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DECLARAÇÃO

A eDOC BRASIL declara para os devidos fins que a ficha catalográfica constante
nesse documento foi elaborada por profissional bibliotecário, devidamente registrado
no Conselho Regional de Biblioteconomia, estando a mesma de acordo com as normas
REVISTA AMÉRICA SOCIALISTA - EM DEFESA DO MARXISMO
do Códigonº 19
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Diretor: Serge Goulart Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e com a Lei Federal n. 10.753/03.
Editora: Maritania Camargo
Além
Tradução: Fabiano disso,
Leite a eDOC Leal
e Fernando BRASIL solicita que a ficha catalográfica não seja alterada sem
Colaboração de Carolina Fonseca de Jesus
consulta
Revisão: Bruna prévia
dos Reis, e que
Felipe o cabeçalho
Libório, seja mantido,
Flávia Antunes, atestando
Francine a conformidade
Hellmann, da mesma.
Gilmara Martins,
Lenonardo Mendes Neves, Mayara Colzani e Tiago de Carvalho
Capa: Evandro Colzani
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Bibliotecário responsável: Maurício Amormino Júnior (CRB6-2422)

É permitido a alteração da tipografia, o tamanho e a cor da fonte da ficha


catalográfica de modo a corresponder com a obra em que ela será utilizada.
Entretanto, o cabeçalho deverá ser mantido e outras alterações deverão ser
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Setembro Brasil.
2021

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Bem-vindos
A edição 19 da América Socialista marca o início de uma nova etapa.
Unificada com a revista In Defense of Marxism, ela passa a ser traduzida
para vários idiomas e divulgada não só nas Américas, mas em todo o
mundo.
A nova revista América Socialista – Em defesa do Marxismo está
remodelada e consolida-se como um periódico semestral, de defesa
das ideias do marxismo com independência de classe.
Já nesta primeira edição, ela está sendo publicada em português,
inglês, espanhol, alemão e sueco. Além disso, já está organizada para
as próximas edições a ampliação significativa das traduções e dos
países de abrangência.
A edição brasileira que você tem em mãos ganhou um novo projeto
gráfico, inspirado na In Defense of Marxism, mas que mantém a
estrutura consolidada entre nossos militantes e apoiadores por mais
de 10 anos de existência.
Esta revista permanece como a principal campanha financeira da
Esquerda Marxista, realizada semestralmente.
Desejamos uma boa leitura e desde já agradecemos o apoio
de todos que ajudam a manter viva a tradição revolucionária da
imprensa operária.

Arte de capa
No ano em que o mundo homenageia Dante Alighieri, a Esquerda
Marxista presta sua homenagem com uma capa que reúne importantes
obras inspiradas no poeta e em sua obra-prima “A Divina Comédia”.

01 04 05

02 06

03 07

1. Retrato Alegórico de Dante, por Agnolo Bronzino (1530);


2. Dante e Beatriz, por John William Waterhouse (1914);
3. Ilustração baseada no Inferno de Dante, publicada na edição
veneziana de “A Divina Comédia” de 1520;
4. Dante e Virgílio no Inferno, por William-Adolphe Bouguereau (1850);
5. Ilustração baseada no retrato de Dante Alighieri de Sandro Botticelli;
6. Dante e seu poema, por Domenico di Michelino (1465);
7. Dante encontra Beatriz, por Raffaello Sorbi (1903).

marxismo.org.br
Índice
p3 Em defesa do marxismo - uma palavra aos nossos leitores
Alan Woods

Uma breve apresentação da nova estrutura da revista Indefence of Marxism e


fundamentalmente a necessidade de defesa das ideias marxistas. Um artigo de combate que
explica a importância da teoria para a tomada do poder.

Marxismo versus Pós-modernismo p7


Daniel Morley e Hamid Alizadeh

Aqui os autores apresentam o primeiro de uma série de artigos onde a filosofia pós-moderna será
analisada, a partir de uma perspectiva marxista. O texto retoma as origens históricas da filosofia
e combate a influência funesta da pós-modernidade dentro e para além dos muros da academia.

p16 “Narrativas de Esquerda” ou luta de classes?


Yola Kipcak

É preciso construir uma nova “narrativa de esquerda” ou precisamos construir o partido


revolucionário e transformar a sociedade? Responder a esta pergunta é o objetivo central
do texto de Kipcak.

O mito de Gramsci, “O Ocidental” (parte 2) p21


Francesco Giliani

Nesta parte, compreendemos como o pensamento de Gramsci foi deformado, apagando-o


como quadro político e transformando-o em um intelectual resignado ou confiante no poder da
crítica cultural, em um contexto de burocratização do PC italiano e da Internacional Comunista.

p32 Os bolcheviques e a juventude (parte 3)


Evandro Colzani

Na terceira e última parte deste artigo, analisamos a relação da juventude com a Oposição
de Esquerda - na luta contra o desenvolvimento da burocracia na União Soviética - e os
artigos de Trotsky dos anos 1930 sobre a importância dos jovens na luta pelo socialismo.

Dante Alighieri: um militante partidário, um gênio das letras p38


Maritania Camargo

Em 2021 o mundo relembra vida e obra de Dante Alighieri, o maior poeta Italiano e para
muitos o maior poeta de todos os tempos. Compreender o que leva um homem a cravar
história e obra através dos séculos é o objetivo central do texto que apresentamos.
EM DEFESA DO MARXISMO
UMA PALAVRA AOS NOSSOS LEITORES
Alan Woods

“Um jornal que se propõe a ser um órgão ma- sueco já estão planejadas, e outros idiomas Como Lenin apontou em seu clássico
terialista militante deve ser principalmente um seguirão). Ela será publicada em dezenas de do marxismo “O que fazer?”:
órgão militante, no sentido de desmascarar e de- países ao redor do mundo, em papel ou em
nunciar com firmeza todos os modernos ‘lacaios formato digital. “Sem teoria revolucionária não pode haver
graduados do clericalismo’, independentemente Confiamos que nossos leitores exis- movimento revolucionário. Não se pode in-
de atuarem como representantes da ciência ofi- tentes continuarão a nos dar o mesmo sistir muito nessa ideia em uma época em
cial ou como freelancers chamando-se a si pró- apoio entusiástico de sempre e espera- que a pregação da moda do oportunismo
prios de publicitários de ‘esquerda democrática mos receber um grande número de novos anda de mãos dadas com uma paixão pelas
ou ideologicamente socialistas’” (Lenin, On the leitores, convencidos de que as ideias do formas mais restritas de atividade prática”.
Significance of Militant Materialism). marxismo continuarão a ser uma fonte

B
inesgotável de inspiração para os traba- A luta de classes revolucionária não
em-vindo à mais recente edição de lhadores revolucionários e para a juven- pode ser reduzida à luta imediata do pão
In Defense of Marxism, que represen- tude em todos os lugares. com manteiga da classe trabalhadora.
ta um novo e estimulante ponto de Entre as inúmeras seitas em disputa que
partida para nossa revista. A IMPORTÂNCIA DA TEORIA falsamente reivindicam o título de mar-
Nos nove anos desde que começou a ser O primeiro número da IDoM renova- xistas, frequentemente encontramos um
publicada, na primavera de 2012, a revista In da é uma edição especial dedicada prin- desprezo velado pela teoria e uma ado-
Defense of Marxism (IDoM) estabeleceu uma cipalmente ao tema do marxismo versus ração servil pelo que eles consideram ser
sólida reputação por análises marxistas sé- pós-modernismo. Algumas pessoas po- “questões práticas”.
rias e comentários sobre questões teóricas e dem se surpreender com esta decisão. Os jornais das seitas estão cheios de
candentes do movimento trabalhista. Por que perder tempo discutindo ideias agitação barata, escritos em estilo “po-
Embora tenha sido lançado inicialmen- abstratas e obscuras que não têm rele- pular”, como se os trabalhadores fossem
te como um jornal britânico, sempre teve vância para a classe trabalhadora? crianças incapazes de apreender “ideias
uma forte orientação e audiência interna- Mas essa crítica perde totalmente difíceis”. Isso apenas mostra um despre-
cionais. Seguiu de perto a linha política do o sentido. O marxismo não se limita zo esnobe pelos homens e mulheres da
marxist.com, o conhecido site que ganhou à agitação sobre questões de interesse classe trabalhadora, uma característica
uma merecida reputação por sua defesa imediato para as massas da classe tra- típica da mentalidade pequeno-burgue-
consistente e intransigente da ideologia e balhadora. O marxismo é muito mais sa e característica de pessoas que não
dos princípios do marxismo revolucionário. do que um programa político e uma têm nenhum conhecimento real da clas-
Já faz algum tempo que sentimos que a teoria econômica. É uma filosofia, se trabalhadora.
Corrente Marxista Internacional precisava de cujo vasto escopo cobre não apenas a Na verdade, os trabalhadores logo se
um periódico teórico, e o candidato óbvio para política e a luta de classes, mas toda cansam de ouvir coisas que já sabem mui-
esse papel era o IDoM, que tinha a vantagem a história humana, a economia, a so- to bem. Eles estão bem cientes de que são
de já estar “pronto” e bem estabelecido. ciedade, o pensamento e a natureza. explorados pelos patrões, de que vivem em
A linha política da revista não mudará, Esquece-se frequentemente que Marx casas ruins, de que recebem salários mui-
a não ser pelo novo layout e apresentação. e Engels começaram como filósofos to baixos, de que pagam muito por água
No entanto, a nova revista agora aparecerá e que uma filosofia revolucionária, o e eletricidade, e assim por diante. Mas os
em vários idiomas além do inglês (tradu- materialismo dialético, está no cerne trabalhadores pensantes – aqueles que já
ções para espanhol, português, alemão e de seu pensamento. compreenderam a necessidade de uma mu-

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dança fundamental na sociedade – não se
alimentarão com essas migalhas rançosas.
Os trabalhadores mais avançados e
militantes buscam alimentos mais sa-
tisfatórios. Eles desejam adquirir uma
compreensão séria do mundo em que
vivem. Longe de serem desencorajados
pela teoria, esses trabalhadores têm sede
de conhecimento e de ideias. É tarefa dos
marxistas genuínos ajudá-los a adquirir
essas ideias.
Sem teoria, não teríamos razão de
existir como uma tendência política sepa-
rada. É o que nos distingue, por um lado,
dos reformistas das variedades de esquer-
da e direita e, por outro lado, dos sectários
estúpidos. O papel da nossa revista não é
dizer aos trabalhadores o que eles já sa-
bem, mas fornecer-lhes o arsenal teórico
necessário para prepará-los para as gran-
des tarefas que se avizinham.
A luta pela teoria é um pré-requisito
fundamental para preparar os traba-
lhadores para a luta pelo poder. Quem
não entende isso não entende o que é o
marxismo. Ao lado das lutas econômi-
cas e políticas, como explica Engels, a
classe trabalhadora também deve travar
uma guerra contra as ideias dominantes
na sociedade burguesa. O livro “Anti-
Dühring”, de Engels e o livro de Lenin
sobre empiriocriticismo foram exem-
plos clássicos dessa luta.
É nosso dever ir à ofensiva contra as
ideias burguesas reacionárias que estão Uma das principais máximas do com o outro que o onanismo e o amor sexual”.
sendo continuamente difundidas pelas pós-modernismo é a negação do pro- A filosofia burguesa moderna prefere o
universidades. Devemos expor impiedo- gresso na história. Mas mesmo a consi- primeiro ao último. Em sua obsessão por
samente os professores burgueses pelo deração mais superficial da história in- combater o marxismo (e o materialismo
que eles realmente são: “lacaios gradua- dica claramente a existência de períodos em geral), ela arrastou a filosofia de vol-
dos do clericalismo”, para usar a frase com de grande avanço, e também períodos de ta ao pior período de seu passado antigo,
a qual Joseph Dietzgen descreve os pro- regressão evidente. Estes períodos encon- desgastado e estéril.
fessores universitários – os apologistas tram seu reflexo inevitavelmente na his-
idealistas do sistema capitalista. tória do pensamento em geral e da filoso- UM PERÍODO DE DECLÍNIO
O materialismo dialético continua fia em particular. Nossa era é um período de declínio.
sendo uma das armas mais importantes No período de sua ascensão históri- O sistema capitalista mostra sintomas
de nosso arsenal revolucionário. E uma ca, a burguesia desempenhou um papel claros de decadência terminal. Aqui,
vez que o materialismo dialético é a base mais progressista, não apenas no desen- somos confrontados com um parado-
e o fundamento do marxismo, é bastante volvimento das forças produtivas, o que xo. Por um lado, a marcha da ciência
lógico que, de todas as teorias de Marx, expandiu poderosamente o poder da hu- levou o conhecimento humano a altu-
nenhuma outra tenha sido tão atacada, manidade sobre a natureza, mas também ras vertiginosas. Um por um, a nature-
distorcida e caluniada. na expansão das fronteiras da ciência, do za é obrigada a revelar seus segredos.
No período atual, a arma mais proe- conhecimento e da cultura. Os velhos mistérios que homens e mu-
minente da burguesia contra o marxismo Lutero, Michelangelo, Leonardo, lheres tentaram explicar por meio da
tem sido o pós-modernismo, que é a for- Dürer, Bacon, Kepler, Galileu e uma série religião e do sobrenatural foram ana-
ma mais crua de idealismo subjetivo. A de outros pioneiros da civilização bri- lisados e compreendidos.
honra de lutar contra a corrente, de com- lham como uma galáxia, iluminando a No entanto, apesar de todos esses
bater essas ideias místicas e irracionais, ampla estrada do avanço cultural e cien- avanços, a filosofia chegou a um beco
cabe à vanguarda revolucionária da classe tífico humano aberta pela Reforma e pelo sem saída. Não tem mais nada de inte-
trabalhadora. Renascimento. ressante a dizer. Seu atestado de óbito
Cada escola de filosofia, nos últimos Em sua juventude, a burguesia foi capaz foi emitido pelo pós-modernismo, que
150 anos, pelo menos, é apenas uma re- de produzir grandes pensadores: Locke, nem mesmo merece o nome de filosofia.
gurgitação, de uma forma ou de outra, Hobbes, Kant, Hegel, Adam Smith e Ricar- A degeneração da filosofia burgue-
das ideias irracionais do idealismo sub- do. No período de seu declínio, ele só é capaz sa é um reflexo do beco sem saída do
jetivo – as variedades mais toscas, ab- de produzir o que Marx apropriadamente próprio sistema capitalista. Um sis-
surdas e inúteis de idealismo. A última descreveu como picadas de pulgas. tema que se tornou irracional deve
moda pós-modernista é apenas mais Marx certa vez observou: “A filosofia e o se apoiar em ideias irracionais. Um
uma dessas variantes. estudo do mundo atual têm a mesma relação um homem à beira de um precipício não

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é capaz de pensar racionalmente. De APOSTASIA dem atrás de uma barreira impenetrável
maneira vaga, os ideólogos da burguesia Os estados de espírito radicais do de linguagem incompreensível, compli-
sentem que o sistema que defendem está intelectual pequeno-burguês têm um cada e intencionalmente ambígua.
chegando ao fim. A disseminação de caráter muito instável. Embora possa
tendências irracionais, misticismo e fa- ser contagiado pelo otimismo revo- PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS...
natismo religioso reflete a mesma coisa. lucionário da classe trabalhadora du- Polônio: O que você lê, meu senhor?
A mania pós-modernista que passa rante os tempos de crescente luta de Hamlet: Palavras, palavras, palavras.
por filosofia em nosso tempo é em si classes, pode rapidamente mudar de
mesma uma confissão da mais abjeta direção. Os intelectuais radicais chi- Hoje em dia, os idealistas subjetivos
falência intelectual. O mero fato de que ques que flertaram com a Revolução em estão reduzidos a lutar numa ação de-
essa “narrativa” pós-moderna pudesse 1968 ficaram rapidamente desanima- sesperada de retaguarda, que equivale
ser levada a sério como uma nova filo- dos. A grande maioria, principalmente à dissolução total da filosofia, reduzin-
sofia é em si uma condenação esmaga- na academia, foi tomada por sentimen- do-a inteiramente à semântica (o estu-
dora da bancarrota teórica do capitalis- tos de pessimismo e incerteza. do do significado das palavras).
mo e da intelectualidade burguesa na Os pós-modernistas conferem à
época da decadência imperialista. linguagem poderes extraordinários.
O pós-modernismo nega o conceito O pós-modernismo Eles argumentam que, se mudarmos
de progresso histórico em geral, pela é a forma mais as palavras que usamos na linguagem
simples razão de que a sociedade que o cotidiana, tomando o cuidado para
gerou é incapaz de qualquer progresso. extrema de idealismo. não ofender ninguém usando termos
Isso não é por acaso. Milhões de pes- É uma rejeição do “opressivos”, então iremos abolir a pró-
soas enfrentam um futuro incerto. A pria opressão. Mas a verdadeira opres-
ruína geral não atinge apenas a classe materialismo, da são que sofrem todos os dias milhões de
trabalhadora, mas se estende à classe comunalidade da trabalhadores, camponeses, mulheres
média, aos alunos e professores, aos e pobres não é causada pelo uso indevi-
pesquisadores e técnicos, aos músicos e experiência e da do da linguagem, mas pelas reais con-
artistas, aos professores e aos médicos. percepção humana dições de uma sociedade que está for-
Nessas condições, um clima de pes- temente dividida entre ricos e pobres,
simismo apodera-se da intelectualida- e uma rejeição da exploradores e explorados.
de, que ontem via o capitalismo como possibilidade da Não se muda a essência de uma coi-
fonte inesgotável de carreiras e garan- sa mudando seu nome. Shakespeare es-
tia de um padrão de vida confortável. solidariedade humana. creveu que uma rosa com qualquer ou-
Há um fermento geral na classe média, tro nome terá o mesmo cheiro doce. E o
que encontra sua expressão mais aguda capitalismo com qualquer outro nome
na intelectualidade. Essa é a base mate- Eles decidiram que a classe tra- terá o mesmo cheiro. Aqui temos a pro-
rial do ânimo que aflige a classe média, balhadora os havia decepcionado e, va mais notável da correção da célebre
classe que, esmagada entre os grandes portanto, abandonaram todas as “me- máxima de Marx: o ser social determi-
capitalistas e a classe trabalhadora, tanarrativas” (especialmente o marxis- na a consciência.
sente agudamente a precariedade de mo) e se voltaram para o ceticismo, que Essa obsessão com as palavras é
sua situação. era apenas um reflexo de seu próprio apenas um reflexo do modo de existên-
estado de espírito. Não é por acaso que as cia do intelectual pequeno-burguês que
ideias que levaram ao pós-modernismo se contempla a vida do conforto da sala de
tornaram moda nas décadas de 1970,
80 e 90 como uma reação às derrotas
de uma série de revoluções em todo o
mundo – derrotas que foram agrava-
das pelo colapso da União Soviética.
Este foi o solo em que as raízes vene-
nosas do pós-modernismo floresce-
ram e se fortaleceram.
O mesmo fenômeno pode ser ob-
servado no rescaldo de cada revolução
derrotada na história. Foi exatamente
o mesmo processo que levou ao cres-
cimento de tendências irracionais e
místicas após a derrota da Revolução
de 1905 na Rússia. Em “Materialismo e
Empiriocriticismo”, Lenin mostrou de
maneira brilhante que as filosofias de
Mach e Avenarius eram cópias ruins de
Berkeley, Kant e Hume.
A única diferença é que os gênios
pós-modernistas de hoje são simples-
mente cópias ruins de cópias ruins. De-
sesperados por parecerem originais e
tentando esconder sua completa falta de
qualquer conteúdo real, eles se escon-

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seminário da universidade. Esse modo se, nos é oferecido um “aliado” superficial Elas dizem que representam tendências to-
de existência está muito distante do de lutas atomizadas. talmente diferentes. Mas esse argumento é
mundo real dos mortais comuns. Mas mesmo essa noção confusa se falso e hipócrita. O pós-modernismo é um
O carpinteiro produz mesas e cadei- desfaz à medida que esses “aliados” ime- monstro com cabeça de hidra que muda cons-
ras. O oleiro produz pratos e travessas. diatamente começam a atacar e abusar tantemente, assim como o coronavírus. Ele
O agricultor produz batatas e repolhos. uns dos outros nas diatribes mais violen- reaparece em uma multiplicidade de disfar-
Mas o intelectual produz apenas pala- tas, cada um gritando que é o oprimido, ces: pós-estruturalismo, pós-colonialismo,
vras – muitas, muitas palavras. Essas enquanto os outros são todos opressores teoria Queer e uma série de teorias da cha-
palavras são lidas por outros intelectu- que devem ser silenciados por completo. mada política de identidade.
ais, que produzem outras palavras para Este tipo de “filosofia” claramente se Todas essas variantes têm um caráter
serem lidas por mais outros intelectuais adequa muito bem aos propósitos dos reacionário, semeando confusão e delibe-
ainda. E assim por diante, e assim por estrategistas da classe dominante. Eles radamente dividindo o movimento em uma
diante, ad infinitum. podem usá-la para dividir e descarrilar a miríade de tendências e subtendências con-
Normalmente, este é um passatempo solidariedade de classe, ao mesmo tempo flitantes, cada uma proclamando em voz
bastante inofensivo, que serve para preen- em que a usam como uma arma contra o alta que só ela tem o direito de ser conside-
cher as existências completamente vazias pensamento racional e progressista em rada como a verdadeira vítima da opressão,
dos monges da academia, fornecendo-lhes geral, e o marxismo em particular. e que todos os mais são opressores.
um senso de propósito que, no entanto, per- Deste pântano confuso de ideias mal- E enquanto o movimento está ocupa-
manece um mistério para o resto da huma- feitas, certas conclusões inevitavelmente do em se destruir com uma série de confli-
nidade sofredora. fluem: uma rejeição da revolução em favor tos internos sem sentido, os verdadeiros
No entanto, as coisas mudam substan- das “pequenas ações” (como argumentos opressores – os banqueiros, os capitalistas
cialmente quando algumas dessas palavras mesquinhos sobre palavras e “narrati- e os imperialistas – se escondem e riem da
misteriosas saem dos limites da universida- vas”), um recuo para a subjetividade e, é estupidez do povo que, conscientemente
de e começam a afetar o pensamento dos se- claro, uma negação da luta de classes. ou não, está fazendo o trabalho sujo da
res comuns de uma forma muito negativa. Esse radicalismo terminológico pode contrarrevolução.
Já é bastante ruim que gerações de es- fazer alguns intelectuais de classe média Na medida em que essas ideias ve-
tudantes universitários saiam de seus estu- dormirem com mais facilidade em suas nenosas conseguiram penetrar no mo-
dos ainda mais estúpidos e confusos do que camas, mas não avança um milímetro na vimento operário, onde são avidamente
quando começaram. Mas quando a mesma luta contra a opressão. Na verdade, isso agarradas pelos burocratas de direita e
estupidez e confusão começam a contagiar a retarda. Ao elevar “minha” opressão por certos “esquerdistas” equivocados,
a sociedade e a política, deixam de se tornar particular sobre a “sua”, inevitavelmente elas desempenham um papel altamente
uma questão de diversão e se tornam, de chegamos a uma crescente compartimen- destrutivo, diversionista e divisionista.
fato, um assunto muito sério. talização e, em última instância, à atomi- É hora de parar! Devemos declarar
zação do movimento. guerra a essa filosofia reacionária e expul-
CONSEQUÊNCIAS REACIONÁRIAS Tudo isso serviu para confundir e de- sar essas ideias do movimento. Só assim
O pós-modernismo é a forma mais sorientar toda uma geração de jovens que pode ser aberto o caminho para o avanço
extrema de idealismo. É uma rejeição do foram desviados da causa da revolução do movimento operário e da unidade de
materialismo, da comunalidade da ex- socialista e empurrados para um pântano todos os oprimidos sob a bandeira da re-
periência e da percepção humana e uma venenoso. volução socialista.
rejeição da possibilidade da solidariedade Algumas pessoas podem objetar que
humana. Em vez de solidariedade de clas- o pós-modernismo já seja antiquado. Londres, 17 de junho de 2021

A revolta, Honoré Daumier

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MARXISMO VERSUS
PÓS-MODERNISMO
Daniel Morley e Hamid Alizadeh

O
pós-modernismo é uma esco-
la de pensamento filosófica
amorfa que ganhou destaque
no período pós-guerra. Co-
meçando como uma tendência mar-
ginal, desde então cresceu e se tornou
uma das escolas dominantes da filosofia
burguesa, permeando grandes partes,
senão a maioria, da academia hoje. Aqui
publicamos o primeiro de uma série de
artigos que analisam diferentes aspec-
tos do pós-modernismo a partir de uma
perspectiva marxista.
A história da filosofia conheceu
uma vasta gama de escolas, subescolas
e tendências, abrangendo uma ampla
gama de perspectivas de mundo e prin-
cípios orientadores. Mas dentro dessa
miríade de tendências, algumas delas
racionais e materialistas, outras idea-
listas e descontroladamente místicas,
pelo menos concordou-se em geral que
a marca registrada de uma grande te-
oria era a consistência, a precisão e a
atenção cuidadosa aos detalhes. Inde-
pendentemente de como a filosofia foi
expressa, em última análise, foi uma
luta pela verdade. Mesmo os filósofos
mais reacionários tiveram que admitir
pelo menos isso. Pessoas como Agos-
tinho de Hipona, cuja teoria da ilumi-
nação divina formou a espinha dorsal
ideológica do reacionarismo medieval
na Idade das Trevas, pelo menos ten-
taram retratar seus argumentos como
coerentes e razoáveis.
Como os tempos mudaram! No pe-
ríodo de declínio capitalista, a filoso-
fia também passou por um processo
de regressão. A expressão mais clara
dessa tendência é o pós-modernismo.
Durante o último meio século ou mais,
essa tendência foi se espalhando lenta-
mente como um vírus por todo o mun-
do, saltando de um país para outro,
constantemente se transformando em
novas e cada vez mais bizarras varian-
tes. Ele gerou um ramo de subescolas e
tendências, como o pós-colonialismo, a
teoria Queer, várias formas de feminis-
mo e muito mais que, de forma aberta
John van Hulsen, Flickr ou disfarçada, dominam as ciências so-
ciais e a academia de hoje.

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No campo da filosofia pós-moderna, antecedência. Já que a realidade agora de- DEFININDO O INDEFINÍVEL
as maiores mentes da história são vistas sapareceu, e todo o significado junto com Certamente vale a pena prestar atenção
com desdém e descartadas sem cerimô- ela, não há sentido em pedir qualquer sig- a uma filosofia que faz reivindicações tão
nia. A razão é denunciada, enquanto a nificado. Esse é um método que tem a van- grandiosas para si mesma. Portanto, nos
irracionalidade e a ininteligibilidade tagem indiscutível de descartar quaisquer armaremos de paciência e faremos todos
são elevadas ao nível de princípio. A ho- questões incômodas com antecedência. os esforços para apreender qualquer sig-
nestidade teórica e a busca pela verdade Silencia todas as críticas possíveis e, de nificado que possa ser encontrado nela. O
são sufocadas em intermináveis limita- fato, liquida a base do pensamento racio- que exatamente é o pós-modernismo e o
ções, ambiguidades e linguagem incom- nal em geral. que está por trás dele? Aqui imediatamen-
preensível. O seguinte é um excelente Essa linha de argumentação, que é apre- te colidimos com o primeiro problema. Di-
exemplo desse gênero: sentada como algo novo, não é – como to- zem que é indefinível. É uma ideia que por
dos os outros aspectos do pós-modernismo definição se opõe a definições. Até agora
“Mais importante que o esquerdismo po- – nem nova, nem original. É apenas uma isso não está claro.
lítico, mais perto de uma concorrência regurgitação do antigo argumento de Tertu- O termo “pós-modernismo” foi cunha-
das intensidades: um vasto movimento liano no século III, que justificou os absur- do pela primeira vez por Jean-François
subterrâneo, vacilante, mais alvoroçado dos do dogma cristão ao afirmar, Credo quia Lyotard em 1979, que o definiu como – em
na verdade, por conta do qual a lei do va- absurdum est: “Acredito porque é absurdo”. suas próprias palavras, “simplificando ao
lor é contrariada. Retenção de produção, Na verdade, essa inclinação para o ab- extremo” – “incredulidade em relação às me-
apreensões não compensadas como moda- surdo nos leva ao próprio cerne do pen- tanarrativas”. O Oxford English Dictionary
lidades de consumo, recusa a ‘trabalhar’, samento pós-modernista, que rejeita todo define “metanarrativa” como “um relato
comunidades (ilusórias?), acontecimentos, pensamento racional. Deleuze e Guattari, ou interpretação abrangente de eventos e
movimentos de libertação sexual, ocupa- muitas vezes retratados como a “ala es- circunstâncias que fornece um padrão ou
ções, invasões, sequestros, produções de querda” do pós-modernismo, levam esses estrutura para as crenças das pessoas e dá
sons, palavras, cores, sem intenção artísti- absurdos a um nível totalmente novo: significado às suas experiências”.
ca. Aqui estão os ‘homens de produção’, os Mas um momento! A própria definição
‘mestres de hoje’: marginais, pintores expe- “... a essência humana da natureza e a es- de Lyotard também não é uma metanarra-
rimentais, pop, hippies e yippies, parasitas, sência natural do homem tornam-se únicas tiva? Claro, é exatamente isso. Quando ele
loucos, lunáticos enjaulados. Uma hora de dentro da natureza na forma de produção nos informa que devemos a todo custo evi-
suas vidas oferece mais intensidade e me- ou indústria, assim como o fazem na vida do tar pensar sob certas formas que ele desa-
nos intenção do que 300 mil palavras de homem como espécie. A indústria, então, não prova, ele não nos fornece uma teoria ge-
um filósofo profissional.” é mais considerada do ponto de vista extrín- ral – um “relato ou interpretação abrangente de
seco da utilidade, mas sim do ponto de vista eventos e circunstâncias”? E, ao nos dizer que
Não sabemos se uma hora na vida de de sua identidade fundamental com a nature- certas ideias devem ser evitadas, ele tam-
marginais, pintores experimentais, pop, za como produção do homem e pelo homem. bém não nos fornece “um padrão ou estrutu-
hippies e yippies, parasitas, loucos ou lu- Não o homem como o rei da criação, mas sim ra para as crenças das pessoas, dando sentido às
náticos pode oferecer mais intensidade do como o ser que está em contato íntimo com a suas experiências”?
que as palavras de um “filósofo profissio- vida profunda de todas as formas ou de todos A resposta a ambas as questões é ine-
nal” não especificado. Mas, a partir des- os tipos de seres, que é responsável até mesmo quivocamente afirmativa. Portanto, Jean-
se breve extrato, é certamente claro que pelas estrelas e pela vida animal, e que conec- -François Lyotard é acusado desde o início
apenas cinco minutos da vida de qualquer ta incessantemente um órgão-máquina em de uma contradição absurda ou de uma
pessoa valem consideravelmente mais do uma máquina de energia, uma árvore em seu fraude flagrante. Estamos na presença de
que 300 mil palavras desse filósofo em corpo, um seio em sua boca, o sol em seu ânus: um tolo ou de um trapaceiro. Ou talvez
particular. o guardião eterno das máquinas do universo. ambos. É difícil decidir.
Sem sequer esboçar um sorriso, os Esse é o segundo significado de processo con-
pós-modernistas apresentaram as afir- forme usamos o termo: homem e natureza “SEM PROGRESSO”?
mações e proposições mais ridiculamente não são como dois opostos...” Os pós-modernistas também são conhe-
absurdas. Jean Baudrillard, por exemplo, cidos por sua rejeição da noção de progresso
afirmou que a realidade agora desapare- Michel Foucault, amigo íntimo de De- na história. Eles afirmam que o desenvolvi-
ceu e, junto com ela, todo o significado. leuze e Guattari, atropelou-se na pressa mento da ciência e da filosofia não conhece
Para ilustrar seu ponto, ele parafraseia (e de elogiar esse absurdo: “... produziu-se progresso, e que existem apenas diferentes
exagera) as palavras de Elias Canetti com uma tempestade de raios que levará o nome maneiras de interpretar o mundo. Além
aparente aprovação: de Deleuze: um novo pensamento é possível; o disso, esse é um mundo que nem mesmo
pensamento é novamente possível”. corresponde às nossas interpretações dele.
“Além de um certo momento preciso no tem- Então agora nós sabemos! Aparente- E, no entanto, os pós-modernistas apresen-
po, a história não é mais real. Sem perceber, mente, era quase impossível até mesmo tam sua escola de pensamento como a única
toda a raça humana de repente deixou a rea- pensar que Monsieur Deleuze nos ilumi- que pode explicar essa situação. Se aceitar-
lidade para trás. Nada do que aconteceu des- nou com essas pérolas de sabedoria. mos esse ponto de vista, qualquer ideia é tão
de então foi verdade, mas não somos capazes Toda a literatura pós-moderna está boa quanto a seguinte, quer brote da mente
de perceber isso. Nossa tarefa e nosso dever repleta dessa retórica pomposa, presun- de um xamã da idade da pedra, de um Aris-
agora é descobrir esse ponto ou, enquanto çosa e tosca que encobre suas teorias mal tóteles, de um Einstein ou de um Marx. Em
não conseguirmos entendê-lo, estamos con- elaboradas. Mas essa última deve ganhar nenhum momento a compreensão da hu-
denados a continuar em nosso curso destru- o prêmio. Agora, depois de ler as linhas manidade sobre a natureza e a sociedade deu
tivo atual.” acima, toda a humanidade pode dar um um único passo à frente – na verdade, não há
suspiro de alívio. Todos nós podemos co- “avanço” para o pós-modernista. Nada é pro-
O leitor pode se sentir no direito de meçar a pensar. gressivo, exceto, é claro, o pós-modernismo,
fazer uma pergunta: o que isso significa? Mas aqui está o problema: em que exa- que só agora emergiu, triunfante, para expor
Mas essa pergunta foi respondida com tamente se supõe que devamos pensar? essa velha farsa de crença no progresso!

8
Em uma coisa podemos concordar ência, o pensamento racional e o progresso processos generativos, mas que devemos
prontamente. Certamente é verdade que, em geral, eles apenas refletem a perspecti- fazê-lo sem impor-lhes uma positividade
sob o sistema capitalista em seu período de va de uma classe dominante degenerada e ou uma valorização.”
decadência senil, nenhum progresso sério decrépita.
é possível para a raça humana. Mas temos Se fizermos o esforço para penetrar no
o direito de tirar disso a conclusão de que mundo obscuro da linguagem foucaultia-
o progresso em geral não existe ou que a A desonestidade na, vemos que sua rejeição da imposição de
história não passou por épocas em que intelectual e a covardia “valorização” nos “processos geradores” da
deu passos gigantescos à frente? Não, não história nada mais é do que uma rejeição ao
temos o direito de fazer tal coisa. Quem são componentes progresso. Em um ato de engano cínico, ele
estuda o passado verá imediatamente que essenciais do pós- arrasta pelos cabelos o termo “teleológico”
a sociedade humana conheceu períodos de como um meio de confundir a questão.
grande avanço, caracterizados pelo rápido modernismo. Ele Qualquer pessoa com o mínimo conhe-
desenvolvimento das forças produtivas, da adota toda uma série cimento sobre filosofia saberia que existe
ciência e da tecnologia e pelo florescimen- um mundo de diferença entre teleologia –
to da arte e da cultura. de manobras para uma palavra com conotações religiosas, que
Também conheceu outros períodos ca- confundir e desorientar significa propósito predeterminado, que
racterizados por estagnação, retrocesso, Marx nunca apoiou – e a ideia de que a his-
decadência e até recaídas na barbárie. A o leitor, a fim de tória humana não é uma série de acidentes
queda do Império Romano foi o início de camuflar o seu real sem sentido, mas é regido por certas leis que
centenas de anos de retrocesso na Europa, se afirmam independentemente da vontade
que foi corretamente chamado de Idade
caráter reacionário. subjetiva de cada homem e mulher.
das Trevas. O Renascimento marcou uma O entrevistador, para não se deixar in-
virada no desenvolvimento da cultura em timidar tão facilmente, faz então a Foucault
todas as esferas. Arte, ciência, literatura: Desonestidade a pergunta mais natural após essa resposta:
todos experimentaram um renascimento Joseph Dietzgen disse uma vez que a fi- “Mesmo que a ciência há muito compartilhe do
notável (o significado literal do termo “Re- losofia oficial não é uma ciência, mas “uma postulado de que o homem progride?”.
nascença”). Foi a época da ascensão da bur- salvaguarda contra a social-democracia” – e, por Foucault então responde:
guesia, portadora de uma nova e superior social-democracia, Dietzgen se referia ao
etapa da sociedade humana, uma época de movimento revolucionário da classe tra- “Não é a ciência que diz isso, mas sim a história
descobertas que resgatou a humanidade balhadora. A tarefa das ideias dominantes da ciência. E não digo que a humanidade não
das amarras do feudalismo, juntamente hoje é precisamente cobrir o abismo entre progrida. Eu digo que é um método ruim colocar
com o obscurantismo irracional da Igreja e os interesses das massas e o status quo do o problema como: ‘Como é que progredimos?’.
as fogueiras da Inquisição. capitalismo. Essa é a base fundamental para O problema é: como as coisas acontecem? E o
Mais tarde, a burguesia revolucioná- os truques, falácias e desonestidade extrema que acontece agora não é necessariamente me-
ria da França produziu o Iluminismo, que que caracterizam a filosofia burguesa em lhor ou mais avançado, ou melhor compreendi-
os pós-modernistas veem com especial geral e o pós-modernismo em particular. do, do que o que aconteceu no passado.”
aversão precisamente porque defendeu o Um desses truques é a constante repetição
pensamento racional e a ciência. Como o de afirmações contraditórias para encobrir Aqui vemos um caso clássico de percor-
próprio nome indica, o pós-modernismo seus rastros. Em uma entrevista de 1977, pu- rer todos os caminhos ao mesmo tempo.
acredita que algo chamado modernismo blicada sob o título Prison Talk [Conversas Tendo dito claramente (ou tão claramente
chegou ao fim. O modernismo é o conjunto sobre Prisões], Foucault foi confrontado quanto sua linguagem peculiar permite) que
de ideias que emergiram do Iluminismo. com uma pergunta estranhamente direta ele nega o progresso na história, ele então
Essa foi a época heroica do capitalismo, sobre sua rejeição ao conceito de “progresso”. afirma calmamente o oposto: que ele não diz
quando a burguesia ainda era capaz de Esse é um trecho dessa entrevista: “a humanidade não progride”. Mas logo a seguir,
desempenhar um papel progressista. Mas ele acrescenta que “o que acontece agora não é ne-
a época atual apresenta um quadro de de- “Encontrei uma frase em Loucura e Civili- cessariamente melhor ou mais avançado, ou melhor
cadência social, econômica, política e ide- zação [na realidade, a citação é de História compreendido, do que o que aconteceu no passado”.
ológica. O progresso humano realmente da Loucura] onde você diz que devemos ‘li- Portanto, realmente não houve progresso.
estagnou. As forças produtivas estão pa- berar cronologias históricas e ordenações
ralisadas pela crise mais profunda em tre- sucessivas de todas as formas de perspectiva Está suficientemente claro?
zentos anos. A cultura estagna e os frutos progressista’.” Esse é um exemplo muito bom de como
da ciência, longe de libertar a humanidade, essas damas e cavalheiros se retorcem, gi-
ameaçam com o desemprego em massa e a Foucault respondeu da seguinte forma: ram e plantam bananeira brincando com
catástrofe ambiental. A classe capitalista se as palavras para ocultar seu significado,
tornou um obstáculo colossal ao progresso. “Isso é algo que devo aos historiadores da assim como uma lula espirra jatos de tinta
Com base no sistema atual, as perspec- ciência. Eu adoto a precaução metódica e o para confundir seus inimigos. Assim, se al-
tivas para a humanidade são realmente ceticismo radical, mas não agressivo, que guém algum dia acusar Foucault de negar o
sombrias. Mas, em vez de concluir que é o torna um princípio não considerar o pon- progresso, o ponto focal da maioria de seus
sistema social do capitalismo que impede to no tempo em que estamos agora como escritos, ele poderia sempre apontar para
o progresso, os pós-modernistas concluem o resultado de uma progressão teleológica trás e dizer: “ah não, uma vez eu disse isso; ‘Eu
que o próprio progresso está descartado, que caberia reconstruir historicamente: não digo que a humanidade não progride’”.
pois nunca existiu. A classe dominante e aquele ceticismo em relação a nós mes- A desonestidade intelectual e a co-
seus parasitas de classe média nas univer- mos e o que somos, o nosso aqui e agora, vardia são componentes essenciais do
sidades estão impregnados de um espírito o que nos impede de supor que o que temos pós-modernismo. Ele adota toda uma
de pessimismo. Eles lamentam o terrível é melhor – ou mais do que – no passado. série de manobras para confundir e deso-
estado da sociedade, mas, ao rejeitar a ci- Isso não significa não tentar reconstruir rientar o leitor, a fim de camuflar o seu real

9
Em resposta à acusação de ininte- seguida, todas as palavras que fornecem
ligibilidade, Judith Butler, uma cren- contexto a essas palavras e assim por
te fervorosa pós-moderna, denuncia o diante. Claro, isso é impossível e, por-
“aprendizado das regras que regem o discurso tanto, somos informados que essa coisa
inteligível”. De acordo com Butler, apren- passageira chamada “significado” será
der essas regras é: para sempre “adiada” e nunca totalmen-
te apreendida.
“uma inculcação da linguagem normali- É certamente verdade que o signi-
zada, onde o preço de não se conformar é a ficado da linguagem de Derrida nunca
perda da própria inteligibilidade”. Ela pros- pode ser totalmente compreendido, mas
segue dizendo que “não há nada de radi- isso é outra questão. O que Derrida pre-
cal no bom senso. Seria um erro pensar que a tende é minar a noção de que podemos
gramática recebida é o melhor veículo para compreender a própria realidade objeti-
expressar visões radicais, dadas as restrições va. Em outras palavras, em última aná-
que a gramática impõe ao pensamento, na lise, não existe realidade “fora do texto”.
verdade, ao próprio pensável”. Poderíamos ter uma palavra para ca-
chorro ou gato, mas de acordo com ele,
Então agora você sabe! O “bom senso” esses conceitos são apenas criações abs-
não é radical, mas o absurdo é. Com base tratas e subjetivas da mente humana e
caráter reacionário. O que surpreende são nisso, Butler parte em uma jornada para não têm qualquer relação com nenhum
a arrogância e a audácia desavergonhadas construir sua própria gramática, uma gato ou cachorro real e, portanto, per-
com que esse engodo é apresentado. que de alguma forma não se “imponha” dem todo o significado.
em seus pensamentos. Depois de fazer Apesar dessas observações “profundas”,
JOGOS DE LINGUAGEM isso, ela embarca em todos os tipos de por muitos milhares de anos homens e
“Ora, às vezes acreditei em até seis coisas aventuras, pensando em coisas que são mulheres continuaram a fazer uso da lin-
impossíveis antes do café da manhã” (Lewis completamente “impensáveis” para nós guagem, despreocupados com as verda-
Carrol, Alice no País das Maravilhas) que somos limitados pela linguagem dos des superiores que os informam que um
meros mortais. cachorro não é realmente um cachorro,
O pós-modernismo se baseia no prin- No entanto, surge a pergunta: como um gato não é realmente um gato e que,
cípio de que conceitos, ideias e a própria ela comunicará esses pensamentos im- na verdade, essa linguagem não é capaz
linguagem são “construções” subjetivas pensáveis a meros mortais que ainda es- de dizer absolutamente nada inteligível.
e arbitrárias. Assim, todo pensamento tão presos às restrições da “fala inteligível” e Longe de ser uma visão unilateral das
conceitual, incluindo a ciência, também que não têm a menor ideia do que ela está coisas, como diria Derrida, sua filosofia
é opressor. Não pode haver verdade ob- falando? O método de Butler é puro sofis- mostra uma compreensão extremamente
jetiva. Nada é verdadeiro ou confiável. A ma. Em outras palavras, é um truque: “Mi- unilateral do conhecimento humano. Se
única verdade reside na experiência in- nhas ideias não são ruins e incompreensíveis; nossos conceitos não refletem nenhuma
dividual, na “experiência vivida”, e isso só você simplesmente não é avançado o suficiente verdade objetiva, e se o “significado” pode
pode ser uma verdade pessoal. para entendê-las”. ser gerado e “desconstruído” pelos seres
Não contentes em jogar todo o pensa- Dito isso, não é correto ir tão longe a pon- humanos à sua vontade, então como as
mento racional e as “metanarrativas” na to de afirmar que os textos pós-modernistas pessoas podem se comunicar por texto ou
lata de lixo, alguns pós-modernistas che- são incompreensíveis. O propósito da re- por qualquer outro meio? Por que Derrida
gam ao ponto de nos informar que, uma vez tórica complicada é fazer com que ideias se preocupa em escrever textos, quando
que a linguagem é uma construção opres- muito antigas, estúpidas e reacionárias não há um objetivo ou base comum para
sora, a própria gramática deve ser abolida soem originais, sofisticadas e até radi- a linguagem? E como podemos reconhe-
por ser opressora à liberdade humana. Uma cais. É verdade que requer um pouco de cer que estamos todos experimentando a
vez que estejamos livres das amarras opres- esforço desvendá-las, mas há definiti- mesma realidade se, na medida em que tal
sivas da gramática e da sintaxe, podemos vamente uma agenda, e não é tão difí- realidade existe, estamos todos impedi-
subir ao paraíso da liberdade absoluta, onde cil de entender, uma vez traduzida de dos de acessá-la?
poderemos nos comunicar uns com os ou- sua “linguagem especial” para a fala dos Essas inconsistências, entretanto, não
tros de uma maneira inteiramente nova. mortais comuns. pareceram incomodar Derrida. Como to-
Mas a linguagem não é uma construção. dos os pós-modernistas propriamente
Não foi inventada por ninguém. Ela evoluiu “NÃO HÁ NADA ‘FORA DO TEXTO’” ditos, Derrida usa a inconsistência como
gradualmente ao longo de um período mui- Jacques Derrida, um dos pós-modernistas uma medalha de honra. Sua noção mais
to longo de tempo, centenas de milhares de mais influentes, disse a famosa frase que famosa, “desconstrução”, é, no mínimo,
anos na verdade, como resultado do desen- “não há nada fora do texto”. Com isso ele a proposição de que “liberdade” consiste
volvimento da sociedade humana. Isso tam- quer dizer que o significado – e, portanto, em quebrar a consistência e a coerência das
bém se aplica às leis do pensamento, que os o conhecimento – não está relacionado à ideias. Dessa forma, cada indivíduo pode
pós-modernistas desejam destruir. Mas realidade objetiva, mas apenas a si mes- construir e “desconstruir” sua própria rea-
pelo que elas devem ser substituídas? Pode- mo. As palavras que usamos não estão lidade. Na verdade, é precisamente isso que
mos gostar ou não das regras de gramática de forma alguma relacionadas com as Judith Butler, a feminista pós-moderna
e sintaxe, seja a gramática da língua oficial coisas que queremos significar. Em vez mais influente, afirma:
ensinada nas escolas ou a gramática não ca- disso, qualquer palavra, de acordo com
nonizada, como os dialetos. No entanto, sem Derrida, só é definida por sua relação “‘Conceder’ a inegabilidade do ‘sexo’ ou sua
essas regras, a fala se torna completamente com outras palavras. Assim, para en- ‘materialidade’ é sempre conceder alguma
ininteligível ou, pelo menos, extremamente tender qualquer coisa, primeiro temos versão de ‘sexo’, alguma formação de ‘mate-
incoerente. Claro, os pós-modernistas têm que entender todas as palavras que for- rialidade’. É o discurso em e através do qual
um prego para cada buraco. necem contexto às nossas palavras e, em essa concessão ocorre – e, sim, que a con-

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cessão invariavelmente ocorre – ela mesma
não formadora do próprio fenômeno que
ela concede? [...] referir-se ingenuamente
ou diretamente a tal objeto extra-discursivo
exigirá sempre a delimitação prévia do ex-
tra-discursivo.”

O “discurso” é “formador do próprio fenô-


meno que concede”. O pensamento produz
realidade. A realidade material, mesmo
o sexo biológico, é “discursiva” e pode ser
alterada naturalmente por meio do dis-
curso. Mas certamente se o sexo biológico
é apenas um produto do “discurso’, então
o resto também é; assim como você e eu
também. Mas então não podes construir
ou “desconstruir” minha realidade, ou eu a
sua? ... Butler não diz nada a respeito.
Esta teoria não é moderna nem
pós-moderna, mas bastante antiga. Es-
tamos lidando com idealismo subjetivo
– uma tendência que remonta aos pri- John Smibert
meiros dias da própria filosofia. O dog-
ma principal do idealismo subjetivo é
que não há realidade objetiva existindo ser nada mais além de prisioneiros solitá- nos um ponto de referência comum. Mas
independentemente dos pensamentos e rios de nossos próprios mundos internos há outro caminho: o do materialismo e
sensações dos seres humanos. e tudo o mais deve ser uma invenção de da ciência. À premissa de que todo co-
A forma de argumento de Derrida é nossa imaginação. Mas se for esse o caso, nhecimento é obtido por meio da expe-
simplesmente uma cópia tosca da noção então Deus também deve ser apenas uma riência dos sentidos devemos adicionar
apresentada por Immanuel Kant no sécu- invenção da nossa imaginação. outra premissa, a de que uma realidade
lo 18 de que a consciência humana nunca De acordo com essa ideia, nada pode material objetiva existe independente-
pode realmente conhecer a realidade ma- ser objetivo porque nada pode ser pro- mente de nossas ideias e experiências,
terial, ou o que ele chamou de “coisa em si”. vado que existe. Tudo é apenas criação e que os seres humanos são capazes de
De acordo com Kant, a mente é abastecida (“construção”) do pensamento. Isso, é investigar essa realidade e descobrir
com uma série de categorias de pensa- claro, é refutado por milhares de anos de suas características e leis de movimen-
mento “a priori” – como espaço, tempo, experiência e prática humana. Também é to internas. Isso é precisamente o que o
substância etc. – que nos permitem reco- refutado pela história da ciência por pelo pós-modernismo rejeita.
nhecer o mundo da aparência. Mas nos- menos dois milênios e meio. Mas isso não
sas mentes não são capazes de conhecer a preocupa os pós-modernistas que negam A verdade é possível?
realidade material como ela realmente é, que qualquer progresso tenha ocorrido. Sabe-se comumente que uma ideia
“em si mesma”. O Bispo Berkeley era um reacionário verdadeira é uma ideia que corresponde
Derrida, entretanto, vai além de Kant e um ferrenho defensor da Igreja. Seu à realidade. Uma criança pequena pode
e ridiculariza os conceitos em sua totali- objetivo declarado era travar uma luta pensar que é divertido brincar com fogo.
dade. Todos os conceitos gerais são, se- contra a ciência, o pensamento racional, Em breve perceberá que essa não é uma
gundo ele, produtos da mente humana o ateísmo e o materialismo do Iluminis- ideia correta. A partir de dolorosas tenta-
sem relação com a realidade objetiva. mo. Em todos, exceto um deles (ateísmo), tivas e erros, com o tempo vai se forman-
Essas ideias são ainda mais antigas do os pós-modernistas estão de pleno acordo do a ideia de que se nos aproximarmos
que Kant. No início do século 18, o Bispo com ele. Seu principal argumento estava da maneira certa um fogo pode afinal ser
George Berkeley apresentou os mesmos voltado para o empirismo, uma forma muito útil e, em algumas situações, talvez
argumentos absurdos, embora de uma subdesenvolvida de materialismo que até divertido. O fogo passa de uma “coisa
maneira muito mais convincente: predominava na época. Os empiristas em si” desconhecida a uma “coisa para
sustentavam que todo conhecimento é, nós”. Esse é o caminho geral dos seres hu-
“É de fato uma opinião estranhamente pre- em última análise, obtido por meio da ex- manos – da ignorância ao conhecimento.
valecente entre os homens que casas, mon- periência dos sentidos. Isso é correto, mas Os pós-modernistas, entretanto, re-
tanhas, rios e, em uma palavra, todos os unilateral. O argumento deles foi levado a jeitam essa noção. Eles rejeitam intei-
objetos sensíveis têm uma existência, natu- um extremo absurdo pelo filósofo escocês ramente a proposição de que as ideias
ral ou real, distinta de como são percebidos David Hume, que acabou argumentando podem ser verdadeiras ou falsas. Eles
pelo entendimento”. que, porque só podemos confiar na expe- zombam de afirmações categóricas (em-
riência dos sentidos, não podemos provar bora nem sempre, como veremos) por-
Mas há um problema com essa teoria que existe algo além de nossa própria ex- que isso implicaria que algumas afirma-
que não pode ser facilmente eliminado. periência dos sentidos. ções são mais verdadeiras do que outras.
A lógica inescapável desse argumento é o Se aceitarmos as premissas dos ide- Assim, eles enchem seus escritos de afir-
solipsismo (do latim solo ipsus, só eu exis- alistas subjetivos, só há uma saída para mações vagas e extremamente equívo-
to). Essa é a noção de que, uma vez que não esse absurdo: o caminho proposto pelo cas, cheias de condicionalidades e longas
podemos provar com certeza a existência Bispo Berkeley. Ou seja, que é a mente de explicações contraditórias.
de nada ou de ninguém além de nossa Deus percebendo as coisas que dá às nos- De acordo com Foucault, o mais pro-
própria mente, devemos nos resignar a sas ideias objetividade e aos seres huma- eminente pós-modernista, não podemos

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aspirar à verdade objetiva. Ou seja, não rações gerais de Monsieur Foucault, como elas são a expressão máxima do desenvol-
podemos aspirar a ideias, cujo conteúdo sua rejeição do conceito de verdade. Esse vimento do pensamento humano em suas
independe dos seres humanos. Ele afir- é mais um exemplo da autocontradição respectivas sociedades. Quando falamos
ma que, em última análise, a veracidade pós-modernista. Foucault nem mesmo sobre o pensamento humano, não fala-
das ideias – o conhecimento, em outras percebe que está tentando nos fornecer mos dos meandros de uma mente indivi-
palavras – não é derivada de nossa expe- uma prova da “veracidade” de seu concei- dual, mas sim sobre o pensamento huma-
riência da realidade material, mas sim do to. Não era exatamente isso que deveria no em geral, coletivamente.
que ele chama de “poder”. Não é o poder ser impossível? É verdade que cada ser humano indivi-
no sentido em que normalmente o enten- Podemos realmente afirmar, como dual, por natureza, tem uma visão parcial
demos, como o poder do Estado ou o po- Foucault essencialmente o faz, que a ver- e limitada. Mas, tomada como um todo, a
der de uma classe sobre outra. “Poder”, no dade objetiva é uma ficção? Vamos ver. humanidade pode superar as limitações
vocabulário de Foucault, significa essen- Posso acreditar que sou um pássaro e que do indivíduo testando coletivamente a
cialmente apenas conhecimento em ge- posso voar, mas se pular da beira de um objetividade de cada proposição a partir
ral. Assim, “poder” produz conhecimento penhasco, essa ideia vai desabar comigo. de uma miríade de ângulos e aplicando-a
e conhecimento produz “poder”. Ou, dito Posso imaginar que sou um multimilio- na vida real. Os pensamentos dentro da
de outra forma, o conhecimento produz nário. Mas se eu entrar em um banco exi- cabeça de um indivíduo não pertencem
conhecimento. Essa é uma tautologia gindo sacar um milhão de libras, o geren- apenas a ele todas as nossas teorias e lin-
pura que não explica exatamente nada. te certamente me perguntará quanto LSD guagem são produtos do desenvolvimento
Fundamentalmente, é o mesmo princí- eu consumi. Se algum pós-modernista social humano como um todo, transmiti-
pio apresentado por Derrida de que as deseja provar que estamos errados, nós do de uma geração para a seguinte. Nem é
ideias e conceitos gerais não refletem a o convidamos educadamente a tentar a relação entre sujeito e objeto puramente
realidade objetiva, mas apenas outras um desses dois experimentos. A práti- uma questão de contemplação abstrata. A
ideias e conceitos. ca logo nos dirá quem está certo e quem raça humana reage ao mundo real ativa-
Foucault então nos diz que a verdade está errado! mente, não passivamente.
não é algo que podemos alcançar testando Na Europa, durante a Idade Média e Os seres humanos transformam o
nossas ideias no mundo real. Em vez dis- até o século 18, era uma crença comum que mundo por meio do trabalho coletivo e
so, a verdade é “produzida” pelo “poder”. a Terra foi criada por Deus alguns milha- assim se transformam. É esse processo
E “regimes de verdade” são impostos à res de anos atrás. Mas a ciência dissipou incessante de criação, que encontra sua
sociedade pelo “poder”. “Poder” nos diz o totalmente essa crença. Hoje essa ideia expressão máxima na marcha progres-
que é verdadeiro e o que é falso. No entan- só existe na base da fé. Rejeitar a verdade siva da ciência, que os pós-modernistas
to, de acordo com Foucault, na realidade objetiva no final equivale a reduzir todo desejam negar, mas que é um fato eviden-
essas categorias de verdadeiro e falso não o conhecimento humano ao nível da fé e te. É uma marcha incessante da ignorân-
existem. Consequentemente, nada é ver- da superstição – isto é, nos traz de volta ao cia ao conhecimento. O que não sabemos
dadeiro e nada é falso. Uma das maneiras pântano da religião. hoje, com certeza saberemos amanhã.
de descobrirmos isso, ele nos informa, é Ao contrário da fé, toda a ciência se Nesse sentido, o pensamento humano
tomando LSD: baseia na proposição de que um mundo não é apenas capaz de objetividade, mas
natural existe independentemente de também é ilimitado e absoluto. Nenhum
“Podemos ver facilmente como o LSD inver- nossas ideias e que nossas ideias são ca- conhecimento está fora de seu alcance.
te as relações entre o mau humor, a estupidez pazes de refletir fenômenos naturais. A Marx explicou em suas Teses sobre
e o pensamento: tão logo elimina a suprema- verdade, portanto, existe objetivamente, Feuerbach que “a questão de saber se ao pen-
cia das categorias, arranca o terreno de sua isto é, independentemente das mentes samento humano pertence a verdade objetiva
indiferença e desintegra o lúgubre espetáculo dos seres humanos individuais. Negar não é uma questão da teoria, mas uma ques-
da tola estupidez; e apresenta essa massa isso é o mesmo que negar a ciência, o tão prática. É na práxis que o ser humano tem
unívoca e a-categórica não apenas como que, como veremos, é exatamente o que que comprovar a verdade, isto é, a realidade e o
variegada, móvel, assimétrica, descentrada, os pós-modernistas fazem. poder, o caráter terreno do seu pensamento. A
espiralóide e reverberante, mas faz com que . disputa sobre a realidade ou não realidade de um
ela suba, a cada instante, como um enxame Conhecimento subjetivo e pensamento que se isola da práxis é uma questão
de eventos-fantasmas.” objetivo puramente escolástica”.
O pós-modernismo eleva a subjetivi- Levantar a questão de se a verdade
Se pudermos tentar uma tradução dade a um princípio absoluto. Disto deduz pode ser objetiva ou não, como fazem
dessa linguagem sem nexo, o que Foucault que o pensamento em geral é limitado e os pós-modernistas, desconectada da
está nos dizendo aqui é essencialmente parcial, portanto, não pode atingir a ver- atividade humana real, equivale a uma
que as alucinações induzidas pelo LSD dade objetiva. Para o acadêmico tacanho, especulação vazia. O pensamento é
nos revelam que a realidade não é a forma o mundo está parado na ponta do seu uma expressão da prática e, em última
como pensamos sobre ela normalmente. nariz, ou pelo menos na porta da sala do análise, é na prática que as ideias são
Um dia posso pensar que os elefantes são seminário. O professor universitário pro- testadas. O desenvolvimento das ideias
animais selvagens que vivem em zooló- duz apenas palavras. Essas são a soma total serve para melhorar nossa prática. Da
gicos e regiões tropicais e no dia seguinte de seu mundo, seu ambiente natural o único mesma forma, no curso dessa ativida-
podem ser pequenas criaturas rosadas vo- ambiente que ele conhecem. É isso que expli- de, os elementos objetivamente verda-
ando em círculos ao redor da minha cabe- ca a obsessão dos pós-modernistas por pa- deiros de todas as ideias são determi-
ça. Quem pode dizer qual dessas ideias é lavras e linguagem. Também explica a ex- nados e separados de seus lados falsos
verdadeira e qual é falsa? trema estreiteza de sua visão e a pobreza ou exagerados.
Não podemos falar sobre a verdade de seu pensamento.
de forma alguma, nem a minha verda- Mas o pensamento vai além do “su- Verdade relativa e absoluta
de, nem a sua verdade. Há uma exceção, jeito”. As grandes teorias científicas e fi- Mas o fato de que as ideias podem ser
é claro. Um tipo de coisa que é absoluta e losóficas da história não são meramente provadas objetivamente verdadeiras sig-
eternamente verdadeira, que são as decla- produto de grandes mentes individuais; nifica que as ideias humanas, a partir do

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momento em que são pensadas, exaurem As verdades particulares descobertas “Metanarrativas”
a verdade para sempre? Claro que não. Do por uma dada sociedade não são obtidas Visto que os pós-modernistas rejeitam
ponto de vista materialista, é inútil falar arbitrariamente. Não seria possível que a noção de verdade, eles identificam o ini-
em alcançar a verdade absoluta no sentido Newton desenvolvesse a mecânica quân- migo número um naqueles que aceitam a
de um conhecimento final da totalidade tica. A mecânica newtoniana formou um verdade. Voltemos por um momento a A
de nosso universo. A humanidade é capaz elo necessário que mais tarde levou às des- Condição Pós-Moderna, onde Jean-Fran-
de descobrir as leis da natureza em todos cobertas da mecânica quântica. Em última çois Lyotard tenta definir o significado de
os níveis. Os constantes avanços da ciên- análise, o pensamento – tendo o pensa- “pós-moderno”:
cia e da tecnologia modernas são prova mento científico como sua expressão má-
disso. Mas a humanidade nunca chegará a xima – reflete o nível de desenvolvimento “Usarei o termo moderno para designar
um ponto em que descubra tudo o que há da sociedade de seu tempo. Mas, por sua qualquer ciência que se legitime com refe-
para descobrir. Para cada problema que a vez, também desenvolve a sociedade como rência a um metadiscurso desse tipo fazendo
ciência resolve e para cada nível da natu- um todo, de modo que, em determinado apelo explícito a alguma grande narrativa,
reza que o homem domina, surgem novos momento, esse próprio desenvolvimen- como a dialética do Espírito, a hermenêuti-
caminhos e novos problemas. to leva ao surgimento de formas de pen- ca do significado, a emancipação do sujeito
A história da ciência nos mostra esse samento novas, mais complexas e mais racional ou de trabalho, ou a criação de riqueza
processo em uma série interminável de te- avançadas. Esse é o processo sem fim da simplificando ao extremo, defino pós-moderno
orias, ora em ascensão, ora em declínio em ignorância ao conhecimento; das formas como a incredulidade em relação às meta-
face de outras mais avançadas. Mas aqui o inferiores às superiores da verdade. narrativas. Essa incredulidade é, sem dúvi-
pós-modernismo, mais uma vez, tira uma Isso não significa que as velhas ideias da, um produto do progresso nas ciências;
conclusão exagerada e unilateral de uma sejam descartadas como puro absurdo. Ao mas esse progresso, por sua vez, a pressu-
observação formalmente correta. Ele de- contrário, seu núcleo racional torna-se um põe. À obsolescência do aparelho metanar-
duz que, uma vez que todas as teorias são elemento necessário para o avanço da ci- rativo de legitimação corresponde, mais
substituídas em um determinado estágio, ência. Para cada nível da natureza que os notavelmente, a crise da filosofia metafísi-
nenhuma ideia é verdadeira; toda verdade humanos aprendem a dominar, o caminho ca e da função universitária, que em parte
é relativa e arbitrária. se abre para um nível mais profundo. O dependia dela. A função narrativa está per-
Em seus livros Loucura e Civilização desenvolvimento da mecânica newtonia- dendo suas funções, seu grande herói, suas
e História da Loucura – que pretendem na foi uma grande conquista para a hu- grandes jornadas, seu grande objetivo.”
ser tratamentos históricos da psiquia- manidade. Foi um dos primeiros grandes
tria – Foucault nos apresenta uma série avanços introduzidos pela ascensão do Aqui temos um exemplo absoluta-
de ideias e métodos que foram usados na capitalismo e desempenhou um papel im- mente inestimável do jargão ininteligível
psiquiatria no passado, mas que desde en- portante no desenvolvimento da ciência e do pós-modernismo. Lembre-se de que,
tão se mostraram falsos. Na verdade, eles da sociedade como um todo. Mas a ciência para nosso benefício, Lyotard está “sim-
seriam considerados extremamente re- não parou aí; depois da mecânica clássi- plificando ao extremo”. Isso é muito bom,
acionários se aplicados pelos psiquiatras ca, veio a mecânica quântica. A mecânica porque do contrário estaríamos corren-
de hoje. Com base nisso, ele tenta minar quântica não invalidou a mecânica clás- do um sério risco de realmente entender
a reivindicação da ciência de uma verdade sica, ao contrário, ela a pressupôs, assim o que ele está tentando dizer, que é que o
objetiva em geral. como a mecânica quântica formará a base pós-modernismo rejeita todas as escolas
Essa é uma tendência geral em todas de avanços ainda maiores para a ciência no de pensamento que tentam desenvolver
as “histórias” de Foucault. É como se ele futuro e preparará o terreno para ir além uma visão de mundo única e coerente.
esperasse que a ciência fosse o santo graal da própria mecânica quântica. A mecâni- A rejeição de uma cosmovisão coeren-
da verdade eterna absoluta desde o início ca quântica permaneceria válida para um te decorre logicamente da rejeição da exis-
e, decepcionado com o que descobriu, con- certo nível, mas além disso, teorias mais tência de uma realidade objetiva indepen-
cluiu que é necessário descartar completa- avançadas emergiriam. dente da mente. Se você negar que uma
mente toda ciência e noção de verdade. Ele Ao contrário do que os pós-modernistas realidade objetiva e, portanto, uma ver-
arma um espantalho e, em seguida, o der- imaginam, a história do pensamento cien- dade objetiva existe independentemente
ruba sem esforço. Mas a ciência nunca se tífico não é uma busca desafortunada por de nossas mentes, então nunca poderá
preocupou em possuir a verdade absoluta. alguma verdade última elusiva, saltando haver teorias que se apliquem universal-
Ela se propõe um objetivo muito mais mo- de uma teoria acidental para outra. É um mente. Cada indivíduo desenvolverá suas
desto: descobrir a verdade passo a passo, processo sem fim de compreensão cada próprias teorias aplicáveis à sua realidade
pela aplicação paciente do método cientí- vez mais profunda da natureza e das leis particular. Nesse caso, “metanarrativas”
fico real da observação e experimentação. que a governam. Por meio de incontáveis equivaleriam de fato ao formalismo e ao
Os pós-modernistas olham para a ci- tentativas e erros, cada teoria é final- esquematismo de impor as leis do meu
ência de períodos anteriores com despre- mente testada, seus elementos aciden- mundo ao seu ou vice-versa. Mas os piores
zo. Claro, é fácil criticar um período menos tais, subjetivos e falsos peneirados, seus culpados desse crime específico seriam os
avançado do seu próprio ponto de vista. limites definidos e seu verdadeiro núcleo próprios pós-modernistas.
Revela uma atitude ignorante e covar- incorporado ao estoque do conhecimen- A rejeição das metanarrativas é em si
de, como um adulto ridicularizando uma to humano, preparando o caminho para a metanarrativa mais tosca e abrangente
criança por não falar da mesma maneira novas e mais avançadas ideias para tomar possível. E nos é apresentada sem uma
refinada e confiante que ele. Mas as ideias seu lugar. única prova ou argumento real! O que
de diferentes estágios históricos não são Cada teoria não é isolada e diame- essencialmente nos exige é aceitar as me-
acidentais. Elas refletem as capacidades tralmente oposta às outras. Em vez disso, tanarrativas pós-modernistas na base da
da sociedade humana em cada estágio e, todos eles formam diferentes estágios do fé cega. O pós-modernismo é a única me-
como tal, são absolutas para aquele perío- desenvolvimento dialético do conheci- tanarrativa verdadeira. Todas as outras
do. Ou seja, são as verdades mais elevadas mento humano como um todo – uma pro- estão erradas porque o pós-modernismo
que a sociedade poderia atingir naquele gressão infinita de formas inferiores de diz isso. Esse é precisamente o tipo de in-
momento particular. verdade para formas superiores. timidação intelectual e “opressão” contra

13
as quais os pós-modernistas protestam minismo, a economia política inglesa e O que é isso senão uma declaração de
com tanta veemência. E é a base de seus as brilhantes antecipações dos socialistas guerra contra a ciência e o pensamento
ataques histéricos a qualquer um que utópicos anteriores. Todos esses, de uma racional e uma defesa do obscurantismo?
levante uma objeção séria ao que eles forma ou de outra, continham verdades e O que é pior, essas ideias reacionárias são
dizem. Isso não é diferente de qualquer percepções valiosas, refletindo diferentes propagadas como a forma mais radical de
outro dogma religioso. lados e aspectos da mesma realidade ob- pensamento. Luce Irigaray, por exemplo,
Os marxistas são criticados pelos jetiva única. é notável por sua rejeição à teoria da re-
pós-modernistas por serem dogmáticos Ao longo da história do desenvolvi- latividade de Einstein, com o fundamento
e se oporem à incorporação de outras ideias mento da ciência e do pensamento no de que é “sexista”, provavelmente porque
à teoria marxista. Para algumas pessoas, decorrer de milhares de anos, a imagem Albert Einstein teve a infelicidade de ter
isso pode parecer uma boa ideia. Por que se que surgiu, e que se torna mais clara a nascido do gênero masculino. Seu ensaio
ater a uma filosofia quando você pode esco- cada dia, é a de um único mundo material de 1987 é intitulado Le Sujet de la Science
lher entre as melhores ideias que existem, interconectado, que opera de acordo com Est-il Sexué? [O sujeito da ciência é sexua-
independentemente de qual filósofo ou es- suas próprias leis inerentes de movimen- do?]. Ponderando essa questão, ela escre-
cola de pensamento as desenvolveu? Mas esse to e desenvolvimento. Essa é a base para ve o seguinte:
é o ponto principal. Os pós-modernistas não a cosmovisão unificada do marxismo e de
dizem que devemos escolher as melhores qualquer teoria científica real. A investi- “Talvez seja. Trabalhemos a hipótese de que
ideias. Não existem ideias boas ou más, ver- gação sistemática dessas leis em diferen- é, na medida em que privilegia a velocidade
dadeiras ou falsas, lembra-se? Não se trata tes níveis da natureza é o objetivo prin- da luz sobre outras velocidades que nos são
de ter ideias corretas, mas de insistir em cipal de qualquer ciência. Tudo isso é um vitalmente necessárias. O que me parece in-
que nossas ideias devem ser incoerentes. anátema para os pós-modernistas que se dicar a possível natureza sexuada da equa-
Pela primeira vez na história da filoso- opõem a toda e qualquer forma de pensa- ção não é diretamente seu uso para armas
fia, o “caldo dos indigentes do ecletismo”, mento sistemático. nucleares, mas sim por ter privilegiado o que
como Engels chamou, é elevado à condi- vai mais rápido...”
ção de princípio orientador de uma escola “Anticiência”
de pensamento. Ao se opor às metanarrativas, é preci- Em outro lugar, Irigaray continua sua
Os pós-modernistas culpam os mar- samente a essa investigação sistemática e a diatribe contra o pobre Einstein:
xistas por não terem “a mente aberta” ciência em geral que os pós-modernistas se
para outras escolas de pensamento. Mas, opõem. Vejam como Foucault critica com “Mas o que a poderosa teoria da relatividade
na realidade, ocorre exatamente o opos- escárnio “a tirania dos discursos globali- faz por nós, exceto estabelecer usinas nu-
to! Essas damas e cavalheiros estão ob- zantes com sua hierarquia e todos os seus cleares e questionar nossa inércia corporal,
cecados em ser novos e originais (embora privilégios de uma vanguarda teórica”, e essa condição necessária da vida?”
isso esteja longe de ser o caso). Eles agem como ele clama por uma “... luta contra a
como se a história começasse e terminas- coerção de um discurso teórico, unitário, De acordo com o raciocínio complicado de
se com eles mesmos. O marxismo, por ou- formal e científico”. Na verdade, Foucault Irigaray, a velocidade é uma característica
tro lado, não pretende se destacar como define seu método principal, a “genealo- predominantemente masculina e, portanto,
algo completamente alheio às filosofias gia”, como nada mais nada menos do que a “fixação” de Einstein com a velocidade em
anteriores. Não afirmamos que as ideias “anticiência”: sua equação é “sexista”. Precisamente por
do socialismo científico surgiram pura- que razão os machos deveriam estar mais
mente do gênio criativo particular de Karl “O que [a genealogia] realmente faz é acolher obcecados com a velocidade e não as fêmeas
Marx e Friedrich Engels. as reivindicações de atenção de conhecimentos é um mistério que só Irigaray pode explicar.
O marxismo é uma síntese do cerne locais, descontínuos, desqualificados e ilegíti- Pelo que sabemos, tanto para um homem
racional de todas as filosofias anteriores, mos contra as reivindicações de um corpo uni- quanto para uma mulher é igualmente difícil
cada uma com base nos avanços de épo- tário de teoria que os filtraria, hierarquizaria e atingir a velocidade da luz.
cas anteriores. Ele forma um todo unifica- ordenaria em nome de alguns conhecimentos Aqui, a natureza anticientífica irracio-
do e harmonioso. Ele contém em si todos verdadeiros e de algumas ideias arbitrárias do nal do pós-modernismo fica exposta em
os elementos mais valiosos e duradouros que constitui uma ciência e seus objetos. Gene- toda a sua glória nua e tosca. A teoria da
das primeiras escolas de pensamento – a alogias não são, portanto, retornos positivis- relatividade, que é um dos pilares mais bá-
filosofia grega antiga, a filosofia clássica tas a uma forma de ciência mais cuidadosa ou sicos da ciência moderna, é ridicularizada
alemã, os materialistas franceses do Ilu- exata. Elas são precisamente anticiência.” como “sexista”, porque seu autor, Albert
Einstein, era um homem.
Por trás da rejeição aparentemente
inocente de meras “metanarrativas” e “dis-
cursos globalizantes” envolta em uma re-
tórica que soa radical, o pós-modernismo
estabeleceu uma verdadeira inquisição
anticientífica e anticultural global. Aqui
“conhecimentos locais, descontínuos, des-
qualificados, ilegítimos” – significando
ideias místicas desacreditadas que jazem
no material residual da história da filoso-
fia – são promovidos, enquanto as maiores
teorias e mentes que a humanidade já co-
nheceu são condenadas sem pestanejar. Se
essas ideias algum dia fossem implemen-
tadas na vida real, isso significaria a rever-
são completa de toda a civilização.

14
Ambrogio Lorenzetti: Alegoria do Bom Governo, c. 1328. Palácio Público de Siena

Antimarxista O marxismo e o pós-modernismo são essas informações e não com aquelas?


Enquanto o pós-modernismo perma- compatíveis apenas na medida em que a Não mudamos o mundo mudando a lin-
nece como o mais alto desenvolvimento “unidade teórica” do marxismo é destru- guagem ou nossos modos de pensar. Não
da irracionalidade, o marxismo é a mais ída; assim que o marxismo deixar de ser é no “texto” nem no “discurso”, mas no
alta forma de pensamento científico. E uma ciência, assim que o marxismo deixar mundo real, material, que se encontra
é precisamente porque é a filosofia mais de ser verdadeiro e assim que deixar de ser a verdade. Podemos mudar o mundo de
consistente e científica que ela atrai a ira materialista ... em outras palavras, assim certa maneira e nossos sentidos nos di-
particular dos pós-modernistas. É inte- que o marxismo deixar de ser marxismo. zem se tivemos êxito. É interagindo com
ressante notar que a principal objeção de o mundo que descobrimos, testamos e
Foucault ao marxismo é que ele é cientí- aperfeiçoamos nossas ideias e, finalmen-
fico. Aqui está o que ele escreve: “Se temos Rejeitar a noção de te, atribuímos a elas validade objetiva.
alguma objeção contra o marxismo, é o fato de realidade objetiva e Esses são os princípios básicos da ci-
que poderia ser efetivamente uma ciência”. ência. Separar-se deles equivale a tomar
Em outra parte do mesmo texto, ele verdade objetiva, em o curso em direção à religião e ao misti-
afirma: última análise, não cismo. Os pós-modernistas não apenas
divergiram da ciência, como também
“Nem basicamente importa tanto que essa conduz a nada mais lançaram uma luta contra a própria es-
institucionalização do discurso científico que a uma maquiagem sência da ciência. O fato de que essas
esteja incorporada em uma universidade ou, ideias reacionárias estão sendo dissemi-
mais geralmente, em um aparelho educacio- e a uma defesa do nadas como evangelho em universida-
nal, em uma instituição teórico-comercial status quo. Porque se o des, escolas e através da mídia em todo o
como a psicanálise ou no quadro de referên- mundo revela o estado podre do capita-
cia que é fornecido por um sistema político progresso é impossível, lismo hoje. É um sistema cuja existência
como o marxismo; pois é realmente contra é inútil lutar por uma não é mais compatível com os interesses
os efeitos do poder de um discurso conside- da grande maioria da raça humana.
rado científico que a genealogia deve travar sociedade melhor Rejeitar a noção de realidade objeti-
sua luta.” va e verdade objetiva, em última análise,
não conduz a nada mais que a uma ma-
Aqui, vemos as verdadeiras cores quiagem e a uma defesa do status quo.
do pós-modernismo – uma ideologia O marxismo está em oposição irre- Porque se o progresso é impossível, é
anticientífica e contrarrevolucionária, conciliável ao pós-modernismo. Somos inútil lutar por uma sociedade melhor. E,
que se opõe ao marxismo no nível mais materialistas e permanecemos firmes se não houver uma verdade objetiva, não
fundamental. Às vezes ouvimos que de- com base na verdade e na ciência. Acredi- podemos dizer que a exploração, a pobre-
vemos combinar ideias pós-modernas tamos que existe apenas um único mun- za, a opressão e a guerra são “ruins” – é
e marxistas. Mas elas são radicalmente do material interconectado, que sempre tudo apenas uma questão de perspectiva.
incompatíveis. Foucault reconhece isso existiu e que não é a criação de um deus Os defensores do pós-modernismo aca-
quando escreve que “não é que essas nem do “poder” de Monsieur Foucault. A bam se tornando apologistas do capita-
teorias globais não tenham fornecido vida é um produto deste mundo material lismo. Uma filosofia verdadeiramente
nem continuem a fornecer de uma for- e os humanos são a forma de vida mais revolucionária só pode ser uma filosofia
ma bastante consistente ferramentas avançada. Através da nossa atividade, inteiramente científica e materialista,
úteis para a pesquisa local: o marxismo somos capazes de descobrir as leis da na- que olha a realidade de frente. Somen-
e a psicanálise são as provas disso. Mas tureza e manipulá-las em nosso benefí- te a compreensão mais clara e precisa
acredito que essas ferramentas só fo- cio, mas também estamos sujeitos a essas das leis da natureza e da sociedade pode
ram fornecidas com a condição de que leis e, portanto, ao mudar o nosso mundo mostrar uma saída para o beco sem saí-
a unidade teórica desses discursos fos- também mudamos a nós mesmos. da do capitalismo e da sociedade de clas-
se, de alguma forma, suspensa ou pelo A consistente teoria materialista do ses. Nas palavras de Karl Marx, que deu
menos reduzida, dividida, derrubada, conhecimento afirma que o conhecimen- o veredicto final esmagador sobre toda a
caricaturizada, teatralizada ou o que to é, em última análise, derivado da ex- filosofia burguesa:
você quiser. Em cada caso, a tentativa periência dos sentidos. Nossos sentidos
de pensar em termos de uma totalidade são pontes para este mundo externo, não Os filósofos apenas interpretaram o mun-
se revelou de fato um obstáculo para a barreiras. Do contrário, o que faz nossos do de maneiras diferentes. A questão, en-
pesquisa”. sentidos alimentar nossas mentes com tretanto, é mudá-lo.

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MUITA CONVERSA
SOBRE NADA:
“NARRATIVA DE ESQUERDA” OU LUTA DE CLASSES?
Yola Kipcak

A
ideia de que a esquerda precisa Finalmente, em um evento em 2019 em cias a esse conceito há alguns anos. E, de
de uma melhor “narrativa” – e a Viena, organizado por “Transform Europe” fato, a ideia tem seus “teóricos”, dos quais
noção conexa de que precisamos – um projeto do Partido de Esquerda Euro- um dos mais proeminentes é a acadêmica
de algum tipo de “populismo de peu, formado por organizações como SYRI- belga Chantal Mouffe.
esquerda” – têm ocupado a atenção de par- ZA, Die LINKE, Rifondazione Comunista Junto com seu falecido parceiro, Ernest
tidos e organizações de esquerda em toda a e Bloco de Esquerda – no qual os Jovens de Laclau, Mouffe tentou desenvolver uma te-
Europa e mais além. Para citar um exemplo, Esquerda, o Partido Comunista da Áustria e oria de um “populismo de esquerda” basea-
Jörg Schindler, secretário-geral do Partido outros estavam presentes, o termo “narrati- do em narrativas. Na lista de agradecimen-
de Esquerda na Alemanha, escreveu: va de esquerda” foi usado com liberalidade tos ao seu último livro, For a Left Populism
durante a discussão de duas horas. Estes são [Por um Populismo de Esquerda], Mouffe
“Para estarmos na vanguarda do movi- apenas pequenos exemplos que testemu- faz questão de creditar Iñigo Errejón (de Po-
mento climático – ao qual pertencemos – nham até que ponto essas ideias se enraiza- demos) e Jean-Luc Mélenchon (de La France
precisamos de uma narrativa de esquerda ram na esquerda em diversos países. Insoumise) por suas contribuições e conver-
convincente”. A ideia de uma “narrativa de esquer- sas pessoais.
da” já existe há muito tempo nos círculos .
Katja Kipping, presidente do mesmo universitários. No entanto, isso só come- O que há por trás da “narrativa”?
partido, explicou: çou realmente a decolar em popularidade Fundamental para a teoria de Mouf-
com o repentino aumento no apoio a no- fe de que precisamos construir um “po-
“Acredito que precisamos de um populismo vos partidos de esquerda, como o SYRIZA pulismo de esquerda” baseado em uma
de esquerda para deixar claro que existem al- na Grécia e o Podemos na Espanha, que se “nova narrativa de esquerda”, é a ideia de
ternativas. E devemos fortalecer os padrões de tornaram pontos de referência para gran- que a realidade é feita de narrativas – ou
explicação alternativos e contrariar a narrati- de parte da esquerda internacionalmente. seja, de histórias. De acordo com essa no-
va [da chanceler alemã Angela Merkel] ... com Figuras proeminentes em ambos os parti- ção, se os políticos conseguirem lançar as
uma narrativa diferente”. dos encheram seus discursos com referên- experiências do povo em termos emocio-

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nais – efetivamente “enquadrando nar- garo? ... Afinal, somos pessoas diferentes e temos Ela afirma ainda: “sempre haverá an-
rativas” – isso, por sua vez, influenciará pontos de vista diferentes. E isso é uma coisa boa. tagonismos, lutas e uma parcial opacida-
as ações do povo, produzindo assim a Mas em Hainfeld, [o local da fundação do Partido de do social”. Com isso, ela simplesmente
própria realidade. Operário Socialista Democrático Austríaco em quer dizer que a desigualdade, a opressão
A realidade, então, não é composta de 1888], conseguimos chegar a um acordo e assim por diante são inevitáveis e nunca
uma existência material objetiva que for- sobre algumas ideias centrais comuns. E podem ser totalmente superadas. É nessa
ma a base de nossas idéias. Pelo contrário, um partido para consolidar essas idéias base pessimista que ela propõe sua “práti-
são as nossas ideias que moldam o mundo. foi fundado. ca anti-hegemônica”. É uma alternativa ao
Assim, o capitalismo não é um sistema eco- comunismo; embora ela admita que “nun-
nômico do qual surgiu uma classe trabalha- “A nova classe trabalhadora são todos aqueles ca se alcançaria uma sociedade totalmente
dora e uma classe capitalista, mas sim uma que não têm um acesso justo à prosperidade. liberada e que o projeto emancipatório não
narrativa, uma construção. Mouffe chama Isso também inclui pequenas e médias empre- poderia mais ser concebido como a elimi-
sua abordagem teórica de “antiessencialis- sas. Aqui, podemos definir uma nova linha de nação do Estado”. Em seu apêndice teó-
ta”. Isso significa que, segundo ela, não exis- conflito” (Grifo nosso). rico, ela afirma categoricamente que sua
te um mundo objetivo, real (o que ela chama abordagem “exclui a possibilidade de uma
de “essência”) que corresponda aos nossos Notemos aqui que, para Lercher, em sociedade além da divisão e do poder”. Em
conceitos. Ela acredita que “a sociedade primeiro lugar, a base da unidade não são suma, por trás de sua linguagem complexa
sempre se divide e se constrói discursiva- os interesses de classe compartilhados, mas e radical, ela rejeita a revolução e abraça o
mente por meio de práticas hegemônicas”, e as ideias. E, em segundo lugar, que para ele reformismo. A ideia de opor lutas, como as
que “nunca é a manifestação de uma objeti- as linhas de conflito na sociedade não são das mulheres e pessoas LGBT à luta de clas-
vidade mais profunda”. objetivamente dadas, mas podem ser “defi- ses é precisamente uma tentativa de uma
Daí decorre que não existem classes nidas”, de modo que, de repente, “pequenos abordagem colaboracionista de classe. Ou
reais na sociedade. A classe trabalhadora é e médios” capitalistas também fazem parte seja, unir-se a setores das classes capitalis-
apenas uma das muitas identidades criadas da classe trabalhadora! ta e média, para lutar por uma forma “mais
por narrativas, discursos e linguagem: “É Do ponto de vista marxista, um operário justa” de capitalismo.
por meio da representação que se formam tcheco e outro da Estíria têm muito em co- Alguns dos proponentes mais ousados
os sujeitos políticos coletivos; eles não exis- mum – ambos realizam trabalho assalariado, da ideia de uma “narrativa de esquerda” po-
tem de antemão”. são explorados por um capitalista e, portanto, dem criticar o capitalismo, mas a ideia de
O objetivo de uma narrativa de esquer- são objetivamente parte da classe trabalha- removê-lo continua a ser a coisa mais dis-
da – de um populismo de esquerda – é, por- dora. No entanto, se você assumir que nossas tante de suas mentes. “A crítica inteligente
tanto, construir uma identidade coletiva, identidades são construídas por histórias ao capitalismo é adequada, temos de abor-
dizendo às pessoas que elas compartilham apaixonantes e emocionais, a conclusão lógi- dar esta questão”, diz Lercher e, na mesma
interesses e que as “elites” são suas inimi- ca é que o capitalismo não pode ser derrubado entrevista, afirma com mais precisão: “O
gas. É uma “estratégia discursiva de construção pela luta de classes contra os capitalistas, mas que precisamos é de um mercado de traba-
de uma fronteira política dividindo a sociedade em apenas escrevendo novas histórias. lho parcialmente estatal que esteja em con-
dois campos e convocando a mobilização do ‘opri- Essa história então se torna poderosa formidade com o mercado e que seja sem
mido’ contra ‘aqueles no poder’”. (“hegemônica”) nas mentes das pessoas. fins lucrativos”.
Em um livro publicado recentemen- Como Mouffe escreve: Essa mistura confusa de capitalismo com
te, “Deeply Red and Radically Colorful - For a medidas de controle pouco entusiastas é como
New Left Narrative”, de Julia Fritzsche, nos “[Toda] ordem existente é, portanto, suscetível tentar transformar um tigre em vegetariano.
é dito que tal narrativa “deve antes de tudo de ser desafiada por práticas contra-hegemô- É mais utópico do que qualquer ideia socialis-
se conectar nas experiências diárias das pessoas, nicas, práticas que tentam desarticulá-la para ta de uma economia nacionalizada, planeja-
‘pegá-las’. Deve dar a impressão de que a narra- instalar outra forma de hegemonia”. da, controlada pela classe trabalhadora.
tiva corresponde a experiências compartilhadas. Podemos ver claramente aqui como a
Não importando se eles realmente tiveram essas E Fritzsche concorda: base filosófica dessas idéias leva à justifi-
experiências”. cativa de que o próprio capitalismo é into-
Não é de se admirar, então, que sempre “As narrativas não serão a maneira mais rápi- cável. É por isso que é tão importante para
que os defensores das narrativas de esquer- da de sair das difíceis condições dos dias de hoje os marxistas firmarem-se em uma base
da falam sobre mudanças sociais, de ação ... Uma nova narrativa de esquerda terá fissu- filosófica firme, revelando a indiferença
prática, as lutas de classes ou a ação de clas- ras e buracos, mas, no longo prazo, é a única reformista e contrapondo uma resposta
se estão visivelmente ausentes. Se eles fa- maneira de sair do presente opressor.” revolucionária.
lam sobre elas, é apenas como uma reflexão
secundária, como um acréscimo adicional Na verdade, isso significa uma rejeição da “Tornar-se o Estado”
mais ou menos agradável. Em vez disso, eles revolução, uma recusa do rompimento com o A orientação principal dos proponentes
nos convocam para “articular”, “falar sobre”, sistema dominante. Os proponentes da narra- da chamada “narrativa de esquerda” não é
“representar”, “mostrar” etc. tiva de esquerda, Lercher, Herr & Cia., de for- para a luta de classes contra o capitalismo,
É neste contexto que devemos conside- ma consciente ou não, assumem uma posição mas para as demandas democráticas. “Te-
rar os comentários de um expoente dessas decididamente não marxista. Mouffe é uma mos que ousar por mais democracia”, escreve
ideias da socialdemocracia austríaca, Max antimarxista consciente. Ela escreve que “o Lercher em seu artigo “Para que precisamos
Lercher. Lercher argumentou que a social- mito do comunismo tem que ser abandonado”, da social-democracia hoje?”. A então presi-
-democracia precisa de um novo congresso alegando que já havia falhado na prática por dente da Juventude Socialista Austríaca, Julia
fundador como um recomeço para o parti- causa de seu suposto reducionismo de clas- Herr, disse:
do e escreveu: se, ou seja, que reduz todas as lutas às lutas de
classes, enquanto Mouffe e seus companheiros “A social-democracia nos anos 1970 lutou para
“O que um trabalhador industrial tcheco e um consideram a classe trabalhadora apenas um democratizar o sistema econômico e distribuir de
mineiro da Estíria têm em comum? Ou um refor- entre outros movimentos como feminismo, maneira justa a riqueza obtida. Então, de alguma
mador social vienense e um socialista radical hún- ambientalismo, ativismo LGBT etc. forma, em algum ponto, perdemos a confiança”.

17
O think tank Institut Solidarische Moderne
(ISM), intimamente associado ao Partido de
Esquerda Alemão, explica que as questões
sociais “devem ser colocadas radicalmente,
em um sentido ainda a ser definido, como
questões de democracia”. De acordo com o
ideólogo do ISM e membro do conselho da
Fundação Rosa Luxemburgo do Partido de
Esquerda, Thomas Seibert, a verdadeira luta
é pela “verdadeira” democracia.
E Mouffe escreve:

“O problema com as sociedades democráticas


modernas, em nossa opinião, era que seus prin-
cípios constitutivos de ‘liberdade e igualdade
para todos’ não foram colocados em prática ...
A ‘democracia radical e plural’ que defendemos tégia populista de esquerda não é um avatar da mo tempo em que os próprios opressores
pode, portanto, ser concebida como uma radica- ‘extrema esquerda’, mas uma forma diferente de devem ser impedidos de se consumirem por
lização das instituições democráticas existentes encarar a ruptura com o neoliberalismo por meio meio de uma guerra perpétua entre eles. O
... ” da recuperação e radicalização da democracia”. Estado nasceu justamente para isso. Engels
explicou:
A perspectiva apresentada aqui é uma Como podemos ver, Mouffe é muito clara
de status quo! A superestrutura existente de na diferenciação entre uma abordagem “re- “Mas para que esses antagonismos, classes
instituições “democráticas”, que tem se mos- volucionária” e sua própria abordagem, que com interesses econômicos conflitantes, não se
trado repetidamente manipulada em favor ela chama de “hegemônica”. Para ela, o Esta- consumam a si mesmas e à sociedade em lutas
da classe dominante, não deve ser abolida, do é uma rede de instituições e “funções” que infrutíferas, um poder, aparentemente acima
dizem, mas apenas “melhorada”. Enquanto não correspondem a um interesse comum. da sociedade, tornou-se necessário para mode-
isso, a verdadeira causa de tal desigualdade Há espaço, portanto, para que o populismo de rar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da
e exploração – o capitalismo – nem mesmo é esquerda o influencie, transforme e desloque. ‘ordem’; e este poder, surgido da sociedade, mas
reconhecida como tal. Para os marxistas, ao contrário, o Estado colocando-se acima dela e cada vez mais alie-
Uma linha divisória crucial aqui é nossa não é um terreno neutro de luta, mas um ins- nando-se dela, é o Estado”.
concepção do Estado e suas chamadas insti- trumento da classe dominante que precisa
tuições democráticas. Para os revolucioná- ser esmagado e substituído por um Estado Em última instância, o Estado é, portan-
rios, a clareza sobre a natureza do Estado é operário. Tendo suprimido a velha ordem to, um órgão opressor composto por corpos
vital. É uma questão de vida ou morte para capitalista e limpo o terreno para uma so- especiais de homens armados (militares
um movimento revolucionário. Há uma di- ciedade comunista sem classes, este Estado e policiais), prisões, tribunais e assim por
ferença decisiva entre querer abolir o Estado operário irá definhar enquanto as classes na diante, que parece estar acima da socieda-
por meio da revolução e acreditar que o Es- sociedade também desaparecem. Esse pon- de, mas que fundamentalmente defende o
tado pode ser transformado e modelado de to de vista é ridicularizado como “simplista sistema econômico que deu origem a isto.
acordo com os interesses dos oprimidos. A demais” por teóricos pós-modernos como Com a ascensão da burguesia como classe
última visão invariavelmente se traduz em Mouffe. Mas, ao analisar o surgimento his- dominante e do capitalismo como modo de
colaboração com o Estado existente e, por- tórico do Estado e o propósito para o qual os produção dominante em escala mundial, a
tanto, com os interesses de classe a que serve. Estados se desenvolveram, podemos dizer burguesia também criou seu próprio Estado.
Comparemos então a compreensão com absoluta confiança que essa definição A “democracia liberal” que Mouffe defen-
marxista do Estado com a dos defensores das apreende a essência do que é o Estado. de é o produto de revoluções realizadas no in-
“narrativas de esquerda”. Mouffe e os outros Marx e Engels explicaram como o Estado teresse da própria burguesia. Acreditar, como
“narradores de esquerda” entendem o Esta- apareceu historicamente com o surgimen- ela e os outros “narradores de esquerda” acre-
do nos seguintes termos: to da sociedade de classes. A sociedade de ditam, que esta forma de Estado é a definiti-
classes surgiu à medida que a humanidade va, melhor e última instituição que existirá,
“[...] uma cristalização das relações de forças desenvolvia as forças produtivas necessá- e que, portanto, não deve ser tocada, é adotar
e como terreno de luta. [...] Vistos como uma rias para produzir mais do que o necessário uma visão completamente a-histórica. Signi-
superfície para intervenções agonísticas, esses para a sobrevivência imediata. Pela primei- fica também defender o instrumento da atual
espaços públicos podem fornecer o terreno para ra vez na história, uma pequena camada da classe dominante: os capitalistas.
avanços democráticos importantes. É por isso sociedade não teve que trabalhar da mesma Naturalmente, o fato de que o Estado
que uma estratégia hegemônica deve se enga- maneira que antes. Mas a produção não era é um instrumento opressor da classe do-
jar com os diversos aparatos do Estado para avançada o suficiente para que toda a socie- minante nem sempre é claramente visível.
transformá-los, de modo a fazer do Estado um dade desfrutasse desse privilégio. Isso criou Seu verdadeiro caráter é conscientemente
veículo de expressão das múltiplas demandas as condições para as classes sociais. Surgi- encoberto pelos capitalistas. Seria impos-
democráticas. [...] Em certo sentido, tanto o ram classes dominantes que possuem os sível, para não dizer ineficiente, que os ca-
tipo de política revolucionária quanto o de hege- meios de produção e classes oprimidas que pitalistas governassem apenas pela força e
mônica podem ser chamados de ‘radicais’, pois são exploradas e produzem a riqueza que é pela repressão. Os oprimidos são a maioria
implicam uma forma de ruptura com a ordem apropriada pela classe dominante. na sociedade. Se a maioria dos oprimidos
hegemônica existente. No entanto, essas ruptu- Esses interesses de classe antagônicos, entendesse esse fato, a sociedade capitalista
ras não são da mesma natureza e não é apropria- no entanto, precisam ser administrados. Os enfrentaria sua queda.
do colocá-las na mesma categoria, rotulada de oprimidos devem ser levados a acreditar que Em tempos normais, na medida em que
“extrema esquerda”, como costuma ser o caso. Ao a ordem atual das coisas é intocável e quem podem fazê-lo, a classe dominante tenta
contrário do que muitas vezes se afirma, a estra- ousar questioná-la deve ser punido. Ao mes- manter uma face de justiça, de “igualdade de

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oportunidades” etc. Os capitalistas, portanto, igualdade para todos” não podem ser imple- causa fundamental da opressão, da pobreza
geralmente preferem Estados que tenham mentadas dentro do capitalismo. e da desigualdade. Isso só pode ser feito com
eleições livres, que garantam alguma liber- Para os revolucionários, as eleições e a a abolição do capitalismo.
dade da imprensa, vários partidos políticos representação parlamentar podem ser usa- Os teóricos da “narrativa de esquerda” re-
e assim por diante. Esses Estados também das para apresentar ideias políticas revolu- jeitam decididamente a teoria marxista do Es-
permitem certa margem de manobra. Mas cionárias a um público de massa. Também tado e concentram seus principais argumen-
em nenhuma circunstância a classe domi- podem ser usadas para expor a hipocrisia tos na questão da democracia. Segundo eles:
nante permitirá que seu papel fundamental da classe capitalista e suas instituições. Por
como proprietária dos meios de produção exemplo, se os revolucionários no parla- “é claro que não há uma relação necessária en-
seja questionado. O Estado existe precisa- mento exigirem que a verdadeira igualda- tre o capitalismo e a democracia liberal. É uma
mente para defender este papel. de e justiça social sejam estabelecidas pela pena que o marxismo tenha contribuído para
Não é de admirar que, literalmente, o expropriação da grande indústria e dos essa confusão ao apresentar a democracia libe-
único direito consagrado na Declaração bancos – ou seja, desafiando a propriedade ral como a superestrutura do capitalismo”.
Universal dos Direitos Humanos da ONU dos capitalistas sobre os meios de produção
que não é constantemente desconsiderado e - todo o establishment seria utilizado para A “infeliz confusão” reside, na verdade,
violado, mas sim cuidadosamente protegido combater essa demanda. inteiramente em meio aos filósofos da lin-
com toda a força da lei, é o Artigo 17: “todos Se necessário – como mostraremos guagem. Para eles, os Estados são apenas
têm o direito à propriedade”. E “ninguém abaixo – eles irão desconsiderar a “demo- construções “discursivas” – instituições que
será arbitrariamente privado de sua pro- cracia” e as maiorias no parlamento, e es- podem ser alteradas por “novas narrativas”.
priedade”. Em última instância, esse é pre- quecer todas as suas conversas anteriores O Estado, dizem eles, é um “terreno de luta”.
cisamente o objetivo do Estado, de suas leis sobre “liberdade”, a fim de salvar o capi- E, a fim de “rearticular” este “terreno”, presu-
e de todo o sistema de justiça. É também por talismo. Se os revolucionários simples- mivelmente neutro e independente de clas-
isso que os marxistas explicam que o Estado mente parassem por aí, erguendo as mãos se, é preciso se tornar parte dele. “O objetivo
burguês deve ser esmagado pela revolução. e dizendo: “Bem, não há nada que possa- não é a tomada do poder do Estado”, eles nos dizem,
Está fundamentalmente ligado à burguesia e mos fazer sobre isso, simplesmente não “mas o de ‘se tornar’ o Estado”.
ao seu domínio de classe. vencemos ainda a batalha hegemônica É mais uma vez evidente por que razão
Do ponto de vista marxista, reconhece- dentro do Estado”, eles não seriam revo- essa teoria é tão popular entre os reformis-
mos a democracia como um regime político, lucionários de forma alguma. Eles seriam tas. Tornar-se parte do aparato estatal – de
uma superestrutura política, que se eleva reformistas. Mas é exatamente isso o que preferência com o mínimo possível de inter-
sobre o sistema capitalista. O capitalismo os “narradores de esquerda” sugerem. Ao ferência das massas – é a razão existencial
produz diferentes tipos de regimes: burgue- aceitar os limites do capitalismo e de sua dos reformistas. No “terreno de luta” repre-
ses democráticos e, também, ditaduras. No supreresturutura política, a democracia sentado pelo aparato estatal, o objetivo passa
entanto, todos eles são variedades de Estados burguesa, eles não podem ir além disso. a ser o de formar uma parceria em igualdade
capitalistas, conectados por meio de mil fios à Os revolucionários, por outro lado, veem de condições com os capitalistas para chegar
burguesia. Foi por uma boa razão que Marx e a atividade das massas como o elemento- a um acordo de melhorias para os eleitores.
Engels escreveram no Manifesto Comunista: -chave para superar esses limites e mudar a Max Lercher descreve isso da seguinte
sociedade. Os parlamentos e as eleições são maneira:
“O executivo do Estado moderno é apenas um apenas um elemento útil para fortalecer e
comitê para administrar os assuntos comuns de fomentar a sua atividade. Lenin apontou que “A social-democracia deve mostrar ao capital
toda a burguesia”. “muitas, senão todas, as revoluções” mos- o seu lugar e domar os mercados. [...] Tenho em
tram a grande utilidade de “uma combina- mente um estado de bem-estar social que distri-
Naturalmente, a forma de um regime ção da ação de massa fora de um parlamento bui a prosperidade de uma forma justa e deixa
– que é como o aparelho de Estado se mani- reacionário com uma oposição dentro dele algum espaço de manobra”.
festa concretamente – certamente molda a que simpatiza com (ou, melhor ainda, que a
extensão de nossas liberdades e os direitos apoia diretamente) a revolução”. Ao mesmo Mas cuidado! No confronto com o ini-
que as pessoas têm. É por isso que a luta por tempo, ele explica: migo de classe (um termo que eles não uti-
demandas democráticas como “uma cabeça, lizariam) é importante “que o conflito, quando
um voto” desempenhou um papel tão impor- “Ação das massas, uma grande greve, por exem- surja, não tome a forma de um ‘antagonismo’ (luta
tante na história do movimento revolucio- plo, é mais importante do que a atividade par- entre inimigos)”, ao invés disso, “o oponente não
nário. Os marxistas avançam e apoiam de lamentar em todos os momentos, e não apenas é considerado um inimigo a ser destruído, mas um
forma consistente as demandas democráti- durante uma revolução ou em uma situação adversário cuja existência é considerada legítima”.
cas, que podem mobilizar a grande maioria revolucionária”. Isso é apenas “parceria social” e equilí-
da sociedade contra a classe dominante e for- brio entre interesses de classe traduzidos
jar a unidade dos oprimidos e explorados, fa- A abordagem dos marxistas ao Estado para a linguagem acadêmica. Se fosse pos-
cilitando assim as melhores condições para o pode, portanto, ser resumida da seguin- sível obter constantes reformas e melhorias
desenvolvimento da luta de classes. te maneira: é um instrumento opressor da por meio de um “trabalho paciente e pacífico
E os marxistas não desconsideram ou ig- classe dominante. Deve ser abolido e subs- dentro de um novo paradigma” (conforme
noram as eleições democráticas. Elas podem tituído por um Estado operário. Depois de Fritzsche), a maioria da classe trabalhadora
servir como um importante indicador do uma revolução socialista bem-sucedida, certamente não teria nada contra isso.
estado de espírito da sociedade, e a partici- eventualmente todas as formas de Estado No entanto, o problema é que o capita-
pação neles pode ser usada como um meio na desaparecerão, junto com as classes. Mas lismo – por causa de suas próprias contradi-
luta de classes. Mas as contradições centrais isso não significa que consideramos os di- ções – é repetidamente lançado em crises. A
do capitalismo – a exploração da classe traba- reitos democráticos e as liberdades, aqui e austeridade brutal por parte dos neoliberais
lhadora pelos capitalistas; as constantes crises agora, desnecessários. Pelo contrário, lu- “malignos” não surge de uma necessidade
e guerras – continuam a existir sob todo tipo tamos por essas liberdades e as utilizamos. repentina de infligir sofrimento humano. É o
de regime burguês, por mais democrático que Mas, ao mesmo tempo, não semeamos ilu- resultado das pressões do sistema capitalis-
seja. É precisamente por isso que “liberdade e sões de que a democracia pode resolver a ta, no qual um aumento dos lucros (e este é,

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afinal, o único propósito dos capitalistas) só antiausteridade do SYRIZA. Os camaradas mas os trabalhadores e jovens envolvidos
é possível por meio de ataques mais duros e gregos da CMI, que faziam parte do comitê aprenderam mais através do movimento
intensos à classe trabalhadora. central do SYRIZA naquela época, escreveram sobre o papel do Estado e da “democracia”
Não é, como diz Herr, que a social-demo- o seguinte imediatamente após as eleições: burguesa do que puderam colher todos os
cracia tenha repentinamente “perdido a con- livros sobre “narrativas de esquerda” jun-
fiança” desde os anos 1970. O reformismo to- “Sem ilusões em negociar com o capital euro- tos. A linha de argumento de Fritzsche é
pou com os limites objetivos do capitalismo. peu e suas instituições! Nossos oponentes são extremamente conveniente para políticos
Hoje, simplesmente não há mais espaço para os interesses capitalistas, locais e estrangeiros, que não querem confrontar os capitalis-
reformas significativas e duradouras dentro que se escondem por trás de Troika, e não seus tas. É muito reconfortante para aqueles
do capitalismo. funcionários tecnocratas. Nosso único verda- que desejam explicar sua própria inação
deiro aliado é a classe trabalhadora europeia! e hesitação traidora culpando a “falta de
A responsabilidade da liderança O SYRIZA deve apelar agora por um progra- hegemonia na sociedade”.
As massas gregas já viveram para ver a ma europeu de ação em massa para fazer da
dolorosa realidade dos limites do reformis- Europa uma vasta “Puerta del Sol”! [Uma Ideias revolucionárias –
mo. Em resposta à crise que atingiu o país de referência ao movimento de indignados que prááticas revolucionáárias
forma particularmente forte depois de 2012, eclodiu em toda a Espanha em 2011-12]” O conceito de narrativa de esquerda é
as massas se envolveram em lutas ferozes ao um bom exemplo da conexão entre ideias
longo de muitos anos. Primeiro, houve pro- Eles sugeriram todo um conjunto de me- filosóficas e prática política. A “narrativa”
testos massivos em praças públicas. Então a didas para a Grécia, como o cancelamento aparentemente radical das figuras discuti-
classe trabalhadora se lançou à luta e liderou da dívida do Estado e a nacionalização dos das aqui é na verdade uma cobertura para
numerosas greves e greves gerais. Quan- bancos – medidas que atingiram o cerne da políticas reformistas, que não representam
do tudo isso falhou em produzir resultados questão: romper com o capitalismo ou sub- qualquer ameaça ao capitalismo. Como esse
(principalmente por causa do papel obstru- meter-se à vontade da Troika. conceito pressupõe que não há realidade
tivo da liderança sindical), as massas gregas A afirmação de que todos os tipos de fora da narrativa, a “narrativa da esquerda”
expressaram sua raiva nas urnas votando no fatores “infelizes” são responsáveis pela leva a muito palavreado e a nada mais.
partido de esquerda, SYRIZA, apoiado em derrota do SYRIZA – tudo menos, de fato, Os proponentes de uma nova “narrativa
um programa antiausteridadeteridade. a liderança do próprio partido – é típica do de esquerda” querem “falar sobre” os pro-
Em um curto período, no entanto, o lí- reformismo. Em situações políticas críticas, blemas dos explorados e oprimidos e tra-
der do SYRIZA, Alexis Tsipras, subordinou o papel da liderança é decisivo. Os líderes zer votos para os partidos reformistas, mas
o país à ditadura da União Europeia (UE) e à têm a atenção das massas e a autoridade apresentam poucas sugestões ou demandas
austeridade imposta pelo FMI. Esta foi uma para propor e organizar os próximos passos concretas. As poucas demandas que levan-
traição aberta ao voto do referendo de julho corretos. Após a derrota de um movimento tam se limitam a questões exclusivamente
de 2015, que rejeitou de forma esmagadora de massa, é de vital importância estudar de democráticas ou constituem pouco mais
os termos impostos pela Troika para um res- perto o papel da liderança. Eles tiveram as do que esperanças piedosas de um Estado
gate, com 61% dos votos “Não”. Isso significou ideias corretas? Por que não se atreveram de bem-estar social. Tais demandas não são
a destruição dos padrões de vida das massas. a dar os passos necessários? Se ignorar- necessariamente erradas em si mesmas,
Contra a vontade do povo grego, o capitalis- mos essas questões, contribuiremos para mas não colocam ênfase na necessidade da
mo e seus fiéis representantes na UE fizeram encobrir os maus líderes e para disfarçar o luta de classes contra os capitalistas para al-
avançar sua agenda. papel que desempenharam na derrota. O cançá-las. Quando essas demandas suaves
O que os “populistas de esquerda” têm a resultado é jogar a culpa pelas derrotas nas são então destruídas em face da oposição
dizer sobre esta derrota? próprias massas lutadoras. real da classe dominante – como vimos tão
Fritzsche, por exemplo, tem o seguinte a claramente com o SYRIZA – a responsa-
“A luta do SYRIZA foi perdida porque apenas dizer sobre os fracassos não apenas do mo- bilidade é depositada sobre os ombros das
uma resistência de proporções significativas nos vimento dos Coletes Amarelos na França e massas; ou então, a “hegemonia do neolibe-
países centrais da zona do euro poderia ter ala- do movimento “Ocupe”, mas até mesmo da ralismo” é responsabilizada pelo resultado.
vancado as ideias do SYRIZA. Só assim, eles po- Primavera Árabe: Se os defensores da “narrativa de esquer-
deriam ter alcançado um avanço e transformar da” conscientemente promovem as premis-
a crise econômica e política da Grécia em uma “Eles falharam porque pessoas potencialmente sas filosóficas de sua teoria (como Mouffe
crise de toda a UE”. interessadas os acharam muito acadêmicos, ou faz), ou se eles inconscientemente pegam
porque acharam suas tendas legais e bonitas, esse conceito como útil para justificar suas
E: mas que o capitalismo era de alguma forma me- próprias inações, é irrelevante. A tarefa dos
lhor. Porque os ocupantes das praças desistiram revolucionários é descobrir essas ideias e a
“Infelizmente, o SYRIZA não foi capaz de im- para voltar ao trabalho, ou porque ocuparam prática que flui delas, e contrapor soluções
plementar seu programa antiausteridadete- lugares onde não incomodavam. E no final, reais para a miséria do capitalismo. Esta é a
ridade por causa da resposta brutal da União também porque, se eles eram perturbadores, a razão pela qual os marxistas dão tanta im-
Europeia que reagiu com um ‘golpe financeiro’ e polícia e os militares os expulsavam para fora portância às questões filosóficas.
forçou o partido a aceitar os ditames da Troika”. das praças, os espancavam e os prendiam”. Em última instância, as ideias são uma
expressão dos interesses de classe na so-
A “resposta brutal” da UE não foi nenhu- Isso é cinismo puro. As massas em ciedade e um guia para a ação. Devemos
ma surpresa. Mesmo assim, Tsipras ainda países como Egito ou Tunísia literalmen- perguntar: certas idéias ajudam a classe do-
passou meses se reunindo com o papa e im- te arriscaram suas vidas, superaram as minante, elas jogam poeira nos olhos dos
portantes chefes de governos europeus para divisões sectárias e estavam dispostas a trabalhadores e ativistas de esquerda? Ou
“discursivamente” ganhá-los para o seu lado. dar tudo para alcançar a liberdade. Note- elas nos ajudam a mudar a sociedade?
Quando não conseguiu “convencê-los”, ele mos também que o movimento dos Cole- Vamos confrontar a realidade de olhos
passou a capitular à Troika, traindo as expec- tes Amarelos não só atingiu seu objetivo abertos. Vamos lutar por um mundo sem
tativas da vasta maioria do povo grego que inicial de derrotar o aumento regressivo exploração e opressão – por uma derruba-
estava se mobilizando em apoio ao programa do imposto de combustível de Macron, da revolucionária do capitalismo.

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O MITO DE GRAMSCI,
“O OCIDENTAL” (PARTE 2)
FALSA CONSCIÊNCIA DA “ACADEMIA GRAMSCIANA”
Francesco Giliani

O
s contemporâneos “gramsciólo- poucos vestígios de subversividade. A tendên- e Tony Blair como o “príncipe moderno”
gos”48 deformaram Gramsci mais cia predominante é a de distinguir Gramsci do gramsciano da era contemporânea51. Poeira
do que Togliatti tinha feito junto marxismo, destacando-o da tradição revolu- estelar...
com Vacca, Ragionieri, Badaloni, cionária da qual ele fazia parte. Gramsci é Outros intérpretes de renome de
Gruppi e companhia. Certamente, o mais apresentado em termos bem resumidos Gramsci, como Vacca, Cornel West ou
recente trabalho de “despolitização” do por Emanuel Saccarelli “como o sofisticado Adam Przeworki, pertencem ou pertence-
pensamento gramsciano não teria sido pos- marxista ocidental (não culpado do reducionis- ram a essa tradição social-democrata con-
sível se durante algumas décadas nosso sta- mo atribuído a uma ortodoxia não especificada tra a qual Gramsci lutou toda sua vida, mes-
linismo não tivesse modelado com infinita e ‘vulgar’), como o teórico competente da supe- mo em seus anos de prisão. Mas pouco resta
paciência, e enormes meios à sua disposi- restrutura (já se inclinando para aquela virada da oposição de Gramsci ao reformismo em
ção, um Gramsci na imagem e semelhança cultural e linguística abraçada por grandes se- seus estudos.
das voltas e contravoltas do PCI. tores da academia contemporânea), ou, talvez Da remoção de Gramsci como quadro
Caindo no grotesco, certas pretensões mais surpreendentemente, como o incesto teóri- político vem a fixação dos acadêmicos nos es-
intelectuais confundiram até mesmo o co de uma virada pós-marxista”.50 critos gramscianos que eles consideram mais
sanguinário – mas certamente pouco astu- familiares, em detrimento do jornalismo po-
to – ditador chileno Pinochet, que chegou a Às vezes, esta reinterpretação de lítico, das reportagens de congressos ou cir-
afirmar que: Gramsci não mantém nem mesmo um mí- culares partidárias. Os escritos da prisão, por
nimo de senso de proporção. Especialmente outro lado, podem parecer mais familiares a
“A doutrina do comunista Antonio Gramsci é quando é forçada a explorar o Gramsci po- um acadêmico, embora isso se deva princi-
o marxismo de forma atualizada... é perigosa lítico. Assim, por exemplo, Anne Shows- palmente às condições trágicas em que foram
porque penetra na consciência do povo e sobre- tack Sassoon, uma acadêmica autoritária, produzidos: isolamento político (mesmo da
tudo na consciência dos intelectuais”.49 Esta é descreveu o governo de Tony Blair como maioria dos presos políticos do PCdI), censu-
uma tese bastante fantasiosa. No uso acadê- um “projeto gramsciano” em um volume ra fascista e, em certa etapa, declínio físico e
mico de Gramsci, de fato, encontramos muito dedicado à ascensão do Novo Trabalhismo, desânimo humano. Gramsci é transformado

21
em uma figura que ele teria ridicularizado, em NEP (Nova Política Econômica), uma gestão da especificamente o chamado momento de
um intelectual resignado ou confiante no po- economia capitalista sob a liderança política dos hegemonia. Os intelectuais são, portanto,
der corrosivo da crítica cultural. trabalhadores que usaram a máquina estatal analisados por Gramsci como os “escri-
A produção carcerária de Gramsci foi (burguesa) para derrotar o atraso da sociedade vães” da classe dominante para o exercício
separada de suas escolhas políticas. Suas dis- italiana, para promover a reforma do Estado e do domínio cultural-ideológico. Nada nos
cordâncias com o partido e a IC foram uma retomar o desenvolvimento”.53 Cadernos nos leva a considerar o Estado
oportunidade para desenvolver a ideia de outra coisa que não seja:
que Gramsci, no final de sua vida, havia se
afastado da militância revolucionária para se Desvinculado da “[...] Todo o complexo de atividades práticas
tornar nada mais do que um brilhante acadê- luta da classe e teóricas pelas quais a classe dominante não
mico, um “teórico” crítico sobre o qual escre- apenas justifica e mantém sua dominação,
ver livros e encomendar teses de doutorado. trabalhadora por sua mas consegue obter o consentimento ativo
Como observa Saccarelli, nas universidades: própria emancipação dos governados”.54

“[...] Lemos Gramsci da maneira como lerí- e da humanidade, o O proletariado também, para Grams-
amos, digamos, Michel Foucault. Brennan conceito de hegemonia ci, deve ter seus próprios intelectuais para
identifica a origem da maioria dos erros nesta difundir sua visão de mundo. Seu lugar de
operação. A característica dos revolucionários, se torna uma essência agrupamento deve ser o Partido Comunista.
dos intelectuais do partido, como era Gramsci, espiritual. Sem um partido, nenhuma classe é capaz de
é ignorada”52. ganhar posições hegemônicas. Em Gramsci
não existe uma classe intelectual progres-
O temperamento e as reflexões de sista separada da classe trabalhadora.
Gramsci, mesmo amargas, causadas pela Voltando a Gramsci, não estamos inte-
decepção com a evolução do partido e da ressados em saber se ele previu o adiamen- Gramsci e Trotsky: hegemonia,
Internacional a qual ele havia dedicado to do ataque revolucionário mundial ao ca- frente única e Assembleia
sua vida consciente, transformaram-se no pitalismo por um período maior do que o Constituinte à sombra do
abandono das ideias. Um Gramsci renega- pensado por Lenin, Trotsky, Bordiga – esta “social-fascismo”
do a ser recebido fora da família comunista. última hipótese, entretanto, seria difícil de O Gramsci dos Cadernos possuía uma
Mas Gramsci nunca procurou uma maneira sustentar – ou quem quer que seja. Quem qualidade preciosa aos olhos do stalinismo.
de abandonar a militância política. A mes- se importa, alguém diria. A tese acadêmi- De fato, nos Cadernos de Notas estão
ma ruptura com o partido, na prisão, não foi ca generalizada a ser identificada e opos- espalhados alguns julgamentos bastante
o prólogo de uma aproximação com outras ta é que a reflexão do prisioneiro sobre a negativos, embora grosseiros e imprecisos,
tendências políticas. derrota do movimento operário, incapaz sobre Trotsky.
Livre de laços políticos com o movimen- de se opor à ascensão do fascismo, tinha Em vários pontos dos Cadernos,
to operário, a última geração de “gramsció- se estendido à necessidade de redefinir a Gramsci acusa Trotsky de “cadornismo po-
logos” conseguiu se dedicar à transfigura- missão histórica do proletariado. Nos es- lítico”55, ou seja, de sempre e em princípio
ção do conceito de hegemonia. Aceitando critos de Gramsci do período 1921-26 não tomar medidas políticas na ofensiva, sem
tacitamente a interpretação de Togliatti da há nada que sugira tal tese. Pelo contrário, ser capaz de adaptar seu pensamento polí-
guerra de posição como a única estratégia a pena de Gramsci vibra ao denunciar as tico aos altos e baixos concretos da luta de
para o Ocidente capitalista e não como uma responsabilidades políticas subjetivas e até classes. Este limite presumido está ligado
variante tática complementar da guerra mesmo a covardia pessoal dos reformistas por Gramsci à teoria trotskista de Revolu-
de movimento, os “gramsciólogos” par- à frente do PSI e da CGL. ção Permanente, que foi colocada na mira
tem do pressuposto não comprovado de Desvinculado da luta da classe traba- da restauração stalinista a partir de janeiro
que em Gramsci o conceito de hegemonia lhadora por sua própria emancipação e da de 1924. Gramsci cita:
é dissociado da perspectiva da tomada do humanidade, o conceito de hegemonia se
poder pela classe trabalhadora. Em essên- torna uma essência espiritual. Tendo desa- “§ Passado e presente. Passagem da guerra
cia, Gramsci, durante seus longos anos na parecido as relações de força e dominação manobrada (e do ataque frontal) para a guerra
prisão, teria meditado sobre o entusiasmo entre as classes, os “gramsciólogos” per- de posicionamento também no campo político.
dos anos 20 e entendido que a revolução era correm milhares de páginas sobre a “refor- Esta me parece ser a questão mais importan-
um fenômeno possível apenas no Oriente ma intelectual e moral” e as maravilhas da te da teoria política, colocada pelo período do
“atrasado”. Outra variante da distorção do luta cultural. pós-guerra, e a mais difícil de ser resolvida cor-
conceito de hegemonia é aquela assumi- As páginas de Gramsci sobre o conceito retamente. Está ligado às questões levantadas
da pelo obreirismo de Mario Tronti. Como de hegemonia dizem algo mais. Em primei- por Bronstein [Trotsky], que, de uma forma ou
Alessandro Giardiello corretamente obser- ro lugar, é bom ressaltar que a teoria da he- de outra, pode ser considerado o teórico político
va, na verdade: gemonia não é exposta sistematicamente, do ataque frontal em um período em que ele é
mas está dispersa e fragmentada em deze- apenas uma causa da derrota.”56
“Com a autonomia do político, o obreirismo nas de notas históricas, políticas e literárias.
descobriu o uso do capital e do poder pela clas- Com esse conceito, Gramsci indica uma Sobre o mesmo tema, central para a
se trabalhadora. A classe trabalhadora era o parte integrante do domínio de classe ou da reflexão dos Cadernos, Gramsci se explica
poder: segundo Tronti, o erro da social-demo- supremacia ideológica de uma classe sobre melhor. Dada a importância da passagem,
cracia não era pensar que podia administrar a as outras por meio de aparatos específicos nós a citamos extensivamente:
máquina estatal capitalista, mas subordinar- (Igreja, partidos, família, jornais, escola,
-se a sua iniciativa. Uma nova hierarquia deve universidade). A hegemonia indicaria o que “§ Guerra de posição e de manobras ou guer-
nascer dentro do trabalho, não de valores, mas complementa a ditadura no sentido estrito, ra frontal. Resta saber se a famosa teoria de
de poderes, uma distribuição de força diferente ou seja, os aparelhos repressivos do Estado. Bronstein sobre a permanência do movimen-
no terreno da política direta. A hipótese se tor- Por razões de estudo, Gramsci separa to não é o reflexo político da teoria da guerra
nou a de uma aliança de produtores e uma nova artificialmente os dois elementos e analisa manobrada (lembre-se da observação do ge-

22
fraudulentos de Moscou até que, em 1938,
Bukharin foi esmagado por eles.
Gramsci não poderia deixar de ter co-
nhecimento de que Trotsky havia elabora-
do o documento político mais importante
da IC sobre as táticas da frente única. No
entanto, apresentado como a figura pa-
radigmática da guerra do movimento,
Trotsky tornou-se nas notas de Gramsci
o teórico do assalto frontal sempre e em
qualquer caso. A Trotsky, portanto, Grams-
ci atribuiu as posições do líder comunista
húngaro Bela Kun em 1921, quando este
sugeriu e teorizou a desastrosa “ação de
março” do KPD, baseada na confusão en-
tre o putchismo e a ação revolucionária em
massa62. O mesmo Bela Kun para quem um
Lenin furioso cunhou a expressão ofensi-
va “fazer ‘kunerie’”. Apesar de tudo isso, é
Trotsky que figura nos Cadernos como “o
neral cossaco Krasnov), em última instância, peculiaridades nacionais, bem como avesso bruto”63. Minimizar o significado desta es-
o reflexo das condições gerais-econômico-cul- à fineza tática da frente única. colha, reduzindo-a a um estratagema, não
turais-sociais de um país no qual as estruturas No mesmo registro, Bergami havia afir- presta nenhum serviço à verdade.
da vida nacional são embrionárias e liberadas mado que: Por outro lado, pode-se concordar com
e não podem se tornar ‘trincheiras ou fortale- Bergami, que escreve sobre a “artificiali-
zas’. Neste caso, pode-se dizer que Bronstein, “[...] A oposição, estabelecida no Caderno 7 dade da crítica de Gramsci”, que “pré-cons-
que aparece como um ‘ocidentalista’, era ao (1930-1931), entre Trotsky, um defensor da trói uma condenação da abstração e da profecia
contrário um cosmopolita, isto é, superficial- guerra de movimento permanente, e Lenin, inconclusiva das concepções de Trotsky como
mente nacional e superficialmente ocidental um defensor da guerra de posição como so- manchadas pelo napoleonismo anacrônico e an-
ou europeu. Em contraste, Ilici era profunda- lução estratégica adequada para o refluxo da tinatural”64. Pelo contrário, a explicação de
mente nacional e profundamente europeu. […] revolução no Ocidente, não explica o desenvol- Gramsci sobre a guerra de posição e sobre
vimento do pensamento de Trotsky na história a situação nos países capitalistas avançados
Parece-me que Ilici [Lenin] tinha com- do Partido Bolchevique e da Terceira Interna- contém ecos do relatório de Trotsky sobre
preendido que era necessário passar da cional até 1926”.60 a frente única no 4º Congresso Mundial da
guerra de manobras, vitoriosamente aplica- IC, do qual o próprio Gramsci participou.
da no Oriente em 1917, à guerra de posição, De fato, Trotsky fez um bloco com Le- Como, então, devemos julgar as notas
que era a única possível no Ocidente, onde, nin, nos 3º e 4º congressos mundiais da IC, de Gramsci, que identificam Trotsky, em
como observa Krasnov, num curto espaço para convencer a maioria dos delegados da contraste com Lenin, como o teórico das de-
de tempo os exércitos podiam acumular necessidade de uma reorientação tática en- sastrosas guerras de movimento, do ataque
infinitas quantidades de munições, onde as carnada na política de frente única. As afir- da “arma branca”?
estruturas sociais ainda eram em si mesmas mações de Gramsci, portanto, estão com- Ou era uma capitulação política com-
capazes de se tornarem trincheiras arma- pletamente erradas. E muito forçadas são pleta ou Gramsci queria manter suas crí-
das. Isto me parece significar a fórmula da as conclusões de Saccarelli quando escreve ticas a uma viragem tática da IC longe das
‘frente única’ que corresponde à concepção que Trotsky era uma “tela protetora” para críticas gerais à degeneração da URSS e
de uma frente única da Entente sob o co- Gramsci. da IC feitas por Trotsky e pela Oposição de
mando único de Foch. Só que Ilici não teve Como se pode ignorar, de fato, que a Esquerda desde 1923. Esta última, como já
tempo de aprofundar sua fórmula, mesmo crítica ao “esquerdismo” da política do Ter- mencionado, nos parece a hipótese mais
levando em conta que ele só poderia apro- ceiro Período, acompanhada de um distan- racional. Também porque leva em conside-
fundá-la teoricamente, enquanto a tarefa ciamento das teses de Trotsky, foi precisa- ração, para enquadrar a posição de Gramsci
fundamental era nacional, ou seja, exigia mente a posição tomada pela “direita” e a em relação à IC, não apenas uma questão –
um reconhecimento do terreno e uma fixa- oposição bukhariana61 do Comintern? Essa seja a carta de outubro de 1926, as críticas ao
ção dos elementos de trincheira e fortaleza corrente, em 1930, formou a Internationale social-fascismo ou algo mais –, mas todo o
representados pelos elementos da socieda- Vereinigung der Kommunistischen Opposi- caminho conhecido por nós.
de civil etc.57 tion (IVKO, Oposição Comunista Unificada Algumas reconstruções sustentam que
Tomadas literalmente, as críticas de Internacional), liderada pelo grupo alemão para Lenin, como teórico da hegemonia, de-
Gramsci a Trotsky nos Cadernos de Notas em torno de Heinrich Brandler e August veria realmente ser combatido por Bukha-
reproduzem o relato padronizado de Trotsky Thalheimer, antigos líderes do Partido Co- rin, e não Trotsky, como teórico de sua as-
propagado pelo stalinismo. Segundo Sacca- munista Alemão. fixia. A este respeito, há uma referência
relli, essas notas, escritas entre 1930 e 1932, É provável que o desenvolvimento po- crítica nos Cadernos de Notas a Bukharin
seriam “uma tela protetora construída pelo lítico de Gramsci tenha ido nessa direção que, em 1921 como em 1931, defendeu posi-
autor para evitar o perigo de sua dura crítica também por causa do seu passado recente ções teóricas ultra esquerdistas. A crítica de
à doutrina stalinista do Terceiro Período”.58 como líder na IC de Zinoviev, e isso explica- Gramsci à tentativa de Bukharin de siste-
Quando comparado com Lenin, Trotsky é ria muito bem a necessidade de marcar uma matizar e popularizar o marxismo através
apresentado como “um internacionalista clara linha de separação entre ele e Trot- do Manual de Sociologia Popular reforça
abstrato e um aventureiro ultra esquerdis- sky. O IVKO, por outro lado, permaneceu esta percepção, ampliando a visão da inade-
ta”59 incapaz de conectar os princípios gerais extremamente crítico em relação às teses quação e do declínio teórico do marxismo na
do marxismo com a situação concreta e as de Trotsky e não condenou os julgamentos URSS. Nessas passagens, Gramsci analisa os

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escritos filosóficos de Bukharin e escreve que líderes dos sindicatos britânicos durante poderia continuar o trabalho de distanciar
o crescente fatalismo e determinismo meca- a greve geral de nove dias de 1926 – ti- o PCI da abordagem extremista do Bordi-
nicista da ideologia oficial da URSS foi um nha como regra uma orientação oposta, ga, como Lenin e especialmente Trotsky
sintoma da passividade prevalecente e si- adiando a luta pelo socialismo para um lhe haviam proposto durante sua estada
nalizou que os “subalternos” do passado não futuro indefinido e distante. em Moscou em 1922-1923, permanecendo
agiram como uma força social consciente de O stalinismo foi sectário apenas no ter- parcialmente acima da briga nas questões
suas tarefas. Por outro lado, Gramsci salien- reno das táticas e em uma fase estreita de que estavam inflamando a IC. Este pare-
tou que quando o silêncio, e não o tumulto, sua história – o social-fascismo do período ce ser o sentido da crítica a Bordiga, que se
caracterizava a vida do partido, isto era uma 1929-1934 – e atuou, ao invés disso, como moveu teimosamente de um “ponto de vista
indicação não da verdadeira unificação da uma força em favor da colaboração de classe internacional”, enquanto Gramsci manteve
multiplicidade, mas de sua supressão de de forma orgânica, primeiro com as frentes a primazia, naquela época, de “um ponto de
cima para baixo. populares e depois com os governos de uni- vista nacional”, mostrando que ele foi per-
Em uma nota de abril de 1932, Gramsci dade nacional durante a Segunda Guerra meado por um certo “provincialismo” ao
analisou o fenômeno da escrita “estatólatra”, Mundial. expor o problema do conflito na URSS.
que era um processo necessário para uma Outros líderes comunistas, especial-
classe, o proletariado, incapaz de viver uma mente na Europa, já eram naqueles anos
vida independente e livre antes da conquis- Não existem notas mais claros e lúcidos na análise dos germes
ta do poder político. Mas teria sido um pro- gramscianas sobre o do stalinismo e na tentativa de se opor fron-
blema, continuou Gramsci, se a “estatólatra” talmente a ele – pensemos no grupo líder do
tivesse se tornado entrincheirada e perpé- tema da progressiva PC polonês ou do PC francês de 1923-1924.
tua porque cada iniciativa continuava a ser extinção do Estado, As táticas de Gramsci em 1926 podem
determinada por funcionários do Estado.65 ser explicadas. Por um lado, sem dúvida,
Além deste ponto de análise – certamente um tema central no Gramsci teve medo de dividir, nas avalia-
significativo porque foi escrito enquanto na pensamento de Lenin, ções sobre a evolução da URSS e da Inter-
URSS o aparelho burocrático estatal concen- nacional Comunista, a unidade política
trava cada vez mais poder às custas da classe pelo menos desde o laboriosamente conquistada pelo grupo
trabalhadora – Gramsci não foi mais longe. Estado e a Revolução executivo do PCdI formado em 1923-1924
Não existem notas gramscianas sobre na polêmica contra a esquerda bordigiana,
o tema da progressiva extinção do Estado, e desde as Teses de então considerada solidária com Trotsky.
um tema central no pensamento de Lenin, Abril até suas últimas Por outro lado, ele compartilhou as teses
pelo menos desde o Estado e a Revolução e políticas da maioria do Partido Comunista
desde as Teses de Abril até suas últimas in- intervenções políticas. em torno da fração de Stalin e se iludiu, não
tervenções políticas. Muito menos reflexões sendo nada claro sobre a profundidade so-
que sugerem uma proximidade com as teses cial do conflito dentro do Partido Comunis-
sobre o processo de degeneração burocrá- ta, em poder contribuir para sua atenuação.
tica e “termidoriana” da Revolução Russa. A própria crítica de Gramsci à coletivi- Após a guerra, graças ao testemunho
Em outras palavras, os Cadernos de Notas e zação forçada, além disso, depende da con- de camaradas que o haviam conhecido
a evolução política de Gramsci até 1926 não denação do abandono do trabalho paciente na prisão, tornou-se cada vez mais difícil
nos permitem de forma alguma afirmar que de hegemonia, incluindo compromissos e encobrir os desacordos de Gramsci com o
as críticas a Trotsky, incorretas e injustas, sacrifícios por parte da classe trabalhado- partido e a IC. Na verdade, houve uma ver-
podem ser interpretadas de forma substan- ra, iniciada com a NEP, para Gramsci a base dadeira ruptura.
cialmente diferente da letra do texto, como autêntica do regime soviético e o ponto de O líder trotskista Pietro Tresso, expulso
afirmam numerosos estudiosos, mesmo da partida para suas críticas de 1924-1926 ao do Birô Político do PCdI em 1930, escreveu
extrema esquerda.66 Lembremos, por outro suposto “corporativismo” da Oposição que a expulsão de Gramsci por sua oposição
lado, que a tradição dos marxistas, quando de Esquerda.68 à volta ao “social-fascismo” era um fato, mas
submetidos a duras condições de prisão e As notas dos Cadernos sobre Trot- não foi tornada pública porque era prática
censura, sempre foi a de expressar uma parte sky requerem, portanto, tanto quanto e estabelecida não expulsar ninguém em caso
de seu próprio pensamento, mas nunca algo mais do que outros tópicos, um conhe- de diferenças políticas enquanto na prisão
que eles não compartilhavam. Ficaríamos cimento da história política de Gramsci ou no exílio. O próprio Bordiga, por exem-
surpresos se Gramsci se comportasse de e uma hipótese sobre sua evolução em plo, foi expulso apenas no final de seus três
uma maneira diferente desta modalidade. relação aos debates do movimento co- anos de confinamento.
O testemunho explosivo de Ercole Pia- munista internacional. Entretanto, a própria natureza do prin-
centini67, companheiro de prisão de Grams- O que sabemos com certeza é que a cipal conflito político entre Gramsci e a
ci, sobre as reflexões de Gramsci sobre o liderança stalinista do PCI escondeu a fa- IC, ou seja, a teoria do “social-fascismo”
stalinismo como o “termidor” da Revolução mosa Carta de Outubro de 1926, julgada e a renúncia na Itália à palavra de ordem
Russa, que é precisamente o nó teórico fun- por Togliatti como muito branda, na qual da Assembleia Constituinte, serviu poste-
damental sobre o qual a oposição de esquer- Gramsci tomou uma posição, em nome riormente para consolidar a ideia de um
da russa e internacional se agruparam, não da Secretaria do Partido, a favor de Stalin Gramsci que, se não foi leal a Moscou e a
é encontrado nos Cadernos. contra a Oposição Unificada de Trotsky, Stalin, o foi por ter sido o precursor da esco-
A crítica ao regime soviético perma- Kamenev e Zinoviev. O primeiro a publicar lha “democrática” subsequente das Frentes
nece esmagada sobre as peculiaridades essa carta em 1938 no Nuovo Avanti! foi Populares – impressa na memória política
do Terceiro Período, que foi apenas uma Angelo Tasca, que nesse meio tempo havia dos intelectuais progressistas como o ponto
das expressões programáticas do stali- rompido com o PCdI da direita. de viragem “pluralista” da IC, mas, na rea-
nismo. Além disso, o stalinismo, longe Nesse texto, Gramsci apenas criticou lidade, realizado em todo o mundo ao som
de adotar uma postura sectária – lem- os excessos de Stalin na gestão da batalha de expurgos, julgamentos políticos e elimi-
bramos já em 1925-1927 seu oportunismo contra a Oposição Unificada, seu desejo de nações físicas perpetradas diretamente pela
em relação ao Kuomintang chinês ou aos “subjugar”, e parecia estar se iludindo que NKVD de Stalin.

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O que Gramsci disse na prisão sobre a enterrado definitivamente o “partido de
necessidade da palavra de ordem demo- Gramsci”, no programa, no método de aná-
crática da assembleia constituinte em uma lise e também no de direção. Em relação ao
provável fase de transição na qual, após a futuro período de transição após a queda do
queda do fascismo, a revolução proletária fascismo na Itália, Trotsky escreveu a Tres-
não teve força para se impor imediatamen- so, Leonetti e Ravazzoli em maio de 1930:
te, não foi diferente, no método seguido, do
que os bolcheviques fizeram ao avançar as “(3) Isto é seguido pela questão do período
palavras de ordem transitórias nos oito me- de ‘transição’ na Itália. Antes de mais nada,
ses entre as revoluções de fevereiro e outu- deve ser claramente estabelecido: de transição
bro. Neste ponto, fica clara a fidelidade de de quê para quê? Período de transição da
Gramsci às Teses de Lyon do 3º Congresso revolução burguesa (ou ‘popular’) para a
do PCdI de 1926. revolução proletária, é uma coisa. O período de
Gramsci também salientou que na as- transição da ditadura fascista para a ditadura
sembleia constituinte os comunistas teriam proletária, é outra coisa. Se pensarmos na
que demonstrar na prática a natureza abso- primeira concepção, a questão da revolução
lutamente ilusória de uma transformação burguesa surge antes de tudo e é uma questão
socialista por meios institucionais e par- de inserir nela o papel do proletariado, após o
lamentares. Assim, em 1933, o comunista que somente a questão do período de transição
Athos Lisa informou à sede do PCdI sobre para uma revolução proletária surgirá. Se de ordem de transição, das quais brota sem-
as posições tomadas por Gramsci na prisão: pensarmos na segunda concepção, então será pre o caminho para a ditadura do proleta-
colocada a questão de uma série de batalhas, riado, que a vanguarda comunista terá que
“As perspectivas revolucionárias na Itália de- revoltas, reversões de situações, reviravoltas conquistar toda a classe trabalhadora e que
vem ser fixadas no número de duas, ou seja, a abruptas, que juntas constituem as diferentes esta última terá que unificar em torno dela
perspectiva mais provável e a menos provável. etapas da revolução proletária. Estas etapas todas as massas exploradas da nação. E aqui
Agora, na minha opinião, a mais provável é a podem ser numerosas. Mas em nenhum não excluo sequer a possibilidade de uma
do período de transição. Portanto, as táticas do caso elas podem conter dentro delas uma Assembleia Constituinte, que em certas
partido devem ser orientadas para este objeti- revolução burguesa ou seu feto misterioso, a circunstâncias poderia ser imposta pelos
vo, sem medo de parecer não revolucionárias. revolução ‘popular’. “ acontecimentos, ou, mais precisamente,
Ela deve adotar, diante dos outros partidos pelo processo de despertar revolucionário
na luta contra o fascismo, a palavra de ordem Isso significa que a Itália não pode, por das massas oprimidas:
da ‘Assembleia Constituinte’ não como um um certo período, voltar a ser um Estado par-
fim em si, mas como um meio. A ‘Assembleia lamentar ou se tornar uma ‘república demo- “[...] Se a crise revolucionária surgisse, por
Constituinte’ representa a forma de ação no crática’? Acredito – em perfeito acordo com exemplo, no decorrer dos próximos meses (sob
seio da qual podem ser colocadas as reivindica- você, penso eu – que esta eventualidade não o impulso da crise econômica, por um lado, sob
ções mais sentidas da classe trabalhadora, no está excluída. Mas então não resultará como a influência revolucionária vinda da Espanha),
seio da qual a ação do partido pode e deve ocor- fruto de uma revolução burguesa, mas como as grandes massas trabalhadoras, tanto operá-
rer, através de seus representantes, que devem um aborto de uma revolução proletária insu- rias como camponesas, seguiriam corretamente
ter a intenção de desvalorizar todos os projetos ficientemente madura ou prematura: suas demandas econômicas com palavras de or-
de reforma pacífica, mostrando à classe traba- dem democráticas (como liberdade de imprensa,
lhadora italiana que a única solução possível “[...] A vitória do fascismo foi o resultado de de coalizão, de sindicatos, de representação
na Itália reside na revolução proletária”.69 nossa derrota na revolução proletária de 1920. democrática no Parlamento e nos municípios).
Somente uma nova revolução proletária pode Isso significa que o Partido Comunista terá que
Se, no entanto, se apagar esse Gramsci derrubar o fascismo. Se desta vez também não rejeitar essas exigências? Pelo contrário. Terá de
e expandir para um vácuo a imagem de um está destinada a triunfar (fraqueza do Partido imprimir neles o aspecto mais ousado e categó-
homem refletindo isoladamente sobre o Comunista, manobras e traições dos social-de- rico possível. Pois não se pode impor a ditadura
“soco no olho” que o social-fascismo era para mocratas, dos maçons, dos católicos), o estado do proletariado às massas populares. Só se pode
ele, então é possível pintar um Gramsci que de transição que a contrarrevolução burguesa consegui-lo conduzindo a batalha – a batalha
rompe com o aventurismo ultraesquerdista será então forçada a estabelecer, sobre as ruí- até o fim – para todas as reivindicações, exigên-
da IC para aterrissar em posições social-de- nas de seu poder sob a forma de fascismo, não cias e necessidades transitórias das massas, e à
mocratas. Os estudiosos da orientação bor- pode ser nada mais que um Estado parlamen- frente dessas massas”71.
diguista vêm argumentando isso há déca- tar e democrático. [...]” (4)
das, cometendo um erro oposto e espelhado Independentemente disso, Gramsci
àqueles que tentaram construir à força uma Mas será que isso significa que nós, tinha desenvolvido uma reflexão sobre a
analogia entre Gramsci e Trotsky.70 comunistas, rejeitamos a priori todo obje- situação na Itália semelhante à de Trotsky
Para completar a operação, porém, tivo democrático, toda palavra de ordem e dos três líderes comunistas italianos que
também foi necessário apagar da memó- de transição ou de preparação, parando deveriam se juntar à Oposição Internacio-
ria a correspondência sobre a questão da estritamente apenas na ditadura proletá- nal de Esquerda em 1930. Com relação à
Assembleia Constituinte entre Trotsky e os ria? Isso seria demonstrar um sectarismo sua expulsão do PCdI, no entanto, não se
três ex-membros do Bureau Político do Par- doutrinário vaidoso. Não acreditamos por pode excluir que Gramsci tenha expressa-
tido Comunista, que fundaram a Oposição um momento que um simples salto revolu- do uma opinião contrária. Na verdade, teria
de Esquerda Italiana em 1930. Nesses textos cionário seja suficiente para soldar o que se- sido o medo de uma ruptura virulenta que
são expressos conteúdos políticos compatí- para o regime da ditadura do proletariado. sugeria a seu irmão mais velho, Gennaro
veis com os de Gramsci, pelo menos como Não negamos em absoluto a fase de Gramsci, manter em silêncio para o partido
relatado por Athos Lisa, e a ideia, reivindi- transição com suas exigências transitórias, a resposta recebida de Antonio a respeito da
cada no período pós-guerra por Leonetti, incluindo as exigências da democracia. Mas expulsão dos três, assim como a nova linha
de que o momento decisivo de 1930 havia é precisamente com a ajuda destas palavras do PCdI. Em 1965, pouco antes de sua mor-

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te, diz-se que Gennaro Gramsci recontou o tratégia de atrito”, indefinidamente longa
conteúdo político dessa conversa ao jorna- e central para o Ocidente, com a de derru-
lista-biógrafo Giuseppe Fiori nestes termos: bada. O atrito teria sido próprio do Ociden-
te a partir da derrota da Comuna de Paris
“ele não justificou sua expulsão e rejeitou a em 1871 – e aqui há uma coincidência com
nova linha da Internacional, compartilhada as referências gramscianas nos Cadernos.
por Togliatti em sua opinião de forma preci- A ocasião histórica para que este debate se
pitada demais”72. incendiasse foi a Revolução Russa de 1905
– quando os soviets, formas avançadas de
As avaliações concordantes sobre a poder proletário, apareceram pela primeira
natureza da revolução que derrubaria o vez – que Kautsky queria a todo custo exor-
regime fascista na Itália são de extrema cizar e considerar um fenômeno típico das
relevância, mas, é claro, elas não apagam sociedades atrasadas e não universalizável.
o que foi dito sobre o entendimento geral Para Kautsky, que confiou no advento
desse período histórico. Basta dizer que a do socialismo por meio de uma sucessão
única referência direta nos Cadernos sobre de eleições até que uma maioria parla-
bonapartismo ligada ao desenvolvimento mentar fosse alcançada, Rosa Luxemburgo
histórico da URSS identificou o embrião de respondeu com dureza. Para o “papa” da
uma tendência nessa direção nas posições Internacional Socialista, o ataque frontal
expressas por Trotsky durante o debate de da Revolução Russa de 1905 foi produto do conceitos de hegemonia e ditadura do
1920 sobre a função dos sindicatos após a atraso daquela sociedade, a greve geral foi proletariado se oporem uns aos outros
tomada do poder.73 uma forma “primitiva e amorfa” de luta, também chegou ao fim.
As condições prisionais obviamente inapropriada no Ocidente, onde teria dado Nos documentos da IC, a palavra de or-
não ajudaram Gramsci a formar uma opi- à reação um pretexto para reprimir o movi- dem da hegemonia foi usada para indicar
nião profunda. O clima histérico da caça aos mento operário, de outra forma destinado a a tarefa do proletariado de dirigir, ou seja,
opositores, responsabilidade do stalinismo, uma ascensão irresistível e gradual. exercer a liderança, sobre os outros setores
penetrou também nas prisões e no confina- Lenin, em 1910, interveio no debate ao explorados da população na luta contra o
mento e deu o golpe final a qualquer discus- lado de Luxemburgo. Ele denunciou a rígida capitalismo. No 4º Congresso Mundial da
são coletiva entre comunistas presos pela oposição proposta por Kautsky entre a Rús- IC (1922), o termo foi estendido ao domínio
repressão fascista. Por outro lado, fazer de sia czarista e a Europa das democracias par- da burguesia sobre o proletariado quando a
Gramsci um “semitrotskista” ou um “trot- lamentares como a racionalização de uma primeira conseguiu reduzir a ação do segun-
skista inconsciente” seria uma operação capitulação ao eleitoralismo. Luxemburgo do a um quadro corporativo, ou seja, a uma
arbitrária e não prestaria nenhum serviço também criticou a “antítese rígida entre a divisão entre a luta política e a luta sindical.76
nem a Gramsci nem ao trotskismo. Rússia revolucionária e a Europa ocidental Da leitura dos Cadernos fica claro que
parlamentar”, vendo nela as raízes de uma Gramsci partiu dessa tradição política e até
Hegemonia: o passado de um orientação oportunista. mesmo lexical, em particular da ideia da neces-
conceito marxista Para Rosa, as greves na Rússia em 1905, sidade do proletariado se aliar a outros setores
Muitos intelectuais, entre os quais das quais o Conselho dos Delegados dos explorados. Adotando um conceito formulado
Norberto Bobbio, sugeriram que o conceito Trabalhadores em Petersburgo havia surgi- por Trotsky, Gramsci claramente distinguiu a
de hegemonia é uma inovação gramsciana, do, foram: ditadura do proletariado, a ser exercida contra
mas não é este o caso. Uma história concisa os inimigos de classe mesmo pela força, e hege-
do conceito é essencial para desvendar “[...] Tão pouco ‘amorfas e primitivas’, que monia, a ser exercida sobre o campesinato cuja
a questão e compreender que leituras e podem de fato ser comparadas, por ousadia, “boa vontade e entusiasmo” deve ser capaz de
debates Gramsci teve por trás dele. violência, solidariedade de classe, tenacidade, estar ao lado do proletariado.
A expressão hegemonia, no nascente realizações materiais, objetivos progressistas e No entanto, não teria faltado, nos Cader-
movimento marxista russo, foi usada já na resultados organizacionais, a qualquer movi- nos, uma nota na qual Gramsci descartou
década de 1880 para definir o papel da clas- mento sindical na Europa Ocidental”. errônea e apressadamente a Teoria da Re-
se trabalhadora na luta contra o czarismo. volução Permanente – o prisma da distorção
Tanto para Plekhanov quanto para Axelrod, Rosa afundou ainda mais o golpe ao re- stalinista é evidente – como um abandono da
mas também para Lenin, o termo indicava sumir o raciocínio de Kautsky desta forma: busca de uma aliança entre os trabalhadores
a necessidade do proletariado se engajar em urbanos e os camponeses, ou seja, como um
uma luta política, em polêmica com as ten- “Em resumo, o horizonte das próximas eleições abandono do conceito de hegemonia.77
dências economicistas, e sua supremacia do Reichstag sorri com tantas promessas que
sobre outras classes na revolução burguesa estaríamos pecando em leviandade criminosa Em que se transformou esse conceito
contra o czarismo. Pouco depois da divisão se pensássemos em qualquer greve de massa, nos Cadernos?
de 1903 entre bolcheviques e mencheviques, tendo diante de nós uma certa vitória, colocada Se em algumas passagens a hegemonia
Lenin acusou estes últimos de abandona- ‘no bolso’ pelo boletim de voto”75. parece ser prerrogativa da sociedade civil,
rem a ideia de hegemonia – “o aspecto mais em oposição à dominação ou coerção
grosseiro do reformismo na socialdemo- Após a Revolução de Outubro, o termo própria do Estado, em outros textos a
cracia russa”74 – subordinando-se politica- hegemonia caiu em desuso entre os hegemonia é analisada como síntese de
mente à liderança da capital russa (Non la bolcheviques. A fórmula bolchevique da consensos obtidos através dos chamados
capitale russa -Mosca – ma il capitale eco- “ditadura democrática dos trabalhadores e órgãos privados (nem sempre), mas
nomico russo) na revolução burguesa-de- camponeses” dentro do sistema capitalista baseados na ordem burguesa (escolas,
mocrática contra o czarismo. não havia se materializado. A perspectiva igrejas, rádio, universidades etc.) e na
No início do século 20, esse debate mu- da hegemonia do proletariado em uma coerção. No regime parlamentar burguês,
dou para a Alemanha, no coração do movi- revolução democrática também caiu. A observou Gramsci, a hegemonia deveria
mento operário. Kautsky contrastou a “es- controvérsia teórica que tinha visto os ser alcançada preferencialmente “sem

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o consentimento da força sobreposta”.78 além do próprio Gramsci para afirmar, corporativa, do egoísmo e do oportunismo
Entretanto, se a hegemonia é entendida como reformistas com uma pincelada de profissional. Os mencheviques do Ocidente
como consentimento-coerção, então pós-modernismo, que o Estado essencial- “aninharam-se” muito mais firmemente
ela se move dentro do próprio Estado mente não é mais, no Ocidente, um órgão de nos sindicatos; no Ocidente, surgiu uma
e, no máximo, Gramsci teria mantido repressão de classe como era na Rússia czaris- camada de corporativistas, mesquinhos,
uma diferença de nuance ao distinguir ta e que o poder se concentra mais nos meios egoístas, sórdidos, intereisseiros, pequeno-
hegemonia política – isto é, estatal – e civil. de informação do que nos meios de produção. burgueses, imperialistas, ’aristocratas
O que parece indiscutível é que Gramsci não Se, no Ocidente, o poder do capital tives- da classe trabalhadora’, escravizados e
formulou uma teoria orgânica. se tomado a forma de hegemonia cultural, corrompidos pelo imperialismo. Este fato é
Nos Cadernos, as palavras Estado, socie- seríamos induzidos a reconhecer como vá- inegável. A luta contra os Gompers, contra
dade civil e hegemonia estão sujeitas a uma lido o velho dogma reformista sobre a via- os senhores Jouhaux, Henderson, Merrheim,
mudança conceitual. Qual é o fio condutor bilidade da rota eleitoral para o socialismo. Legien e associados na Europa Ocidental é
destes termos? A reflexão, em Gramsci, pas- Mas este ponto de vista, nunca expresso por infinitamente mais difícil do que a luta contra
sa da questão das alianças sociais do proleta- Gramsci, esquece de considerar que as con- nossos mecheviques, que representam um tipo
riado, especialmente no “Leste”, para a aná- dições “normais” de subordinação ideológica social e político absolutamente homogêneo”. 81
lise das estruturas do poder político burguês das massas são baseadas em uma coerção, às (grifo nosso)
no “Oeste”, ou seja, nos países do capitalismo vezes silenciosa e pouco visível, que a torna
avançado. No entanto, continua sendo ver- possível: o monopólio da violência legal por Gramsci esboçou uma análise das
dade que a configuração principal destes ter- parte do Estado. Sem esta prerrogativa ma- características dos sistemas políticos dos
mos, para o destino póstumo do pensamento terial, o sistema de controle cultural se torna- países capitalistas avançados, que eram
de Gramsci, acabou sendo a oposição entre o ria imediatamente frágil. mais capazes de resistir a eventos de
Oriente, onde “o Estado é tudo” e a guerra de Em Gramsci, a reflexão sobre a hegemo- ruptura, como crises econômicas e guerras.
posição é apropriada, e o Ocidente da guer- nia torna-se principalmente uma referência Nesses contextos, argumentou Gramsci,
ra de manobras, onde o Estado é uma “casca à solidez e articulação do domínio burguês seria improvável que o proletariado
exterior” em relação à sociedade civil que é no Ocidente capitalista. Uma tendência para fizesse um ataque frontal à burguesia
“robusta e capaz de resistir a fortes choques”. um maior grau de consentimento dos opri- sem uma longa e difícil guerra de posição
Mas, como raciocinaram os maliciosos midos pode reduzir as expressões marcantes – na verdade, a construção da relação de
gramsciólogos, se no Ocidente a hegemonia do domínio coercitivo da burguesia, como, força no nível subjetivo. Nisto, vale a pena
prevalece sobre a coerção como modo de ex- aliás, foi penetrantemente ilustrado por Le- repetir, Gramsci não inovou com respeito
pressão do poder da burguesia, então é “a as- nin em Esquerdismo, uma Doença Infantil às conquistas teóricas dos quatro primeiros
cendência cultural da classe dominante que, no fun- do Comunismo. Lenin tinha analisado, des- congressos mundiais (1919-1922) da
do, garante a estabilidade da ordem capitalista”.79 de o Imperialismo (1916), que um dos efeitos Internacional Comunista.
E aqui muitos gramsciólogos estão ansiosos políticos desta nova fase do capitalismo era
para ir mais longe e atacar a teoria marxis- a formação, nos países imperialistas, de uma Gramsci e Trotsky: as notas sobre a
ta do Estado como um órgão de dominação “aristocracia operária” graças às migalhas Revoluçã
ção Permanente, ou melhor,
de classe, enquanto muito mais profundo foi dos superlucros coloniais. Este conceito foi sobre a guerra de manoo bras e
Lenin quando observou que os czares gover- retomado em 1920 em O Esquerdismo: guerra de posiçãão (e frente única)
navam pela força enquanto a burguesia bri- A situação é mais complicada se con-
tânica e francesa o fazia por engano, bajula- “Em países mais avançados que a Rússia, siderarmos o fragmento dos Cadernos
ção, parlamento e concessões democráticas aquele certo caráter reacionário dos sindicatos sobre a Revolução Permanente. A expres-
destinadas a preservar o essencial, ou seja, a se manifestou, e sem dúvida teve que se são, na nota de Gramsci, refere-se ao dis-
santidade da propriedade privada. manifestar, com muito mais força do que no curso de Marx à Liga dos Comunistas, em
Mas se, como o social-democrata Tam- nosso. Os mencheviques russos encontraram (e 1850, quando ele colocou a hipótese de um
burrano80, quando quer-se fazer Gramsci em muito poucos sindicatos ainda encontram) salto drástico das revoluções burguesas de
dizer mais do que ele escreve, então vai-se o apoio dos sindicatos por causa da estreiteza 1848 para as revoluções proletárias. Esta
hipótese, segundo Gramsci, foi apagada
da história com a derrota da Comuna de
Paris em 1871. A partir deste momento,
segundo ele, a estratégia política de ata-
que frontal pareceria adotável apenas nos
países coloniais e atrasados e não nas de-
mocracias burguesas do Ocidente.
A hegemonia torna-se o princípio ex-
plicativo das estruturas de poder de classe
nas democracias burguesas estáveis típi-
cas do Ocidente. A guerra de manobras
se tornaria uma estratégia residual, atual
nas margens do desenvolvimento capita-
lista. Pelo contrário, no Ocidente, onde o
Estado é apenas a “trincheira externa” do
domínio de classe, o núcleo central é a so-
ciedade civil, ela própria externa à esfera
econômica, ao contrário do uso comum do
termo em Hegel, mas também em Marx.
Entretanto, a sombra de Trotsky apa-
rece novamente, apresentada como a
proponente de uma doutrina que se tor-

27
superfície externa e no momento do ataque
e do avanço os atacantes se viram diante de
uma linha defensiva que ainda era eficiente,
assim acontece na política durante grandes
crises econômicas; nem as tropas atacan-
tes, como resultado da crise, se organizam
rapidamente com o tempo nem adquirem
um espírito agressivo; por outro lado, os
atacantes não se desmoralizam ou aban-
donam suas defesas, mesmo no meio dos
escombros nem perdem a fé em sua própria
força e em seu próprio futuro. É claro que as
coisas não permanecem como estão, mas o
que é certo é que falta o elemento de rapidez,
de tempo acelerado, de marcha progressiva
e definitiva como os estrategistas do cador-
nismo político esperariam. O último evento
desse tipo na história da política foram os
eventos de 1917. Eles marcaram uma vira-
da decisiva na história da arte e da ciência
nou abstrata e ultrapassada. Como já foi frente única deveria ser adotada não como política”.83
observado, a doutrina da Revolução Per- uma tática, mas como uma estratégia para (Destaque nosso)
manente é descrita de forma caricatural: toda uma época histórica.
Ao preparar seu argumento sobre as tá- As últimas linhas desta passagem,
“Com relação à palavra de ordem ‘jacobina’ ticas revolucionárias mais adequadas para juntamente à observação sobre o fracas-
lançada por Marx para a Alemanha em 48- o Ocidente capitalista avançado, Gramsci so do avanço do Exército Vermelho sobre
49, sua complicada fortuna deve ser obser- havia se referido ao debate estratégico entre Varsóvia em agosto de 1920, levantam a
vada. Tomada, sistematizada, elaborada, os comandos militares supremos durante a questão de um possível conflito entre a
intelectualizada pelo grupo Parvus-Brons- Primeira Guerra Mundial. O alvo imediato estratégia dos bolcheviques em 1917 – que
tein, manifestou-se inerte e ineficaz em de sua crítica era o chamado cadornismo, também utilizaram o método da frente
1905 e depois: foi uma coisa abstrata, para uma espécie de análogo no campo político do única durante aquele ano crucial – e uma
um gabinete científico. A corrente que se lhe ultraesquerdismo que era o alvo de Gramsci. estratégia correta nos países capitalistas
opôs nesta manifestação intelectualizada, Foi assim que ele formulou a questão: avançados? Em uma passagem posterior,
por outro lado, sem utilizá-la ‘de propósito’, Gramsci parece proceder a um trata-
na verdade a empregou em sua forma his- “A observação do General Krasnov (em seu mento teórico deste ponto, contrastando
tórica, concreta, viva, adaptada ao tempo e romance) de que a Entente (que não queria acentuadamente Oriente e Ocidente:
ao lugar, como brotando de todos os poros uma vitória imperial russa, para que a questão
da sociedade que precisavam ser transfor- oriental não fosse definitivamente resolvida em “No Oriente, o Estado era tudo; a socie-
mados, de uma aliança entre duas classes com a favor do czarismo) impôs uma guerra de trin- dade civil era primordial e gelatinosa; no
hegemonia da classe urbana. No primeiro caso, cheiras do Estado-Maior russo (absurda, dado Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil
temperamento jacobino sem o conteúdo político o enorme desenvolvimento da frente do Báltico havia uma relação correta, e no tremor do
apropriado, tipo Crispi; no segundo caso, tem- até o Mar Negro, com grandes áreas panta- Estado podia-se discernir imediatamente
peramento e conteúdo jacobino de acordo com nosas e arborizadas) enquanto a única opção uma estrutura robusta da sociedade ci-
as novas relações históricas, e não de acordo possível era a guerra de manobras, é uma mera vil. O Estado era apenas uma trincheira
com um rótulo intelectualista”.82 bagatela. Na realidade, o exército russo tentou avançada, atrás da qual havia uma cadeia
a guerra de manobras e avanços, especialmen- robusta de fortalezas e casamatas; mais ou
Em Gramsci, a análise do Estado e a ques- te no setor austríaco (mas também na Prússia menos, de Estado para Estado, é claro, mas
tão da tática da frente única estão ligadas. O Oriental) e teve sucessos brilhantes mesmo que isto exigia precisamente um reconhecimen-
Estado, entretanto, é definido de forma os- efêmeros. A verdade é que não se pode escolher to cuidadoso de caráter nacional”.84
cilante entre três nuances não coincidentes: a forma de guerra que se quer, a menos que se
às vezes seria uma entidade em uma relação tenha uma superioridade esmagadora sobre o As conclusões desta nota “No Oriente o
“equilibrada” (ao contrário do Oriente) com inimigo, e é bem sabido quantas perdas foram Estado era tudo; a sociedade civil era primor-
a sociedade civil, às vezes a “casca externa e custeadas pela obstinação do comando geral do dial e gelatinosa; no Ocidente existia uma rela-
quase desnecessária” da sociedade civil, mas exército em não querer reconhecer que a guerra ção justa entre o Estado e a sociedade civil e no
em outros lugares também uma “estrutura de posição foi “imposta” pelas relações gerais tremor do Estado podia-se ver imediatamente
maciça” que aniquila a autonomia da socie- das forças opostas. [...] A mesma redução deve uma estrutura robusta da sociedade civil. O
dade civil. Além disso, se em algumas notas ocorrer na arte e na ciência política, pelo menos Estado era apenas uma trincheira avançada,
o Estado se opõe à sociedade civil, em outras, no que diz respeito aos estados mais avançados, atrás da qual se encontrava uma robusta ca-
mais recentes, Gramsci parece incluir a so- onde a ‘sociedade civil’ se tornou uma estru- deia de fortalezas e casamatas.” são a passa-
ciedade civil no Estado. Não se escapa da im- tura muito complexa, resistente às ‘irrupções’ gem mais usada pelos comentaristas que
pressão de uma certa confusão. catastróficas do elemento econômico imediato apoiam a ruptura de Gramsci com a visão
Da teia de notas gramscianas, segun- (crises, depressões etc.); as superestruturas da da Internacional Comunista no início.
do Anderson, uma linha geral de conexão sociedade civil são como o sistema das trinchei- Curiosamente, tal oposição entre Orien-
e interpretação surgiria: hegemonia civil = ras na guerra moderna. Assim como na guerra te e Ocidente também havia sido propos-
guerra de posição = frente única. A cadeia de moderna, um feroz ataque de artilharia pa- ta por Bordiga em seu discurso em feve-
equivalências é convincente e parece indicar recia ter destruído todo o sistema defensivo reiro de 1926 – preparado também junto
a convicção gramsciana de que a tática da do adversário, mas só tinha destruído sua com Trotsky e no qual o comunista napo-

28
litano se opôs a Stalin e Bukharin – ao 4º
Plenário do Executivo da IC:

“O desenvolvimento na Rússia não nos dá, por-


tanto, experiências de fundamental importân-
cia sobre como o proletariado está derrubando o
moderno Estado capitalista, liberal, parlamen-
tar, que existe há muitos e muitos anos e possui
uma grande capacidade de defesa. [...] Devemos
saber atacar e conquistar o Estado burguês mo-
derno, um Estado que se defende ainda mais
efetivamente através da luta armada do que a
autocracia czarista, e que, além disso, se defende
com a ajuda da mobilização ideológica e da edu-
cação derrotista do proletariado pela burguesia.
Este problema na história do Partido Comunis-
ta Russo não se coloca”.85

Ao contrário do quadro que emergiria


das referências enigmáticas de Gramsci,
Trotsky não era de modo algum, nem mes-
mo no campo da doutrina militar, um “te-
órico ofensivo”. Respondendo a Frunze, no pura guerra de posições. Não existe tal es- organizado. A tática da frente única serviu
debate dentro do Exército Vermelho, Trotsky clarecimento nos Cadernos de Gramsci. Isto a este propósito e a oposição a ela não veio
sublinhou assim o tipo de conexão existente o tornou interpretável e forçado pela acade- de algum suposto “marxista oriental”, mas
entre o plano político e militar: mia gramsciniana. precisamente de setores importantes dos
A respeito das críticas de Gramsci à te- jovens PCs da Europa ocidental90, incluindo
“Infelizmente não faltam entre nossos recém oria de Trotsky sobre a Revolução Perma- a Itália e incluindo o próprio Gramsci, que
cunhados doutrinários aqueles ingênuos de- nente, assinalemos que toda a formação do considerou esta escolha uma reaproximação
fensores da ofensiva que, sob a insígnia de uma comunista salvo após a fundação do PCdI, e de princípio com a social-democracia e, por-
teoria militar, procuram introduzir nos cír- em particular uma carta escrita por Grams- tanto, uma traição.
culos de nosso exército as mesmas tendências ci em fevereiro de 1924, de Viena, sugerem Na Alemanha, a discussão havia assumi-
‘ultraesquerdistas’ unilaterais que já tiveram uma excelente compreensão do debate que do um aspecto dramático em 1921 porque a
que se expressar no Terceiro Congresso da In- irrompeu na URSS após a morte de Lenin e aplicação da teoria da ofensiva, inspirada em
ternacional sob o disfarce da teoria ofensiva: também uma certa inclinação inicial para Moscou por Bela Kun e Bukharin (então ain-
considerando que (!) vivemos em uma época a perspectiva política de Trotsky89, que foi da à esquerda do partido), havia provocado a
revolucionária, é justamente por esta razão (!) abandonada rapidamente. tragédia da “ação de março” quando, após a
que o Partido Comunista deve implementar Como explicar, então, que nos Cader- provocação do Ministro do Interior prussia-
a política da ofensiva. Traduzir as concepções nos Gramsci critique a posição de Trotsky, no e social-democrata Horsing que ocupou
de ‘ultraesquerda’ para a linguagem da teoria fazendo dela uma caricatura que a assimile militarmente as áreas de mineração da Ale-
militar é multiplicar seus erros”.86 a um desejo de exportar a revolução napo- manha central onde a KPD tinha alguns de
leônica, ou seja, através de meios militares seus bastiões, a liderança comunista entrou
Trotsky criticou as posições daqueles que e burocráticos? na ofensiva em uma ação insurrecional que
fizeram da manobra ou da posição um prin- Não temos como entender se Gramsci expôs dezenas de milhares de comunistas à
cípio absoluto: “A vitória não pode ser alcançada havia mudado de posição e, de forma in- repressão impiedosa do Estado. Nesta oca-
sem uma ofensiva. Mas a vitória pertence a quem telectualmente pouco clara, desfigurou a sião, as críticas extremamente duras à pas-
ataca quando é necessário atacar, e não a quem ata- posição com a qual ele argumentava, ou sagem demasiado mecânica da guerra de
ca primeiro”87. Após o debate com os “teóricos se ele havia decidido se encobrir ou se a posição para a guerra de movimento vieram
ofensivos”, Trotsky desenvolveu suas posições causa era outra. A verdadeira contradi- de Lenin e Trotsky, que na Alemanha haviam
precisamente sobre a provável distinção en- ção parece estar em Gramsci e é funda- manifestado abertamente seu apoio às po-
tre as futuras guerras civis entre as classes do mental ajustá-la ao seu gosto anos ou sições da ala direita do partido, favoráveis à
Ocidente e do Oriente, sem qualquer “rudeza” décadas depois. frente única e lideradas até março de 1921 por
e mantendo uma abordagem revolucioná- A caracterização de Gramsci de Revolu- Paul Levi, que foi expulso da IC por causa da
ria. Para Trotsky, era altamente provável que ção Permanente como uma espécie de “teoria forma como ele havia se distanciado imedia-
no Ocidente o uso da guerra posicional fosse ofensiva” não tem fundamento. Gramsci atri- ta e publicamente da “ação de março”.91
maior do que na Rússia: bui a Trotsky as posições dos “teóricos ofensi- Tudo isso, Gramsci sabia e não por rumo-
vos” que animaram, especialmente no Tercei- res. Durante sua estadia em Moscou entre o
“Em países altamente desenvolvidos, com grandes ro Congresso Mundial da IC (1921), uma dura verão de 1922 e novembro de 1923, foi o pró-
centros populacionais, com uma Guarda Branca oposição de esquerda contra Lenin e Trotsky. prio Trotsky que discutiu intensamente com
já emoldurada militarmente, a guerra civil pode – e De fato, foram estes dois últimos que fo- ele para provocar seu desprendimento da
em muitos casos sem dúvida assumirá – um cará- ram os primeiros a argumentar, dentro da IC, fração do Bordiga. Gramsci, embora ainda
ter muito menos dinâmico, muito mais rígido, ou que o capitalismo havia entrado numa fase em bloco com a esquerda do partido92, foi de
seja, um caráter semelhante à guerra posicional”.88 de relativa estabilização após os fracassos da fato considerado um dos elementos sobre os
onda revolucionária de 1917-1920 e que isto quais se concentrar para superar o sectaris-
A estas notas, Trotsky acrescentou que deveria implicar uma mudança tática, antes mo da fase nascente do PCdI. Portanto, sen-
não se deve entender que a guerra entre clas- de tudo na Europa Ocidental, para conquis- te-se uma certa decepção ao comentar certas
ses no Ocidente poderia ser reduzida a uma tar pacientemente a maioria do proletariado posturas rudes contidas nos Cadernos.

29
Gramsci hoje de Amadeo Bordiga e propôs a ele uma dis- Além disso, o que indicavam os arti-
É necessário dar a Gramsci o que é de cussão sistemática de seu trabalho. Mais do gos de Lenin e Trotsky de 1922-23 sobre
Gramsci, sem medo de destacar também que muitas elucubrações sofisticadas, este a importância do trabalho cultural se-
seus erros. A tarefa é dificultada pela infinita episódio indica que Gramsci pretendia, com não, para usar termos gramscinianos,
literatura gramsciana, um verdadeiro cober- o trabalho dos Cadernos, contribuir para o a identificação da necessidade de apro-
tor ideológico polimórfico que impede de re- desenvolvimento do marxismo como uma fundar a hegemonia do proletariado so-
conhecê-lo como comunista. Os Cadernos se teoria revolucionária em seu campo preferi- bre as classes aliadas?94
prestaram mais do que qualquer outra escri- do. Nesses termos, já em 1923, ele havia iden- É grotesco que os “gramscianos”, em
ta à deformação de toda a figura de Gramsci, tificado uma lacuna na produção teórica do grande parte ignorantes da história do
fortemente embalsamada em uma densa e movimento operário na Itália: movimento comunista, acabem atribuindo
toda coerente rede de lugares comuns refor- como traço distintivo do “seu” Gramsci, um
mistas e liberais. “Basta pensar: em mais de 30 anos de sua fino conhecedor dos complexos mecanis-
Separar Gramsci do bando de especialis- existência, o Partido Socialista não produziu um mos - ai de mim não defini-los desta for-
tas que o incendeiam é um dever elementar livro que estude a estrutura econômico-social da ma – da sociedade ocidental, um requinte
para os marxistas revolucionários. Isso não Itália. Não há livro que estude os partidos políticos que, na realidade, ele amadureceu na In-
deve nos impedir, em nenhuma circuns- italianos, seus vínculos de classe, seu significado”.93 ternacional Comunista. De fato, durante
tância, de ver os Cadernos pelo que eles são, alguns anos Gramsci pensou, juntamente
mesmo quando sua desorganização se esfor- Portanto, nada sugere que Gramsci a uma boa parte do PCI, que a IC era muito
ça para nos comunicar o sentido geral desse quisesse “superar” Marx e Lenin, conside- manobrável e não estava suficientemente
trabalho inacabado ou quando uma prosa rando-os demasiado estreitos para fazer ancorada nos princípios teóricos gerais e
que por vezes é muito indireta – o resultado as superestruturas ideológicas depende- unificadores do marxismo.
do desejo de zombar da censura? De atrito? rem da estrutura econômica, o verdadeiro Mas isto, para os “gramscianos” acadê-
De regressão do pensamento? – indica uma mantra dogmático de legiões de intelec- micos, é um livro fechado. Como o Grams-
reflexão não muito cristalina. tuais pós ou ex (ou nunca) marxistas dos ci comunista. O único que existiu. Aquele
No entanto, será sempre útil ter em quais as últimas três ou quatro décadas que Pietro Tresso lembrou na revista dos
mente que Gramsci, concebendo durante foram regurgitantes. trotskistas franceses:
seu exílio a ideia de uma história de intelec- Entretanto, é verdade que, após a cri-
tuais na Itália, buscou primeiro o conselho se da Revolução Russa e da Internacional “Os camaradas que saíram da prisão tam-
Comunista, foi Trotsky quem desenvolveu bém nos informaram que, há dois anos,
o marxismo e o colocou à altura dos novos Gramsci havia sido expulso do partido, uma
desafios. A partir daí, ainda hoje, as novas expulsão que a liderança havia decidido man-
gerações de revolucionários terão que se ter escondida pelo menos até que Gramsci
formar em preparação para as batalhas pudesse falar livremente. Isto foi para poder
iminentes que nos esperam. explorar a personalidade de Gramsci para
Não atentos às sutilezas, especial- seus próprios fins. Em todo caso, os burocra-
mente se inerentes à história do mo- tas stalinistas fizeram de tudo para enterrar
vimento comunista internacional, os Gramsci politicamente, antes que o regime de
chamados gramscianos se lançaram Mussolini fosse fisicamente bem sucedido.
como loucos às críticas à transposição Gramsci está morto, mas para o proleta-
mecânica no Ocidente da guerra do mo- riado, para as jovens gerações que chegam
vimento adotada pelos bolcheviques no à revolução através do inferno fascista, ele
“Oriente” e fizeram dela um fetiche. O permanecerá sempre aquele que, durante os
objetivo, afinal, é quebrar a ligação de últimos 20 anos, melhor do que qualquer
Gramsci com Lenin e a Revolução de outro, encarnou os sofrimentos, as aspira-
Outubro. Apresentar outubro de 1917 ções e a vontade dos pobres trabalhadores e
como um golpe de Estado vai na mesma camponeses da Itália. Ele continuará sendo
direção. Tal ponto de vista, que é rude e um exemplo de retidão moral e honestidade
reacionário, ignora o fato de que para intelectual absolutamente inconcebível para
os bolcheviques tomarem o poder era o clã stalinista de bajuladores cuja palavra de
necessário ganhar hegemonia nos con- ordem é ‘sobreviver’.
selhos de trabalhadores, camponeses e
soldados, órgãos de massa que em fe- Gramsci morreu, mas depois de testemunhar
vereiro de 1917 eram esmagadoramente a decomposição e morte do partido que ele
liderados por reformistas. havia ajudado poderosamente a construir,
Mas há também uma ignorância mais e depois de ouvir em seus ouvidos os tiros
profunda na eliminação do fato de que os carregados por Stalin que derrubaram toda
líderes bolcheviques foram quase todos uma geração de velhos bolcheviques. Gramsci
treinados – mas não Stalin – em amplos morreu, mas depois de saber que outros ve-
horizontes culturais e de vida e não esta- lhos bolcheviques, como Bukharin, Rikov e
vam nada relacionados ao conceito am- Rakovski, já estavam prontos para o abate.
bíguo de “Oriente”, conhecendo quatro ou Gramsci morreu de ataque cardíaco, talvez
cinco línguas, participando dos debates não saibamos o que mais contribuiu para ma-
da então Internacional Socialista e em tá-lo: se os 11 anos de sofrimento nas prisões
contato com o movimento operário da de Mussolini ou os tiros de pistola que Stalin
Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Suí- havia disparado na nuca de Zinoviev, Kame-
ça, Estados Unidos etc., ou dos países para nev, Smirnov, Piatakov e seus camaradas nas
os quais haviam emigrado. masmorras da Ghepeu Adeus Gramsci”.95

30
Notas: próprio (como na sociedade medieval e nos gover- Teria necessariamente florescido em uma forma
[48] A este respeito, uma crítica penetrante nos absolutos foi possível pela existência jurídica de bonapartismo, por isso, foi necessário quebrá-lo
da produção acadêmica contemporânea sobre de estados ou ordens privilegiadas), um período de inexoravelmente. Suas soluções práticas estavam
Gramsci está em E. Saccarelli, Gramsci e Trotsky, estatolatria é necessário e até oportuno: esta ‘estato- erradas, mas suas preocupações estavam certas.
na Sombra do Stalinismo. The Political Theory latria’ não é nada mais que a forma normal de ‘vida Neste desequilíbrio entre a prática e a teoria, existe o
and Practice of Opposition, Routledge, Londres estatal’, de iniciação, pelo menos, à vida estatal au- perigo. Isto já havia se manifestado antes, em 1921.
2008, pp. 21-86. tônoma e à criação de uma ‘sociedade civil’ que não O princípio da coerção no mundo do trabalho estava
[49] Citado em J. Buttigieg, International foi historicamente possível criar antes da ascensão certo (discurso proferido no volume sobre Terroris-
Gramsci Society Newsletter, março de 1993. à vida estatal independente. Entretanto, esta “esta- mo e pronunciado contra Martov), mas a forma que
[50] “Como o admiravelmente sofisticado mar- tolatria” não deve ser abandonada a si mesma, não havia assumido estava errada: o “modelo” militar
xista ocidental (inocente do reducionismo de al- deve, especialmente, tornar-se um fanatismo teórico havia se tornado um preconceito funesto, os exérci-
guma ortodoxia vulgar não especificada), como o e ser concebida como “perpétua”: deve ser criticada, tos do trabalho falharam”, A. Gramsci, Caderno 4,
teórico hábil da superestrutura (já se inclinando precisamente para que se desenvolva e produza no- nota de rodapé 52.
para aquela virada cultural e linguística que de- vas formas de vida estatal, nas quais a iniciativa de [74] V. I. Lenine, Complete Works, Editori Riuni-
fine grandes seções da academia contemporânea), indivíduos e grupos é “estatal” mesmo que não seja ti, Roma, vol. XVII, p. 215.
ou, talvez mais espantosamente, como ele próprio devido ao “governo de funcionários” (tornando a [75] R. Luxemburg, Escritos Selecionados, Einau-
o incesto teórico de uma virada pós-marxista”, vida estatal “espontânea”)”, A. Gramsci, Caderno di, Turim, p. 345.
Saccarelli, op. cit. , p. 23. 8, Footnote 130. Sobre o mesmo tema, declinado na [76] P. Anderson, Ambiguities of Gramsci, op.
[51] Cf. A. S. Sassoon, “From realism to creatività: análise da ação individual, ver também A. Gramsci, cit., pp. 29-30.
Gramsci, Blair and Us”, in A. Coddington e M. Caderno 8, Nota 142. [77] Cf. A. Gramsci, Caderno 1, Nota 44.
Perryman (a c. di), The Moderniser’s Dilemma: [66] Além do já mencionado Saccarelli, cf. P. An- [78] Citado em P. Anderson, Ambiguities of
Radical Politics in the Age of Blair, Lawrence derson, Ambiguità di Gramsci, cit.; F. Benvenu- Gramsci, op. cit., p. 39.
&Wishart, Londra, 1998, p. 160. ti- S. Pons, “L’Unione Sovietica nei ‘Quaderni del [79] Ibid, p. 43.
[52] “Nós lemos Gramsci da maneira que pode- carcere’”, em G. Vacca (ed.), Gramsci e il Novecento, [80] N. Tamburrano, Gramsci, Sugarco, Milão
mos ler, digamos, Michel Foucault”. Brennan Carocci, Roma 1999, pp. 108-109 e 119. Mais recen- 1977.
identifica muito do que está errado com tal opera- temente, uma tentativa cheia de forças para harmo- [81] V. Lenin, Esquerdismo, a doença infantil do
ção. Ela ignora a distinção de revolucionários, de nizar Gramsci e Trotsky foi feita por J. Dal Maso, El comunismo, editorial AC, Milão 2003.
intelectuais do partido como Gramsci”, Saccarelli, marxismo de Gramsci, Ediciones IPS, Buenos Aires, [82] A. Gramsci, Caderno 1, Nota 44.
op. cit. , p. 25. 2016. [83] A. Gramsci, Caderno 13, Nota 44.
[53] A. Giardiello, “Operaismo. La disfatta di [67] Cf. E. Piacentini, “Con Gramsci in carcere”, tes- [84] A. Gramsci, Caderno 13, Nota 44.
un’utopia letale”, Falcemartello, nº 1, 2015. te. Coletado por P. Giannotti, em Rinascita, a. XXXI [85] A. Bordiga, Scritti scelti, Feltrinelli, Milão
[54] A. Gramsci, Caderno 15, Nota de rodapé 10. (1974), n. 42, p. 32 ; D. Gamba, “In prigione con 1975, pp. 190-191.
[55] Por Luigi Cadorna, um general italiano da Gramsci. Storia di Ercole Piacentini combattente [86] L. Trotsky, Escritos Militares, Nova York,
Primeira Guerra Mundial, conhecido por lançar della libertà, Pascal Editrice, 2005. p. 47.
uma série de ofensivas frontais contra as sólidas [68] Gramsci, em particular, havia compartilhado [87] Ibid, p. 88.
linhas de defesa austríacas no Isonzo e Karst, que as críticas feitas em 1925 por Bukharin, defensor de [88] Ibid, pp. 84-85.
resultaram em fracassos sangrentos. um aprofundamento da NEP, da Teoria da Revolu- [89] P. Togliatti (ed.), La formazioone del gruppo
[56] A. Gramsci, Caderno 6, Nota 138. ção Permanente. Siveda N. Bukharin, “The Theory dirigente del PCI nel 1923-1924, cit., pp. 187-189.
[57] A. Gramsci, Caderno 7, Nota 16. of Permanent Revolution”, Revisão Comunista, a. [90] Deve-se ressaltar também que, na época,
[58] “Dispositivo de proteção projetado pelo au- V, n. 10, fevereiro 1925. duas figuras como Korsch e Lukacs, que mais
tor para neutralizar o perigo de sua crítica feroz [69] Relatório de Athos Lisa escrito em Paris em tarde se tornaram parte da elite do “marxismo
ao Terceiro Período Stalinista”, Saccarelli, op. cit. nome de Togliatti em 22 de março de 1933, publica- ocidental”, se opuseram às táticas da frente única
, p. 83. do originalmente em Rinascita em 12 de dezembro a partir de posições ultra-esquerdas e imbuídas de
[59] “Flippant internationalist and an ultra-left de 1964, está agora em A. Lisa, Memórias. In car- um profundo voluntarismo sobre “fazer como a
adventurer”, ibid, p. 82. cere con Gramsci, prefácio de U. Terracini, Feltrinelli, Rússia fez”, sem ter realmente estudado em pro-
[60] G. Bergami, Gramsci communista critico, Milão 1973, p. 88. fundidade a dinâmica de outubro.
Franco Angeli, Milão 1981, p. 76. [70] Cf. C. Riechers, Gramsci e le ideologie del suo [91] A análise de Levi sobre a ação de março,
[61] De Nikolai Ivanovich Bukharin, um líder tempo, Graphos, Genoa 1993; A. Peregalli (ed.), Il traduzida para o inglês, está agora em P. Levi, In
bolchevique que, após defender posições extremis- comunismo sinistra e Gramsci, Dedalo libri, Bari the steps of Rosa Luxemburg, ed. by David Fer-
tas de esquerda nos primeiros anos após a Revo- 1978. Peregalli (ed.), Il comunismo di sinistra e nbach, Historical Materialism Books, London
lução de Outubro, havia se tornado o expoente Gramsci, Dedalo libri, Bari 1978. 2011.
principal da direita no partido e na Internacional. [71] L. Trotsky, Escritos sobre a Itália, Erre Emme, Em junho de 1922, por exemplo, Gramsci defen-
[62] Em março de 1921, o Partido Comunista Roma, 1990, II ed. revista e ampliada, pp. 187-189. deu a posição crítica do Bordiga na frente única
Alemão lançou uma tentativa imprudente de in- [72] G. Fiori, Vita di Antonio Gramsci, Laterza, Bari na segunda reunião do executivo ampliado da
surreição, conduzida em um momento desfavorá- 1966, p. 292. Terceira Internacional.
vel e sem o apoio necessário das massas. [73] “A tendência de Leo Davidovi [Trotsky] estava [93] A. Gramsci, A Voz da Juventude, 1-11-1923.
[63] “Como o vilão”, Saccarelli, op. cit., pp. , p. 82. ligada a este problema. Seu conteúdo essencial foi [94] Cf. L. Trotsky, Revolution and Daily Life, Sa-
[64] G. Bergami, op. cit. , p. 77. dado pela “vontade” de dar supremacia à indústria velli, Roma, 1972.
[65] Cf. “Para alguns grupos sociais, que antes da as- e aos métodos industriais, de acelerar por meios [95] Blasco [Pietro Tresso], “Un grandmilitant
censão à vida estatal independente não tiveram um coercivos a disciplina e a ordem na produção, de est mort... Gramsci”, La luttedes classes, no. 44,
longo período de desenvolvimento cultural e moral adaptar os costumes às necessidades do trabalho. 14-5-1937.

31
OS BOLCHEVIQUES
E A JUVENTUDE (PARTE 3)
Evandro Colzani

A
pós analisar o alvorecer do
Partido Bolchevique, com seus
jovens dirigentes, os embates
da juventude contra a guerra
imperialista de 1914 e o sacrifício e he-
roísmo daqueles que formaram o Exér-
cito Vermelho para defender a Revolu-
ção Russa de 1917, vamos acompanhar o
trágico destino da geração que tombou
nas mãos da camarilha burocrática que
traiu a Revolução de Outubro. Contudo,
também veremos como foram bravos os
revolucionários que permaneceram fiéis
aos seus princípios, analisaremos a ri-
queza histórica deixada para que possa-
mos seguir o trabalho iniciado por eles.
Anteriormente, pudemos acompa-
nhar as principais conclusões de Lenin
acerca da juventude e entender como ele
lidava com ela. Nesta terceira e última
parte, nos debruçaremos sobre o traba-
lho de Leon Trotsky, revolucionário des-
de muito cedo, que lutou ombro a ombro
com jovens trabalhadores que se alista-
ram no Exército Vermelho e que dedicou
uma grande parte da sua vida para ganhar
a juventude para as fileiras da revolução.

A juventude contra a burocracia


O triunfo do governo dos sovietes
em outubro de 1917 foi apenas o início
da Revolução Russa. Os primeiros anos
da revolução foram de grandes espe-
ranças, havia um entusiasmo crescente
na classe operária e na juventude que
acompanhavam apaixonadamente os
desdobramentos da luta de classes na
arena mundial. O principal temor da
burguesia a partir daquele momento
era que esse processo se espalhasse pela
Europa e pelo mundo. Para os bolche-
viques, a vitória da classe operária na
Alemanha, Polônia, Hungria, Itália, isto
é, o triunfo da revolução em escala in-
ternacional era a esperança de salvação
da nascente União Soviética. Em 1922, o
proletariado soviético derrotou os Exér-
citos Brancos e saiu vitorioso da guerra
civil. Se, por um lado, os trabalhado-
res puderam respirar aliviados pelo
fim da guerra, por outro, se depararam
com um país devastado. As jovens ge-
rações que em um primeiro momento

32
se agarraram com todas as suas forças zado pela Oposição de Esquerda, criada
para defender a revolução da invasão em 1923. A Plataforma da Oposição deu
branca, após a guerra se lançaram na início às lutas contra a burocracia e de-
árdua tarefa de reconstruir a nascente fendia os princípios leninistas da demo-
república soviética. Mas as condições cracia operária e o internacionalismo
econômicas em uma Rússia atrasada, revolucionário. Os membros da oposi-
arrasada pela guerra imperialista e afo- ção se identificavam como bolchevi-
gada em uma guerra civil já resultaram ques-leninistas, mas eram chamados
no extremo cansaço da classe operária e por seus inimigos pejorativamente de
consequentemente na degeneração que trotskistas.
se manifestou com mais força nos anos A oposição logrou vitórias impor-
posteriores. Entre março e abril de 1918, tantes no início de sua existência, con-
Lenin escreveu: quistando a maioria das células de Mos-
cou, incluindo a maioria das células
“O elemento da desorganização peque- do Exército Vermelho, todavia, com os
no-burguesa (que terá de se manifestar métodos burocráticos já em vigor, essa
em maior ou menor medida em cada re- vitória importante resultou em apenas
volução proletária e que na nossa própria Trotsky, Natália e Leon Sedov, em três delegados para o congresso do par-
revolução deve emergir com grande vigor Alma Ata tido de 1923.
dado o caráter pequeno-burguês do país, Em outubro de 1924 surge a linha
seu atraso e a consequências da guerra re- partidária e doutrina do “socialismo
acionária) também deve deixar sua mar- iniciada em 1918 atingiu níveis dramáti- em um só país”, a justificativa teórica
cas nos soviéticos (...). Há uma tendência cos entre 1922 e 1923. A jovem geração da contrarrevolução. No mesmo ano, a
pequeno-burguesa que visa transformar russa recebia entusiasmada as notícias oposição deixou de existir formalmente
os soviéticos em “parlamentares”, isto é, dos desdobramentos desse processo, e só retomou suas atividades em 1926,
em burocratas “1 entretanto, como explicou o historiador com uma série de novos problemas eco-
marxista Pierre Broué, a derrota sem nômicos assolando o país.
A produção industrial, apesar de luta dos comunistas alemães, condenou: Trotsky tentou dialogar diretamen-
apresentar um aumento de 46% em re- te com os operários, seu objetivo era se
lação a 1921, era de apenas um quarto “(...) e desta vez por muito tempo - a re- basear na classe trabalhadora. Mas o de-
dos níveis pré-guerra. A população das volução russa ao isolamento. A desilusão sânimo e a apatia reinavam entre eles.
cidades também sofreu uma queda con- que ocorre, após a apresentação da vitó- Essa situação se agravou ainda mais em
siderável, sendo que Petrogrado havia ria revolucionária como certa e imediata 1927, com a derrota da Revolução Chine-
perdido 57,5% de seus habitantes de 1917 pelos líderes russos, representará um sé- sa, que contribuiu novamente para a de-
a 1920 e Moscou, 44,5%. rio fardo sobre o moral, a confiança e a silusão e desorientação dos trabalhado-
Quatro anos após a revolução, a Rús- atividade dos militantes. Este sentimen- res enquanto os burocratas se tornavam
sia apresentava o paradoxo de um Esta- to geral vai ser um fator determinante mais confiantes e insolentes.
do operário, baseado em uma revolução no conflito, cuja explosão a vista de to- Na prática, Trotsky e os demais
proletária, mas que via, segundo Bukha- dos foi retardada pela espera ansiosa dos membros da Oposição de Esquerda ga-
rin, a “desintegração do proletariado”2. acontecimentos”3. nharam em maior quantidade a camada
Se em 1919 havia 3 milhões de operários mais jovem da nascente União Soviética:
industriais, em 1920 não havia mais de Junto com a desilusão e o abatimento,
1,5 milhão e em 1921 esses números não o isolamento da revolução em condições “Com relação à idade, os membros da opo-
passam de 1,2 milhão. Os avanços da in- de atraso extremo resultou no aumento sição eram jovens e mesmo muito jovens;
dústria pesada e estatal foram tímidos da desigualdade, da corrupção, da bu- 85% tinham menos de 35 anos de idade
nesse período e os preços dos produtos rocracia e do privilégio. Se a Revolução […]. Em Kharkov, de 259 membros exclu-
industriais disparam. As iniciativas da Alemã tivesse êxito, a situação na Rús- ídos em 1927, havia 196 trabalhadores,
Nova Política Econômica (NEP) causa- sia poderia ter sido completamente di- 70% dos quais com menos de 30 anos,
ram uma queda relativa do nível de vida ferente. Com a ascensão da burocracia, 38% com menos de 25” 4
do proletariado industrial e geraram os sovietes progressivamente deixaram
uma série de contradições que culmina- de ser um órgão de poder e o debate foi Pierre Broué apresenta o perfil des-
ram em greves dos operários. cerceado, iniciou-se o período de perse- sa juventude em “Los Trotskistas en la
Não é o objetivo deste artigo explicar guições, execuções e exílios forçados. URSS (1929-1938)”:
cada detalhe dos problemas econômicos Mas este desenvolvimento não acon-
da nascente União Soviética no início teceu do dia para a noite e muito menos “O grosso da Oposição e de seus quadros
dos anos 1920, há uma vasta bibliografia sem resistência. Como vimos, Lenin já de 1930 estava formado por homens e
sobre o tema, mas é preciso compreen- havia identificado o surgimento da bu- mulheres ainda jovens, a geração de 1917.
der que esse é um dos elementos cen- rocracia no seio do Partido Bolchevique Em sua maioria estas pessoas eram ope-
trais no desenvolvimento e fortaleci- ainda na guerra civil e nos anos subse- rárias, estudantes secundaristas, quando
mento de uma casta de privilegiados. A quentes realizou um combate aberto a aderiram ao partido nesse ano de 1917 e
partir da miséria que assolava o país, as esta tendência. A partir de 1923, Lenin combateram nos anos da guerra civil como
condições objetivas para o florescimen- não conseguiu mais participar ativa- soldados ou como comissários políticos.
to do que há de pior em uma revolução mente dos embates devido às compli- Estes jovens – a flor e a nata do partido
foram criadas. cações de sua saúde e, em 1924, veio a bolchevique – reencontraram-se depois de
Além da questão econômica, há o fa- óbito. O principal enfrentamento à bu- 1920 nas faculdades operárias e foram os
tor político fundamental da luta de clas- rocracia liderada inicialmente por Sta- quadros desta juventude estudantil-ope-
ses a nível mundial. A Revolução Alemã lin, Kamenev e Zinoviev foi protagoni- rária que nutriram o grosso da Oposição

33
de 1923. Alguns deles estiveram entre os sky na defesa Sviiajsk e da retomada isto é, a geração que despertou em 1917 e
mais brilhantes e melhores alunos deste de Kazan, um dos episódios cruciais da que recebeu seu treinamento nos 24 exér-
Instituto de Professores Vermelhos, cujo revolução que garantiu a sobrevivência citos da frente revolucionária, foi igual-
objetivo era o de reunir a elite dos jovens do Estado soviético em seu nascimento. mente destruída. Também esmagado sob
quadros bolcheviques, a fim de formá-los Ivan Smirnov foi um destacado dirigente os pés e completamente obliterado estava
em todos os domínios da investigação po- da Oposição de Esquerda na Rússia, mes- a melhor parte da juventude, os contem-
lítica e social. Eram, no fundo, muito re- mo após o exílio de Trotsky em 1929. Em porâneos de Leon [Sedov].”8
presentativos desta camada social origi- 1934 foi preso pela NKVD (que depois se
nal nascida da revolução de Outubro, tornará a KGB), sob a falsa acusação de A luta contra o “trotskismo”, isto é,
a “intelectualidade operária” muito planejar o assassinato de Stalin. Com o contra a Oposição de Esquerda, cons-
conhecedora da técnica e da constru- início do Grande Expurgo e dos Proces- tituiu uma etapa decisiva no desenvol-
ção econômica, ao mesmo tempo em sos de Moscou (1936-1938), Smirnov foi vimento e instauração do totalitarismo
que apaixonadamente a serviço da re- acusado de organizar um centro trotskis- stalinista e foi contra os bolcheviques-
volução mundial.” 5 ta conspiratório subversivo e fuzilado -leninistas, jovens e adultos, que se
em 1937. Não foram apenas alguns, mas desenvolveu o sistema do aparato poli-
Mas, ainda assim, entre esses jo- milhares de “Smirnovs” que conheceram cialesco da GPU e dos Gulags7. Quando
vens, havia uma camada da classe ope- o marxismo na sua juventude, que eram Trotsky fala da melhor parte da juven-
rária que tinha energias para lutar jun- capazes de dialogar, mobilizar e organi- tude, os contemporâneos de Leon Sedov,
to da oposição: zar os operários, que influenciavam so- seu filho, assassinados pelo stalinismo,
zinhos centenas e até milhares de traba- ele está se referindo a toda a geração que
“Estamos falando, portanto, de um mo- lhadores, camponeses e soldados, que o ainda muito nova testemunhou ou atuou
vimento da juventude proletária. Os jo- stalinismo exterminou: diretamente na Revolução de Outubro.
vens que lutam nas fileiras da Oposição Lev Lvovich Sedov, filho de Leon
são aqueles que eram adolescentes, inclu- “Da geração mais velha cujas fileiras nos Trotsky, nasceu em 1906, enquanto seu
sive crianças, na época da revolução, cuja juntamos no final do século passado no pai estava preso após ter dirigido o So-
maré ainda os conduzia: a parte mais di- caminho para a revolução, todos, sem ex- viete de Petrogrado durante a Revolu-
nâmica da sociedade, seu futuro; o resul- ceção, foram varridos de cena. Aquilo que ção de 1905. Sedov tinha apenas 11 anos
tado profundo, a pegada mais duradoura as prisões czaristas de trabalhos forçados quando os trabalhadores tomaram o
da revolução” 6 e exilados severos, as durezas da emigra- poder na Rússia, participou das incon-
ção, a guerra civil e as doenças não con- táveis manifestações que ocorreram em
Com o triunfo da camarilha burocrá- seguiram realizar, nos últimos anos foi 1917, brigou na escola por questões polí-
tica, o Partido Bolchevique se converteu conseguido por Stalin, o pior flagelo da re- ticas, “inclusive com o filho de Kerensky.
em uma parte do aparato do Estado. Em volução. Após a destruição da geração an- Aparentemente, as brigas ocorriam dia-
sua cabeça, estava Josef Stalin, o coveiro terior, o melhor setor da geração seguinte, riamente. Visitou seu pai na prisão após
da revolução, como bem disse Trotsky.
O fim dos anos 1920 e início dos 30 é
marcado pelo fim da democracia inter-
na no partido, o início da perseguição,
exílio e extermínio físico dos oposicio-
nistas. A burocracia realizava zigue za-
gues políticos e levava a classe operária
a nível mundial, principalmente sob a
orientação da Internacional Comunista
burocratizada, a derrotas contínuas na
China, Alemanha, Espanha etc.

A geração de 1917
Para dar um exemplo da qualidade
dessa camada juvenil que atuou na Opo-
sição de Esquerda, podemos resumida-
mente falar de Ivan Smirnov, três anos
mais novo que Trotsky, jovem ferroviário
que tinha apenas 18 anos quando conhe-
ceu o Partido Operário Socialdemocra-
ta Russo (POSDR). Preso e, em seguida,
exilado pelo regime czarista, Ivan atuou
durante dois anos como militante profis-
sional em uma fábrica com 10 mil operá-
rios. Com o estouro da guerra imperialis-
ta foi convocado em 1915, mas dentro das
fileiras do Exército conseguiu construir
uma organização bolchevique clandesti-
na com 400 soldados. Foi membro do V
Exército, um importante destacamento
do Exército Vermelho, durante a guerra Membros da Komsomol na Fábrica de Seda Sverdlov, 1920. Diretório de arquivo
civil. Com pouco mais de 35 anos, par- principal de Moscou (Glavarkhivlma Ata)
ticipou junto de Larissa Reissner e Trot-

34
a caça às bruxas de julho contra os bol- rowski, que havia trabalhado na famosa
cheviques. Nessa base seu futuro tomou Sociedade para a Repatriação de Emi-
forma”9. Logo começou a participar da grados Russos, também era agente da
União da Juventude Comunista (Komso- GPU desde 1934, como confessou depois
mol), criada em 1918. da Segunda Guerra Mundial.
Quando os debates acerca da buro- Em “Leon Sedov, filho, amigo, luta-
cratização da União Soviética iniciaram, Membros da Komsomol dor”, obituário feito por Trotsky, o revo-
Leon Sedov se juntou à Oposição de Es- lucionário não apenas se despede de seu
querda, combateu pelo internacionalis- filho, como faz um pedido aos jovens re-
mo e na defesa da democracia operária. atuava na União Soviética e a Oposição volucionários de todo o mundo:
A partir do momento em que a cama- de Esquerda Internacional. Sedov aju-
rilha burocrática tratou de aparelhar a dou Trostky fornecendo livros, docu- “Adeus, Leon. Legamos tua memória
Komsomol e suprimir a possibilidade mentos e traduções. irretocável às gerações mais jovens dos
de um debate crítico em seu seio, Sedov Em 1936, publicou “O livro vermelho trabalhadores do mundo. Com justiça,
continuou o combate nos terrenos em sobre os Processos de Moscou”, sua prin- viverás nos corações de todos aqueles que
que eram possíveis trabalhar. Esteve cipal obra literária, que trata do Jul- trabalham, sofrem e lutam por um mundo
intimamente ligado a Trotsky, não por gamento dos 16, entre eles Zinoviev, melhor. Jovens revolucionários de todos os
conta das relações sanguíneas, mas pela Kamenev, Smirnov etc. Nele, Sedov países, aceitai de nós a lembrança de nosso
sua atuação política. denuncia a crescente desigualdade na Leon, adotai-o como vosso filho – é dig-
No período em que Trotsky ainda União Soviética (onde um trabalhador no disso – e deixai que, a partir de agora,
estava na Rússia, mas sob forte vigilân- ganhava 100 rublos, enquanto um buro- participe invisível de vossas batalhas, vis-
cia da polícia secreta de Stalin, Sedov crata ganhava 810.000), os retrocessos to que o destino lhe negou a felicidade de
ficou responsável por romper esse iso- impostos pelo stalinismo, como a rein- participar de vossa vitória final!”13
lamento. Entre abril e outubro de 1928, trodução das condecorações e títulos,
ele conseguiu fazer chegar a Trotsky fim do direito ao aborto, adoção do mo- A importância da juventude
“aproximadamente mil cartas e documentos delo czarista de ensino etc. Mas o cen- Durante os anos 1930, Trotsky conce-
políticos e cerca de 700 telegramas”. Nesse tro da obra de Sedov é explicar por que deu uma série de entrevistas e produziu
mesmo período, foram enviados “550 e como Stalin se utilizou dos julgamen- artigos que explicavam a degeneração da
telegramas e nada menos que 800 cartas tos para exterminar fisicamente aqueles União Soviética, a ascensão do fascismo,
políticas, incluindo uma série de obras subs- que se opunham à burocracia, sobretudo os crimes da burocracia e uma infinida-
tanciais, como a Crítica ao Projeto de Progra- a Oposição de Esquerda. Na introdução de de outros temas, entre eles, o lugar da
ma da Comintern, entre outras.” 10 Trotsky evidencia que o objetivo de sua análise é juventude na luta revolucionária. Uma
ainda acrescenta que sem o seu filho, ele mostrar que o “crime de Stalin (...) é um dos entrevista importante realizada por es-
não teria realizado nem a metade de seu maiores da história moderna.” tudantes de Copenhague, em novembro
trabalho. A relação de Sedov com a Opo- Quando Trotsky teve contato com a 1932, é relatada em “Sobre os estudantes e
sição de Esquerda era tão estreita que obra de Sedov, logo percebeu a qualida- os intelectuais”. Quando questionado so-
Trotsky, em certos momentos, enxerga- de do conteúdo que seu filho produzira bre o papel dos estudantes no movimento
va seu filho como alguém da geração dos e foi com entusiasmo que expressou a revolucionário, Trotsky respondeu:
“velhos”. importância do que estava lendo:
Sedov também contribuiu com arti- “O estudante revolucionário só pode
gos para os boletins da Oposição, ana- “Fiquei completamente absorto a par- contribuir se, em primeiro lugar, vive
lisando a situação política e econômi- tir do momento em que o autor realizou um processo de autoeducação revolu-
ca da URSS, denunciando as ações da uma análise independente do julgamento. cionária rigorosa e coerente e, em se-
burocracia etc. Em “A vida da oposição Cada capítulo seguinte parecia-me melhor gundo lugar, se é capaz de conectar-se
russa exilada e presa” (tradução livre), do que o anterior. ‘Bom garoto, Levusya- ao movimento operário revolucioná-
por exemplo, documento assinado sob tka!’, minha esposa e eu dissemos, ‘temos rio quando ainda é estudante.”14
o pseudônimo de N. Markin, Sedov de- um defensor!’.
nuncia o aumento da repressão que so- “Leon escrevia da mesma maneira como São dois os aspectos essenciais que o
friam os opositores em 1929: realizava suas outras funções, isto é, cons- revolucionário russo irá defender ao lon-
cienciosamente, estudando, refletindo, go de sua trajetória quando o assunto é a
“No início de 1929 a GPU saqueou feroz- verificando. A vaidade lhe é estranha. Ele relação entre a juventude e a revolução.
mente as organizações de oposição em não cai nas armadilhas das declarações O primeiro ponto é semelhante ao que
toda a União Soviética. Simultaneamente, vazias, puramente agitativas. Ao mesmo analisamos a partir da literatura de Le-
a repressão não só aumentou em quanti- tempo, cada linha que ele escreveu brilha nin*, isto é, a importância do aprendiza-
dade, mas também alcançou uma nova com uma chama viva, cuja fonte foi seu
qualidade: a criação de Solitárias; privan- temperamento revolucionário.”12
do os deportados de seu trabalho, transfe-
rindo-os para locais insalubres, reduzindo Infelizmente, Sedov morreu jovem,
sua manutenção pela metade; a expulsão e como muitos de sua geração, foi uma
do camarada Trotsky; provocação geral e vítima direta do stalinismo. Em feverei-
assim por diante.” 11 ro de 1938, sofrendo dores abdominais,
ele foi levado por a uma clínica russa em
Esse jovem revolucionário, que Trot- Paris e de lá saiu sem vida. Descobriu-
sky chamaria de “nosso ministro de as- -se depois que o hospital em que Sedov
suntos externos, ministro da polícia e foi internado era de propriedade do Dr.
ministro das comunicações”, foi a liga- Boris Girmounski, que servira anterior- Membros da Komsomol
ção entre a Oposição de Esquerda que mente na polícia secreta russa. Zbo-

35
Membros da Komsomol na Praça Vermelha, em Moscou

do. Lenin e Trotsky dialogaram diretamente A conclusão deste trecho evidência a segun- tudo na guerra civil não suportaram o peso
com as jovens gerações que estavam desper- da característica importante que podemos das derrotas das revoluções externas e a de-
tando para a vida política logo após o trinfo perceber com frequência em seus escritos generação do regime soviético. Em 1940,
da Revolução de Outubro. Em 1922, durante mais próximos deste período. Eles tratam da Trotsky foi assassinado a mando de Stalin
o 5º Congresso Russo da Liga da Juventude necessidade da juventude de aprender com e as traições, as derrotas e retrocessos pesa-
Comunista Russa, Trotsky fez um discurso o operário, aprender a ver o mundo com os ram muito sobre os ombros das gerações que
muito semelhante com aquele apresentado olhos da classe trabalhadora, para que o es- viram seus sonhos e esperanças destruídos.
por Lenin dois anos antes. Essa camada da tudante esqueça que é um estudante e assim A derrota da Revolução Espanhola (1936-
juventude tinha, naquele momento, a tarefa as diferenças sociais entre esse estrato hete- 39) eliminou o último obstáculo para que
de se preparar para assumir a direção do pri- rogêneo e a classe operária desaparecem. a burguesia pudesse entrar em uma nova
meiro Estado Operário da história: Os jovens, segundo Trotsky, são mais guerra imperialista que massacrou milha-
radicais e exigem soluções radicais para res de trabalhadores e a burocracia jogou
“Antes de tudo, camaradas” afirma Trotsky, seus problemas, porém, justamente por um papel criminoso na guerra. Foram anos
“nós precisamos aprender, antes de tudo, serem jovens é que precisam deixar a arro- difíceis para a luta contra a burocracia, prin-
aprender” e explica que “como a luta será lon- gância de lado e lembrar constantemente cipalmente dentro da União Soviética. A
ga, até a vitória da classe trabalhadora mun- da necessidade de aprender com a teoria vitória dos trabalhadores soviéticos sobre o
dial, então temos que aprender não de manei- marxista e com a experiência do proleta- nazismo alemão contribuiu ainda mais para
ra precipitada, mas seriamente e por muito riado. É desta forma que um jovem hoje a “calmaria” interna, dando uma enorme au-
tempo. (...) Essa luta que temos pela frente é pode se tornar um quadro dirigente do mo- toridade ao regime.
extremamente difícil.”15 vimento operário amanhã. No entanto, alguns anos depois, em ju-
O fim da década de 1930 ficou marcada nho de 1953, uma greve contra a introdução
Mas há uma mudança de seu discurso pelo extermínio físico da maioria dos diri- de novas normas de trabalho em Berlim
da década de 1930. Isso porque as tarefas gentes e revolucionários que participaram Oriental resultou na primeira ofensiva das
das jovens gerações daquele período eram diretamente da Revolução Russa de 1917. Sta- massas contra o regime stalinista. O movi-
distintas, eram jovens que tinham que lutar lin precisava apagar da memória o que era mento se espalhou pela Europa Oriental,
novamente para construir um partido revo- ser de fato um comunista e qualquer tipo de restabeleceu soviets de operários e só en-
lucionário, lutar contra uma casta burocrá- oposição para consolidar a sua ditadura tota- cerrou após o Exército Vermelho, com seus
tica e a degeneração da Rússia soviética. A litária. Trotsky faz uma analogia com alguém tanques, restaurar a “ordem” em Berlim.
diferença no discurso de Trostky está justa- que rema contra a corrente para explicar os Apesar da derrota, o recado foi dado: era
mente no conteúdo desse aprendizado, mais desafios deste período: possível lutar.
voltado para a atividade política: As mobilizações de Berlim repercutiram
“Nossa situação atual é incomparavelmente por toda a Rússia e em julho do mesmo ano
“Ele tem que entender que vai para o movi- mais difícil do que a de qualquer organização os prisioneiros dos campos de Vorkuta, um
mento operário para aprender e não para en- em qualquer outra época, porque estamos tes- dos principais Gulags, deram início ao que
sinar. Ele tem que aprender a se subordinar e temunhando a terrível traição da Internacional ficou conhecido como o primeiro movimen-
fazer o trabalho que lhe é exigido, não o que ele Comunista, que surgiu da traição da Segunda to de massas dentro da União Soviética que
quer fazer. Por sua vez, o movimento operário Internacional. A degeneração da Terceira Inter- se formou desde o triunfo de Stalin sobre a
deve considerá-lo com o maior ceticismo. O nacional ocorreu tão rápida e inesperadamente oposição. As agitações em Vorkuta iniciam
jovem acadêmico tem que ‘saber seus limites’, que a mesma geração que assistiu à sua forma- com a notícia da morte de Stalin, mas o es-
no início, por três, quatro ou cinco anos, e fa- ção agora nos ouve e exclama: ‘Mas já ouvimos topim foi chegada das notícias de Berlim. Em
zer uma tarefa partidária ordinária. Então, isso uma vez!’ Depois, há a derrota da Oposição 21 de julho, cerca de 10 mil trabalhadores –
quando os trabalhadores já tiverem confian- de Esquerda na Rússia.”17 alguns testemunhos falam de 30 mil – deram
ça nele e estiverem completamente certo de início ao movimento que durou oito dias,
que ele não é um oportunista, ele pode subir, Uma enorme camada de soldados, cam- encerrado após a intervenção das forças de
mas devagar, muito devagar. Quando ele tra- poneses, trabalhadores, revolucionários que segurança. Segundo relatos, cerca de 110 dos
balha dessa forma com o movimento operá- lutaram na guerra imperialista, que comba- manifestantes foram mortos e 7 mil deten-
rio, quando ele esquece que é um acadêmico, teram a repressão czaristas, que enfrenta- tos, entre eles, todos os membros do comitê
as diferenças sociais desaparecem.”16 ram o exílio na Sibéria, a fome e arriscaram de greve formado por antigos dirigentes bol-

36
viram esse potencial da juventude e sempre
contaram com a sua força para organizar os
combates e construir seu partido. Eles sa-
biam da importância da aproximação dos
jovens e dos operários, da educação revo-
lucionária, do estudo do marxismo. O fato
é que eles enxergavam a aproximação dos
revolucionários com a juventude como um
fator de força daqueles que buscavam lutar
pela revolução. Não é por acaso que Trotsky
Membros da Oposição de Esquerda afirma no “Programa de Transição” que:

“[...] Mesmo entre os operários que estiveram


cheviques. Mesmo com um movimento de de 1956, através o surgimento do pensamento antes nas primeiras filas existe atualmente
curta duração, os impactos foram enormes crítico na jovem geração comunista tcheca, rus- um bom número que está fatigado e decepcio-
e contribuíram com a decisão de dissolução sa, alemã e chinesa, constituem diferentes ma- nado. Ficarão, ao menos no próximo período,
dos campos de trabalhos forçados. nifestações de um mesmo fenômeno profundo, afastados. Quando se gasta um programa ou
Apenas três anos após a morte de Stalin, uma desestalinização real e revolucionária que uma organização, gasta-se a geração que os
um novo processo eclodiu na União Soviética revela a verdadeira face da sociedade e da bu- carregou sobre seus ombros. A renovação do
forçando a burocracia a denunciar os crimes rocracia dominante em busca de sérios e expli- movimento faz-se pela juventude, livre de toda
do ditador para aliviar a pressão e manter os cações científicas, de um verdadeiro socialismo, responsabilidade pelo passado. A IV Interna-
burocratas no poder. Novamente, é a juven- finalmente lançando as bases de um programa cional dá uma excepcional atenção à jovem ge-
tude a camada mais radicalizada e que par- revolucionário. A vingança da história aqui as- ração do proletariado. Por toda sua política ela
ticipa em peso: sume uma forma particularmente reconfortan- se esforça em inspirar à juventude confiança
te: após trinta anos de governo de Stalin, jovens em suas próprias forças e em seu futuro. Ape-
“Na Europa Oriental - o setor mais fraco do comunistas que nunca conheceram agora redes- nas o fresco entusiasmo e o espírito ofensivo
mundo soviético -, a desestalinização se tornaria cobrem, às vezes palavra por palavra, o pensa- da juventude podem assegurar os primeiros
um movimento revolucionário: a queda da está- mento revolucionário e a ação dos bolcheviques sucessos na luta; apenas esses sucessos podem
tua de Stalin, derrubada pelos jovens trabalha- da Revolução e da oposição.”18 fazer voltar ao caminho da revolução os me-
dores e estudantes de Budapeste em 1956, ocorre lhores elementos da velha geração. Sempre foi
poucos meses após as revelações de Khrushchev A juventude é uma peça fundamental assim. Continuará sendo assim.”
no 20º Congresso e precede a remoção do cadá- na luta do proletariado para a construção de
ver de Stalin do mausoléu da Praça Vermelha em seu partido e tomada do poder. Ela não pos- Estas breves linhas são dedicadas aos jo-
cinco anos. sui amarras e rapidamente pode se colocar vens que buscam se formar como quadros
(...) Começando em 1953, eventos no mundo so- em movimento contestando presidentes, revolucionários, àqueles que acima de tudo
viético, desde a greve forçada de Vorkuta, a greve ditadores e regimes. Ela pode reanimar ve- devem estar convencidos da importância de
dos trabalhadores de Berlim Oriental em 18 de lhos quadros, trabalhadores desanimados e aprender com a história, com a ciência, com a
junho e a insurreição da Alemanha Oriental até com isso resgatar tradições operárias desco- literatura, com a teoria marxista, com a classe
a “Primavera de Outubro” da Polônia e a revo- nhecidas pelos próprios jovens. Lenin, Trot- operária, com a ação revolucionária cotidia-
lução dos conselhos de trabalhadores húngaros sky e os principais quadros bolcheviques na... aprender, aprender, aprender.

Notas e referências: nível em: <https://www.marxismo.org.br/comunis- 12 TROTSKY, Leon. Leon Sedov: Son, Friend,
* Na primeira parte deste artigo, publicada na tas-contra-stalin-o-massacre-de-uma-geracao/>. Fighter. Disponível em: <https://www.marxists.org/
América Socialista nº14, analisamos o discurso de Acesso em: 23 mar. 2021. history/etol/document/obits/sedobit.htm>. Acesso
Lenin de 1923 chamado “As tarefas revolucionárias 7 Acrônimo em russo para o nome oficial do em: 23 mar. 2021.
da juventude” no qual ele explica, entre outras coisas, sistema, Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudo- 13 Ibid.
a importância da juventude se dedicar ao aprendiza- vykh Lagerey, ou Administração Central dos Cam- 14 TROTSKY, Leon. Sobre los estudiantes y los
do da ciência, da cultura e da teoria marxista. pos, que eram campos de trabalho forçado usados intelectuales. Disponível em: <https://ceip.org.ar/So-
1 BROUÉ apud Vladimir I. Lenin. El Partido pela burocracia para massacrar seus opositores. bre-los-estudiantes-y-los-intelectuales>. Acesso em:
Bolchevique. Disponível em <https://www.mar- 8 TROTSKY, Leon. Leon Sedov: Son, Friend, 12 ago. 2021.
xists.org/espanol/broue/1962/partido_bolchevique. Fighter. Disponível em: <https://www.marxists.org/ 15 TROTSKY, Leon. The Position of the Repu-
htm>. Acesso em: 22 mar. 2021. history/etol/document/obits/sedobit.htm>. Acesso blic and the Tasks of Young Workers. Disponível em:
2 Ibid. em: 23 mar. 2021. <https://www.marxists.org/archive/trotsky/1922/
3 Ibid. 9 SEWELL, Rob. Leon Sedov – 70 anos de sua youth/youth.htm>. Acesso em: 12 ago. 2021
4 WOODS apud Pierre Broué. Comunistas morte. Disponível em: <https://www.marxismo.org. 16 TROTSKY, Leon. Sobre los estudiantes y los
contra Stalin: o massacre de uma geração. Dispo- br/leon-sedov-70-anos-de-sua-morte/>. Acesso intelectuales. Disponível em: <https://ceip.org.ar/So-
nível em: <https://www.marxismo.org.br/comunis- em: 24 mar 2021. bre-los-estudiantes-y-los-intelectuales>. Acesso em:
tas-contra-stalin-o-massacre-de-uma-geracao/>. 10 TROTSKY, Leon. Leon Sedov: Son, Friend, 12 ago. 2021.
Acesso em: 23 mar. 2021. Fighter. Disponível em: <https://www.marxists.org/ 17 TROTSKY, Leon. Luchando contra la cor-
5 BROUÉ, Pierre. Os trotskistas na União So- history/etol/document/obits/sedobit.htm>. Acesso riente. Disponível em: < https://ceip.org.ar/Luchan-
viética (1929-1938). Disponível em: <https://www. em: 23 mar. 2021. do-contra-la-corriente>. Acesso em: 13 ago. 2021.
marxismo.org.br/os-trotskistas-na-uniao-sovieti- 11 SEDOV, Leon. The Life of the Exiled and 18 BROUÉ apud Vladimir I. Lenin. El Partido
ca-1929-1938/>. Acesso em: 23 mar. 2021. Imprisoned Russian Opposition. Disponível em: Bolchevique. Disponível em <https://www.mar-
6 WOODS apud Pierre Broué. Comunistas <https://www.marxists.org/history/etol/writers/se- xists.org/espanol/broue/1962/partido_bolchevique.
contra Stalin: o massacre de uma geração. Dispo- dov/1930/12/exiled.htm>. Acesso em: 11 ago. 2021. htm>. Acesso em: 13 ago. 2021.

37
DANTE ALIGHIERI:
UM MILITANTE PARTIDÁRIO,
UM GÊNIO DAS LETRAS
Maritania Camargo

E
m 2021 o mundo relembra vida
e obra de Dante Alighieri, o
maior poeta italiano e, para
muitos, o maior poeta de todos
os tempos. Em 13 ou 14 de setembro 1
são setecentos anos da morte de Dante
no exílio, em Ravena.
É a partir do texto de Dante, por exem-
plo, que muitas das imagens do que supos-
tamente seria o Inferno, o Purgatório e o
Paraíso são consagradas e chegam até nós.
Portanto, é possível afirmar que Dante está
no imaginário popular da humanidade, até
para o mais humilde dos homens. Dante
esculpe milhares de imagens envolvidas
em um gigantesco enredo de seu passado,
de seu presente e que são reordenadas, re-
feitas, redesenhadas através dos séculos.
Nos anos de participação partidária no
corpo da comuna de Florença, Dante foi par-
tidário dos Guelfos, na cidade dividida em
dois partidos, os Guelfos e os Ghibelinos.

“... e assim também nossa cidade ficou di-


vidida, como a Itália toda, durante muito
tempo, em Guelfos e Ghibelinos.” (Maquia-
vel, em História de Florença)

Na sequência desse trecho, Maquia-


vel coloca toda a divisão da cidade, lista
as poderosas famílias que governavam a
cidade e o alinhamento político de cada
uma. Maquiavel usa como fonte o Paraíso
de Dante:

“Os que Seguiram o partido Guelfo foram


os Buondelmonti, Nerli, Frescobaldi, Mo-
zsi, Bardi, Pulci, Gherardini, Foraboschi,
Bagnesi, Guidalotti, Sacchetti, Manieri,
Lucardesi, Chiaramontesi, Importuni,
Bostichi, TimahiSuizi, Timahi, Aduci,
Timahi, Vecri Secti, , Visdomini, Dona-
ti, Pazzi, della Bella, Ardinghi, Tebaldi,
Cerchi. Do lado dos Ghibelinos estavam
Uberti, Manegli, Ubriachi, Fifanti, Amidei,
Muddy, Malespini, Scolari, Guidi, Galli,
Cappiardi, Lamberti, Soldanicri, Cipria-
ni, Toschi, Amieri, Palermini, Migliorelli,
Pigli, Barucci, Cattani Brunelles, Agchi ,
Caposacchi, Elisei, Abati, Tedaldini, Giuo-

38
ainda estava viva, pois aquele dia havia con-
tribuído de forma decisiva para a hegemonia
de Florença na Toscana.” (Alessandro Bar-
bero em Dante – tradução livre)

Anos depois, internamente, Dante fez


parte da tendência branca dos Guelfos, o
que o levaria ao exílio. O poeta militou,
tomou partido, esteve à frente de todos
os grandes embates de seu tempo. Foi um
estudioso dos grandes clássicos, Homero,
Ovídio, Horácio, Luciano, Virgílio, Aris-
tóteles, Ptolomeu, Sócrates, Platão, Tales,
Hipócrito, Galeano, ou seja, um conheci-
mento clássico que abarcava todas as artes
e ciências. Homem letrado e de desenvol-
tura pródiga na arte da palavra, da polí- Giovanni Boccaccio, primeiro biógrafo de
Farinata degli Uberti, aristocrata flor- tica, da teologia, da cavalaria e da guerra, Dante e também um dos maiores poetas
entino, líder dos ghibelinos - Pintura de como é possível observar no conjunto da italianos. Pintura de Andrea del Castagno.
Andrea del Castagno sua obra. É com ele que aquilo que enten-
demos por língua italiana passou a ser
amplamente conhecido, por isso o apeli-
chi, Galigai. Além disso, a ambas as fac- do “pai da língua italiana”. Boccaccio nos na analogia. Imaginemos o escalar de uma
ções Seguidas por essas famílias nobres se diz um pouco o que significou Dante para montanha, por vezes cansativo, difícil, no
impressionam muitas famílias do povo, de a língua italiana: entanto, quando se está no topo da mon-
modo corrompido por divisão”. tanha e se pode desfrutar de toda aquela
“Por ele a glória do idioma florentino foi beleza, quando se vê o caminho percorrido
O escritor Alessandro Barbero mostrada. Por ele, toda a beleza da língua e tudo o que se aprendeu, então, a recom-
conta, de memória, uma fábula da Floren- vulgar foi regulada de acordo com a regra pensa é inominável. Assim é o resultado de
ça do tempo de Dante, de autor desconhe- dos números apropriados. Por ele, a poesia conhecer a obra deste gigante da literatura,
cido, relato aqui, também de memória: morta pode se dizer ressuscitada.” do filósofo, do militante político, do homem
das letras - Dante Alighieri.
Certa vez, em uma praça de Florença, dois ca- O Dante militante, partidário, não é Dante nasceu em Florença em 1265, não
chorros começaram a brigar. Rapidamente o uma imagem muito comum aos seus lei- se sabe ao certo em que mês ou dia, a im-
povo se reuniu em torno da rinha de cães, no- tores, mas sem dúvida é de indispensável precisão dos dados é comum em relação ao
mearam um como Guelfo e outro como Ghibe- importância. Um homem extremamente poeta, isto porque, a maior parte dos dados
lino e daí seguiram inúmeras apostas de quem envolvido em seu tempo. Quando se posi- são retirados da própria obra do escritor,
seria o vencedor e levaria o outro à morte. O cionou em uma das frações guelfas, foi exi- por meio de datas, nomes, cálculos de apro-
povo se posicionava e apostava, tamanha era lado, condenado à morte, perseguido. No ximação, o que dificulta a precisão. Por ou-
a rivalidade entre os dois partidos. exílio continuou a militância partidária e, tro lado, a maior parte da obra de Alighieri é
de alguma maneira, pode se dizer que orga- literatura, ou seja, não são textos de lealda-
Quando falamos de tomar partido, fa- nizou os exilados enquanto foi possível. de histórica, mais que tudo, estão no campo
lamos também em combater em armas, Tudo leva a crer que o início do exílio da arte, como afirma o próprio poeta.
de escolher um lado da trincheira. Dante foi, também, o início, a sustentação da sua Vale registrar que vários foram os
combateu na linha de frente na batalha maior obra, “A Comédia” , levando a cabo biógrafos ainda medievais que se dedi-
de Campaldino de armadura, a cavalo, no o que disse Trotsky: “A sereia do paraíso canta caram à biografia de Dante, mas aí tam-
lado Guelfo. após o pôr-do-sol, no momento exato em que le- bém há diferenças, para se ter uma ideia
vanta vôo o pássaro profeta, a coruja.” do grau de dificuldade sobre os dados,
“Entre esses cavaleiros, e de fato entre os “fe- Dante combateu na defesa de suas con- Leonardo Bruni, o mais documental dos
ditori” alinhados na primeira linha, estava vicções até o último de seus dias, em armas, biógrafos de Dante na Idade Média, de
Dante. Isso está escrito em todos os ma- na tribuna ou com sua obra. alguma maneira, desqualifica Boccaccio
nuais de literatura, mas como sabemos? O Aos marxistas cabe aprender com o que como biógrafo:
primeiro a contá-lo é o humanista Leonar- de melhor a humanidade produziu, neste
do Bruni, que em 1436, já idoso, escreveu a sentido conhecer a obra de Dante e com- “Pareceu-me, entretanto, examinando-a nova-
Vida de Dante. A memória de Campaldino preender o que leva um homem a cravar sua mente no presente, que o nosso Boccaccio, homem
história através dos séculos é responsabili- extremamente doce e suave, escreveu a vida e os
dade de todos aqueles que reivindicam do costumes de um poeta tão sublime como se escre-
marxismo. Trotsky na Rússia revolucioná- vesse o Filocolo, o Filostrato ou a Fiammetta. Pois
ria combateu firmemente para que todos os está toda cheia de amor, de suspiros e de lágrimas
campos do conhecimento e da desenvoltura ardentes, como se o homem se encontrasse no
humana pudessem se desenvolver. É com mundo apenas para se encontrar naqueles dez
essa ideia que todo o conhecimento deve dias amorosos que foram narrados por mulheres
ser um desejo. É com o conhecimento, com enamoradas e jovens graciosos nas Cem Novelas.
a formação, que nossa força militante se E se inflama tanto nessas partes de amor, que dei-
transforma em combate vivo. xa para trás e em silêncio as partes sérias e subs-
Brasão dos Guelfos e dos Ghibelinos Conhecer a obra de Dante, porém, não tanciais da vida de Dante, lembrando as coisas
é uma tarefa fácil. Faço aqui uma peque- ligeiras e calando as sérias.”

39
Dante, um florentino do seu tempo e circulação. Mas Dante queria mais e vai
“Ah, quem dera fosse do agrado do arran- em busca dos estudos filosóficos. Obvia-
jador do universo que a razão da minha mente, ele tinha as condições financeiras
justificativa nunca tivesse existido! As- para isso, vivia de arrendamento e de usura
sim, nem outros teriam cometido uma fa- praticada por seu irmão. Dante não partici-
lha contra mim, nem eu teria sofrido pena pava muito dos negócios da família. Ao que
injustamente; pena, digo, de exílio e de se sabe apenas usufruia das benesses, mas
pobreza. Depois de ter sido do agrado dos nem por isso deixou de ser condenado por
cidadãos da mais bela e famosa filha de usura quando da perseguição e exílio.
Roma, Florença, me jogar para fora do seu Dante era um poeta, um homem das le-
doce seio - no qual nasci e fui nutrido até o tras, num tempo que escrever tinha uma di-
ápice da minha vida e no qual, com a sua mensão gigantesca, já que essa era tarefa de
boa paz, desejo de todo o coração repousar poucos, ou melhor dizendo, possibilidade
o ânimo cansado e terminar o tempo que de poucos. Os poemas, livros, eram escritos,
me é dado ...” (Convívio – Tratado I) copiados (escribas) e discutidos, enviados a
outros letrados e tornados públicos, mas esse
A Florença de Dante é uma metró- “público” ficava dentro da pequena elite le-
pole com cerca de 100 mil habitantes, trada e abastada. Portanto, a própria ideia de
onde aproximadamente 10% da po- escrever precisa ser entendida de outra ma-
pulação é alfabetizada, um êxito para neira, já que, ao que se sabe, o papel era algo
época, uma comuna autônoma, ou seja, caro e raro. Um escritor não era qualquer um,
com toda sua estrutura econômica e por si só era membro de uma elite.
jurídica independente. A cidade viveu O mundo letrado de Dante era rodeado
nesse período uma grande expansão dos mais famosos artistas da época, entre eles,
econômica, industrial, em especial de Brunetto Latini, Guido Cavalcanti, Giotto.
lã e tecidos finos, consequentemente
o comércio e uma burguesia banquei- “ ‘Sois vós aqui, indaguei, ‘ser Bruneto`”
ra se desenvolviam. Florença, já nessa ....
época, era conhecida por ter uma quan- “me ensináveis como o homem faz-se eterno
tidade imensa de trabalhadores espe- O apreço, enquanto eu viva, que vos devo,
cializados. Em 1252, a cidade começou Seja patente nisto que ora externo.”
a cunhar o Florim, moeda em ouro de (Inferno canto XV -28 e 85 )
24 quilates e 3,5 gramas, o mais alto
padrão para a época, o Florim passou a Sobre a família de Dante, tudo é mui-
ser a moeda mais forte de toda a Europa to nebuloso, com poucos registros. Sobre
nos séculos XIII e XIV. No final do sécu- seu pai se sabe que cuidava dos negócios
Florim de 1340. lo XIII, a sua expansão é marcada pela da família desde a década de 50 do século
remodelação da cidade projetada pelo XIII, mas pouco se sabe para além disso,
De todo modo, existe um grande arquiteto Arnoldo di Cambio, projeto estima-se que viveu até os dezoito anos de
acúmulo de informações, se compara- que expandia em muito o perímetro da Dante. São poucos os registros. Sobre sua
do a qualquer outro homem contem- cidade. A Florença de Dante era o pre- mãe, menos ainda, acredita-se que Dante
porâneo do escritor. Aliás, como já ci- lúdio do que seria a Florença de Leo- não teve contato com a mãe, que deve ter
tado, a obra de Dante foi usada não só nardo, como nos explica Alan Woods: falecido no seu nascimento. Barbero afir-
para retomar a sua história, mas tam- ma que mesmo o nome da mãe, “Bella”, é
bém a história do seu tempo, em espe- “O novo espírito aparece não apenas nas um acaso, sabemos em função de uma ar-
cial da sua amada cidade, como em a artes visuais mas também na literatura. O bitragem dos registros de casamento que
“História de Florença”, de Maquiavel, avanço é personificado na figura colossal de era um acordo econômico.
que utiliza da obra de Dante como fon- Dante Alighieri (1265-1321), que pode ser
te bibliográfica. visto como o último escritor da Idade Mé-
Dante, foi conhecido ainda em vida dia e o primeiro escritor da nova era. Pe-
como um grande poeta: trarca e Boccaccio foram, junto com Dante,
as maiores figuras literárias desse período.
“Já em 1321, as duas primeiras partes da No Decameron de Boccaccio, temos os ger-
“Comédia” encontravam-se transcritas mes do romance moderno.” (Alan Woods
e à disposição de leitores havia alguns em Leonardo Da Vinci: artista, pensador e
anos, e Dante era aclamado em quase revolucionário)
toda a Toscana como o maior poeta da
região.” (em Dante, de R.W.B. Lewis) Os primeiros passos de estudo do escritor
foram em Florença, aprendeu ler, escrever (la-
Além da obra monumental, A divi- tim) e contar ainda na infância, mas acredita-
na Comédia, o poeta nos deixou uma -se que tenha ido à universidade de Bolonha.
vasta produção, além de alguns textos Apesar da grandeza, Florença ainda não
que foram perdidos e outros contesta- era o palco da arte que se consagra no século
dos ao longo do tempo. Destacam-se XIV. Dante só vai conhecer Boécio e Cícero,
da sua obra: Vida Nova, Da vulgar elo- por exemplo, quando adulto e ainda era co-
quência, A Monarquia, Convívio, can- mum que fossem apenas fragmentos de tex- Quadro de Giotto
ções e tratados. tos, tendo em vista as dificuldades de tradução

40
não pode manifestar seu talento senão quan- Isso significa dizer que se Dante fez parte
do ocupa na sociedade a situação necessária de um governo, então, era membro do partido
para poder fazê-lo.” (Plekhanov, em o Papel que o dirigia. Esse registro vale apenas para
do Indivíduo na História) enfatizar que, sim, Dante foi um Guelfo e de-
pois um Guelfo Branco.
A dialética presente entre a história e o Dante estava na vida pública, o go-
indivíduo jamais pode ser esquecida e Dante verno era guelfo e os Ghibelinos esta-
é um exemplo extraordinário disso. vam cerceados de vida pública, perse-
A vida política do poeta é curiosa, elegan- guidos, exilados.
te, forte, difícil. Dante foi um ser humano gi- Quando Dante ainda exerce poder públi-
gante e imerso em seu tempo. co, vota pelo exílio de uma parcela de Brancos
Consta que, já em 1295, é inscrito na Cor- e Negros2, essa posição irá garantir um núme-
poração dos Boticários de Florença. Ainda que ro considerável de inimigos pelo restante de
seus estudos abrangessem também a medici- toda sua vida.
na e a farmácia, visto que o estudo da filosofia Dante por um lado tem a visão teocêntri-
dessa época tinha essa abrangência, Dante ca de mundo, tal qual seu tempo, por outro
Paraíso, Canto VII, Salvador Dali não era médico ou farmacêutico, mas a cor- defende que a igreja e o império devem estar
poração simpatizava com os literatos e Dante separados, portanto, defende a independên-
foi inscrito como “Poeta Florentino”. Vale re- cia dos poderes, muito bem justificada em “A
“E assim sabemos o nome da mãe de Dante, gistrar que essas corporações participavam Monarquia”, o que é algo muito avançado para
monna Bella, apenas graças a uma arbitra- ativamente da vida política e, à época, esse 1300. O poeta aponta a decadência dos líderes
gem de 1332, que regulamenta a divisão en- objetivo era muito explícito. É em Florença das duas “instituições”, justamente sentindo
tre os filhos de Dante, Iacopo e Messer Piero que vemos umas das primeiras corporações profundamente a decadência de seu tempo e
como juiz, e tio Francesco.” (Alessandro Bar- de banqueiros, nesse período. Ali surgiam de todo um período histórico. A imagem que
bero, em Dante – tradução livre) muitas corporações, obviamente ligadas aos se pode construir deste homem público é, de
setores que mais se desenvolviam. fato, de um homem que exerce não só autori-
Mas é certo que Dante vinha de uma fa- Dante tem a partir daí uma participação dade, mas que pensa seu tempo. Não é difícil
mília de posses, não necessariamente nobre, ativa na vida pública, há registros de que fez encontrar contradições em sua obra, mas as
mas que proporcionou a ele uma formação parte do Conselho Especial dos Líderes das supostas contradições são a imagem viva de
com tudo que se poderia ter na época. 12 corporações mais importantes e também um homem que está em movimento e que tira
A nobreza de Dante é um tema muito dis- de um discurso no Conselho dos Cem. Não as duras lições das grandes convulsões sociais
cutido por seus biógrafos e pelo próprio poeta. há muito detalhe, mas em 1300 Dante é eleito naqueles anos de luta.
Em sua poesia inicial, de um Dante jovem, a Priori, o mais alto posto da república Floren- Acontece, porém, que a disputa his-
nobreza não é uma questão de origem fami- tina da época, o mandato era de dois meses. tórica entre Guelfos (a favor do Papado)
liar e sim de aspectos morais, de virtude. Já no Dante esteve na vida pública oficialmente 5 ou e Ghibelinos (a favor do Sacro Império
“Paraíso” essa ideia muda um pouco. No Canto 6 anos, foi membro da magistratura, foi um Romano Germânico) a partir de 1300,
XV/ XVI, o poeta retoma suas origens “nobres” dos tantos políticos que Florença elegia em quando os Guelfos estavam consolidados
e, inclusive, diz que a decadência de Florença sua comuna. no regime, toma o rumo dos novos acon-
é em virtude da entrada de forasteiros, mas o Mas o que importa aqui era a vida po- tecimentos. Agora a disputa real era qual
contexto desses versos é de exílio e de um mo- lítica da Florença de 1300, marcada pelas família de banqueiros sustentaria a igre-
mento onde Dante dependia dos favores dos disputas entre Guelfos e Ghibelinos, mar- ja, ou seja, qual família dos Guelfos teria
senhores de Verona, de Ravena. cada por corrupção, vingança e batalhas que colocar a mão no bolso. Diante disso,
Em Florença Dante cresceu, casou, teve fi- campais sangrentas. os Guelfos dividem-se em frações no in-
lhos, tornou-se escritor, enalteceu sua grande Na república de Florença havia muitas terior do partido: os brancos e os negros2.
musa Beatriz e, acima de tudo, fez política. eleições, comissões, conselhos. Uma demo- Dante está com os brancos, ou seja, os
É em Florença onde Dante torna-se um cracia de alguma maneira complicada, mas banqueiros Cerchi. Depois de muita dis-
homem público, traço determinante para também muito familiar a todos nós, Maquia- puta que não é possível aprofundarmos
toda sua obra, sem qualquer dúvida, e muito vel nos dá alguns dados: aqui, os negros prevalecem e começa um
provavelmente sem a qual a “Comédia” não período de caça à fração branca. Mais
poderia ter sido escrita. Dante fez parte da “Assim, logo surgiram na Toscana os partidos, uma vez Florença é submersa em inva-
vida de Florença em um momento contur- pois os florentinos tomaram armas contra sões de casas, saques, torturas, igrejas
bado, aqui podemos lembrar duas observa- o governador a serviço do imperador e, para devastadas, mortos, feridos, como o pró-
ções históricas que iluminam o que significou privar os Ghibelinos do governo e poder frear prio Dante afirma, é a guerra civil. Pro-
Dante estar no lugar certo e participar ativa- os poderosos, estabeleceram nova forma admi- cessos são elaborados e as sentenças ra-
mente da política florentina daqueles tempos, nistrativa. Era o ano de 1282, e o conjunto das pidamente colocadas em prática. Quando
uma lição aos que acreditam que a arte pode Artes, já que lhes tinha sido concedido ter suas a grande convulsão explode, Dante está
florescer à margem das convulsões sociais: próprias insígnias e magistrados, eram muito fora em uma missão como diplomata em
reputadas; daí, por sua autoridade, ordenaram Roma e jamais retornará a Florença.
“Se existiram profetas e poetas à frente de seu que fossem nomeados três cidadãos, no lugar No exílio, durante um tempo, ain-
tempo, isso somente significa que eles soube- de quatorze; que fossem chamados Priori, per- da exerce muita influência política em
ram exprimir certas exigências da evolução manecessem dois meses no governo da repú- Florença, mas passados alguns anos se
social com um pouco menos de atraso que seus blica e pudessem ser populares ou nobres desde distancia também dos exilados e vai se
colegas.” (Trotsky, em Literatura e Revolução) que fossem mercadores ou membros das Artes.” consagrar como o grande poeta Dante.
Nunca se distanciou da vida política e a
“Pode-se objetar-nos que o grau da influência Barbeiro explica que na Florença do tem- “Divina Comédia” é a prova mais acaba-
pessoal depende também do talento do indi- po de Dante a ideia de que a oposição tivesse da disso. Esse é o período de maturidade
víduo. Estamos de acordo. Mas o indivíduo direito à palavra era impensável. do escritor.

41
A Divina Comédia rio. Virgílio (razão, ciência) foi mandado por
“E ele, a mim, como mestre que conforta Beatriz (subjetividade, Deus), a grande musa
‘Livra-te desse medo circunspecto; de Dante. Para Dante, a libertação do pecado,
Aqui toda tibiez esteja morta;” para ele ou para toda a humanidade, precisa
(Dante conta o que Virgílio disse a ele ao de guias, precisa de aprendizado.
entrarem no Inferno – Inferno Canto III A partir daí a viagem proposta por Virgí-
versos 13 ao 15) Mapa lio começa, é uma busca por alcançar o Pa-
do inferno de raíso, uma viagem por buscar o aprendizado
A Divina Comédia, a obra de maior enver- Botticelli e encontrar a luz. Nesta viagem Dante vai se
gadura de Dante, não é datada, mas tudo in- deparar, no inferno, com todos os proble-
dica que foi iniciada com o exílio e terminada mas, todo o mal distribuído pelos círculos, aí
muito perto da morte do poeta em 1321. O poe- Toda estrutura numérica é baseada no estarão inúmeras figuras históricas, dos pa-
ta deu a ela o nome apenas de “Comédia”, que número 3, uma alusão às crenças cristãs que gãos Platão e Sócrates, passando pelos tira-
na divisão clássica da literatura significa um predominavam. A cosmologia que é utilizada nos, traficantes e até os que traem por amor,
gênero crítico, burlesco, que satiriza diversos na obra, portanto, a herança filosófica é de como Paolo e Francesca.
aspectos da sociedade. Mais especificamente, Aristóteles e Ptolomeu.
na divisão aristotélica, presente na obra “Arte Sem dúvida, a obra é um compilado de “Do círculo primeiro fui descendo
Poética”, significa a arte da imitação: tudo aquilo que Dante conseguiu acumular Ao segundo, onde o espaço se restringe,
dos processos históricos, políticos, científicos, E crescer a dor, em brados irrompendo
“Disto procede igualmente que os dórios artísticos que ele teve acesso. Um mapa pro-
atribuem a si a invenção da tragédia e da fundo do século XIII e início de XIV, uma enci- Lá está Minós que horrendamente ringe;
comédia; e os megarenses também se arro- clopédia histórica e de todos os valores morais as culpas examina já na entrada,
gam a invenção da comédia, como fruto presentes naquele tempo. Julga e despacha conforme se cinge.”
de seu regime democrático; e além desses, São muitos os aspectos revolucionários da
também os sicilianos se acham inventores obra. Um primeiro, por estar escrito em dialé- No Purgatório, ele vai entender como é
da comédia, por serem compatriotas do to toscano e não em latim, isso por si só é um possível a purificação e por fim no Paraíso
poeta Epicarmo, que viveu muito antes de salto, visto que seria possível que uma quan- encontra a purificação.
Crônidas e de Magnete. A criação da co- tidade muito maior de pessoas a compreen- Dante, na carta enviada ao Cardeal Can-
média é também reclamada pelos pelopo- dessem. Outro aspecto: é que a obra é uma grande della Scala, afirma que escreveu a
nésios, que invocam os nomes usados para enciclopédia histórica e, ao mesmo tempo, Divina Comédia com o objetivo de narrar à
denominá-la com palavras de seu dialeto, com um valor estético esplêndido, a Comédia humanidade tudo aquilo que aprendeu e ti-
para argumentar ser esta a razão por que é considerada uma das mais belas obras escri- rar os homens da miséria humana.
a comédia é invenção deles. tas já produzidas pela humanidade. Existem Seria possível passar meses lendo apenas
“Há gêneros que utilizam todos os meios outros inúmeros aspectos, mas nos voltemos um Canto da Comédia e analisando, tama-
de expressão acima indicados, isto é, rit- agora ao enredo da obra. nha são as possibilidades que ela nos propi-
mo, canto, metro; assim procedem os A Divina Comédia conta a história da via- cia, mas o objetivo aqui não passa por querer
autores de ditirambos, de nomos, de tra- gem de Dante, ou talvez a viagem de um ho- analisar a obra de Dante como um todo e
gédias, de comédias; a diferença entre eles mem qualquer, sendo Dante a personificação muito menos de resumi-la, o singelo objeti-
consiste no emprego destes meios em con- de milhões de outros homens de seu tempo. vo é homenagear o grande poeta florentino
junto ou em separado. Quando inicia, Dante está perdido em e com essa homenagem dizer aos nossos
Tais são as diferenças entre as artes que se uma selva escura (Inferno). Na tentativa leitores, como disse Terêncio e repetiu Marx,
propõem a imitação. de sair deste lugar, subir ao monte que ele nada que é humano nos é estranho, muito
... avista (Purgatório) e encontrar a luz do Sol menos pode nos ser estranho a arte.
Quando surgiram a tragédia e a comédia, (Paraíso), é impedido por três feras (a hipó-
os poetas, em função de seus temperamen- tese mais defendida é que as feras são uma A arte perpassa o tempo, Dante
tos individuais, voltaram-se para uma ou alusão aos pecados capitais). Neste momen- perpassa o tempo
para outra destas formas; uns passaram to, Dante vê o vulto de Virgílio, poeta latino, “Um clássico é um livro que nunca terminou de
do iambo à comédia, outros da epopéia à que será seu guia no Inferno e no Purgató- dizer aquilo que tinha pra dizer.”
representação das tragédias, porque estes ...
dois gêneros ultrapassavam os anteriores Os clássicos são aqueles livros que chegaram até
em importância e consideração.” nós trazendo consigo as marcas das leituras que
precederam a nossa e atrás de si os traços que
O complemento “Divina” foi acres- deixaram na cultura ou nas culturas que atra-
centado por Boccaccio, que além de vessaram (ou mais simplesmente na linguagem
fazer a primeira biografia de Dante, ou nos costumes).” (Italo Calvino)
estudou a “Comédia” e a recitava publi-
camente, assim a obra passou a ser am- Dante produziu obras da magnitude que
plamente divulgada e ficou conhecida explica Calvino, em especial “A Comédia”,
como “A Divina Comédia”. obra que abarca essas duas características
A Comédia é composta por três livros com destreza, tem perpassado o tempo e se
em versos: Inferno, Purgatório e Paraíso. transformado, a centelha que perpassa os sé-
Cada livro é composto por 33 cantos me- culos, como queria Dante.
trificados em versos hendecassílabos (11 sí- Aristóteles Quando achamos que tudo foi dito, ela
labas) e rimas no esquema ABA BCB CDC. recomeça, seja na influência em outros textos
No Inferno há um canto a mais, conside- e autores, seja na escultura, seja na pintura,
rado prólogo, típico da construção clássica seja nos quadrinhos, seja no cinema ou nas
explicada por Aristóteles. Ptolomeu mais variadas expressões de arte. De Botticel-

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so e inclusive em diálogo com Franz, res-
salta que o Paraíso de Dante é a parte mais
fraca da obra. O compositor e crítico de
música Jonathan Blumhofer é categórico:

“Não há como contornar o fato de que a Sin-


fonia Dante de Franz Liszt é uma peça pro-
blemática. Em primeiro lugar, há a questão
de ser ou não realmente uma sinfonia.”

Passado por essas pequenas curiosidades


e reafirmando que haveriam outras centenas,
é preciso constatar que Dante chega aos nos-
sos tempos como um dos poetas que influen-
ciou todos os séculos posteriores e em todas as
Paolo e Francesca artes, um gigante da história. Tal proeza nas
Dante e Virgílio no Inferno letras foi realizada porque o poeta estava in-
timamente ligado às lutas de seu tempo e, por
Paraíso, Canto 31, outro lado, estava um passo à frente da peque-
Gustave Doré nez que rege o dia a dia dos indivíduos. Dante
queria deixar algo a humanidade e conseguiu,
que possamos fazer o mesmo.
li a Delacroix; de Doré a animação Coco, No século XIX, Rodin eternizou na es- O poeta nunca voltou a Florença, morreu
de Stefano Ricci às portas do Inferno de cultura a obra “A Divina Comédia” com em Ravena vítima, muito provavelmente, de
Rodin, da sinfonia Dante de Franz Liszt suas portas do Inferno. Rodin já havia malária, aos 56 anos e sua obra está por aí:
a Belchior. São tantas obras que seria ne- criado O Pensador, obra que ao que tudo
cessário centenas de páginas apenas para indica é o próprio Dante. A porta do infer- “e faças minha língua tão potente
explicar a imensidão de releituras que no, originalmente “La Porte de l’Enfer”, que uma centelha apenas de tua glória
Dante e a Divina Comédia alimentam. foi concluída em 1917, depois de mais de possa deixar para a futura gente”
Aqui elegerei três obras, de gosto 30 anos de trabalho (1880-1917). (Paraíso Canto XXXIII -70)
pessoal, para que entendamos o signifi- Franz Liszt (1811 – 1886) foi um dos “Saímos por ali, a rever estrelas”
cado de Dante em outras artes. maiores compositores do século XIV e (fim do Inferno).
O francês Gustavo Doré (1832 – 1883) tentou na música compor a beleza da Di-
sem dúvida, um dos maiores ilustrado- vina Comédia. Nem só de flores vivem as
res de todos os tempos, deu vida a vá- releituras da obra de Dante. No caso desta
rios trechos da comédia, assim como o sinfonia, há várias discussões acerca da
fez com diversos outros clássicos como qualidade da música.São recorrentes no
Dom Quixote, por exemplo. Ilustrações mundo da música clássica as críticas com
que acrescentam à obra, que elucidam, relação a vários aspectos, mas em espe-
que recomeçam cada verso, no compas- cial sobre a incapacidade de Liszt retratar
so daquilo que o poeta Octavio Paz cha- o Paraíso. A obra foi dedicada a Wagner,
ma da harmonia entre o arco e a lira ou que Liszt compara a Virgílio como seu A barca de Dante, Delacroix
do poema e da poesia. guia na música. Wagner não quer o Paraí-

Notas e referências: BARBERO, Alessandro. Dante. Bari: LEWIS, R. W. B. Dante. Rio de Janeiro:
1 A obra não está datada, portanto, não Editori GLF Laterza, 2020. Objetiva, 2002.
se sabe ao certo quando foi iniciada e finali- BAROLINI, Teodolinda, Antognini. La MAQUIÁVEL, Nicolau. História de Flo-
zada. Commedia senza Dio: Dante e la creazione di rença. São Paulo: Musa, 1994.
2 Os nomes Brancos e Negros acredita-se una realtà virtuale. Milano: Feltrinelli, 2013. PAZ, Octavio. El arco y la lira. 25ª ed.
que tenha origem na cor do cabelo de dois dos BLUMHOFER, Jonathan. Rethinking México: Editora FCE, 2018.
dirigentes dos partidos. the Repertoire #16 – – Franz Liszt’s “Dante” PLEKHANOV, Guiorgui V. O Papel do
Symphony. The Arts Fuse, 2018. Disponível indivíduo na história. 2. ed. São Paulo: Ex-
ALIGHIERI, Dante. Convívio. Tradu- em: https://artsfuse.org/168334/rethinking- pressão Popular, 2010.
ção, introdução e notas de Emanuel França -the-repertoire-16-franz-liszts-dante-sym- PIGNATARI, Décio. Retrato do amor
Brito. São Paulo: Penguin Classics phony/ Acesso em: 10 de agosto de 2021. quando jovem: Dante, Shakespeare, Sheridan,
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. Tradu- CALVINO, Italo. Por que ler os clássi- Goethe. São Paulo: Editora Schwarcz, 2006.
ção de Ciro Mioranza. São Paulo, Lafonte, cos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: TROTSKY, Leon. Literatura e revolução.
2017. Schwarcz, 2013. Tradução: Luiz Alberto Moniz Bandeira. Rio
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, CAMPOS, Haroldo de. Pedra e Luz na de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
obra completa. Tradução e notas de Ítalo Eu- poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago Ed, WOODS, Alan. Leonardo Da Vinci:
genio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2005. 1998. artista, pensador e revolucionário. Esquerda
AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de FILHO, Luiz C. Dante e Virgílio : o res- Marxista, 2020. Disponível em: https://www.
Dante – Escritos Biográficos dos Séculos gate na selva escura: um ensaio sobre a ex- marxismo.org.br/leonardo-da-vinci-artista-
XIV e XV. São Paulo: Ed. Ateliê Editorial, periência emocional na Divina Comédia. São -pensador-e-revolucionario-2/ Acesso em: 15 de
2011. Paulo: Blucher, 2018. setembro de 2021.

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