como auxílio para compreender o conhecimento da filosofia do marxismo, o materialismo
dialético, e às conclusões filosóficas das recentes descobertas das ciências naturais.
[3]
TROTSKY, León. Escritos filosóficos, CEIP, p. 56

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 135

Entendo que é a existência desse método de conhecimento marxista


que Gustavo questiona ao afirmar: “(...) Por isso é absurdo pensar em
uma lógica objetiva geral, ao invés da lógica específica do que se ana-
lisa”[4].
Portanto, entendo que para Gustavo, cada caso é um caso, cada ciência
teria seu próprio método, não existiria um método geral. Ou seja, esta-
ríamos em uma situação pré-hegeliana em relação ao conhecimento.

Lógica dialética como sinônimo de idealismo?

A partir de uma citação de Marx com a qual concordo totalmente:


“eu não começo pelos ‘conceitos’ [...] parto da forma social mais simples na
qual se corporifica o produto do trabalho na sociedade atual, a ‘mercado-
ria’”[5], Machado conclui que: “Como se vê, Marx não aplica nenhuma ló-
gica em sua análise da sociedade capitalista, ao menos, nenhuma lógica
que não seja aquela que encontra como produto interno da própria forma
social capitalista”.
Porque parte da realidade, Marx é materialista, mas isso não implica
que não tenha um método de conhecimento dessa realidade.
Equiparar lógica dialética a idealismo está correto quando nos refe-
rismos a Hegel. Mas, como explica Engels, eles viraram de cabeça pra
baixo a dialética de Hegel, retirando todo o seu misticismo:

Marx e eu fomos praticamente os únicos que nos propusemos a tarefa de salvar


[da ruína do idealismo, incluído o hegelianismo] a dialética consciênte trazendo-
a à concepção materialista da natureza.[6]

[4]
Idem, p. 104 (destaque meu).
[5]
Karl Marx, citado por Gustavo Machado, MV 15, ed. em espanhol, p. 104.
[6]
ENGELS, Friedrich. Prefácio à segunda edição deo Anti-Dühring, citado por Lenin em Carlos
Marx (Breve esboço biográfico, com uma exposição do marxismo), Marxist Internet Archive.
http://www.marx2mao.com/M2M(SP)/Lenin(SP)/CPM13s.html

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


136 Alicia Sagra

Dessa inversão da dialética de Hegel, surgiu um novo método de


conhecimento da realidade, uma nova lógica, que tem um diferente
ponto de partida (a realidade), que não é parte de um sistema fechado,
que não chega ao conhecimento absoluto, mas a uma aproximação da
realidade que está em permanente movimento e mudança, e que incor-
pora um novo critério de verdade: a prática.
Coerentemente com a negação da existência desse método marxista
de conhecimento, o texto do Gustavo não apresenta nenhuma relação
da dialética materialista com as ciências naturais, a correlação dialética
que existe entre elas, da qual falavam Engels, Lenin e Trotsky. Correlação
que se expressa no fato de que os avanços dessas ciências confirmam e
enriquecem a dialética materialista, e nos avanços que poderiam haver
nas ciências naturais se os cientistas utilizassem conscientemente a dia-
lética materialista.
Tampouco se menciona a dialética da natureza, esboçada por Engels.

As leis da dialética

Como consequência dessa “inexistência” de um método marxista do


conhecimento, Gustavo Machado conclui que não existem leis gerais, “se
não existe uma lógica dialética, no sentido que indicamos antes, não podem
existir, necessariamente, leis dessa lógica dialética geral. O que temos com
certeza, são leis próprias das totalidades específicas que analisamos diale-
ticamente”[7]. Ele reconhece que existe a lei do valor, da queda tendencial
da taxa de lucro, por surgir de uma realidade especificamente analisada,
a sociedade capitalista. Mas insiste, “Para o marxismo, não existem
questões gerais de teoria do conhecimento ou epistemologia indepen-

[7]
MACHADO, Gustavo. Marxismo Vivo – Nova Época n.° 15, ed. em espanhol, 2019, p. 109.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 137

tendes da realidade analisada”[8]. Entre as leis questionadas como tais,


está a Lei do desenvolvimento desigual e combinado, já que, segundo Gus-
tavo, se trataria apenas de uma frase de Trotsky em um capítulo da His-
tória da Revolução Russa.
Ele critica Engels por ter falado das leis da dialética, “tão utilizadas
pelo stalinismo”[9]. É claro que foram usados pelo stalinismo, mas isso
não significa que devemos jogá-los fora. Com este critério teríamos que
abandonar a totalidade das categorias marxistas, pois todas foram utili-
zadas pelo stalinismo
De qualquer forma, se Engels cometeu um erro ao enunciá-las, o erro
não seria apenas dele, porque o Anti-Dühring (onde Engels fala das leis
da dialética), antes de ser publicado foi lido em sua totalidade por Marx,
que escreveu o capítulo da Economia. Ademais, o próprio Marx (como
veremos nas citações adiante) utiliza e se refere a essas leis, tanto a lei do
salto de quantidade em qualidade, como a da negação da negação.
As leis gerais existem. O que disse Marx é que, na história e na socie-
dade, as leis não são iguais às das ciências naturais, porque dependem
de cada época histórica.
Mas essas leis gerais da dialética descobertas por Hegel (salto de qua-
tidade em qualidade, negação da negação), das quais fala Engels no Anti-
Dühring, existem. Ainda que não sejam usadas pela dialética materialista
de forma abstrata, sem diferenciá-las, elas se concretizam nas relações
existentes em cada objeto de estudo, no qual o pensamento se introduz,
para mediar, utilizando os dois métodos (ou os dois caminhos) dos quais
fala Marx.
Estas leis da dialética que, segundo Marx e Engels, são as leis do mo-
vimento do mundo exterior, ao existirem também no pensamento,
[8]
Idem, p. 119.
[9]
Idem, p. 113.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


138 Alicia Sagra

podem ser utilizadas por este, que atua mediando, para avançar no con-
hecimento. Por isso a dialética materialista, diferentemente do que afir-
mou Gustavo, é um método do conhecimento e, nesse sentido, é a lógica
concreta, à qual se referem Trotsky, Novack, Lefebvre, Moreno, ou a te-
oria do conhecimento do marxismo a qual se refere Lenin.

Marx, Engels, Lenin e Trotsky sobre a dialética materialista

Segundo Gustavo Machado, falar de lógica marxista é coisa de meta-


físicos[10]. Nem Marx, nem Lenin, nem Trotsky, segundo Gustavo have-
riam dado à dialética um conteúdo relacionado à teoria do conhecimento,
a um método de conhecimento. Ele reconhece que Trotsky, fala da lógica
dialética, mas referindo-se a outra coisa[11] e que Marx também falou de
seu método na Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Po-
lítica (1857), mas depois o abandonou[12]. A culpa dessa concepção equi-
vocada [a dialética como uma metodologia geral, como lógica] teria sido
de Lassalle, e em parte também de Engels, por ter falado das leis da dia-
lética. Aparentemente, outro culpado seria Nahuel Moreno, a quem im-
puta, gratuitamente, um pensamento “estruturalista”, depois de definir
que estruturalismo não é marxismo[13]. Segundo Gustavo, para Marx,
[10]
Engels, seguindo Hegel, chama de metafísicos aqueles que pensavam em categorias absolutas
e imutáveis, que viam o mundo como uma soma de qualidades imutáveis.
[11]
Essa afirmação é estranha, já que Trotsky disse explicitamente que a dialética materialista é o
método marxista de análise.
[12]
MV 15, pp. 106-107. Essa afirmação ignora que Marx, vários anos depois, no prefácio à 2ª
Edição de O Capital, volta a falar da existência de seu método dialético.
[13]
Não é o objetivo desse artigo defender o pensamento marxista de Moreno, sua obra teórica e
prática falam por si mesmas, mas não posso deixar de dizer que chama atenção em que se baseia
essa caracterização de Gustavo: aparentemente essa definição se referiria à admiração de Moreno
por Piaget, centrada em que para ele, Piaget, que não era marxista, chega, por um caminho
diferente ao de Trotsky, à lei do desenvolvimento desigual e combinado, à qual descreve ainda
que não a formule. Com este critério, seria necessário definir Marx e Engels como
"evolucionistas", por sua admiração manifesta por Darwin. (…)

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 139

assim como para Lenin e Trotsky, “nunca se tratou de aplicar uma lógica
dialética, mas de descobrir, dialeticamente, a lógica específica de um objeto
específico”.[14]
Gustavo menciona vários autores que confirmariam suas afirmações.
Chama atenção que não retome a opinião de Engels, que não apenas é,
de longe, o melhor intérprete de Marx e coautor de sua teoria, como seus
trabalhos sobre o tema, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach e o fim da fi-
losofia clássica alemã, são referências constantes nos textos de Lenin e
Trotsky.
Os detratores de Engels atacam centralmente as duas obras mencio-
nadas e sempre citam a única frase, pela qual Lenin lhe faz uma pequena
crítica[15] nos Cadernos Filosóficos. No entanto, nunca mencionam as
vezes em que, nesses mesmos Cadernos, Lenin faz elogios a Engels, ao
Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach…[16]
Vejamos se é correto afirmar que nossos mestres negam a relação da
dialética materialista com a teoria do conhecimento e a existencia de leis
da dialética.

(cont. nota 13) … Moreno, como Engels e Lenin, ficava empolgado quando acreditava que outras
ciências estavam chegando a conclusões que confirmavam o materialismo dialético.
[14]
MV 15, p. 106 (destaque meu).
[15]
LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. “O desdobramento da unidade e o conhecimento de suas
partes contraditórias é a essência (uma das ‘substâncias’, um dos principais, se não a principal
característica ou particularidade) da dialética. A exatidão desse aspecto do conteúdo da dialética
deve ser comprovada pela história da ciência. Geralmente, não se presta atenção suficiente a este
aspecto da dialética (como, por exemplo, Plekhanov): a identidade dos contrários é considerada
como um conjunto de exemplos [“por exemplo, o grão”, “por exemplo, o comunismo primitivo”.]
Engels faz o mesmo. Mas “com finalidade de exposição”... não como lei do conhecimento (nem
como lei do mundo objetivo).
[16]
LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. Boitempo Editorial: “a ciência da lógica...” aqui Lenin faz
referência a Engels sobre cálculo infinitesimal, p. 132; “esta frase na última página, a 353ª da
Lógica, é mais que notável. A transição da ideia lógica à natureza. O materialismo está ao alcance
da mão. (…)

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


140 Alicia Sagra

ENGELS

(…) Retornamos às posições materialistas e voltamos a ver nos conceitos de nosso


cérebro as imagens dos objetos reais, (…) Assim, a dialética ficava reduzida à
ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior quanto do pen-
samento humano: duas séries de leis idênticas quanto à sua essência, mas dis-
tintas quanto à expressão, no sentido de que o cérebro humano pode aplicá-las
conscientemente, (…) E, notadamente, esta dialética materialista, que era há vá-
rios anos nosso melhor instrumento de trabalho e nossa arma mais afiada, não
foi descoberta apenas por nós, mas também, independentemente de nós e até
mesmo independentemente do próprio Hegel, por um operário alemão: Joseph
Dietzgen[17].

Como vemos, Engels disse, neste texto especialmente reivindicado


por Lenin, que a dialética se resume nas leis gerais do movimiento, que
estão no mundo exterior e no pensamento e que o cérebro humano pode
aplicá-las conscientemente.

As leis da dialética

No Anti-Dühring, Engels menciona essas leis.

Salto de quantidade em qualidade

(…) Somente depois disso, e em meio a outras indicações, destinadas a clarificar


e atestar o fato de que nem toda pequena soma de valor pode se transformar em
capital, mas que para cada período de desenvolvimento e para cada ramo indus-

(cont. nota 16) … Engels disse com razão que o sistema de Hegel é um materialismo invertido (a
nota editorial diz: ver Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, cit. p. 390) p.
246; NB “Engels tem razão em seu modo de colocar a questão (Nota do Editor: Lenin parece se
referir à obra Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã), p. 292.
[17]
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Capítulo IV
(destaques meus).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 141

trial existem limites mínimos determinados, observa Marx [em O Capital]: “Aqui,
como nas ciências naturais, se confirma que a validade da lei descoberta por
Hegel na sua Lógica, segundo à qual mudanças meramente quantitativas se
transformam em determinado ponto em diferenças qualitativas”.[18]

(...) Poderíamos citar tanto na natureza quanto na sociedade humana, centenas


de fatos semelhantes para provar essa lei [do salto de quantidade em qualidade].
Assim, em O Capital, de Marx, toda a quarta sessão (Produção da mais-valia re-
lativa na cooperação, divisão do trabalho e manufatura, maquinário e grande in-
dústria) trata de inumeráveis casos nos quais uma mudança quantitativa muda
de qualidade (...).[19]

Negação da negação

Que papel desempenha na teoria de Marx a negação da negação? Nas páginas


791 e seguintes, Marx expõe os resultados finais das investigações econômicas e
históricas sobre a chamada acumulação primitiva do capital realizadas nas cin-
quenta páginas anteriores (...).

Somente depois de ter terminado sua argumentação histórico-econômica Marx


contiua: “O modo de produção e apropriação capitalista, por tanto, a propriedade
privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual ba-
seada no trabalho pessoal. A negação da produção capitalista é produzida pela
própria produção capitalista, com la necessidade de um processo natural: é a ne-
gação da negação”, etc. Assim, quando Marx qualifica tal fenômeno como nega-
ção da negação, não pensa em provar dessa forma sua necessidade histórica, mas
exatamente o contrário. Depois de ter provado historicamente que o processo já
foi realizado em parte e que em parte terá que seguir se realizando, é que o define
como processo que se realiza segundo uma determinada lei dialética (...)[20]
///

[18]
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring, Dialética, Quantidade e Qualidade, Editoral Claridad, p.
136 (desques meus).
[19]
Idem, p. 138.
[20]
Idem, pp. 144-146.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


142 Alicia Sagra

(…) O que seria, então, a negação da negação? É uma lei muito geral e, por isso
mesmo, de efeitos muito abrangentes e importantes, do desenvolvimento da natu-
reza, da história e do pensamento; uma lei que como vimos, se manifesta no mundo
animal e vegetal, na geologia, na matemática, na história, e na filosofia (…)

É evidente que quando descrevo esse processo como negação da negação não digo
absolutamente nada sobre o processo particular de desenvolvimento que atravessa,
por exemplo o grão de cevada desde a germinação até a morte da planta com fru-
tos. Pois, assim como o cálculo integral é também negação da negação, caso se pre-
tendesse dizer com isso algo sobre o concreto, não se afirmaria senão o absurdo de
que o processo de vida de uma espiga de cevada é cálculo integral, ou talvez socia-
lismo. E isto é precisamente o que os metafísios imputam sempre à dialética.
Quando digo que todos esses processos são negação da negação, coloco todos sob
essa lei do movimento, e desconsidero precisamente por isso a particularidade de
cada processo específico (...) Com o simples conhecimento de que a espiga de cevada
e o cálculo infinitesimal estão sob as leis da negação da negação, não posso nem
plantar cevada nem diferenciar e integrar com êxito, do mesmo modo que tam-
pouco apenas com as meras leis da determinação das notas pelas dimensões das
cordas posso tocar o violino.[21]

O método marxista – a dialética como método de conhecimento

(…) Corresponde a Marx o mérito de ter sido o primeiro a colocar novamente em


destaque o esquecido método dialético, sua ligação com a dialética hegeliana e as
diferenças que o separam desta, e por ter aplicado-o ao mesmo tempo em sua obra
“O Capital” através de uma ciência empírica, a Economia Política (…).

(…) A lógica formal é acima de tudo um método para a descoberta de novos


resultados, pra progredir do conhecido ao desconhecido, e assim também é a
dialética, ainda que em sentido mais elevado, pois rompe o estreito horizonte
da lógica formal e contém o germe de uma concepção de mundo mais ampla
(...)[22]

[21]
Idem, p. 153.
[22]
Idem, p. 146.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 143

Engels deixa claro que Marx não apenas descobre a lógica de O Capi-
tal, como também aplica seu método dialético a uma ciência empírica,
a economia política. E que a dialética é um método superior à lógica for-
mal para descobrir novos resultados, ou seja, um médodo de conheci-
mento. Isso está afirmado no Anti-Dühring e, como disse Riazanov,
“Engels desenvolve no Anti-Dühring o método dialético, criado por ele e
por Marx, o qual utilizavam desde 1846, desde A ideologia Alemã”.[23]

LENIN

Para sustentar sua posição, Gustavo cita um comentário de Lenin, pu-


blicado nos Cadernos Filosóficos, que diz: Marx não nos deixou a lógica
com L maiúscula, nos deixou a lógica de O Capital. Minha interpretação
é que esse comentário expressa que Marx não nos deixou uma Grande
Lógica, como a de Hegel, capaz de chegar a uma verdade absoluta.
De qualquer modo, não me parece que se possa reduzir o pensamento
de Lenin sobre a dialética a um comentário escrito à margem em seu es-
tudo de A Ciência da Lógica de Hegel.
Por isso, vejamos a posição de Lenin, em 1913 (quando ainda não
havia estudado diretamente Hegel), em 1915 (depois de ter estudado
Hegel) e em 1922 (depois de ter dirigido a tomada do poder).

Relação dialética – teoria do conhecimento

Karl Marx (esboço biográfico) – 1913. (...) E a dialética, tal como a concebe
Marx, e também segundo Hegel, abarca o que hoje se chama teoria do conheci-
mento ou gnosiologia, ciência que deve enfocar também seu objeto desde o ponto

[23]
RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, Anexo do Anti-Dühring, Editorial Claridad, p.
337.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


144 Alicia Sagra

de vista histórico investigando e generalizando as origens e o desenvolvimento do


conhecimento, e a passagem da falta de conhecimento ao conhecimento.[24]

Cadernos filosóficos - 1915. Marx, em O Capital, analisa inicialmente a relação


mais simples, (...): o intercâmbio de mercadorias. Neste fenômeno tão simples
(nesta “célula” da socidade burguesa) a análise revela todas as contradições (quer
dizer, o gérmen de todas as contradições) da sociedade contemporânea (...). Assim
também deve ser o método de exposição (respectivamente, de estudo) da dialé-
tica em geral (pois, para Marx, a dialética da sociedade burguesa é somente um
caso particular da dialética) (…).

A dialética como conhecimento vivo, multifacetado (com um número de aspec-


tos sempre crescente), de inumeráveis nuances no modo de abordar, de se aproxi-
mar da realidade (com um sistema filosófico que se desenvolve em um todo a partir
de cada matiz): eis aqui um conteúdo incomensuravelmente rico, em comparação
com o materialismo “metafísico”, cuja desgraça principal é a de não ser capaz de
aplicar a dialética ao processo de desenvolvimento do conhecimento.

(…) A dialética é precisamente a teoria do conhecimento (de Hegel e) do mar-


xismo: : este é o “aspecto” da questão (e não é só um “aspecto”, mas a essência da
questão) que Plekhanov não prestou atenção, sem falar de outros marxistas.[25]

A dialética como método –


Aplicação do materialismo dialético à história

As Três Fontes e as Três Partes – 1913. (...) Marx aprofundou e desenvolveu to-
talmente o materialismo filosófico e extendeu o conhecimento da natureza ao
conhecimento da sociedade humana. O materialismo histórico de Marx é uma
enorme conquista do pensamento científico[26].

[24]
LENIN, V. I. Carlos Marx (Breve esboço biográfico, com uma exposição do marxismo),
Marxist Internet Archive http://www.marx2mao.com/M2M(SP)/Lenin(SP)/CPM13s.html
(destacados míos).
[25]
LENIN, V. I. Cadernos filosóficos, em torno à dialéctica (destaques meus).
[26]
LENIN, V. I. Três fontes e três partes (destaques meus).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 145

O significado do materialismo militante – 1922. (…) A dialética de Hegel desde


o ponto de vista materialista, quer dizer, de da dialética que Marx aplicou pra-
ticamente em O Capital e em suas obras de história e política com tanto êxito
(...)

Relação da dialética com as ciências naturais

O significa do materialismo militante – 1922. (…) Os naturalistas modernos


encontrarão (se sabem investigar e se nós aprendemos a ajudá-los) na interpreta-
ção materialista da dialética de Hegel uma série de respostas às questões filosóficas
colocadas pela revolução das ciências naturais e que levam para a reação os ad-
miradores intelectuais da moda burguesa.

(…) O materialismo não pode ser materialismo militante se não se propõe a cum-
prir com regularidade tal tarefa. (...). Sem isso, os grandes naturalistas seguirão
sendo, tanto quanto até agora, impotentes em suas conclusões e sínteses filosóficas,
já que as ciências naturais progridem com tanta rapidez, atravessam um perí-
odo tão profundo de revolução em todos os domínios que não podem prescindir
de nenhuma maneira de conclusões filosóficas.

Evidentemente, Lenin relaciona a dialética materialista com a teoria do conhe-


cimento e fala não apenas de analisar a lógica interna dos objetos específicos,
mas de aplicar o método dialético de Marx: a dialética que Marx aplicou na
prática em O Capital e em suas outras obras de história e política com tanto
êxito.

TROTSKY

A dialética como método de conhecimento


A dialética é a lógica do desenvolvimento. Analisa o mundo – completamente e
sem exceção – não como um resultado da criação, de um começo repentino, da
realização de um plano, mas como resultado de um movimento, da transformação.
Tudo o que existe, é assim por resultado de um desenvolvimento a partir de certas
leis.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


146 Alicia Sagra

Assim, “a dialética materialista” (ou “o materialismo dialético”) não é uma com-


binação arbitrária de dois termos independentes, mas uma unidade diferenciada
– uma fórmula resumida para uma cosmovisão inteira e indivisível, que repousa
exclusivamente no inteiro desenvolvimento do pensamento científico em todas
as suas ramificações, e que serve, por si só, como um suporte científico para a
práxis humana.[27]

(…). A dialética da consciência (conhecimento) não é em consequência um re-


flexo da dialética da natureza, mas um resultado da viva interação entre a cons-
ciência e a natureza e - mais ainda – um método de conhecimento, que surge
desta interação.

A dialética e o materialismo são os elementos básicos do conhecimento mar-


xista do mundo. Mas isso não significa que podem ser aplicados a qualquer campo
do conhecimento como se fossem uma chave mestra. A dialética não pode ser im-
posta aos fatos, mas deve ser deduzida deles, de sua natureza e desenvolvimento.
Somente um trabalho minucioso sobre uma enorme quantidade de materiais pos-
sibilitou que Marx aplicasse o sistema dialético à economia, e extraísse daí a
concepção do valor como trabalho social. Marx construiu da mesma forma suas
obras históricas, e inclusive seus artigos jornalísticos. O materialismo dialético
só pode ser aplicado a novas esferas do conhecimento se nos situamos dentro
delas. Para superar a ciência burguesa é preciso conhecê-la a fundo; e não é pos-
sível chegar a lugar nenhum com críticas superficiais. Temos o método, mas o tra-
balho a se realizar ainda pode durar várias gerações.[28]

A dialética materialista e sua aplicação no Materialismo Histórico

(…) Marx, que ao contrário de Darwin, era conscientemente dialético, descobriu


as bases para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento
de suas forças produtivas, e da estrutura de suas relações de propriedade, que cons-
tituem a anatomia da sociedade. O marxismo substituiu a classificação vulgar das
sociedades e dos Estados, que ainda prevalece em nossas universidades, por uma
[27]
TROTSKY, Leon. Escritos filosóficos, CEIP, p. 60.
[28]
TROTSKY, Leon. A cultura e o socialismo, p. 127.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 147

classificação materialista dialética. Somente mediante o método de Marx é pos-


sível determinar corretamente o conceito de estado operário e o momento de
sua queda.

Tudo isso, pode-se ver, não tem nada de “escolástico” ou de “metafisico”, como
afirmam os ignorantes obstinados. A lógica dialética expressa as leis do movi-
mento no pensamento científico contemporâneo. Contrariamente, a luta contra a
dialética materialista expressa um passado distante, o conservadorismo da pe-
quena burguesia, a presunção dos universitários rotineiros... e um pouquinho de
fé na outra vida.

As leis da dialética

É preciso reconhecer que a lei fundamental da dialética é a conversão da quanti-


dade em qualidade, porque [nos] dá a fórmula geral de todo o processo evolutivo
– tanto da natureza quanto da sociedade.

(...) O princípio da transição da quantidade em qualidade tem importância uni-


versal, pois vemos o universo inteiro – sem nenhuma exceção – como um produto
da formação e transformação e não como o fruto da criação consciênte.[29]

(…) Quem nega a lei da dialética da transição da quantidade em qualidade deve


negar a unidade genética das plantas e das espécies animais, os elementos quími-
cos, etc. Deve, em última instância, retornar ao ato bíblico da criação (...).[30]

A dialética materialista e as ciências naturais

A dialética não livra o pesquisador de um estudo descritivo dos fatos, muito pelo
contrário: o requer. Mas em troca dá ao pensamento investigativo elasticidade,
ajuda-o a superar os preconceitos cristalizados, arma-o com analogias valiosas, e
o educa em um espírito de desafio, fundado na circunspecção.[31]

[29]
Idem, p. 52.
[30]
Idem, p. 73.
[31]
Idem, p. 55.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


148 Alicia Sagra

O exemplo de Mendeleiev, cuja falta de método dialético lhe impediu reconhecer


a mútua transformabilidade dos elementos, apesar do fato de que seu descobri-
mento da tabela periódica de elementos conectou as diferenças qualitativas entre
eles e as diferenças quantitativas dos pesos atômicos.[32]

(…) O darwinismo, que explica a evolução das espécies mediante “saltos qualita-
tivos”, foi o maior triunfo da dialética no campo da matéria orgânica. Outro
grande triunfo foi o descobrimento da tabela de pesos atômicos dos elementos
químicos e posteriormente dos processos de transformação de um elemento em
outro.

Se um marxista tentasse converter a teoria de Marx em uma chave mestra uni-


versal e ignorar as demais esferas do conhecimento, Vladimir Ilich o teria insultado
com o expressivo vocabulário de “komchvantsvo” [comunista fanfarrão]. O que,
neste caso específico significaria: o comunismo não é um substituto da química.
Mas o teorema inverso também é verdadeiro. A tentativa de descartar o marxismo,
com base em que a química (ou as ciências naturais em geral) podem resolver
todos os problemas, não é mais que uma “fanfarronice química” que, no que diz
respeito à teoria, não é menos errônea e, no que diz respeito aos fatos, não é menos
pretensiosa do que a ostentação comunista.[33]

A luta contra a deformação stalinista

Existem muitas correntes filosóficas que, no afã de se diferenciarem


das deformações provocadas pelo stalinismo, apresentam mudanças que
as levam a abandonar aspectos centrais do marxismo, o que por sua vez
implica outra deformação.
Como diz a expressão popular, jogam o bebê fora junto com a água
suja. Trotsky, em seu trabalho As tendências filosóficas do burocratismo,
dá uma grande lição de como se enfrenta essa deformação burocrática.

[32]
Ídem, p. 56.
[33]
TROTSKY, Leon. O ABC da dialética. p. 142.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 149

As tendências filosóficas do burocratismo – 1928


(Destaques meus)

(...) o que é o marxismo. Observemos mais uma vez os principais elementos. Pri-
meiramente, o método dialético.
(...) Hegel se equivocou ao fazer da dialética o atributo imanente do Espírito Ab-
soluto. Mas tinha razão em pensar que a dialética interfere em todos os processos
do universo, inclusive na sociedade humana. Ao se basear no conjunto da filosofia
materialista anterior e no materialismo inconsciente das ciências naturais, Marx
retirou a dialética das superfícies desprovidas do idealismo e a direcionou para a
matéria, sua mãe.
É nesse sentido que a dialética, tendo encontrado novamente seus direitos através
de Marx e materializada por ele, constitue o fundamento da concepção marxista
do mundo, o método fundamental da análise marxista.
O segundo compontente mais importante do marxismo é o materialismo his-
tórico, quer dizer, a aplicação da dialética materialista à estrutura da sociedade
humana e seu desenvolvimento histórico (…).
(…) O terceiro componente do marxismo é a sistematização das leis da economia
capitalista. O Capital de Marx é uma aplicação do materialismo histórico no
plano da economia humana em uma etapa particular de seu desenvolvimento,
da mesma maneira que o materialismo histórico em seu conjunto é uma apli-
cação da dialética materialista no plano da história humana. (…)
O marxismo não tem a pretensão de ser um sistema absoluto. Tem consciência
de seu próprio significado historicamente transitório. Somente uma aplicação
consciênte da dialética materialista em todos os âmbitos da ciência pode pre-
parar e preparará os elementos necessários para transcender o marxismo, o que,
dialéticamente, será, ao mesmo tempo, o triunfo do marxismo. A partir da semente
brota o caule, no qual cresce uma nova espiga de trigo, em detrimento da semente
que está morta.
O próprio marxismo é um produto histórico e deve ser apreendido desta maneira.
Este marxismo histórico inclui em si próprio os três elementos de base que men-
cionamos: a dialética materialista, o materialismo histórico e a análise teórica e
crítica da economia capitalista.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­
150 Alicia Sagra

(…)
Quiçá o sistema do materialismo histório tenha mudado? Se foi assim, onde se
manifestou essa mudança? No sistema eclético que Bukharin nos propôs sob o
verniz do materialismo histórico? Certamente que não. Ainda que Bukharin
reduza o marxismo à prática, não tem a coragem de reconhecer abertamente sua
intenção de criar “uma nova teoria histórico-filosófica” convenientemente adap-
tada à nova época da era do imperialismo. Em última instância, a escolástica de
Bukharin não convém mais que a seu próprio criador. Lukács fez um esforço mais
audáz, primeiramente, por ir além do materialismo histórico. Se arriscou a
dizer que, com o início da revolução de Outubro, que representava o salto do reino
da necessidade ao reino da liberdade, o materialismo histórico havia deixado de
existir e de responder às necessidades da era da revolução proletária. Entretanto,
com Lenin, rimos muito desta nova descoberta que, para dizer moderadamente,
era, pelo menos, prematura.
Mas, embora Stalin, Zinoviev e Bukharin não tenham retomado a teoria de Lukács
– que diga-se de passagem, seu autor repudiou há muito tempo – o que pensavam
exatamente?
Resta dizer que o terceiro elemento do marxismo, seu sistema econômico, é o único
aspecto no qual o desenvolvimento histórico, desde a época de Marx e Engels, in-
troduziu, não só novos elementos factuais, como também formas qualitativamente
novas. Nos referimos à nova etapa de concentração e centralização da produção,
da circulação, do crédito, às novas relações entre os bancos e a indústria, e ao novo
rol de capital financeiro e às organizações monopolistas do capital financeiro. Mas
não podemos falar sob este ângulo de nenhum marxismo especial durante a
época do imperialismo.
A única afirmação que podemos fazer aqui – e com plena justificativa - é que O
Capital de Marx precisa de um capítulo suplementar, ou um volume suplementar
inteiro, que inclua as novas formas da época imperialista no sistema de conjunto.
(...)
Apresentar [como fez Stalin] o leninismo como uma espécie particular de mar-
xismo próprio da época imperialista era necessário para revisar o marxismo
e isso, Lenin combateu durante toda sua vida. Na medida em que a ideia central
dessa última revisão do marxismo é a linha reacionária do socialismo nacional

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 151

(a teoria da construção do socialismo em um só país) era necessário demonstrar,


ou ao menos anunciar, que o leninismo havia tomado uma posição nova sobre
este tema central da teoria e da política marxista, em oposição ao marxismo da
época pré-imperialista.

(…)

Lenin tinha uma grande honestidade teórica, que, em alguns casos, o teria feito
parecer pedante à primeira vista. Ele manteve suas contas correntes ideológicas
com Marx com o mesmo cuidado meticuloso que podíamos ver em seu próprio e
poderoso pensamento e em sua gratidão como discípulo.
Não obstante, sobre a questão central do caráter internacional da revolução so-
cialista, Lenin nunca teria apontado sua própria ruptura com a forma pré-impe-
rialista de marxismo ou, pior ainda, teria tornado isso conhecido, mas teria
mantido isso em segredo para si – aparentemente com a esperança de que Stalin
explicasse esse segredo em breve a uma humanidade reconhecida.
O que Stalin fez, ao criar o marxismo da era do imperialismo, em umas poucas
linhas totalmente medíocres, foi transformá-las na vitrine da revisão do “salve-se
quem puder” de Marx e Lenin, que temos visto nos últimos seis anos.

(...) É verdade que Marx estava atuando no transcurso do século XIX e não no sé-
culo XX, mas certamente, a essência de toda a atividade de Marx e de Engels foi
que se anteciparam teoricamente e prepararam o caminho para a era da revolução
proletária.
Ao ignorar isso, só se pode desembocar no marxismo acadêmico, quer dizer, em
sua caricatura mais repugnante.
A plena importância da obra de Marx se evidencia a partir do fato de que a época
da revolução proletária, que ocorreu muito mais tarde do que ele e Engels espera-
vam, não foi uma revisão do marxismo, mas ao contrário, exigiu a purificação de
toda a ferrugem da falsificação que se desenvolveu neste intervalo. Mas Stalin pre-
tende que o marxismo, diferentemente do leninismo, seja o reflexo teórico de um
período não revolucionário.
Não é casual que encontremos esta concepção em Stalin. Se descola do conjunto
da psicologia de todo empirista que vive sobre a terra. Para ele, a teoria não faz

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


152 Alicia Sagra

mais que “refletir” sua época e serve às tarefas do dia. No capítulo de Princípios
do Leninismo[34], especialmente dedicado à teoria – e é um capítulo! – Stalin expõe
desta maneira: “A teoria pode se converter em uma força imensa do movimento
operário se se forma em aliança indissolúvel com a prática revolucionária”.

(...) Evidentemente, a teoria de Marx, que se configurou “em aliança indissolúvel”


com a prática “de uma época pré-revolucionária” está condenada a ser superada
em relação à “prática revolucionária” de Stalin. Ele não chega de nenhum modo
a compreender que a teoria – a teoria autêntica ou fundamental – não se molda
diretamente às tarefas práticas do presente.
A teoria é antes a consolidação e a generalização de toda a atividade prática
e da experiência humana, que engloba períodos históricos diferentes em seu
desenvolvimento materialmente determinado. É somente porque a teoria não
está indissoluvelmente ligada com as tarefas práticas do momento, mas se
eleva para além delas, que tem o dom de prever, quer dizer, que é capaz de se
preparar e se vincular com a atividade prática futura e formar as pessoas para que
sejam capazes de responder à altura as tarefas que virão (…).

Ou seja, diferentemente do que foi afirmado por Gustavo, Trotsky,


assim como Engels e Lenin, relaciona a dialética materialista com o con-
hecimento, definindo-a como o “aspecto fundamental do método de
análise marxista”, ele não rechaça suas leis e reivindica sua relação com
as ciências naturais.

Por fim, o que diz Marx de seu método dialético, existe ou não?

Parece absurda toda esta discussão sobre a existência ou não de um


método marxista geral, quando o próprio Marx disse que existe e o des-
creve. Gustavo justifica isso dizendo que apesar de que Marx descreve
esse método na Introdução Geral à Contribuição à Crítica da Economia

[34]
Livro que contêm uma série de conferências dadas por Stalin em 1924.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 153

Política[35], o teria abandonado e que a prova disso é que não publicou


essa introdução. O fato de não ter publicado não indica que o abandonou,
com esse critério teríamos que descartar A Ideologia Alemã, os Grundisse,
os Cadernos Filosóficos de Lenin..., já que nenhum deles foi publicado
por seus autores. Ademais, Marx explica porque não publicou essa in-
trodução.
Suprimi uma introdução geral que havia esboçado, posto que, ante uma reflexão
mais profunda, me pareceu que toda antecipação de resultados que ainda estão
por se demonstrar seria perturbadora, e o leitor que está disposto a me seguir,
terá que se decidir sobre retomar do particular ao geral.[36]

Onde Marx diz que abandona o que está posto na Introdução Geral?
E, junto à isto, volta a falar de seu método, no posfácio da segunda edição
de O Capital.
O método da economia política (1857)
Quando consideramos um país (...) se se começasse pela população, - teria uma
representação caótica do todo e, precisando cada vez mais, chegaria analiticamente
a conceitos cada vez mais simples; partindo do concreto representado chegaria a
abstrações cada vez mais sutis até alcançar determinações mais simples (...).

Chegando a este ponto, teria que recomeçar a viagem de volta, até chegar nova-
mente na população, mas desta vez não teria uma representação caótica de um
conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações.

(...) O primeiro caminho é aquele que a economia política percorreu em sua


gênese. Os economistas do seculo XVII, por exemplo, sempre começam por uma
totalidade viva, a população, a nação, o estado, vários estados, etc; mas terminam
sempre descobrindo, mediante a análise, um certo número de relações gerais abs-
tratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc.
[35]
Escrita em 1857.
[36]
Karl Marx, “Prefácio à Contribuiçnao à Crítica da Economía Política”, Ediciones Siglo XXI,
p. 3 (publicado por Marx em 1859).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


154 Alicia Sagra

Uma vez que esses aspectos específicos foram mais ou menos fixados e abstraídos,
os sistemas econômicos começaram a se elevar a partir dos elementos simples –
trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca – até o estado, o inter-
câmbio entre as nações e o mercado mundial.
Este último caminho é, manifestamente, o método científico correto. O concreto
é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, a unidade do
diverso. Aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não
como ponto de partida, embora seja o efetivo ponto de partida. E, consequente-
mente, é o ponto de partida também da intuição e da representação.[37]

Posfácio à segunda edição de O Capital (1873)

O método utilizado em O Capital tem sido pouco compreendido, como já de-


monstram as noções contraditórias que se formaram a respeito dele.
Assim, a Revue Positiviste de Paris me acusa, por um lado, de tratar a Economia
de um modo metafísico (...)

(...) A revista de São Petersburgo Viestiíik levropi (O Mensajeiro da Europa), em


um artigo dedicado exclusivamente ao método de O Capital (número de maio de
1872, p. 427-436), afirma que meu método de investigação é estritamente realista,
mas o de exposição, desgraçadamente, como a dialética alemã.

Após citar uma passagem de meu Prefácio à Crítica da economía política (Berlim,
1859. P. IV-VII), no qual discuto a base materialista do meu método, prossegue o
autor:
“Para Marx, apenas uma coisa é importante: encontrar a lei dos fenômenos que
se dedica a analisar. (...) Para ele é importante, ademais, e sobretudo, a lei que go-
verna sua transformação, seu desenvolvimento, vale dizer, a transição de uma
forma para outra, de uma ordem de interrelação a outra. Embora não tenha des-
coberto essa lei, investiga circunstancialmente os efeitos através dos quais se ma-
nifesta na vida social (...) Para tal efeito, basta que demonstre plenamente, ao
mesmo tempo que a necessidade da ordem atual, a necessidade de outra ordem
na qual esta tem invariavelmente que se transformar ainda que os homens acre-
[37]
MARX, Karl. Introdução Geral à Contribuição à Crítica da Economía Política.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 155

ditem ou não, que sejam ou não conscientes disso. Marx concebe o movimento
social como um processo de história natural, regido por leis que não apenas são
independentes da vontade, da consciência e da intenção dos homens, mas ao con-
trário, determinam seu querer, sua consciência e intenções (...), Mas, se dirá, as
leis gerais da vida econômica são sempre as mesmas, indiferentemente se aplicadas
ao passado ou ao presente. É isso, precisamente, o que nega Marx. Segundo ele
não existem tais leis abstratas. Em sua opinião, pelo contrário, cada período
histórico tem suas próprias leis... Uma vez que a vida tenha ultrapassado deter-
minado período de desenvolvimento, passando de um estado para outro, começa
a ser regida por outras leis. (...) Marx nega, por exemplo, que a lei da população
seja a mesma em todas as épocas e todos os lugares. Assegura, pelo contrário,
que cada época de desenvolvimento tem sua própria lei da população... Com o di-
ferente desenvolvimento da força produtiva se modificam as relações e as leis que
as regem. Ao se propor o objetivo de investigar e elucidar, desde este ponto de vista,
a ordem econômica capitalista, não o faz sem formular com rigor científico a meta
que deve alcançar toda investigação da vida econômica (...) O valor científico de
tal investigação provém da elucidação das leis particulares que regem o surgimento,
a existência, o desenvolvimento e a morte de um organismo social determinado e
sua substituição por outro, superior ao primeiro. E é este o valor que, de fato, tem
a obra de Marx.”
Ao caracterizar o que ele chama de meu verdadeiro método de uma maneira
tão certeira, e tão cordial, no que diz respeito ao uso que faço do mesmo, o que
faz o articulista senão descrever o método dialético? (...)

Meu método dialético não apenas difere do de Hegel, quanto aos seus fundamen-
tos, como é a sua antítese direta. Para Hegel o processo do pensar, que ele converte
sob o nome de ideia, em um sujeito autônomo, é o demiurgo do real: o real não é
mais que sua manifestação externa. Para mim, contrariamente, o ideal não é senão
o material transposto e traduzido na mente humana.

Como vemos, Marx, em 1857 descreve seu método, em 1873 fala do


método que foi empregado em O Capital e se refere a ele como “meu
método dialético”.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­
156 Alicia Sagra

Diante disso, é possível seguir afirmando que Marx não tem um mé-
todo e que abandonou o que havia formulado na Introdução Geral de
1857?
Mas, se como disse Gustavo, esse método não existe e não havia nen-
hum critério lógico geral no pensamento de Marx, isso significa que ele
só teria sido motivado pela realidade que impactava seus sentidos, assim
como os empiristas? Se ele não aplicava nenhum critério lógico, por que
foi buscar as contradições que moviam a sociedade capitalista? Unica-
mente por intuição sensível?

Com quem debate Gustavo Machado?

Após este tour pelas posições de nossos mestres em relação a dialética


materialista, não creio que o debate de Gustavo seja só com Alejandro
Iturbe e com Nahuel Moreno, como sugere em seu texto.

Algumas perguntas finais

Se a dialética materialista, não é um método de conhecimento supe-


rior à logica formal, como propõe Engels, a teoria do conhecimento do
marxismo como disse Lenin, ou o método de análise marxista, do qual
falava Trotsky, então o que é? Que papel cumpriria a dialética em Marx,
para Gustavo Machado? Seria somente o método de exposição de O Ca-
pital?
E, descendo à terra essa discussão… até onde chega a afirmação:
Para o marxismo não existe questões gerais, de teoria do conhecimento
ou epistemologia independentes da realidade analisada.[38]

[38]
MACHADO, Gustavo. MV 15, 2019, p. 119.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 157

Chega até a política? Se sim, como elaboramos um programa, se não


existem questões gerais e cada caso é um caso? Chega até os princípios,
podemos ter princípios se não há questões gerais?
É fato que entre a teoria e a política não há uma relação imediata, mas
nossa política e nossos princípios podem ser independentes do que Lênin
chama de “filosofia do marxismo”, quer dizer do materialismo dialético?

***

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 132­157 ­ Novembro de 2020 ­


AS CATEGORIAS E SEUS CONTEÚDOS

Alejandro Iturbe – Brasil

A atual discussão sobre a correlação de forças mundial parece ser ape-


nas um debate sobre categorias. Creio que não é assim: na primeira parte
deste material (publicado na Marxismo Vivo n°13), desenvolvi a crítica
ao critério metodológico, utilizado no documento “Tendências da situa-
ção mundial” (aprovado no XIII Congresso Mundial da LIT-QI) de não
definir a caracterização da correlação de forças da luta de classes em es-
cala mundial e defendi que a lógica marxista nos fornece as ferramentas
para realizar essa elaboração. Nesta segunda parte, tentarei desenvolver
o tema da relação entre a análise, a definição e as categorias que a sinte-
tizam e a expressam, e sua aplicação à luta de classes.

A relação entre análise e definição

É totalmente correto dizer que “a definição é a parte mais pobre da


análise”. Na análise aprofundamos os diferentes processos da realidade,
com certo grau de autonomia. É um primeiro passo para compreender
a realidade. Por sua vez, a definição, ao representar uma síntese da aná-
lise, perde uma parte de sua profundidade e sua riqueza. Podemos dizer
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 159

que a definição é um passo no processo de “destilação” dos aspectos es-


senciais do “objeto de conhecimento” que estamos estudando.
Uma boa definição requer, portanto, uma boa análise que a “alimente”.
Se conseguirmos sintetizar e combinar corretamente esses aspectos es-
senciais, teremos uma boa definição, útil como ferramenta para compre-
ender a realidade. Se, pelo contrário, erramos na seleção desses aspectos
e em sua combinação, ou se simplificarmos ao extremo a definição, cer-
tamente será errada e um obstáculo para nossa compreensão.
Se a definição perde uma parte da riqueza da análise que a gerou, ao
mesmo tempo podemos dizer que a sintetiza e a torna concreta, trans-
formando-a em uma ferramenta útil. Sem uma definição que a sintetize,
a análise fica como uma “matéria prima” que ainda não avançou para o
estágio pleno de “produto” com “valor de uso”.
Finalmente, se analisamos uma realidade complexa, a definição deve
ser necessariamente também complexa, porque combina diferentes “es-
sências” com um resultado específico. Como já dissemos, simplificar em
excesso dificultará a compreensão da realidade. Ao mesmo tempo, re-
petimos, não estabelecer uma definição deixa a análise apenas como ma-
téria prima.

Trotsky sobre a URSS

Por exemplo, em seu livro A Revolução Traída, Trotsky fez uma análise
brilhante, profunda e equilibrada da URSS burocratizada pelo stalinismo.
Depois, sintetizou essa análise em uma definição bastante complexa,
contida no final de seu Capítulo IX[1]: não era um estado “capitalista”
[1]
TROTSKY, Leon. La revolución traicionada, Capítulo IX: “¿Qué es la URSS?”, subtítulo “El
problema del caráter social de la URSS aún no fue resuelto por la historia”, extraído de
https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1936/rt/09.htm (tomado do espanhol, tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­


160 Alejandro Iturbe

nem “socialista”, mas uma transição entre os dois, com uma profunda
contradição entre as bases socioeconômicas do Estado operário e a
superestrutura estatal burocratizada. Afirmou que essa totalidade era al-
tamente instável e, a partir daí, elaborou seu famoso “prognóstico alter-
nativo” sobre as possíveis dinâmicas: revolução política ou restauração
por parte da burocracia.
Sobre essa “complexidade” e suas dinâmicas alternativas, escreveu:
Naturalmente, os doutrinários não ficarão satisfeitos com uma definição tão hi-
potética. Eles gostariam de fórmulas categóricas; sim é sim, não é não. Os fenô-
menos sociológicos seriam muito mais simples se os fenômenos sociais sempre
tivessem contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, para al-
cançar a precisão lógica, os elementos que desde agora contrariam nossos esquemas
e que amanhã podem refutá-los[2].

A relação entre definição e categoria

Podemos dizer que “a categoria é a parte mais pobre da definição”


porque o processo de síntese se repete (agora em um nível muito maior).
É o segundo passo da “destilação”. Portanto, uma categoria só tem signi-
ficado válido se expressar uma definição correta e esta, por sua vez, nos
remeta a uma boa análise e a contém. Ou seja, se nessa dupla “destilação”
conseguimos captar a “essência” da realidade que surge das construções
do pensamento que a precederam.
A categoria é a ferramenta mais instrumental desse processo de ela-
boração, aquela de aplicação mais concreta em nossa militância. Por-
tanto, é a ferramenta mais sujeita a simplificações e esquemas.
[2]
Após a morte de Trotsky e do surgimento dos novos estados operários no pós-Segunda Guerra,
a IV Internacional começou a denominar a URSS como “Estado operário degenerado” e os outros
países como “Estados operários burocratizados” desde sua origem. A combinação e contradição
entre a base socioconômica e a superestrutura era basicamente a mesma, mas a gênese tinha sido
diferente.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 161

De certa forma, é apenas um rótulo: útil se referir-se ao conteúdo que


denomina.
Por isso, a “categorização” deve ser a parte mais flexível do processo:
devemos mudar a categoria quantas vezes forem necessárias, seja porque
a realidade mudou ou porque o rótulo estava confuso quanto ao conte-
údo. Também precisamos criar, de modo permanente, novas categorias
quando a realidade assim o exigir.
O que não podemos fazer é eliminar a necessidade de “rótulos” por-
que, nesse caso, seria impossível distinguir operacionalmente o conteúdo
dos “frascos” sem ter de repetir, indefinidamente, as mesmas análises e
definições.
Por exemplo, Trotsky, para sintetizar sua análise profunda e sua defi-
nição altamente complexa, criou uma nova categoria: a URSS era um
“Estado operário degenerado”[3], ao mesmo tempo semelhante e diferente
do Estado operário básico (Moreno dizia que utilizou o critério aristo-
télico de classificação de “gênero próprio e diferença específica”).

A definição de situação revolucionária de Lenin

Retornemos agora ao terreno das definições. Na análise da luta de


classes e em sua definição existem várias correlações de força possíveis,
com suas respectivas definições e categorias. A tradição marxista as clas-
sifica como diferentes “situações”.
Entre elas, a mais importante para nossa atividade é a “situação revo-
lucionária” porque, como dizia Lenin, sem essas condições objetivas, “a
revolução é impossível”. Como Lenin a definia?

[3]
TROTSKY, Leon. op. cit.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­


162 Alejandro Iturbe

Assinalamos estes três sintomas principais: 1) A impossibilidade para as classes


dominantes manterem inalterada sua dominação; esta ou aquela crise “aguda”,
uma crise na política da classe dominante que abre uma fenda por onde irrompem
o descontentamento e a indignação das classes oprimidas. Para que estoure a re-
volução, normalmente não é suficiente que “os que estão abaixo não queiram”,
mas também é necessário, que “os que estão acima não possam” continuar vivendo
como antes. 2) Um agravamento, fora do comum, da miséria e do sofrimento das
classes oprimidas. 3) Uma intensificação considerável, por estas razões, da ativi-
dade das massas, que em tempos de “paz” se deixam espoliar tranquilamente, mas
que em épocas turbulentas são empurradas, tanto pela situação de crise, como
pelos mesmos “de cima”, a uma ação histórica independente[4].

Para Lenin, as mudanças que levavam ao surgimento de uma situação


revolucionária e, portanto, à possível eclosão de um processo de revolu-
ção eram “objetivos, não só independentes da vontade dos diferentes grupos
e partidos, mas também da vontade das diferentes classes...”.
Na História da Revolução Russa, Trotsky destacou como essencial o
terceiro elemento (a dinâmica das massas):

A característica mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas


nos acontecimentos históricos [...]. A história das revoluções é para nós, acima de
tudo, a história da irrupção violenta das massas na condução de seus próprios
destinos[5].

A análise de Trotsky em 1931

Posteriormente, Trotsky desenvolverá outras definições mais comple-


xas sobre situação revolucionária e suas dinâmicas alternativas. Em 1931,
[4]
LENIN, V. I. “La bancarrota de la II Internacional”, maio-junho de 1915, extraído de http://re-
volucionbolchevique.blogspot.com/2009/03/lenin-sobre-la-situacion-revolucionaria.html (to-
mado do espanhol, tradução nossa).
[5]
TROTSKY, Leon. Historia de la Revolución Rusa, Prólogo, 1932, extraído de https://www.mar-
xists.org/espanol/trotsky/1932/histrev/tomo1/prologo.htm (tomado do espanhol, tradução
nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 163

no contexto de uma análise sobre a Grã-Bretanha, parte também da “ob-


jetividade” das condições que a preparam, embora se concentre em um
aspecto não assinalado por Lenin:

... quando as forças produtivas de um país estão em declínio; quando o peso do


país capitalista diminui sistematicamente no mercado mundial e a renda das clas-
ses também é reduzida sistematicamente...[6].

Em seguida, incorpora a classe média como um objeto específico de


análise e, ao mesmo tempo, introduz como fator determinante as mu-
danças na consciência e os estados de ânimo das três classes sociais:

Para nossa análise temos que ter em conta as três classes sociais: a capitalista, a
classe média, o proletariado. As mudanças de mentalidade necessárias em cada
uma destas classes são muito diferentes[7].

No caso da classe trabalhadora, ele relaciona essa “mudança de men-


talidade” com a questão da direção:

O proletariado deve desconfiar... também do Partido Trabalhista. Deve concentrar


sua vontade e sua coragem nos objetivos e métodos revolucionários[8].

Em um material posterior, referindo-se à derrota da revolução espan-


hola, em 1939, Trotsky analisa a dialética dessa relação classe-direção e
as profundas contradições nela produzidas, inclusive quando a classe tem
disposição e realiza ações revolucionárias:

Na realidade, a direção não é, de forma alguma, o “simples reflexo” de uma classe


ou o produto de sua própria potência criadora. Uma direção é constituída no curso

[6]
TROTSKY, Leon. “¿Qué es una situación revolucionaria?”, publicado em The Militant,
19/12/1931, extraído de http://www.ceip.org.ar/ escritos/Libro2/html/T02V235.htm (tomado do
espanhol, tradução nossa).
[7]
Idem.
[8]
Idem.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­


164 Alejandro Iturbe

dos choques entre as diferentes classes ou dos atritos entre as diversas camadas no
seio de uma determinada classe [...] O proletariado pode “tolerar” por muito tempo
uma direção que já sofreu uma total degeneração interna, mas que não teve a
oportunidade de manifestá-la no curso dos grandes acontecimentos. É necessário
um grande choque histórico para revelar, de forma nítida, a contradição que existe
entre a direção e a classe. Os choques históricos mais poderosos são as guerras e
as revoluções. [...] Mas mesmo quando a antiga direção revela sua própria corrup-
ção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova direção, par-
ticularmente se não herdou quadros revolucionários sólidos do período anterior,
capazes de aproveitar o colapso do velho partido dirigente[9].

A formulação de 1940

Este último elemento (“os quadros revolucionários sólidos, capazes de


aproveitar o colapso do velho partido dirigente”, isto é, a existência do par-
tido revolucionário) se tornaria uma “condição básica” na formulação
feita em 1940:

A experiência histórica estabeleceu as condições básicas para o triunfo da revolu-


ção proletária, que foram teoricamente esclarecidas: 1) o impasse da burguesia e
a consequente confusão da classe dominante; 2) a aguda insatisfação e o anseio
de mudanças decisivas nas fileiras da pequena burguesia, sem cujo apoio a grande
burguesia não pode se sustentar; 3) a consciência da intolerável situação e a dis-
posição para as ações revolucionárias nas fileiras do proletariado; 4) um programa
claro e uma direção firme da vanguarda proletária. Estas são as quatro condições
para o triunfo da revolução proletária. A principal razão para a derrota de muitas
revoluções reside no fato de que essas quatro condições raramente alcançam, ao
mesmo tempo, o grau de maturidade necessário[10].

[9]
TROTSKY, Leon. “Classe, partido e direção”, publicado em New International, dezembro de
1940, extraído de http://www.ceip.org.ar/Clase-partido-y-direccion (tomado do espanhol, tra-
dução nossa).
[10]
TROTSKY, Leon; “Manifiesto de emergencia”, Escritos, Tomo XI, volumen 2, Editorial Pluma
(tomado do espanhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 165

Quero destacar que aqui Trotsky define “as condições básicas para o
triunfo da revolução proletária”, ele não diz que as situações e processos
revolucionários não possam existir sem esses requisitos, mas que é quase
impossível que essa revolução triunfe. Mas a verdade é que os trotskistas,
e o morenismo entre deles, por muitos anos, tomaram essa definição
com o significado de “situação revolucionária” e chamamos “pré-revo-
lucionária” às situações nas quais se davam as três primeiras condições,
mas o “fator partido” não existia ou era débil.

Moreno retoma a definição de Lenin

Ao estudar as revoluções do Pós-Segunda Guerra, Nahuel Moreno


constatou que muitas delas tinham obtido triunfos (algumas até avan-
çaram para construir novos Estados operários) não apenas sem partido
revolucionário, mas com direções contrarrevolucionárias. Constatou
também que outros processos revolucionários, mesmo sem avançar até
esse ponto, haviam obtido grandes triunfos democráticos ao conseguir
a independência nacional ou derrubar regimes ditatoriais, também com
direções contrarrevolucionárias e, inclusive, sem direção.
Algumas revoluções obtiveram triunfos, embora parciais, no caminho
da revolução permanente, mas não responderam à formulação de
Trotsky de 1940. Portanto, existiam situações revolucionárias diferentes
daquelas consideradas pelo trotskismo até esse momento. Uma realidade
que tendia a se repetir de modo generalizado. Diante disso, Moreno pro-
pôs considerar a de Trotsky como a definição de uma “situação revolu-
cionária pré-Outubro” e retomar a de Lenin (mais objetiva e de aplicação
mais geral) denominando-a de “situação revolucionária pré-Fevereiro”
(em referência à revolução que, em fevereiro de 1917, havia derrotado o
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­
166 Alejandro Iturbe

regime czarista). Em outras palavras, aqui já temos dois tipos diferentes


de “situações revolucionárias”.

As diferentes “revoluções de fevereiro”

A partir da consideração de um elemento determinante (a ausência de


uma direção revolucionária), Moreno engloba todas as revoluções do Pós-
Segunda Guerra na categoria de “revoluções de fevereiro”[11]. No entanto,
considerada apenas sob esse fator, essa categoria era muito “ampla”, porque
agrupava revoluções com gêneses, combinações e dinâmicas diferentes.
O próprio Moreno teve que criar categorias (ou subcategorias) diferen-
ciadas. Às vezes, o fez de modo explícito. Por exemplo, “as revoluções de
fevereiro que expropriaram” (que também chamou “as revoluções socia-
listas congeladas na expropriação da burguesia”), para se referir aos pro-
cessos que geraram novos estados operários no pós-Segunda Guerra[12].
Em outros casos, embora não tenha criado explicitamente uma cate-
goria, ele o fez no terreno da análise. Por exemplo, referindo-se à queda
das ditaduras latino-americanas pela via da ação das massas, nas décadas
de 1970 e 1980:
Uma última discussão sobre este problema tem a ver com o fato de que na Argen-
tina, Bolívia e Peru, o movimento de massas não destruiu as forças armadas bur-
guesas, como aconteceu, por exemplo, na Nicarágua. Já assinalamos que este
elemento é fundamental e que se tratam de dois tipos diferentes de revoluções
democráticas[13].

[11]
MORENO, Nahuel. Atualización del Programa de Transición, Tesis XV – “Una etapa de revo-
luciones de febrero y ninguna Revolución de Octubre”, extraído de
https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/apt_2b.htm#t15 (original em espanhol, tradu-
ção nossa).
[12]
MORENO, Nahuel. Las revoluciones del siglo XX, 1984, em: https://www.marxists.org/espa-
nol/moreno/rsxx/ (original em espanhol, tradução nossa).
[13]
MORENO, Nahuel. op. cit., Cap. II “Reforma y Revolución” (original em espanhol, tradução
nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 167

A necessidade de categorias mais flexíveis

Se existem diferentes tipos de “revoluções sem direção revolucionária”,


também existem diferentes situações revolucionárias em sua gênese e di-
nâmica. Esses elementos diferenciados precisam ser explicitados. Em pri-
meiro lugar, na análise; em segundo lugar, na definição que o sintetiza
que, tal como destaquei, deve ter o grau de complexidade, contradições
e hipóteses que a análise requer. A partir daí, as categorias também de-
veriam ter os matizes necessários para expressar a definição.
No terreno da análise de uma situação revolucionária, é claro que de-
vemos incorporar as características específicas dos processos. Na questão
da direção das massas: existe uma direção contrarrevolucionária sólida,
ou está debilitada e existe uma situação de vazio ou semivazio de direção?
Surgem alternativas de direção?
Sobre o partido revolucionário: não existe ou é muito débil e sem pos-
sibilidade objetiva de incidir na realidade? Ou, ao contrário, já existe um
partido de vanguarda com certa acumulação de quadros e inserção na
realidade que, potencializado pela situação revolucionária, pode desem-
penhar um papel de alguma repercussão. Ou existe um partido revolu-
cionário sólido com capacidade de disputar a direção. Sobre o próprio
processo de luta: é urbano ou rural? Desenvolve-se através da “luta ar-
mada” ou adota uma forma insurrecional? É um processo “popular” ou
a classe operária joga um papel central com seus métodos de luta? Outro
aspecto: existem organismos permanentes de poder dual, embriões deles
ou estão totalmente ausentes? Além disso, como vimos, o caráter da luta
contra as Forças Armadas.
Como disse Trotsky, em 1931: “Uma situação revolucionária se dá pela
ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos”.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­
168 Alejandro Iturbe

Por isso, acho que, a partir da definição de Lenin (a mais objetiva e


geral), devemos enriquecer a definição das situações revolucionárias con-
cretas com a incorporação de outros elementos específicos importantes
e expressá-la na categoria: algo como situação revolucionária A, situação
revolucionária B, situação revolucionária C, etc.
Nesse contexto, uma situação pré-revolucionária seria aquela na qual
começam estar presentes os mesmos fatores que na revolucionária (a
“crise dos de cima” e a “disposição à ação revolucionária das massas”),
mas de modo menos desenvolvido. Seria uma situação de transição para
uma revolucionária (embora não necessariamente ou automaticamente
avance para ela).

A contradição na elaboração e o uso das categorias

Nesse ponto, no processo de análise-definição-categoria, surge uma


contradição. O próprio Moreno considerou que, por um lado, era neces-
sário “dar aos companheiros as ferramentas conceituais para poder com-
preender”. Mas, por outro lado: “Tenho a impressão de que, forçados pelas
circunstâncias, estamos começando a codificar, até esquematizar, o que é
possivelmente perigoso...”[14]. Uma de suas frases preferidas em alguns de-
bates era: “Não vamos discutir por palavras, mas por conteúdos”.
Ou seja, as categorias são “ferramentas conceituais” necessárias que
ajudam a “compreender”, pontos de apoio do pensamento em seu pro-
cesso permanente de “unir e diferenciar”. Ao mesmo tempo, são a parte
mais funcional do processo de caracterização da realidade.

[14]
MORENO, Nahuel; “Escuela de cuadros”, Argentina, 1984, Crux Ediciones, citado no artigo
“Sobre as etapas”, revista Marxismo Vivo - Nova Época n.o 9 (2017) (original em espanhol, tra-
dução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 169

Por isso, transformam-se em “esquemas” ou em “artigos de um có-


digo” (totalidades “rígidas”), deixam de ser ferramentas úteis para a com-
preensão da realidade e passam a ser um obstáculo (entre outras coisas
porque a realidade sempre é mais rica que qualquer esquema).
Isto é, as categorias podem e devem ser permanentemente contrasta-
das com a realidade, revisadas, corrigidas nos erros que contém e, até
mesmo descartadas e substituídas, ao mesmo tempo em que criamos ou-
tras novas para refletir processos não previstos. O que não podemos fazer
é simplesmente descartar a categoria como ferramenta conceitual para
nos ajudar a compreender a realidade.
Acredito que este critério da necessidade de trabalhar com uma cate-
goria base e categorias ou subcategorias flexíveis surgidas de sua aplicação
concreta deveria ser aplicado não só no que diz respeito às correlações de
forças e às situações que determinam, mas também em outras áreas da
realidade que estudamos. Por exemplo, as categorias de países e sua lo-
calização na hierarquia mundial.

“Os de cima” em nível mundial

Tanto a definição de situação revolucionária de Lenin como as de


Trotsky se referem a condições nacionais. É natural que partissem daí
porque, como assinala Trotsky nas Teses da Revolução Permanente
(1930): “A revolução socialista começa na arena nacional...”. Tratava-se de
reconhecer e identificar as condições que poderiam levar a esse “início”.
Essas condições nacionais podem ser generalizadas para o mundo
como um todo e, assim, identificar-se uma “situação revolucionária
mundial” (ou outro tipo de diferentes situações mundiais)?
Na primeira parte deste artigo, desenvolvi o tema de que as ferramentas
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­
170 Alejandro Iturbe

conceituais do marxismo nos permitem fazê-lo, para além da


heterogeneidade das situações nacionais.
No entanto, existem questões da realidade mundial que tornam mais
complexo o estudo e a compreensão dos “sintomas” a que se referia Lenin.
Vejamos por exemplo, a crise de “os de cima”.
No plano nacional, a forma central de verificar uma dessas mudanças
objetivas é considerar a situação e a dinâmica do regime político e suas
instituições. Essa verificação se torna bem mais complexa
internacionalmente.
É verdade que existem instituições que defendem os interesses do
capitalismo imperialista em nível internacional nos terrenos político,
econômico e militar, como a ONU e seus capacetes azuis, o FMI, o Banco
Mundial, a OTAN, etc. Mas não existe um “estado mundial” nem
tampouco um regime ou um “governo mundial” (pelo menos de maneira
formal e institucional).
O que mais se aproxima de um “governo mundial” atualmente é o G7,
integrado pelos chefes de Estado ou de governo dos EUA, Alemanha,
Canadá, França, Itália, Japão e o Reino Unido (a União Europeia como
um todo também tem representação política). Esses países somam quase
2/3 do PIB mundial e acumulam um poder militar qualitativamente
superior ao de qualquer outro país (mesmo que considerados de
conjunto). Reúne-se anualmente e, nessas reuniões, elabora e discute
“políticas mundiais” que os governos componentes tratam de executar de
conjunto.
Existem também outros centros onde o capitalismo imperialista
elabora “política mundial”. Por exemplo, o Fórum de Davos, fundado em
1971 e agora um tanto “desvalorizado”. Muito menos conhecido é o “Clube
de Bilderberg”, fundado em 1954, que conta entre seus sócios exclusivos
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 171

com os principais dirigentes políticos burgueses, banqueiros e


empresários do mundo. Tem sido descrito, de forma exagerada, como um
“governo mundial nas sombras”[15].

A “ordem mundial”

Vários historiadores e analistas utilizam o conceito de “ordem mun-


dial”. Muitas vezes, considera-se apenas seu aspecto externo (inclusive,
incorporado a “teorias da conspiração”). No entanto, se dermos o con-
teúdo correto pode nos ser muito útil: é uma determinada configuração
de relações superestruturais estabelecidas entre os representantes políti-
cos das burguesias imperialistas, as burguesias nacionais e seus aliados
(as direções contrarrevolucionárias do movimento de massas) para man-
ter o mundo “sob controle” e implementar políticas para isso.
Esta configuração refletirá tanto a situação interna entre seus com-
ponentes (unidade, atritos, confrontos, etc.) como o impacto dos pro-
cessos da luta de classes. Por isso, na época imperialista, existiram
diversas configurações desta “ordem mundial” e suas transformações re-
fletiram o impacto de fatos de grande magnitude, como as guerras mun-
diais, a Revolução Russa, a stalinização da URSS, a restauração do
capitalismo e a queda do aparato estalinista central, e sua combinação
com a dinâmica da economia internacional. Por exemplo, a “ordem mun-
dial” estabelecida nas conferências de Yalta e Potsdam (1944/1945), entre
Roosevelt/Truman, De Gaulle e Stalin.
Com todas as ressalvas necessárias, essa “ordem” é uma espécie de
“regime mundial”.
[15]
Ver, por exemplo: https://agfdag.files.wordpress.com/2014/12/clube-bilderberg_-os-senho-
res-do-mundo-daniel-estulin.pdf

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­


172 Alejandro Iturbe

Desde este ponto de vista, a análise de qual é a gênese de sua configu-


ração, sua situação e sua dinâmica é imprescindível na definição da co-
rrelação de forças e da situação mundial como um todo (como estão “os
de cima”). Em vários períodos, essa ordem mundial teve uma solidez re-
lativa. Mas se essa “ordem mundial” está em crise, especialmente (em-
bora não só por isso) pelo impacto dos acontecimentos da luta de classes,
então temos a primeira condição objetiva de uma “situação revolucio-
nária mundial”.

“Os de baixo”

Do ponto de vista da “disposição às ações revolucionária das massas”,


a generalização a nível internacional também é muito complexa porque
este fator costuma aparecer como uma série de lutas separadas com re-
sultados diferentes que só se “internacionalizam” em ocasiões excepcio-
nais (a “heterogeneidade” que tanto preocupa agora). Um fator central
para esta realidade é que hoje não existe uma organização internacional
revolucionária de peso que possa impulsionar essa internacionalização
da luta.
Assim, uma primeira alternativa metodológica é considerar a acumu-
lação de “disposições” e situações revolucionárias nacionais, como o fez
Lenin, em 1916, em seu artigo “A falência da II Internacional”.
Este critério de “acumulação” é muito importante, mas deve ser con-
siderado em íntima combinação com outro: determinados processos da
luta de classes e seus resultados têm um impacto maior do que outros,
às vezes qualitativo.
A luta de classes é uma “guerra” que se desenvolve mundialmente,
embora seja travada em diferentes frentes e batalhas, com dinâmicas es-
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 173

pecíficas. Os resultados dos combates em algumas dessas frentes e ba-


talhas são determinantes para a dinâmica do conjunto da “guerra”.
O triunfo da Revolução Russa, em 1917, não só teve um grande im-
pacto na situação imediata, mas também abriu uma “época” que não se
encerrou apesar do isolamento em que permaneceu ou da derrota que
significou a contrarrevolução stalinista.
Em uma escala menor, um triunfo da Revolução Espanhola teria sig-
nificado um possível ponto de inflexão no avanço do nazifascismo, mas
sua derrota consolidou esse avanço e abriu as portas da Segunda Guerra
Mundial.
A Batalha de Stalingrado, em 1943, derrotou pela primeira vez o
avanço nazifascista e pôs fim aos “vinte anos de derrotas” da revolução
(1923-1943). O impacto do resultado da Guerra do Vietnã (1975), a pri-
meira derrota político-militar do imperialismo norte-americano, produz
uma nova correlação de forças mundial.
Considerada dessa forma, como uma “guerra” mundial que se trava
em várias frentes e batalhas, podemos estabelecer uma “correlação de
forças mundial” e sua dinâmica, e nela, analisar suas desigualdades, con-
tradições e sua duração. Não é uma “equação simples”, mas muito com-
plexa que combina diversas “equações”. Mas, com uma metodologia
adequada (a lógica marxista) pode ser “calculada”, bem como suas pos-
síveis tendências.

Os quatro primeiros congressos da III Internacional

Se considerarmos que Moreno se equivocou (total ou parcialmente)


nas categorias e no método que utilizou para construir caracterizações
da correlação de forças mundial, então vamos a um “porto seguro”: os
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­
174 Alejandro Iturbe

quatro primeiros congressos da III Internacional dirigida por Lenin e


Trotsky.
Nesses congressos, foram definidas as correlações de força a nível
mundial e sua dinâmica. Isso foi expresso nos documentos e resoluções
que abordavam a situação internacional.
Em sua intervenção sobre as Teses redigidas para o I Congresso
(1919), Lenin expressou: “nossa absoluta convicção de que a revolução
avança mais rapidamente nos estados da Europa Ocidental e que, com ela,
obteremos grandes vitórias”.
O II Congresso (1920) reafirmou esta caracterização.
O III Congresso (1921) marcou um ponto de inflexão. As “Teses sobre
a situação mundial e as tarefas da Internacional Comunista” afirmam:

O movimento revolucionário se caracteriza, desde o fim da guerra, por seu alcance


sem precedentes na história. Esta onda poderosa não consegue, no entanto, destruir
o capitalismo mundial, nem mesmo o capitalismo europeu. Durante o ano deco-
rrido entre o II e o III Congresso, toda uma série de sublevações e lutas da classe
operária (...) foram parcialmente derrotadas. Reforçaram-se indubitavelmente
tanto o sentimento de que a burguesia tem de seu poder como classe, como a soli-
dez exterior de seus órgãos de Estado.

O IV Congresso (final de 1922) considerou que a situação anterior já


havia se encerrado e uma nova foi aberta (desfavorável para a revolução):

Uma vez que o proletariado de todos os países, exceto o da Rússia, não aproveitou
o estado de debilidade do capitalismo provocado pela Guerra para lhe desferir o
golpe decisivo, a burguesia pôde, graças à ajuda dos socialistas-reformistas, esma-
gar os operários revolucionários dispostos a lutar, consolidar seu poder político e
econômico e iniciar uma nova ofensiva contra o proletariado (“Resolução sobre
a tática da Internacional Comunista”).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 175

Para que não fique nenhuma dúvida sobre a questão de que se defi-
niam correlações de força a nível mundial, o III Congresso votou as
“Teses sobre a tática do Partido Comunista da Rússia”, cujo ponto 2 se
intitula “A correlação de forças sociais no mundo inteiro”, e analisa a si-
tuação da “burguesia internacional”, do proletariado (especialmente dos
“países capitalistas avançados”) e da “democracia pequeno- burguesa”[16].

***

[16]
As citações sobre este tema foram retiradas do livro “Tesis, Manifiestos y Resoluciones de los
Cuatro Primeros Congresos de la Internacional Comunista (1919-1923)”, consultado em:
https://www.marxists.org/espanol/comintern/eis/4-Primeros3-Inter-2-edic.pdf (tomado do es-
panhol, tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 158­175 ­ Novembro de 2020 ­


ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
DITADURA DO PROLETARIADO

Hans Meyer – Alemanha

Introdução
A discussão programática sobre a ditadura do proletariado na LIT-
QI foi tomada como um ponto de partida primordial e identificada como
o centro do nosso programa, como assinalaram Trotsky e a Quarta In-
ternacional em 1940. Isto é fundamental, pois é o ponto central que di-
vide águas entre os que continuam assumindo a tradição revolucionária
dos postulados de Marx e Engels, da experiência da revolução russa e da
primeira ditadura do proletariado, da experiência condensada por
Trotsky diante da degeneração do stalinismo e do combate na Quarta
Internacional, particularmente de nossa corrente dirigida por Nahuel
Moreno, contra os que de uma ou outra forma renunciaram à luta pela
ditadura do proletariado.
No entanto, a partir deste ponto em comum surgiram importantes
discussões em torno a este conceito, que levaram a relevantes diferenças,
sobretudo no terreno teórico, que podem ter consequências políticas e
programáticas importantes. Enquanto alguns de nós seguimos reivindi-
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 177

cando a concepção e interpretação clássicas do conceito, colocando sua


vigência ainda depois que o stalinismo o deformasse e terminasse le-
vando os Estados operários à restauração capitalista, nesta discussão Fer-
nando Morales[1] propôs modificações importantes ao que até agora era
nossa interpretação do que significa a ditadura do proletariado. Morales,
acudindo a uma interpretação da concepção de Marx sobre a ditadura
do proletariado e a transição ao socialismo, propõe separar essa categoria
do caráter de classe do Estado operário, para colocar como o fator fun-
damental da categoria a dinâmica de transição em direção ao socialismo.
Esse raciocínio conduz a uma questão central: se a União Soviética sob
o governo de Stalin, apesar de seguir sendo um Estado operário, conti-
nuava sendo uma ditadura do proletariado.
Toda a argumentação teórica, as correções e inovações propostas por
Morales são, no fundamental, a sustentação para sua resposta a esta ques-
tão: os Estados operários sob o controle do stalinismo não são dita-
duras do proletariado, mas Estados operários em transição ao
capitalismo. Esta conclusão seria, em sua opinião, a continuação do ra-
ciocínio de Trotsky frente às questões teóricas e políticas relativas à de-
finição do caráter de classe da URSS, sua dinâmica sob o stalinismo e os
métodos para a defesa do Estado operário. Consequentemente, a incom-
preensão do trotskismo sobre as análises de Trotsky levou a conclusões
equivocadas e a que se capitulasse permanentemente ao stalinismo até o
ponto de ser convertido em sua colateral, caráter contra o qual lutou Na-
huel Moreno e nossa corrente, mas sem tirar todas as conclusões teóricas
e políticas, o que nos levou a cometer muitos erros de capitulação ao sta-
linismo.
[1]
MORALES, Fernando. «Acerca da Ditadura del Proletariado», Marxismo Vivo – Nova Época
n° 14, 2019.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


178 Hans Meyer

No entanto, apesar de se abordarem as questões do trotskismo a res-


peito dos Estados operários burocratizados, deixam-se de lado as elabo-
rações de Moreno em meio às polêmicas sobre a ditadura do proletariado
e a democracia socialista[2] (discussões no seio do trotskismo em meio ao
fenômeno do Eurocomunismo). Tanto no trabalho Ditadura Revolucio-
nária do Proletariado (1979) como no trabalho programático mais im-
portante, Atualização do Programa de Transição (1980), condensam-se
importantes contribuições à teoria da ditadura do proletariado e respostas
a várias das questões que agora Fernando Morales discute, desconhecendo
a vigência teórica e programática desses textos na atual discussão progra-
mática da LIT.
Este trabalho de Moreno contém importantes contribuições em torno
à relação da ditadura do proletariado com a teoria da revolução perma-
nente, e a partir daí, aborda questões centrais como a relação com demo-
cracia operária, a repressão à burguesia, a contrarrevolução e a transição
ao socialismo. A restauração capitalista nos Estados operários não derru-
bou as análises e contribuições de Moreno. Ao contrário, corrigindo al-
gumas questões secundárias, não só confirmou os prognósticos de
Trotsky no sentido negativo mas também mostrou que os processos que
Moreno e nossa corrente caracterizaram, principalmente até o fim dos
anos setenta e a década dos 80, eram corretos em quanto ao papel do im-
perialismo para aprofundar as contradições da burocracia stalinista e
assim provocar a restauração capitalista.
Hoje, apesar do capitalismo ter sido restaurado em todos os Estados
operários e portanto já não existir nenhuma ditadura do proletariado,
[2]
Para esta discussão tomam-se como referência os seguintes textos: Nahuel Moreno, Dictadura
Revolucionaria del Proletariado. Bogotá: Partido Socialista de los Trabajadores, 1979 y Secreta-
riado Unificado-Cuarta Internacional, Democracia socialista y dictadura del proletariado. Bogotá:
Partido Socialista de los Trabajadores, 1979.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 179

esta segue estando plenamente vigente em nosso programa. Essas ques-


tões, que foram debatidas há mais de 40 anos, hoje mantêm total vigência
diante da crise capitalista, que é acompanhada da tendência ao bonapar-
tismo dos regimes burgueses no mundo e do beco sem saída ao qual nos
levam as propostas reformistas do passado e do presente, que levam as
lutas e revoluções ao fracasso.
Por isso, nós, que pretendemos superar revolucionariamente o capita-
lismo devemos aprender com os ensinamentos das revoluções passadas,
para conseguir não somente a tomada do poder, mas sua sobrevivência
diante dos ataques da burguesia e do imperialismo, resgatando as lições
e a política para evitar a burocratização que congele o processo da revo-
lução permanente, da qual a ditadura revolucionária do proletariado é
sua principal expressão.

Ditadura do Proletariado:
para além da definição social do Estado

Para os mestres do marxismo, o uso do termo Ditadura do Proleta-


riado dentro da concepção marxista do Estado sempre fez referência ao
caráter de classe do Estado que a classe operária necessita quando chega
ao poder. Esta ligação entre Estado e ditadura de classe foi a premissa
para entender o conteúdo tanto teórico como programático da ditadura
do proletariado.
A teoria marxista do Estado se fundamenta em que este é um instru-
mento de dominação de classe que garante a existência e reprodução das
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
180 Hans Meyer

relações sociais desiguais nas quais uma classe possui e controla os meios
de produção. Esse papel de dominação é cumprido de forma indepen-
dente das formas políticas assumidas por esse Estado, por isso a impor-
tância de referir-se a ele como ditadura de classe. Essa ditadura está
determinada pelos interesses da classe dominante, que, por sua vez, estão
determinados pelas bases sociais e econômicas desse Estado (estrutura)
e pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas.
No entanto, em épocas de crises e revoluções, quando as relações so-
ciais, e portanto a superestrutura estatal, deixam de favorecer o desen-
volvimento das forças produtivas, estas relações de determinação
revelam a independência relativa entre Estrutura e Superestrutura, ou
entre o caráter social do Estado e o caráter político na qual toma forma
a ditadura de classe.
Assim, podemos dizer que as sociedades divididas em classes têm em
comum o fato de que a classe dominante exerce seu poder sobre o con-
junto da sociedade através do Estado e que, independentemente da forma
concreta (regime) que esse Estado tomar, sempre será uma ditadura des-
tinada a dirimir as inevitáveis contradições de classe que implicam em
um choque de interesses antagônicos.
Assim, a classe dominante, que vê seu poder ameaçado, recorrerá ao
que for necessário para conservá-lo e derrotar a classe ou setor de classe
que a desafia.
Portanto, a ditadura de classe é um conceito útil quando se coloca em
relação com a luta de classes. Aí reside seu caráter dialético mais que for-
mal.
Por isso, a importância da categoria específica da ditadura do prole-
tariado vai além de assinalar o caráter de classe de um Estado operário.
Esta reside em que, além de sustentar-se nas bases sociais desse Estado,
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 181

expressa a necessidade da classe operária, quando tomar o poder, de exer-


cer a ditadura respondendo à luta de classes em uma época revolucioná-
ria, onde sua tarefa histórica é acabar com a sociedade capitalista para
impor e consolidar a transição a uma sociedade sem classes, dominando
e combatendo o imperialismo, a burguesia e todas as expressões da velha
sociedade que conspiram contra a transformação revolucionária.

A ditadura revolucionária

As elaborações de Marx e Engels não foram elaborações abstra-


tas, no vazio. Diferentes das teorias sobre o Estado e a história que os
precederam, eles não elaboraram verdades eternas e estáticas. Referiram-
se a sociedades concretas e mais especificamente a modos de produção
historicamente existentes. Isto se expressa no fato de que vários dos tex-
tos onde desenvolvem a teoria marxista do Estado são textos que abor-
dam um processo histórico concreto, a convulsionada luta de classes na
França desde a revolução de 1789 até a Comuna de Paris, passando pelos
processos revolucionários que sacudiram toda a Europa, particularmente
em 1848.
Precisamente é nesta confrontação permanente da teoria com a
realidade da luta de classes que os autores do Manifesto Comunista foram
elaborando precisões nas suas formulações programáticas sobre a revo-
lução proletária.
Depois das revoluções de 1848, Marx e Engels extraíram conclusões
importantes que permitiram aprimorar o que tinha sido escrito no Ma-
nifesto em relação ao problema da revolução e das tarefas socialistas, di-
ferenciando-se cada vez mais dos programas reformistas dos democratas
pequeno-burgueses.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
182 Hans Meyer

Na Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas[3], Marx


e Engels não apenas fazem precisões às fórmulas programáticas do Ma-
nifesto Comunista, mas colocam a necessidade da revolução permanente
até a derrota da dominação de classe da burguesia “em todos os países
do mundo”, não só em nível nacional. Desta maneira, embora não apa-
reça a formulação da ditadura do proletariado, aparece seu conteúdo,
junto a outro conceito fundamental: a revolução permanente.
Logo depois, no Luta de classes na França, já aparece a formula-
ção da ditadura de classe do proletariado, acompanhada de um desen-
volvimento de seu conteúdo que, de novo, está ligado à ideia da revolução
permanente.

(…) Este socialismo é a declaração da revolução permanente, da ditadura de classe


do proletariado como ponto necessário de transição para a supressão das diferenças
de classe em geral, para a supressão de todas as relações de produção em que estas
se apoiam, para a supressão de todas as relações sociais que correspondem a essas
relações de produção, para a subversão de todas as ideias que brotam dessas rela-
ções sociais[4].

Marx e Engels entenderam que a tomada do poder pela classe trabal-


hadora revolucionária não é mais que um dos capítulos de um processo
revolucionário, que logo coloca o problema da sobrevivência da revolu-
ção, para o qual é necessária a instauração de uma ditadura revolucio-
nária que tem como fim consolidar e estabilizar a nova ditadura de classe
(diferente do Estado da classe dominante derrotada) que garanta as novas
relações de produção.
[3]
MARX, Karl y ENGELS, Friedrich. «Mensaje del Comité Central a la Liga de los Comunistas»,
en C. Marx y F. Engels, Obras Escogidas I. Moscú: Editorial Progreso, s. f., p. 95 (original em es-
panhol, tradução nossa).
[4]
MARX, Karl. «Las luchas de clases en Francia», em C. Marx y F. Engels Obras Escogidas I.
Moscú: Editorial Progreso, s. f., p. 147 (original em espanhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 183

No entanto, nesta ditadura, ao contrário das ditaduras burguesas, ao


ser uma ditadura da maioria sobre uma minoria privilegiada, também a
democracia deixará de ser a democracia para a minoria às custas da
maioria e passará a ser a democracia de classe do proletariado, uma de-
mocracia operária que será muito mais ampla que a mais desenvolvida
das democracias burguesas, como demonstrou a Comuna de Paris e os
primeiros anos do Estado soviético. Mas, para que as medidas socialistas
e o poder da classe operária se consolidem, é necessário que a ditadura
recorra, quando for necessário, ao uso da violência e inclusive ao terror
revolucionário com o objetivo de derrotar as tentativas contrarrevolu-
cionárias para voltar à ordem anterior.
É importante chamar a atenção sobre o fato de que Marx apresentara
a ditadura do proletariado junto com a ideia de revolução permanente.
Como já foi dito, a revolução operária não terminará no momento da
tomada do poder e sua consolidação, já que necessitará manter-se vigi-
lante e lutar contra todas as contradições herdadas do passado. Da
mesma maneira, deverá realizar uma série ininterrupta de medidas que
de maneira sucessiva irão consolidando as bases sociais, econômicas e
culturais da sociedade socialista.
A teoria da revolução permanente de Trotsky parte destas elaborações
e as leva para um terreno que nem Marx nem Engels chegaram a vislum-
brar do ponto de vista teórico: o triunfo da revolução socialista num país
capitalista atrasado. Trotsky, polemizando com a interpretação clássica
dos velhos bolcheviques, defende a necessidade de superar a visão eta-
pista da revolução, especialmente nos países capitalistas menos desen-
volvidos. Esta visão interpretava de forma equivocada a ideia de que uma
sociedade não abre caminho a outra antes de ter desenvolvido plena-
mente suas forças produtivas. Isto levava a caracterizar a revolução nos
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
184 Hans Meyer

países atrasados como uma revolução burguesa, para logo colocar, na


etapa posterior, a luta por uma revolução operária e socialista. Trotsky
defendeu a superação desta visão etapista da revolução, afirmando que
só a revolução dirigida pela classe operária e sua ditadura é capaz de re-
alizar as transformações democráticas não concluídas, para logo, de
forma ininterrupta, ir tomando forma em uma revolução socialista, sem-
pre sob a condução da ditadura do proletariado.
Além disso, ao contrário da ideologia reacionária do “socialismo num
só país” de Stalin e seus epígonos, Trotsky projetava (a partir de sua teoria
da revolução permanente) no plano internacional o triunfo da revolução
socialista, e portanto, a consolidação do Estado de transição e sua supe-
ração pela sociedade sem classes do comunismo. Assim, o destino da di-
tadura do proletariado não dependeria exclusivamente do que aconteceria
no interior do Estado operário, mas sim do triunfo da revolução em ou-
tros países, principalmente onde o capitalismo estivesse mais avançado.
Esta relação entre ditadura do proletariado e revolução permanente
foi particularmente analisada por Nahuel Moreno em seu livro Ditadura
Revolucionária do Proletariado.
Para Moreno, a ditadura do proletariado, em sua missão de defender
e consolidar o Estado operário, deve continuar com o processo revolu-
cionário até conseguir o triunfo da revolução mundial e a derrota do im-
perialismo. Só assim estarão dadas as condições para a transição à
construção do socialismo, ou seja, a transição à sociedade sem classes e
à paulatina desaparição do Estado transicional. De acordo com isto, o
objetivo da ditadura revolucionária é:

(...) continuar a revolução e a mobilização permanente dos trabalhadores contra


todo tipo de exploração em escala nacional e internacional; o que, por outro lado,
é a única maneira que tem uma ditadura revolucionária de sobreviver e desen-
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 185

volver-se, já que se permanecer restrita às suas fronteiras nacionais, seu desenvol-


vimento econômico provocará contradições cada vez mais agudas e irreconciliá-
veis[5].

Isto é fundamental, pois não só coloca no plano internacional os ob-


jetivos e a própria sobrevivência de qualquer ditadura do proletariado
no terreno da revolução permanente internacional, mas localiza as con-
tradições geradas pelo desenvolvimento econômico endógeno, o que
Moreno relaciona, em outras partes do texto, com o papel do imperia-
lismo e as relações desiguais no comércio mundial e em estimular as ten-
dências capitalistas dentro dos Estados operários e, portanto, as
tendências restauracionistas da burocracia stalinista.

A transição ao comunismo

Para Morales, a ideia da transição ao socialismo é o conteúdo funda-


mental do conceito de ditadura do proletariado. Esta expressão é a síntese
correta à qual chegaram Marx e Engels, que foi compartilhada e incor-
porada por Lenin e Trotsky. No entanto, como síntese, por poderosa que
seja, se permanecemos nesse nível de significado, corre-se o risco de in-
terpretá-la em um sentido linear e esquemático.
A dinâmica da luta de classes se mantém mesmo depois da tomada de
poder e durante todo o período de transição ao socialismo. Assim como
Marx constatou que as contradições dos processos revolucionários diri-
gidos pela burguesia e a expressão dessas contradições no próprio Estado,
os interesses antagônicos de classe, as contradições políticas e a defesa de
privilégios ameaçados continuarão se expressando por muito tempo na

[5]
MORENO, Nahuel. Dictadura Revolucionaria del Proletariado. Bogotá: Partido Socialista de
los Trabajadores, 1979, p. 151 (original em espanhol, tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


186 Hans Meyer

sociedade transicional. Portanto, não se pode adjudicar uma dinâmica li-


near e unidirecional ao Estado transicional, seja de “transição ao socia-
lismo” ou de “transição ao capitalismo”. Esta forma de reduzir o conceito
de ditadura do proletariado à “transição ao socialismo” induz a deixar de
lado toda a dialética materialista com a qual Marx e Engels o formularam,
assim como a forma como Trotsky o compreendeu em meio à burocrati-
zação do primeiro Estado operário.
Para esta definição, Morales se apoia em mencionar que “a ditadura
do proletariado, para Marx não era ‘… mais que a transição à abolição de
todas as classes e uma sociedade sem classes’”[6] e, no mesmo sentido, as-
sinala que Trotsky “a definia como ‘… uma ponte entre a sociedade bur-
guesa e a socialista’”[7]. No entanto, sendo justos com Marx e Trotsky, a
ditadura do proletariado é mais complexa.
A figura da ponte, tomada por Morales desta citação de Trotsky, nos
coloca a imagem de uma ponte onde só se transita em mão única, sem
maiores sobressaltos. Mas as pontes são muito mais que isso. Nas guerras,
as pontes, longe de ser vias pacíficas de comunicação entre um lado e
outro, são um campo de batalha particularmente importante para os
exércitos em luta.
Entender um Estado transicional, mesmo que seja como uma “ponte”
ou “caminho” com o objetivo de chegar ao outro lado, não se pode igno-
rar que nesse processo de “trânsito” podem acontecer muitas coisas,
avanços e retrocessos, forças contrárias que atuam simultaneamente em
outra direção sem que se modifique o caráter dessa transição.
Em termos programáticos, o principal desafio ao qual se enfrenta o
marxismo é o problema da superação do capitalismo em direção à ins-

[6]
MORALES, Fernando. «Acerca da Ditadura del Proletariado», Marxismo Vivo – Nova Época
n.° 14, 2019.
[7]
Idem.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 187

tauração do comunismo. É o desafio ao qual Marx e Engels tentaram res-


ponder desde o Manifesto Comunista e que depois foram corrigindo ou
melhorando ao calor da luta de classes na Europa e das discussões no in-
terior das organizações operárias. Em contraposição às ideologias pre-
sentes no movimento operário do século XIX, como o trade-unionismo,
o socialismo utópico e a democracia pequeno-burguesa, para Marx e En-
gels a passagem à sociedade sem classes não se daria mediante uma tran-
sição pacífica e gradual, onde o governo e o Estado capitalista fossem
tomados paulatinamente até que o proletariado tivesse suficiente poder
para utilizar o Estado e suas formas para implementar medidas socialis-
tas.
No entanto, também não é possível chegar ao comunismo prescin-
dindo do Estado depois de se tomar o poder, como defendia o anar-
quismo. Eles desconhecem que a transição ao comunismo passará
necessariamente por uma etapa com “as marcas do nascimento” da nova
sociedade. Ou seja, os traços capitalistas não desaparecem automatica-
mente. Características da velha sociedade seguirão provocando contra-
dições de classe no processo de transição, o que fará necessário manter
o Estado e a ação política por parte da classe operária no poder.
No Manifesto Comunista estão expostas, em termos gerais, as tarefas
e condições para a transição ao comunismo[8]. No entanto, os processos
revolucionários que aconteceram na Europa ao longo do século XIX ser-
viram a Marx e Engels para fazer precisões em alguns aspectos tanto de

[8]
Para Marx e Engels a superação do capitalismo se daria mediante uma revolução operária que
elevaria o proletariado à condição de classe dominante para despojar a burguesia de seu domínio
e propriedade dos meios de produção, que passariam a ser controlados e desenvolvidos sob o
proletariado constituído como classe governante. Isso só seria possível exercendo o poder político
do Estado, impondo uma ação despótica sobre a burguesia e o regime de propriedade burguesa.
Karl Marx y Friedrich Engels, Manifiesto del Partido Comunista. Bogotá D. C.: Centro Interna-
cional del Trotskismo Ortodoxo, 1998 (original em espanhol, tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


188 Hans Meyer

sua concepção de Estado como na dinâmica da revolução proletária. O


processo revolucionário dirigido pela burguesia em vários países da Eu-
ropa em 1848 termina com o golpe de Luis Bonaparte na França.
Este processo permitiu que Marx aprimorasse sua visão do Estado
como uma máquina que a burguesia vai aperfeiçoando em resposta à
luta de classes. Mas também indicou como “todas as revoluções (bur-
guesas) aperfeiçoavam esta máquina ao invés de destruí-la. Os partidos
que lutavam alternadamente pela dominação consideravam a conquista
deste imenso edifício do Estado como o despojo principal do vence-
dor”[9].
Esta lição é crucial para o proletariado, cuja missão histórica não é
chegar ao governo para aperfeiçoar a máquina estatal, como até esse mo-
mento tinham feito as revoluções precedentes, mas, como apontaria mais
adiante, a partir da experiência da Comuna de Paris, era necessário des-
truir esse Estado burguês para impor um Estado operário completa-
mente diferente, e pra isso, é necessária a ditadura do proletariado.
Na transição para a sociedade sem classes o proletariado tem a tarefa
descomunal de tomar o poder, destruir o velho aparato de estado e subs-
tituí-lo por outro tipo de Estado completamente novo, baseado na de-
mocracia operária e no princípio do trabalho coletivo. Este Estado, na
medida em que vai impondo a desaparição da propriedade privada dos
meios de produção e com isso as condições materiais para a existência
das classes sociais, vai construindo as condições para que o próprio Es-
tado, como instrumento político de dominação, se debilite até o ponto
de desaparecer junto com as classes. Todo esse longo processo de tran-
sição ao comunismo é o que chamamos de Socialismo.

[9]
MARX, Karl. «El Dieciocho Brumario de Luis Bonaparte,», en C. Marx y F. Engels Obras Es-
cogidas I, n.d., p. 313 (original em espanhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 189

No entanto, a experiência histórica posterior a Marx e Engels exigiu


outra precisão que eles não chegaram a fazer.
Como assinala Morales corretamente, “para o marxismo, o socialismo
surgiria das entranhas do próprio capitalismo, como superação das suas
contradições. Por isso, Marx e Engels opinavam que a revolução socia-
lista triunfaria primeiro nos países capitalistas europeus mais desenvol-
vidos”[10].
A revolução russa e a conquista do primeiro Estado operário e da pri-
meira ditadura do proletariado mostraram que a dinâmica da luta de
classes persiste e se intensifica após a tomada do poder e no início do
processo de transição do capitalismo ao comunismo continuam atuando
múltiplas contradições, produto dos interesses da classe e da ação con-
trarrevolucionária da burguesia, que, apesar de ter sido expulsa do poder
e ter sua propriedade expropriada, contava ainda com “uma base inter-
nacional, o capital internacional do qual são parte”[11], ou seja, o impe-
rialismo.
Mas a primeira ditadura revolucionária do proletariado triunfante (a
russa) mostrou alguns desafios não previstos por Marx. Em primeiro
lugar, que a revolução triunfou no “elo mais fraco da corrente”. Isto é, que
triunfou num país capitalista atrasado, inclusive com uma forte herança
feudal. Em segundo lugar, o mesmo caráter atrasado da Rússia tornava
mais urgente e vital que a revolução socialista triunfasse na Europa, in-
clusive às custas do Estado soviético. Quer dizer, tanto a sobrevivência
como o futuro da União Soviética dependiam da extensão da revolução
[10]
MORALES, Fernando. «Acerca da Ditadura do Proletariado», Marxismo Vivo – Nova Época
n.° 14, 2019.
[11]
LENIN, V. I. «Economía y Política en la época de la dictadura del proletariado», Obras Com-
pletas, Tomo XXXII, 95. Citado por Nahuel Moreno en Dictadura Revolucionaria del Proletariado,
p. 269.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


190 Hans Meyer

socialista pelo menos aos países com maior desenvolvimento das forças
produtivas e do proletariado como classe, como a Alemanha. Mas as ten-
tativas revolucionárias em vários países europeus, incluída a Alemanha,
foram derrotadas e em consequência o Estado operário russo ficou iso-
lado, submetido a seu atraso e à pressão permanente do imperialismo,
tanto no terreno político como no econômico.
Apesar do isolamento e da hostilidade do sistema imperialista que
cercava a jovem ditadura do proletariado russa, esta demonstrou a su-
perioridade do programa socialista. As medidas que chegaram a ser im-
plementadas no terreno econômico produziram um desenvolvimento
sem precedentes na história. No entanto, apesar dos impressionantes
avanços das forças produtivas soviéticas, o nível de desenvolvimento al-
cançado pelos países imperialistas continuava sendo muito superior. A
superioridade imperialista sobre a URSS teve como consequência que
esta nunca chegou a uma plena independência no terreno econômico,
já que o imperialismo seguiu dominando o mercado mundial e, por esta
via, continuou submetendo o Estado operário e atuando como fator de-
cisivo no fortalecimento das tendências capitalistas e no nascimento da
burocracia, que seria, em última instância, a protagonista da restauração
capitalista.
Fernando Morales interpreta corretamente que “a direção do Partido
Bolchevique esperava superar a contradição que significava construir
uma ditadura do proletariado em um país de ampla maioria camponesa
sobre a base do desenvolvimento da revolução internacional”[12] e que
“em vez de triunfar a revolução no resto dos países capitalistas mais avan-
çados, o que aconteceu, em grande medida por essa realidade, foi o

[12]
MORALES, Fernando. p. 84.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 191

triunfo da contrarrevolução stalinista na URSS”[13]. Sendo isso correto,


Morales ignora que precisamente a gênese do fenômeno da burocracia
stalinista e seu triunfo contrarrevolucionário na URSS foram produtos
da combinação dos fatores anteriormente descritos, que são os que o pró-
prio Trotsky utilizou para explicar a gênese do processo de burocratiza-
ção e degeneração da URSS.
Para Moreno, seguindo a análise de Trotsky, todos esses fatores, entre
os quais a existência do imperialismo é o determinante, fizeram que, em
vez de iniciar-se a extinção do Estado, se impusesse o fortalecimento do
Estado operário e portanto da ditadura do proletariado. A guerra civil e
a contrarrevolução imperialista obrigaram a adiar a regra programática
das milícias operárias para formar o Exército Vermelho, recorrendo in-
clusive a militares profissionais do velho exército czarista. Os efeitos da
guerra civil e o atraso herdado nas forças produtivas obrigaram o Estado
soviético a tomar medidas capitalistas de mercado, como a NEP, para su-
perar a fome e o profundo atraso econômico. O novo Estado, surgido
das cinzas do velho aparato burocrático do Estado burguês, também teve
que recorrer a boa parte dos velhos funcionários, fortalecendo assim o
aparato burocrático do Estado. A ditadura proletária que deveria ter-se
convertido rapidamente na “República democrática” que concentra “todo
o poder político nas mãos do povo” se viu obrigada a restringir as liber-
dades democráticas e a perseguir implacavelmente as expressões bur-
guesas que conspiravam contra o Estado operário.
Portanto, para Moreno, esta realidade imposta fundamentalmente
pelo imperialismo, implica entender a dinâmica da transição à sociedade
sem classes já não em dois momentos históricos: o socialismo (Estado

[13]
Ibidem.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


192 Hans Meyer

transicional, ditadura do proletariado) e o comunismo (sociedade sem


classes, extinção do Estado como poder político e de pleno desenvolvi-
mento da liberdade humana), mas em três momentos, duas etapas da di-
tadura do proletariado e o comunismo como tal:

Transcorridos sessenta anos da Revolução Russa, podemos ver que o que se ante-
cipava como uma só etapa durante a ditadura do proletariado ă a construção so-
cialista, a extinção das classes e da própria ditadura ă se transformou em duas
etapas ou tarefas históricas bem delimitadas. Uma primeira etapa na qual vivemos
há sessenta anos, cuja tarefa essencial é política, de luta implacável contra o im-
perialismo e que exige o fortalecimento do Estado operário, quer dizer da ditadura
de classe (que pode ser burocrática ou revolucionária). E uma segunda etapa, pos-
terior à derrota do imperialismo, cuja tarefa fundamental é econômica, cultural,
de construção do socialismo e na qual, tal como nossos mestres previram, o Estado
irá se extinguindo, a ditadura do proletariado irá se debilitando e dando lugar ao
florescimento mais completo e inimaginável das liberdades[14].

II

Ditadura do proletariado, stalinismo e restauração

Um dos argumentos usados por Morales para separar a categoria de


ditadura do proletariado do Estado operário é a de afirmar que os mar-
xistas, até antes da degeneração do primeiro Estado operário, usavam
como sinônimos Estado operário, ditadura do proletariado e transição
ao socialismo.
Para Morales, “estas considerações partiam do fato de que nenhum
marxista via a possibilidade da existência de um Estado operário no qual

[14]
MORENO, Nahuel. Dictadura Revolucionaria del Proletariado, p. 282 (original em espanhol,
tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 193

o proletariado não estivesse à sua frente”[15]. Portanto, a realidade de-


monstrada pela degeneração stalinista da União Soviética evidenciaria
que, embora esse Estado seguisse sendo um Estado operário, deixaria
de ser a ditadura do proletariado se se interrompesse a transição ao so-
cialismo.
Portanto, Morales propõe como saída teórica, para explicar a dinâmica
dos Estados operários sob o stalinismo e a restauração do capitalismo nes-
ses Estados, duas inovações a partir de uma primeira operação teórica:
separar a categoria da ditadura do proletariado da categoria de Estado
operário.
A partir daí, distingue dois tipos de Estados operários: o Estado ope-
rário em transição ao socialismo e o Estado operário degenerado, em
transição ao capitalismo.
Igualmente, diante do Estado operário degenerado ou burocrático,
como a URSS, já não seria uma ditadura do proletariado e no caso dos
Estados operários deformados surgidos no pós-guerra nunca foram di-
taduras do proletariado, pois nunca iniciaram a transição ao socia-
lismo.
Para Morales esta modificação da interpretação marxista clássica es-
taria sustentada nas elaborações de Trotsky sobre o Estado operário de-
generado, a natureza da burocracia stalinista e a própria realidade, que
demonstrou que “não necessariamente um Estado operário está em tran-
sição ao socialismo”[16].

///

[15]
MORALES, Fernando. p. 89.
[16]
Ibidem.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


194 Hans Meyer

Estado operário e ditadura do proletariado:


duas categorias independentes?

Embora Morales reconheça que “até a degeneração do Estado operá-


rio os marxistas não faziam uma clara diferenciação entre Estado ope-
rário, ditadura do proletariado e transição ao socialismo”[17], o fato de
que, mantendo-se as bases sociais do Estado operário, a burocracia sta-
linista expropriasse o poder político da classe operária até o ponto de
convertê-la em “uma classe dirigente e ao mesmo tempo oprimida”, como
disse Trotsky, coloca um problema teórico e político fundamental, pois
põe em tensão a própria definição do conceito de Estado e da ditadura
do proletariado que já analisamos.
O que acontece quando uma classe não pode exercer o poder sobre
seu Estado? Deixa de ser classe dominante? Deixa de existir a ditadura
de classe para abrir o caminho a outro tipo de ditadura?
As diferentes formas de abordar o conceito de ditadura do proleta-
riado não são contraditórias entre si, mas tampouco podemos tomar uma
delas de forma unilateral, negando ou subordinando as outras.
Morales comete assim um erro similar ao que cometeu Mandel e o
Secretariado Unificado da Quarta Internacional em sua resolução “De-
mocracia socialista e ditadura do proletariado”.
Para Mandel (interpretando Lenin) “a ditadura do proletariado (…)
não é outra coisa que a democracia operária[18].
Definir a ditadura do proletariado a partir de sua forma política de-
mocrática o leva a secundarizar as outras dimensões da ditadura do pro-

[17]
Idem, p. 88.
[18]
Secretariado Unificado-Cuarta Internacional, Democracia socialista y dictadura del proleta-
riado. Bogotá: Partido Socialista de los Trabajadores, 1979, p. 9.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 195

letariado, propondo assim uma definição política superestrutural. Evi-


dentemente, Morales não centra sua definição no problema da demo-
cracia operária como o elemento fundamental da definição da ditadura
do proletariado, mas comete um erro teórico similar ao priorizar a di-
mensão superestrutural (política) da categoria. Não nega as dimensões
sociais e estruturais, mas as desloca para ratificar a definição de Estados
operário burocratizados, negando ao mesmo tempo a caracterização des-
ses Estados como ditaduras do proletariado, apelando à dimensão super-
estrutural da categoria.
Moreno polemizou duramente com Mandel e a maioria do SU neste
terreno teórico. Para Moreno, precisamente esta definição unilateral de
Mandel sobre a ditadura do proletariado como sinônimo de democracia
operária leva Mandel a centrar sua definição nas instituições e na forma
em que deveria expressar-se o exercício efetivo do poder por parte da
classe operária.
Para Moreno, Mandel faz um fetiche das formas soviéticas e nega a
relação da ditadura do proletariado com a teoria e o programa de revo-
lução permanente para deter-se em normas e instituições.
É interessante ver como, para Moreno, este raciocínio se desprende:
(…) uma conclusão insólita: nenhum destes países (os Estados operários buro-
cratizados) são ditaduras proletárias. Não custa muito trabalho ver que as formas
de governo existentes na URSS, China, Cuba, etc., não cumprem nenhum só re-
quisito que exige a maioria do SU às ditaduras proletárias[19].

E Moreno vai mais longe:

De todo o documento se deduz que hoje em dia não existe nenhuma ditadura do
proletariado; da análise tradicional de Trotsky e do trotskismo (por exemplo, nu-
[19]
MORENO, Nahuel. Dictadura Revolucionaria del Proletariado, p. 233 (original em espanhol,
tradução nossa).

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


196 Hans Meyer

merosos trabalhos de alguns dos autores da resolução), se desprende que sim exis-
tem ditaduras proletárias, mas burocráticas, degeneradas e deformadas[20].

Para Moreno, a forma correta de definir a ditadura do proletariado é


a que realizou Trotsky nos anos trinta, ao analisar profundas contradi-
ções e tensões que atuavam dentro do Estado operário burocratizado.
Segundo Moreno, Trotsky,

Obrigado a adequar a resposta teórica aos fatos ocorridos, separou, dando-lhes


uma grande autonomia relativa, essas duas categorias fundamentais que não tin-
ham se combinado de forma harmônica: a superestrutura política e a estrutura
econômica, dando a esta última uma importância decisiva[21].

A partir desta “operação teórica”, Trotsky, sem negar a autonomia re-


lativa entre superestrutura e estrutura, dá “a esta última uma importância
decisiva”. De acordo com isto,

A partir da experiência concreta (Trotsky) abandonou a primitiva definição super-


estrutural do Estado baseado em sovietes revolucionários e democráticos para
tomar como parâmetro fundamental o social e não o político e defini-la como super-
estrutura estatal de relações de produção transicionais, não capitalistas. Dito de
outro modo, a superestrutura dos Estados operários[22].

Esta interpretação de Moreno sobre a forma de analisar e categorizar


tanto a natureza dos Estados operários burocráticos como a burocracia
stalinista estão de acordo com toda a elaboração de Trotsky a esse res-
peito realizada em meio às polêmicas com os antidefensistas, cujos tra-
balhos estão compilados no livro Em defesa do Marxismo[23].

[20]
Ibidem.
[21]
Idem, 236.
[22]
Ibidem.
[23]
TROTSKY, Leon. ABC del Marxismo. Buenos Aires: El Yunque, 1975.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 197

De acordo com Moreno, as análises de Trotsky levavam a diferenciar


claramente a ditadura do proletariado dos primeiros anos da União So-
viética, sob a condução de Lenin e do bolchevismo, da ditadura exercida
por Stalin e a burocracia soviética.
No entanto, Moreno vai mais longe. Dando continuidade a este mé-
todo de análise, propõe então uma diferenciação no tipo de ditadura pro-
letária, segundo o que esta expressa socialmente (estruturalmente) e sua
direção (superestrutura). Em seguida, colocamos uma extensa citação
que explica categoricamente estas definições, bem como suas implicações
na explicação das contradições nos Estados operários burocráticos e as
consequências políticas.

A de Lenin foi a expressão dos setores mais explorados dos operários, de sua van-
guarda internacionalista, revolucionária e da mobilização permanente das mas-
sas. A de Stalin, a dos setores privilegiados, a burocracia e aristocracia operárias
e da passividade das massas. Daí surgem as definições de ambos Estados ou países:
operário ou operário revolucionário, de Lenin; operário degenerado, de Stalin; ope-
rário por sua estrutura econômica, degenerado por sua superestrutura estatal.
Esta definição de Trotsky, que permite diferenciar qualitativamente a URSS leni-
nista da stalinista, pode simetricamente ser transladada à ditadura do proletariado
como o conteúdo de classe do Estado operário. Sob Lenin temos uma ditadura re-
volucionária do proletariado, voltando mais uma vez à definição de Marx e, sob
Stalin, outra degenerada, reformista ou, como preferimos defini-la, burocrática.
Se Trotsky tivesse se contentado somente em fazer essa nova definição do Estado
stalinista, não teria sido dialético. Entretanto, dedicou todos os seus últimos anos
a assinalar os efeitos que a superestrutura política contrarrevolucionária stalinista
tinha sobre a estrutura econômica, suas contradições cada vez mais agudas, sua
provável dinâmica e os perigos que encerrava; foi o único que explicou que o go-
verno stalinista debilitava sistematicamente a ditadura do proletariado, ao minar
sua economia e o apoio do movimento operário. Estas definições de Trotsky e o
método que as sustentam fundamentam a razão de ser do trotskismo. Toda ten-

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


198 Hans Meyer

tativa de definir a ditadura do proletariado a partir da superestrutura, e não da


estrutura, como faz a maioria do SU, mesmo que se apóie em citações de Lenin e
Trotsky dos primeiros anos da revolução, tem consequências funestas para a polí-
tica revolucionária: capitular, pela ultraesquerda ou pelo oportunismo, à opinião
pública imperialista e aos partidos social-democratas[24].

Estas definições, feitas por Moreno há mais de 40 anos, permanecem


sendo a continuidade das elaborações de Trotsky, expressão da aplicação
do materialismo histórico e da dialética materialista como método mar-
xista de análise. Seguem vigentes e sólidas para explicar a natureza dos
Estados operários e as profundas contradições sociais e políticas em seu
interior.
Desta forma, resgatando do esquecimento esta sólida contribuição de
Moreno, fica evidente a incorreta separação teórica entre o Estado ope-
rário e a ditadura do proletariado, assim como a definição desta última
a partir do superestrutural.
Da mesma forma, a classificação de tipos de Estados operários em
transição ao socialismo e Estados operários em transição ao capitalismo,
além de ser descritiva, não contribui com nada de novo que permita ex-
plicar a forma marxista dos fenômenos da restauração do capitalismo
nos Estados operários.
Por outro lado, as definições de Estados operários (revolucionários)
em contraposição ao Estado operário degenerado, burocratizado e de-
formado, e a ditadura revolucionária do proletariado frente à ditadura
burocrática do proletariado tal como foram defendidas por Moreno
mantêm plena vigência, inclusive depois da restauração capitalista.

[24]
MORENO, Nahuel. Dictadura Revolucionaria del Proletariado, pp. 238-239 (original em es-
panhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 199

A expropriação burocrática do poder político

Retomemos algumas questões expressadas acima. É um fato que no


Estado operário, que é uma ditadura da classe operária, a burocracia sta-
linista expropriou o poder político do proletariado. No entanto, é im-
portante fazer uma precisão, para diferenciar-nos dos que pensam ou
pensaram que a União Soviética sob Stalin tinha deixado de ser um Es-
tado operário e que caracterizavam a burocracia como uma nova classe
social privilegiada.
À medida que a burocracia stalinista, apesar de seus privilégios, não
se converteu em uma classe social, como uma casta refletia algum setor
de classe dentro do proletariado.
Para Moreno, o que a burocracia expressava, superestruturalmente,
eram os setores mais aristocráticos da classe operária e a imensa camada
de funcionários do Estado e do Partido. Portanto, em termos estritos, a
burocracia stalinista não era uma casta pairando no ar. Ela expressava
em sua ditadura burocrática os interesses desse setor privilegiado da
classe operária, o que significa que a classe operária não foi totalmente
expulsa do poder político e, portanto, do exercício da ditadura de classe.
Esta ditadura, sob o stalinismo, foi exercida pela camada privilegiada da
classe operária russa, que manteve uma desigualdade abismal com a base
operária oprimida pela casta.
Então, quem foi expulso do poder com o triunfo e a consolidação do
stalinismo? A vanguarda operária que protagonizou a revolução de 1917
e sua expressão mais avançada: a militância e a direção do partido bol-
chevique, revolucionária e internacionalista, que expressavam genuina-
mente os interesses da grande maioria da classe operária russa e mundial.
Recordamos que, tanto para Marx e Engels quanto para Lenin e
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
200 Hans Meyer

Trotsky, embora seja correto afirmar que a ditadura do proletariado é a


ditadura da maioria sobre uma minoria privilegiada (a classe burguesa),
a ditadura é exercida concretamente por uma minoria: a vanguarda mais
consciente, dirigida pelo partido revolucionário.
A possibilidade de exercício do poder político a partir de uma demo-
cracia direta de toda a classe operária foi negada pelas circunstâncias
hostis nas quais teve que triunfar e sobreviver a ditadura revolucionária
do proletariado dirigida por Lenin.
O triunfo do stalinismo e da burocracia foi o triunfo do setor de classe
(operária) mais conservador, que exerceu a ditadura para conservar seus
privilégios e impedir o avanço da revolução permanente, que necessa-
riamente a expulsaria do poder político e a despojaria de seus privilé-
gios.

O papel do imperialismo na restauração capitalista


nos Estados operários

No texto de Morales existe uma ausência importante para identificar


o papel do imperialismo na restauração capitalista nos Estados operários.
Embora a restauração não tenha se dado por meio de uma contrarrevo-
lução imperialista armada, pela via de invasões ou ataques militares, exis-
tiu uma política do imperialismo, que teve um papel nessa restauração.
Este papel, embora possa ter tido diferenças em cada caso, se centrou em
dois aspectos: o primeiro, a via da dominação imperialista na economia
mundial, a superioridade tecnológica, a crescente dependência financeira
e a corrida armamentista; o segundo, o imperialismo contribuiu à dete-
rioração econômica dos Estados operários, ao mesmo tempo em que au-
mentou as contradições internas da burocracia, introduzindo cada vez
­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020
Debates programáticos 201

mais elementos de pressão econômica nos setores da burocracia mais li-


gados ao comércio exterior.
Mas, além da política econômica imperialista para os Estados operá-
rios, o imperialismo também teve uma política de incidir nas contradi-
ções políticas, aproveitando o descontentamento das massas dos Estados
operários frente à ausência de liberdades democráticas. Seja com o dis-
curso dos direitos humanos ou com o papel das igrejas nos movimentos
de oposição (como na Polônia e na RDA), o imperialismo aproveitou a
ausência de direções revolucionárias para impedir que os processos de
revolução política conseguissem reverter a restauração capitalista e de-
rrotar as burocracias stalinistas.
Nossa corrente morenista elaborou a categoria de “Reação Democrá-
tica” para explicar a política imperialista depois da derrota dos Estados
Unidos no Vietnã, pela qual, ante a impossibilidade de desmontar pro-
cessos revolucionários pela via da contrarrevolução armada, ou direta-
mente pela via de guerras ou invasão militar, tentou desmontar os
processos pela democracia burguesa e pela ideologia dos direitos huma-
nos.
Ao estar ausente o papel do imperialismo, para Morales parece que o
problema da restauração capitalista foi um processo basicamente endó-
geno (nacional) e interno das burocracias.

Estados operários do pós-guerra

No texto de Morales existe outra afirmação muito importante: a União


Soviética iniciou o caminho ao socialismo e, portanto, foi uma ditadura
do proletariado até que o stalinismo abortou esse processo. Já os Estados
operários surgidos depois da Segunda Guerra, à medida que nunca con-
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
202 Hans Meyer

taram com um partido revolucionário à sua frente e a classe operária


nunca pôde exercer o poder político, nunca iniciaram o caminho ao so-
cialismo e portanto nunca foram ditaduras do proletariado.
Para Morales,
A experiência de quase um século mostra que só houve um Estado operário que
iniciou a transição ao socialismo: o Estado operário russo, ainda que depois essa
transformação tenha sido interrompida pelo triunfo da contrarrevolução stalinista.
Isso foi possível porque à frente dessa revolução esteve a classe operária dirigida
por um partido marxista, operário e internacionalista. Sem essa combinação, de
classe e direção, podem surgir novos Estados operários, mas a transição ao socia-
lismo se tornará impossível[25].

Isto coloca outro problema teórico importante: para Morales só o pro-


letariado é capaz de iniciar o caminho ao socialismo. Isto descarta que
outras classes ou outras revoluções que não forem dirigidas pelo prole-
tariado iniciem o caminho ao socialismo. Do ponto de vista do mar-
xismo e da experiência histórica das revoluções depois de 1848, só o
proletariado é capaz de conduzir a transição ao socialismo, mas fica a
questão de se só o proletariado pode iniciar esse caminho.
O surgimento de novos Estados operários no pós-guerra, na Europa
do Leste, China e Cuba, de acordo com este raciocínio, nunca iniciaram
o caminho ao socialismo, apesar da existência de bases sociais para os
Estados operários como transicionais para o socialismo. Esta contradição
volta a colocar a debilidade teórica da separação dos conceitos que já foi
abordada.
Mas também questiona a teoria da revolução permanente, tal como
foi interpretada por Nahuel Moreno e nossa corrente, no sentido da “hi-
pótese altamente improvável” de Trotsky, de que direções não operárias
[25]
MORALES, Fernando. p. 94.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 203

fossem além de seu programa e seus interesses de classe ao expropriar a


burguesia e assim conduzissem (ainda que burocraticamente) ao nasci-
mento de um Estado operário.
O fato de que as circunstâncias especiais que explicaram essa anoma-
lia hoje já não existam não descarta que essas circunstâncias não possam
voltar a se repetir, embora hoje em dia sejam novamente “altamente im-
prováveis”.

III

A crise do trotskismo diante da restauração capitalista

Um problema histórico importante é o balanço das análises, caracte-


rizações e principalmente da política para os Estados operários e a bu-
rocracia, um dos eixos deixados por Trotsky e pela Quarta Internacional
no Programa de Transição, que se traduziram nos eixos da revolução po-
lítica e da defesa do Estado operário frente a qualquer ataque do impe-
rialismo. A história do movimento trotskista está cheia de capitulações
ao stalinismo e a direções pequeno-burguesas, no entanto, Morales dá
uma explicação equivocada sobre a origem desses desvios.
Morales identifica que a crise do trotskismo diante da restauração ca-
pitalista foi resultado de um erro teórico e uma interpretação equivocada
das elaborações de Trotsky sobre a defesa do Estado operário, o combate
à burocracia stalinista e a necessidade da revolução política.
Morales vai tecendo uma explicação: a crise dentro do trotskismo,
produto da restauração do capitalismo nos Estados operários, tem ori-
gem em uma incompreensão “das elaborações de Trotsky a respeito da
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
204 Hans Meyer

URSS, fundamentalmente em uma interpretação errada da natureza da


URSS, da burocracia stalinista e dos métodos de defesa do Estado operá-
rio pela maioria do movimento trotskista. O erro estaria fundamentado
em que a direção da Quarta, depois do assassinato de Trotsky e da dis-
persão da organização em meio à Segunda Guerra Mundial, apesar de ter
tido um papel positivo na reorganização e continuidade da luta contra os
antidefensistas, considerou erroneamente “que a URSS sob o comando
de Stalin seguia avançando rumo ao socialismo, e esta caracterização foi
estendida aos outros Estados onde a burguesia fora expropriada”[26].
A direção da Quarta, a partir do pós-guerra, na qual Pablo teve um
papel central, em meio aos problemas da reorganização, iniciou (ainda
que tardiamente) uma série de debates teóricos e programáticos funda-
mentais sobre vários fatos contundentes da realidade, ante os quais a de-
bilidade da Internacional impediu uma melhor compreensão. O ascenso
revolucionário do pós-guerra não conseguiu superar o principal pro-
blema: a crise de direção revolucionária. A derrota do fascismo, a expro-
priação da burguesia no Leste europeu e logo na China e em Cuba
terminaram com a formação de Estados operários burocratizados, diri-
gidos pelo stalinismo e/ou direções pequeno-burguesas.
Efetivamente a maioria do trotskismo não conseguiu dar respostas
teóricas e programáticas adequadas a esses profundos fenômenos da re-
alidade, seja por análises sectárias e doutrinárias ou por análises impres-
sionistas e objetivistas.
Por um lado, o fato de que nenhuma das expropriações da burguesia
fora realizada pela classe operária conduzida por um partido marxista
revolucionário conduziu a um setor do trotskismo a negar-se a recon-
hecer os Estados surgidos dessas expropriações como operários.
[26]
MORALES, Fernando. p. 96.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 205

Esta posição sectária acentuou o caráter propagandista destes setores.


Mas o setor majoritário, sob a direção de Pablo, a partir de um grande
acerto de identificar os novos Estados operários, cometeu o erro de so-
brevalorizar as condições objetivas que levaram as direções não operárias
a ir além de seu programa e a acreditar que o stalinismo e as direções
pequeno-burguesas podiam cumprir um papel progressista, ou seja, po-
diam transformar-se em direções revolucionárias.
Isto levou a outro tipo de desvio, o revisionismo, que conduziu à po-
lítica do “entrismo sui generis” e a capitulações permanentes ou recorren-
tes ao stalinismo, como bem destaca Morales[27].
Para Trotsky, em meio ao ascenso do fascismo e iminência da Segunda
Guerra Mundial, a defesa das bases sociais do Estado operário degene-
rado na URSS se expressava na imprescindível luta contra a burocracia
(como afirma Morales), mas também no rechaço a um eventual ataque
imperialista contra a URSS, ataque que não era uma mera especulação
nesse momento, mas um risco iminente.
Estamos de acordo em que existiu uma “compreensão incorreta dos
métodos de defesa”; no entanto, vale a pena que nos detenhamos em ver
quais foram essas incompreensões do trotskismo do pós-guerra em re-
lação ao método de defesa dos Estados operários.
Para Morales, o erro foi que o movimento trotskista concretizou a
orientação programática da defesa dos Estados operários em um apoio
às burocracias stalinistas “ao defender permanentemente a URSS de um
possível ataque do imperialismo que, depois da Segunda Guerra, nunca
existiu, em vez de defendê-la de quem a atacava cotidianamente, a bu-
rocracia”[28].

[27]
Ídem, p. 99.
[28]
Idem, p. 97.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


206 Hans Meyer

Embora a Terceira Guerra Mundial nunca tenha acontecido, nem


existiu uma ofensiva militar imperialista contra os Estados operários,
isto não significou que o imperialismo não tivesse uma política perma-
nente para restaurar o capitalismo nos Estados operários. Enquanto se
mantinham a política de coexistência pacífica e as tensões da Guerra
Fria, enquanto o stalinismo conduzia à estagnação das economias dos
Estados operários, o imperialismo, sustentado no boom econômico do
pós-guerra e nos desenvolvimentos tecnológicos da eletrônica e da in-
formática, aprofundou o atraso econômico e tecnológico dos Estados
operários. Além disso, a política do socialismo num só país não só se
traduziu na traição consciente do aparato stalinista mundial aos proces-
sos revolucionários nos países capitalistas, mas também no isolamento
econômico e na cada vez maior dependência comercial e nas crescentes
dívidas externas contraídas com o sistema imperialista mundial.
Em Ditadura Revolucionária do Proletariado, Nahuel Moreno aborda
este problema ao explicar porque até esse momento (1978) não tinha
acontecido nenhum ataque imperialista, nem a restauração capitalista
nos Estados operários. Para Moreno, o que explica que em 60 anos não
tivesse sido levada a cabo a contrarrevolução imperialista é que até 1939
o imperialismo não tinha feito uma frente única contra os Estados ope-
rários, já que no pós-primeira guerra estava muito ocupado em recupe-
rar-se e depois, com o boom econômico, não foi imprescindível recuperar
os mercados dos Estados operários[29]. Mas logo mostra como isso estava
mudando desde fins dos anos 60. Recordemos que já nesse momento se
esgotava o boom econômico; as potências imperialistas europeias esta-
vam completamente recuperadas dos estragos da guerra e “o intercâmbio
comercial e financeiro entre os Estados operários e o imperialismo ia au-
mentando”[30].
[29]
MORENO, Nahuel, op. cit. p. 87.
[30]
Idem, p. 88.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 207

Nesse contexto surge o Plano Carter e a política de reação democrá-


tica, que teve um papel determinante no salto das tendências restaura-
cionistas da burocracia e na cooptação de setores dissidentes dentro dos
Estados operários.
Mas a política do imperialismo não se deu somente no terreno eco-
nômico e ideológico. A política da escalada armamentista teve uma ex-
pressão determinante na Guerra das Galáxias, lançada por Reagan contra
a URSS nos anos 80.
Esta política armamentista, sem abandonar a reação democrática, era
por um lado a saída da crise econômica do próprio imperialismo, à me-
dida que, nesse momento, significou injetar algo como 300 bilhões de
dólares nas principais multinacionais norte-americanas, e ao mesmo
tempo era um mecanismo de desgaste da URSS, já que para o Estado
operário o gasto militar era um gasto absoluto de recursos sociais. Para
o imperialismo, a guerra é um negócio, para a classe operária, é um gasto
excessivo. A crise econômica da URSS aumentou tentando responder à
ofensiva imperialista, que era parte da batalha tecnológica, mas com um
objetivo concreto.
O armamento da Al Qaeda por parte do imperialismo norte-ameri-
cano no Afeganistão foi outra parte do plano, que obrigou a burocracia
soviética a embarcar em uma invasão, que desde o começo qualificamos
como o Vietnã da URSS.
Outra frente de ação imperialista que teve incidência na derrota das
revoluções políticas foi a penetração dos sindicatos soviéticos pela AFL-
CIO, que terminou de corromper as direções sindicais dos trabalhadores
russos, já suficientemente corrompidas pelo stalinismo, levando-as di-
retamente ao campo da colaboração aberta com o imperialismo, em es-
pecial com o Partido Democrata e todos seus agentes.
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
208 Hans Meyer

Morales antepõe dois métodos de defesa[31]: por um lado, coloca a de-


fensa incondicional dos Estados operários frente a um possível ataque
do imperialismo e, por outro, a defesa do Estado operário contra quem
o atacava permanentemente. Como o ataque imperialista nunca se deu
e o que foi permanente foi o ataque interno da burocracia contra as bases
sociais e políticas do Estado operário, a conclusão é que foi equivocada
a política de defesa ante um ataque imperialista que, além de irreal, le-
vava ao apoio à burocracia.
Moreno defendia que a razão de ser do trotskismo era a revolução po-
lítica, raciocínio que ampliava a batalha contra o stalinismo e a burocra-
cia nos países capitalistas. Mais de uma vez Moreno expressou que a
razão de existência do trotskismo era a restauração da democracia ope-
rária em todas as instituições de classe, tanto nos Estados operários
como nas instituições dos trabalhadores no mundo capitalista.
Mas a máxima programática da revolução política não levava Moreno
a minimizar o papel do imperialismo e o risco de ataques ou de inter-
venção imperialista, enfatizando a necessidade de educar a classe ope-
rária na política de defesa das bases materiais do Estado operário sem
cair no apoio político ao stalinismo, tal como formulava Trotsky na po-
lêmica contra os antidefensistas.
Morales cita Trotsky (“A URSS em guerra”[32]) quando alertou que “Os
mal-entendidos em relação ao assunto da defesa da URSS nascem fre-
quentemente da compreensão incorreta dos métodos de ‘defesa’”. No en-
tanto, seria útil continuar com o raciocínio de Trotsky a esse respeito,
quando esclarece qual é a incompreensão dos antidefensistas:

[31]
MORALES, Fernando, p. 97.
[32]
TROTSKY, Leon. «En Defensa del Marxismo», acessado 10 de fevereiro de 2020,
https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1940s/dm/02.htm.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 209

(…) alguns de nossos camaradas dizem: como não queremos nos transformar em
instrumentos de Stalin e seus aliados, renunciamos à defesa da URSS. Mas com
isto só demonstram que entendem “defesa” tal qual fazem os oportunistas: não
pensam em termos de uma política independente do proletariado. Como questão
de princípio, defendemos a URSS como defendemos as colônias, como resolvemos
todos nossos problemas, não apoiando uns governos imperialistas contra os outros,
mas pelo método da luta de classes internacional, tanto nas colônias como nas
metrópoles[33].

A incompreensão radica em não entender que a defesa do Estado ope-


rário “não significa aproximar-se da burocracia do Kremlin, aceitar sua
política ou de seus aliados”, significa manter a independência de classe
frente à burocracia stalinista e aos governos imperialistas, sejam aliados
circunstanciais ou inimigos da burocracia. Isto é o que não compreendeu
a maioria do movimento trotskista, que terminou entendendo a defesa
do Estado operário como defesa dos governos burocráticos dos Estados
operários. A esse respeito, Trotsky esclarece ainda mais:

Não somos um partido de governo: somos o partido da oposição irreconciliável


não só nos países capitalistas, mas também na URSS. Realizaremos nossas tarefas,
entre elas, “a defesa da URSS” não através dos governos burgueses nem do Governo
da URSS, mas através da agitação e educação das massas, explicando aos trabal-
hadores o que devem defender, o que não devem defender e o que devem destruir.
Esta “defesa” não vai dar resultados milagrosos nem imediatos. Mas não preten-
demos ser vendedores de milagres. Assim como estão as coisas, somos uma minoria
revolucionária[34].

Em conclusão, temos acordo de que o movimento trotskista derivou


sua política de capitulação às burocracias dos Partidos Comunistas e a
outras variantes de direções não operárias devido a interpretações equi-
[33]
Ibidem.
[34]
Ibidem.

São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­


210 Hans Meyer

vocadas do legado de Trotsky, que conduziu a erros teóricos e progra-


máticos. A diferença está em que não se pode reduzir a concepção de
defesa dos Estados operários ao combate à burocracia e ao impulso da
revolução política, deixando de lado a permanente necessidade de de-
fender as bases sociais do Estado operário da política restauracionista
do imperialismo.
Vale a pena reproduzir na íntegra a conclusão de Trotsky, onde se vê
claramente a hierarquia programática da defesa da URSS.

Não devemos perder de vista nem por um momento o fato de que para nós a des-
truição da burocracia soviética está subordinada à preservação da propriedade
estatal dos meios de produção na URSS; mas a questão de preservar a propriedade
estatal dos meios de produção na URSS está subordinada à revolução proletária
mundial[35].

IV

A Ditadura do Proletariado e nosso programa

Marx e Engels tiveram que combater teórica e programaticamente as


tendências reformistas que preconizavam a via ao socialismo pelo ca-
minho da tomada gradual do Estado e das reformas. A formulação da
ditadura do proletariado se deu em resposta a estas teorias e, claro, como
conclusão das experiências históricas das revoluções burguesas e da pri-
meira tentativa de revolução operária: a Comuna de Paris.
Ao longo da história das revoluções e dos partidos operários de ori-
[35]
Ibidem.

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020


Debates programáticos 211

gem marxista, os que renunciaram ou degeneraram a concepção da di-


tadura do proletariado abandonaram a essência do programa marxista
e continuaram pelo caminho da capitulação e da integração à democracia
burguesa, ou pior, às ditaduras bonapartistas.
Nos anos sessenta do século passado surgiu o fenômeno eurocomu-
nista, quando no interior dos partidos comunistas espanhol, italiano e
francês se consolidou uma tendência que renunciava nominalmente à
palavra de ordem de ditadura do proletariado, com umas poucas críticas
aos piores traços bonapartistas das burocracias stalinistas. Esses partidos,
longe de retornar às bases marxistas e leninistas, continuaram pelo ca-
minho da integração ao regime político imperialista dominante em seus
países, caminho que já havia sido percorrido pela velha social-democra-
cia.
Mas este fenômeno também tocou as filas do trotskismo, quando, em
uma tentativa de resposta em defesa da ditadura do proletariado à qual
renunciavam os eurocomunistas, o SU de Mandel terminou revisando a
concepção marxista de Estado e renunciando à experiência revolucio-
nária condensada na necessidade da ditadura do proletariado para liqui-
dar a velha sociedade capitalista e avançar ao socialismo.
O que em princípio parecia uma defesa da ditadura do proletariado e
da democracia operária pôde ser revelado por Moreno como uma capi-
tulação tanto ao eurocomunismo como à democracia burguesa e ao im-
perialismo. Hoje, a mais de quarenta anos desse debate, o rumo tomado
pelo mandelismo mostra que Moreno tinha razão.
Na sua elaboração programática, a LIT deve seguir reivindicando e
continuar a batalha que deu Moreno e nossa corrente para manter a di-
tadura do proletariado como eixo do nosso programa. O profundo sig-
nificado da ditadura do proletariado como eixo do programa tem a ver
São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020 ­
212 Hans Meyer

com a relação que esta tem com a teoria da revolução permanente. Para
Moreno:

(…) o objetivo fundamental da ditadura revolucionária do proletariado continua


sendo o de continuar a revolução e a mobilização permanente dos trabalhadores
contra todo tipo de exploração em escala nacional e internacional; o que por outro
lado é a única maneira que tem uma ditadura revolucionária de sobreviver e des-
envolver-se, pois se ficasse restrita às suas fronteiras nacionais, seu desenvolvi-
mento econômico provocaria contradições cada vez mais agudas e
irreconciliáveis[36].

***

[36]
MORENO, Nahuel. Dictadura Revolucionaria del Proletariado. Bogotá: Partido Socialista de
los Trabajadores, 1979 (original em espanhol, tradução nossa).

­ São Paulo ­ Ano XI ­ N.° 16, p. 176­212 ­ Novembro de 2020

Você também pode gostar