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Marxismo Vivo - Nova Época

Órgão teórico da Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional (LIT-QI)

Revista ao serviço da pesquisa, elaboração e debate da teoria revolucionária.


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Editor Responsável: Martín Hernández


Coordenação geral: Alicia Sagra

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Projeto gráfico: Adriana Alvarenga


Revisão: Marcos Margarido
Traduções: Ariana Matos - Luis Génova - Marcos Margarido
Desenho de capa: Martin Garcia
Diagramação: Natalia Estrada
Normalização técnica: Iraci Borges - CRB 8-2263

Marxismo Vivo: nova época. v. 12, n. 17, agosto, 2021. São Paulo: Liga Internacional dos
Trabalhadores: 2021.
Quadrimestral

ISSN: 1806-1591

Nota: circulou no período de setembro de 2000 até setembro de 2009 com o título Marxismo Vivo
1. Marxismo - teoria revolucionária
edições
marxismo
vivo Assinaturas e pedidos de números avulsos: marxismovivo.org

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 1‐250 ‐ Agosto de 2021


Marxismo Vivo
Órgão teórico da Liga Internacional dos Trabalhadores - IV Internacional

n ova
é poca

edições

São Paulo - 2021


TEMAS E CONTEÚDOS

t
06 Aos nossos leitores

08 Um debate sobre Engels e o papel do trabalho


na questão evolutiva
09 Apuntamentos sobre a questão evolutiva
e a origem da linguagem em Engels
Romerito Pontes - Brasil
28 A Dialética da Natureza
e o Trabalho, de Friedrich Engels.
Um debate a partir de
O papel do trabalho na hominização do macaco
Wagner Damasceno - Brasil

53 A educação na Rússia depois da


Revolução de Outubro de 1917

54 A Revolução Russa e a perspectiva


de uma educação revolucionária
Daniel Henrique Rodrigues - Brasil

80 Debate sobre a Ditadura do Proletariado

81 As bases socioeconômicas
da ditadura do proletariado
Marcos Margarido - Brasil

101 Debate sobre a Lei do Desenvolvimento


Desigual e Combinado

102 A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado


em debate
Bernardo Cerdeira - Brasil
‐ São Paulo ‐ Año XII ‐ N.° 17, p. 4‐5 ‐ Agosto de 2021
12

t
Dossiê:
Seminário sobre Materialismo Histórico

126 A concepção materialista da história e nosso debate


Francesco Ricci - Itália e Ricardo Ayala ‐ Brasil

142 O que é a concepção materialista da história?


José Welmowicki ‐ Brasil

158 Consideraciones sobre o Seminário


de Materialismo Histórico da LIT‐QI
Nazareno Godeiro - Brasil

175 Notas sobre Materialismo Dialético ‐


Lenin e a dialética ‐ Opressões
Alicia Sagra ‐ Argentina

191 Algumas conclusões sobre o Seminário


de Materialismo Histórico
Eduardo Almeida Neto - Brasil

209 O marxismo como teoria do conhecimento


Alejandro Iturbe ‐ Brasil

219 Sobre os conceitos de “estrutura” e “superestrutura”


no marxismo e o problema da opressão
Florence Oppen ‐ Estados Unidos

235 Crítica ao pos‐modernismo à luz


da concepção materialista da história
Gustavo Machado - Brasil

São Paulo ‐ Año XII ‐ N.° 17, p. 4‐5‐ Agosto de 2021 ‐


Aos nossos leitores

Estamos de volta ao formato digital, em meio a esta


realidade complexa e sem precedentes.
Uma realidade que continua marcada pela pandemia, pela
crise econômica mundial, pelas políticas de todos os
governos que priorizam os lucros capitalistas antes da saúde
de suas populações, com uma vacinação deficiente que cobre
uma ínfima proporção dos habitantes do planeta. Com
ataques brutais contra os trabalhadores, os setores mais
precarizados, os habitantes dos países mais pobres, que
recebem as respostas dos povos que se levantam indignados:
na Colômbia, Chile, Líbano, Cuba ... Com situações como
no Afeganistão, onde o imperialismo norte-americano foi
alvo de uma nova derrota militar que fortalece as lutas em
todo o mundo, com a contradição de que, devido à crise de
direção revolucionária, este confronto foi liderado pelo
Talibã, uma direção burguesa contrarrevolucionária que o
povo afegão terá que enfrentar.
Este mundo convulsionado e complexo exige fortemente
uma resposta revolucionária.
‐ São Paulo ‐ Año XII ‐ N.° 17, p. 6‐7 ‐ Agosto de 2021
Nossa revista está a serviço desta tarefa, a da atualização
programática da LIT-QI para enfrentar estes novos desafios
e avançar na construção revolucionária, em direção à
superação da grande debilidade já levantada por Trotsky: a
crise de direção revolucionária.
Realizamos esta tarefa, que só pode ser desenvolvida com
base em profundos debates teóricos, como é tradição no
marxismo revolucionário, diante dos trabalhadores, dos
jovens, dos lutadores e lutadoras do mundo, a quem
convidamos a participar deste processo de elaboração.
Nesta edição da Marxismo Vivo, o tema central é o debate
sobre Materialismo Histórico, ao qual o dossiê da revista é
dedicado. Além disso, publicamos um debate sobre o papel
do trabalho, segundo Engels, no desenvolvimento da
linguagem e na transformação do macaco em homem; um
estudo sobre o desenvolvimento da educação revolucionária
na Rússia; a continuação do debate sobre a Ditadura do
Proletariado e também a continuação do debate sobre lógica
marxista, neste caso centrado na Lei do Desenvolvimento
Desigual e Combinado.
Esperamos que esta edição seja de interesse para nossos
leitores e que nos ajudem a divulgar esta nova versão digital.

Los editores

São Paulo ‐ Año XII ‐ N.° 17, p. 6‐7 ‐ Agosto de 2021 ‐


D
U
m
ebate
Sobre Engels e o papel
do trabalho
na questão evolutiva
APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO EVOLUTIVA
E A ORIGEM DA LINGUAGEM EM ENGELS

Romerito Pontes - Brasil

Em 1876, Engels escreveu O papel do trabalho na transforma-


ção do macaco em homem. O texto foi incluído como apêndice ao
seu Dialética da Natureza. O livro, por si só, é polêmico e divide
opiniões entre os marxistas, mas não vamos nos deter nisso. Que-
remos nos deter aqui nos apontamentos de Engels sobre a origem
da linguagem.
Em nosso entendimento, Engels apoia-se em uma hipótese evo-
lutiva que era amplamente aceita em sua época mas que hoje já sa-
bemos ultrapassada. Isso coloca, inegavelmente, um horizonte
histórico em seu texto. Sua leitura hoje, descontextualizada, é porta
de entrada para alguns entendimentos unilaterais sobre a natureza
do trabalho que, por sua vez, leva a entendimentos equivocados
sobre a linguagem. Justamente na contramão do que há de mais
interessante no texto de Engels: a dialética trabalho-linguagem que,
em nossa opinião, é o que permanece como válido.

A relação com Lamarck e a concepção evolutiva


Talvez o ponto mais crítico no texto de Engels seja sua evidente
leitura lamarckista sobre as transformações biológicas que opera-
ram na transformação do macaco em homem, o que o empurra a
uma determinada concepção evolutiva já superada.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
10 Romerito Pontes

Jean-Baptiste de Lamarck foi um naturalista francês muito in-


fluente em sua época. Ele publicou sua Filosofia zoológica em
1809 e, em 1815, sua História natural dos animais sem vértebras
(tradução livre). Nessas duas obras, Lamarck desenvolve seus pen-
samentos acerca da origem das espécies e os meios pelos quais elas
se diferenciam.
Embora hoje seja mais apropriado falar-se em uma teoria da
progressão de Lamark do que em uma teoria da evolução propria-
mente dita, seu pensamento foi muito influente no século XIX.
Quem reconhece isso é o próprio Darwin nas primeiras páginas de
seu A origem das espécies (1859), quando tece comentários elo-
giosos a Lamarck, reconhecendo sua importância como primeira
contestação séria e científica aos ideais criacionistas. Apesar de su-
perar sua teoria, Darwin nunca escondeu que se apoiou nas teses
de Lamarck.
E o que diz a teoria da progressão de Lamarck? O francês sus-
tenta que há uma “tendência geral de aperfeiçoamento dos seres
vivos” ao longo do tempo. Essa tendência seria materializada atra-
vés do que ficou conhecido como a Lei do uso e desuso.
Segundo Lamarck, o uso intenso de um órgão levaria ao seu
desenvolvimento e especialização, sendo o contrário também ver-
dadeiro: a falta de uso levaria um órgão à atrofia e consequente
desaparecimento. Assim, as condições de sobrevivência impostas
por determinado ambiente levariam à criação de necessidades que
pressionariam os animais à adaptação e à especialização pelo maior
uso de determinadas funções. Como no exemplo clássico das gi-
rafas que alongaram seus pescoços para alcançar árvores mais
altas. O movimento é de fora para dentro: o ambiente pressiona os
indivíduos a se adaptarem. As pequenas conquistas dessa especia-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 11

lização na vida de um indivíduo seriam transmitidas aos seus des-


cendentes através do que ficou conhecido como a segunda lei de
Lamarck, a Lei da transmissão dos caracteres adquiridos.
Apesar de todos seus méritos, hoje sabemos que as leis de La-
marck não correspondem muito bem à realidade e esse é um con-
senso amplamente aceito. A especialização e desenvolvimento de
um órgão provocada pelo uso repetitivo e hábito pode até ser ver-
dade para alguns casos específicos, como no da hipertrofia dos
músculos provocada por exercícios. Mas, não o é para outras coi-
sas. Por exemplo, no caso os olhos que não só não se aperfeiçoam
como sentem mais rapidamente o desgaste pelo uso e envelheci-
mento ou, então, a perda de líquido sinovial e o desgaste das arti-
culações. Tampouco, essas características são transmitidas de
forma hereditária. Não existe relação nenhuma em frequentar aca-
demia e ter filhos mais fortes.
Lamarck estava no caminho certo, mas não tinha como prever
que, cinquenta anos após a publicação de seus trabalhos, descobri-
ríamos a existência de uma proteína responsável pelas funções ce-
lulares, o DNA (batizado na época de nucleína). E que, a partir
disso, entenderíamos os mecanismos de transmissão de caracteres
entre gerações.
Alguns dizem que o argumento de que Engels faz uma leitura
lamarckista não procede. Entendemos justamente o contrário: é
gritante essa influência em seu texto. Ora, como dissemos acima,
a concepção de Lamarck sobre o progresso das espécies é justa-
mente a de que a necessidade cria o órgão, desenvolvido pelo há-
bito. É precisamente esse o argumento usado por Engels em todo
o seu texto, e que fica explícito na seguinte passagem:

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12 Romerito Pontes

“A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do


macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante
modulações que produziam por sua vez modulações mais perfei-
tas” (ENGELS, 2004, grifo nosso).
Sobre a mão, Engels afirma que:
“… era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e ha-
bilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia­se por
herança e aumentava de geração em geração. Vemos, pois, que
a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto
dele. (ENGELS, 2004, grifo nosso).
Ou ainda, sobre as consequências da alimentação nas espécies,
Engels nos diz que
“Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos animais desem-
penha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao
obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para
elas, com o que muda a composição química de seu sangue e
se modifica toda a constituição física do animal; as espécies já
plasmadas desaparecem” (ENGELS, 2004, grifo nosso).
Não podem haver afirmações mais categóricas da influência la-
marckista sobre as formulações de Engels.
Por seu texto ser posterior ao descobrimento do DNA, não po-
demos cobrá-lo por isso. Engels não era um naturalista e por isso
dizemos que há um limite causado por um horizonte histórico, não
um erro propriamente dito. Engels estava em consonância com as
teorias da época, mas que, muito rapidamente, foram superadas.
Hoje sabemos e é demonstrável que as pequenas mudanças pro-
vocadas pela completa aleatoriedade genética provocada pela re-
produção são mais importantes que a especialização que um órgão
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Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 13

possa ter na vida de um indivíduo. Combinadas com as condições


ambientais, essas aleatoriedades criam indivíduos mais adaptados
– o que não significa mais aperfeiçoados, como dizia Lamarck, ou
como entende o senso comum. Em outras condições, esses mesmos
indivíduos podiam ser extremamente prejudicados. Assim, a tese
de Lamarck sobre a pressão externa que cria necessidades pode ser
entendida como unilateral. Concomitante às condições ambientais,
temos que considerar a aleatoriedade genética dos indivíduos que,
juntas, criam o que chamamos de pressão evolutiva que, por sua
vez, nada mais é do que a maior reprodução de indivíduos de de-
terminada espécie mais adaptados a um determinado contexto am-
biental.
Não é o determinismo ambiental, mas a combinação desses fa-
tores que está no centro do que chamamos de seleção natural e da
evolução provocada por ela. E esse componente aleatório é justa-
mente o que não consta na formulação de Engels. E isso é o que
permite a ele fazer afirmações de que o trabalho – enquanto ativi-
dade social – é o que cria o humano enquanto organismo biológico,
em um sentido unilateral.
Não estamos, com isso, querendo dizer que Engels tinha uma
concepção estreita e determinista. Mas, uma leitura desatenta e
pouco contextualizada pode levar a confusões. O trabalho, en-
quanto atividade social, cria sim o sujeito social. E o trabalho, en-
quanto atividade física, pode sim moldar o corpo biológico. Mas,
saltar da práxis para a evolução das espécies não parece apropriado
diante de tudo o que já desenvolvemos em termos de compreensão
evolutiva. Sem essa contextualização, o texto de Engels pode ser
uma armadilha.

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14 Romerito Pontes

Precedentes morfológicos na transformação


do macaco em homem
O que estamos dizendo é que determinada atividade pode ter re-
lação com mudanças físicas na escala individual, mas não na escala
da espécie.
Sabemos hoje que essas últimas se dão pela aleatoriedade ge-
nética e pelas vantagens geradas por elas combinadas com as con-
dições ambientais. Em outras palavras, o trabalho não opera
mudanças em nossa espécie diretamente, mas sim, indiretamente,
tornando-nos mais adaptáveis para as mais diversas situações. E,
se as atividades não implicam na mudança direta da espécie, isso
significa que toda a potência humana liberada pelo trabalho deu-
se em um animal cuja natureza biológica, morfológica, já existia
como condição para isso. Ou seja, primeiro vieram as condições
biológicas. Não é por desenvolver o trabalho que o macaco pôde
assumir determinada constituição, mas foi por ter determinada
constituição que o macaco pôde desenvolver o trabalho.

E que constituição é essa?


A primeira grande mudança morfológica significativa na pas-
sagem do macaco ao homem foi, sem dúvida, o bipedismo. Andar
em pé foi uma revolução operada, muito provavelmente, pelo Au-
tralopithecus afarensis cerca de 3,7 milhões de anos atrás, segundo
a pegada-evidência achada em 1976 no sítio arqueológico de Lae-
toli, na Tanzânia. A estimativa coloca o bipedismo a algumas cen-
tenas de milhares de anos antes das primeiras ferramentas. A
capacidade de andar em pé, muito provavelmente, e segundo a cha-
mada “hipótese da savana”, beneficiou os indivíduos mais aptos a
isso em uma situação de escassez em que eram obrigados a descer
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Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 15

ao chão e caminhar até outras árvores. E junto com o bipedismo


vieram outras mudanças.
A mais evidente é a liberação das mãos que, deixando de ser
usadas exclusivamente para trepar em galhos puderam ser usadas
para outros fins. Sobre esse aspecto, Engels (2004, s/p) afirma que
“é grande a distância que separa a mão primitiva dos macacos,
inclusive os antropoides mais superiores, da mão do homem, aper-
feiçoada pelo trabalho durante centenas de milhares de anos”.
Além da já afastada questão do hábito como motor de mudanças
na espécie, estudos recente não confirmam que a mão do homem
é mais moderna que a dos macacos superiores. Pelo contrário. Um
estudo publicado pelo Centro de Paleobiologia Humana da Uni-
versidade de Washington demonstra que nossa mão atual tem pra-
ticamente a mesma constituição da mão dos hominídeos que
desenvolveram as primeiras ferramentas há 3 milhões de anos. Ou
seja, a seleção natural continuou operando nas mãos dos macacos
modernos, especializando-as em trepar em galhos. Não foi a nossa
que se especializou, foi a deles. Entre a mão humana e a mão de
um bonobo (nossos primos mais próximos atualmente), nossa mão
está mais próxima da mão de nosso ancestral comum. Ou seja, a
mão humana é “mais primitiva” nesse sentido.
Uma segunda vantagem do bipedismo é o encurtamento da ges-
tação. Andar em pé dificultou a gestação e criou restrições na pas-
sagem do bebê pelo canal vaginal. Isso nos obrigou a parir mais
cedo, quando o bebê é ainda menor. O ser humano é, dentre os ani-
mais, o que termina a gestação com um menor grau de desenvol-
vimento. Ao contrário de outros animais que nascem andando e
prontos para comer, o ser humano vem à vida completamente de-

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16 Romerito Pontes

pendente de seus pares a ponto de que, se deixado sozinho, morrerá


com certeza. Isso pode parecer em um primeiro momento como
uma desvantagem, mas esse parto precoce é o que permite que nos-
sas crianças terminem o desenvolvimento e maturação encefálica
já inseridas no ambiente social. Do ponto de vista da assimilação
da cultura, é uma grande vantagem.
Ainda sobre o encéfalo, que em nós tem um alto grau de plasti-
cidade, o bipedismo mudou a estrutura óssea do crânio. A posição
ereta veio acompanhada de novos dobramentos e mudanças de po-
sição do osso esfenoide, que conecta o crânio à coluna. Com a mu-
dança da posição, a coluna vai se descolando da região occipital
para mais próxima da mandíbula. Essa mudança está diretamente
ligada ao aumento do volume encefálico deixado pela região que
antes era “pressionada” pela coluna. Nosso volume encefálico do-
brou em relação ao primeiro primata a andar em pé.
Por fim, o bipedismo está ligado diretamente à nossa capacidade
de fala e de vocalização. Nossa capacidade vocal se dá, principal-
mente, pela posição de nossa laringe, muito mais baixa em nós do
que em outros primatas. Isso se deu, sobretudo, pelas mudanças
morfológicas operadas pelo bipedismo. Quer dizer, nossa posição
ereta acabou por afastar a laringe do crânio, o que permitiu voca-
ções mais precisas. E aqui discordamos novamente de Engels com
sua afirmação sobre o desenvolvimento da laringe. Temos em
nosso pescoço um osso chamado hioide, que é onde se prende a
base da musculatura da língua. A descoberta de fósseis com o
hioide preservado permite-nos calcular, pelo seu formato e sua po-
sição em relação à coluna e à base do crânio, o tamanho da laringe
e fazer uma reconstituição do trato vocal. É a partir disso que al-
guns pesquisadores hoje afirmam que outros hominídeos eram per-
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Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 17
feitamente capazes, em termos morfológicos, de vocalizar tantas
palavras quanto nós. Ou pelo menos algo bem próximo disso.
Isso data de algumas centenas de milhares de anos antes das pri-
meiras evidências das primeiras ferramentas do paleolítico inferior.
Ou seja, além da já demonstrada ação da aleatoriedade genética na
evolução das espécies, todas as evidências que temos hoje apontam
para o fato de que a constituição morfológica do homem já estava
dada, em grande parte, antes do aparecimento das primeiras ferra-
mentas.

Trabalho, aspectos sociais e comunicação nos animais


Precisamos notar ainda que aspectos centrais do que entende-
mos como trabalho existem em formas embrionárias nos animais.
Por exemplo, o uso de ferramentas não é exclusividade do Homo
sapiens. Outros gêneros de macacos são perfeitamente capazes de
usar paus e pedras como armas de combate ou mesmo construir
abrigos, como o próprio Engels coloca em seu texto. Gostaríamos
de pontuar, contudo, que o uso de ferramentas extrapola inclusive
os primatas. Elefantes são capazes de manejar ferramentas com
suas trombas e corvos são exímios no uso de ferramentas e mesmo
no uso de objetos para recreação. Ou mesmo os golfinhos, capazes
de proteger seus narizes com esponjas marinhas para evitar esfo-
liações ao revirar o fundo do mar. Ou seja, o uso de ferramentas
independe da disponibilidade de mãos livres.
Mesmo a capacidade de comunicação já existe de maneira so-
fisticada em outros animais, mesmo que sem a palavra articulada.
Enquanto algumas aves apresentam canto inato, como no caso dos
bem-te-vis (todos cantam mais ou menos da mesma maneira em
toda a região geográfica por onde se espalha a espécie), em uma
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18 Romerito Pontes

parcela significativa das aves o canto é aprendido por imitação,


como no caso dos sabiás, o que dá a ele uma variação regional.
Um sotaque, por assim dizer. Levando em conta que aves têm vo-
cação para alerta, marcação de território e cantos nupciais, é de se
considerar que a capacidade de comunicação entre elas é bem des-
envolvida. Estudos recentes começam a apontar certa correlação
genética entre a comunicação das aves e a fala humana. Golfinhos
também têm alta capacidade de comunicação, e hoje sabemos que
eles são capazes de atribuir assobios específicos para indivíduos,
algo que funciona como um nome. Ou então os elefantes, capazes
de expressar sentimentos e, além de sons, usar gestos e posições
da tromba para se comunicar.
Por fim, o hábito gregário e a constituição de grupos entre os
animais é amplamente conhecido. Desde os insetos e suas formas
rígidas de sociedade, passando por uma vasta gama de mamíferos
com funções sociais estabelecidas, até os primatas com suas regras
sociais e complexas, que envolvem a traição e disputa de poder.
Usos de ferramentas, grupos sociais com distribuição de tarefas,
capacidade complexa de comunicação. Nada disso é exclusividade
do ser humano. Encontramos isso já na natureza selvagem. É ver-
dade que em nenhuma espécie encontramos tudo junto, e ao
mesmo tempo, bem desenvolvidos. Mas, o fato é que não podemos
colocar a origem de nenhuma dessas características na execução
de trabalho.

Imprecisão na ideia de trabalho


Até aqui, tentamos mostrar que todos os apontamentos biológi-
cos ou morfológicos de que fala Engels não correspondem ao que
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 19

hoje entendemos em termos evolutivos, e que isso está diretamente


ligado à influência lamarckista de sua elaboração, uma teoria já
superada. E que, portanto, não podem ser atribuídas ao trabalho.
Um segundo aspecto que merece atenção no texto de Engels, é
que essa leitura lamarckista leva-o a um uso do conceito de tra-
balho que, pela temática, exigiria uma definição muito mais pre-
cisa. Talvez porque esse não fosse o foco, talvez por se tratar de
um texto corriqueiro, digamos assim. Pouco importa para a ques-
tão. No debate geral do marxismo, a simples distinção entre o tra-
balho instintivo (Marx, 2013) dos animais e o trabalho planejado
dos homens basta.
Na célebre passagem do capítulo 5 do primeiro livro d’O Capi-
tal Marx diz que
“Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito uni-
camente ao homem. (…) Porém, o que desde o início distingue o
pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a
colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final
do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava
presente na representação do trabalhador no início do processo,
portanto, um resultado que já existia idealmente. (…) Além do es-
forço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a von-
tade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do
trabalhador durante a realização de sua tarefa...” (MARX, 2013,
pp. 255-256).
Ou seja, a distinção entre o trabalho instintivo dos animais e o
trabalho humano está, justamente, no seu aspecto teleológico, quer
dizer, na sua intencionalidade e no seu planejamento prévio e re-
presentação mental. Ora, nesse sentido, o trabalho de que fala Marx
em O Capital, esse trabalho em forma única que caracteriza o
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20 Romerito Pontes

homem, pressupõe a capacidade de raciocínio que, por sua vez,


pressupõe a linguagem articulada. A “representação” nada mais é
do que o raciocínio baseado em conceitos. Isso tudo basta na dife-
renciação quando tratamos de temas relativos à economia política.
Contudo, quando o debate passa da economia política para as
questões evolutivas, mais propriamente da transformação do ma-
caco em homem, a linha divisória entre trabalho instintivo e tra-
balho planejado torna-se um borrão de algumas dezenas ou
centenas de milhares de anos e a precisão com que usamos o con-
ceito de trabalho torna-se um imperativo. As coisas são óbvias e
nítidas apenas nos extremos. No longo percurso que liga uma ponta
à outra há uma infinitude de nuances.
Nesse sentido, quando Engels (2004, s/p) afirma que a “origem
da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acer-
tada”, deveríamos nos perguntar: de que trabalho fala Engels? Do
trabalho instintivo ou do trabalho humano? O mais apropriado
seria considerar o trabalho instintivo, que pode preceder a lingua-
gem articulada, embora ele mesmo não entre no mérito da defini-
ção. O problema é que essa consideração, colocando as coisas
como uma simples relação de causa efeito entre o uso de ferramen-
tas e o desenvolvimento de linguagem, coloca-nos a contradição
de afirmar que o trabalho instintivo, do mesmo gênero que existe
em outras espécies animais como as abelhas, é que transformou o
macaco em homem e originou a linguagem. Continua sem expli-
cação a passagem do trabalho instintivo ao trabalho planejado.
Ainda, se considerássemos o trabalho de que fala Marx, estarí-
amos explicando a coisa pela própria coisa. Uma atividade que
exige raciocínio e linguagem articulada não pode ser a origem da
linguagem articulada. Além disso, o trabalho, mesmo enquanto ati-
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Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 21
vidade social, pressupõe a existência de uma sociedade prévia que,
por sua vez, pressupõe formas elementares de comunicação (como
já existem nos animais, como já dissemos). Não à toa, no mito bí-
blico sobre a origem das línguas – a Torre de Babel – o Deus do
antigo testamento impede, justamente, a comunicação entre os ho-
mens. Isso é suficiente para impedir a realização do trabalho au-
dacioso de se alcançar os céus. Não há trabalho sem comunicação.
Tampouco a origem da linguagem pode ser explicada por “uma
necessidade criada pelo trabalho”, uma vez que a própria ideia de
necessidade implica em algum grau de consideração – leia-se, ra-
ciocínio – a respeito disso. Não é possível falar em necessidade
biológica da linguagem articulada. Diferentemente da fome, bem
concreta e assentada em uma firme natureza fisiológica, não existe
correspondente intelectual para necessidade de códigos linguísti-
cos. Nada até hoje nos indica algo nesse sentido.

Correlação entre trabalho e linguagem


Essa frase de Engels sobre a origem da linguagem é fonte de
grande confusão. Primeiro, pelas incorreções da teoria evolutiva
das quais Engels não tinha como se esquivar. Suas afirmações
sobre processos biológicos são, hoje, equivocadas. Mas, se o pro-
blema fosse apenas esse, seria tudo muito simples de se resolver
com uma simples contextualização.
Outra confusão enorme é que Engels fala em desenvolvimento
da linguagem a partir e pelo trabalho, o que coloca o trabalho como
origem, mas em uma relação dialética de determinação e desen-
volvimento mútuo com a linguagem. A leitura desatenta disso tem
levado muitas pessoas a afirmarem que, segundo Engels, “o tra-
balho é a origem da linguagem”. Mesmo que assim o fosse, se em
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
22 Romerito Pontes

algum momento o gesto precedeu o pensamento, a vantagem de-


corrente disso em estágios primordiais é tão insignificante em uma
escala temporal gigantesca que não faz o menor sentido falar em
uma relação de causa e efeito entre um e outro. Estamos falando
de um processo lento que se arrasta por dezenas ou centenas de
milhares de anos. Nesse sentido, parece-nos mais apropriado afir-
mar que trabalho e linguagem desenvolvem-se juntos. Ou melhor
– tratando-se do trabalho enquanto atividade humana, que nos ca-
racteriza enquanto humanidade – entendemos que trabalho humano
e linguagem são, em essência, o mesmo processo, mas operados
em instâncias diferentes.
Vejamos o que, no já referido capítulo de O Capital, Marx
afirma sobre o trabalho.
“O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a na-
tureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, me-
deia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (Marx,
2013, p. 255. Grifo nosso).

Destacamos aqui a dimensão mediata dessa atividade. Ao con-


trário de um animal selvagem que rasga a presa com seus dentes,
ou mesmo de um joão-de-barro que, no seu trabalho instintivo,
constrói um abrigo usando apenas o barro e seu bico, o trabalho
humano não opera de forma imediata sobre a matéria e a natureza.
Do machado de pedra lascada à fabricação do avião, o trabalho hu-
mano exige instrumentos de mediação. E, em seu desenvolvi-
mento, esse tipo particular de trabalho exige cada vez mais
mediações entre os que executam um trabalho e a matéria. Nossa
relação com a natureza, com a matéria, é, portanto, mediada por
ferramentas, por instrumentos de mediação.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 23

O mesmo processo que aplicamos à matéria física, aplicamos


para o pensamento, em nível simbólico. A experiência dos animais
com o mundo ocorre de maneira imediata. Quer dizer, os animais
experimentam o mundo única e exclusivamente pelos seus órgãos
sensoriais. Para saber que gosto tem, é preciso experimentar. Para
saber a textura, é preciso tocar. Assim é com os animais e por isso
(e por muitos outros motivos) são incapazes de acumular experiên-
cias históricas. O ser humano, ao contrário, faz sua experiência
com o mundo de maneira mediata também a nível intelectual.
Além de experimentar o mundo pelos órgãos dos sentidos – tam-
bém sentimos gostos, ouvimos sons, enxergamos cores etc. – con-
hecemos o mundo pelos instrumentos de mediação, ferramentas
mentais de raciocínio.
E que ferramentas são essas? São justamente os símbolos, a pa-
lavra articulada, a base da linguagem e do raciocínio lógico. Tal
como nas ferramentas de intervenção na matéria, o desenvolvi-
mento do trabalho exige cada vez mais ferramentas de mediação
simbólica com a realidade. O desenvolvimento do trabalho exige
também conceitos e abstrações mais complexas e em maior quan-
tidade. É exatamente o que fala Lenin em seus Cadernos sobre a
dialética de Hegel.
“O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas não é
um reflexo simples, imediato, total; este processo consiste em toda
uma série de abstrações, de formulações, de formação de concei-
tos, leis etc.” (Lenin, 2011, p.159).
Nosso conhecimento do mundo não é reflexo imediato, mas sim
mediato. Às ferramentas de mediação com a matéria concreta co-
rrespondem as ferramentas de mediação simbólica em nível inte-

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


24 Romerito Pontes

lectual. Por isso, afirmamos que trabalho e linguagem correspon-


dem, um ao outro, em planos diferentes. São duas faces do mesmo
processo de mediação da realidade.
E isso nos deu uma conquista evolutiva muito grande, à medida
que conseguimos, via mediação, compartilhar experiências. Não é
preciso que toda a humanidade queime o dedo em uma vela para
saber que o fogo queima. Basta um indivíduo fazer a experiência
e socializá-la através das ferramentas de mediação. Isso acelera em
muito a experiência social e, sem dúvidas, salva vidas. Some-se a
isso o fato da maturação encefálica de nossos filhotes completar-
se em um contexto já cultural e termos uma aceleração imensa no
aprendizado em relação aos outros animais.
Havendo mediação tanto em nível da matéria quanto do inte-
lecto, estão colocadas as condições objetivas para a completa re-
volução do macaco em homem. Ferramentas não precisam mais
ser reinventadas a cada geração ou copiadas por mimese. Está
posta a reprodução por aprendizado: leia-se, a experiência mediata.
É essa combinação entre o software (mediação da realidade)
com o hardware (aspectos morfológicos da espécie) que vão per-
mitir ao homem chegar onde chegou.
Basta reparar que, quando pensamos, nada mais fazemos do que
um diálogo internalizado baseado em nossa língua materna. Um
brasileiro pensa em português, assim como um alemão pensa em
alemão e um inglês pensa em inglês. Isso demonstra que os sím-
bolos, os códigos linguísticos, são a ferramenta do raciocínio por
excelência. Não há raciocínio lógico sem o uso da ferramenta lin-
guagem. O fato já foi amplamente discutido por Vigostky em seu
Pensamento e Linguagem.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 25

Se o trabalho é atividade teleológica, se existe intencionalidade


no trabalho, isso só é possível pelo raciocínio. O raciocínio, por
sua vez, só é possível se mediado pela ferramenta da linguagem.
Assim, não se pode falar em trabalho, enquanto atividade humana,
enquanto práxis, sem se considerar a linguagem. O trabalho pres-
supõe a linguagem e não há trabalho sem linguagem. No borrão
milenar que separa o trabalho instintivo, comum a um grande nú-
mero de animais, do trabalho teleológico, característico dos huma-
nos, está a origem da linguagem. É ela que muda o caráter
qualitativo dessa mediação.
Por tudo que dissemos, não há por que falar em criação da lin-
guagem a partir do trabalho. Trabalho e linguagem são processos
de mediação correlatos, não causa e consequência. Ao desenvol-
vimento de um, corresponde o desenvolvimento de outro. Um não
existe sem o outro, e é a dialética entre eles que fez o homem brotar
do macaco, combinada com os fatores biológicos e as condições
ambientais.

A busca pela origem


Já dissemos que, na formação e diferenciação das espécies, o
fator determinante é a aleatoriedade genética provocada pela re-
produção.
Dissemos também que todos os elementos biológicos e com-
portamentais que constituem o que chamamos de trabalho já estão
presentes em outras espécies do reino animal. Também argumen-
tamos que linguagem e trabalho são correspondentes à atividade
humana em planos diferentes, que à ferramenta física corresponde
a ferramenta simbólica na mediação intelectual do sujeito com o
mundo. E que, por tudo isso, é simplório, de maneira descontex-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
26 Romerito Pontes

tualizada e antidialética, simplesmente afirmar unilateralmente que


o trabalho criou a linguagem. Essas confusões podem acontecer
em uma leitura desatenta do texto de Engels.
Resta ainda perguntar: se não por equívoco ou desatenção, qual
a razão em se apontar uma causa unilateral nesse processo? A quem
interessa a busca pela origem em seu momento exato?
A busca pela genealogia, a afirmação da exatidão da origem in-
teressa mais aos metafísicos do que aos marxistas. Mais àqueles
que buscam o estado de pureza anterior à queda do paraíso que os
que tentam entender o processo histórico. Interessa àqueles que
querem instituir um ponto de partida para a afirmação de um dis-
curso da verdade, sem se preocupar com a correspondência dos
fatos.
Colocar o trabalho unilateralmente como fonte de tudo, inclu-
sive da evolução da espécie e mesmo desprezando a complexidade
da dinâmica social, é colocá-lo como fonte inesgotável de maná,
alimento miraculoso dado por Deus a seu povo no deserto. De ma-
neira tosca, é reafirmar uma certa “ontologia do ser” baseada em
um entendimento materialista vulgar do que seja o trabalho. Vulgar
porque, além de estreito, reduz o trabalho de atividade social a
mera atividade física do indivíduo.
Deixamos claro: Engels não tem nada a ver com isso. Mas, os
limites históricos de seu texto, combinados com um marxismo ca-
tequista e não crítico, levam a leituras tacanhas e perigosas de sua
obra. Engels escreveu esse texto como apêndice a seu livro Dialé-
tica da natureza. É uma defesa ampla da dialética, por mais polê-
mico que seja. Afirmações mecânicas, unilaterais e deterministas
não têm nada a ver com isso, são estranhas ao marxismo.
Enfim. Criticamos a ideia de que “o trabalho criou a linguagem”
não porque propomos a inversão do binômio ou porque queremos
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 27
propor outra data nessa genealogia. Criticamos pela natureza anti-
dialética de sua conclusão. A data exata da origem do trabalho
como característica da atividade humana e da linguagem articu-
lada, fundamento do raciocínio lógico, seguem indefinidas sem
que com isso haja algum prejuízo para nosso entendimento da re-
alidade. O trabalho, tal qual entende o marxismo, pressupõe a lin-
guagem, pressupõe alguma forma de comunicação social. Não
pode, por si só, explicar a gênese de si mesmo. E se Engels, por-
ventura de um horizonte histórico, tenha se apoiado em teses pa-
leobiológicas e evolutivas que hoje passaram da data de validade,
seu apontamento sobre a dialética trabalho-linguagem continua
mais válido do que nunca.

*
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em
homem.
LENIN, Vladmir. Cadernos sobre a dialética de Hegel. Editora UFRJ: Rio
de Janeiro, 2011. Disponível em:
<http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Lenin,%20Vladimir%2
0Ilyich/Cadernos%20sobre%20a%20dial%C3%A9tica%20de%20Hegel.pdf
>
MARX, Karl. O Capital. Livro I. Boitempo: São Paulo, 2013.
VIGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. 2011.
Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/vygotsky/ano/pensamento/index.htm>

***
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
A DIALÉTICA DA NATUREZA E DO TRABALHO
EM FRIEDRICH ENGELS:
UM DEBATE A PARTIR D’O PAPEL DO TRABALHO NA
HOMINIZAÇÃO DO MACACO *

Wagner Damasceno - Brasil

Primeiramente o trabalho, em seguida e depois com ele a linguagem


(Friedrich Engels)
É por ter sido faber (artesão), que o homem se tornou sapiens (inteligente)
(Ki-Zerbo)

Neste ano completaram-se 200 anos de nascimento daquele que


foi, com Karl Marx, o maior titã na luta pela libertação da classe
trabalhadora: Friedrich Engels. Esta efeméride é motivo de alegria
para trabalhadores do mundo inteiro e reavivou o interesse por sua
vida e obra com a publicação de biografias, novas edições de seus
livros e a produção de especiais, como o feito pela Liga Interna-
cional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI)1.
Em meio a isso, dirigimos nossa atenção ao artigo Apontamentos
sobre a questão evolutiva e a origem da linguagem em Engels2, que
tem o mérito de se debruçar sobre um dos textos mais originais do
marxismo, O papel do trabalho na hominização do macaco, de En-
gels.

*
Este é um artigo de debate publicado no site Teoria e Revolução. Nas edições em es-
panhol, o nome do livro de Engels é El papel del trabajo en la transformación del
mono en hombre (nde.).
1
Ver: https://litci.org/pt/assista-o-video-200-anos-de-engels-parte-1/. Acesso em: 12
dic. 2020.
2
Ver: https://teoriaerevolucao.pstu.org.br/apontamentos-sobre-a-questao-evolutiva-e-
a-origem-da-linguagem-em-engels/, de Romerito Pontes. Acesso em: 13 de dez. 2020.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 29

Em seu artigo, o autor afirma que:


1) Engels era lamarckista3; 2) Engels apresenta uma noção de
trabalho equivocada e diferente daquela desenvolvida por Karl
Marx4; 3) A linguagem pressupõe o trabalho5; 4) A conclusão de
Engels é antidialética6.
Para confrontar essas afirmações, faremos o que achamos mais
prudente: consultaremos diretamente as obras de Charles Darwin,
particularmente, A Origem das Espécies, publicada em 1859, e A
Origem do Homem e a seleção sexual, publicado em 1871. E, evi-
dentemente, mencionaremos o manuscrito de Engels em sua mais
recente edição em língua portuguesa. Vamos lá!

O que diz a Teoria da Evolução de Charles Darwin?


Darwin elaborou uma consistente teoria que repeliu definitiva-
mente “Deus” do centro das Ciências Naturais, demolindo o seu
último refúgio nesse campo: a ideia de que o surgimento das espé-
cies deu-se de forma completamente individual e até mesmo
pronta.
A Origem das Espécies começa explicando a variação dos seres
vivos no estado doméstico, abordando especialmente a seleção
operada pelo ser humano em plantas e animais segundo suas in-
tenções. Darwin dá exemplos de modificações empreendidas pelo
3
“Talvez o ponto mais crítico no texto de Engels seja sua evidente leitura lamarckista
sobre as transformações biológicas que operaram na transformação do macaco em
homem” (PONTES, 2020).
4
“[…] de que trabalho fala Engels? Do trabalho instintivo ou do trabalho humano? O
mais apropriado seria considerar o trabalho instintivo, que pode preceder a linguagem
articulada, embora ele mesmo não entre no mérito da definição” (PONTES, 2020).
5
“O trabalho pressupõe a linguagem e não há trabalho sem linguagem” (PONTES,
2020).
6
“Criticamos pela natureza antidialética de sua conclusão” (PONTES, 2020).
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
30 Wagner Damasceno

ser humano que, em poucos anos, conseguiu produzir grandes mo-


dificações em bois e ovelhas.
“Não poderíamos supor que todas essas variedades e raças já se
tenham formado de uma só vez tão perfeitas e úteis como hoje as
temos. Em muitos casos, efetivamente, sabemos que sua história
não foi assim tão simples. A explicação reside na capacidade hu-
mana de seleção acumulativa: a natureza fornece as variações su-
cessivas; o homem sabe como levá-las para determinadas direções
úteis para ele. Nesse sentido pode-se até dizer que o homem criou
raças úteis para si próprio” (DARWIN, 2012, p. 58).
Em oposição a essa seleção realizada pelo ser humano, Darwin
chama a seleção operada numa longa duração pela natureza de se-
leção natural:
“A esses princípios [a luta pela sobrevivência e a preservação das
modificações úteis para os indivíduos de uma determinada espécie
e subsequente transmissão hereditária] através do qual toda varia-
ção, por menor que seja, deve preservar-se, desde que apresente
utilidade para o indivíduo, denominei Princípio de Seleção Natu-
ral, a fim de frisar sua relação com a capacidade humana de sele-
ção” (2012, p. 80).
Mas, apesar de ignorar o que o próprio Darwin escrevera e ig-
norar que Engels mencionara Darwin duas vezes, o artigo é cate-
górico: há uma evidente leitura lamarckista feita por Engels.
E começa atribuindo a Lamarck a noção de uso e desuso, igno-
rando que esta noção também foi utilizada por Darwin. O resultado
é que, para ele, a noção de Engels é equivocada pois concebe um
movimento de fora para dentro: “o ambiente pressiona os indiví-
duos a se adaptarem” (PONTES, 2020).
Mas, no que realmente consiste a Teoria da Evolução de Dar-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 31

win? Nas palavras do próprio Darwin, consiste no conjunto destas


leis:
“a do Crescimento, que caminha ao lado da de Reprodução; a
de Hereditariedade, quase sempre englobada na precedente; a da
Variabilidade, decorrente da ação direta e indireta das condições
externas de vida e do uso e desuso; a da Multiplicação dos Indi-
víduos, tão acelerada que acaba por acarretar a da Luta pela Exis­
tência, e consequentemente a da Seleção Natural, atrás da qual
seguem a da Divergência dos Caracteres e a da Extinção das For-
mas menos aptas” (2012, p. 381, grifos nossos).
Portanto, as condições externas e o uso e o desuso são fatores
importantes dentro da chamada Teoria da Evolução darwiniana.
Assim, já de início, há dois equívocos: 1) uma visão unilateral
sobre a evolução (de dentro do organismo do indivíduo para fora);
2) um método individualista que pensa a evolução das espécies
centrada no indivíduo, como aqueles que tratavam o trabalho
como uma atividade desempenhada por um Róbinson Crusoé.
Dito isto, vejamos o que realmente diz a passagem de Engels
tomada como uma “evidência” de seu lamarckismo:
“O domínio sobre a natureza que começou com o aprimoramento
da mão, com o trabalho, ampliou o campo visual do ser humano a
cada novo progresso. Nos objetos da natureza ele descobria con-
tinuamente novas propriedades até ali desconhecidas. Em contra-
partida, o aprimoramento do trabalho necessariamente contribuiu
para estreitar os laços entre os membros da sociedade, à medida
que multiplicou os casos de apoio mútuo, de cooperação, e pro-
porcionou uma clara consciência da utilidade dessa cooperação
para cada indivíduo. Em suma, os humanos em formação chega-
ram ao ponto de terem algo a dizer uns aos outros. A necessidade
criou um órgão para isso: a laringe pouco evoluída do macaco
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
32 Wagner Damasceno

foi mudando de forma de maneira lenta, mas segura, passando da


modulação para uma modulação cada vez mais desenvolvida, e os
órgãos da boca aprenderam aos poucos a articular uma letra após
a outra” (ENGELS, 2020, p. 341, grifo nosso).
Ora, mas vejamos o que diz o próprio Darwin sobre os insetos
da Ilha da Madeira:
“Já os insetos da Ilha da Madeira que não são terrestres e que,
como os coleópteros e lepidópteros que se nutrem de flores, são
obrigados a usar suas asas para subsistir, sofreram, conforme sus-
peita Wollaston, não uma redução nas asas, mas sim um maior
desenvolvimento das mesmas. Esse fato é inteiramente compatível
com a ação da seleção natural. Quando um inseto novo chegou
pela primeira vez à ilha, a tendência da seleção natural de au­
mentar ou reduzir suas asas dependeria dos resultados da ba­
talha desse animal contra os ventos. Se muitos indivíduos
enfrentassem com sucesso essa batalha, o resultado seria um; se a
tentativa fosse suspensa e os indivíduos passassem a voar rara-
mente, ou nunca, o resultado seria outro” (2012, p. 133, grifo
nosso).
Ou quando fala da redução ou ampliação de algum órgão:
“[…] acredito que a seleção natural sempre terá êxito no longo pro-
cesso de poupar-se de um desgaste através da redução e perda de
qualquer parte do organismo, tão logo esta se torne supérflua, sem
que isso de modo algum acarrete o desenvolvimento correspon-
dente de outra parte qualquer. E, de modo inverso, que a seleção
natural possa perfeitamente ter êxito em desenvolver grande­
mente qualquer órgão, sem que isso acarrete a necessidade de
uma compensação, isto é, de se reduzir outra parte adjacente do
organismo” (DARWIN, 2012, p. 142, grifo nosso).
Ou, ainda, quando fala de pequenos roedores:
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 33
“Do mesmo modo que na [Ilha da] Madeira as asas de certos in-
setos aumentavam de tamanho, enquanto que as de outros in­
setos foram reduzidas pela seleção natural, auxiliada pelo uso
e desuso, no caso do rato-das-cavernas a seleção natural parece
ter aceitado o desafio da falta de luz, aumentando o tamanho dos
olhos, enquanto que, no caso dos demais habitantes das grutas es-
curas, o próprio desuso seria o responsável pelas variações neles
verificadas” (2012, p. 135, grifos nossos).

Perguntamos: acaso Charles Darwin estava sendo lamarckista?


Darwin foi mais longe do que os demais naturalistas de seu
tempo porque, dentre outras coisas, ele apoiou-se nos estudos da
nascente Geologia, sobretudo nas pesquisas de Charles Lyell.
Ao dar uma nova escala temporal à vida e à própria Terra (na
ordem de milhões e bilhões de anos), a Geologia permitiu que Dar-
win pensasse a seleção natural operando nas espécies numa longa
duração temporal: “Fugazes são os desejos e esforços do homem,
e curto é seu tempo – e como! Daí a pequenez de sua obra de se-
leção, comparada com a que pode ser acumulada pela natureza
durante períodos geológicos inteiros” (DARWIN, 2012, p. 96).
Engels também estava atento a isto: “Certamente se passaram
centenas de milhares de anos – que na história da Terra não re-
presentam mais do que um segundo da vida humana – antes que o
bando de macacos que vivia trepado nas árvores desse origem a
uma sociedade de humanos” (2020, p. 343).
Por isso, quando se ignora essa longa escala temporal na qual
Darwin e Engels inserem os exemplos de modificações nas espé-
cies, tem-se a impressão de que eles operam com concepções la-
marckistas de evolução onde indivíduos simplesmente mudam
(quase da noite para o dia, por razões unilaterais).
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
34 Wagner Damasceno

Quando Engels diz que a necessidade criou o órgão “mudando


de forma de maneira lenta, mas segura, passando da modulação
para uma modulação cada vez mais desenvolvida” ele estava ar-
gumentando tal qual Darwin: a Seleção Natural foi preservando,
acumulando e transmitindo de forma hereditária7 as características
que culminaram no desenvolvimento da laringe, pressionadas por
uma atividade: o trabalho.
Voltaremos a este tema ao final deste artigo, quando tratarmos
da relação entre trabalho e linguagem.
Parte dos equívocos postos no artigo de Pontes decorre do amal-
gamento de duas coisas bastante distintas: as modificações aleató-
rias dos indivíduos (modificações genéticas) com a ideia de
aleatoriedade da Seleção Natural, inexistente na Origem das Es-
pécies. Nas palavras do próprio Pontes:
“Hoje sabemos e é demonstrável que, mais importante que a es-
pecialização que um órgão pode ter na vida de um indivíduo, são
as pequenas mudanças provocadas pela completa aleatoriedade
genética provocada pela reprodução. Combinadas com as condi-
ções ambientais, essas aleatoriedades criam indivíduos mais adap-
tados – o que não significa mais aperfeiçoados, como dizia
Lamarck ou como entende o senso comum. Em outras condições,
esses mesmos indivíduos podiam ser extremamente prejudicados.

7
O artigo supracitado menciona repetidas vezes a importância da descoberta do DNA
para a Teoria da Evolução, mas não menciona a importância das descobertas do monge
Johann Gregor Mendel acerca da transmissão hereditária de características entre os in-
divíduos para a elevação da teoria darwiniana no panteão das ciências. Em 1857, Men-
del realizou experimentos cultivando ervilhas e, ao cruzá-las, observou a transmissão
hereditária de certas características para as novas gerações de ervilhas. Seus estudos
só foram descobertos no início do século XX e, com justiça, é considerado o pai da
genética. Essa era a explicação para a hereditariedade das modificações que faltava a
Darwin.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 35

Assim, a tese de Lamarck sobre a pressão externa que cria ne­


cessidades pode ser entendida como unilateral. Concomitante
às condições ambientais, temos que considerar a aleatoriedade ge-
nética dos indivíduos que, juntas, criam o que chamamos de pres-
são evolutiva que, por sua vez, nada mais é do que a maior
reprodução dos indivíduos mais adaptados a um determinado con-
texto no conjunto da espécie. Não é o determinismo ambiental,
mas a combinação desses fatores que está no centro do que cha-
mamos de seleção natural e da evolução provocada por ela. E esse
componente aleatório é justamente o que não consta na for­
mulação de Engels” (2020).
Para Darwin, a ação da Seleção Natural não é (des)guiada pelo
acaso. Atribuir as variações ao mero acaso “trata-se, indubitavel-
mente, de um modo de falar inteiramente incorreto, numa de-
monstração cabal de nossa ignorância quanto às causas de cada
variação em particular” (DARWIN, 2012, p. 130, grifo nosso).
Isso porque, para ele, “a seleção natural, não podemos esque-
cer, pode atuar sobre qualquer parte de um ser vivo, mas sempre
e unicamente em seu benefício” (2012, p. 143, grifo nosso). Para
deixar isto mais nítido:
“Qualquer que possa ser a causa de cada pequena diferença que
distinga os descendentes de seus ascendentes – pois cada uma deve
ter uma causa específica, – é a acumulação constante dessas di­
ferenças, quando benéficas ao indivíduo, dentro de um pro­
cesso conduzido pela seleção natural, que produz todas as
modificações estruturais mais importantes” (DARWIN, 2012, p.
156, grifo nosso).
Darwin diz o mesmo quando fala dos instintos: “não vejo difi-
culdade em crer que, sob condições mutáveis de vida, a seleção

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


36 Wagner Damasceno

natural acumule modificações ligeiras de instintos, no rumo de al­


guma direção útil. Em certos casos, provavelmente houve a par-
ticipação do hábito ou do uso-e-desuso” (2012, p. 208, grifo
nosso)8.
Resumindo: Engels agiu de acordo com a teoria exposta por
Darwin na Origem das Espécies. Se a ciência moderna negou ou
retificou alguma parte desta teoria é outro debate9.

A mão de Darwin
O artigo Apontamentos sobre a questão evolutiva e a origem da
linguagem em Engels é novamente categórico: 1) uma determinada
atividade pode mudar indivíduos, mas não uma espécie; 2) o tra-
balho não operou mudanças morfológicas na espécie humana; 3)
o trabalho “deu-se em um animal cuja a natureza biológica, mor-
fológica, já existia como condição para isso”.
Isto é, o trabalho já encontrou um ser pronto para manejar as
ferramentas e pensar no que fazer. Donde sentencia: “Não é por
desenvolver o trabalho que o macaco pôde assumir determinada
constituição, mas foi por ter determinada constituição que o ma-
caco pôde desenvolver o trabalho” (PONTES, 2020).
Mas, quando Darwin defendeu a tese de que todos os indivíduos
de uma espécie – e até mesmo as espécies e grupos – não nascem

8
Na quinta edição da Origem das Espécies, Darwin passa a considerar a possibilidade
de que algumas características estruturais nos seres vivos possam não ter serventia,
mas reitera que “com base nos conhecimentos colhidos nos últimos poucos anos estou
convencido de que se poderá demonstrar depois a utilidade de muitíssimas estruturas
que agora nos parecem inúteis e que entrarão consequentemente no âmbito da seleção
natural” (DARWIN, 1974, p. 78).
9
Darwin, por exemplo, aceitava a hipótese da hereditariedade de caracteres também
aceita por Lamarck, mas com uma diferença: secundada pela Seleção Natural.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 37
prontos e descendem de ancestrais comuns, ele dá o exemplo… da
mão:
“Dada a existência da mesma disposição óssea na mão do homem,
na asa do morcego, na barbatana do boto e na pata do cavalo,
assim como o mesmo número de vértebras compondo o pescoço
da girafa e do elefante, além de inúmeros outros fatos desse tipo,
a única explicação plausível e imediata reside na teoria da descen-
dência com modificações lentas, ligeiras e sucessivas” (DARWIN,
2012, p. 374).

Para Darwin, o ser humano é o “animal mais potente que jamais


apareceu sobre a terra” (1974, p. 63-64). E seu “domínio” sobre
todas as outras espécies deve-se “às suas faculdades intelectuais,
aos seus costumes sociais que o guiam em ajuda e defesa dos com-
panheiros bem como à sua estrutura física” (1978, p. 64). Mas
Darwin é taxativo: “O homem não poderia ter alcançado a sua
atual posição de domínio no mundo sem o uso das mãos que estão
tão maravilhosamente adaptadas para agir segundo a sua von-
tade” (1974, p. 67, grifos nossos).
Há um processo dialético aqui. Sob a regência da Seleção Na-
tural, o gênero homo foi acumulando sucessivas modificações que
se mostravam úteis em sua luta pela vida. A mão humana não nas-
ceu pronta. Grosso modo: ela é produto do externo e do interno.
Isto é, do uso contínuo deste membro (não o indivíduo, mas o con-
tinuum dos seres que possuíam melhores estruturas morfológicas
para manusear algo conseguiam se perpetuar e transmitir suas pe-
quenas modificações aos seus descendentes) e dessas modificações
que se iam acumulando ao longo do tempo.
Vejamos o que o próprio Darwin diz a respeito:

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


38 Wagner Damasceno

“À medida que os antepassados do homem iam sempre mais


assumindo a posição ereta, com as mãos e os braços sempre
mais modificados de maneira a tornarem-se capazes de aga-
rrar e aptos para outros fins, com os pés e as pernas transfor-
mados ao mesmo tempo qual base firme e meio de
locomoção, deviam fazer-se necessárias outras mudanças in-
finitas de estrutura. O osso pélvico deve ter-se alargado, a es-
pinha dorsal deve ter-se curvado particularmente para dentro
e a cabeça deve ter-se fixado numa posição diferente; mu­
danças estas todas elas conseguidas pelo homem. […]
“Poderiam ser acrescentadas várias outras estruturas que apa-
recem conexas com a posição ereta do homem. É difícil de-
cidir em que medida estas modificações correlatas constituem
o resultado da seleção natural e até que ponto são o resultado
dos efeitos hereditários do aumento do uso de certas partes
ou da ação de uma parte sobre a outra. Não resta dúvida al-
guma de que estes instrumentos de mudança muitas vezes
cooperam; assim, quando certos músculos e a parte de cima,
do osso a que estão presos se alargam para o uso habitual,
este fator revela que certas ações se realizam habitual­
mente e devem ser úteis. O resultado disto é que os indiví­
duos que as realizavam tinham melhor tendência a
sobreviver em maior número” (1974, p. 68-69, grifos nos-
sos).
Charles Darwin seguramente foi um dos maiores gênios que ha-
bitou a Terra. Foi um estudioso extremamente disciplinado e pro-
fundamente materialista e dialético.
No entanto, como veremos ao final deste texto, a sua grande de-

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021


Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 39

bilidade foi justamente não ter levado às últimas consequências o


papel do trabalho para esta espécie tão singular: o homo sapiens
sapiens.

O papel desempenhado pelo trabalho


para o surgimento da linguagem
Seguramente, a Antropologia é um dos grandes bastiões do pós-
modernismo e do idealismo dentre as chamadas Ciências Humanas
e Sociais. Mas, nem sempre foi assim. Para que a cultura pudesse
se tornar a categoria central na Antropologia, foi preciso uma dura
investida contra o trabalho.
Nos séculos XVIII e XIX a Antropologia oferecia justificativas
teóricas evolucionistas e de darwinismo social para a escravidão e
para a dominação de povos originários, tão necessárias para a acu-
mulação primitiva do capitalismo. Já nos séculos XX e XXI, ela
marginaliza de seus domínios a Antropologia Física – responsável
pelos estudos acerca da formação do gênero homo – sob a justifi-
cativa de combater o evolucionismo e o darwinismo social.
O próprio conceito de cultura vai sendo esvaziado de toda ma-
terialidade, para se tornar algo quase etéreo10.
Somente apartando o trabalho do interesse antropológico – da
formação da nossa espécie até os dias de hoje – seria possível ana-
lisar os seres humanos sob o imperialismo com a superficialidade
relativista que marca boa parte dos estudos antropológicos con-
temporâneos.

10
“A palavra inglesa coulter, que é um cognato de cultura, significa ‘relha de arado’.
Nossa palavra para a mais nobre das atividades humanas, assim, é derivada de trabalho
e agricultura, colheita e cultivo” (EAGLETON, 2011, p. 09).

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


40 Wagner Damasceno

Na década de 1980, algo semelhante aconteceu na Sociologia:


junto da ideologia da superação da classe trabalhadora e das in-
dústrias, surgiu o discurso de que o trabalho já não possuía uma
centralidade sociológica explicativa. Disto, inúmeras classificações
surgiram: “Sociedade Pós-Industrial”, “Sociedade da Informação”,
“Sociedade do Conhecimento” etc.
E foi assim porque o debate entre as concepções idealista e ma-
terialista revestem-se na fundamentação ontológica da linguagem
e do trabalho11, respectivamente.
Na política, inúmeras organizações vergaram-se a essas formu-
lações idealistas que contribuíram para a designação de outro su-
jeito social da revolução, que não os trabalhadores.
Relembramos isso porque opinamos que o texto Apontamentos
sobre a questão evolutiva e a origem da linguagem em Engels
aproxima-se deste caminho, culminando em conclusões antidialé-
ticas e antimaterialistas.
O texto enuncia que há uma correlação entre trabalho e lingua-
gem mas, faz o seguinte encadeamento argumentativo: 1) antes do
trabalho veio o pensamento e a linguagem; 2) o corpo humano já
estava formado fisicamente antes que manejasse ferramentas.
E para reforçar essas conclusões o texto se apoia… na bíblia!
Isto mesmo: usa uma alegoria do idealismo por excelência (a
bíblia) para tentar comprovar que a comunicação precede o tra-
balho: “Não à toa no mito bíblico sobre a origem das línguas – a

11
Na academia brasileira, o sociólogo Ricardo Antunes teve o mérito de combater as
posições do filósofo Jürgen Habermas que colocava como centro a esfera comunica-
cional, pondo a linguagem e a cultura no núcleo do que chamava de “mundo da vida”.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 41

Torre de Babel – o Deus do antigo testamento impede, justamente,


a comunicação entre os homens. Isso é suficiente para impedir a
realização do trabalho audacioso de se alcançar os céus. Não há
trabalho sem comunicação” (PONTES, 2020).
Nosso camarada poderia ter recuado um pouco mais e se
apoiado no “fato” de que Adão – nascido morfologicamente pronto
– primeiro falou! E, por possuir tamanho domínio da linguagem,
Adão tornou-se o pai da Taxonomia: saiu pelo Éden classificando
e nomeando todos os seres vivos. E só depois de ser expulso do
Éden é que conheceu o trabalho.
Bom, mas façamos como Darwin e Engels e deixemos a bíblia
de lado. Vejamos abaixo o que Engels diz em seu manuscrito:
“Primeiramente o trabalho, em seguida e depois com ele a lingua-
gem – estes são os dois impulsos mais essenciais, sob cuja influên-
cia o cérebro de um macaco gradativamente passou a ser o de um
humano, que, apesar de toda a semelhança, é bem maior e mais
aperfeiçoado. O aperfeiçoamento do cérebro, porém, foi acom-
panhado do aperfeiçoamento de seus instrumentos mais imediatos,
os órgãos dos sentidos. Do mesmo modo que o aperfeiçoamento
gradativo da linguagem necessariamente foi acompanhado do re-
finamento de todos os sentidos […] O efeito retroativo do desen-
volvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, da consciência
cada vez mais esclarecida, da capacidade de abstração e dedução
sobre o trabalho e a linguagem conferiu­lhes estímulos sempre
renovados para o aperfeiçoamento continuado, um aperfeiço-
amento que não se encerrou assim que o ser humano se separou
definitivamente do macaco, mas, desde então, apesar de interrom-
pido por algum retrocesso local e temporal, avançou tremenda-
mente em termos globais nos diferentes povos e em diferentes
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
42 Wagner Damasceno

épocas, diferenciando-se quanto ao grau e à tendência; por um


lado, impulsionado com força para a frente, por outro, conduzido
em direções mais específicas por um elemento novo que se somou
à atuação do ser humano completo – a sociedade” (2020, p. 342,
grifo nosso).
Não há determinismo algum nessa concepção de Engels. O que
há, sim, é a definição de um ponto de partida: o trabalho. Depois,
surge a linguagem e, a partir daí, ambos passam a caminhar juntos.
Vejamos, agora, como Darwin abordou o assunto:
“Merece atenção o fato de que, tão logo os antepassados do
homem se tornaram sociais (e isto deve ter acontecido, provavel-
mente, num período muito remoto), o princípio de imitação, a
razão e a experiência devem ter incrementado e modificado em
muito as capacidades intelectivas de maneira tal que lhe vemos
somente os traços nos animais inferiores […] Ora, se algum indi-
víduo de uma tribo, mais sagaz do que os outros, inventou uma
nova armadilha ou arma, ou qualquer outro meio de ataque ou de
defesa, o mais óbvio interesse pessoal, sem necessidade de dema-
siada capacidade de raciocínio, poderia levar os outros membros
a imitá-lo e disto todos se aproveitariam. A prática habitual de
toda nova técnica numa certa medida pode igualmente revi­
gorar o intelecto. Se uma nova invenção é importante, a tribo se
desenvolverá em número, estender-se-á e suplantará as outras”
(1974, p. 156).
Até aqui estivemos simplesmente apoiando-nos no que Darwin
escreveu. Abriremos uma exceção para recorrer a um estudo che-
fiado pelo biólogo Thomas Morgan, da Universidade do Estado do
Arizona12, intitulado Experimental evidence for the co-evolution
12
Morgan conduziu este estudo em seu pós-doutoramento na Universidade da Cali-
fórnia em parceria com a Universidade Saint Andrews e a Universidade de Liverpool.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 43

of hominin tool-making teaching and language, de 2015. Fazemos


isto porque em nossa opinião as conclusões deste estudo corrobo-
ram e lançam luz à tese de Engels.
A hipótese é a seguinte: a produção de ferramentas de pedras
pelos nossos ancestrais na Garganta de Olduvai, na atual Tanzâ-
nia-África, há 2,5 milhões de anos, conduziu-os à evolução do en-
sino e da linguagem.
Para corroborar esta hipótese, Morgan estruturou um experi-
mento com 184 estudantes adultos recrutados pela Universidade
Saint Andrews, que produziram mais de 6 mil pedras de sílex –
posteriormente pesadas, medidas e analisadas – executando 5 me-
canismos de transmissão diferentes: 1) engenharia reversa; 2) imi-
tação/emulação; 3) ensino básico; 4) ensino gestual; 5) ensino
verbal. Conforme a figura abaixo.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


44 Wagner Damasceno

Segundo Morgan, havia uma relação coevolutiva entre a fabri-


cação de ferramentas e a evolução cognitiva, sugerindo que haveria
uma seleção “para formas mais complexas de transmissão social
que aumentaram a fidelidade da transmissão de informações”
(2015, p. 02).
Além disso, Morgan indica que, para sustentar a sua hipótese
“vestígios arqueológicos mostram que as mudanças na morfologia
dos hominídeos, incluindo aumento do tamanho geral do cérebro,
seguem o advento da fabricação de ferramentas olduvaienses”
(2015, p. 02, grifo nosso).
Ao analisar as 05 formas de transmissão, Morgan concluiu que
o trabalho é mais eficiente no grupo em que há o ensino (e não
apenas a imitação) e a linguagem.
“A descoberta central deste trabalho é que a transmissão social da
tecnologia olduvaiense é potencializada pelo ensino e, em parti-
cular, pela linguagem. Isso está de acordo com um relato coevo-
lucionário de cultura genética da evolução humana e apoia a
hipótese de que a fabricação de ferramentas de pedra de Olduvai
gerou seleção que favorece o ensino e a linguagem cada vez mais
complexos” (MORGAN et al, 2015, p. 03-04, grifo nosso).

Morgan também afirma que “nossos dados implicam que a fa-


bricação de ferramentas olduvaienses teria criado um gradiente
seletivo contínuo, levando do aprendizado por observação ao en-
sino verbal muito mais complexo” (2015, p. 05, grifo nosso).
Em resumo, Morgan sustenta que há uma coevolução – o que é
completamente diferente da noção relativista de que não há pontos
de partida – entre a fabricação de ferramentas e a comunicação:
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 45

“[…] a dependência dos hominídeos na tecnologia de pedra teria


gerado uma seleção para uma comunicação cada vez mais com-
plexa que permitia a disseminação mais eficaz de ferramentas de
pedra” (2015, p. 06, grifo nosso).
Em outras palavras, o trabalho estimulou o desenvolvimento da
linguagem, produzindo, por seu turno, “seleção” entre os indiví-
duos. E, à medida que o trabalho torna-se mais produtivo com o
desenvolvimento da linguagem, ela própria torna-se mais com-
plexa também, já que influi positivamente no resultado do trabalho.
Para usar uma frase do historiador de Burkina Faso, Joseph Ki-
Zerbo, “é por ter sido faber (artesão) que o homem tornou-se sa-
piens (inteligente)”13.

O trabalho para Marx e Engels

Talvez o mais grave no artigo Apontamentos sobre a questão


evolutiva e a origem da linguagem em Engels seja a conclusão de
que Engels tinha uma concepção equivocada sobre o trabalho e,
portanto, diferente da de Marx.
É importante ressaltar que nós não consideramos Marx e Engels
uma só pessoa. Cada um possuía – para usar um termo em voga

13
“É por ter sido faber (artesão), que o homem tornou-se sapiens (inteligente). Com
as mãos livres da necessidade de apoiar o corpo, o homem estava apto a aliviar os mús-
culos e os ossos do maxilar e do crânio de numerosos trabalhos. Daí a liberação e o
crescimento da caixa craniana, onde os centros sensitivo-motores do córtex se desen-
volvem. Além disso, a mão confronta o homem com o mundo natural. É uma antena
que capta um número infinito de mensagens, as quais organizam o cérebro e o fazem
chegar ao julgamento, particularmente através do conceito de meios apropriados para
alcançar um dado fim (princípio de identidade e causalidade)” (KI-ZERBO, 2010, p.
835-836).

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


46 Wagner Damasceno

hoje – uma “agenda de pesquisa”, e suas próprias idiossincrasias.


Mas, também não estamos dentre aqueles que os veem de forma
separada. Isso porque suas “agendas de pesquisas” convergiam
numa só estratégia de luta política e teórica e, porque, ao torna-
rem-se amigos em 1844, trabalharam em estreita colaboração por
todas suas vidas desenvolvendo, por exemplo, acordos de divisão
de trabalho como revelara o próprio Engels em prefácio de 1887
dos textos reunidos e publicados sob o título de Sobre a questão
da moradia:
“Em consequência da divisão do trabalho acordada entre mim e
Marx, cabia-me defender nossas concepções na imprensa perió-
dica e principalmente, portanto, na luta contra opiniões adversá-
rias, para que Marx dispusesse de tempo para elaborar sua grande
obra principal” (2015, p. 28).

Por isso, concordamos com Daniel Sugasti quando diz que


“além de relegada, a obra de Engels foi sistematicamente ata-
cada14 por diversos intelectuais desde o século XX – György Lu-
kács, Jean Paul Sartre, Louis Althusser, entre outros – que, em
nome de um pretenso marxismo purificado, empenharam-se em
separar seu pensamento do de Marx, destacando supostas diferen-
ças teóricas, programáticas e metodológicas entre ambos”15.
Para nós, O papel do trabalho na hominização do macaco de
Engels alarga o marxismo ao oferecer uma espécie de arqueolo­

14
No Estado e a Revolução, Lenin rebatia aqueles que tentavam opor a noção de Estado
em Marx e Engels: “No entanto, seria um profundo erro crer numa divergência de
opiniões entre Marx e Engels. Um estudo mais atento mostra que as ideias de Marx e
Engels a respeito do Estado e do seu definhamento são absolutamente idênticas, e que
a expressão de Marx aplica-se justamente a um Estado em vias de definhamento”
(2010, p. 104).
15 Ver: https://litci.org/pt/bicentenarioengels/. Acesso em: 11 de dez. 2020.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021


Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 47

gia do trabalho, que vai ao encontro do que Marx escrevera nos


Manuscritos Econômico-filosóficos e n’O Capital.
“O trabalho começa com a confecção de ferramentas. E quais são
as mais antigas ferramentas que encontramos? [Quais são] as mais
antigas a julgar pelas peças mais antigas que se encontram do le-
gado de gente pré-histórica e pelo modo de vida dos mais antigos
povos históricos, bem como pelo modo de vida dos mais primiti-
vos selvagens contemporâneos? São ferramentas de caça e pesca,
sendo as primeiras ao mesmo tempo armas” (ENGELS, 2020, p.
343-344).
Logo após, Engels oferece-nos uma das mais belas e dialéticas
passagens do marxismo quando fala do domínio do ser humano
sobre a natureza:
“[…] não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias hu-
manas sobre a natureza. Esta se vinga de nós por toda vitória desse
tipo […] E, assim, a cada passo somos lembrados de que não
dominamos de modo nenhum a natureza como um conquista­
dor domina um povo estrangeiro, ou seja, como alguém que se
encontra fora da natureza – mas fazemos parte e estamos dentro
dela com carne e sangue e cérebro e todo o nosso domínio sobre
ela consiste em que, distinguindo-nos de todas as outras criaturas,
somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las corretamente”16
(2020, p. 348, grifo nosso).
Vejamos, agora, o que Marx disse nos Manuscritos econômico-
filosóficos, no ano em que sua vida se entrelaçou a de Engels:

“A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza


enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da na-

16
Como visto, há também uma riquíssima contribuição de Engels à chamada questão
ambiental que pode ser extraída nestemanuscrito.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


48 Wagner Damasceno

tureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de


ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e
mental do homem está interconectada com a natureza não tem
outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo
mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (2004, p. 84).

Por fim, Engels defende uma revolução completa do modo de


produção capitalista para conseguirmos a regulação das forças pro-
dutivas donde
“os seres humanos voltarão não só a se sentir em unidade com a
natureza, mas também a ter ciência disso, e tanto mais inviável se
tornará aquela representação absurda e antinatural de um antago-
nismo entre espírito e matéria, homem e natureza, alma e corpo,
que surgiu após a decadência da Antiguidade clássica na Europa
e alcançou no cristianismo o seu maior aprimoramento” (2020, p.
348).

Não há absolutamente nada nesta elaboração que divirja do que


Marx escreveu sobre o trabalho.

Os limites de Darwin
Em O papel do trabalho na hominização do macaco, Engels faz
uma pequena mas contundente crítica aos cientistas naturais:
“cada coisa atua sobre a outra e vice-versa, e na maioria das vezes
é o esquecimento desse movimento e dessa interação universais
que impede nossos pesquisadores da natureza de ter uma visão
clara sobre as coisas mais simples” (2020, p. 346). Uma crítica
que bem podemos aplicar a Darwin.
Afinal, ele cometeu grandes equívocos em A Origem do Homem.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021


Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 49

Ele era um materialista e um dialético, mas, ao ignorar o papel


fundamental do trabalho para o ser humano na interação com a
natureza – combinado com a sua origem de classe, e com o grande
prestígio que sua teoria angariou –, fez com que ele não resistisse
à tentação de estender às sociedades humanas de seu tempo a lei
da Seleção Natural. O resultado disso foram inúmeras formulações
preconceituosas e racistas.
Havia méritos, também. Ele reconheceu, por exemplo, que ne-
gros, indígenas e brancos formavam uma só espécie. No entanto,
oscilou entre classificá-los como raças distintas e como subespé-
cies.
Com muitas reservas, reconheceu que a civilização do antigo
Egito era composta em sua maioria por negros e que – nas palavras
atuais – a alta concentração de melanina na pele foi uma modifi-
cação operada pela Seleção Natural.
“Por isso creio que os negros e outras raças escuras podem ter ad-
quirido a sua cor de indivíduos mais escuros que se subtraíram à
influência mortal do sistema da sua região natal durante uma série
de gerações […]” (DARWIN, 1974, p. 230).
Porém, com a visão turvada pelo racismo, Darwin – cuja capa-
cidade de síntese e de dedução excedeu a de todos os naturalistas
de seu tempo – não foi capaz de deduzir que o gênero homo e a
espécie homo sapiens sapiens foram “o presente da África para o
mundo”17 e que eram negros e negras. Adiando, assim, por quase
um século esta conclusão científica que só a sua teoria era capaz
de fazer.
17
“Assim, os mais antigos representantes de nossa espécie podem ser vistos como o
presente da África para o mundo” (CONNAH, 2013, p. 40).
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐
50 Wagner Damasceno

“A adaptação ao meio foi um dos mais poderosos fatores de for-


mação do homem, desde suas origens. As características morfos-
somáticas das populações africanas até o presente foram
elaboradas nesse período crucial da Pré-História. Assim, o caráter
glabro da pele, sua cor morena, acobreada ou negra, a abundância
de glândulas sudoríparas, as narinas e os lábios proeminentes de
grande número de africanos, os cabelos crespos, encaracolados ou
encarapinhados, tudo isso provém das condições tropicais. A me-
lanina e os cabelos encarapinhados, por exemplo, protegem do
calor. Além disso, a postura ereta, que foi uma etapa tão decisiva
do processo de hominização e que implicou ou acarretou um novo
arranjo dos ossos da cintura pélvica, está ligada, na opinião de al-
guns pré-historiadores, à adaptação ao meio geográfico das sava-
nas de ervas altas dos planaltos do leste africano: era preciso
manter‐se sempre ereto para olhar por cima, a fim de espreitar sua
presa ou fugir dos animais hostis” (KI-ZERBO, 2010, p. 834-835).
Darwin apoiou-se em inúmeros preconceitos de Thomas Mal-
thus18 e de Francis Galton contra negros, indígenas, asiáticos e ir-
landeses.
“A mesma observação é válida com igual ou maior força no que diz
respeito aos numerosos pontos de semelhança mental entre as mais
diversas raças humanas. Os aborígenes americanos, os negros e os

18
Galton e Malthus são mencionados em Origem das Espécies, mas nem de longe têm
tamanho relevo quanto nesta obra. As elaborações acerca da população de Malthus
lhe inspiraram. Mas, se eram razoáveis para se pensar o crescimento sustentável de
uma determinada espécie – isto é, a capacidade de sustentabilidade “associada à má-
xima população de uma espécie que pode manter-se indefinitivamente em um território
sem provocar uma degradação na base de recursos que possa fazer diminuir essa
mesma população no futuro” (MOREIRA, 2007, p. 202) – não faziam o menor sentido
quando aplicadas às sociedades humanas.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
Um debate sobre Engels e o papel do trabalho na questão evolutiva 51

europeus são tão diferentes entre si intelectualmente quanto o


podem ser três raças quaisquer” (DARWIN, 1974, p. 213).
E chegou às raias da eugenia quando lamentou que, nas sociedades
humanas, os “mais fracos” podem sobreviver e prosperar:
“Devemos, portanto, suportar o efeito, indubitavelmente mau, do
fato de que os fracos sobrevivem e propagam o próprio gênero,
mas, pelo menos, se deveria deter a sua ação constante, impedindo
os membros mais débeis e inferiores de se casarem livremente
como os sadios” (1974, p. 162).
Em suma, ao não levar às últimas consequências a importância
do trabalho para os seres humanos, foi incapaz de entender a fundo
que o desenvolvimento das forças produtivas “freava” enorme-
mente a força da Seleção Natural sobre os seres humanos e foi in-
capaz de entender que todos os diferentes povos – com suas
diferentes características físicas e culturais – constituíam uma só
espécie plenamente evoluída, o homo sapiens sapiens.
Cabe a nós, trabalhadores, a tarefa de demolir de forma revolu-
cionária o capitalismo e pôr fim à alienação do trabalho e a todas
as formas de opressão que desumanizam a nossa classe. Pavimen-
tando, assim, o caminho para uma sociedade comunista, início da
história realmente humana.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021 ‐


52 Wagner Damasceno

Referências

CONNAH, Graham. África Desconhecida: Uma introdução à sua Arqueologia.


São Paulo: USP, 2013.
DARWIN, Charles. A origem do homem a seleção sexual. São Paulo: Hemus,
1974.
DARWIN, Charles. Origem das espécies. Belo Horizonte: Itatiaia, 2012.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: UNESP, 2011.
ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza. São Paulo: Boitempo, 2020.
ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015.
LENIN, Vladimir. O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o
Estado e o papel do proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular,
2010.
KI-ZERBO, Joseph. Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada. In:
KI-ZERBO, Joseph (Org). História Geral da África I: Metodologia e Pré-História
da África. Brasília: 2ª ed. UNESCO, 2010.
MARX, Karl. Manuscritos econômico­filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MOREIRA, Roberto. Terra, poder e território. São Paulo: Expressão Popular,
2007.
MORGAN, T. J. H. et al. Experimental evidence for the co-evolution of hominin
tool-making teaching and language. Nature Communications. 6:6029 doi:
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cles/ncomms7029>. Acesso em: 12 dez. 2020.
PONTES, Romerito. Apontamentos sobre a questão evolutiva e a origem da lin-
guagem em Engels. Teoria & Revolução. Disponível em: <https://teoriaerevo-
lucao.pstu.org.br/apontamentos-sobre-a-questao-evolutiva-e-a-origem-da-lingua
gem-em-engels/>. Acesso em: 11 dez. 2020.

***
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 8‐52 ‐ Agosto de 2021
A

E d u c a ç ã

na Rússia depois de
Outubro de 1917
o
54 Daniel Henrique Rodrigues

A REVOLUÇÃO RUSSA E A PERSPECTIVA


DE UMA EDUCAÇÃO REVOLUCIONÁRIA

Daniel Henrique Rodrigues – Brasil

Hoje, no Brasil, deparamo-nos com políticas retrógradas ao se con-


siderar a educação. A dar início pelo corte de verbas referentes à edu-
cação básica – de R$ 146 milhões de reais para a construção de
unidades básicas de ensino, o que também inclui R$ 150,7 milhões
para a merenda escolar e R$ 19,7 milhões para transporte público. Ao
mesmo tempo, vemos o fechamento de escolas, o que se dá em todo
um contexto nacional. A questão relacionada aos gastos já vem de
2016, com a aprovação da PEC 241, na Câmara dos Deputados, e da
55, no Senado Federal. Com o Novo Regime Fiscal, institui-se a limi-
tação de gastos primários1 abaixo do crescimento do PIB2 (BRASIL,
2019, pp. 512 – 515). Consequentemente, diminui-se os investimentos
em educação. Enquanto isso, o maior gasto da União3 permanece
sendo com os juros e amortizações da Dívida Pública, de 43,94% do
orçamento, ao mesmo tempo em que o que é destinado à educação co-
rresponde a apenas 3,7% (Auditoria Cidadã da Dívida, 2017).
O que está em jogo são interesses antagônicos. Isso porque, na so-
ciedade em que vivemos, a educação é instituída como mercadoria.
1
Faz parte dos gastos primários da União o que se relaciona a investimentos no setor
público, como manutenção de prédios, a própria educação escolar etc. Tudo o que faz
referência ao que é público e financiado pelo Estado.
2
PIB –Produto Interno Bruto. É totalidade da soma de todos os serviços de determi-
nada região; no caso, do Brasil.
3
Relação que há entre Governo Federal, estados e municípios.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021


A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 55
Dessa forma, ela ocorre não como um direito, mas um objeto de con-
sumo que deve ser adquirido. Logo, não vem a atender às necessida-
des humanas, mas aos interesses do mercado. Com isso, o que vemos
é a concepção de uma educação unilateral, isto é, que está apenas
para uma única esfera da vida, resumindo-se à compra e venda.
Assim, uma educação fragmentada que, consequentemente, também
forma homens fragmentados. Nossa proposta é ir em oposição a esta
concepção. Compreendemos a educação como algo muito mais
amplo do que uma simples mercadoria, ou mesmo quanto à formali-
dade do ensino e sua institucionalização, que se sintetiza na escola.
Logo, uma educação omnilateral4. Trata-se de uma educação que
possa envolver todas as esferas da vida humana: tudo o que implica
a humanização e a afirmação da humanidade.
Ainda que se creia o contrário, a educação não está separada da
vida prática. Não é nossa intenção, aqui, negar a importância da es-
cola, mas buscar compreender uma proposta de educação que deva
ir em direção à totalidade das relações sociais. Diante disso é que nos
referenciamos na perspectiva de uma educação revolucionária, ou
seja, que venha a ser parte de um processo que altere todo o curso da
sociedade, tratando-se, assim, de uma mudança estrutural.
Quanto a isso, a Revolução Russa é a referência histórica mais
concreta que temos hoje. Isso porque, de início, propôs-se a superar
uma realidade que não convinha à maior parte das pessoas, ao mesmo
tempo em que buscou dar sentido a novas relações sociais. Com isso,
também, que nos propomos a pensar a Revolução Russa: tratar dessa
educação revolucionária posta em prática historicamente. Isso porque,

4
O modelo de educação omnilateral, nas palavras de Bordin é “O primeiro passo para
garantir uma mudança social e evitar o retorno ao momento histórico anterior é fazer
com que todo o povo esteja bem preparado intelectualmente, com uma cultura por ele
formada, esteja ciente dos obstáculos por vir e tenha sabedoria e entendimento para se
posicionar na nova forma de conceber o mundo. (…)”, nde.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
56 Daniel Henrique Rodrigues

compreender esse processo ajuda-nos a compreender os limites dos


quais lidamos em nosso presente, para que assim possamos refletir e
agir sobre para superá-los. Seria a educação um elemento-chave para
esse processo? Como pensar, afinal, uma educação revolucionária
sem que ao menos uma revolução tenha tido o seu curso? Quais os
mecanismos que dispomos na atualidade para ir além de uma educa-
ção unilateral? Para isso, traçamos um desenvolvimento histórico,
considerando a revisão bibliográfica de autores que discutem o as-
sunto a partir do método materialista histórico-dialético. Nosso foco
será o período entre 1917 e 1926, ou seja, o início do processo revo-
lucionário, antes que pudesse ser derrotado pela burocracia.

1. Os problemas da Rússia y la vieja educación


Se viemos a tratar, para além da educação, de uma mudança es-
trutural, necessitamos compreender do que se trata essa estrutura.
Para isso que, no decorrer deste artigo, buscamos considerar os ele-
mentos que compõem as relações sociais. Estes não se limitam à Rús-
sia, mas se manifestam em seu contexto. A dar início, a luta de
classes. Esta é histórica, à medida que a produção social da vida
torna-se mais abundante, consequência do desenvolvimento das téc-
nicas de trabalho e seus instrumentos, e passa a ser apropriada, de
forma privada, por determinado grupo. Diante disso, consideramos a
existência de classes sociais: as que se apropriam e as que passam a
ter o seu trabalho apropriado. Neste sentido, uma relação entre opres-
sores e oprimidos (MARX; ENGELS, 2010, p. 40).
Desde então, lidamos com a exploração do trabalho, tal como a
sua divisão e, em conta disso, a fragmentação do homem (já que este
não tem mais noção de todo o processo, ou ao menos aquilo que pro-
duz). Hoje, por exemplo, vemos, essencialmente, duas principais clas-
ses sociais: a burguesia, que controla as relações no processo de
trabalho e apropria-se da produção, e o proletariado, que se vê obri-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021
A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 57

gado a vender sua força de trabalho; característica essencial do capi-


talismo.
Tratando-se disso, é preciso apontar algumas questões importantes.
Primeiramente, o capitalismo é uma relação social que envolve a
compra e venda da força de trabalho. Assim, o capitalista, que detém
os meios de produçã5, tratando-se da propriedade privada, utiliza da
força do trabalhador, em troca de um salário, para fazer a máquina
funcionar. Em segundo lugar, o trabalhador, fazendo a máquina fun-
cionar, é quem garante a produção; ainda que a ele seja negado o
acesso, que é apropriado pelo capitalista. Em terceiro lugar é preciso
compreender que este processo, historicamente, necessita de um
amplo desenvolvimento das forças produtivas em sua interação com
as relações de produção6.
Para isso, foi preciso que se superasse as relações feudais para dar
condições a esse desenvolvimento. O homem necessitava estar livre
da terra, que lhe permitia pouca ou quase nenhuma mobilidade, para
encarar as relações de compra e venda; mesmo que a maior parte da
população só tivesse sua força de trabalho para vender. Logo, o capi-
talismo é o que há, até hoje, de mais desenvolvido; o que não o isenta
de seus limites e contradições sociais.
Diante disso, podemos pensar a superação da divisão do trabalho
e da fragmentação do homem, tratando-se do comunismo como uma
etapa superior da história da humanidade e do socialismo como um

5
Relação que se dá entre os instrumentos de trabalho, a força humana e os recursos
sobre os quais se trabalha. O homem trabalha sobre a natureza e a transforma. Para
isso, utiliza de suas ferramentas e das técnicas de manuseio para o seu ofício.
6
Esta última faz referência à forma como a vida é organizada de acordo com as con-
dições de existência, mantendo uma interação com as forças produtivas: que se rela-
cionam à força de trabalho humana junto aos meios de produção e seus instrumentos
de trabalho. À medida que as forças produtivas avançam, entram em contraposição às
relações de produção, o que pode ou não levar a uma mudança estrutural.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐


58 Daniel Henrique Rodrigues

processo de transição para tal. A classe trabalhadora, considerando


uma mudança estrutural, acaba por ser o seu sujeito revolucionário.
“A condição essencial para a existência e supremacia da classe bur-
guesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a forma-
ção e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é
o trabalho assalariado. Este baseia-se exclusivamente na concorrência
dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é
agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários,
resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da
associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos
pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime
de produção e apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobre-
tudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado7
são igualmente inevitáveis” (Ibidem, p. 50 – 51).
Com essas questões podemos pensar a realidade histórica da Rús-
sia czarista8, isto é, antes de sua revolução. Não se tratava de um país
avançado, composto por maquinaria e indústria de ponta das quais
são exigidas pelo capital; apesar das classes sociais e da divisão do
trabalho serem fatos presentes. Muito pelo contrário, um vasto im-
pério dominado pelo trabalho agrícola, uma das características de seu
atraso tecnológico que fazia com que permanecessem resquícios das
relações feudais: o que se tinha, majoritariamente, não era a proprie-
dade privada e as relações capitalistas, mas a propriedade comunal,
como os artels – sociedades cooperativas de camponeses. O que era,
certamente, um entrave para uma revolução que pudesse superar o
capitalismo, já que este nem mesmo havia se desenvolvido por com-
pleto (MARX; ENGELS, 2013, p. 31).
7
Faz referência à classe trabalhadora e suas várias frações. “Proletário” = filho do tra-
balho, trabalhador.
8
De “czarismo”: monarquia absolutista do Império Russo, sob o qual o czar, pela he-
reditariedade (isto é, um poder por herança familiar de pai para filho), governava. Este
abusava de poderes ilimitados e de sua condição de vitalício (até a morte).

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021


A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 59

Tais problemas se manifestavam, também, na educação. Ao


mesmo tempo em que vemos a fragmentação do homem, relaciona-
dos à divisão do trabalho, vemos uma educação fragmentada. Tra-
tando-se da Rússia, deve-se também considerar o seu baixo estágio
de desenvolvimento e como este, certamente, imperava na educação
disposta pelo império. A maior parte da população não conseguia ter
acesso à escola, mesmo porque a vastidão de um território, conside-
rando que cada área carregava suas particularidades com relação ao
esse atraso, dificultava ainda mais o acesso ao saber sistematizado.
Era comum, também, o fato de muitas escolas estarem submetidas a
uma educação de caráter religioso.
“O grande Império russo não tinha ainda um sistema nacional de en-
sino até o final do século XIX e início do século XX: 71% dos ho-
mens e 87% das mulheres eram analfabetos. Entre as crianças, apenas
20% chegavam a sentar nos bancos escolares [...]. A maior parte das
escolas era particular, sob a direção de camponeses ricos, nas aldeias,
ou de burgueses, nos grandes centros. A Igreja detinha um poder
maior sobre a educação popular, no ensino primário das paróquias, e
a educação privada, para o ensino secundário das elites. As poucas
escolas públicas existentes eram voltadas para o ensino primário, com
duração de três anos, com um currículo mínimo de leitura, escrita,
aritmética e ensino religioso, através do canto. O ensino suplementar,
completando 6 anos, se realizava em apenas 5% dessas escolas pú-
blicas” (LUEDEMANN, 2017, p. 40 – 41).
Uma educação como esta colocava empecilhos para que o conhe-
cimento pudesse ser adquirido. Como se não bastasse, também é per-
ceptível que o sistema escolar se via dividido entre classes: uma
escola para trabalhadores e camponeses e outra para burgueses e cam-
poneses ricos. Porém, isso não nega o fato da maior parte da popula-
ção não ter acesso à educação. Com isso, já vemos a quais interesses
esse sistema de ensino atendia.

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60 Daniel Henrique Rodrigues

Ainda assim, é necessário apontar que estas condições desfavorá-


veis referentes à educação na Rússia eram uma síntese de um pro-
cesso maior: além da divisão do trabalho, o seu atraso relacionado às
forças produtivas. Diante disso, não podemos pensar a educação, na
perspectiva de uma mudança estrutural, apartada desse processo.
Foi a partir desta realidade que Trotsky elaborou a tese do desen-
volvimento “desigual e combinado” para compreender o desenvol-
vimento da Rússia. Um país que, embora estivesse no mesmo período
histórico que a Europa Ocidental, carregava a sua desigualdade. Isso
porque o capitalismo não desenvolve suas forças produtivas da
mesma forma em todos os lugares, mas as centraliza em lugares es-
pecíficos (Ibidem, p. 25). O atraso do império colocava dúvidas se
era possível a superação do capitalismo em um território no qual as
relações capitalistas de produção não haviam se desenvolvido em sua
integridade. Porém, a elaboração teórica do desigual e combinado co-
locou em cheque a falácia da necessidade de estágios evolutivos.
Mesmo porque, como aponta o próprio Trotsky, o número de operá-
rios na Rússia czarista equivalia a mais de 25 milhões9, um número
bem mais alto que a população da França quando esta estava em seus
dias de glória da Revolução Francesa (Ibidem, p. 30). Como se não
bastasse, as empresas gigantes empregavam na Rússia cerca de 41,4%
proporcionado à totalidade dos operários; além do fato de que cerca
de 40% dos capitais estrangeiros estarem investidos na Rússia (Ibi-
dem, p. 29). Assim, diante dessas considerações e do caráter desigual
e combinado da história, já não era necessário desenvolver o capita-
lismo em sua integridade para depois superá-lo. Ao mesmo tempo,
pensar a mudança estrutural era pensar essa superação do caráter re-
tardatário que, apesar do desenvolvimento particular do território
9
A maior parte desses operários, incluindo os da indústria, concentravam-se na região
de São Petersburgo, cidade escolhida pelo czarismo como centro de sua “modernização
conservadora” para se alcançar o intercâmbio com o restante da Europa.
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A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 61

russo, era grande. Sob estas condições também se dará a educação


revolucionária.

2. La educación revolucionaria en la perspectiva


de superación de las viejas relaciones
Com a Revolução Russa de 1917, o império foi derrubado e insta-
lou-se um governo provisório. Ainda assim, boa parte dos problemas
não havia sido resolvida: a ausência de comida, os soldados que con-
tinuavam a morrer na Primeira Guerra Mundial, a alta inflação etc.
Diante disso, ocorreu a Revolução Vermelha: quando a classe trabal-
hadora organizada destituiu o governo provisório e buscou desenvol-
ver um Estado operário; isto é, em contraposição a um Estado
burguês, no qual a burguesia é classe dominante, ou mesmo um Es-
tado com características feudais, no caso da Rússia antes de 1917.
Ainda assim, tratava-se de um Estado operário que carregava heran-
ças das velhas relações e de seu atraso, o que não seria superado num
estalar de dedos ou com simples decretos. Como afirmava o próprio
Lenin: “A luta de classes continua, somente mudaram as suas formas.
É a luta de classe do proletariado para impedir o regresso dos anti-
gos exploradores, para agrupar numa estreita união a massa dis-
persa do campesinato ignorante” (2018b, p. 7). Logo, trata-se de se
pensar a educação como uma chave para tais tarefas.
Quais eram as questões referentes à Rússia? A dar início, a pre-
sença mínima de indústrias no país e os problemas na agricultura;
considerando que a guerra já havia assolado a população e, conse-
quentemente, o trabalho no campo; além do atraso das suas ferramen-
tas de trabalho. Outro problema eram os kuláks – camponeses ricos,
donos de grandes propriedades - levando em conta o atraso e domínio
do campo, e os tecnocratas que, por inferência dos limites que tinham
os trabalhadores em relação a uma educação que lhes fora negada em
boa parte de suas vidas e não conheciam a organização do trabalho,
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62 Daniel Henrique Rodrigues

continuavam a ser requisitados quando se tratava de desenvolver as


técnicas necessárias. Todas estas questões, determinações, como res-
quícios da Rússia czarista, precisavam ser superadas. Era preciso con-
tinuar a expropriação da burguesia e, para criar essas condições de
expropriação, era essencial o conhecimento variado sobre as técnicas
de trabalho, considerando que deveria ser a garantia para que a classe
trabalhadora e os camponeses permanecessem com a revolução. Não
dava mais para contar com a direção dos velhos especialistas. Por
isso, era preciso ter, como programa da revolução, o avanço das for-
ças produtivas. Assim, uma direção, uma disciplina sob uma educação
que fosse socialista e pudesse superar a velha educação burguesa
(LENIN, 2018a, p. 6 – 7).
Neste sentido, Lenin direciona-se para a juventude, preocupando-
se com a educação. Para a formação do novo homem era necessária
a formação de uma nova escola, mas “deve-se saber distinguir o que
tinha de mau e de útil para nós a velha escola, deve-se saber escolher
dela o indispensável para o comunismo” (LENIN, 2018b, p. 3).
É a partir da velha sociedade, assim da velha escola e seus acú-
mulos, que se poderia superar e avançar na transformação das estru-
turas. Lunatcharski, em seu discurso no I Congresso de Toda a Rússia
para a instrução pública, busca avançar, apresentando as diferenças
que se tinha entre a velha educação e a educação revolucionária que,
aos poucos, se formava.
“Vou agora, depois desta apreciação geral, descrever o aparelho pelo
qual substituímos o antigo Ministério da Instrução Pública. Citarei
alguns dos decretos fundamentais que promulgamos. Primeiramente,
liquidamos os restos do antigo aparelho, suprimimos a função de pro-
curadores dos distritos, de diretores e inspetores das escolas. Esta re-
forma foi preparada durante vários anos, agora acabamos com ela.
Em seguida, foi necessário publicarmos um decreto proibindo o en-
sino do catecismo, eliminando o latim dos programas; revogamos os

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021


A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 63

certificados de maturidade, substituindo-os por certificados de fim de


curso, suprimimos as notas e introduzimos o ensino misto. Qualquer
pedagogo reconhece que estas reformas são uma condição indispen-
sável para uma escola minimamente normal” (LUNATCHARSKI,
2019, p. 4).
Entre outras medidas estava o fato de retirar o caráter burocrático
da escola, permitindo que as próprias massas pudessem eleger seus
professores, e a supressão da questão religiosa na educação. “Não fi-
zemos nada mais do que varrer da escola o velho pó, do que desem-
baraçá-la de certas taras que saltam aos olhos. Feito isto, é tempo
de imediatamente se passar a uma verdadeira reforma construtiva
da escola” (Ibidem)10. Pensava-se em uma educação revolucionária
que colocasse as massas, antes subjugadas, em direção à compreensão
das lutas de classes e da necessidade do desenvolvimento da revolu-
ção. Isso porque a revolução, para que fosse garantida, necessitava
estar na ordem do dia e tornar-se cotidiano das massas.
Para Lenin, era preciso aprender a ser comunista e esta era a tarefa
que direcionava para a juventude. Era necessário assimilar, além da
importância das palavras, a educação em seus laços com a vida prá-
tica. Assim, relacionar o estudo ao trabalho, indissociáveis entre si.
A educação da juventude deveria estar voltada para o trabalho para
desenvolver a disciplina revolucionária: compreendendo o trabalho
como necessário para a revolução, buscando romper com os velhos
preceitos, a velha ordem burguesa e a velha moral. Da mesma forma,
desenvolver uma nova lógica de organização livre da exploração.

10
Ainda assim, é preciso fazer “jus” à história e situar o pouco que sabemos sobre
Anátoli Lunatcharski. Isso porque, apesar, de início, se opor à velha burocracia do cza-
rismo para tratar da educação, acaba, depois, se convencendo por ela. Em 1930 é eleito
para a Academia de Ciências, quando a burocracia já era vitoriosa na União Soviética,
e, em 1933, é nomeado primeiro embaixador soviético na Espanha (Dicionário Político,
2019).
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“Tendes que fazer, de vós próprios, comunistas. A tarefa da União da


Juventude consiste em organizar a sua atividade prática de modo que,
estudando, organizando-se, unindo-se, lutando, esta juventude faça
a sua educação de comunista e a de todos os que a reconhecem como
guia. Toda a educação, toda a instrução e todo o ensino da juventude
contemporânea devem desenvolver nela a moral comunista”
(LENIN, 2018b, p. 6).

Logo, trata-se dessa moral, também, os princípios11, sendo que


estes também deveriam compor a educação da juventude. A educação
em sua totalidade, a educação não mais unilateral, fragmentada, mas
a educação para as várias esferas da vida humana. E a esta moral re-
volucionária cabe a luta e a expropriação dos exploradores, tal como
a socialização dos meios de produção e da riqueza.
“Esta geração só poderá aprender o comunismo se ligar cada passo
da sua instrução, da sua educação e da sua formação, à luta incessante
dos proletários e dos trabalhadores contra a antiga sociedade baseada
na exploração” (Ibidem, p. 8).

11
Princípios estes que compõem uma moral comunista, a qual deve desmascarar e su-
perar a velha moral burguesa. Assim, é a moral que deve servir à revolução. É a moral
que deverá destruir a opressão que se dava pela burguesia, legitimada pela crença no
divino. Assim, tratam-se de princípios voltados para fincar a moral sobre a própria so-
ciedade, estabelecendo sua compreensão como algo que não está à margem da socie-
dade de classes e da materialidade. O trabalho coletivo é um dos princípios
revolucionários para se edificar uma sociedade comunista. “O marxista revolucionário
não pode enfrentar sua tarefa histórica sem ter rompido moralmente com a opinião
pública da burguesia e de seus agentes no seio do proletariado. Esta ruptura exige
coragem moral de calibre bem diferente daquela dos que andam berrando ‘abaixo
Hitler, abaixo Franco!’. E é precisamente esta ruptura decisiva, profundamente me-
ditada, irrevogável, dos bolchevistas com a moral conversadora, seja da grande como
da pequena burguesia, que incute um medo mortal aos palavreadores da democracia,
aos profetas de salão, aos heróis de escrivaninhas” (TROTSKY, 1969, p. 33). A ques-
tão é que, diante disso, os agentes da moral permaneciam no seio da revolução como
uma condição da herança czarista, o que deveria ser causa de atenção dos revolucio-
nários.

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A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 65

Entre aquilo que um comunista deve saber, aquilo que deve apren-
der para ser um comunista, encontra-se a necessidade de entender o
que está acontecendo em sua volta, as leis do desenvolvimento para
compreender o avanço das forças produtivas na história da humani-
dade, etc. (KRUPSKAYA, 2017, p. 91 – 92). Isso implica conhecer
as formas de fazer avançar as forças produtivas. É preciso que o co-
munista entenda a sua relação no mundo da produção, e isso cabe a
uma educação que se proponha a ser socialista: compreender que as
lutas de classes ainda permanecem em um período de transição, e que
essas lutas precisam ser compreendidas para serem superadas.
Por isso, uma educação que se propõe a ser comunista não pode
se limitar à escola, tem o dever de prezar por uma vida coletiva no
campo, indústria e outros meios de produção. “Devemos ensinar as
crianças a abordar todos os fenômenos da vida social do ponto de
vista do ativista social coletivo” (Ibidem, p. 132). Uma educação que
se propõe a superar a lógica de produção individual, também, dos pe-
quenos proprietários.
Era preciso, a partir do pequeno camponês russo, que usufruía da
propriedade comum ao mesmo tempo em que seu trabalho era indi-
vidualizado, fazer superar essa relação e caminhar para a coletiviza-
ção da produção.
Algo concreto, na busca de superar a lógica da produção indivi-
dual, contrapondo-a ao ativismo coletivo, tratava-se da Colônia
Gorki: uma escola, localizada em uma zona rural da província de Car-
cóvia, que tinha como seu principal objetivo educar jovens infratores
e adolescentes que haviam perdido seus familiares durante o processo
revolucionário. Expressada a partir da direção do educador Anton Se-
mionovich Makarenko, propunha-se a aprender o comunismo na re-
lação entre a escola e o trabalho da vida cotidiana. Com isso, além
do ensino que recebiam, a leitura, as artes teatrais etc., todos os dias
precisavam lidar com o trabalho no campo e outras funções. Mais
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
66 Daniel Henrique Rodrigues

tarde, desenvolvem-se os conselhos para a organização coletiva do


trabalho. A Colônia Gorki, na intenção de assumir a sua responsabi-
lidade social, necessitava desenvolvê-la, também, entre os jovens.
Por isso, prezava-se por criar uma relação de organicidade entre os
educadores e os educandos, tal como uma organicidade com o cam-
pesinato; apesar de a colônia estar cercada por kuláks, o que, certa-
mente, colocava maiores empecilhos. Isso só poderia se dar através
da formação de um coletivo forte.
Ainda assim, nos primeiros dias, anterior ao processo de consoli-
dação da colônia, Makarenko, enquanto educador e dirigente peda-
gógico, teve dificuldades em assumir essa direção. Tinha que lidar
com uma nova educação de um novo homem. Seria a primeira vez
de sua pedagogia para um sentido socialista. Ainda não existia um
método pedagógico que pudesse lidar com a realidade que enfrentava
em seus primeiros dias na colônia.
“Quanto a mim, o resultado principal dessas leituras foi uma convic-
ção firme, e, subitamente, não sei por que, fundamental, de que nas
minhas mãos não existia nenhuma ciência nem teoria nenhuma, e que
a teoria tinha de ser extraída da soma total dos fenômenos reais que
se desenrolavam diante dos meus olhos. No começo eu nem sequer
compreendi, mas simplesmente vi que eu precisava, não de fórmulas
livrescas, as quais eu poderia aplicar aos fatos de qualquer maneira,
mas sim de uma análise imediata e de uma ação não menos urgente”
(MAKARENKO, 2012, p. 21 – 23).
Quanto a isso, é necessário reconhecer a necessidade da construção
de uma teoria retirada da vida material que ainda não havia sido ex-
posta pela história. Como já apontado, a educação socialista não po-
deria ser advinda de métodos livrescos, como da velha escola
(LENIN, 2018b, p. 5).
Outras dificuldades fizeram-se presentes em seu cotidiano. Uma
delas, de início, era que os colonistas não estavam nem um pouco in-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021
A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 67

teressados em serem dirigidos. Assim, não se dispunham às ativida-


des, ao trabalho e nem à disciplina. É aqui que Makarenko comete
um de seus equívocos: socar um dos jovens, como o mesmo teria
apontado (MAKARENKO, 2012, p. 25).
Apesar de seu desespero em não conseguir garantir a direção e a
pressão da necessidade em construir uma educação comunista, não
há como não apontar um grotesco limite. Isso para apontarmos que,
mesmo após a tomada do poder, em 1917, muitos problemas e con-
tradições continuaram presentes. Os resquícios que permaneceram
do czarismo, como os kuláks, considerando os limites, por ora faziam
florescer a burocracia e empacar o desenvolvimento.
Assim, tratava-se de uma revolução de relações vivas, contraposta,
ainda, pelas lutas de classes e que, a qualquer momento, poderia se
degenerar. Era necessário fazer avançar as forças produtivas para im-
pedir o que já vinha acontecendo e, como mostramos, a educação era
considerada uma chave para esse processo.
“… organizar o trabalho no interesse de toda sociedade comunista,
não somente em fábricas específicas, mas em todo o país. Tomando
o poder em suas mãos, os comunistas tomaram a organização da pro-
dução e distribuição. E nós vemos como, em cada passo, revela-se a
falta de hábitos de organização. Só pessoas excepcionalmente talen-
tosas permanecem à altura da tarefa, e em todos os lugares nos depa-
ramos com confusão e falta de conhecimentos básicos da ciência
organizacional” (KRUPSKAYA, 2017, p. 87).
De acordo com isso, também caminha Pistrak. A escola, numa
perspectiva revolucionária, não deve fazer do trabalho algo secundá-
rio, subordinado a um programa de estudos pelo qual deve se adaptar,
mas condição essencial e presente na escola, na busca por criar um
sentimento coletivista e a necessidade de assumir a responsabilidade
social. Assim, na escola, a perspectiva do trabalho coletivo deve estar

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68 Daniel Henrique Rodrigues

presente: desde a organização e limpeza do espaço, até as oficinais,


sobre as quais os educandos devem ter seu contato com os variados
ofícios, conhecer suas ferramentas de trabalho e técnicas.
“Numa oficina escolar, encontram-se todos os elementos da máquina
moderna e todas as particularidades características da produção in-
dustrial” (PISTRAK, 2011, p. 52).

Tratando-se do trabalho agrícola, a escola deve se colocar como van-


guarda. À medida que ela assume a sua função no campo e instrui os
educandos a fazer o mesmo; conhecendo e trabalhando sobre; é possí-
vel criar uma integração com os camponeses e ganhar a sua confiança;
o que também deve contribuir para a sua aliança com os operários e
superar a contradição entre cidade e campo (Ibidem, p. 57).
“Uma escola é boa quando ela é capaz de educar as crianças de tal ma-
neira que elas se importem com tudo que é público. A velha escola não
se importava com nada. Para a escola soviética tudo é de sua respon-
sabilidade” (KRUPSKAIA, 2017, p. 133).

Assim, para a escola soviética, o trabalho deveria ser de sua res-


ponsabilidade, tal como o desenvolvimento do novo homem e supe-
ração das velhas relações. Tratando-se da escola soviética, era uma
escola que se propunha a ser revolucionária, por meio de uma educa-
ção que se propunha a ser socialista e alcançar o desenvolvimento da
sociedade comunista. Isso para dizer que, o que temos é a escola, a
educação, como uma chave para a revolução e as lutas dos trabalha-
dores em âmbito mundial12.
12
Repare que se trata de “uma” chave, e não “a” chave. Assim, se coloca apenas como
mais uma determinação no processo revolucionário, o que não quer dizer que seja a
única. O que significa que a educação foi importante para superar as heranças que ad-
vinham da sociedade czarista até certo ponto. Porém, diferente da educação capitalista,
a educação relacionada ao trabalho campesino, operário e disposta a aprender as suas
forças produtivas que deveriam ser desenvolvidas.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021
A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 69

Sabemos, hoje, que a revolução russa, considerando seus grandes


avanços em determinados pontos, ainda assim os seus variados limi-
tes e problemas, caiu em muitas contradições históricas, como o es-
vaziamento dos conselhos camponeses, operários etc. Da mesma
forma, o fato é que se tinha muitos kuláks dominando o cenário cam-
ponês e, ainda assim, sendo assimilados pelos conselhos; o que fez
com que muitos deles perdessem o seu caráter revolucionário
(TROTSKY, 1980, p. 29).
O desenrolar dessas contradições fez com que a coletivização da
terra se tornasse expropriação dos camponeses pobres, dificultando
ainda mais o real trabalho coletivo (Ibidem, p. 30).
Tudo isso, que foi consequência da insuficiência de recursos e ma-
térias-primas e, também, da falta de conhecimentos básicos de orga-
nização, fez com que a revolução se perdesse e, junto disso, a
educação revolucionária. A União Soviética, que até então se pro-
punha e havia sido um Estado operário, deixou-se levar pelo buro-
cratismo de uma casta de “revolucionários”.
Dessa maneira, o que vemos, historicamente, é uma direção revo-
lucionária convencida pelo stalinismo. Este, para além da figura de
Joseph Stalin (1924 – 1953), envolvia todo um aparelho burocrático,
desde as bases às direções.
Como resultado disso, vemos a derrota daquilo que se propôs, um
dia, a superar o capitalismo e como hoje este sistema permanece pre-
sente na Rússia e em outros Estados que já tiveram o seu caráter de
repúblicas socialistas. Ainda assim, isso não inviabiliza a possibili-
dade de uma educação que venha a superar as relações burguesas, da
mesma forma que não inviabiliza uma educação revolucionária. Ape-
nas nos aponta os limites e contradições dos quais teremos que con-
tinuar lidando para alcançar a sociedade comunista a qual ainda não
alcançou o seu estágio desenvolvido.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
70 Daniel Henrique Rodrigues

3. La importancia del partido revolucionario


en ese proceso
É importante apontarmos que uma educação revolucionária não se
inicia com a instauração do socialismo e do Estado operário. Antes
disso, ela se dá na própria luta e emancipação da classe trabalhadora.
Ainda assim, os próprios trabalhadores, explorados diante dessa rela-
ção de produção, precisam se reconhecer enquanto classe; o que não
se dá da noite para o dia, consequência de suas condições.
Para isso que viemos a tratar da questão da consciência. “Não é a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a cons-
ciência” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94). Assim, se não é a consciên-
cia que determina a vida, mas o contrário, não há como negar que,
diante das relações burguesas, nas quais a burguesia é classe domi-
nante e que controla os meios de produção e a vida, deparamo-nos
com uma consciência burguesa. Isso porque, embora o trabalhador
não seja burguês, justo por ser trabalhador, acaba por reproduzir os in-
teresses da classe burguesa, enquanto esta, como classe dominante,
faz desses seus interesses e da sociedade em geral (Ibidem, p. 50).
É disso que se trata a ideologia – uma forma de mascarar a realidade
concreta, à medida que aquilo que é aparente se sobressai ao que é
concreto: neste caso, os antagonismos de classe. Assim, trata-se da
ideologia burguesa que impera na vida do trabalhador. Logo, a classe
trabalhadora, em sua espontaneidade, não é revolucionária.
A questão, diante disso, é como trazê-la a uma perspectiva revolu-
cionária. Qual a ferramenta para se fazer de uma classe trabalhadora
“em si”, isto é, que não tem consciência ou noção de sua posição his-
tórica, a uma classe trabalhadora “para si”, que compreende as suas
necessidades de classe e o seu caráter revolucionário? Isso a se pensar
a educação revolucionária diante do próprio capitalismo, das relações
burguesas de produção. Como se pensar a superação dessa educação
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021
A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 71
capitalista diante do próprio capitalismo? Ainda não vivenciamos um
Estado operário. Logo, não há como instaurar uma escola socialista.
Porém, mesmo a se pensar a formação dessa escola, no caso dos re-
volucionários russos, não se partiu do “zero”, mas considerou-se o
acúmulo da consciência para, inclusive, permanecer no avanço das
forças produtivas. A organização da revolução antecede a própria re-
volução em si.
Considerando a questão, Marx trata da relação que há entre base e
superestrutura. Pensar essa superestrutura é buscar compreender que
a classe trabalhadora não é dominada somente nos meios de produção,
durante o processo de trabalho. Mas, que essas condições e o controle
que a burguesia tem desses meios faz com que essa relação também
se estenda para além dos espaços de produção, compondo todas as es-
feras das relações humanas (1978, p. 130); assim, muito além da eco-
nomia (mesmo sendo esta determinante na relação do capital), a
cultura, a política, as relações jurídicas etc.; uma totalidade de muitas
determinações. Logo, trata-se de compreender que a classe trabalha-
dora busca ser convencida, a todo momento, pelo programa da bur-
guesia que vemos nas escolas, nos tribunais de justiça, na imprensa
etcétera.
“Com a transformação da base econômica, toda a enorme superes-
trutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração
de tais transformações, é necessário distinguir sempre entre a trans-
formação material das condições econômicas de produção, que pode
ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e outras formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo,
as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência
deste conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga o
que um indivíduo é a partir de sua própria consciência; ao contrário,
é preciso explicar esta consciência a partir das contradições da vida
material, a partir do conflito existente entre as forças produtivas so-
ciais e as relações de produção. Uma formação social nunca perece
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
72 Daniel Henrique Rodrigues

antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as


quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produ-
ção mais adiantadas jamais tomarão o lugar antes que suas condições
materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha
sociedade. É por isso que a humanidade só se propõe a tarefas que
pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, chegar-se-á à
conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições ma-
teriais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no
processo de seu devir” (1978, p. 130).

Neste sentido, Marx pensa a necessidade de disputar a consciência


dos trabalhadores, trazendo-os de uma perspectiva burguesa a uma
perspectiva revolucionária.
Trata-se, assim, de trabalhar as formas ideológicas pelas quais o
trabalhador toma consciência. Para isso, tratamos de algo essencial
nesse processo e, ao mesmo tempo, indispensável, que é o partido re-
volucionário.
O partido revolucionário, pensado por Marx e Engels, e mais tarde
desenvolvido, em sua maturidade, por Lenin, é a ferramenta que deve
servir às lutas dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, sintetizá-las em
uma perspectiva de mudança estrutural.
Os trabalhadores, deixando-se dominar pela ideologia burguesa,
tal como agir por seus próprios pensamentos para promover um as-
censo ou uma luta, estão fadados a reproduzir a ideologia burguesa,
sem compreender que a sua consciência é determinada por uma rela-
ção material. Isso porque, espontaneamente, a classe trabalhadora co-
loca-se sob uma perspectiva burguesa. Assim, não se pode disputar a
sua consciência, também, de forma espontânea. E disputar essa cons-
ciência implica em colocar uma perspectiva em oposição à ideologia
burguesa. Assim, trata-se também de uma educação revolucionária,
de se buscar fundamentar uma disciplina.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021
A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 73

“Já que não se pode sequer falar de uma ideologia independente, ela-
borada pelas próprias massas operárias no curso de seu movimento,
o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideolo-
gia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade não elaborou
nenhuma “terceira” ideologia; ademais, em geral, na sociedade cor-
tada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideo-
logia à margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o
que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se
dela, significa fortalecer a ideologia burguesa. Fala-se de esponta-
neidade. No entanto, o desenvolvimento espontâneo do movimento
operário marcha precisamente para a subordinação à ideologia bur-
guesa, marcha precisamente pelo caminho do programa do “Credo”,
pois o movimento operário espontâneo é trade-unionismo, é Nur-Ge-
werkschaftlerei, e o trade-unionismo implica exatamente na escravi-
dão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, a nossa tarefa,
a tarefa da social-democracia, consiste em combater a espontanei-
dade, em fazer com que o movimento operário abandone essa ten-
dência espontânea do trade-unionismo a se abrigar sob a asa da
burguesia e em atraí-lo para a asa da social-democracia revolucioná-
ria” (LENIN, 2015, pp. 90-91).
Trata-se dessa disciplina revolucionária uma organização que en-
volva as forças de seus militantes para se pensar, a todo instante, as
necessidades históricas da classe, os conflitos e a construção de uma
sociedade comunista. Assim, a formação de quadros, ou seja, profis-
sionais revolucionários que possam garantir o alcance às necessidades
das massas (Ibidem, p. 175).
Diante disso, a necessidade de partido centralizado – com base na
organização dos militantes, e democrática no sentido de discussão in-
terna. Primeiro se discute, horizontalmente, e a partir disso tira-se
uma política hierarquicamente centralizada. É tarefa das direções ga-
rantir que as políticas mantenham-se e se efetivem.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
74 Daniel Henrique Rodrigues

Por isso, a necessidade de se formar boas direções, pois estas de-


verão lidar com uma crise histórica13.
O partido revolucionário já vinha na perspectiva de disputar a cons-
ciência e educar a classe trabalhadora para o socialismo antes mesmo
de ocorrer a instauração de um Estado operário na Rússia. Uma das
formas que utilizou, como ponto de partida e elemento essencial, foi
a construção de um jornal socialista. “... não há outro meio para edu-
car pessoas para formar organizações políticas fortes senão um jornal
para toda a Rússia” (LENIN, 2010, p. 237). Desde então, coloca-se
a necessidade da agitação política e da propaganda revolucionária.
Sendo um ponto de partida, abria possibilidades para ampliar o tra-
balho em outras escalas, além da intervenção e direção de greves, ma-
nifestações etc.
“Num momento em que a importância das tarefas da social-democracia
é rebaixada, o “trabalho político vivo” só pode começar exclusiva-
mente através de uma agitação política viva, impossível de se realizar
sem um jornal para toda a Rússia, que apareça frequentemente e se di-
funda de forma regular” (Ibidem, p. 239).
Dessa forma que o partido, para disputar a consciência dos trabal-
hadores, deve se colocar na linha de frente, estando disposto à edu-
cação das massas e de sua vanguarda. Um ponto chave para
permanecer organizando os trabalhadores na perspectiva revolucio-
nária: “... poderemos permanentemente desenvolver, aprofundar e

13
Uma crise histórica faz referência ao fato de que, diante das contradições históricas
da humanidade, o que inclui a contradição entre forças produtivas e relações de pro-
dução, o sujeito revolucionário, no caso a classe trabalhadora, vê-se perdido e sem
uma direção política que o faça compreender a necessidade de uma mudança estrutural
que possa ir de acordo com as novas necessidades que surgem em relação ao avanço
da tecnologia, das técnicas de trabalho e da produção humana. Logo, a humanidade
encontra-se perdida em meio às suas crises, deparando-se com a ausência de perspec-
tiva histórica e tendo que lidar com aquilo que acredita ser inevitável. “A crise histórica
da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária” (TROTSKY, 2017. p. 1).

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021


A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 75

alargar a organização (isto é, a organização revolucionária sempre


disposta a apoiar todo protesto e toda explosão” (Ibidem, p. 239 –
240). Com isso, dirigir os processos e impedir o seu espontaneísmo,
até que as condições históricas permitissem a tomada do poder e a
organização do modo de produção socialista.
Mesmo após a instauração do Estado operário foi necessário pen-
sar questões referentes às dificuldades e às lutas de classes. Isso por-
que a classe trabalhadora e os camponeses, em sua maioria, dirigidos
pelo processo, precisavam compreendê-lo para que, assim, pudessem
compreender também a revolução, e não ficar aquém da história.
Somente desenvolvendo essa consciência revolucionária é possível
fazer com que as massas, antes desorganizadas, entendam a necessi-
dade da organização e participem do processo de consolidação da
base e superestrutura do novo regime social. Uma educação que pu-
desse e devesse ser revolucionária, na intenção de desenvolver a au-
tonomia das massas para sua participação política, não poderia estar
destoada das questões diretivas do partido revolucionário.

Consideraciones finales
É neste sentido que nossa proposta compreende a Revolução
Russa, tal como a educação que se buscou desenvolver, contrapondo-
a à velha educação e aos problemas que assolavam a maior parte da
população da Rússia. Junto disso, a importância de tratar a revolução
em seus elementos estruturais, considerando as lutas de classes, os
estágios de desenvolvimento e o seu atraso tecnológico para, diante
de suas contradições, pensar o desenvolvimento de uma educação
que, para além da sala de aula e da formação de uma intelectualidade,
fizesse relação direta com a vida prática; ou seja, uma educação que
conviesse a uma mudança estrutural. A Revolução Russa, diante dessa
proposta e tratando-se de algo histórico concreto com relação a essa
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐
76 Daniel Henrique Rodrigues

mudança, ajuda-nos a situar historicamente e a pensar a educação


como um elemento determinante e omnilateral, abordando todo o pro-
cesso. Além do mais, considerar as contradições e os entraves que
devem ser superados para permanecer avançando com a revolução.
A escola é parte importante desse processo, já que sistematiza essa
educação revolucionária. Mas, essa educação não deve estar destoante
do caráter diretivo de um partido revolucionário, pois este dirige as
massas e as traz para a compreensão da necessidade da revolução.
Ao mesmo tempo que se trata de um mecanismo importante para se
superar uma educação unilateral, relacionando a necessidade da re-
volução com a perspectiva de uma educação revolucionária. Perma-
necer disputando a consciência da classe em relação às heranças que
permanecem para, assim, superá-las. Diante disso, a história coloca-
nos perspectivas de mudança, mesmo para um momento atual de re-
trocessos na educação.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021


A educação e a escola russa depois da revolução de 1917 77

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***

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 53‐79 ‐ Agosto de 2021 ‐


D ebate
Sobre a ditadura
do proletariado
AS BASES SOCIOECONÔMICAS
DA DITADURA DO PROLETARIADO

Marcos Margarido - Brasil

A compreensão do que é a ditadura do proletariado é crucial


para a elaboração programática de um partido revolucionário. Não
é por acaso que Trotsky resumiu o programa em 3 palavras: “dita-
dura do proletariado”. Por outro lado, enquanto o stalinismo de-
turpou este conceito a tal ponto que considera ditaduras capitalistas
como em Cuba e na China como a concretização da ditadura do
proletariado, a maioria das correntes trotsquistas abandonou este
conceito em nome da democracia em geral.
Este tema já foi objeto de discussão nos números 14 e 15 da Mar-
xismo Vivo e estará na pauta do próximo congresso mundial da
LIT. Este texto tem o objetivo, sem qualquer pretensão de “palavra
final”, de abordar alguns aspectos ainda não aprofundados na atual
discussão, a partir da crítica de alguns aspectos do artigo Algumas
questões sobre ditadura do proletariado, de Hans Meyer, publicado
na MV 16. Ele próprio é uma crítica a uma publicação anterior, que
definia, segundo Meyer, a ditadura do proletariado “a partir do
superestrutural”.
Para contrapor esta definição superestrutural, Hans Meyer diz
ser necessário estudar a estrutura da sociedade, e não as formas
superestruturais nas quais ela se apresenta. Para isso, baseia todo
seu argumento na questão do poder da classe operária, tenha ele
um reflexo superestrutural “revolucionário” ou “burocratizado”.
Chegamos, assim, a um impasse. Pois o poder de uma classe tem
sua expressão em um Estado e o Estado é, ele próprio, uma super-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
82 Marcos Margarido

estrutura. Então, fugimos da análise superestrutural para basear-


nos em outra superestrutura. Em outras palavras, analisamos o Es-
tado operário a partir do poder da classe operária, isto é, do próprio
Estado.
Como diz Engels, em carta a Schmidt (27 de outubro de 1890),
quando responde à acusação de que ele e Marx só levavam em
conta a base econômica das sociedades:
“Portanto, se Barth opina que negamos que os reflexos políticos,
etc., da tendência econômica tenham qualquer efeito sobre essa
tendência em si, ele está simplesmente lutando contra moinhos de
vento… Caso contrário, por que deveríamos lutar pela ditadura
política do proletariado se o poder político é economicamente im-
potente? O poder (isto é, o poder estatal) também é uma força eco-
nômica!”.
Aqui, o poder estatal (a ditadura do proletariado) é definido
como uma superestrutura da sociedade (para fins de análise) que,
obviamente, exerce uma influência enorme sobre a base econômica
desta sociedade, mas sempre dentro de limites, pois “de acordo com
a visão materialista da história, o fator determinante na história é,
em última análise, a produção e reprodução de vida real” (carta a
Bloch, 21-22 de setembro de 1890).
Segundo Ricci e Ayala (A concepção materialista da história e
nosso debate, neste número), é melhor dizer que a estrutura socioe-
conômica condiciona a superestrutura: “É um condicionamento e
não uma determinação. A estrutura define os limites, as possibilida-
des da superestrutura, em uma forma mediata, não imediata”.
Procuro, aqui, partir da “produção e reprodução da vida real”
para tentar compreender o que é a ditadura do proletariado, e não
diretamente da questão do poder. Para isso é necessário recorrer
às definições de suas bases socioeconômicas feitas por Marx no su-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 83
perconhecido Crítica do Programa de Gotha (1875), que Lenin tam-
bém analisou no Estado e revolução, e cujos conceitos tentou aplicar
após a tomada do poder.
Marx e as bases socioeconômicas
da ditadura do proletariado
Marx afirma que, na primeira fase após a tomada do poder (a
ditadura revolucionária do proletariado), o produto social total será
a soma dos trabalhos individuais e que cada trabalhador receberá
o correspondente a seu trabalho (medido em horas de trabalho)
após serem efetuados várias deduções no produto social total:
Primeiro, os recursos para a substituição dos meios de produção
consumidos; segundo, a parte adicional para a expansão da produ-
ção; terceiro, um fundo de reserva ou segurança contra acidentes,
prejuízos causados por fenômenos naturais etc. Após essas dedu-
ções, feitas por necessidades econômicas, ocorrerão outras feitas
da parcela destinada ao consumo: para cobrir custos de adminis-
tração; para o que chamamos hoje de serviços públicos; e para os
incapacitados para o trabalho.
A primeira observação a ser feita é a mudança crucial ocorrida
no processo de produção após a expropriação da burguesia: des-
aparece a figura da mais-valia, ou trabalho não pago, embolsado
pelo capitalista individual. As deduções retiradas do trabalho do
“produtor em sua qualidade de indivíduo privado reverte-se direta
ou indiretamente em seu proveito na sua qualidade de membro da
sociedade”1.
Porém, no processo de distribuição as coisas mudam de figura.
Não ocorre mais a troca de mercadorias no mercado, o trabalho re-
alizado na produção não aparece mais como valor dos produtos,
1
Marx, K. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, p. 29-
33. Todas as citações desta seção são desta mesma obra, a não ser que informada outra
fonte.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
84 Marcos Margarido

pois o trabalho aparece agora diretamente como parte integrante do


produto social total, pois não há apropriação individual, nem dos
produtos do trabalho (ou, o que dá no mesmo, da mais-valia) nem
do salário:
“Ele recebe da sociedade um certificado de que forneceu um tanto
de trabalho (depois da dedução de seu trabalho para os fundos co-
letivos) e, com esse certificado, pode retirar dos estoques sociais
de meios de consumo uma quantidade equivalente a seu trabalho.”

Porém, permanece a figura da troca: as horas de trabalho reali-


zadas são trocadas por produtos equivalentes a essas horas de tra-
balho, que não são mais horas de trabalho socialmente necessárias
(baseadas na produtividade média), mas diretamente as horas de
trabalho realizadas pelo indivíduo. Mas, “o igual direito é ainda, de
acordo com seu princípio, o direito burguês…”.
Para que isso fique mais claro, recorro ao exemplo dado pelo
próprio Marx. Um trabalhador é casado com filhos, outro é solteiro.
Se ambos trabalharem as mesmas horas de trabalho, receberão uma
quantidade igual de produtos equivalentes, “um recebe, de fato, mais
do que o outro, um é mais rico do que o outro”.
Isso ocorre porque, nesta fase, as forças produtivas ainda não
permitem uma abundância suficiente que propicie a todos receber
de acordo com suas necessidades, uma característica do comu-
nismo.
Somente nessa particularidade reside a afirmação de Marx de
que a nova sociedade traz “de nascença as marcas econômicas, mo-
rais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu”.
Pois, embora desapareça o fetichismo próprio da produção capita-
lista, que tem no dinheiro sua máxima expressão, esta marca eco-
nômica (a troca) e seus reflexos morais e espirituais permanecem
até que se atinja o estágio do comunismo.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 85

Se for possível resumir ainda mais a elaboração crucial de Marx


sobre as bases socioeconômicas da ditadura do proletariado, po-
demos dizer que no processo de produção desaparece a produção
e reprodução do valor, baseado no tempo de trabalho socialmente
necessário, enquanto na distribuição permanece a troca entre pro-
dutos, embora baseada no tempo individual de trabalho. No en-
tanto, desaparece a oposição entre produção e distribuição, pois a
“mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma
forma, agora ele a obtém de volta em outra forma”.
Daqui, tiro três conclusões que interessam à continuidade da ex-
posição:
1. A herança capitalista e seus reflexos na consciência do proleta-
riado têm uma base socioeconômica específica. Não se pode atri-
buir toda e qualquer ocorrência “anormal” nesta primeira fase da
sociedade comunista à herança capitalista. Não é como se o capi-
talismo continuasse na cabeça das pessoas, embora a exploração
capitalista tenha acabado. Nós somos materialistas, e o fim da ex-
ploração causa mudanças imediatas nas consciências individuais,
que permitiram, por exemplo, a abnegação infinita da classe ope-
rária na defesa de seu Estado durante a guerra civil na Rússia e, tal-
vez, a longevidade do próprio Estado operário, apesar de todo
trabalho de sabotagem da burocracia stalinista, iniciado desde o
primeiro dia de usurpação do poder político.
2. Não existe um tempo pré-determinado de duração da ditadura
do proletariado. Este será correspondente ao tempo de desenvol-
vimento das forças produtivas necessário para a produção em
abundância, levando ao fim do sistema de troca na distribuição.
Portanto, depende da situação das forças produtivas em cada país.
Este tempo será bastante curto num país como os Estados Unidos
e mais longo nos países semicoloniais de desenvolvimento econô-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
86 Marcos Margarido

mico atrasado (o que não significa que, necessariamente revolução


ocorra primeiro nos países mais adiantados). Ao se atingir o estágio
de abundância econômica, a ditadura do proletariado perde suas
funções e desaparece. Então, não é possível afirmar, de forma ge-
nérica, que “os interesses antagônicos de classe… continuarão se ex-
pressando por muito tempo na sociedade transicional”2, mesmo se
levarmos em conta a situação internacional e o cerco do imperia-
lismo.
3. “O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desen-
volvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”. Esta afir-
mação feita por Marx a respeito da troca de produtos equivalentes
teve importância decisiva para a evolução da ditadura do proleta-
riado na Rússia, que veremos a seguir.

A ditadura do proletariado na Rússia e a NEP


O programa do partido bolchevique adotado em 1919 dizia que
“no domínio da distribuição, a tarefa do poder soviético insiste infle-
xivelmente na substituição do comércio por uma repartição dos pro-
dutos, organizada em uma escala nacional com base num plano de
conjunto”. Era a tentativa de aplicar os ensinamentos de Marx à
jovem república operária.
Mas isto foi feito sobre uma base econômica muito atrasada e
em plena devastação causada pela guerra civil. E este “‘comunismo
de guerra’ - determinado pela extrema miséria, pela ruína, pela gue-
rra”3 estava levando o país à fome causada pela sabotagem do nu-
meroso campesinato proprietário de terras, devido às requisições
2
Meyer, H. Algumas anotações sobre a ditadura do proletariado, Marxismo Vivo n. 16.
São Paulo: Ed. Marxismo Vivo, 2021, p. 185.
3
LENIN, V. I. Sobre o imposto em espécie, em A nova política econômica (NEP). São
Paulo: Global Editora, 1987, p. 141-182. Todas as citações de Lenin nesta seção são
desta mesma obra, a não ser que informado outra fonte.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 87

forçadas de grãos. Surge uma classe de pequenos proprietários no


seio do Estado operário, sem cuja colaboração seria impossível des-
envolver as forças produtivas na transição ao comunismo.
A norma ideal seria “entregar ao camponês produtos industriais
em troca de todo o trigo que necessitamos” (Lenin). Mas isso era im-
possível, e foi implantado o imposto em espécie. Isto é, a cobrança
de um mínimo indispensável de trigo para o exército e os operários,
sendo o resto comercializado pelos próprios camponeses.
Também foi permitida a restauração da pequena indústria, com
proprietários capitalistas. Disso resultava, segundo Lenin, “o ressur-
gimento da pequena-burguesia e do capitalismo baseado na limitada
liberdade de comércio”.
Lenin chamou esta situação provisória de capitalismo de Estado,
uma etapa necessária – e um recuo - da passagem do capitalismo
privado ao socialismo. E utilizava como modelo a Alemanha: “A Ale-
manha e a Rússia encarnavam em 1918, do modo mais patente, a re-
alização material das condições econômico-sociais, produtivas e
econômicas do socialismo de um lado, e de suas condições políticas,
de outro”.
Não há dúvidas de que uma revolução socialista na Alemanha
em 1918 encontraria bases econômicas ideais para uma rápida
transição ao comunismo, isto é, para a execução prática das con-
cepções teóricas de Marx sobre a ditadura do proletariado. Mas este
desenvolvimento não existia ainda na Rússia dos sovietes.
Mas, ao contrário da Alemanha, “o Estado soviético é um Estado
no qual se encontra assegurado o poder dos operários e camponeses
pobres”, que correria um enorme risco ao reintroduzir no país o di-
reito burguês na produção, a extração de mais-valia pelos pequenos
capitalistas e camponeses proprietários, que, a partir da liberdade
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
88 Marcos Margarido

limitada no comércio, poderiam contratar operários e camponeses


pobres para produzir os produtos tão necessitados pelo Estado
Operário. A lei do valor estava de volta, e quebrava a primeira con-
dição de Marx para a transição da ditadura do proletariado.
Isto foi assim porque o direito nunca pode ultrapassar a forma
econômica da sociedade. Não era possível, ainda, eliminar a lei do
valor em uma sociedade que tinha uma classe pequeno-burguesa
numerosa, embora fosse possível restringi-la.
E Lenin esperava que o desenvolvimento das forças produtivas
sob o “capitalismo de Estado”, que tinha em comum com o socia-
lismo “a contabilidade e o controle por todo o povo” (Lenin), pudesse
criar as condições para uma transição socialista mais de acordo
com as premissas teóricas.
O capitalismo de Estado4 colocava, então, o Estado operário em
uma situação extremamente contraditória. A grande indústria sob
o controle direto do Estado, onde a lei do valor não vigorava, ao
lado de um setor de proprietários rurais e industriais, que opera-
riam sob sistemas de concessão ou de arrendamento, onde a lei do
valor funcionaria, pois o capitalista estabeleceria “um acordo com
o poder proletário tendo a finalidade de obter lucros extras, superlu-
cros, ou tendo a finalidade de obter uma matéria-prima que não po-
deria obter ou dificilmente conseguiria de outro modo” (Lenin).
Estava em jogo a existência do Estado operário, a espera passiva
de uma melhoria através do “comunismo de guerra” levaria ao fim
do poder proletário. O que a guerra civil não conseguiu fazer, a si-
tuação interna insuportável do país – a fome, a ruína econômica –
faria.

4
Esta categoria dá margem a muita confusão, mas a utilizo no contexto afirmado por
Lenin, o de um estado onde o poder operário está assegurado.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021


As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 89

Preobrazhenski colocava esta questão na forma de uma contra-


dição entre forças antagônicas:
“De um lado, a lei natural que preside o desenvolvimento da pe-
quena produção mercantil, que cria, a partir do nada, relações ca-
pitalistas de produção, ou que restabelece processos ou redes
capitalistas interrompidos pela Revolução de Outubro. De outro,
a lei natural que preside o desenvolvimento da sociedade socialista,
cuja base é a grande indústria com a orientação para a ampliação
no exterior da brecha aberta pela Revolução de Outubro e com
tendência à extensão da economia socialista à custa da pequena
burguesia periférica e, me atrevo a expressar-me deste modo, do
cerco pelo capitalismo médio no interior do país”5.
E faz uma previsão dos desenvolvimentos econômicos e políticos
desta luta entre os dois lados antagônicos, tanto no Estado Soviético
quanto a influência do imperialismo através do comércio. Infeliz-
mente, não é possível fazer ao menos um resumo de sua análise,
por razões de espaço. Limito-me à sua previsão sobre a solução
final do conflito, que ele previa para um prazo de 3 anos a partir
da adoção da NEP (1921):
“A tarefa do poder soviético é de utilizar esta ampliação no interesse
do desenvolvimento das forças produtivas do país, impedindo nos-
sos adversários políticos de utilizá-los para derrubar o poder dos
sovietes. ... o poder soviético não deve abandonar nenhuma de suas
posições políticas – que é evidente – como, tampouco, nenhuma
das posições econômicas decisivas, particularmente aquelas que são
chaves, como por exemplo a grande indústria, os bancos, o comér-
cio exterior,…”6.
E, obviamente, o resultado final seria definido pela luta entre a
lei do valor e o planejamento socialista.
5
Preobrazhenski. As perspectivas da Nova Política Econômica, em A nova política eco-
nômica (NEP). São Paulo: Global Editora, 1987, p. 231- 252.
6
Idem.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
90 Marcos Margarido

Sua previsão não se concretizou, a NEP duraria até 1929, quando


a economia soviética vivia uma crise, com o fortalecimento expres-
sivo da pequena-burguesia rural, quando Stalin interrompeu-a de
forma violenta. Os anos 30 testemunharam o auge do desenvolvi-
mento econômico da União Soviética, o Estado operário erigido
em “socialista” pela constituição de 1936.
Este desenvolvimento econômico não se deu sem contradições,
devido à permanência da lei do valor em setores da produção. Um
deles, já mencionado, foi o crescimento da pequena burguesia rural.
O outro foi o crescimento da burocracia estatal.
Em 1921, Lenin já caracterizava o aumento ameaçador do bu-
rocratismo nas funções estatais e creditava-o ao “fracionamento, a
dispersão do pequeno produtor, sua miséria, sua falta de cultura, a
falta de comunicações, o analfabetismo, a falta de intercâmbio entre
a agricultura e a indústria, a falta de ligação e interação entre elas”.
E destacava que a solução era superar a herança deixada pela guerra
civil com o desenvolvimento da pequena indústria, “sem o temor
do capitalismo” e “desenvolver por todos os meios e a qualquer custo
a troca”.
Porém, cerca de 1 ano depois (e nos anos seguintes), a burocracia
estatal havia aumentado, apesar da melhoria econômica. Por exem-
plo, na quarta sessão do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia
(um órgão dos Sovietes), em 31 de outubro de 1922, ele afirma:
“Em agosto de 1918, fizemos um censo dos funcionários públicos
em Moscou. Obtivemos um total de 231.000 funcionários estatais
e soviéticos... Recentemente, em outubro de 1922, fizemos outro
censo na crença de que tínhamos cortado esses funcionários infla-
dos e que os números certamente seriam menores. O número ob-
tido, no entanto, foi de 243.000”.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021


As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 91
E previa anos de trabalho para conseguir a redução do aparato
estatal, uma luta infrutífera que se tornou um de seus principais
objetivos até sua morte em 1924. Cabe, aqui, lançar uma dúvida: o
quanto a introdução do direito burguês em setores da produção,
principalmente no setor-chave da produção agrícola, tinha contri-
buído para o aumento do aparato? A previsão mais pessimista de
Preobazhenski, de uma derrota da ditadura do proletariado pelo
avanço da pequena burguesia rural poderia se confirmar?
Mas, também, surge uma certeza: Lenin nunca igualou o forta-
lecimento do aparato estatal com o fortalecimento da ditadura do
proletariado. Perseguiu até o fim a realização prática da elaboração
teórica de Marx e Engels, de que o Estado operário deveria perecer
e para isso era necessário fazê-lo reduzir em tamanho.

A revolução traída
A dúvida lançada acima talvez tenha sido resolvida por Trotsky
em A revolução traída, sua obra maior de análise da União Sovié-
tica. Trotsky afirma:
“Atrasando a industrialização e prejudicando a grande maioria dos
camponeses, a política a favor do kulak, desde 1924-1926, revelou
inequivocamente as suas consequências políticas: inspirou na pe-
quena burguesia das cidades e dos campos uma consciência de
classe extraordinária, levou-a a apoderar-se de numerosos Sovietes
locais; assim aumentava a força e a segurança da burocracia; opri-
mia cada vez mais pesadamente os operários; acarretava a repres-
são total de toda democracia no partido e na sociedade soviética.”7
(grifos meus)
Isso se deu pouquíssimo tempo após as advertências de Lenin e
logo após sua morte, mas antes da consolidação da burocracia sta-
7
TROTSKY, L. A revolução traída. San Pablo: Editora Sundermann, 2005, pp. 59-60.
Las demás citas de Trotsky en esta sección son parte de la misma obra, excepto que se
indique otra fuente.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
92 Marcos Margarido

linista no poder, que ocorreu em 1927, quando a Oposição de Es-


querda foi impedida de participar das celebrações públicas do 10º
aniversário da revolução com suas palavras de ordem próprias e
praticamente excluída do 15º Congresso do partido, em dezembro,
devido à verdadeira caça a seus aderentes, promovida por Stalin.
Finalmente, a Oposição de Esquerda foi expulsa do PCUS.
E, após 20 anos de sobrevivência, Trotsky faz um resumo do que
era o Estado operário russo:
“Seja qual for a interpretação que se der sobre a natureza do Estado
soviético, uma coisa é incontestável: ao fim de seus vinte primeiros
anos, está longe de ter agonizado, nem mesmo começou a agoni-
zar: pior, tornou-se um aparelho de coação sem precedentes na
história; a burocracia, longe de desaparecer, tornou-se uma força
incontrolada que domina as massas…”.
Aparentemente, estamos frente a um “beco sem-saída”, pois a
necessidade econômica levou a restabelecer a lei do valor em seto-
res da produção (que, é claro, não ficaram estanques nestes setores)
para salvar a república soviética de seu próprio atraso econômico,
mas isto levou a um fortalecimento da burocracia estatal, base so-
cial da burocracia stalinista que usurpou o poder e, a partir daí,
causou uma aceleração do desenvolvimento desta burocracia para
consolidar seu poder.
Porém, como diz Trotsky, “o erro teórico praticado pelo partido
governante [as esperanças no comunismo de guerra, nda] ficaria
completamente inexplicável se fosse perdido de vista que todos os cál-
culos se fundaram, na época, sobre o aguardar de uma vitória pró-
xima da revolução no Ocidente”.
Mas isto não aconteceu devido à ação da social-democracia na
Alemanha que, após ocupar o vazio de poder deixado pelo fim do
império, devotou-se a desviar a revolução de 1918 para o caminho
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 93

da democracia burguesa e derrotar pelas armas a revolução de


1923. Por isso, em lugar de uma ditadura do proletariado, o que re-
sultou na Rússia foi a ascensão de um aparelho independente das
massas, a burocracia. A esse respeito, Trotsky afirma ironicamente:
“nada mais resta à Internacional Comunista senão proclamar que o
socialismo é o ‘poder da burocracia mais um terço de eletrificação
capitalista’”.

Diferentes tipos de Estados operários


Meyer afirma em seu artigo que é um erro separar a categoria
da ditadura do proletariado da categoria de Estado operário, con-
forme a argumentação de Morales. Esse erro ocorreria porque Mo-
rales teria uma interpretação unilateral da ditadura do proletariado,
que ele enxerga apenas como de transição ao socialismo.
No entanto, se considerarmos a caracterização de um Estado
pelas relações de produção dominantes neste estado, veremos que
existem diferentes tipos de estados burgueses. Tivemos Estados
burgueses democráticos e Estados burgueses nazistas ou fascistas.
A base econômica é a mesma, relações de produção capitalistas,
mas são tipos de Estados diferentes, embora, para fins de análise,
costumamos dizer que ambos são estados burgueses, mas com re-
gimes diferentes.
O que impede que existam diferentes tipos de Estados operários?
Trotsky pensava dessa forma. Ele dizia que o Estado operário sur-
gido da revolução de outubro tinha um duplo caráter, socialista,
por defender a propriedade coletiva dos meios de produção, e bur-
guês, devido à aplicação do direito burguês na repartição dos bens.
Ao não ter ocorrido em um Estado capitalista avançado, “é muito
mais exato chamar o atual regime soviético, com todas as suas con-
tradições, não de socialista, mas de transitório entre o capitalismo e
o socialismo, ou preparatório para o socialismo” (p. 74-75). Isto é,
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
94 Marcos Margarido

um tipo de Estado específico e prévio à ditadura do proletariado.


Aqui, veremos que “socialismo” corresponde ao “estágio inferior
do comunismo” de Marx, isto é, à ditadura do proletariado. Esta
definição devia-se, mais uma vez, ao fato de que o rendimento re-
lativo do trabalho era muito baixo. “Uma economia socializada que
ultrapassasse tecnicamente o capitalismo teria realmente assegurado
um desenvolvimento socialista automático de certo modo, o que, in-
felizmente, não pode, de maneira alguma ser dito da economia so-
viética”.
Portanto, do ponto de vista teórico, não há nenhum impedi-
mento para definir diferentes tipos de estados operários, que abar-
cariam sociedades com a predominância da propriedade coletiva
dos meios de produção, entre os quais a ditadura do proletariado
seria uma expressão particular. Outra expressão particular do Es-
tado operário é o Estado operário surgido da realidade soviética
após sua completa burocratização, um Estado operário (socialista
e burguês, nas palavras de Trotsky) onde a lei do valor estende-se
a todos os setores e os sovietes são totalmente controlados pela bu-
rocracia.
Segundo Rodolsky, “… hoje em dia, numerosos economistas do
bloco soviético elevam precisamente a lei do valor… ao papel de
princípio socialista de produção…” pois, “a partir da circunstância
de que também a sociedade socialista terá que distribuir as quan-
tidades de trabalho social que se acham à sua disposição e medi-
las pelo tempo de trabalho, deduzem que também no socialismo
prevalecerá a categoria econômica do valor…”8.
A tais economistas soviéticos da década de 1960, permanecem
válidas as palavras de Trotsky à casta dirigente de 1936, ao comen-
tar a nova constituição e a afirmação de um dirigente soviético, de
8
Rosdolsky, Roman. Génesis y estructura de El Capital de Karl Marx. México: Siglo
Veintiuno Editores, 1989, p. 617.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 95
que o rublo teria se tornado o verdadeiro meio de realizar o prin-
cípio socialista da remuneração do trabalho: que estava na hora de
reconhecer abertamente, na nova constituição, que essas “normas
burguesas do trabalho e de distribuição predominam na União So-
viética”, em vez de afirmar que o país havia chegado ao socialismo,
pois o “rublo é o ‘verdadeiro meio’ de aplicar o princípio capitalista
da remuneração do trabalho, embora baseado nas formas socialistas
de propriedade”.

O “fortalecimento” da ditadura do proletariado


Meyer afirma em seu texto que, “Para Moreno, seguindo a análise
de Trotsky, todos esses fatores, entre os quais a existência do impe-
rialismo é o determinante, fizeram que, em vez de se iniciar a extin-
ção do Estado, se impusesse o fortalecimento do Estado operário e
portanto da ditadura do proletariado”.
O que significa o “fortalecimento” do Estado operário? Moreno
afirmava ser esse fortalecimento uma necessidade pois, como ex-
plicar de outro modo, se todos os Estados operários que surgiram
haviam aumentado de tamanho, e não diminuído? E deduz daí a
existência, obrigatória enquanto existir o imperialismo, de uma pri-
meira etapa de fortalecimento da ditadura do proletariado. Essa é
uma contradição em termos, com a qual não se pode concordar.
Como já vimos, Lenin lutou permanentemente em seus últimos
anos de vida contra a expansão do aparato estatal, que creditava à
falta de cultura do proletariado soviético e ao atraso das forças pro-
dutivas. O aumento do aparato estatal era contraditório com a pró-
pria ditadura do proletariado, não era uma necessidade, mas um
inimigo a ser combatido.
O surgimento da burocracia soviética tem raízes históricas ana-
lisadas à exaustão por Trotsky. Mas a burocracia dos demais Esta-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
96 Marcos Margarido

dos operários – fundados por revoluções ou pela ocupação do exér-


cito vermelho – tem raízes históricas na própria burocracia sovié-
tica. Foram construídas à sua “imagem e semelhança”.
No primeiro caso, Trotsky criticava a teoria do “fortalecimento
da ditadura do proletariado” propalada por Stalin e pela III Inter-
nacional. Uma resolução de seu 7º Congresso (1935) dizia: “a vitó-
ria do socialismo, definitiva e irrevogável, e o fortalecimento em todos
os níveis do Estado da ditadura do proletariado...”9. A ela, Trotsky
respondeu que era uma resolução profundamente contraditória:
“Se o socialismo venceu, definitiva e irrevogavelmente, não como
princípio, mas como organização social viva, o novo ‘fortalecimento’
da ditadura é um evidente absurdo. Inversamente, se o fortaleci-
mento da ditadura responde às reais necessidades do regime, é por-
que ainda estamos longe da vitória do socialismo. Qualquer político
realista, para não dizer marxista, deve compreender que a necessi-
dade de fortalecer a ditadura, isto é, a coerção governamental, prova
não o triunfo de uma harmonia social sem classes, mas o cresci-
mento de novos antagonismos sociais”.
Esta é a única maneira de responder à questão do “fortaleci-
mento” da ditadura do proletariado. No segundo caso, podemos ter
uma “pista” do que Trotsky diria a partir de sua análise da ocupação
do leste da Polônia pelo exército vermelho: “… a política de Moscou,
tomada em seu conjunto, conserva completamente o seu caráter re-
acionário e é o principal obstáculo no caminho da revolução mun-
dial”10. Isto porque “o único e decisivo ponto de vista… era a mudança
na consciência e organização do proletariado mundial” e não, por
mais importante que fosse, a transformação das relações de proprie-
dade em territórios ocupados.
9
Segundo Trotsky, em A revolução traída. Op. Cit., p. 85.
10
Trotsky. Em defesa do marxismo. São Paulo: Ed. Sundermann, 2011, p. 41.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021


As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 97

Palavras proféticas. O esmagamento das tentativas de revoluções


políticas nos Estados operários do Leste europeu pela burocracia
soviética e suas “filiais” em cada país mostraram do que é capaz o
“fortalecimento” de um Estado operário burocratizado e foi o prin-
cipal obstáculo no caminho da revolução mundial.
O fim das burocracias stalinistas pelas mãos das massas – em al-
guns casos de forma bastante violenta, que expressava o ódio que
estas sentiam por seus governantes – após seu papel ativo na res-
tauração capitalista dos Estados operários prova que suas burocra-
cias não tinham um papel histórico a cumprir, confirmando a
análise de Trotsky de que “devido à sua própria essência, só pode ser
um regime transitório, temporário”11. Não se pode conceder o direito
a uma existência histórica de fase de fortalecimento da ditadura do
proletariado a um “regime transitório”, por mais longevo que fosse.
Voltemos à definição de Trotsky. O que existia era um Estado ope-
rário meio-socialista e meio-burguês, com enormes contradições so-
ciais em seu interior e não, ainda, uma ditadura do proletariado. Esse
Estado operário isolado na Rússia não foi destruído, conforme a pre-
visão dos bolcheviques, mas se degenerou. Em certo estágio, a dege-
neração levou à sua destruição, como Trotsky previa. Por isso, não
resta outra saída a não ser a revolução mundial e, assim, impedir a
degeneração dos futuros Estados operários que surgirem.

O imperialismo
Há acordo total em que o imperialismo é uma das razões de exis-
tência da burocracia, tanto o cerco imperialista na guerra civil
quanto o cerco comercial, seja o bloqueio, sejam mecanismos de
comércio como o da dívida externa. Também, que é necessário de-
rrotar o imperialismo, o que é o mesmo que dizer derrotar o capi-
11
Idem, p. 34.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
98 Marcos Margarido

talismo em escala mundial, uma vez que a economia imperialista-


capitalista é a economia dominante.
Porém, dizer isso não é o mesmo que dizer que a burocracia
sempre age passivamente em função das ações imperialistas. A bu-
rocracia do Estado operário soviético tinha um grau enorme de au-
tonomia, bem como a burocracia do ex-Estado operário chinês,
enquanto as burocracias do Leste europeu e de Cuba eram muito
dependentes da burocracia soviética.
A burocracia usava esta autonomia relativa para ter um papel
ativo na política de restauração dos Estados operários. Não se pode
dizer que a restauração na China, por exemplo, foi apenas uma re-
ação da burocracia às ações imperialistas.
A primeira ação de restauração na Rússia ocorreu mesmo antes
da usurpação do poder de Estado pela burocracia. Bukharin e ou-
tros dirigentes tentaram acabar com o monopólio do comércio ex-
terior, o que permitiria a livre entrada da economia capitalista (lei
do valor), através do comércio direto entre capitalistas estrangeiros
e pequenos capitalistas e camponeses proprietários, no Estado ope-
rário. Esta tentativa teve a firme oposição de Lenin, já acamado.
Em carta dirigida a Stalin (secretário do CC) ele afirma que Bu-
kharin não via que “os lucros provenientes da ‘mobilização dos esto-
ques de bens dos camponeses’ irão total e inteiramente para os bolsos
dos Homens da NEP” (os capitalistas, nda). E pergunta: “Nosso Co-
missariado do Povo do Comércio Exterior operará em benefício dos
Homens da NEP ou do nosso Estado proletário?”12.
Em outra carta a Stalin (15/12/1922) ele afirma que Trotsky era
plenamente capaz de defender seus pontos de vista em sua ausência
12
LENIN, V. I. The Monopoly of Foreign Trade,
www.marxists.org/archive/lenin/works/1922/dec/13.htm
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021
As bases socioeconômicas da ditadura do proletariado 99

e que Stalin, Zinoviev e, provavelmente Kamenev, também passa-


ram a defender o fim do monopólio.
Uma segunda tentativa ocorreria, já com a burocracia no poder,
quando Bukharin propôs devolver a propriedade da terra aos cam-
poneses (a terra era nacionalizada). Outras podem ser citadas,
como o Pacto Ribbentrop-Molotov (1939), em que Hitler e Stalin
fazem um acordo para a partilha da Polônia e de não agressão. Nen-
huma dessas ações teve a influência direta do imperialismo, no en-
tanto, todas seriam passos enormes rumo à restauração (a última,
se a Alemanha fosse vitoriosa na segunda guerra).
Por isso, parece-me que a afirmação de Meyers de que a buro-
cracia seria, apenas em última instância, a protagonista da restau-
ração capitalista, está invertida.
A burocracia foi a protagonista da restauração em “primeira ins-
tância”, foi a parte ativa da restauração, enquanto o imperialismo
minava a economia dos Estados operários determinando, em úl-
tima instância, seu destino. Dizer que a burocracia foi a parte ativa
significa dizer que havia outra opção que não a restauração. Havia
a opção do fim da coexistência pacífica, do não pagamento da dí-
vida externa, da retomada da democracia soviética e da revolução
mundial.
Evidentemente, isso não ocorreu; a restauração pelas mãos da
burocracia provou que ela nunca cumpriu um papel de defensora
do Estado operário.
Mesmo nossa corrente deixou de ver nas ações finais da buro-
cracia seu papel de agente ativo da restauração capitalista. Quando
as medidas restauracionistas se impunham na China, em 1978, nos-
sos artigos comparavam-nas à NEP, embora sob a direção de uma
burocracia.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021 ‐
100 Marcos Margarido

Mesmo as medidas de Gorbatchov, a partir de 1986, eram vistas


dessa forma e tanto a China quanto a URSS ainda eram vistas como
Estado operários naquela data. Foram necessários vários anos para
nosso esclarecimento. Segundo Martín Hernández, “tínhamos ex-
pectativas de que a restauração não se consumasse, o que, evidente-
mente, era impossível”13.
Isso se deu porque, segundo Hernández, a análise de um fato in-
édito na história da humanidade foi uma fonte de enormes dificul-
dades.

***

13
Hernández, Martín. O veredicto da história. São Paulo: Ed. Sundermann, 2008, p.
218.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 80‐100 ‐ Agosto de 2021


D ebate
Sobre a Lei do Desenvolvimento
Desigual e Combinado
102 Bernardo Cerdeira

A LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL


E COMBINADO EM DEBATE

Bernardo Cerdeira - Brasil

A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado, elaborada por


Trotsky a partir da dinâmica da Revolução Russa e posteriormente
estendida à compreensão de todo o modo de produção capitalista, é
reconhecida como uma contribuição fundamental ao marxismo.
Essa importância é praticamente uma unanimidade entre as dife-
rentes correntes trotskistas: George Novack, Nahuel Moreno, Michel
Löwy, Alex Callinicos. Outros marxistas, como Perry Anderson e
Andre Gunder Frank, utilizaram-na amplamente.
No Brasil, a Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado
(DDC) influenciou também sociólogos e historiadores como Flores-
tan Fernandes e Ruy Mauro Marini em sua teoria da dependência. E
aqui não estamos julgando se estes autores aplicaram corretamente
ou não a DDC, apenas assinalando como essa lei (ou teoria) foi am-
plamente utilizada.
Mas, essa lei também é motivo de polêmica entre marxistas de ou-
tras correntes, principalmente reformistas como Jon Elster da corrente
conhecida como “marxismo analítico” e Baruch Knei-Paz, autor do
livro O pensamento de Trotsky.
Os questionamentos mais conhecidos são os que reconhecem que
o desenvolvimento desigual e combinado é uma característica do ca-
pitalismo, mas afirmam que não é uma lei (Baruch Knei-Paz). Outros,
como Elster, não só negam que seja uma lei, por ser apenas “uma des-
crição bastante abstrata”, mas não pensam que a teoria do desenvol-
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A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 103

vimento desigual e combinado “possa explicar qualquer transição


real”.
Também em nossa corrente internacional, a LIT, surgiu recente-
mente um questionamento do companheiro Gustavo Machado à Lei
do Desenvolvimento Desigual e Combinado. O questionamento de
Machado insere-se em uma concepção mais geral. Sua opinião é que
não existe uma Lógica Marxista e não se pode falar em leis da dialé-
tica. Não entraremos nessa polêmica neste texto, principalmente por-
que concordamos com a resposta dada por Alicia Sagra a essa
concepção em seu artigo publicado na Marxismo Vivo n. 16.
Vamos nos limitar, portanto, ao debate sobre a DDC. Machado não
nega o fato de que “o desenvolvimento dos distintos países no interior
da totalidade mundial capitalista é desigual e combinado”. Mas,
afirma que o desenvolvimento desigual e combinado não pode ser
uma lei.
“É importante frisar que não temos nenhuma dúvida de que o desen-
volvimento dos distintos países no interior da totalidade mundial ca-
pitalista é desigual e combinada. A questão não é essa. A questão é,
seria esta afirmação de fato uma lei? Mais ainda. Uma lei geral da
dialética? Quando dizemos que tal desenvolvimento é desigual e
combinado, nada sabemos sobre que aspectos são desiguais, como
de desenvolvem, como se combinam. Dito de outro modo. Que tipo
de lei seria esta que não nos informa, nem em termos abstratos, ab-
solutamente nada?” (Marxismo Vivo 15).
Seu segundo argumento tem que ver com a “articulação entre as
partes analisadas”:
“Esta lei não denota uma articulação precisa entre as partes ana­
lisadas, apontando uma tendência necessária. Todas leis apresen-
tadas por Marx em O Capital indicam uma tendência precisa: queda
da taxa média de lucro, acumulação de riqueza em um polo e po-
breza no outro, regulação da produção e consumo por um valor im-
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pessoal etc. Já a “lei do desenvolvimento desigual” denota, em sen-


tido bem mais abstrato, um elemento em comum ao desenvolvimento
de todos os países. Mas qual a dinâmica e articulação interna deste
desenvolvimento? Ora, tal lei do desenvolvimento desigual nada diz
a este respeito: temos que analisar a lógica específica do objeto es-
pecífico.
Para responder a Machado, nossa primeira preocupação é estabe-
lecer qual era a posição de Trotsky a esse respeito e por qual caminho
ele chegou à elaboração da Lei do Desenvolvimento Desigual e com-
binado. Trotsky afirmava que existiam, sim, duas leis, a do desenvol-
vimento desigual e a lei do desenvolvimento combinado que
resultavam em uma nova totalidade. E que constituíam uma “lei mais
geral do processo histórico”, ou seja, não só do capitalismo. Em seu
História da Revolução Russa ele afirma:
“O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo
histórico, é em nenhum lugar mais evidente e mais complexo do
que no destino dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades
externas, sua cultura atrasada obriga-os a dar saltos. Desta lei uni-
versal do desenvolvimento desigual deriva outra lei que, por falta
de um nome melhor, chamaremos de lei do desenvolvimento
combinado, aludindo à unificação das diferentes etapas da jornada,
à combinação de fases separadas, à amálgama de formas arcaicas
com as modernas”.
Isso é o que dizia Trotsky, mas ele não elaborou esta lei isola-
damente. O marxismo, como toda o conhecimento humano é
um produto social e histórico. Trotsky apoiou-se em elabora-
ções de Marx e Lenin. Marx já havia assinalado, praticamente
nos mesmos termos, o que seria um processo de desenvolvi-
mento desigual e combinado:
“Primeiro, há um desenvolvimento desigual entre as diferentes ca-
madas da sociedade; segundo, há em algumas estruturas “relações
desiguais”, uma “síntese” ou “fusão”; terceiro, algumas “novas”
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A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 105
estruturas ou “sistemas”, ou “modos” de produção, são produtos
dessa “fusão” ou da “inserção” de um modo de produção ou outro;
quarto, esse desenvolvimento causa crise”.1
A descrição do processo de desenvolvimento desigual e combinado
(“fusão” ou “síntese”, novas estruturas, sistemas ou, inclusive, modos
de produção e crise) é a mesma da Lei do Desenvolvimento Desigual
e Combinado em Trotsky, sem que Marx tenha chegado a nomeá-la.
Na Introdução aos Grundrisse, Marx baixa à terra essa afirmação ge-
nérica para alguns modos de produção concretos:
“Em toda conquista há três possibilidades. O povo conquistador sub-
mete o conquistado ao seu próprio modo de produção (por exemplo,
os ingleses na Irlanda neste século e, em parte, na Índia); ou deixa
o antigo [modo de produção] intacto e se satisfaz com um tributo
(p. ex., turcos e romanos); ou tem lugar uma ação recíproca, da qual
emerge algo novo, uma síntese (em parte, nas conquistas germâni-
cas). Em todos os casos, o modo de produção, seja o do povo con-
quistador, seja o do conquistado, seja o que resulta da fusão de
ambos, é determinante para a nova distribuição que surge2.
“(…) (...) Os bárbaros germânicos, que viviam isolados no campo e
para quem a produção realizada por servos era a produção tradicio-
nal, puderam submeter as províncias romanas a essas condições mais
facilmente porque a concentração da propriedade fundiária ocorrida
lá já havia modificado totalmente as antigas relações agrícolas”3.
É importante ressaltar que Marx não se refere apenas a fusões entre
regiões ou países na época do capitalismo, mas também à fusão entre
modos de produção pré-capitalistas. No caso, entre o modo de pro-
dução escravista do império romano e o modo de produção dos povos
germânicos, cuja fusão deu origem a um novo modo de produção: o
feudalismo.
1
Citado por Osvaldo Coggiola (Novos Rumos, 2004).
2
Grundrisse.
3
Idem.
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Moreno refere-se ao mesmo processo no texto “Conceitos básicos


do Materialismo Histórico”, incorporando a análise sobre o surgi-
mento do feudalismo a partir da combinação entre a desintegração
do escravismo romano com o avanço dos chamados “bárbaros”, ou
seja, os povos germânicos:
“As relações feudais fundamentais estavam surgindo no final do Im-
pério Romano e foram combinadas com o avanço das tribos bárbaras,
que produziram um acoplamento, uma integração de duas civiliza-
ções, que nada tem a ver com o quadro habitual das "invasões bárba-
ras" [...]”.
O desenvolvimento desigual acentuou-se no capitalismo. Foi
Lenin quem assinalou muitas vezes que o capitalismo tem necessa-
riamente um desenvolvimento desigual.
“No mundo do capitalismo não houve nem pôde jamais haver nada
uniforme nem harmônico, nem proporcional. Cada país desenvolveu,
com particular relevo, um ou outro aspecto ou traço, ou todo um
grupo de traços inerentes ao capitalismo e ao movimento operário.
O processo de desenvolvimento teve forma desigual.”4.
Mas, Lenin não só fez referência a uma descrição do processo his-
tórico no sistema capitalista, mas deixa bem claro que este desenvol-
vimento desigual é uma lei do capitalismo:
“O desenvolvimento econômico e político desigual é uma lei ab­
soluta do capitalismo. Daí, resulta que a vitória do socialismo é pos-
sível primeiro em alguns poucos países e, inclusive, em apenas um,
considerado isoladamente. O proletariado vitorioso em um país, de-
pois de ter expropriado os capitalistas e organizado a produção so-
cialista, se levantará contra o restante do mundo burguês, atrairá as
classes oprimidas dos demais países, sublevando-as contra os opres-

4
LENIN, V. I. Obras Escogidas, T II Pág. 591 — ELE — La Tercera Internacional y
su lugar en la historia.
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sores e intervindo, inclusive, em caso de necessidade, com força mi-


litar contra as classes exploradoras e seus Estados”5.
Os stalinistas utilizaram, distorceram, e confundiram proposital-
mente essa formulação da lei por Lenin para tentar justificar a ideia
do “socialismo em um só país”, quando Lenin, na verdade, refere-se,
na citação acima, à possibilidade da vitória da revolução socialista
primeiro em um determinado país e não que este alcançasse o socia-
lismo isoladamente.
Trotsky tomou a lei do desenvolvimento desigual descrita por
Lenin, mas assinalou suas limitações, ressaltando que era um tanto
vaga, tratando-se mais de uma realidade histórica e que isso se pres-
tava a distorções pelo stalinismo. Em 1933, depois de ter escrito a
História da Revolução Russa, em uma reunião com dirigentes da
Communist League of America (CLA)6 para discutir um documento
desse grupo sobre os Estados Unidos, ele dizia:
“O papel é baseado na lei do desenvolvimento desigual. Em certos
períodos, esta desigualdade favoreceu os Estados Unidos; agora co-
meça a trabalhar contra ela.
Penso que é do nosso interesse definir um pouco esta lei, especial-
mente porque os stalinistas distorceram-na escandalosamente e con-
tinuam a fazê-lo. Como lei, é algo vago; é, ao contrário, uma
realidade histórica. Ela reflete a ideia de que nem todos os países
passam pelo mesmo processo de desenvolvimento simultanea­
mente, mas que eles desenvolvem­se de maneiras diferentes, em
ritmos diferentes, e assim por diante. A lei pode ser interpretada
de mil maneiras diferentes”.
Trotsky afirmava que essa limitação da lei levava muitas vezes a
mal-entendidos e inclusive não explicava como, por meio de formas

5
LENIN, V. I., 1915.
6
Seção estadunidense da Oposição de Esquerda Internacional, na época, nda.
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de desenvolvimento desigual, o mundo capitalista tornou-se mais uni-


forme em nossa época.
“Uma das interpretações mais importantes, que leva a mal-entendi-
dos, é a seguinte: até a época imperialista, a Inglaterra era o poder
hegemônico (Stalin diz que a lei não existia naquela época e que
Marx e Engels não o sabiam!). Durante aquele tempo, a desigualdade
era muito maior do que é hoje; basta lembrar o contraste entre a Grã-
Bretanha e a Índia. As diferenças eram dez vezes maiores do que
hoje. O desenvolvimento da Índia foi totalmente diferente do da In-
glaterra, dos Estados Unidos, e assim por diante. Mas, através de di-
ferentes e desiguais formas de desenvolvimento, o mundo capitalista
tornou-se mais uniforme..”7.
Na mesma conversação, ele explica como chegou à lei do desen-
volvimento combinado, procurando mostrar como em um país atra-
sado se combinam formas e relações de produção atrasadas com as
mais avançadas:
“Não é uma questão de negar a existência da lei, mas de explicá­
la. Uma vez tentei fazer isso através da fórmula “desenvolvi­
mento misto”. O desenvolvimento desigual expressa,
principalmente, o fato de que diferentes países passam por épocas
diferentes. Países avançados e atrasados: essa é a expressão mais
elementar da lei. Entretanto, a evolução mostrou que os países
atrasados complementam seu atraso com os últimos desenvolvi­
mentos. Daí, surge o desenvolvimento combinado, que demons­
trei na História [da Revolução Russa] com o exemplo da
Rússia”.8
Mas, Trotsky não se limita a esse aspecto. Ele também mostra
como, mesmo em um país avançado, a lei do desenvolvimento des-
igual e combinado estende-se também às desigualdades entre o des-
envolvimento das forças produtivas (o desenvolvimento industrial,
7
Idem.
8
Ibidem.
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A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 109

por exemplo) e elementos da superestrutura da sociedade como a ide-


ologia mais atrasada em todas as classes e a consciência atrasada do
proletariado.
“Nos Estados Unidos, existe outro tipo de desenvolvimento com-
binado. Temos o desenvolvimento industrial mais avançado com-
binado com a ideologia mais retrógrada em todas as classes. A
colonização interna, que o projeto do documento não menciona,
foi a base da consciência retrógrada dos trabalhadores. Elaborando
nossas teses cuidadosamente, partiremos da lei do desenvolvi-
mento desigual e chegaremos à lei do desenvolvimento combi-
nado”.9
Por outro lado, Trotsky recorre à lei do desenvolvimento desigual
e combinado para explicar como foi possível que na Rússia, um país
atrasado, o proletariado russo pôde atravessar o período democrático
em meses ou, no máximo, em poucos anos e tomar o poder. Sua con-
clusão é que essa lei permite explicar os saltos históricos e, na época
imperialista, fundamenta a teoria da revolução permanente:
“A América está destinada a passar por uma época de refor­
mismo social? O projeto coloca a questão e responde que uma
resposta definitiva ainda não pode ser dada, mas que depende
em grande parte do Partido Comunista. Isso é correto em geral,
mas não é suficiente. Também aqui recorremos às leis do desen­
volvimento desigual e combinado. Na Rússia, o argumento de que
o proletariado ainda não havia passado pela escola democrática,
o que poderia levá­lo à tomada do poder, foi usado para refutar
a revolução permanente e a tomada do poder pelo proletariado.
Mas, o proletariado russo atravessou o período democrático no
decorrer de oito meses; de onze ou doze anos se contarmos desde
a época da Duma [2]. Na Inglaterra, isso já dura há séculos e na
América essa confusão suja já durou tempo suficiente. A des­

9
TROTSKY, L. Op. cit.
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igualdade também se expressa no fato de que as diferentes etapas


não são combinadas mas passadas muito rapidamente, como foi
o caso da etapa democrática na Rússia”.10
Penso que está suficientemente demonstrado que Trotsky consi-
derava que o DDC era sim uma lei de todo o processo histórico e que
em sua formulação baseou-se nas primeiras elaborações de Marx e
Lenin neste sentido. Ou seja, não se trata de uma referência casual,
ou de passagem, no História da Revolução Russa, mas uma elabora-
ção global, aplicada à análise do sistema capitalista em sua fase im-
perialista e aos processos revolucionários em vários países: não só na
Rússia, mas na China, Espanha, México e nos países atrasados em
geral.
Analisemos agora a segunda afirmação de Gustavo Machado, que
questiona que o desenvolvimento desigual e combinado seja uma lei.
Segundo ele: “Esta lei não denota uma articulação precisa entre
as partes analisadas, apontando uma tendência necessária”.
Em nossa opinião, a conclusão é exatamente a oposta. Toda a lei
do desenvolvimento desigual e combinado denota e permite “uma ar-
ticulação precisa entre as partes analisadas” em todos os aspectos da
formação social dos países atrasados. Vejamos como Trotsky aplica
a Lei do DDC na análise da dinâmica mundial do capitalismo impe-
rialista.
Na “Crítica ao programa da III Internacional” de 1928, ele ressal-
tava como o capitalismo, especialmente em sua fase imperialista, ao
penetrar em formações sociais atrasadas, produz formações sociais
desiguais e combinadas, mas, ao mesmo tempo, cria relações econô-
micas e sociais mundiais interdependentes e combinadas entre diver-
sos países e regiões.

10
Ídem.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021


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“ (...) seria mais correto dizer que toda história da humanidade é re-
gida pela lei do desenvolvimento desigual. O capitalismo encontra
várias partes da humanidade em diferentes estágios de desenvolvi-
mento, cada qual com profundas contradições internas. A extrema di-
versidade de níveis atingidos e a extraordinária desigualdade no ritmo
de desenvolvimento das diferentes partes da humanidade durante vá-
rias épocas são o ponto de partida do capitalismo. Apenas gradual-
mente este ganha o controle sobre a desigualdade herdada,
quebrando-a e alterando-a, empregando seus próprios fins e métodos.
Em contraste com os sistemas econômicos que o precederam, o ca-
pitalismo tem a propriedade de procurar continuamente a expansão
econômica, penetrar em novas regiões, vencer as diferenças econô­
micas, transformar as economias provinciais e nacionais, fechadas
em si mesmas, em um sistema de vasos comunicantes, de reaproxi­
mar, assim, de igualar, os níveis econômicos e culturais dos países
mais avançados e dos mais atrasados.
“Ao aproximar economicamente os países e nivelar seus estágios de
desenvolvimento, o capitalismo, no entanto, usa seus próprios méto-
dos, quer dizer, métodos anárquicos que constantemente minam seu
próprio trabalho, joga um país contra o outro e um ramo da indústria
contra o outro, desenvolvendo algumas partes da economia mundial
enquanto dificulta e atrasa o desenvolvimento de outras. Apenas a
combinação dessas duas tendências fundamentais, centrípeta e
centrífuga, nivelamento e desigualdade, consequências da própria
natureza do capitalismo, explicam o tecido vivo do processo histó-
rico”.11

Destacamos que, na citação anterior, Trotsky ainda não havia cun-


hado a formulação de lei do desenvolvimento combinado, o que só
faria no primeiro capítulo da História da Revolução Russa, que é de
1932. No entanto, ele utiliza amplamente o movimento dialético uti-
11
TROTSKY, L., 1928.
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112 Bernardo Cerdeira

lizando as expressões que se opõem e se combinam com as desigual-


dades: “vencer as diferenças”, “reaproximar”, “igualar” os níveis eco-
nômicos, ressaltando as “duas tendências fundamentais, centrípeta
e centrífuga, nivelamento e desigualdade, consequências da própria
natureza do capitalismo”, isso é, as diversas combinações de des-
igualdades.
Fica claro que Trotsky não concebia tampouco uma evolução me-
cânica do capitalismo em direção a uma desigualdade cada vez maior
entre os países. Ao contrário, ele mostra como existe no capitalismo
como sistema mundial uma relação dialética, isto é, uma dinâmica
entre desigualdade e combinação, por um lado, que gera novas estru-
turas e, por outro lado, nivelamento e novas desigualdades no período
seguinte. Segundo ele, na época imperialista essas tendências se for-
talecem e se aprofundam:
“O imperialismo, graças à universalidade, penetração, e à enorme ve-
locidade na formação do capital financeiro como a sua força motriz,
empresta vigor a ambas as tendências. O imperialismo vincula in-
comparavelmente mais rápido e mais profundamente grupos nacio-
nais e continentais em uma única entidade, colocando-os em mútua
dependência vital e tornando seus métodos econômicos, formas so-
ciais e níveis de desenvolvimento mais idênticos. Ao mesmo tempo,
ele atinge esse “objetivo” por tal método antagônico, tal pulo e assalto
sobre países e áreas atrasadas, que afeta a unificação e o nivela­
mento da economia mundial, com mais violência e convulsão que
em outras épocas”.12
Ou seja, Trotsky parte da caracterização da existência de uma to-
talidade que é o capitalismo imperialista e o mercado mundial, e da
lei da desigualdade entre países imperialistas e países atrasados e/ou
países semicoloniais, que é fruto, por sua vez, das características des-
12
Ídem.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021


A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 113

iguais próprias do processo de acumulação capitalista e das especifi-


cidades nacionais e da sua combinação em um único sistema capita-
lista imperialista mundial.
E, por outro lado, articula exatamente as determinações desiguais
nas formações sociais dos países atrasados, por exemplo, entre o
campo atrasado, com relações de produção pré-capitalistas e indústria
avançada. Ou, a desigualdade entre as classes: a debilidade da bur-
guesia nacional e a força do proletariado. Da mesma maneira, mani-
festam-se desigualdades nas superestruturas: entre os regimes
políticos, a consciência das classes e da classe operária em particular
Aplicando a lei, Trotsky chega à conclusão que o desenvolvimento
desigual e combinado produz nos países atrasados formações sociais
que são estruturas extremamente contraditórias e instáveis. Ele parte
do exemplo da Rússia e o generaliza a todos os países atrasados:
“A evolução histórica da Rússia caracteriza-se, acima de tudo, pelo seu
atraso. Um atraso histórico não implica, entretanto, uma simples repe­
tição da evolução dos países avançados cem ou duzentos anos de­
pois, mas engendra uma formação social completamente nova,
‘combinada’, na qual as últimas realizações da técnica e da estrutura
capitalista se implantam nas relações sociais da barbárie feudal e
pré­feudal, transforma­as e subordina­as criando assim uma rela-
ção original.
O mesmo vale para as ideias. Precisamente por causa de seu atraso his-
tórico, a Rússia tornou-se o único país europeu no qual o marxismo,
como doutrina, e a social-democracia, como partido, tiveram um grande
desenvolvimento antes mesmo da revolução burguesa”.13
E a mesma lei, ao contrário do que diz Machado, aponta sim para
uma “tendência necessária”. Há uma lei tendencial do capitalismo ao
desenvolvimento desigual entre os diferentes países. A lei do desen-

13
Trotsky, L. Três concepções da Revolução russa, 1936.
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114 Bernardo Cerdeira

volvimento desigual e combinado explica como nessas formações so-


ciais combinam-se “a unificação das diferentes etapas da jornada, a
combinação de fases separadas e o amálgama de formas arcaicas
com as modernas” que produzem uma “tendência necessária” que se
dá precisamente aos saltos ou aceleração de etapas de desenvolvi­
mento nessas formações.
Segundo Trotsky, a maior evidência dessa “tendência necessária”
é a Revolução de Outubro e o estabelecimento da ditadura do prole-
tariado em um país atrasado, o que por sua vez gerou novas contra-
dições.
Según Trotsky, la mayor evidencia de “tendencia necesaria” fue la Re-
volución de Octubre y el establecimiento de la dictadura del proletariado
en un país atrasado, lo que por su parte generó nuevas contradicciones.
“A lei do desenvolvimento desigual fez com que a contradição entre
a técnica e as relações de propriedade do capitalismo arrebentasse o
elo mais débil da cadeia imperialista. O capitalismo russo atrasado foi
o primeiro a pagar pela bancarrota do capitalismo mundial. A lei do
desenvolvimento desigual é suplementada em todo o curso da his­
tória pela lei do desenvolvimento combinado. O colapso da burgue-
sia na Rússia conduziu à ditadura do proletariado – isto é, um país
atrasado a adiantar-se aos países avançados. Entretanto, o estabeleci-
mento de formas socialistas de propriedade no país atrasado enfrentou
o nível inadequado da técnica e da cultura. Nascida da contradição
entre as elevadas forças produtivas mundiais e as formas capitalistas
de propriedade, a Revolução de Outubro produziu por sua vez a con-
tradição entre as reduzidas forças produtivas nacionais e as formas so-
cialistas de propriedade” (TROTSKY, 1991, p. 256).
A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado não é simples-
mente uma constatação ou uma análise das diferentes combinações
de desigualdades em diferentes países, mas assinala a tendência ne­
cessária aos saltos no processo histórico e a aparição do “novo”

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A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 115
como produto desses saltos. Polemizando com Radek no livro A Re-
volução Permanente, Trotsky explica qual é a importância dos saltos
na análise dos processos históricos e na política revolucionária:
“É absurdo afirmar que, em geral, uma etapa não possa ser pulada.
O processo histórico vivo sempre dá saltos sobre “etapas” isoladas
que derivam da divisão teórica do processo de desenvolvimento de
conjunto em suas partes componentes, isto é, tomado em sua máxima
plenitude. O mesmo é exigido da política revolucionária em momen-
tos críticos. Pode-se dizer que o que melhor distingue o revolucio­
nário do evolucionista vulgar consiste em seu talento para
reconhecer esses momentos e utilizá­los”.
Trotsky mostra que é “a desigualdade do desenvolvimento histó-
rico em toda sua concretude dinâmica” que permitiu prever o salto
de uma etapa à outra na revolução proletária na Rússia, isto é, a pró-
pria essência da teoria da Revolução Permanente:
“O que é mais insuportável nesta discussão é ver Stalin “teorizando”
com dois enfeites que constituem sua única bagagem teórica: a “lei
do desenvolvimento desigual” e “não pular uma etapa”. Stalin ainda
não entendeu que o desenvolvimento desigual consiste precisamente
em saltar certas etapas. (Ou em permanecer muito tempo em uma
delas). Stalin opõe, com inimitável seriedade, a lei do desenvolvi­
mento desigual à teoria da revolução permanente. Entretanto, a
previsão de que a Rússia historicamente atrasada poderia chegar
à revolução proletária mais cedo do que a Inglaterra avançada
foi inteiramente baseada na lei do desenvolvimento desigual. O
fato é que para fazer tal previsão foi necessário entender a desigual-
dade do desenvolvimento histórico em toda sua concretude dinâ-
mica…”.
O fato de considerarmos que o DDC é uma lei geral do capitalismo
e de todo o processo histórico (e também uma lei que existe na natu-
reza, o que não desenvolveremos aqui porque foge ao objetivo e aos
limites de espaço desse texto) não nos desobriga da necessidade da
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análise concreta da realidade concreta e de cada objeto específico, e


a determinar sua tendência específica. Ao contrário, Trotsky aplicou
a fundo essa análise ao caso da Rússia e à dinâmica de classes na re-
volução russa. Nos Cadernos Filosóficos, preparatórios para a bio-
grafia de Lenin que estava escrevendo, ele fundamentou essa
necessidade em base às leis da dialética:
“A conversão de uma possibilidade abstrata em uma necessidade con-
creta - também uma importante lei da dialética - é definida a cada
vez por uma combinação de condições materiais definidas? Assim,
desde a possibilidade de uma vitória burguesa sobre as classes feudais
até a própria vitória, houve vários lapsos de tempo, e a vitória muitas
vezes pareceu uma semivitória.
“Para que uma possibilidade se tornasse uma necessidade, tinha que
haver um fortalecimento correspondente de alguns fatores e um en-
fraquecimento de outros, uma inter-relação definida entre esse forta-
lecimento e esse enfraquecimento. Em outras palavras: foi necessário
que várias séries interligadas de mudanças quantitativas preparassem
o caminho para uma nova constelação de forças.
“A lei da conversão da possibilidade em necessidade leva assim - em
última análise - à lei da conversão da quantidade em qualidade” (Cua-
dernos filosóficos).
Teríamos a agregar apenas, e não secundariamente, que a Lei do
desenvolvimento desigual e combinado enriquece e dá um novo sig-
nificado à lei da conversão da quantidade em qualidade, à explicação
das “catástrofes”, “saltos” e à aparição do “novo”. Concordamos to-
talmente com Novack quando afirma:
“Trotsky, com sua descoberta e formulação da lei do desenvolvi-
mento desigual e combinado, consegue dar uma lei mais geral para
entender a irrupção do novo: é a combinação ou crise de segmentos
da sociedade desigualmente desenvolvidos. O salto da quantidade
em qualidade é para a lei do desenvolvimento desigual e combinado
o que a lei da gravidade é para a lei da relatividade (Novack).
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A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 117
E com Moreno, que afirma o mesmo:
“A lei do desenvolvimento desigual e combinado é a única que ex-
plica o surgimento de uma nova estrutura, além das mudanças dentro
dela, o que já havia sido explicado em certa medida pelo salto da
quantidade em qualidade. Somente a combinação do desenvolvi-
mento desigual dará origem a uma nova estrutura”.14
Esperamos que os leitores nos desculpem pela quantidade e exten-
são das citações, mas nos pareceu necessário para que se possa enten-
der a elaboração de Trotsky sobre a Lei do DDC em toda a sua riqueza
dialética, principalmente porque ele não nos deixou um trabalho es-
pecífico sobre o tema, mas o abordou em diversos livros e artigos di-
ferentes. Os textos citados, em nossa opinião, não deixam dúvidas de
que Trotsky considerava o DDC uma lei. E que a utilizava amplamente
para analisar tendências e contradições (ou contratendências) do ca-
pitalismo mundial e das diferentes formações econômico-sociais, mos-
trando como se articulavam as relações e a luta das classes e estas com
as superestruturas.
No entanto, pensamos que é preciso abordar esse debate teórico do
ponto de vista da teoria da revolução socialista da nossa época que é
a Teoria da Revolução Permanente. Este é o tema da segunda parte
deste artigo.

A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado


e a Teoria da Revolução Permanente
Desde que Trotsky formulou a sua segunda versão da Teoria da
Revolução Permanente em 1929, o trotskismo e especialmente a
nossa corrente, hoje organizada na LIT-QI, concordam que esta é a
única teoria da revolução socialista mundial na época imperia­
lista e que mantém toda a sua atualidade. Mas, em nossa opinião, a
lei do desenvolvimento desigual e combinado é a base teórica para a
14
MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y Ciencias Modernas. San Pablo: Editora Sun-
dermann, 2005.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021 ‐
118 Bernardo Cerdeira

Teoria da Revolução Permanente. Nisso, concordamos totalmente


com George Novack quando diz:
“A teoria da Revolução Permanente é a aplicação mais frutífera dessa
mesma lei [do Desenvolvimento Desigual e Combinado] aos proble-
mas chaves da luta de classes internacional de nosso tempo, a época
de transição da dominação capitalista do mundo ao socialismo”.
Essa afirmação não se baseia apenas na teoria, mas foi comprovada
na prática durante todo o século XX. Só a lei do desenvolvimento
desigual e combinado e a Teoria da Revolução Permanente podem
explicar não só a Revolução Russa, mas todas as revoluções que se
deram em países atrasados como a China, Cuba, Vietnã e outros, os
elos mais fracos da cadeia imperialista.
Essa lei é a única que explica porque na fase imperialista do capi-
talismo não existem mais países maduros e não maduros para o so-
cialismo no mundo. O enfoque de Trotsky parte justamente de que o
capitalismo mundial, principalmente em sua fase imperialista, é uma
totalidade formada por um sistema de países nos quais predominam
formações sociais desiguais e combinadas e, por sua vez, combinadas
desigualmente em um único sistema mundial.
E, portanto, a que explica a possibilidade da revolução socialista
em todos os países. É o que Trotsky afirma na Tese 11 na conclusão
do livro A Revolução Permanente.
“O esquema do desenvolvimento da revolução mundial, como deli-
neado, elimina o problema da distinção entre países "maduros" e "não
maduros" para o socialismo, no sentido da classificação morta e pe-
dante estabelecida no presente programa da Internacional Comunista.
O capitalismo, ao criar um mercado mundial, uma divisão mundial
do trabalho e das forças produtivas mundiais, é ele próprio responsável
pela preparação da economia mundial como um todo para a transfor-
mação socialista. Este processo de transformação prosseguirá a dife-
rentes ritmos em diferentes países. Sob certas condições, os países
atrasados podem chegar à ditadura do proletariado mais cedo que os
países avançados, mas mais tarde que o socialismo dos países avan-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021
A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 119

çados. Um país colonial ou semicolonial, cujo proletariado ainda não


está suficientemente preparado para reunir os camponeses em torno
dele e tomar o poder, é por isso mesmo incapaz de levar a revolução
democrática até o fim. Pelo contrário, em um país cujo proletariado
chegou ao poder como resultado da revolução democrática, o futuro
destino da ditadura e do socialismo dependerá, em última análise, não
tanto das forças produtivas nacionais, mas do desenvolvimento da re-
volução socialista internacional”.
É dessa afirmação que Trotsky baseia toda sua concepção da Teo-
ria da Revolução Permanente como a teoria da revolução socialista
mundial, cuja necessidade e possibilidade estão confirmadas pela
crise e barbárie capitalistas e pela luta de classes mundial entre a re-
volução e a contrarrevolução que marca toda a época imperialista.

Moreno, a Teoria da Revolução Permanente


e a Lei do DDC no pós-guerra
Moreno utilizou intensamente a Lei do Desenvolvimento Desigual
e Combinado para entender e interpretar o fenômeno das revoluções do
pós-guerra que expropriaram a burguesia em vários países (China, Iu-
goslávia, Vietnã do Norte, Coreia do Norte e, mais tarde, Cuba), dirigi-
das por partidos stalinistas ou pequeno-burgueses.
Em todos esses casos constituíram-se estados operários que a IV In-
ternacional chamou de “deformados”, por analogia com a categoria “es-
tado operário degenerado” criada por Trotsky para explicar a URSS,
incluindo também os países da Europa do Leste onde a burguesia foi
expropriada pelo Exército Vermelho.
Essa variante “pouco provável”, como dizia Trotsky no Programa
de Transição, foi a única após a Segunda Guerra e, evidentemente, exi-
gia uma nova atualização da Teoria da Revolução Permanente à luz des-
ses acontecimentos.
Em vários escritos, Moreno deu sua interpretação desse fenômeno,
baseando-se nas tendências da luta de classes assentadas na combinação
de profundas desigualdades provocadas pela existência de um estado
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021 ‐
120 Bernardo Cerdeira

operário degenerado no interior da totalidade da economia mundial ca-


pitalista em sua época imperialista. Em Atualização do Programa de
Transição, ele diz:
“Na época, a categoria de estado operário degenerado nos surpreendeu,
porque acreditávamos que o avanço da contrarrevolução mundial le-
varia à destruição do estado operário. No entanto, a combinação da
contrarrevolução com a existência do estado operário não levou à sua
destruição, mas sim a uma combinação altamente contraditória, unindo
o domínio contrarrevolucionário do aparato governamental com a ma-
nutenção do estado operário, ou seja, uma contrarrevolução que não
chegou a ser social, mas somente política; que não chegou à destruição
do estado operário, mas somente até sua degeneração. Foi uma com-
binação instável de contrarrevolução e estado operário. Isso foi con-
sequência da força deste último.
(…) Acreditávamos que, na primeira fase, o ascenso revolucionário
faria voar pelos ares os aparatos contrarrevolucionários, e que não ha-
veria nenhuma expropriação da burguesia, nenhum estado operário se
não fosse pela via da superação da crise de direção do proletariado.
Ou seja, que o ascenso revolucionário destruiria esses aparatos e le-
varia ao poder partidos revolucionários que expropriariam a burguesia.
No entanto, não foi assim. Tal como no pós-guerra passado houve um
avanço da contrarrevolução sobre o estado operário que, apesar de
tudo, não pôde mudar seu caráter. Atualmente15, há um avanço da re-
volução sobre os aparatos contrarrevolucionários, embora não consiga
fazê-los explodir. Por sua natureza alheia à base operária, o ascenso
também não pôde transformá-los.
Essa combinação também deu origem a um fenômeno altamente
instável, por juntar dois polos claramente antagônicos, mas unidos
por uma circunstância excepcional, conjuntural, em um estado
operário burocratizado. Combinações diferentes originaram fe­
nômenos idênticos: estados operários burocratizados. A URSS sta­
linista é o produto final da contrarrevolução; dos estados
operários do pós­guerra, do ascenso revolucionário.
15
Essa caracterização se refere ao ano 1980, quando esse texto foi escrito.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021


A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 121

Esta é a gênese de todos os novos estados operários burocratizados.


Apesar de ter havido três processos diferentes no tocante à conjuntura
e à direção, todos são essencialmente iguais. Um foi o dos países do
Leste Europeu, com exceção da Iugoslávia. Nesses países, a direção
ficou nas mãos da burocracia do Kremlin, que os ocupou militarmente.
O outro caso é o da Iugoslávia, China, Coreia e Vietnã. A direção foi
stalinista nacional, intimamente ligada ao Kremlin, mas sem a ocupa-
ção pelo Exército Vermelho e sem direção direta do Kremlin. Por úl-
timo, em Cuba, tivemos uma direção pequeno-burguesa, e suas
diferenças eram apenas específicas, pois tiveram a mesma política de
impedir uma revolução de outubro e de se manter nos limites de
uma revolução democrática nacional, embora tenham sido obri­
gadas a expropriar a burguesia16.
E finalmente concluiu:
“Os estados operários burocratizados que surgiram nos países peri-
féricos aos grandes centros imperialistas foram o resultado de uma
combinação nacional excepcional de quatro fenômenos mundiais:
a crise aguda do imperialismo, um colossal ascenso revolucioná­
rio, o tremendo poderio dos aparatos burocráticos pequeno­bur­
gueses e a debilidade da nossa Internacional”.17
“(…) Em escala mundial, a expropriação do capitalismo nos países
do Leste, na China, Iugoslávia, Coreia e Vietnã do Norte é, então,
uma combinação inesperada entre a) uma concessão forçada do im-
perialismo à burocracia contrarrevolucionária stalinista, para resta-
belecer o capitalismo no Japão e na Europa Ocidental, com a ajuda
dessa burocracia stalinista; b) o colossal ascenso do pós-guerra nos
elos mais débeis da cadeia imperialista mundial. Foram concessões
forçadas do imperialismo, para melhor manobrar e ganhar tempo
diante do colossal ascenso do pós-guerra e do desmoronamento total
dos capitalismos europeu e japonês. O imperialismo teve o cuidado
de que essas concessões fossem feitas através da burocracia contra-
rrevolucionária e stalinista e, posteriormente, da burocracia pequeno-
burguesa castrista, isto é, através de aparatos oportunistas e
16
MORENO, Nahuel. Atualização do Programa de Transição, Tese XIX.
17
Ibidem, Tese XX.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021 ‐
122 Bernardo Cerdeira

contrarrevolucionários, garantia de freio ao processo de revolução


permanente”.18
Mas, ao mesmo tempo, assinalava as novas contradições geradas
pela existência dessas combinações “altamente contraditórias” que,
agregamos nós, levariam uma década e meia mais tarde à restauração
do capitalismo na URSS.
“A outra face dessas vitórias, desses estados operários burocratiza-
dos, é que conseguiram frear o processo revolucionário e derrotar o
movimento operário revolucionário por dentro, impedindo por todos
os meios que o processo de ascenso revolucionário e mobilização
permanente continuasse.
Em relação à mobilização revolucionária dos trabalhadores, o estado
operário burocratizado é uma gigantesca concessão por parte dos ex-
ploradores e da burocracia. Essa colossal vitória do movimento de
massas é por eles transformada numa concessão para melhor derro-
tarem e congelarem a mobilização permanente. É uma vitória diante
dos exploradores nacionais e do imperialismo, imediatamente se-
guida de uma derrota da mobilização permanente das massas nas
mãos da burocracia que - devido à pressão revolucionária e à crise
do imperialismo - chega até a expropriar a burguesia nacional, em
seu desespero político para controlar e esmagar o movimento de mas-
sas”.19
A conclusão geral desses fenômenos para Moreno é que a Teoria
da Revolução Permanente, embora tivesse que ser atualizada e enri-
quecida pelas novas revoluções, comprovou mais do que nunca a sua
vigência e atualidade, enriquecida pela lei (ou teoria como ele a
chama) do desenvolvimento desigual e combinado.
“A teoria da revolução permanente se enriquece com a mais extraor-
dinária ferramenta de elaboração política e teórica que o trotskismo
nos legou: a teoria do desenvolvimento desigual e combinado. O im-
18
Ibidem, TeseVII.
19
Idem.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021
A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado em debate 123
pulso do movimento de massas, combinado com a crise de direção
revolucionária, originou combinações não previstas em detalhes (e
que não poderiam sê-lo) por nosso movimento. Mas, essas combina-
ções não somente confirmam que o processo da revolução perma-
nente existe, como também que é poderoso ao ponto de originar essas
combinações; e confirmam mais ainda a teoria do desenvolvimento
desigual e combinado como a máxima conquista teórica do marxismo
revolucionário deste século”.20
A Teoria da Revolução Permanente é a única teoria que explica e
responde aos embates entre revolução e contrarrevolução em todo o
mundo na época imperialista. É fruto de uma elaboração histórica e
coletiva que foi esboçada por Marx na Mensagem do CC à Liga dos
Comunistas, retomada por Trotsky, formulada em termos concretos
por Lenin nas “Teses de Abril”, comprovada pela Revolução de Ou-
tubro, e que ganhou, na segunda versão de Trotsky, o caráter atual. É
a única teoria da revolução mundial e que, portanto, opõe-se conse-
quentemente às variantes de colaboração de classes ou de “socialismo
nacional”. É, ao mesmo tempo, a estratégia e a base do programa da
IV Internacional.
Mas, em nossa opinião, Trotsky não poderia ter desenvolvido ple-
namente a teoria da Revolução Permanente sem aplicar a Lei do Des-
envolvimento Desigual e Combinado às tendências e combinações
altamente contraditórias da situação mundial e das situações da luta
de classes que ele viveu ou presenciou: a Revolução Russa, China em
1927, França, Espanha, Estados Unidos, México, etc. Essa ferramenta
teórica, aplicada por Moreno às Revoluções do século XX, continua
sendo a base fundamental para interpretar todos os fenômenos da luta
de classes no mundo atual.

***
20
MORENO, Nahuel. Atualização do Programa de Transição, Tese XXXIX.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 101‐123 ‐ Agosto de 2021 ‐


D ossiê
Seminário sobre
Materialismo Histórico
APRESENTAÇÃO

Por muito tempo, a LIT acompanha, intervém e estuda o


importante ascenso de vários setores oprimidos, como é o caso
das mulheres, dos negros, das nacionalidades, dos povos
nativos e, como não poderia deixar de ser, dada a riqueza
destes movimentos, surgiram diferentes interpretações,
nuances e polêmicas. Por isso, nossa direção, o Comitê
Executivo Internacional, seguindo a recomendação de Lenin
sobre como resolver este tipo de debates, viu a necessidade
de organizar um seminário teórico sobre materialismo
histórico para, nesse marco, enfrentar o debate sobre as
opressões.
O seminário, realizado em julho, foi extremamente rico e
deixou muitos debates abertos que se considerou que
deveriam ter continuação, não apenas entre os participantes
do seminário, mas também com os leitores de nossa revista
teórica, a Marxismo Vivo.
Assim, nesta nova edição da revista, iniciamos a publicação
de um Dossiê sobre Materialismo Histórico, que contém uma
série de artigos de vários participantes do seminário, bem
como, em edições futuras, serão publicados os artigos que
chegarem, não só destes ou de outros participantes, mas
também dos leitores que assim o desejarem.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐


126 Dossiê

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA


E NOSSO DEBATE

Francesco Ricci - Ricardo Ayala

“A consciência do homem não só reflete o mundo objetivo, mas o cria.”


(Lenin, Cadernos filosóficos, 1915)

1. O novo materialismo de Marx e Engels

1.1. A revolução das Teses sobre Feuerbach


Para entender qual é a concepção materialista da história devemos
procurar a essência nas Teses sobre Feuerbach (TsF) de Marx (1845).
Essas teses não são a descoberta do materialismo, que já tinha mil-
hares de anos. Eles fundam uma nova concepção que supera todo o
materialismo anterior (que Marx designa como "materialismo an-
tigo") sem cair no idealismo.
Com as TSF, Marx dá uma nova resposta para o que, segundo En-
gels, é “o problema fundamental de toda a filosofia (...) a relação do
pensamento com o ser”. (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clás-
sica alemã).
No materialismo antigo havia duas entidades separadas e indepen-
dentes: por um lado, a natureza, ou objeto de conhecimento, ou ma-
téria; por outro, o homem, ou sujeito de conhecimento, ou
consciência.
Para Marx há uma totalidade sujeito-objeto. Uma totalidade dife-
renciada.
Do ponto de vista genético, a matéria antecede a consciência. Mas,
desde que o homem apareceu, a natureza perde sua independência
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 127
absoluta e não faz sentido falar de uma realidade que não compreenda
a consciência que, ao mesmo tempo, faz parte da realidade e a modi-
fica.
Na terceira TsF, Marx esclarece que apenas em termos simplifica-
dos pode-se dizer que as circunstâncias mudam a consciência, ou seja,
que o ser determina a consciência. O velho materialismo já expres-
sava isso. Mas, esse velho materialismo “esquece que as circunstân-
cias são transformadas pelos homens e que o próprio educador deve
ser educado”.

1.2. O papel da práxis


Não há uma relação de reflexo entre o objeto e o sujeito. Para se
usar essa metáfora do espelho, deve-se dizer, como Lenin nos Cader-
nos Filosóficos, que é um reflexo ativo. Porque o sujeito que conhece
é parte do objeto conhecido e, através da práxis, modifica este objeto.
O objeto de conhecimento não é uma realidade externa, independente
do homem.
A XI TsF (Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diver-
sas formas, trata-se agora de transformá-lo) não é um simples cha-
mado à ação revolucionária. É a afirmação de uma concepção que
indica na práxis (produção e reprodução da vida material, no contexto
da luta de classes) a superação da oposição secular entre saber e fazer,
entre teoria e prática, entre sujeito e objeto, entre consciência e ser.
É esta concepção materialista da história de Marx que reivindica-
mos.

1.3. Estrutura e superestrutura e o papel da classe operária


Agora, vamos sair da linguagem filosófica e ver o que isso signi-
fica nos termos que estamos acostumados a usar: estrutura e super-
estrutura (Struktur, ou base, e Uberbau).
Em primeiro lugar, elas existem? Se alguém quer uma resposta
simples, deve-se recorrer a Feuerbach em vez de Marx.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
128 Dossiê

Marx não se limitou a responder sim a esta pergunta, como um


materialista qualquer. Marx disse que a práxis ao mesmo tempo une
e diferencia, e modifica estrutura e superestrutura, que são historica-
mente determinadas e em um movimento contínuo em que as duas
esferas se copenetram.
À pergunta: podemos distinguir a estrutura da superestrutura? A
resposta é sim. E fazemos isso quando analisamos a realidade. Mas,
na vida real na qual intervimos, elas não existem separadamente. Po-
demos separá-las na abstração da análise. E não há relação de causa
e efeito, de determinação.
Parafraseando Lenin, podemos dizer: a superestrutura não só re-
flete a estrutura (socioeconômica), mas também a cria pela práxis que
transforma a natureza e a realidade histórica da qual o homem faz
parte e, ao mesmo tempo, muda sua consciência.
Isso não significa que haja uma relação aleatória, o caos dos pós-
modernistas ("cada caso é um caso"). Mas, as correntes policlassistas
apagam o fato de que as relações estruturais condicionam e definem
os limites da superestrutura, cuja autonomia é apenas relativa. Elimi-
nam a "contradição principal", ou seja, que sem a exploração do tra-
balho assalariado não há capitalismo e que a abolição do trabalho
assalariado através da ditadura do proletariado é uma condição ne-
cessária para libertar a humanidade de toda a opressão. Uma tarefa
que só pode ser cumprida se a luta das massas for liderada pela classe
operária unida (homens, mulheres, brancos, negros, LGBTI) e orga-
nizada pelo partido revolucionário de vanguarda.

1.4. O verdadeiro significado de "última instância"


Agora, chegamos à famosa "última instância" da qual Engels fala.
Esta expressão é frequentemente usada para dizer: no entanto, há um
elemento que prevalece.
É uma metáfora tirada da linguagem jurídica: o último grau de um
julgamento. No entanto, como no caso da justiça burguesa, antes de
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 129
se chegar à última instância, já se pode cumprir anos de prisão so-
mente com as outras instâncias.
O que Engels quis dizer com "última instância"? Que a estrutura
condiciona a vida social, mas com algumas precisões:
1) É uma condição e não uma determinação. A estrutura define os li-
mites, as possibilidades da superestrutura, de forma mediata, não
imediata.
2) A estrutura condiciona os grandes fatos históricos a longo prazo.
3) Essa estrutura, que para simplificar definimos como “econômica”,
para Marx é socioeconômica, são as relações que o homem estabe-
lece para encarar a produção e reprodução de sua existência.

1.5. Não há “inevitabilidade do socialismo” em Marx


Marx, Engels, Lenin e Trotsky cometeram erros, mas não come-
teram o erro atribuído a eles: o de serem deterministas. Quem defende
essa atribuição na verdade tira algumas palavras (como “inevitabil-
dade”) do contexto.
Eles estavam convencidos de que o socialismo não é inevitável e,
como Marx escreveu no Manifesto, se os revolucionários não vence-
rem, pode ocorrer a ruína comum das duas classes em luta.
Quando, em 2015, iniciamos a elaboração programática com o de-
bate sobre a “inevitabilidade do socialismo” (MV 5 e 7), Martín Her-
nández afirmou que “haveria em Marx um determinismo econômico”;
que Marx pensava que “a partir das leis da economia, a ação dos tra-
balhadores inevitavelmente levaria o mundo ao socialismo”. Este não
seria um erro isolado, mas “toda a sua concepção” e que Marx “de-
fenderia até o fim de sua vida, repetidamente, a ideia de que o socia-
lismo e o comunismo inevitavelmente triunfariam”; e que Trotsky
“bem como Lenin, sempre defendeu a tese da inevitabilidade de
Marx” (MV 5).
Mas, o estudo dos textos mostra que a concepção materialista da
história não é uma concepção dos estágios inevitáveis da história. É
por isso que “socialismo ou barbárie”, ao contrário do que Martín
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
130 Dossiê

mantém (MV 5), não é uma invenção de Rosa Luxemburgo, mas de


Marx.

1.6. A importância do “debate russo”


A confirmação do peso que teve atribuir a Marx a “inevitabilidade
do socialismo” e o eurocentrismo está em que os textos sobre o “debate
russo” foram ignorados pela maioria dos historiadores por décadas.
Para ajudar a construir o partido na Rússia, Marx aprendeu russo,
leu centenas de obras e encheu 30 mil páginas com notas (o que é di-
fícil definir como conhecimento... superficial). Este era o método
usual de Marx: ele nunca escreveu sobre coisas que não sabia.
Sua conclusão foi oposta à que muitas vezes foi atribuída a ele, e
que Martín Hernández também repete quando escreve: “(...) Marx e
Engels acreditavam que a revolução socialista triunfaria primeiro
nos países capitalistas europeus mais desenvolvidos” (MV 14).
Basta ler o prefácio de 1882 para o Manifesto, onde Marx e Engels
preveem a possibilidade de que a revolução russa “sirva de sinal para
uma revolução dos trabalhadores no Ocidente, para que ambas se
complementem (...)”.
Aqui, Marx vê uma combinação de tempos históricos diferente da
que ele havia formulado anteriormente, e as formas de transição para
o capitalismo, tanto na Índia quanto na Rússia, são definidas com
mais contradições, sem questionar o sujeito social ou cair em posições
“terceiro-mundistas”.
Essas opiniões de Marx desmentiam o programa etapista dos men-
cheviques que, por essa razão, ocultaram a carta de Marx a Vera Za-
sulitch (1881).

1.7. O materialismo histórico é válido


porque não é um determinismo
Em relação à “inevitabilidade”, levamos cinco minutos para con-
cordar, na LIT, que o socialismo não é inevitável. A discussão conti-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 131

nuou durante meses para esclarecer, não a nossa opinião, mas a de


Marx. Por que é tão importante? Porque a concepção materialista da
história de Marx só pode ser reivindicada sob a condição de que a
tese de que “haveria em Marx um determinismo econômico”, “toda
uma concepção” que Marx teria mantido “até o fim de sua vida”,
como Hernández defendeu (MV 5), esteja errada.
Percebendo a contradição de seu raciocínio, Martín disse em um
seminário que Marx e os outros não eram deterministas em geral, mas
apenas... sobre o tema da “inevitabilidade”.
Mas, não podemos sair deste debate com um jogo de palavras. Por
mais voltas que sejam impostas ao raciocínio, nem mesmo o trape-
zista mais audaz poderia sustentar ao mesmo tempo essas duas teses
opostas: 1) a de que Marx baseava-se em um determinismo que o
levou a considerar o socialismo inevitável 2) a de que Marx não tinha
uma concepção determinista da história.
A tese de um Marx determinista intermitentemente parece des-
respeitosa, seja da inteligência de Marx, ou daqueles que devem
ouvi-la.

1.8. Em que sentido o marxismo é uma ciência:


a questão das leis
Paralelamente à atribuição a Marx de uma teoria da “inevitabili-
dade”, o revisionismo da Segunda Internacional e do stalinismo atri-
buíram ao marxismo o caráter de uma ciência comparável à física
newtoniana, regida por leis fixas que definem o movimento da histó-
ria sem interferência da vontade humana.
Plekhanov (A concepção monista) afirma que tudo é governado
por leis inevitáveis da história e que, como argumentou Spinoza,
diante dessas leis “o homem tem a mesma liberdade de uma pedra”.
Marx e Engels também reivindicaram o caráter científico de seu
socialismo, mas na direção oposta. Discutindo com Bakunin, Marx

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐


132 Dossiê

observou que o termo “socialismo científico (...) é usado apenas como


antítese ao socialismo utópico, que quer dar ao povo novas fantasias,
em vez de limitar sua ciência ao conhecimento do movimento social
feito pelo próprio povo” (Anotações de 1874 ao Estado e anarquia).
Esse esclarecimento de Marx refuta tanto o kautskismo quanto o
stalinismo – que reduziram o marxismo a uma ciência no sentido po-
sitivista do termo – quanto Bernstein (e o “socialismo kantiano”) que,
pelo contrário, reduziu o socialismo a um imperativo moral.
Também é importante deixar claro que, quando fala de “leis”,
Marx usa este termo com duas delimitações: são tendências opostas
por contratendências; são historicamente determinadas, são relativas
a um determinado sistema, não define leis gerais que se aplicam a
todas as formações sociais.
Quando fala de leis, refere-se a tendências do capitalismo que se
afirmam “de forma muito complicada e aproximada”, como, pore-
xemplo, a “taxa geral da mais-valia [que é] uma tendência, como
todas as leis econômicas (...)”. (O Capital, 3.10, negritos nossos).
E Moreno vai na mesma direção quando, em relação ao "desen-
volvimento desigual e combinado", especifica que “por razões his-
tóricas, respeitamos o nome que o formulador deu a essa teoria. É
por isso que comumente dizemos lei, e não teoria como deveria” (ló-
gica marxista).
Portanto, atribuir a Marx a ideia de leis que são impostas de forma
transcendente sobre a história, anulando a luta de classes; leis que
permitiriam que fossem feitas certas previsões sobre um curso “in-
evitável” da história que leva a um socialismo “inevitável”, é não ter
entendido o próprio significado do “novo” materialismo de Marx.
Em Marx, as “leis” agem dentro do desenvolvimento socioeconô-
mico: é por isso que, em última análise, dependem do desenvolvi-
mento da luta de classes cujo resultado nunca é pré-determinado. O
materialismo histórico é um método de análise crítica da realidade

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 133

passada e presente, para identificar possíveis tendências no futuro


(como escreveu Michel Vadée em seu excelente livro Marx, penseur
du possible).

1.9. Luta de classes como a força motriz da história


O marxismo não é uma teoria histórico-filosófica geral.
Esta afirmação é uma declaração de Marx.
É Marx quem rejeita “uma teoria histórico-filosófica geral, cuja
virtude suprema consiste em ser suprahistórica” (carta à redação do
Otechestvennye Zapiski, 1877).
Se para Marx e Engels “a história não faz nada”; se não há “inevi-
tabilidade” do curso histórico e do socialismo; se não há uma “astúcia
da história” que para Hegel manobra os homens; se não é nem Deus
nem o Espírito nem a Matéria, nem as “leis” da história ou da econo-
mia que governam a história; se não há lógica transcendente que so-
breponha a realidade; se por essa razão Marx e Engels ironizam
aqueles que querem fazer “da história seguinte o propósito da histó-
ria anterior, atribuir à descoberta da América o propósito de favore-
cer a revolução francesa” (A ideologia alemã)... qual é, então, o
motor da história?
É o homem social, envolvido na luta de classes. Por essa razão, a
única coisa “inevitável” na sociedade dividida em classes é a luta
entre essas classes, resultado que não é previsível.
Claramente, o homem que faz história com a luta de classes não o
faz arbitrariamente. As condições são definidas por circunstâncias
que, por sua vez, são o produto da luta de classes anterior. Circuns-
tâncias que podem ser estudadas cientificamente e, em certa medida,
ao mesmo tempo, modificadas. Esse é o significado da terceira TsF:
o educador (o entorno social) pode ser educado (modificado) pela
práxis revolucionária.
Na Circular de 1879 à liderança do partido alemão, Marx e Engels

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resumem assim: “Por cerca de quarenta anos, destacamos a luta de


classes como a força diretamente propulsora [força motriz é a tra-
dução literal] da história”.

2. A deformação do marxismo na Segunda


e na Terceira Internacional degenerada

2.1. As "responsabilidades" de Marx e Engels


Tanto a Segunda quanto a Terceira Internacional na época de sua
degeneração usavam frases de Marx ou Engels extraídas do contexto.
Frases que existem por causa da “responsabilidade” dos dois revolu-
cionários que foram forçados em várias batalhas a torcer a vara em um
sentido anti-idealista. Por isso, é importante conhecer o contexto de
cada texto.
Por exemplo, algumas frases do prefácio de 1859, que se repetem
como um catecismo do determinismo, devem ser lidas considerando o
texto e o contexto.
No texto, Marx fala de “ser social” que “condiciona, em geral”, o
processo social [itálicos nossos].
O contexto é a batalha contra o idealismo e contra esse “volunta-
rismo” que havia levado, alguns anos antes, ao rompimento da Liga
dos Comunistas entre Marx, por um lado, e Willich e Schapper, por
outro.
É neste contexto que a ênfase unilateral na “estrutura” deve ser lida.
O próprio Engels esclareceu isso em dezenas de cartas escritas em 1890
para dissipar mal-entendidos. E é sempre com essa intenção que Engels
escreve seu Ludwig Feuerbach... (1886) e publica no apêndice as TsF
inéditas de Marx (1845), indicando assim que, filosoficamente, o ponto
de chegada e o ponto de partida não haviam mudado.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 135

2.2. Menchevismo e stalinismo


O materialismo histórico foi reduzido à teoria histórico-filosófica
pela deformação revisionista, resumida na concepção da “inevitabi-
lidade do socialismo”, das “leis” de ferro etc.
Não foi uma interpretação equivocada: foi uma ideologia que,
adiando o socialismo para um futuro indefinido (mas “inevitável”),
serviu de apoio, no presente, para a divisão entre o programa mínimo
e o programa máximo, ou seja, para a colaboração de classes.
O economicismo de Martinov (que mais tarde convergiria para o
menchevismo), ao qual Lenin dedica uma parte do Que fazer?, ba-
seou-se em uma teorização determinista e, assim, dividiu a luta da
social-democracia em etapas distintas, que tinham de ser limitadas
por toda uma fase à luta econômica-sindical contra a exploração.
Contra isso, Lênin opôs o "tribuno do povo", que leva o socialismo a
todas as lutas contra a exploração e a opressão.
O menchevismo traduziu a teoria da “inevitabilidade do socia-
lismo” na teoria etapista. Daí a exclamação de Plekhanov diante de
outubro: “É uma revolução contra as leis da história”.
Uma parte da Segunda Internacional traduziu essa teoria em apoio
ao colonialismo, pelo qual os povos colonizados teriam que se sub-
meter pacientemente, sabendo que, para eles, o socialismo viria in-
evitavelmente mais tarde.
O stalinismo tomou essa teoria para justificar as frentes popu-
lares.
O manual de Bukharin sobre materialismo histórico era o anel de
conjunção entre o plekhanovismo e o stalinismo. Este manual é um
retorno a Plekhanov. Daí o julgamento de Lenin (no Testamento)
sobre a má compreensão de Bukharin da concepção materialista da
história: “Ele nunca aprendeu e, acredito, nunca entendeu plena-
mente a dialética”.
O diamat, promovido pela burocracia stalinista à “ciência” da In-
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136 Dossiê

ternacional, era uma pseudoteoria (uma cobertura ideológica de in-


teresses materiais) consistindo em: 1) a redução de tudo para “estru-
tura-superestrutura”, duas entidades separadas como no materialismo
“antigo”; 2) a redução da estrutura para a “economia” (eliminando o
conceito de formação socioeconômica); 3) a determinação da super-
estrutura pela estrutura, de acordo com as leis de ferro da “economia”;
4) O marxismo reduzido a uma teoria do desenvolvimento das forças
produtivas, e da história a uma sucessão fixa de modos de produção
enumerados (asiático, antigo, feudal, burguês), pela qual a história
passa como um trem, de estação em estação, indo em direção ao ter-
minal, um socialismo inevitável; 5) colocação da exploração na es-
trutura e da opressão em uma superestrutura separada; 6) o corolário:
o que é colocado na superestrutura é um reflexo da estrutura, algo se-
cundário, tanto no sentido de seguinte (efeito de uma causa) quanto
no de menos importante.

3. Lenin: contradições e evolução

3.1. A evolução e as mudanças em Lenin


Se é um erro tentar dividir Marx ou Lenin em fases distintas (os
“jovens”, os “velhos”), é igualmente incorreto pensar que nossos mes-
tres já tinham entendido tudo desde que eram crianças. Como eram
principalmente militantes e não filósofos, seus pensamentos evolui-
ram pelo entrelaçamento da elaboração teórica com a militância con-
creta.
Com essa premissa, podemos estudar em Lenin, no plano filosó-
fico, uma evolução contraditória que começa com muitos elementos
do materialismo concebido por Plekhanov e pela maior parte da Se-
gunda Internacional (e, de fato, também por setores ultraesquerdistas
como o bordiguismo, que chegou a conclusões sectárias em relação
à luta contra as opressões).
No plano político, o partido de vanguarda do Que fazer? (1902)
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Seminário Materialismo Histórico 137
já se baseava em uma concepção não determinista: a consciência so-
cialista não nasce como um simples reflexo da luta de classes ou ape-
nas da luta contra a exploração. Surge na necessidade de “trazer a
consciência de fora” (Que fazer?).
No plano programático, é inegável que a teoria da “ditadura de-
mocrática dos operários e camponeses” era contraditória, de fato, se-
mietapista. É por isso que, em 1917, Lenin diz que deve ser jogada
“no museu da história”.

3.2. O Lenin do Materialismo e Empiriocriticismo


O livro de 1909, Materialismo e Empiriocriticismo (MeE), faz parte
de uma (correta) polêmica política contra um setor bolchevique (Bog-
danov, teórico do empiriomonismo), entrelaçada com uma polêmica
filosófica que, a partir da correta rejeição de ideias que negavam a
existência de uma realidade fora da percepção, retorna em parte ao
materialismo que Marx havia chamado de “velho”. De Plekhanov, seu
mestre no campo filosófico até 1914, Lenin assume em MeE a tese de
um único materialismo no qual a única diferença entre Marx e Feuer-
bach seria a do “homem social” de Marx substituindo o “homem” abs-
trato de Feuerbach.
Em particular, Lenin confirma a tese plekhanovista do “reflexo”
(“o refletido existe independentemente do que reflete”, MeE). Ou seja,
interpreta o processo cognitivo como uma relação entre um sujeito
que conhece separado e oposto ao objeto do conhecimento, a cons-
ciência que reflete passivamente o ser.
Aqui, o conhecimento é, sim, relativo para Lenin, mas que, como
o zoom de uma câmera, aproxima-se indefinidamente de uma reali-
dade objetiva, que se move com um movimento independente do su-
jeito.
Para Marx, por outro lado, o conhecimento da realidade não é ape-
nas historicamente relativo: é também relativo porque o sujeito que a
conhece ao mesmo tempo a modifica. Por essa razão, Marx escreve
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138 Dossiê

na segunda TsF: “A disputa sobre a efetividade ou não do pensamento


– quando isolada da práxis – é um problema puramente escolástico”.
O centro das TsF desaparece na interpretação de Plekhanov (e de
Lenin em MeE): a unidade (diferenciada) do objeto-sujeito e a práxis
que muda tanto o objeto de conhecimento quanto o sujeito que o con-
hece.
Toda a polêmica de Lenin em MeE é baseada na identificação de
Bogdanov com o idealismo mais grosseiro (Berkeley) e, em seguida,
a contraposição do materialismo de Plekhanov (e não o de Marx) a
isso.

3.3. A correção autocrítica nos Cadernos


Em Berna, entre setembro de 1914 e maio de 1915, Lenin viu a
necessidade de aprofundar seus estudos filosóficos nos quais, até
então, tinha permanecido, como disse, “um amador”. Em particular,
dedicou-se ao estudo de Hegel (de quem não conhecia a Grande Ló-
gica) para aprofundar a concepção de Marx e, acima de tudo, com-
preender os fundamentos teóricos da traição da Segunda Internacional.
Neste estudo (sua mudança pode ser acompanhada das primeiras
páginas das notas às últimas), Lenin entende que a interpretação da
Segunda Internacional tinha “esquecido” que, para Marx, “o defeito
capital de todo materialismo” era a separação do sujeito do objeto, o
cancelamento da práxis (ver a primeira TsF). É pela práxis que o
homem conhece a realidade objetiva e, ao mesmo tempo, modifica-
a, porque a realidade não é uma entidade acabada que se reflete na
consciência.
Lenin ressalta que esse aspecto essencial não havia sido compre-
endido por Plekhanov nem, portanto, pela social-democracia que
(como Lenin) havia estudado na escola filosófica de Plekhanov, com
a qual Lenin rompe somente neste momento, rejeitando a interpreta-
ção plekhanovista do “reflexo”, que ele havia acolhido em seu MeE

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Seminário Materialismo Histórico 139

quando escreveu: “A consciência (...) reflete o ser: esta é uma tese


geral de todo o materialismo”.
Ele não só não repete esta afirmação agora, mas a nega categori-
camente.
O fato de que a diferença entre o MeE e os Cadernos tenha sido
assumida por vários autores (como Dunayewskaya) para transformar
o Lenin dos Cadernos em um idealista (e, assim, rejeitar o tema po-
lítico e social da revolução), não precisa nos levar a abraçar a tese
oposta, a de uma continuidade substancial entre o Lenin de MeE e o
dos Cadernos. Entre esta última interpretação, que é a do stalinismo,
que usou como um catecismo do diamat precisamente as partes do
MeE que Lenin havia superado nos Cadernos, e a interpretação de
Dunayewskaya, nós... não escolhemos nenhuma das duas! Preferimos
a interpretação do Lenin dos Cadernos: “No início do século XX, os
marxistas criticaram os kantianos e os discípulos de Hume mais à
maneira de Feuerbach (e Buchner) do que à de Hegel”. É claro que
Lenin está criticando não apenas Plekhanov, mas também ele próprio
e seu MeE.
Este avanço filosófico será entrelaçado com a análise de Lenin
sobre o imperialismo (1916); a elaboração sobre a questão nacional;
a polêmica com o “economicismo imperialista” de Bukharin e Piata-
kov; a mudança programática de 1917 (Teses de Abril); as teses sobre
o Estado (Estado e Revolução).

4. A concepção diferente de Trotsky

Não é coincidência que Trotsky seja um dos poucos líderes da Se-


gunda Internacional que conseguiu escapar da influência filosófica
de Plekhanov. O estudo de Antonio Labriola foi fundamental para
ele.
Por exemplo, nos anos em que elaborou a teoria da revolução per-

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140 Dossiê

manente, Trotsky escreveu uma crítica a certas interpretações do Pre-


fácio de Marx de 1859: "Se a Comuna foi esmagada, não foi porque
as forças produtivas estavam insuficientemente desenvolvidas, mas
por razões de natureza política. Mas, o marxismo não ensina que nen-
huma forma social deixa espaço para outra antes de desenvolver as
forças produtivas ao máximo? Qualquer um que falsifique o mar-
xismo afirma que esses conceitos estão em Marx. Mas, o que significa
o desenvolvimento ao máximo? Como isso pode ser medido? É ver-
dade que, quanto maior a forma de desenvolvimento capitalista que
o proletariado encontra quando toma o poder, mais fácil será realizar
as tarefas socialistas. Mas, o elemento central que define a possibili-
dade de revolução não é este. Quem sustenta isso, aprendeu de me-
mória as frases de Marx extraídas do contexto". (“35 years after”, em
Trotsky on the Paris Commune).

5. A principal consequência programática


do nosso estudo

Qual é uma das conclusões programáticas mais importantes que


podemos tirar deste estudo? Que na realidade em que atuamos, uma
vez que não há oposição entre estrutura e superestrutura, a luta contra
a opressão não pode ser separada da luta contra a exploração, nem
pode ser posta em segundo plano.
Em 1916, Lenin escreveu contra aqueles que negavam a impor-
tância da luta contra a opressão nacional e a opressão em geral:
“Aquele que espera uma revolução social ‘pura’ nunca a verá”. E,
também: “A revolução socialista pode ocorrer não só após uma
grande greve, ou uma grande manifestação de rua, ou uma revolta
contra a fome (...), mas também depois de qualquer crise política,
como o caso Dreyfus (...), ou um referendo sobre a questão da sepa-

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Seminário Materialismo Histórico 141

ração de uma nação oprimida” (Teses sobre a revolução socialista e


o direito à autodeterminação).
O que devemos corrigir em nossa elaboração é, principalmente,
um certo determinismo que penetrou nossa corrente, que não poderia
ser totalmente imune à posição que dominou um século e que também
influenciou autores que tiveram um peso importante para nós, como
Novack.
São elementos parciais do determinismo, que surgiram em algu-
mas elaborações, não um determinismo global. É importante enfatizar
que apenas Moreno e nossa corrente foram capazes de resistir, tanto
nos planos político e programático quanto no teórico, tanto às pres-
sões do stalinismo quanto às do “antistalinismo” reformista às quais
todas as correntes provenientes do trotskismo capitularam.
Ao mesmo tempo, devemos também defender a concepção mate-
rialista da história do lado oposto: ou seja, contra as várias tendências
“pós-modernistas” que muitas vezes usam uma caricatura determi-
nística do marxismo para apresentá-lo como "ultrapassado" ou “in-
tegrado” com filosofias pequeno-burguesas.
Para essas correntes, “não há fatos, mas apenas interpretações”;
não há distinção entre exploração e opressão; ignoram o condiciona-
mento da estrutura de classe da sociedade sobre as superestruturas. E
não fazem tudo isso por um simples erro teórico, mas porque legiti-
mam posições interclassistas e buscam apagar o sujeito social da re-
volução (o proletariado), o partido de vanguarda da classe operária,
e a própria revolução como condição necessária para estabelecer a
ditadura do proletariado e avançar em direção a uma sociedade livre
da exploração e de todas as opressões.

***

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142 Dossiê

O QUE É A CONCEPÇÃO MATERIALISTA


DA HISTÓRIA?

José Welmowicki – Brasil

A importância da concepção materialista da história para a inter-


venção revolucionária comprova-se em como Marx e Engels elabo-
raram-na desde seu primeiro trabalho em comum, e expressado no
Manifesto Comunista.
O Materialismo Histórico deve ser entendido como uma teoria que
parte do conhecimento acumulado sobre o desenvolvimento da his-
tória humana, que investiga quais leis objetivas interferem na história
das sociedades, leis essas que se modificam com o desenvolvimento
da história. O que é completamente distinto de uma ‘filosofia da his-
tória’ como a de Hegel, ou uma teoria ‘filosófico-histórica’, em que
haveria uma Razão ou um ‘sentido’ da história.
Marx e Engels elaboraram a concepção materialista da história
desde A Ideologia Alemã, contra os jovens hegelianos idealistas, e as
Teses sobre Feuerbach (contra o materialismo contemplativo deste
filósofo). Assim, foi desenvolvida nos materiais posteriores e estudos
históricos, tais como O 18 Brumário de Luís Bonaparte e a Guerra
dos camponeses na Alemanha. Elaboraram categorias como classe
social, forças produtivas e relações de produção, estrutura e superes-
trutura, e suas relações dialéticas, em seu desenvolvimento na histó-
ria. Mas esse desenvolvimento se dá em permanente contraste com a
própria prática e a experiência da luta de classes e, assim, construiu-
se um conhecimento mais profundo e dialético.
Tanto Marx como Engels tiveram que lutar contra todas as con-
cepções idealistas e empiristas ao elaborar e desenvolver sua teoria
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Seminário Materialismo Histórico 143

e, ao mesmo tempo, diferenciar sua concepção também de socialistas


pequeno-burgueses como Proudhon, no Miséria da Filosofia, e de
novos teóricos que surgiam a cada momento para afirmar suas ‘ver-
dades eternas’, como Dühring nos anos 1870, e também de alguns
seguidores que a vulgarizavam. Engels, em particular, teve que lutar
contra os que se reivindicavam marxistas, mas faziam uma interpre-
tação mecanicista da realidade e que reduziam o marxismo a um de-
terminismo econômico semelhante a uma equação de primeiro grau
(vide carta a Joseph Bloch de 1890) e entendiam esses processos
como simples aplicação de uma lei mecânica. Assim os descreve em
sua carta a Mehring de 1893:
“A isto se une também a representação disparatada dos ideólogos de
que, porque negamos um desenvolvimento histórico autônomo às di-
versas esferas ideológicas que desempenham um papel na história,
lhes negamos também todo efeito sobre a história. Está aqui subja-
cente a representação não-dialética rotineira de causa e efeito como
polos rigidamente contrapostos um ao outro, e o absoluto esqueci-
mento de sua interação recíproca. Esses senhores esquecem, frequen-
temente, e quase deliberadamente, que um elemento histórico, uma
vez posto no mundo por outro, em última instância causas econômi-
cas, reage também sobre o meio que o rodeia e inclusive sobre as
suas causas.””
Para escrever O Capital, Marx dedicou anos ao estudo das teses
dos principais autores da economia política anterior e contemporânea
a ele. Tratou de compreender aquelas que tinham alguma contribuição
científica assim como de elaborar sua Crítica da economia política.
Dedicou-se ao estudo da gênese histórica do capitalismo e a pesquisar
materiais que permitissem compreender a raiz do processo e as leis
do modo de produção capitalista.
Lenin afirmava da mesma maneira em 1894:
“desde que ˆ foi publicado, a concepção materialista da história
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144 Dossiê

deixou de ser uma hipótese para se converter em uma tese de­


monstrada com argumentos científicos. […] O materialismo não
é apenas, ‘no fundamental, uma concepção científica da história’,
como pensa o senhor Mikhailovsky, mas sim a única concepção
científica da história.” (negritos e sublinhados nossos)1
En su texto de 1914, Karl Marx, esbozo biográfico:
“…Os homens fazem sua própria história, mas, que causas determi-
nam os móveis dos homens e, mais precisamente, das massas huma-
nas? Qual é a causa dos conflitos de ideias e aspirações contraditórias?
[…] Quais são as condições objetivas da produção da vida material
nas quais se baseia toda a atividade histórica dos homens? Qual é a
lei que rege o desenvolvimento destas condições? Marx concentrou
sua atenção sobre todos estes problemas e traçou o caminho para
o estudo científico da história concebida como um processo único
regido por leis, apesar da sua prodigiosa diversidade e com todas
as suas contradições.” (negritos nossos)
Trotsky escreveu em sua obra História da Revolução Russa:
“O autor não quer dizer com isto que haja evitado as generalizações
sociológicas. Afinal, a história não teria valor se não nos ensinasse
nada. A poderosa lógica da revolução russa, a consecução de suas
etapas, a inexorável pressão das massas, os contornos definidos das
agrupações políticas, o conteúdo das palavras de ordem, tudo isto
promove maravilhosamente a compreensão da revolução em
geral e, com ela, da sociedade humana.” (negritos nossos)
Lenin e Trotsky, ao desenvolverem sua intervenção revolucionária,
partiram da concepção materialista da história e dos avanços teóricos
que Marx e Engels haviam feito e, por sua vez, fizeram contribuições
fundamentais para desenvolver a concepção materialista da história
e responder aos novos fatos: o imperialismo e a economia mundial,
e a concretização da teoria da revolução mundial, a teoria da revolu-
1
LENIN, V. I. Quem são os amigos do povo, 1894

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 145
ção permanente. Sem a concepção materialista da história é impossí-
vel fazer uma análise científica da realidade, e muito menos um pro-
grama revolucionário. Trotsky, no texto de 1937, 90 anos do
Manifesto Comunista afirma:
“1. A concepção materialista da história, formulada por Marx
pouco tempo antes da aparição do texto e que nele se encontra apli-
cada com perfeita maestria, resistiu completamente à prova dos acon-
tecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui-se, atualmente,
em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento humano.
Todas as outras interpretações do processo histórico perderam
todo significado científico. Podemos afirmar, com segurança, que
atualmente é impossível não apenas ser um militante revolucio­
nário, mas simplesmente um observador politicamente instruído
sem assimilar a concepção materialista da História.” (negritos
nossos)
Em 1922, falando na academia militar do exército soviético, afir-
mou:
“O materialismo filosófico é uma teoria que está na base das ciências
naturais, ao passo que o materialismo histórico explica a história
da sociedade humana. O materialismo histórico é um método que
não explica todo o universo, mas sim um grupo estritamente defi­
nido de fenômenos que condicionam o desenvolvimento do
homem histórico. [...] Ser politicamente marxista sem conhecer
o materialismo histórico é difícil, para não dizer impossível.”2 (ne-
gritos nossos)
Como afirma Trotsky, rechaçar ou desconhecer o materialismo his-
tórico leva a uma desorientação política e programática e a afastar-se
do marxismo. Por isso, os reformismos e o stalinismo deformaram-
no completamente ou abandonaram-no.
2
TROTSKY, L. Saber militar y Marxismo, 1922.
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146 Dossiê

Aqueles que afirmam que o Materialismo Histórico é uma lenda


do stalinismo deveriam ler atentamente Lenin e Trotsky, além dos
próprios Marx e Engels. Existem também os que dizem que Engels,
após a morte de Marx, criou uma suposta ‘Teoria geral da história’,
que romperia com a concepção de Marx, ou que Engels teria iniciado
um caminho para um materialismo mecanicista. Os que afirmam isso
ignoram a obra conjunta de ambos e as referências claríssimas citadas
acima, de Lenin e Trotsky, em defesa da concepção materialista da
história como teoria e como ciência antes - e no caso de Trotsky -
depois do surgimento do stalinismo.

O que foi e o que é o stalinismo?


Para entender o fenômeno do surgimento do stalinismo, partimos
da concepção materialista da história, e devemos vinculá-lo ao con-
texto histórico e ao setor social do qual surgiu.
Quando Lenin analisou a falência programática e política da II In-
ternacional devido à adesão desta às burguesias de seus países na 1ª
Guerra Mundial em 1914, ligou-a ao surgimento de uma aristocracia
operária nos países imperialistas e de uma burocracia partidária, que
se apoiava nos parlamentares e nas burocracias sindicais. O aparelho
do SPD alemão e da maioria dos demais partidos da II foram modi-
ficando o programa e acabaram por deformar e modificar totalmente
a teoria marxista em temas centrais, como a natureza do Estado, para
justificar sua adaptação reformista ao Estado burguês.
Quando Trotsky analisou o stalinismo, apontou as bases sociais
dessa camada social que usurpou o controle do estado soviético: o
atraso da sociedade russa e seu isolamento internacional. O aparato
contrarrevolucionário stalinista foi criado na luta dessa burocracia
para manter sua posição privilegiada na URSS, em coexistência com
o imperialismo dominante no mundo.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 147
Há uma série de pensadores que entendem o surgimento do stali-
nismo a partir de uma evolução teórica, como Michael Löwy3.
Em vários textos, entre os quais As Aventuras de Karl Marx contra
o barão de Munchausen / Marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento4, Löwy faz uma divisão teórica entre o ‘marxismo his-
toricista’ (de Lukács, Karl Korsch, Gramsci, Bloch, Lucien Gold-
mann, entre outros) e o marxismo dito ‘ortodoxo’, que ele associa a
Plekhanov, Kautsky e que, para ele, deu origem e se consolidou no
DIAMAT, a ‘teoria’ do stalinismo.
A visão de Löwy é abstrata em relação à luta de classes e à luta te-
órica e programática de fundo do período aberto pela ascensão da bu-
rocracia stalinista e tem um componente idealista. Só entendendo as
bases sociais dessa ascensão de uma camada social que usurpou o
controle do estado soviético pode-se entender como chegou a se tor-
nar dominante e porque era o antípoda e não a continuidade do bol­
chevismo, e porque teve que eliminar todos os antigos quadros
dirigentes e persegui-los até a morte, em particular Trotsky.5
Löwy, seguindo outros teóricos, apresenta uma visão superficial e
idealista do desenvolvimento do stalinismo, como se fosse uma co-
rrente teórica que se desenvolveu com uma concepção materialista
mecanicista tomando como seu guia um marxismo ‘positivista’, que
por um lado seria predominante desde a II internacional, e também
em Plekhanov, o fundador do marxismo russo. Fica implícito que o
3
Löwy é a principal referência teórica e filosófica das forças que se reivindicam do
antigo Secretariado Unificado da IV, após as mortes de Mandel e de Bensaïd, e tem
um papel importante no marxismo acadêmico.
4
Cortez Editora, 8ª edição, 2003.
5
Löwy, embora a defenda em textos como A política do desenvolvimento desigual e
combinado (Sundermann, 2015), distorce completamente a teoria de Trotsky. Segundo
ele, a realidade do pós-guerra teria demonstrado as limitações de Trotsky na Revolução
Permanente, ao não prever que direções de origem pequeno-burguesa (e, em seguida,
vinculadas ao stalinismo), poderiam ser direções revolucionárias socialistas (Fidel Cas-
tro, os sandinistas nicaraguenses). Para Löwy, dirigentes responsáveis pela derrota da
revolução centro-americana dos anos 1980, como Fidel Castro e Daniel Ortega eram
marxistas revolucionários.
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148 Dossiê

bolchevismo e o próprio Trotsky estariam fundamentados nesse ‘mar-


xismo positivista’. Para Löwy, houve autores que tiveram, ao contrá-
rio, um marxismo ‘antipositivista’, em especial Lukács e Gramsci,
para ele anteposto ao stalinismo6.
Basta 1905, Resultados e Perspectivas, para ver que já nessa época
Trotsky não tinha nada de determinista e é suficiente ler com atenção
O Desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899) para ver que
Lenin rechaça o determinismo dos mencheviques, assim como as uto-
pias camponesas comunais dos Narodniks. A diferença entre Lenin e
Trotsky em relação ao caráter da revolução russa - como explica
Trotsky em Três concepções da revolução russa - reside na questão
do papel hegemônico dos operários nessa revolução, e não tem a ver
com uma visão mecânica como a dos mencheviques e Plekhanov, que
deduziam do caráter da revolução democrática burguesa que seu su-
jeito social teria que ser a burguesia russa.
Ao fazer uma relação mecânica de continuidade entre Plekhanov,
Kautsky, Bukharin e Stalin como uma sucessão de visões de mundo
semelhantes que se sucedem no terreno das ideias, Löwy separa a
história do pensamento da história da luta de classes.
A própria história concreta do processo da burocratização na URSS
mostra que essa visão é simplista e mecânica. Para Löwy, o stalinismo
se reduziria a um ‘materialismo mecanicista’, transmitido desde a II
Internacional.
Para Trotsky, o stalinismo é o oposto do marxismo e do bolche-
vismo, a negação do programa e do marxismo da III Internacional
de Lenin.
6
Embora não seja possível abordar em profundidade neste texto, chama a atenção que
Löwy ignore a obra histórica, teórica e política de Trotsky, enquanto busca em diri-
gentes que se adaptaram a Stalin (como Lukács por todo o período de domínio stalinista
na URSS e inclusive após a morte de Stalin e a revelação de seus crimes) ou apoiaram
a tese central do socialismo em um só país antes e durante o período de sua prisão
(Gramsci) um ‘marxismo historicista’, vide Löwy, Gramsci e Lukács: em direção a
um marxismo antipositivista. In Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e
Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva; EdUSP, 1990. p. 97-110.
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Para Trotsky, o que diferencia o stalinismo do marxismo em sua
gênese é a ‘teoria’ do socialismo em um só país. Vejamos o que es-
creveu Trotsky:
“A teoria do socialismo num só país, brotada no estrume da reação
contra Outubro, é a única que se opõe, de maneira consequente e de-
finitiva, à teoria da revolução permanente. Ao tentarem os epígonos,
compelidos pela crítica, limitar à Rússia a aplicação da teoria do so-
cialismo num só país, por causa de suas peculiaridades (extensão te-
rritorial e riquezas naturais), as coisas só fazem piorar, em lugar de
melhorar. A renúncia à atitude internacionalista conduz, inevitavel-
mente, ao messianismo nacional, isto é, ao reconhecimento de vanta-
gens e qualidades peculiares ao país, capaz de lhe conferir um papel
que os demais países não poderiam desempenhar”.7
Como Trotsky explica, esta ‘teoria’ começou a surgir em 1924, a
partir da luta entre Stalin e a nascente Oposição de Esquerda. Era uma
tese-justificativa para a política da burocracia nascente na URSS. Ex-
pressava uma mudança radical da política da direção do partido e da
URSS, em relação à direção de Lenin e Trotsky. Sob a direção de Sta-
lin, em vez de apostar na revolução mundial para avançar para o so-
cialismo internacional, o PC da URSS e a III Internacional passam a
buscar a convivência com o imperialismo, o que teve nefastas conse-
quências para o proletariado internacional.
Trotsky reafirmou as bases teóricas do marxismo de Marx e Engels
e de Lenin e fez uma extraordinária contribuição teórica ao marxismo
com a Teoria da revolução permanente em sua expressão mais des-
envolvida em 1929 e baseada na Lei do desenvolvimento desigual e
combinado. Em conjunto com as contribuições de Lenin sobre a con-
cepção de partido, de Internacional e a caracterização do imperia-
lismo, sistematizadas nos 4 primeiros congressos da III, dão as bases
7
TROTSKY, L. A revolução permanente, 1929.
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para a IV internacional. No terreno filosófico, Trotsky seguiu desen-


volvendo a dialética materialista, nos passos de Marx, Engels e Lenin.
O Socialismo em só país já era - como diz Trotsky - um nacional-
reformismo em relação ao imperialismo. Levava necessariamente à
colaboração com um setor do imperialismo. Entre os anos de 1924 e
1933, no entanto, houve sucessivos zigue-zagues na política de Stalin,
com determinados períodos de ultraesquerdismo, como logo após a
derrota da segunda revolução chinesa em 19278. O chamado 3º perí­
odo (entre os anos de 1928 e 1933) foi marcado por esse tipo de po-
sição, como a associação da social-democracia ao fascismo, como se
fossem ‘gêmeos’, na Alemanha, levando à gravíssima derrota pelo
nazismo em 19339.
A partir daí, o stalinismo promove abertamente a colaboração de
classes: o VII Congresso da IC, de 1935, orienta a política de Frente
Popular para todos os países capitalistas, imperialistas ou coloniais.
O centro era buscar uma aliança com o setor progressista da burguesia
nacional e do imperialismo, para ‘defender a URSS’, e com isso sub-
ordinar a luta do proletariado a essas alianças, passando a atuar cla-
ramente como aparato contrarrevolucionário. A orientação desastrosa
para a segunda revolução chinesa, agora se estendia a todo o planeta,
buscando as ditas burguesias democráticas, ou os aliados burgueses
‘comprometidos com a paz’. Dessa posição surgiu a tese dos “cam­
pos progressistas”10 que, invariavelmente, incluíam um setor da bur-
guesia, nem que fosse apenas sua ‘sombra’, como na Frente Popular
espanhola da década de 1930.
E Stalin podia inclusive mudar de aliado burguês e impô-los aos
PCs, como durante o pacto com Hitler. E depois, com a mudança de
situação após a invasão nazista, passa a se aliar com os EUA e a In-
glaterra. Em prol de manter essa aliança no fim da II Guerra, consu-
8
TROTSKY, L. Stalin, o organizador de derrotas.
9
TROTSKY, L. Revolução e contrarrevolução na Alemanha.
10
Nahuel Moreno desenvolve esse conceito em A Traição da OCI, 1981.
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mada em Yalta e Potsdam, dissolve a III Internacional e ordena aos
PCs a entrega do poder às burguesias na França, Itália e Grécia, após
a derrota do nazismo.
A Frente mundial pela Paz durante a Guerra Fria e depois também
a ‘coexistência pacífica’ no período Kruschev partiam da mesma pre-
missa: buscar aliados dispostos à paz ou ‘democráticos’ e, invaria-
velmente, impondo aos PCs locais uma aliança com esses supostos
setores burgueses ‘progressistas’.

A relação entre stalinismo e as opressões


É frequente encontrar em marxistas e críticos do marxismo uma in-
terpretação de que o stalinismo se caracteriza por uma visão hostil às
lutas contra a opressão em particular, pois teria uma visão reducio-
nista, porque defenderia uma visão de classe contra classe, sectária, e
por isso não daria importância a questões como a luta pelos direitos
da mulher e contra o racismo em geral. Esse seria um problema de
concepção teórica do stalinismo.
Esse tipo de posição existiu no marxismo, inclusive em sua ala re-
volucionária. Por exemplo, Rosa Luxemburgo sempre se colocou con-
tra a autodeterminação nacional em função de ‘não alentar o
nacionalismo burguês’. Com isso, defendia uma posição sectária, que
ignorava a potencialidade revolucionária das lutas das nacionalidades
oprimidas, e Lenin fez uma polêmica corretíssima contra ela.
Mas o stalinismo não tinha, nem tem, uma concepção geral de con-
trapor “a luta contra a opressão à luta pelo socialismo”. O stalinismo
não era ‘sectário’ frente às questões democráticas ou às opressões,
como era Rosa Luxemburgo frente à questão nacional.
A URSS de Stalin fez retroceder a situação das mulheres, recompor
a família burguesa11; aplastou as nacionalidades, como na Geórgia e
Ucrânia, perseguiu as LGBTs. Utilizou o antissemitismo para atacar
11
Stalin usava argumentos como os de voltar à felicidade do lar, mas a sobrevida da
velha família, segundo Trotsky não se deveu a isso, mas à imaturidade da revolução.
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e caluniar opositores, assim como o machismo para subordinar as


mulheres e adequá-las ao papel tradicional no modelo burguês, cha-
mando-as a ser mães exemplares “na defesa da pátria socialista”.
Também nos países capitalistas, os PCs perseguiam todos os militan-
tes que se opunham a seus giros políticos burocráticos, e utilizava o
machismo e o racismo, como fez contra os dirigentes negros do PC
norte-americano que se opuseram à conciliação com a burguesia nos
anos 1930.
Mas, isso não impedia que, quando havia lutas democráticas im-
portantes, o stalinismo participasse e tratasse de se colocar à frente
das lutas contra a opressão para desviá-las. Para isso, apelava à cola-
boração de classes com a burguesia para que as lutas não superassem
os limites dos estados burgueses.
Nas décadas de 1960-1970, o stalinismo tratou de intervir como
aliado dos movimentos coloniais africanos pela independência, para
desviá-los, congelá-los, como nos regimes stalinistas-burgueses de
Angola e Moçambique. Houve casos em que esteve contra as lutas
democráticas das colônias, quando tinha que ver com sua aliança com
os imperialismos dominantes. Por exemplo, no caso da Argélia nos
anos 50 e da Palestina em 1948, os partidos comunistas francês e pa-
lestino estiveram a favor do governo francês contra a independência
da Argélia e da partição da Palestina em dois estados, por uma con-
sideração da política de alianças da URSS naquele momento.
Ou seja, não se tratava de aplicar uma concepção geral em relação
às opressões, mas de aplicar a política contrarrevolucionária da bu-
rocracia da URSS, de acordo a seus interesses, fosse qual fosse. Mas,
em todos os casos, aplicava uma política reformista, de colaboração
de classes com setores da burguesia.
Se vemos o que se passa atualmente nas correntes stalinistas e neo-
stalinistas em relação às questões democráticas, vemos que também
nas questões ligadas às opressões, estas mantêm a definição central
reformista. Aqueles partidos que se mantêm como stalinistas, ou neo-

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Seminário Materialismo Histórico 153
stalinistas, reproduzem ainda hoje a ideia dos campos progressistas.
Agora se associam às ditaduras chinesa e castrista, que para eles são
o campo ‘progressista’ ou ‘anti-imperialista’, quando na verdade são
ditaduras capitalistas que perseguem os setores oprimidos em seus
países. Quando se dão lutas democráticas no interior desses países,
negam-se a apoiá-las, e classificam-nas de ‘contrarrevolucionárias’.
É o caso do PC Chileno, que define como sua estratégia “um novo
estado democrático e soberano” e estar no campo ‘anti-imperialista’
de Cuba, Venezuela e Nicarágua12, ao mesmo tempo em que se coloca
como adepto do feminismo13 no Chile.
O stalinismo e sua usurpação do marxismo:
os conceitos de Estrutura e Superestrutura
Para manter-se, o stalinismo formulou uma pseudoteoria própria,
e o resultado foi uma deformação completa, tomando a terminologia
marxista para transformar o materialismo histórico e dialético em uma
série de categorias fixas em uma visão determinista e mecanicista,
para justificar um evolucionismo reformista . Assim fizeram com o
conceito de forças produtivas e relações de produção, apresentando
a história como uma sucessão evolutiva e universal dos modos de
produção que se encaminham em forma inexorável ao socialismo.
Segundo eles, o marxismo é um determinismo econômico total e a
superestrutura não passaria de um reflexo necessário e definido de
antemão pela estrutura. Mas, para recuperar o materialismo histórico

12
“Cuba, Nicarágua e Venezuela continuam jogando um papel fundamental nesta du-
ríssima batalha pela mudança das correlações de forças a favor dos Povos”. Docu-
mento do XXVI Congresso Nacional do PC Chileno.
13
“Devemos caminhar até a definição de que o Partido Comunista, além de definir-
se marxista-leninista …caminhará até a formação e adscrição do feminismo como ex-
pressão política da luta antipatriarcal e da perspectiva de gênero que nos permita a
transformação das e dos militantes para estabelecer relações entre os gêneros sem
discriminação, assimetria nem violência”.
14
Em especial a partir da década de 30, e se expressa claramente no texto Sobre ma-
terialismo dialético e histórico de Stalin, de 1938, que daí em diante foi a bíblia do
chamado DIAMAT.
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154 Dossiê

e dialético, não podemos simplesmente negar essas categorias, assim


como mantemos no centro do programa a ditadura do proletariado,
apesar do que os stalinistas fizeram ao distorcer seu conteúdo para
justificar o domínio burocrático na URSS.
O mesmo aconteceu com a categoria de superestrutura: Não é ver-
dade que Marx só haveria trabalhado com a categoria de superestru-
tura como metáfora umas poucas vezes. No A Ideologia Alemã, Marx
e Engels já a definem. Marx aplica-a em O 18 Brumário, no Prefacio
à contribuição à crítica da economia política e em O Capital. Além
disso, Engels, Lenin e Trotsky utilizaram-nas repetidamente. O pro-
blema não está nas categorias em si, mas na utilização não dialética
feita pelos materialistas vulgares, os social-democratas e os stalinis-
tas.
Marx tem uma definição dessa relação:
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a
sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como
um pesadelo o cérebro dos vivos. […] Sobre as diversas formas de
propriedade e as condições sociais de existência, toda uma superes­
trutura de sentimentos, ilusões, modos de pensar e diferentes con­
cepções de vida se levanta e se corporifica de forma peculiar.”15
(negritos nossos).
Lenin aborda-o em seu texto de polêmica contra os narodniks,
Quem são os amigos do povo, 1894:
“Esse é o esqueleto de O Capital. Mas, tudo depende, entretanto, do
fato de que Marx não se deu por satisfeito com esse esqueleto; em
que não se limitou à 'teoria econômica', no sentido usual da palavra
(…) O Capital teve tanto sucesso precisamente porque este livro de
um ‘economista alemão’ mostrou ao leitor toda a formação social ca-

15
MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte, parte III.
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Seminário Materialismo Histórico 155

pitalista como um organismo vivo: com seus vários aspectos da vida


cotidiana, com a manifestação social efetiva do antagonismo de
classe próprio de tais relações de produção, com sua superestrutura
política burguesa que protege o domínio da classe capitalista, com
suas ideias burguesas de liberdade, igualdade, etc., com suas relações
familiares burguesas”.
Lenin, em O Estado e a Revolução de 1917, volta a esse conceito na
discussão sobre o Estado, a principal superestrutura das sociedades de clas-
ses:
“Engels diz: ‘O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta
do exterior à sociedade. Mas, para que essas classes antagônicas, com
interesses econômicos contrários não se devorassem entre si e não
devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de
uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com
o fim de atenuar o conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força que
sai da sociedade, ficando, porém, acima dela e dela afastando-se
cada vez mais, é o Estado’.”
Ou seja, as superestruturas expressam as relações sociais existentes
e por sua vez influenciam a realidade e a consciência social. Tanto do
ponto de vista das classes dominantes quanto do ponto de vista da
classe operária, há uma influência recíproca entre as superestruturas e
as ideias herdadas, que podemos considerar estar ‘no cérebro’ ou na
‘mente’ das pessoas e por sua vez influenciam a vida e a história hu-
manas. Essa última noção é muito importante para um partido revolu-
cionário, que atua na luta de classes e sobre a consciência dos
trabalhadores.
Por outro lado, é importante, em qualquer totalidade, entender as
contradições e as diferenças entre as partes. Assim, em uma determi-
nada formação econômico-social, que é uma totalidade, com deter-
minadas partes, não podemos ignorar nem a diferença entre
superestrutura e estrutura nem a relação entre ambas que é de inter-
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penetração recíproca. Uma aplicação da categoria hegeliana, incorpo-


rada por Marx e Engels, da “unidade dos contrários”.
Entender a diferença e a relação entre estrutura e superestrutura é
decisivo para o programa e a política.
Como afirma Trotsky:
“A conquista do poder pelo proletariado internacional não podia nem
pode ser um ato simultâneo em todos os países. A superestrutura – e
a revolução entra na categoria das superestruturas – tem sua dia­
lética própria, que penetra autoritariamente no processo econômico
mundial, mas não suprime, de forma alguma, suas leis mais pro­
fundas”.16 (negritos nossos)
Existem duas maneiras erradas de entender a relação entre estru-
tura e superestrutura. Uma é a relação mecânica (típica do materia-
lismo mecanicista) que diz: uma certa estrutura define a superestrutura
correspondente e essa relação é de causa e efeito - da primeira sobre
a segunda.
Portanto, a evolução da primeira acabará por transformar a se-
gunda. Esse esquema está errado, porque, na realidade, a superestru-
tura também atua sobre a estrutura, e há uma inter-relação constante
e recíproca entre uma e outra. Porém, como diz Trotsky, não se pode
esquecer que há uma ‘correia de transmissão’ entre a estrutura e a
superestrutura, que não se pode analisar a superestrutura e entender
seu movimento sem relacioná-la permanentemente à estrutura, seu
desenvolvimento e suas mudanças.
“Marx põe em destaque, com grande clareza, as correias de transmis-
são, as engrenagens, os demais mecanismos de transmissão que con-
duzem suas relações econômicas às forças produtivas e à própria
natureza, a crosta terrestre, da qual os seres humanos são um produto;
mas também as relações econômicas que conduzem para cima,
para o que chamamos os aparatos superestruturais e as formas
16
TROTSKY, L. A revolução permanente.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 157
ideológicas que sempre tomaram seu alimento da economia.
Todos os homens comem pão; a maioria prefere comer com man-
teiga. Em outras palavras, existe uma interação constante entre a
economia e a superestrutura.”17 (negritos nossos).
Mas, dizer que se relacionam, que se interpenetram, não significa
o mesmo que dizer que se ‘entrelaçam’. Dizer que se entrelaçam não
esclarece como é sua relação. São duas partes da realidade que se in-
terpenetram, que se relacionam e influem uma sobre a outra, mas são
distintas entre si.
E o que ordena a sociedade capitalista é a estrutura econômico-so-
cial. Por isso, se vamos analisar superestruturas como o Estado, temos
que analisar qual classe o domina, se é operário ou burguês, porque
dessa análise depende nossa perspectiva e nosso programa. Por isso,
a discussão com Bernstein era se o Estado teria um caráter de classe
ou se, quando o regime do estado era democrático, seria um vazio a
ser preenchido pelo partido que ganhasse as eleições, como pensam
os reformistas de ontem e de hoje.
Como dizia Lenin, todo Estado que defende a propriedade privada
dos meios de produção e a exploração da classe operária é uma dita-
dura burguesa, independente do regime político que tenha. Essa é
uma definição essencial, decisiva, e deriva dessa relação entre super-
estrutura e estrutura. Daí se ordena o programa revolucionário pela
ditadura do proletariado.

***

17
TROTSKY, L. Las tendencias filosóficas del burocratismo.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
158 Dossiê

CONSIDERAÇÕES SOBRE O SEMINÁRIO


DE MATERIALISMO HISTÓRICO DA LIT-QI

Nazareno Godeiro – Brasil

As guerras e revoluções provocaram avanços nas elaborações pro-


gramáticas de Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Por isso, iniciarei o de-
bate relacionando as ferramentas teóricas do marxismo e a luta de
classes com o tema das opressões, o mais polêmico entre nós, neste
momento.

As opressões na perspectiva do marxismo

A mudança radical de Marx e Engels diante da opressão nacional


Ocorreram duas fases em seu pensamento: até 1867, acreditavam
que o capitalismo tinha um papel “civilizador” dos povos “bárbaros”.
Porém, daí em diante, partindo da experiência da Irlanda, concluíram
o oposto.
“Durante muito tempo acreditei que seria possível derrubar o re-
gime irlandês através do ascenso da classe operária inglesa. . . Um
estudo mais aprofundado convenceu-me presentemente do con-
trário... cheguei à conclusão de que o golpe decisivo contra as clas-
ses dominantes inglesas (e ele será decisivo para o movimento
operário de todo o mundo) não pode ser desferido na Inglaterra,
tem que ser desferido só na Irlanda.”
Este nexo entre a revolução de independência nacional e a revolu-
ção socialista, vislumbrada por Marx, tornou a luta contra as opres-
sões em parte indissolúvel, ainda que subordinada, da emancipação
social. Assim, a revolução nacional irlandesa seria a faísca que in-
cendiaria a “revolução proletária no Ocidente”.
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Seminário Materialismo Histórico 159
O marxismo estabeleceu uma conexão entre a revolução democrá-
tica (que ficou para trás) e a revolução socialista (que entrava em
cena) em uma relação complexa e contraditória1.
A revolução democrática, vista como um fim em si mesma, sepa-
rada e oposta à revolução socialista, é a ideologia do nacionalismo
burguês, que vai trair a revolução porque, hoje, é incapaz de garantir
a “liberdade, igualdade e fraternidade”.
A revolução proletária, separada e oposta à revolução democrática,
converte-se em um dogma sem vida e só nesta condição pode adquirir
“hierarquia” e “primazia”.

O erro teórico-programático de Carrasco diante das opressões2


O erro de Carrasco é, em primeiro lugar, separar de forma absoluta
a opressão da exploração e, em segundo lugar, “hierarquizar” a ex-
ploração que, por ocorrer na estrutura econômica, seria “mais impor-
tante” que a opressão, uma ideologia superestrutural:
“Podemos dizer agora, muito resumidamente, que a exploração e a
opressão são categorias distintas. A primeira é econômica e gera a
existência das classes. A segunda é cultural e social, gera uma situa-
ção de discriminação, abarca indivíduos de distintas classes sociais
e pode ter efeitos de maior ou menor peso.”
Essa separação entre exploração e opressão não é incorreta de todo
porque, na abstração do nosso pensamento, são duas coisas diferentes,
1
“A imaginação comum capta a diferença e a contradição, mas não a transição de uma
para o outra, e isso é o mais importante. Inteligência e compreensão. A inteligência
capta a contradição, a enuncia, coloca as coisas em relação umas às outras, permite
que o "conceito transpareça através da contradição", mas não expressa o conceito das
coisas e suas relações. A razão pensante (compreensão) aguça a indiferença da diver-
sidade, a mera multiplicidade da imaginação, e a transforma em oposição. Somente
quando atingem o ápice da contradição, as diversas entidades tornam-se ativas e vivas
em sua relação umas com as outras, adquirem a negatividade que é a pulsação inerente
ao automovimento e à vitalidade.” Lenin, Cadernos Filosóficos, Obras Completas,
Tomo 29.
2
CARRASCO, Carmen; PETIT, Mercedes. Mujeres Trabajadoras y Marxismo. São
Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2009.
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160 Dossiê

porém, na realidade, elas estão unidas: a exploração se iniciou com a


utilização de escravos de guerra, que foram transformados em uma
categoria social inferior para justificar a exploração.
Sendo duas coisas diferentes, estão mimetizadas na realidade e não
existe a exploração “pura”, dissociada da opressão: a burguesia, uma
minoria insignificante, necessita dividir os explorados para reinar.
Então, Carrasco deveria ver a opressão e a exploração como duas
partes contraditórias, que só têm vida e movimento em suas relações
recíprocas.
Ao tentar provar que existem “prioridades”, Carrasco afirma que
existem opressões mais importantes que outras, porque estão na “es-
trutura”:
“Nos países atrasados, a existência do imperialismo estabelece uma
diferença substancial entre a opressão imperialista e os demais tipos
de opressão (mulheres, negros, homossexuais etc.). Estes últimos têm
que ver com problemas de tipo essencialmente ideológico, cultural,
originados na superestrutura. . .”
Trata-se de um equívoco, porque tanto a opressão nacional quanto
a opressão de raça e de gênero têm bases materiais que dividem a
classe trabalhadora entre setores nativos e imigrantes, brancos e ne-
gros, homens e mulheres, diretos e terceirizados...
Assim, Carrasco estabelece as bases teóricas para a secundarização
da luta contra as opressões quando deduz que a tarefa fundamental é
a luta contra o imperialismo, em contraposição à luta contra as opres-
sões.
Na página 89, aprofunda o erro:
“Para nós é um fato inegável que é esta situação que as massas ex-
ploradas vivem ou sofrem diariamente que as levam a secundarizar
ou ignorar muitos problemas que afetam grupos importantes...” (…)
E, na página 90, secundariza a luta contra a opressão:

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“O caráter policlassista e democrático das lutas femininas lhes dá um


destino conjuntural, fugaz.”
E, por fim, Carrasco joga a luta contra as opressões para as calen-
das gregas:
“Esta situação não mudará até que o imperialismo seja derrotado de-
finitivamente em nível mundial.”
Estes erros resultaram de um esquema teórico equivocado: o que
ocorre na estrutura econômica da sociedade é mais importante que
na superestrutura.
Porém, o erro de Carrasco partiu de uma premissa correta: embora
opressão e exploração ocorram juntas na realidade, são duas coisas
diferentes e a luta contra a opressão deve estar subordinada à luta
pelo socialismo porque a opressão só terá uma solução definitiva com
o fim da exploração. Porém, o termo subordinada não é sinônimo
de secundarizada. Nunca derrotaremos a exploração enquanto hou-
ver opressão de um ser humano por outro.
A separação estanque entre exploração e opressão levará a derrota
de ambas as lutas, que serão esvaziadas de conteúdo revolucionário,
substituído por ideologias burguesas (nacionalismo, feminismo, ra-
cialismo) ou por ideologias ultraesquerdistas que só reconhecem a
luta de classes, em contraposição à luta das nações, raças e gêneros,
uma revolução proletária “pura”, que só existe na cabeça petrificada
de dogmáticos irrecuperáveis.

A evolução do pensamento de Marx e Engels


diante da “Comuna russa”
Alguns marxistas creem, equivocadamente, que esta evolução se
deu apenas no Marx “maduro”, na década de 1880.
Em O Capital, já vemos a análise da acumulação originária na
América que, a partir da invasão europeia, deu um “salto” de 5 mil

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anos, do comunismo originário ao capitalismo, sem passar por uma


escadinha histórica.
Marx e Engels viram a possibilidade de um salto histórico desse
calibre na Rússia:
“O Manifesto Comunista tinha por tarefa proclamar a iminente dis-
solução da propriedade burguesa moderna. Mas, na Rússia encontra-
mos, face à trapaça capitalista em rápido florescimento e à
propriedade fundiária burguesa que precisamente só agora começa a
se desenvolver, mais de metade do solo na posse comum dos cam-
poneses. Pergunta-se agora: poderá a comunidade, aldeia russa (...)
transitar imediatamente para a [forma] superior da posse comum co-
munista? Ou, inversamente, terá de passar primeiro pelo mesmo pro-
cesso de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do
Ocidente? A única resposta a isto que hoje em dia é possível é esta:
se a revolução russa tornar-se o sinal de uma revolução proletária no
Ocidente, de tal modo que ambas se completem, a atual propriedade
comum russa do solo pode servir de ponto de partida para um desen-
volvimento comunista.”
Esse foi um passo importante da teoria marxista, em oposição ao
materialismo mecanicista, que via a sociedade se desenvolvendo em
uma noção de progresso histórico, partindo do comunismo “primi-
tivo” até o socialismo, passando necessariamente pelo escravismo,
feudalismo e capitalismo.
Porém, Marx e Engels desenharam essa possibilidade de “saltos”
conservando a visão materialista e dialética, onde os homens fazem
a história sob determinadas condições que independem da sua von-
tade.
Assim, este salto poderia se realizar não pelas virtudes da proprie-
dade comunal da terra, mas, devido à existência prévia do capitalismo
na Europa Ocidental, a Rússia não teria que passar pelo calvário do
capitalismo, desde que a revolução russa se convertesse num ponto
de partida para a revolução europeia.
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Notem que neste caso também, Marx e Engels não contrapõem a
revolução democrática russa à revolução socialista na Europa Oci-
dental, mas colocam uma relação de transformação de uma revolução
em outra, onde a revolução russa seria uma alavanca, subordinada à
revolução europeia.

O erro teórico de Kevin Anderson e Musto


diante dos “saltos” e do “velho Marx”
Estes autores extraíram do contexto histórico a parte da elaboração
de Marx e Engels que mudou (os “saltos”) e esqueceram o que per­
maneceu (a subordinação da revolução democrática russa à revolu-
ção proletária na Europa).
Para Musto, Marx passou a ter uma concepção política correta de
1881 em diante, pois a partir daí [Marx foi]: “Conduzido pela dúvida
e pela hostilidade aos esquematismos do passado...”
Anderson deixa entrever sua posição: “o movimento anticapita-
lista está buscando vias ‘autônomas’ a uma nova sociedade.” (...) “a
questão em 1881 era se as formas comunais poderiam dar à luz novos
tipos de socialismo.” (...) “Um novo tipo de revolução comunista”.
Para legitimar uma posição de “novos sujeitos” revolucionários,
eliminam, na análise, a base material da sociedade, transformando os
indígenas/camponeses na força dirigente de um novo tipo de revolu-
ção, nem burguesa nem proletária.
Abandonaram a dialética do desenvolvimento histórico para revi-
ver o idealismo, na forma de ecletismo.

Materialismo e dialética: dois pilares do marxismo

No decorrer do seminário, alguns camaradas, no afã de superar os


erros objetivistas, abriram brechas para outro erro de sinal oposto: o
subjetivismo, que diminui o peso dos condicionamentos objetivos da
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164 Dossiê

fórmula: “os homens fazem sua própria história, mas não como que-
rem.”

Existem leis que regem o desenvolvimento da sociedade


e da natureza?
O conceito de lei é relativo, é uma verdade “morta”, é uma parte
do conhecimento, mas é real, tem um “grão de verdade”, como disse
Lenin.
Até Marx e Engels, a regularidade dos fenômenos era aceita ape-
nas nas ciências naturais. Na sociedade e na história prevalecia a ação
de grandes homens, de princípios eternos da moral.
Vejam a síntese da concepção materialista da história feita por En-
gels:
“Foi precisamente Marx quem descobriu a grande lei que rege o curso
da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas, sejam elas
no campo político, religioso, filosófico ou qualquer outro campo ide-
ológico, na realidade nada mais são do que a expressão mais ou
menos clara das lutas entre classes sociais, e que a existência e, por-
tanto, também os confrontos dessas classes são condicionados por
sua vez pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica,
pelo caráter e modo de sua produção e de troca, condicionado por
esta. Esta lei, que tem a mesma importância para a história que a lei
da transformação da energia tem para as ciências naturais...”
Diante disso, resulta incompreensível a insistência de camaradas
em afirmar que “não existe uma concepção materialista da história,
baseada em leis aplicáveis à história.” Isto é, para estes camaradas,
só existem as leis do capitalismo, expostas por Marx em O Capital,
onde só se pode conhecer o objeto específico em sua lógica própria.
É evidente que nada se repete na natureza, todo fato é único, sin-
gular, mas é assim apenas na aparência porque qualquer fato especí-
fico é parte de uma totalidade, isto é, é parte de um todo combinado
desigualmente. Assim, não se pode entender um objeto sem conectá-
lo com o todo, como parte da natureza e da história. Essa compreen-
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 165
são total do mundo é a concepção materialista e dialética, é o núcleo
central da teoria marxista.
É tão cristalina a contribuição de Marx e Engels à ciência social,
com suas leis e conceitos universais que, mesmo entendendo a preo-
cupação dos camaradas para não cairmos no materialismo mecani-
cista, sua obsessão contra as “leis universais”, contra todo
fundamento geral das sociedades humanas, termina por retirar a base
científica do marxismo, deixando apenas um “método” dialético, apli-
cável apenas a cada objeto específico, tornando-se uma teoria desli-
gada da vida em movimento, perdendo o lastro das premissas
universais do materialismo histórico e da dialética.
Assim, na visão dos camaradas, a concepção materialista da his-
tória converte-se apenas em um “método de análise crítico”. Come-
tem um erro, segundo meu ponto de vista, que Engels remete a
Feuerbach: “Para passar do homem abstrato de Feuerbach aos ho-
mens reais e viventes, não há mais que um caminho: vê-los atuar na
história”.
Por tudo isso, podemos conceituar3 o marxismo como a ciência
da transformação ou da revolução. É a ciência da sociedade, que
estuda tudo historicamente, na sua objetividade e universalidade.
Esta concepção materialista da história apoia-se em premissas e
conceitos universais que são o resultado do estudo científico desta
realidade social:
a) A correspondência ou não do desenvolvimento das forças produ-
tivas com as relações de produção4.
3
O conceito, na visão marxista, petrifica uma realidade em mutação, portanto todo
conceito é incompleto e imperfeito e não dá conta de apreender tudo que é a realidade,
mesmo que seja uma operação necessária para a humanidade fazer estas definições
imprecisas, como “noite”, “dia”, “alimento”, etc. É uma definição fragmentária, uni-
lateral da vida, porém, o unilateral também é real.
4
Segundo Trotsky: “Marx, que, ao contrário de Darwin, era conscientemente dialé-
tico, descobriu as bases para a classificação científica das sociedades humanas no
desenvolvimento de suas forças produtivas, e da estrutura de suas relações de pro-
priedade, que constituem a anatomia da sociedade.”
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
166 Dossiê

b) As relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza


para produzir e reproduzir a vida social gera as classes sociais e a
luta entre elas, como força motriz da história.
c) A lei do desenvolvimento desigual e combinado.
d) A relação entre a estrutura socioeconômica e a superestrutura po-
lítico-jurídica da sociedade5.
Aqui, aparecem os condicionamentos da estrutura sobre a super-
estrutura: a luta de classes opera sob determinadas condições mate-
riais que existem independentemente da vontade das classes ou
pessoas.
No seminário surgiram várias polêmicas em torno a esta questão.
Nas conclusões do seminário, Ricci e JR opinaram que é mais
apropriado dizer que a estrutura condiciona a superestrutura, o que
me parece correto. Porém, fazem, em seguida, uma afirmação equi-
vocada: “o condicionamento da superestrutura pela estrutura só opera
a longo prazo e à escala histórica”.
É um erro grave, porque, apesar das mediações entre a estrutura e
a superestrutura, estes condicionamentos materiais operam simulta-
neamente.
Basta ver que os bolcheviques não começaram com a expropriação
dos camponeses em 1917. Igualmente, foram obrigados a aplicar a
NEP, uma orientação que levava a restauração do capitalismo. O
mesmo ocorreu com o surgimento do stalinismo, expressão do atraso
russo.
5
“A tese que ‘o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida
social, política e espiritual em geral’, que todas as relações sociais e estatais, todos
os sistemas religiosos e legais, todas as ideias teóricas que emergem na história, só
podem ser compreendidas quando as condições materiais de vida da época em questão
tiverem sido compreendidas e tudo tiver sido explicado por estas condições materiais;
esta tese foi uma descoberta que revolucionou não só a economia política, mas todas
as ciências históricas (e todas as ciências que não são naturais, são históricas)”. "Não
é a consciência do homem que determina seu ser, mas, pelo contrário, é seu ser social
que determina sua consciência". Marx.
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Seminário Materialismo Histórico 167
Este erro pode ter graves consequencias programáticas, ao reduzir
o peso dos condicionamentos da estrutura e, portanto, retirar a base
material dos fenômenos sociais.
Concluindo: diante de cada fenômeno que queremos estudar, re-
lacionamos a lógica dialética com estas premissas e pressupostos para
encontrar uma orientação revolucionária.

Existem leis da dialética?


Lenin estabeleceu uma conexão entre a dialética e o materialismo:
“A dialética exige uma análise completa do fenômeno social concreto
em seu desenvolvimento, e que o externo e aparente seja reduzido às
forças motrizes essenciais, ao desenvolvimento das forças produtivas
e à luta de classes”6.
Sendo duas coisas diferentes, a concepção materialista da história
e a dialética, existe uma relação estreita entre elas. Esta conexão é
que expressa a riqueza do marxismo.
Lenin, no Resumo do livro de Hegel Ciência da lógica (no final
de 1914) fez uma definição da dialética que me parece perfeita:
“A lógica é a ciência do conhecimento. É a teoria do conhecimento.
O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas não é uma
reflexão simples, imediata e completa, mas o processo de uma série
de abstrações, a formação e desenvolvimento de conceitos, leis, etc.,
e estes conceitos, leis, etc., (pensamento, ciência = "a ideia lógica")
abrangem condicionalmente, aproximadamente, a regularidade uni-
versal da natureza em eterno desenvolvimento e movimento”.
"Assim, segundo Marx, a dialética é "a ciência das leis gerais do
movimento, tanto do mundo externo quanto do pensamento
humano”.7
6
LENIN, V. I. Obras Completas, Tomo XXIII - año 1913. As citações de Lênin são
tomadas das suas Obras Completas em espanhol, com 55 tomos, editadas pela Progreso
Editorial em Moscou, 1981.
7
LENIN, V. I. Op. cit., tomo XXVI - Carlos Marx, 1914-1915.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐


168 Dossiê

O estudo dos autores sobre o tema permite-nos entender que o nú-


cleo central da dialética é a unidade dos contrários, como diz Lenin
nos Cadernos filosóficos:
“Em resumo, a dialética pode ser definida como a doutrina da uni-
dade dos contrários. Isto encarna a essência da dialética, mas requer
explicações e desenvolvimento.”
Nós vimos anteriormente o erro de Carrasco ao fazer uma separa-
ção absoluta entre opressão e exploração. Porém, existe um erro de
sinal oposto que transforma a “unidade dos contrários” em “identi-
dade dos contrários”, quando se mescla a opressão e a exploração.
Lenin, mais uma vez esclarece esta questão:
“A unidade das contradições não deve ser compreendida como uma
identidade abstrata e indiferenciada... De fato, a unidade ou identi-
dade é condicionada, passageira, relativa: a luta dos princípios que
se excluem reciprocamente é absoluta, porque o momento da contra-
dição é absoluto. A luta, a contradição é o essencial.”

Deste ponto de vista, o texto de Ricci/JR é incompleto quando diz:


“Qual é uma das mais importantes conclusões programáticas que po-
demos tirar deste estudo? Que na realidade em que atuamos, já que
não há contraposição entre estrutura e superestrutura, a luta contra
a opressão não pode ser separada da luta contra a exploração, nem
pode ser secundarizada.”
Como não existe contraposição entre estrutura e superestrutura?
Claro que existe! E uma condiciona a outra. Dizer que há uma relação
dialética entre as duas não quer dizer que há uma identidade entre elas.
Essa confusão aparece em várias partes do texto quando, desde meu
ponto de vista, os camaradas obnubilam (esfumaçam, dissolvem) as
contradições, as fronteiras, entre opostos, por exemplo, quando dizem
que somente “Desde o ponto de vista genético, a matéria é anterior à
consciência”. Ou que “somente em termos simplificados pode-se dizer
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 169

que as circunstâncias mudam a consciência, isto é, que o ser deter-


mina a consciência”.
Provavelmente, os companheiros terão acordo com o que estou di-
zendo, tanto melhor, porque supera todas as discussões desnecessárias
entre nós.

O perigo reside apenas no determinismo mecanicista?


No seminário, encontramos uma ideia persistente: os erros da
nossa corrente são provenientes da superestimação dos elementos ob-
jetivos da realidade. Seguramente nossa corrente sofre de um desvio
“objetivista” enorme.
Porém, há um outro desvio do marxismo de tipo oposto: a super-
estimação da subjetividade, inaugurado por Bernstein, que tentou re-
tirar do marxismo o alicerce científico do materialismo.
A base dos dois desvios é a mesma: separam de forma artificial a
base material da sociedade e sua superestrutura política-ideológica.
O materialismo mecanicista unilateraliza o objeto enquanto o subje-
tivista unilateraliza o sujeito.
Mas, na história do marxismo, não apareceram apenas estes dois
desvios: apareceu um desvio que é o mais difícil de enfrentar: o ecle­
tismo, utilizado por Kautsky, depois de 1917, para derrotar a revolu-
ção russa e europeia.
Em que consiste este revisionismo?
Ele junta dois sistemas opostos como idênticos e destrói a riqueza
da contradição, na dissolução de um sistema noutro, como ocorreu
na dissolução dos Sovietes da Alemanha na Assembleia Constituinte,
em 1918. Kautsky partiu da identidade entre democracia e socialismo
para subordinar o socialismo à democracia burguesa.
É muito comum aos revolucionários sem tradição teórica adota-
rem, sem querer, este ponto de vista: “sou feminista e socialista”, “sou
democrata e socialista”.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
170 Dossiê

A evolução de Lenin:
de reformista tosco a revolucionário hegeliano?

O nosso seminário reproduziu, parcialmente, uma visão caricatu-


resca de Lenin, onde teria existido um Lenin antes e depois de ler
Hegel, em 1914.
Supostamente, Lenin teria entrado em “crise” com a traição dos
líderes da II Internacional, especialmente Kautsky e Plekhanov, seus
supostos mentores intelectuais, e se recolheu em uma biblioteca em
plena guerra para estudar a dialética.
Segundo essa visão, Lenin seria um materialista “mecanicista” que
disseminou um materialismo “bruto” no livro Materialismo e empi-
riocriticismo, cuja “teoria do reflexo” da realidade sobre a consciên-
cia desprezaria a ação do ser humano.
Este suposto mecanicismo de Lenin teria se expressado em todas
suas obras antes de 1914, inclusive no livro O que Fazer?, que teria
uma “rigidez dogmática” de um partido vanguardista, que desprezava
a espontaneidade das massas.
Assim, depois da leitura de Hegel, Lenin teria compreendido que
não só “a realidade transforma o ser humano, mas o ser humano trans-
forma a realidade”.
Essa caricatura, como toda caricatura, apoia-se num preconceito:
“Ao ver a contrarrevolução dentro do movimento revolucionário,
Lenin sentiu-se obrigado a romper com suas concepções anteriores
da relação entre materialismo e idealismo. A chave para seus Cader-
nos Filosóficos é nada menos que a restauração da verdade ao idea-
lismo filosófico contra o materialismo vulgar ao qual ele havia dado
luz verde em 1908 em sua obra Materialismo e Empiriocritismo”.8
O objetivo dessa caricatura é apresentar um Lenin hegeliano, dis-

8
DUNAYEVSKAYA, Raya. Marxismo y Libertad, 1959.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 171
solvendo o marxismo no “humanismo”. Por isso, é tão importante
desacreditar a visão de Lenin desenvolvida em Empiriocriticismo.
Essa caricatura é reproduzida por muitos autores na atualidade,
que não tiveram o cuidado sequer de ler o que Lenin escreveu a res-
peito.
A obra Materialismo e Empiriocriticismo foi republicada em se-
tembro de 1920, com um prólogo de Lenin:
“A presente edição, com exceção de algumas correções no texto, não
difere da edição anterior. Estou confiante que será útil, independen-
temente da polêmica com os "machistas" russos, como um manual
que ajudará a conhecer a filosofia do marxismo, o materialismo dia-
lético...”
Alguém crê que Lenin, com seu rigor científico, republicaria tal
obra se acreditasse que se trata de uma obra de “materialismo vul-
gar”?
Pode-se afirmar que o estudo de Hegel realizado por Lenin apri-
morou seus conhecimentos. Porém, extrair daí uma visão de um
Lenin “antes” e “depois” desta leitura é uma caricatura.
Evidentemente que nossos camaradas da LIT não compartem essa
caricatura. Porém, simpatizam com uma parte dela.
A versão “trotskista” dessa caricatura é que depois de ler Hegel,
em 1914, Lenin teria superado a visão reformista e etapista da revo-
lução russa, expressada na palavra de ordem de “ditadura democrá-
tica...”.

A evolução do pensamento de Lenin


Nessa visão se apagam as nuances do seu pensamento e da sua rup-
tura com os dirigentes da II Internacional, apresentando Plekhanov
como seu “mestre” até 1914.
A ruptura de Lenin com Plekhanov iniciou-se muito cedo, em 1900.
Evoluiu a partir de 1903, quando este se tornou menchevique e conso-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
172 Dossiê

lidou-se na revolução de 1905, com uma ruptura definitiva entre os


dois.
Afinal, Lenin era um reformista e “etapista” até 1917?
Como Lenin e Trotsky opinaram sobre o assunto, passo a palavra
para eles, começando pela posição do Lenin em setembro de 1905, em
meio à revolução:
“... da revolução democrática começaremos imediatamente, e preci-
samente na medida das nossas forças, das forças do proletariado
consciente e organizado, a passar para a revolução socialista. Somos
a favor de uma revolução ininterrupta. Não vamos ficar na metade
do caminho. Se não prometemos imediatamente todo tipo de "socia-
lizações", é precisamente porque conhecemos as condições reais
desta tarefa e, longe de velar pela nova luta de classes que está ama-
durecendo entre o campesinato, nós a colocamos a nu.”
Agora, Trotsky, falando de suas diferenças com Lenin, em A Re-
volução Permanente (1928):
“Em 1905, Lenin falava apenas de uma hipótese estratégica que ainda
estava para ser verificada pelo curso real da luta de classes. A fórmula
‘ditadura democrática do proletariado e dos camponeses’ tinha, acima
de tudo, e de fato, um caráter algébrico. Lenin não resolveu, anteci-
padamente, a questão das relações políticas entre as duas partes da
eventual ditadura democrática: o proletariado e os camponeses.”

O Congresso do Partido de 1907 votou a fórmula “ditadura do


proletariado arrastando atrás de si o campesinato”, aprovada pelos
bolcheviques, os poloneses e Trotsky, apontando para a exatidão de
minha interpretação.
Agora, vamos passar a palavra a Lenin sobre o balanço de sua po-
sição, feito na conferência de abril de 1917:
"Aqui ouvimos o alvoroço das réplicas daqueles que gostam de se
chamar ‘velhos bolcheviques’: Não dissemos sempre que a revolução
democrática burguesa seria completada apenas pela ‘ditadura demo-
crática revolucionária do proletariado e dos camponeses’?
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 173

(...)
Eu respondo: os slogans e as ideias bolcheviques foram, em geral,
plenamente confirmados pela história, mas, concretamente, as coisas
se tornaram diferentes, de uma forma mais original, mais peculiar,
mais variada.
(...)
A ‘ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos cam-
poneses’ já foi realizada (de certa forma e até certo ponto) na revo-
lução russa, uma vez que esta ‘fórmula’ só prevê uma correlação de
classes e não uma instituição política concreta chamada a realizar
esta correlação, esta colaboração. O Soviete dos Deputados Operários
e Soldados já é a realização, imposta pela vida, da ‘ditadura demo-
crática revolucionária do proletariado e dos camponeses’.
Esta fórmula tornou-se obsoleta. A vida transferiu-a do reino das fór-
mulas para o reino da realidade, tornando-a carne e osso, concreti-
zando-a e, com isso, transformando-a."

A fórmula Todo poder aos sovietes, até setembro de 1917, era uma
fórmula de compromisso que o proletariado lançou ao campesinato
dizendo: rompa com a burguesia e vamos tomar o poder. Não era uma
fórmula pura da ditadura do proletariado. É por isso que a revolução
russa não começou com a expropriação e formou um governo instável
de unidade com os SRs de esquerda, representantes do campesinato.
Os acontecimentos posteriores da Rússia, com a degeneração sta-
linista, assim como a forma contraditória das revoluções do pós-se-
gunda guerra, não tiveram muito a ver com as elaborações de Lenin,
especialmente o papel da pequena burguesia nestes processos?
A linha de Lenin e Trotsky foi a mesma que Marx ofereceu a Vera
Zasulich em 1882: a comuna russa pode ser uma alavanca para a re-
volução europeia. Em 1917: concessões ao campesinato enquanto
desenvolvia a revolução mundial.
Lenin falou sobre o assunto no 3º Congresso do POSDR, em 1905:
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
174 Dossiê

"Mas se.... a dialética interna da revolução finalmente nos trouxesse


ao poder antes que as condições nacionais para a realização do so-
cialismo tivessem amadurecido, não recuaríamos. Nosso objetivo é
quebrar a estreita estrutura nacional da revolução e empurrar o mundo
ocidental pelo caminho da revolução, assim como a França, há cem
anos, empurrou o Oriente por esse caminho."

Todo o segredo da questão é a combinação contraditória de duas


revoluções: a revolução democrática e a revolução socialista.
As mentes dogmáticas acreditam que no século 21 não há mais
combinação de revoluções opostas, mas que é uma revolução prole-
tária "pura", e estão erradas porque o capitalismo em decomposição
está criando uma legião de despossuídos, o que transformará a revo-
lução em uma tremenda confusão. Não existe uma revolução prole-
tária "pura", ela virá misturada com elementos do passado, trazendo
combinações originais, o produto da desigualdade do processo his-
tórico.
O que explica a unidade entre Lenin e Trotsky pós 1917 é o acordo
nos pontos estratégicos do programa marxista: o proletariado como
força dirigente da revolução e a necessidade da revolução mundial,
postulados centrais da teoria da Revolução Permanente.

***

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 175

NOTAS SOBRE
MATERIALISMO DIALÉTICO
LENIN E A DIALÉTICA
OPRESSÕES

Alicia Sagra - Argentina

O Materialismo Histórico é muito amplo e foram muitos os temas


discutidos no seminário. Nestas notas, vou me referir a algumas das
minhas primeiras conclusões.

Dialética materialista

Entramos no seminário com uma polêmica anterior, expressa na


Marxismo Vivo - Nova Época (Nº 15 e 16), sobre se existe ou não
uma lógica marxista. Ou seja, se há um método materialista dialético
do conhecimento que possa ser aplicado a diferentes aspectos da re-
alidade. A dialética materialista está relacionada à teoria do conheci-
mento ou, para Marx, a dialética é apenas um método de exposição?
Existem leis gerais que permitam a aplicação deste método, ou exis-
tem apenas as leis daquelas totalidades específicas que analisamos
dialeticamente, sendo possível, portanto, descobrir apenas as leis in-
ternas de cada caso em estudo?
Os debates e estudos do seminário deixaram-me ainda mais con-
victa das posições que expressei na MV nº 16. Como Marx e Engels
explicam, eles viraram a dialética de Hegel no avesso, fizeram com
que esta partisse da realidade, e incorporaram a prática como critério
da verdade. Assim, construíram uma nova lógica concreta, ou seja,
um método de estudo, de análise, pelo qual avançam no conheci-
mento a partir de sucessivas aproximações à realidade, que está em
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
176 Dossiê

permanente movimento e mudança. É o método dialético que Marx


descreve na Introdução de seu trabalho de 1857, Contribuição para
a Crítica da Economia Política. Também é um método de exposição,
mas não só isso. Nesse texto de 1857, Marx mostra como este deve
ser aplicado no estudo da economia. É o método, como diz Lenin nos
Cadernos Filosóficos, que Marx aplica brilhantemente a uma ciência
empírica, a economia política, e à história, dando origem ao Mate-
rialismo Histórico.
A relação entre a dialética materialista e a teoria do conhecimento
é explícita em Engels, Lenin e Trotsky: “a lógica formal é, acima de
tudo, um método para a descoberta de novos resultados, para avan-
çar do conhecido ao desconhecido, e isso é a dialética, embora em
um sentido mais elevado” (Engels, Anti-Dühring). “A dialética é pre-
cisamente a teoria do conhecimento (de Hegel e) do marxismo: aqui
está o "aspecto" da questão (e este não é um "aspecto" da questão,
mas a essência da questão) ao qual Plekhanov não voltou sua aten-
ção, para não falar de outros marxistas” (Lenin, Cadernos Filosófi-
cos). “A dialética da consciência (conhecimento) não é, portanto, um
reflexo da dialética da natureza, mas resultado da interação viva
entre consciência e natureza e – ainda mais – um método de conhe-
cimento, decorrente dessa interação...” (Trotsky, Cultura e Socia-
lismo.
Quanto à existência ou não das leis gerais dessa nova lógica con-
creta, a lógica marxista, Engels é categórico: Após a inversão feita
na dialética de Hegel, esta é reduzida às leis do movimento que oco-
rrem tanto no mundo exterior quanto no pensamento humano. E
Trotsky explica que as Leis da Lógica expressam as leis (regras, mé-
todos) da consciência em sua relação ativa com o mundo exterior
(Trotsky, Escritos Filosóficos).
O fato de haver um método geral do conhecimento, uma lógica
marxista que possui leis gerais, não significa que o resultado esteja

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 177

determinado, nem que se possa conhecê-lo pela aplicação mecânica


dessas leis. Essas leis não são absolutas, mas relativas, e se enchem
de conteúdo com a dialética interna da realidade que se está estu-
dando.
Como diz Trotsky, “a dialética não pode substituir a química”. A
dialética não é uma chave-mestra que resolve todos os problemas por
si só. “A dialética não substitui, mas requer uma análise exaustiva
da realidade que está sendo estudada” (Trotsky) e, para fazer essa
análise, são utilizados os métodos específicos das diferentes ciências;
por isso são feitas abstrações e determinações que são, então, inte-
rrelacionadas e colocadas em movimento aplicando-se o método dia-
lético de Marx, para chegar novamente à realidade a partir da qual se
iniciou, mas agora como objeto do pensamento, que se aproxima, mas
nunca é igual ao objeto real pelo qual começamos.
Como diz Nahuel Moreno no Lógica Marxista e Ciências Moder-
nas, “o mérito de Engels é ter sido o primeiro que, com Marx, exigiu
das ciências o uso desses dois conceitos [totalidade e movimento],
que por si só não fazem avançar um único milímetro a pesquisa, mas
que, combinados com ela, são os únicos que permitem que as desco-
bertas sejam coerentemente interpretadas”. Esse é o significado da
afirmação, tanto de Engels quanto de Lenin, de que a dialética daria
um grande salto quando as ciências naturais confirmassem suas de-
finições gerais, e que, por sua vez, as ciências naturais dariam um
grande passo à frente se os cientistas assumissem conscientemente a
dialética materialista.
É importante nos diferenciarmos e combater as deformações sta-
linistas do Materialismo Dialético. Mas não podemos "jogar o bebê
junto com a água suja", não podemos cair no desvio oposto de aban-
donar a visão de totalidade contraditória, que pode ser conhecida pela
aplicação da dialética materialista, para substituí-la pela visão de uma
soma de particularidades. Segundo Trotsky, negar a existência das

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐


178 Dossiê

leis gerais da dialética (particularmente a do salto da quantidade em


qualidade) existentes tanto no pensamento quanto na natureza pode
levar-nos a “retornar ao ato bíblico da criação”.

Lenin e a dialética
Há uma corrente internacional, não orgânica, com muitos segui-
dores que, embora tenham diferenças, concordam que teria havido
dois Lenin, um materialista “em estado bruto” e outro materialista
dialético. A mudança teria ocorrido em 1915, a partir de seus estudos
das obras de Hegel, e estaria evidenciada em suas anotações, os Ca-
dernos Filosóficos.
A figura mais conhecida desta corrente é Raya Dunayevskaya
(russo-americana), que foi secretária de Trotsky e que, mais tarde,
rompeu com o trotskismo. Seus primeiros trabalhos são do final dos
anos 50 do século passado, mas, atualmente, essas posições têm se
espalhado bastante, tornando-se uma moda, com autores como Kevin
Anderson1, Peter Hudis,2 Eugene Gogol3, Cyril Smith4, …...que se
referenciam em suas posições.
Dadas essas proposições, minhas conclusões são:
1. É falso que, a partir de 1915, há uma mudança qualitativa em
Lenin causada por seus estudos de Hegel, o que permitiria falar de
um Lenin pré-hegeliano (materialista mecânico) e um Lenin pós-
hegeliano (materialista dialético).
2. Aqueles que falam dos dois Lenin questionam suas obras anterio-
res como sendo produtos de seu "materialismo bruto", e argumen-
1
Autor de Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais. Boi-
tempo Editorial.
2
Editor, com K. Anderson, de “Selected writings on the dialectic in Hegel and Marx”
(textos de R. Dunayevskaya).
3
Autor de Raya Dunayevskaya. Filósofa del humanismo marxista.
4
Autor de Marx en el Milenio (chega à conclusão de que o discurso de Lenin em ho-
menagem a Plekhanov demonstra que ele nunca rompeu com o mesmo, e que não man-
teve o avanço mostrado nos Cadernos Filosóficos).

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 179

tam que Lenin, a partir de 1915, teria rompido com seu passado
filosófico. Esse passado encontraria sua expressão máxima no Ma-
terialismo e Empiriocriticismo (1908). Embora o ataque concen-
tre-se nesse trabalho, seu objetivo político é questionar suas obras
Que fazer e Quem são os verdadeiros amigos do povo (polêmica
com os narodniks), que expressam as bases centrais do leninismo.
3. Nada disso tem a ver com a realidade. Obviamente, Lenin não nas-
ceu "leninista", mas foi se construindo através da práxis. A partir
de 1914-15 constata-se correções, e esclarecimentos de algumas
de suas posições, para responder a novos fatos da realidade: a Pri-
meira Guerra Mundial, a traição da Segunda Internacional, a época
imperialista. Provavelmente, a necessidade de responder a esses
novos fatos motivou seus estudos de Hegel, e o aprofundamento
do seu conhecimento da dialética é parte de seu progresso. Mas, o
crescimento de Lenin não veio do domínio das ideias e sim dos
desafios colocados pelos processos centrais da luta de classes.
4. A mudança mais importante ocorreu no que se refere à teoria par-
tidária: novo partido e nova Internacional em consonância com
a época imperialista, com a ruptura orgânica com o oportunismo
social-chauvinista. Isso não tem nada a ver com deixar de lado o
Que fazer, pelo contrário, é um aprofundamento de suas proposi-
ções que, no terceiro congresso da Internacional Comunista, em
1921, são generalizadas para toda a Internacional. Também apa-
recem, em 1915-16, os primeiros esboços de mudança em relação
à dinâmica da revolução russa, que será concluída após fevereiro
de 1917 nas Teses de Abril, que não tem nada a ver com o aban-
dono de suas posições em relação aos narodniks, mas com o apro-
fundamento de sua visão sobre o caráter capitalista da Rússia e
sobre o sujeito social da revolução.

São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐


180 Dossiê

Materialismo e Empiriocriticismo – Cadernos Filosóficos


A obra de Lenin de 1908 visava enfrentar o desvio idealista (ou
agnóstico) que estava ocorrendo na fração bolchevique em quadros
da linha de frente, como Bogdanov e Lunacharsky, influenciados
pelas posições de Mach e Avenarius.
Não é casual o ataque desferido pela corrente encabeçada por Raya
Dunayevskaya, uma vez que, de modo geral, as posições dessa co-
rrente encaminham-se ao idealismo.
O ataque parte do que seria o "pecado original" de Lenin: ter sido
formado por Plekhanov, que consideram um "materialista mecânico",
cujas posições (juntamente com as de Kautsky) teriam dado origem
ao stalinismo. De acordo com esses setores, todo o trabalho de Lenin
anterior a 1915, seria referenciado em Plekhanov.
Essas alegações têm vários problemas: 1- Considerar que o stali-
nismo surge de interpretações equivocadas do Materialismo Histó-
rico; 2- Uma caracterização de Plekhanov que, no mínimo, não é
compartilhada nem por Lenin e nem por Trotsky; 3- A falsa alegação
de que no Materialismo e Empiriocriticismo Lenin referencia-se cen-
tralmente em Plekhanov.
O primeiro problema expressa uma interpretação idealista de como
surge o stalinismo, que seria necessário desenvolver em outro artigo.
Em relação ao segundo, é interessante ver as opiniões daqueles
que romperam politicamente com Plekhanov e nunca deixaram de
combater suas posições programáticas. Quando da morte de Plekha-
nov (em 1918), Lenin fez um discurso em sua homenagem dizendo:
“Devemos ter amplitude ideológica suficiente para lembrar, não do
Plekhanov que tivemos que enfrentar decisivamente, mas daquele de
quem aprendemos o ABC do marxismo... ele colocou uma espada
bem afiada nas mãos da classe trabalhadora, embora depois a tenha
abandonado... Ele morreu, mas nós, seus discípulos, ainda estamos
vivos lutando pelas bandeiras do marxismo”.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 181
E em 1925, Trotsky escreveu:
“Plekhanov não criou a teoria do materialismo histórico... Mas o in-
troduziu na vida russa. Este foi um serviço de enorme importância...
Seus pontos frágeis vieram da mesma fonte de seu principal mérito:
ele era um precursor, o primeiro cruzado do marxismo em solo
russo... No entanto, Plekhanov recuou aterrorizado e, assim, rejeitou
politicamente suas próprias antigas premissas teóricas. E não criou
outras novas. Daí que seu desamparo político e tropeços terminaram
em seu calamitoso colapso patriótico... Os desprezíveis partidários
e admiradores de Plekhanov da época de seu declínio coletaram,
após sua morte, as coisas mais errôneas ditas por ele em uma publi-
cação isolada. (...) O grande Plekhanov é o verdadeiro e nos pertence
completa e indivisivelmente. É nosso dever restaurar a figura inte-
lectual de Plekhanov à sua estatura plena em benefício das novas
gerações...”.

Sobre isso, Geoff Pilling afirma:


“Acho que nada disso tem a ver com a incapacidade de Lenin em re-
conhecer as limitações de Plekhanov no campo da filosofia... O que
nos diz é que Lenin tinha plena ciência de que estava lidando com um
movimento real, vivo, e não com um que pudesse ser reduzido sim-
plesmente a 'textos', a uma troca de 'posições'.”5
Em relação ao terceiro problema, basta observar que nos diferentes
capítulos de Materialismo e do Empiriocriticismo, quem é citado lon-
gamente não é Plekhanov, mas Engels. Lenin defende Plekhanov
como um materialista diante dos ataques dos novos idealistas, mas
não é acrítico. Nos Cadernos Filosóficos especifica as limitações fi-
losóficas de Plekhanov, mas já em 1908 critica-o fortemente por este
não identificar a relação entre as novas posições idealistas e a crise
aberta na física, com o questionamento das leis de Newton e o con-
sequente abandono do materialismo por um setor de físicos:
5
PILLING, Geoff, líder do WRP da Inglaterra. “Desenterrar Karl Marx”, Marxismo
Vivo nº 3, maio de 2001.
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182 Dossiê

“A ligação da Física moderna, ou melhor, de uma certa escola da Fí-


sica moderna, com a doutrina de Ernst Mach e outras variantes da fi-
losofia idealista contemporânea não deixa margem para dúvidas.
Analisar o machismo [seguidores de Ernst Mach, ndr], ignorando
este nexo, como Plekhanov faz, é zombar do espírito do materialismo
dialético, ou seja, sacrificar o método de Engels por uma ou outra
frase de Engels”.6
Essa relação entre o desenvolvimento da ideia com as ciências na-
turais é reivindicada por Trotsky quando ele afirma:
“Este livro [Materialismo e Empiriocriticismo] pode ser colocado ao
lado do Anti-Dühring de Engels como a aplicação do mesmo método
e das mesmas técnicas críticas a materiais relativamente novos das
ciências naturais, dirigidos contra novos adversários”.7

Lenin mais próximo dos idealistas?


Materialismo e Empiriocriticismo e os Cadernos Filosóficos, não
são textos fáceis e, em geral, são pouco lidos. Aproveitando-se disso,
a corrente da qual falamos baseia-se em frases de ambos os textos
para apresentar um primeiro Lenin que defende todos os materialistas
igualmente e um segundo Lenin que estaria mais próximo dos "ide-
alistas inteligentes" do que dos velhos materialistas.
Isso é duplamente falso. Primeiro, porque ignora as muitas vezes
em que, nos Cadernos Filosóficos, Lenin ataca Hegel por ser idea-
lista, por ignorar o "mais importante".
E, segundo, porque Lenin não defende todos os materialistas igual-
mente no Materialismo e Empiriocriticismo. O que ele esclarece é
que sua crítica ao velho materialismo é a mesma de Engels, que os
criticou por não serem dialéticos, e não por serem materialistas.
6
LENIN, V. I. Materialismo e Empiriocriticismo, Cap V, “La revolución contemporá-
nea en las ciencias naturales y el idealismo filosófico”.
7
TROTSKY, L. Las tendencias filosóficas del burocratismo.
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Seminário Materialismo Histórico 183

“Seria difícil, no entanto, expressar-se mais claramente do que Engels


no final do capítulo II de seu Ludwig Feuerbach sobre o materialismo
francês do século XVIII, sobre Büchner, Vogt e Moleschott. É im-
possível não entender Engels, a menos que se queira distorcer seu
pensamento (...) Engels lista, ponto a ponto, as três limitações fun-
damentais dos materialistas franceses do século XVIII, (...) Primeira
limitação: a concepção dos materialistas antigos era "mecanicista"
no sentido de que "aplicavam exclusivamente o padrão da mecânica
a processos de natureza química e orgânica" (...) Segunda limitação:
o caráter metafísico das concepções dos antigos materialistas no sen-
tido do "caráter antidialético de sua filosofia" (...) Terceira limitação:
manutenção do idealismo "nas alturas", no terreno das ciências so-
ciais, incompreensão do materialismo histórico (...) Exclusivamente
para essas três coisas, exclusivamente nesses limites, Engels rejeita
tanto o materialismo do século XVIII quanto a doutrina de Büchner
e cia.!”.8

A teoria do reflexo
Uma das críticas mais difundidas é que, no Materialismo e Empi-
riocriticismo, Lenin utiliza a teoria do reflexo, ou seja, as ideias, o
conhecimento, como reflexo da realidade. Nos Cadernos Filosóficos,
Lenin teria explicitado essa definição, afirmando tratar-se de um re-
flexo ativo, não passivo. Há os que interpretam esta definição de 1908
como uma indicação de que ele teria praticado um materialismo con-
templativo, desconsiderando o papel subjetivo, sendo, portanto, mais
parecido com o de Feuerbach do que com o de Marx.
Não concordo com essa crítica e interpretação. Embora nos Ca-
dernos Filosóficos a definição de reflexo seja mais correta, no texto
de 1908 ele dedica os três primeiros capítulos para explicar a teoria
do conhecimento do Materialismo Dialético. Lutando contra o novo
idealismo e agnosticismo, defende a existência da verdade objetiva,
que pode ser conhecida, embora sempre como uma aproximação da
8
LENIN, V. I. Materialismo… op. cit., cap IV Dos clases de crítica de Dühring.
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184 Dossiê

realidade; que o conhecimento é obtido a partir de sucessivas apro-


ximações à realidade, ou seja, a partir de sucessivos trabalhos do pen-
samento, que aplica o método do materialismo dialético com a prática
como critério da verdade. Nada disso tem a ver com o materialismo
de Feuerbach.
Embora os Cadernos Filosóficos mostrem um importante avanço
no conhecimento da dialética, na precisão da relação objeto-sujeito,
na crítica a Feuerbach, na crítica às limitações filosóficas de Plekha-
nov, de forma alguma Materialismo e Empiriocriticismo é o trabalho
de um materialista mecânico ou de um materialista contemplativo.
Em relação à questão de que Lenin, após 1915, teria rompido com
sua obra de 1908, ele próprio responde no prefácio à segunda edição:
“A presente edição, com a exceção de algumas correções do texto,
não difere da anterior. Espero que será de alguma utilidade, indepen-
dentemente da polêmica com os ‘machistas’ russos, como um manual
que ajudará a conhecer a filosofia do marxismo, o materialismo dia-
lético, bem como as conclusões filosóficas deduzidas das recentes
descobertas das Ciências Naturais (…)”.
N. Lenin, 2 de setiembre de 1920

Nossa corrente e as opressões


No seminário foi muito discutido o livro Mulheres Trabalhadoras
e Marxismo, escrito por Carrasco-Petit, em discussão com Moreno.
Esse livro foi publicado em 2009, mas foi escrito em 1979 como
um desenvolvimento explicativo dos conceitos levantados nas Teses
da Fração Bolchevique, votadas em 1980, e que guiaram nossa polí-
tica a partir de então.
O objetivo central, das teses e do livro, foi enfrentar o programa
frente-populista, baseado na teoria da "irmandade das mulheres", do
SWP (e posteriormente do SU), e o revisionismo da teoria da revolu-
ção permanente que estava implícito.

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 185

Com relação a esse objetivo central, as posições expressas nas


Teses e no livro desempenharam um papel muito importante. Fomos
a única corrente que deu essa batalha, que mantém grande atualidade,
pois a teoria da " sororidade" hoje permeia a maioria das correntes
que se reivindicam trotskistas.
Esclarecido esse aspecto central, e pensando em elaborações fu-
turas, é necessário especificar e corrigir os erros que existem, não nas
Teses, mas no livro.

1. A relação entre opressão e exploração deve ser explicada com base


no que foi desenvolvido no livro póstumo de Cecília Toledo, Gê-
nero e Classe.
2. Há um erro na definição do surgimento da opressão às mulheres.
Embora, como resultado da luta pela sobrevivência e devido à es-
cassez, a opressão dos mais fortes sobre os mais fracos sempre
tenha existido, como uma característica do reino animal, nem todas
as opressões têm a mesma origem. Com relação às mulheres e à
mudança qualitativa de seu papel na sociedade, quando se tornam
propriedade dos homens, é importante resgatar a afirmação de En-
gels de que isso ocorreu com o surgimento da propriedade privada
e da monogamia. Na verdade, seria necessário precisar esta afir-
mação, a partir do escrito em Gênero e Classe: com o surgimento
de propriedade privada e da exploração, visto que a exploração
surgiu antes nas sociedades de irrigação (asiáticas e andinas), nas
quais as mulheres já estavam submetidas aos homens.
3. Um importante erro do livro (não das teses) é que ele não explicita
a necessidade de lutar contra a opressão das mulheres no seio da
classe trabalhadora.
4. Em relação à política para as opressões: embora no capítulo IV
seja dito: “Nosso partido é, e será, o campeão no impulsionamento
da luta pelas demandas das mulheres, especialmente as explora-
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186 Dossiê

das e oprimidas...”9 , não deixa claro qual deve ser a relação entre
a participação na luta e a denúncia das direções.
O que deve ser tomado como referência é o que está indicado nas
Teses da Fração Bolchevique, onde não há tal confusão: os trots-
kistas, a vanguarda revolucionária do proletariado, são os in-
imigos mortais da opressão em todas as suas formas. É por isso
que estamos na vanguarda das lutas pelas reivindicações contra
a opressão das mulheres, e dispostos a participar de todas estas
lutas, em unidade de ação com todos aqueles que as promovam.
5. Finalmente, é necessário incorporar em elaborações futuras o con-
ceito de que, assim como a exploração divide os oprimidos, as
opressões dividem os explorados e que, especificamente, a opres-
são às mulheres divide a classe trabalhadora. Este conceito não
está no livro e, tampouco, explicitamente, nas teses da Fração Bol-
chevique ou nas teses da Terceira Internacional.

Sobre outras discussões em relação ao livro e às Teses

O caráter das tarefas e do processo geral


e histórico de libertação da mulher
É correto definir como democráticas as tarefas de libertação da
mulher.
“Para nós, nenhuma tarefa democrática, e isso inclui a relativa às
mulheres, é objetivamente contra o capitalismo (salvo as da libertação
nacional e da reforma agrária), contra a sua essência, que é a explo-
ração do trabalho assalariado através da propriedade privada. Em te-
oria, insistimos, a burguesia pode dar creches e refeitórios a todas as
mulheres, ou aborto e divórcio, sem eliminar-se a si mesma. Mas, na
época histórica atual, o imperialismo não pode resolver nenhum pro-
9
CARRASCO, Carmen; PETIT, Mercedes. Mujeres Trabajadoras y Marxismo, cap
IV, ed. Marxismo Vivo, 2da edición, p. 99.
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Seminário Materialismo Histórico 187

blema definitivamente e, portanto, lutas democráticas como a das


mulheres podem, no final e sob certas condições, adquirir uma dinâ-
mica anticapitalista. No entanto, esta não seria objetiva, inerente a
toda luta feminista como afirma Waters...”.10
Ao mesmo tempo, é correta a definição que se faz quanto do pro-
cesso histórico geral de libertação das mulheres:
“O processo de libertação das mulheres é profundamente revolucio-
nário, pois afeta os costumes e a vida cotidiana, e talvez seja ainda
mais revolucionário a partir do triunfo da revolução socialista, na
transição para o socialismo”11 (…) É muito provável, então, que a
luta das mulheres desempenhará um papel transitório para a nova so-
ciedade comunista, na qual será finalmente alcançado o estabeleci-
mento de relações humanas plenas, onde se alcançará, por um lado,
a expressão máxima da individualidade e, por outro, o maior desen-
volvimento nas relações sociais”.12
Este mesmo conceito está nas teses da Terceira Internacional:
“A igualdade não formal, mas real das mulheres, só é possível sob
um regime onde a mulher da classe trabalhadora será a proprietária
de seus instrumentos de trabalho, de produção e de distribuição, ...;
em outras palavras, essa igualdade só é realizável após a destruição
do sistema capitalista e sua substituição por formas econômicas co-
munistas”.13
E tem a ver com o segundo passo da teoria da revolução perma-
nente: o desenvolvimento da revolução em si mesma.

10
CARRASCO-PETIT. Op. cit., p. 45.
11
Idem, p. 43.
12
Idem, p. 91.
13
Tesis para la propaganda entre las mujeres, Tercer Congreso de la Tercera Interna-
cional, Los cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista, ediciones
Pluma, p. 172.
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188 Dossiê

O prognóstico para a América Latina e países semicoloniais


Há uma definição correta de que, até que o imperialismo seja de-
rrotado, a exploração dividirá os oprimidos e, portanto, a luta contra
o imperialismo é central. Mas, chega-se a um prognóstico errado ao
tentar explicar por que a segunda onda de lutas das mulheres não se
desenvolveu na América Latina ou nos outros países semicoloniais.
Propõe-se que, como nos países semicoloniais as contradições de
classe são mais explosivas que nos países imperialistas, isso significa
que:
“As mulheres da classe dominante veem seu destino diretamente
comprometido com os de sua classe; a pequena burguesia é muito
menos independente...; o movimento estudantil é mais frágil e com
muita afinidade com os trabalhadores; e as mulheres trabalhadoras e
camponesas pobres vivem sob os problemas da miséria e da fome
que afligem todos os trabalhadores, o que coloca os problemas de
sua opressão específica, como mulheres, em segundo plano. É isso o
que explica porque, tanto no passado quanto no ascenso atual, ini-
ciado em 1968, mesmo quando houve grandes lutas e até mesmo re-
voluções triunfantes, não se teve um fenômeno sequer parecido com
as mobilizações feministas dos países avançados”.14
Assim, tenta-se explicar um fato da realidade e dessa explicação
surge uma perspectiva, um prognóstico sobre a luta das mulheres em
países semicoloniais que, se olharmos para a realidade atual da Índia,
Chile e Argentina, mostra-se totalmente equivocado. Mas é um prog-
nóstico equivocado, não uma orientação política.

A defesa das condições de vida da classe trabalhadora


e da família camponesa diante do ataque imperialista
Ante essa proposta das Teses da Fração Bolchevique (e do livro)
surgem duas questões: uma instituição burguesa pode ser defendida?
Existe a família trabalhadora e camponesa?
14
CARRASCO-PETIT, Op. cit., p. 64.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 189

Em relação à primeira pergunta, sim, pode. Diante das privatiza-


ções do imperialismo defendemos a educação pública e, ante um
golpe, defendemos o parlamento.
Quanto à segunda pergunta, não há dúvida de que a família é uma
instituição burguesa e que, desde o ponto de vista teórico, não há
outro modelo senão esse, todas as famílias que surgem reproduzem
esse modelo.
No entanto, Marx refere-se à família operária, Clara Zetkin fala
da destruição da família trabalhadora como parte do sofrimento da
classe. Trotsky fala da família proletária. Eles não estão se referindo
a uma categoria teórica, nem a um modelo, mas à família que os tra-
balhadores têm na realidade.
A discussão que temos, diante do que é levantado pelas Teses da
Fração Bolchevique, é uma discussão política. E quando falamos de
política, partimos da vida como ela é: na vida real há famílias operá-
rias e há famílias camponesas. Essas famílias são de diferentes tipos:
mãe, pai e filhos; mãe e filhos; duas mães e filhos; dois pais e filhos.
E todas elas seguem o modelo da família burguesa, porque em todas
há (ou reivindicam) o controle dos pais sobre os filhos e o direito de
herança. Em todas há, em menor ou maior grau, a opressão e, ao
mesmo tempo, cumprem uma função protetora, cuidadora e, em
maior ou menor medida, há afetos envolvidos. Não estamos falando
de categorias, mas de famílias concretas, as de nossos colegas de tra-
balho, de nossas próprias famílias. Essas famílias estão sendo ataca-
das pelo imperialismo, e com a pandemia e a crise econômica este
ataque está mais claro do que nunca. Devemos defendê-las contra
esse ataque, defendemos suas condições de vida? Quando a comuni-
dade LGBT defende seu direito de se casar, de ter filhos, o direito de
herança, ou seja, de ter uma família nos moldes existentes, defende-
mos esse direito ou não?
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190 Dossiê

Sobre a hierarquia das tarefas democráticas


Qualquer luta democrática, sob certas condições, pode se tornar o
gatilho para a revolução e, como propõe a Revolução Permanente,
todas elas fazem parte da revolução socialista mundial. Mas, nem
todas as tarefas democráticas são iguais ou têm o mesmo peso no pro-
grama. É devido ao caráter anticapitalista do problema da terra que
Lenin chega à conclusão de que a revolução democrática burguesa
russa (que teria como grande tarefa resolver o problema da terra) não
seria liderada pela burguesia. E deu peso fundamental à luta anti-im-
perialista, a qual define como central em todos os países. E não co-
locou no mesmo nível a liberdade de imprensa ou o divórcio. Vemos
o mesmo raciocínio em Trotsky. No Programa de Transição, diz:
“A tarefa central dos países coloniais e semicoloniais é a revolução
agrária, ou seja, a liquidação das heranças feudais, e a independência
nacional, ou seja, livrar-se do jugo imperialista. As duas tarefas estão
intimamente interligadas”.
Em relação às outras tarefas democráticas e sua combinação com
as duas centrais, nessa mesma obra, Trotsky afirma:
“O peso relativo de cada uma das reivindicações democráticas e tran-
sitórias na luta do proletariado, os laços entre elas e sua ordem de
prioridade, são determinados pelas peculiaridades e condições espe-
cíficas de cada país atrasado...”.
Isto é, em determinado país a questão racial desempenhará um
papel decisivo, em outro, será a xenofobia, etc. Mas, em todos os pa-
íses coloniais e semicoloniais, essas tarefas específicas combinam-
se com a luta anti-imperialista e a questão da terra.
Hierarquizar a opressão imperialista não significa minimizar outras
tarefas democráticas. Mas implica em que nosso programa está or-
ganizado em torno da luta contra o imperialismo, que é quem mantém
e reforça todas as opressões.
***
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ALGUMAS CONCLUSÕES SOBRE O SEMINÁRIO


DO MATERIALISMO HISTÓRICO

Eduardo Almeida Neto – Brasil

O seminário teve enorme importância. Vou, nesse texto, focar em


dois temas que estiveram no centro dos debates: a existência ou não
de uma lógica marxista e suas leis, e o tema da relação opressão-ex-
ploração.

I- Existe ou não uma lógica marxista e suas leis?

1- Em primeiro lugar, parece-me necessário localizar o materialismo


dialético como elemento básico do marxismo.
Como dizia Trotsky:
“… nós simplesmente nos perguntamos o que é o marxismo. Vejamos
mais uma vez os elementos principais.
Antes de mais nada, o método dialético. Marx não é o inventor deste
método e nunca alegou ser...Marx só poderia fazer isso libertando a
dialética de seu cativeiro idealista....
É neste sentido que a dialética, tendo encontrado seus direitos nova-
mente através de Marx e materializada por ele, constitui a base da con-
cepção marxista do mundo, o método fundamental da análise marxista.
(...)
O segundo componente mais importante do marxismo é o materialismo
histórico, ou seja, a aplicação da dialética materialista à estrutura da
sociedade humana e seu desenvolvimento histórico. (...)
O terceiro componente do marxismo é a sistematização das leis da eco-
nomia capitalista. O Capital de Marx é uma aplicação do materialismo
histórico ao plano da economia humana em um determinado estágio
de seu desenvolvimento, assim como o materialismo histórico como
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um todo é uma aplicação da dialética materialista ao plano da história


humana.” (Las tendencias filosóficas do burocratismo).

2- A lógica é um movimento na consciência que se aproxima do mo-


vimento que existe na própria realidade e permite transformá-la.
Isso se dá, por um lado, pela acumulação da prática diária simples e
imediata da humanidade em sua relação com objetos que parecem
imutáveis, que se traduz na consciência nos silogismos da lógica for-
mal. Ou seja, A = A, uma cadeira é uma cadeira, etc. Isso é suficiente
para entender e atuar sobre processos simples, dentro de determinados
limites.
À medida que os processos da realidade mostram-se mais complexos
e implicam movimentos e transformações, exige-se processos cogni-
tivos mais elevados, que foram sistematizados na dialética.
Como dizia Trotsky:
“Dentro dos limites da praxis cotidiana, as pessoas estão acostumadas
a lidar com objetos imutáveis. Como resultado desta lógica inata, her-
dada e automatizada, surge a lógica racional, que desmembra a natu-
reza em elementos autônomos e imutáveis. O desenvolvimento do
pensamento passa da lógica vulgar à dialética somente com base na
experiência científica acumulada, sob o estímulo do desenvolvimento
histórico (de classe).” (Dialética Materialista).

3- A discussão sobre a relação entre sujeito e objeto apresenta, com


Marx, uma evolução central a partir da dialética de Hegel. A reali-
dade, na concepção hegeliana, poderia ser apreendida pela consciên-
cia, por ser uma expressão dessa própria consciência, por inspiração
divina.
Marx define a relação entre a consciência humana e a realidade - o
sujeito e o objeto - com um enfoque materialista, apontando uma uni-
dade distinta da hegeliana. Nesse sentido, vai superar o idealismo he-
geliano, mas também o materialismo de Feuerbach:

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 193
“A principal insuficiência de todo o materialismo até os nossos dias
- o de Feuerbach incluído - é que a coisa [der Gegenstand], a reali-
dade, o mundo sensível, são tomados apenas sob a forma do objeto
[des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como ati-
vidade sensível humana, práxis, não subjetivamente.” (Teses sobre
Feuerbach).
A práxis é essa expressão da unidade entre o conhecimento e a reali-
dade, como uma prática transformadora.

4- Lenin refletirá sobre o tema, dizendo que é melhor falar de unidade


nessa relação sujeito-objeto, e não identidade:
“A identidade das contradições (talvez fosse mais correto dizer sua
‘unidade’, embora a diferença entre os termos ‘identidade’ e ‘uni-
dade’ não tenha, neste caso, uma importância essencial e, em algum
sentido, ambos os termos são justos) constitui o reconhecimento (des-
coberta) da existência de tendências contraditórias e mutuamente ex-
cludentes e antagônicas em todos os fenômenos e processos da
natureza (tanto os do espírito quanto os da sociedade).” (“Sobre a
Dialética”, Cadernos Filosóficos).
5- Trotsky avança sobre o mesmo tema:
“A identidade do ser e do pensar, segundo Hegel, significa a identi-
dade da lógica objetiva e subjetiva, sua congruência final. O mate-
rialismo aceita a correspondência do subjetivo e do objetivo, sua
unidade, mas não sua identidade, em outras palavras, não liberta o
fato de sua materialidade, a fim de manter apenas a estrutura lógica
da regularidade, da qual o pensamento científico (consciência) é a
expressão…
“Assim, a "dialética materialista" (ou "materialismo dialético") não
é uma combinação arbitrária de dois termos independentes, mas uma
unidade diferenciada - uma fórmula curta para uma visão de mundo
inteira e indivisível, que repousa exclusivamente sobre todo o des-
envolvimento do pensamento científico em todos os seus ramos, e
que por si só serve como suporte científico para a práxis humana".
(Dialética Materialista).
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
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Essa é a definição de Trotsky, de “unidade diferenciada”, como sín-


tese da relação dialética entre dois movimentos distintos, o da reali-
dade e o da consciência.
6- É essa relação de dois movimentos diferentes, mas associados, da
consciência e da realidade, unidos pela práxis, que vai possibilitar
uma aproximação sucessiva à realidade, em um movimento conjunto
que pode ser expresso em uma espiral:
“O conhecimento humano não é (ou não segue) uma linha reta, mas
uma curva que se aproxima infinitamente a uma série de círculos, a
uma espiral...
“O conhecimento é o processo pelo qual o pensamento se aproxima
infinita e eternamente ao objeto. O reflexo da natureza no pensamento
humano deve ser compreendido não de modo ‘morto’, não ‘abstrata-
mente’, não sem movimento, não sem contradição, mas no processo
eterno do movimento, do surgimento das contradições e da sua reso-
lução.” (Lenin, “Sobre la cuestión de la dialéctica”).

Nesse movimento conjunto, a consciência faz uma aproximação da


realidade, quando enriquece seu conhecimento e atua sobre ela, as-
socia esse conhecimento ao acúmulo prático e teórico do passado,
volta a atuar sobre a realidade, para conhecê-la, transformá-la e, ao
mesmo tempo, transformar a própria consciência.
Por isso, falávamos no seminário em uma espiral dupla: uma na re-
lação realidade- conhecimento-realidade-conhecimento e outra na re-
lação acúmulo teórico-prático (ou consciência anterior), contato com
a realidade, acumulo teórico-prático. Trata-se de um processo em
curso, inacabado, sempre em movimento, tanto na realidade quanto
na consciência.
Isso não tem nada a ver com a visão mecânica stalinista da “chave-
mestra” do materialismo com respostas prontas para tudo, mesmo
sem estudar nada. Segundo Trotsky:

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 195
“A dialética e o materialismo são os elementos básicos do conheci-
mento marxista do mundo. Mas isto não significa que eles possam
ser aplicados a qualquer campo do conhecimento como se fossem
uma chave-mestra. A dialética não pode ser imposta sobre os fatos,
mas deve ser deduzida deles, de sua natureza e desenvolvimento.”
(Cultura y socialismo).
O materialismo dialético nem é uma “chave-mestra” nem se propõe
a ser uma resposta universal. É uma metodologia de estudo, de aná-
lise, de compreensão dos processos da realidade e da consciência,
respeitando cada fenômeno com suas próprias leis.
A dialética pode ajudar, dentro de determinados limites, a ampliar os
horizontes, dar mais flexibilidade aos estudos dos processos especí-
ficos, sem substituir esses estudos, sem apontar resultados pré-deter-
minados.
Mas, permite também entender nossas próprias limitações individuais
e coletivas quando não existe acúmulo no estudo desses processos da
realidade.
Por esse motivo, Trotsky foi contra, em 1922, “edificar um domínio
militar especial através do método marxista”:
“É muito perigoso querer atribuir uma espécie de caráter absoluto ao
método marxista. (...)
“Tínhamos prometido a nós próprios criar uma ‘doutrina militar uni-
tária’ sobre uma base ‘proletária e marxista’ e, depois de termos dis-
cutido, chegamos a uma conclusão anterior — rever os nossos
regulamentos em função da experiência acumulada. (...)
“Mas, espero firmemente que a revisão dos regulamentos seja real-
mente útil; não vamos inventar uma nova doutrina militar pela via de
decreto; pelo contrário, vamos desembaraçar-nos de muitas coisas in-
úteis e formular mais claramente outras.” (Saber militar e marxismo).
Com a mesma compreensão, Trotsky dizia: “Pode-se, até, com maior
êxito, aplicar o marxismo à história do xadrez... No entanto, é im-
possível aprender a jogar o xadrez de maneira marxista” (idem).
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
196 Dossiê

O materialismo dialético pressupõe, dentro desses limites - sabendo


que não é uma “chave-mestra” - entender, estudar e atuar sobre a so-
ciedade e a natureza em toda sua complexidade, buscando apreender
sua totalidade, suas contradições, seus movimentos.
8- Gustavo Machado, em seu artigo na revista Marxismo Vivo nº 15,
pergunta: “Existe uma lógica marxista?” E responde negativamente,
afirmando que: “Para termos uma lógica marxista, digna desse nome,
deve-se pressupor que trata-se de uma lógica objetiva, passível de ser es-
tudada, aprendida e aplicada a todas as realidades particulares… Pergun-
tamos, como, sem metafísica, poderíamos encontrar tal lógica? Ora, uma
lógica capaz de definir qualquer totalidade deve possuir uma base mais
geral que se eleve para além das totalidades históricas e materiais que, em
seguida, ela mostra-se capaz de definir. Somente com pressupostos meta-
físicos, colocados para além da matéria e da história, poderíamos construir
tal lógica”.

9- Ou seja, para Gustavo, só poderia existir uma lógica marxista re-


correndo à unidade hegeliana, apoiada em um Deus, “além da matéria
e da história”. Assim, Gustavo nega a “unidade, não identidade” de-
fendida por Lenin nos Cadernos Filosóficos, e a “unidade diferen-
ciada” de Trotsky nos Escritos Filosóficos.
Por isso, citei diversas vezes no seminário o que Trotsky fala sobre
esse tema:
”O que a lógica expressa? A lei do mundo externo ou a lei da cons-
ciência? A questão é colocada dualisticamente, [e] portanto não co-
rretamente, [pois] as leis da lógica expressam as leis (regras,
métodos) da consciência em sua relação ativa com o mundo externo.
A relação da consciência com o mundo externo é uma relação da
parte (o particular, especializado) com o todo”.

Só a unidade de dois elementos distintos (a consciência e a realidade),


regidos por leis distintas, permite essa aproximação da realidade pelo
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Seminário Materialismo Histórico 197

estudo marxista. Por isso, Trotsky nega o dualismo e afirma a exis-


tência dessa unidade da consciência em sua relação ativa com o
mundo externo.
Gustavo nega isso. Afirma que Marx não usa a lógica marxista para
analisar o capitalismo. Para ele, só existe a lógica que surge do pró-
prio estudo do capitalismo: “Como se vê, Marx não aplica nenhuma
lógica, não parte de nenhum conceito lógico no seu exame da sociedade
capitalista, ao menos, nenhuma lógica que não seja aquela que encontra
como produto interno da própria forma social capitalista.” (Ibidem, p.
104)
Isso é errado. Não é o que diz Trotsky quando fala que o estudo de O
Capital foi produto da lógica dialética e do materialismo histórico
aplicados à economia burguesa.
10- Alguns camaradas no seminário entenderam que não existia di-
ferença nesse terreno entre essas afirmações de Gustavo e os que de-
fendiam a existência da lógica marxista e suas leis, mas negavam a
versão stalinista da lógica que resolve todas as questões, mesmo sem
estudá-las.
Seria, na compreensão desses companheiros, só “uma questão de
forma”. A meu ver, isso é um erro. Como aprendemos no estudo da
dialética, a “forma” expressa o “conteúdo”, está estreitamente ligada
a ele, são partes da mesma totalidade.
11- Em outro texto, Gustavo, afirma: “Em outros casos, a dialética foi
transformada em concepção geral do mundo, cristalizada nas três leis da
dialética de Engels que, no fim das contas, não diz nada além de que tudo
está em movimento. (...)
“Não pode ser, portanto, a lógica do movimento; porque estudar o objeto
em si e por si mesmo é respeitar suas relações e conexões internas, sua es-
trutura própria e inerente, sem aplicar, de fora, qualquer lógica, mesmo
que esta lógica se pretenda ‘dialética’.

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198 Dossiê

“Por isso, a dialética não é um método no sentido corriqueiro do termo.


Uma abordagem dialética não impõe de antemão nenhuma lei ao objeto
que procura expor dialeticamente, ao contrário, procura encontrar em seu
interior e em suas articulações específicas, suas próprias leis. Por isso, é
um absurdo falar em ‘leis da dialética’.”
Aqui, Gustavo expõe de novo sua oposição à existência de uma lógica
dialética e de suas leis. Ele opõe-se ao entendimento da unidade entre
o sujeito e o objeto defendida por Marx, a unidade não identidade de
Lenin, a unidade diferenciada de Trotsky.
Essa posição de Gustavo coloca em questão o lugar da práxis revo-
lucionária. Se não existe lógica marxista, se não existe um acumulo
teórico e político anterior à prática e que se enriquece com a própria
prática, qual é precisamente o sentido da práxis para Gustavo?
12- Mais adiante, nesse mesmo texto, Gustavo avança em sua com-
preensão do que é a dialética: “Porque a dialética é um modo de expo-
sição, é a busca em expor um dado objeto de forma a revelar sua
articulação total. O método dialético, se assim podemos chamar, não é
usado no início para compreender o objeto investigado ao final. A dialética
não é o ponto de partida da investigação, mas o ponto de chegada”.
Não é verdade que a dialética seja apenas um “modo de exposição”,
e não de análise. A dialética é, sim, um ponto de partida e também de
chegada. É um método que nos permite entender e melhor intervir
sobre a realidade, e depois se enriquece com a prática.
13- Como continuidade da discussão se existe ou não uma lógica mar-
xista, Gustavo afirma que não existem as leis da dialética marxista:
“Existem leis da dialética? Ora, se não existe uma lógica dialética, no sen-
tido que indicamos acima, não poderia existir, necessariamente, leis dessa
lógica dialética geral”.
Essa conclusão é um erro grave. É fundamental negar as leis ossifi-
cadas do stalinismo. Mas, a existência das leis da dialética não foi in-

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Seminário Materialismo Histórico 199
ventada por Stalin. No material do seminário podemos encontrar de-
zenas e dezenas de citações de Marx, Engels, Lenin e Trotsky falando
sobre as leis da dialética e do materialismo histórico.
14- Em Dialética da natureza, Engels apresenta assim as leis da dia-
lética:
“As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da
Natureza, assim como da história da sociedade humana. Elas não são
outras que as leis mais gerais de ambas essas fases do desenvolvi-
mento histórico, bem como do pensamento humano. Elas reduzem-
se, principalmente, a três:
1-A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa;
2-A lei da interpenetração dos contrários;
3-A lei da negação da negação.”

Essas leis nunca foram, no pensamento de Marx, Engels, Lenin e


Trotsky, consideradas “chaves-mestras” que deveriam ser impostas à
realidade. Nessa mesma apresentação, Engels adverte:
“Essas leis foram estabelecidas por Hegel, de acordo com sua
concepção idealista, como simples leis do pensamento... O erro
consiste em que essas leis são impostas à Natureza e à História,
não tendo sido deduzidas como resultado de sua observação,
mas sim como leis do pensamento”.
15- No Anti-Dühring, Engels explica e dá um exemplo da lei da ne-
gação da negação:
“Mas, afinal, em que consiste essa espantosa negação da negação...
Já se disse que o processo que atravessa, por exemplo, o grão de ce-
vada, desde a sua germinação até a morte da planta que deu vida a
ele, é uma negação da negação, e, com isto, não se pretende, de modo
algum, prejulgar o conteúdo concreto deste processo...”.
16- Lenin, nos Cadernos Filosóficos, fala sobre as leis da dialética
marxista:
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200 Dossiê

“A lógica não é a ciência das formas exteriores do pensamento, mas


das leis de desenvolvimento de ‘todas as coisas materiais, naturais e
espirituais’ - vale dizer, do desenvolvimento de todo o conteúdo con-
creto do universo e do seu conhecimento, isto é, o resumo, o resultado
da história do conhecimento do mundo.” (Capítulo III: “A Ideia ab-
soluta”).
17- Lenin fez uma brilhante exposição sobre uma das leis da dialética,
da relação entre o todo e as partes:
O individual é o universal: Portanto, os contrários (o individual opõe-
se ao universal) são idênticos, o individual existe apenas através da re-
lação que o conduz ao universal. O universal existe apenas no individual
e através do individual. Cada elemento individual é (de uma forma ou
de outra) universal. Todo universal é - um fragmento, ou um aspecto,
ou a essência de - um individual. Todo universal abrange nada menos
que todos os individuais. Cada indivíduo compõe de forma incompleta
o universo, etc., etc. Todo o indivíduo está ligado por milhares de me-
diações com outros tipos de indivíduos (coisas, fenômenos, processos),
etc.” (“Sobre a questão da dialética”).
18- Trotsky faz outra descrição do todo e as partes, como Lenin:
“Se visualizarmos o tecido da vida como uma rede complexa, o con-
ceito pode ser igualado a um nó particular. Cada conceito parece ser
independente e completo (assim opera a lógica formal). Mas, na re-
alidade, cada nó tem duas pontas, que o conectam a aos nós adjacen-
tes. Se uma ponta é puxada, o nó se desfaz – a negação dialética de
um conceito, em suas limitações, em sua aparente independência.”

19- Trotsky fala sobre a lei da transformação de quantidade em qua-


lidade:
“Deve-se reconhecer que a lei fundamental da dialética é a conversão
da quantidade em qualidade, porque [nos] dá a fórmula geral de todo
o processo evolutivo – tanto o da natureza quanto o da sociedade.”

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Seminário Materialismo Histórico 201
20- As posições de Gustavo de que “não existe uma lógica dialética”,
“não existem leis da dialética”, não se sustentam nos escritos de
Marx, Engels, Lenin e Trotsky, como vimos.
Segundo nossos mestres, existe a lógica dialética, existem as leis
dessa lógica, e essa é uma das bases (segundo Trotsky, a primeira) do
marxismo.
21- Alguns companheiros no seminário manifestaram-se contra a
existência da lógica marxista e suas leis (que seriam apenas “a chave-
mestra” que explica tudo) e contrapuseram a isso a defesa da neces-
sidade do estudo da realidade. Temos acordo completo com o estudo
exaustivo da realidade. Mas sobra uma discussão: como fazê-lo?
A polêmica com Gustavo é se existe um acúmulo na consciência, no
conhecimento, com a lógica marxista e suas leis, que se relaciona
com a realidade através de um estudo exaustivo e, assim, permite o
entendimento da realidade. Ou, trata-se apenas do estudo do próprio
capitalismo, e daí se extrai a lógica do próprio capitalismo.
Como Marx poderia analisar o capitalismo sem partir da lógica mar-
xista e do materialismo histórico? Marx ficaria diante de um material
amorfo, com dados desconexos e não conseguiria dar um passo
adiante. Segundo o próprio Marx:
“Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pres-
suposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, co-
meçarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato
social de produção como um todo. Considerado de maneira mais ri-
gorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração
quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída.
Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os
elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital
etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p.
ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o din-
heiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta
seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma deter-
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minação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez


mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abs-
tratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações
mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que fi-
nalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a
representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de
muitas determinações e relações. A primeira via foi a que tomou his-
toricamente a economia em sua gênese... O último é manifestamente
o método cientificamente correto.” (Grundrisse, 1857).

Foi assim que Marx pôde analisar o capitalismo, usando o materia-


lismo dialético, como disse Trotsky. E assim, com esse estudo, enri-
queceu também a teoria marxista.
Essa posição de Gustavo termina sendo uma concessão ao ecleti-
cismo, a uma visão particularista do tipo: “As leis não existem, só
existe a realidade concreta”. Isso não se apoia nem em Marx, nem
em Engels, nem em Lenin, nem em Trotsky.
22- Existe outra polêmica com Gustavo sobre o materialismo histó-
rico, e suas leis, com um conteúdo semelhante.
Entre o materialismo histórico de Marx, Engels, Lenin e Trotsky e o
materialismo mecanicista positivista de Stalin existe um abismo. E,
mais uma vez, Gustavo iguala tudo, afirmando inexistir em Marx uma
concepção que possa ser aplicada ao conjunto da história. Ele só re-
conhece o materialismo histórico entendido a partir do capitalismo.
E afirma que todas as elaborações de Marx em relação a formações
sociais anteriores são para explicar o capitalismo.
Isso não é verdade. A Ideologia Alemã, assim como o conjunto dos
textos que lemos no seminário, apontam para uma concepção e uma
teoria da história apoiadas na contradição entre as forças produtivas
e as relações de produção, que se expressam nas lutas de classes.
O marxismo não é uma filosofia, mas é, sim, uma teoria da história.
Como dizia Engels:

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Seminário Materialismo Histórico 203
“Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a
teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O resto
dissolve-se na ciência positiva da natureza e da história.” (Do Socia-
lismo Utópico ao Científico).
Trotsky, sobre o mesmo tema:
“O marxismo não é um dogma, mas tampouco é unicamente
um método; é, também, uma doutrina. A dialética materialista
é um método. Mas, Marx não se limitou a formular esse mé-
todo, ele aplicou-o em dois terrenos ao criar a teoria da econo-
mia capitalista (ciência) e a teoria dos processos históricos (a
‘filosofia da história’ ou, mais precisamente, a ciência). (“O
marxismo como ciência”, 1933)
O materialismo histórico não pressupõe nenhum resultado a priori,
nenhuma sequência pré-determinada e ossificada de formações his-
tóricas. E nem deixa de lado a necessidade de estudo em si de cada
uma dessas formações históricas.
Mas, como deve ser feito esse estudo das formações históricas? Como
se vai estudar o feudalismo, o escravismo, se não for a partir da loca-
lização das forças produtivas, das relações de produção, das lutas
entre as distintas classes e castas, e dos processos concretos econô-
micos políticos e ideológicos que se deram? Voltaremos aos tempos
pré-marxistas de estudar a história a partir de seus personagens prin-
cipais? Ou, como se fará o estudo concreto? Mais uma vez, será ne-
cessário combinar a utilização da teoria materialista da história com
o estudo exaustivo da realidade concreta.
23- É essa negação das leis do materialismo dialético e do materia-
lismo histórico que leva Gustavo a negar também a lei do desenvol-
vimento desigual e combinado em seu artigo na Marxismo Vivo nº
15. Para justificar sua posição, Gustavo afirma:“Aqui, o termo lei não
aparece no mesmo sentido que o empregado por Marx em O Capital. Esta
lei não denota uma articulação precisa entre as partes analisadas, apon-

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204 Dossiê

tando uma tendência necessária. Todas as leis apresentadas por Marx em


O Capital indicam uma tendência precisa: queda da taxa média de lucro,
acumulação de riqueza em um polo e pobreza no outro, regulação da pro-
dução e consumo por um valor impessoal etc. Já, a ‘lei do desenvolvimento
desigual’ denota, em sentido bem mais abstrato, um elemento em comum
ao desenvolvimento de todos os países. Mas, qual a dinâmica e articulação
interna deste desenvolvimento? Ora, tal lei do desenvolvimento desigual
nada diz a este respeito: temos que analisar a lógica específica do objeto
específico”.
Não é verdade que as leis do materialismo dialético ou do materia-
lismo histórico indiquem “uma tendência precisa”. Nem a lei do des-
envolvimento desigual e combinado, nem tampouco as leis
apresentadas em O Capital. As leis marxistas indicam tendências e
contratendências, e dessas contradições e choques resultam processos
com resultantes em aberto.
Marx fala da concepção materialista da história apoiado na contradi-
ção entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção. E é quando essas relações de produção não permitem o
desenvolvimento das forças de produção que surgem as épocas revo-
lucionárias. E a tradução disso é a luta de classes, que não tem “uma
tendência precisa”, mas tendências e contratendências, revoluções e
contrarrevoluções.
Evidentemente, todos os campos do conhecimento têm tipos de leis
diferentes, adequadas a cada conteúdo específico. Mas, nem as leis
da economia marxista, definidas por Marx em O Capital, indicam ne-
cessariamente uma “tendência precisa”. Por exemplo, a “queda da
taxa média de lucro”, citada por Gustavo, é produto da tendência de
aumento da composição orgânica do capital. Isso é comprovado his-
toricamente. Mas, não é verdade que indique “uma tendência precisa”
da taxa de lucro. Por que? Porque existem as contratendências. Por
exemplo, o aumento da taxa de mais-valia é uma contratendência,
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Seminário Materialismo Histórico 205
que se contrapõe à queda da taxa de lucros. Por isso, na década de
90, houve uma curva ascendente do capitalismo baseada no aumento
na taxa de lucros naquele período.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado não aponta e nem
deveria apontar “tendências precisas”. Só associa duas leis do mate-
rialismo histórico: a desigualdade na evolução das sociedades a nível
mundial e sua combinação nos processos econômicos sociais e polí-
ticos. As resultantes são os processos vivos que devem ser estudados,
sem resultados a priori.

II- Sobre a relação opressão-exploração

24- Por motivos das limitações de tamanho desse texto, não poderei
desenvolver vários temas relacionados a esse ponto. Aqui, vou sinte-
tizar minhas opiniões apenas sobre alguns desses temas.
25- O livro de Carmen Carrasco e Mercedes Petit foi a expressão de
uma dura e justa luta contra o frente-populismo no terreno das opres-
sões, presente no SWP dos EUA. Isso evitou que seguíssemos o ca-
minho seguido pelo próprio SWP, que viveu grandes crises por suas
capitulações ao nacionalismo negro e ao reformismo feminista.
No entanto, é necessário corrigir explicitamente erros grosseiros pre-
sentes nesse livro. Não se pode justificar esses erros em função dos
acertos. Como estamos fazendo em todos os debates teóricos, man-
temos nossas posições acertadas e corrigimos nossos erros, em busca
de uma síntese superadora.
26- Em seu capítulo III, “Opressão e exploração”, o livro afirma:
“E, então, temos que começar por dizer que, na luta pelo socialismo
e pelo comunismo, estabeleceram-se duas grandes etapas: A primeira,
que se abriu em 1917 e estendeu-se até a derrota mundial do impe-
rialismo e da contrarrevolução. É a etapa da luta pelo triunfo da re-

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206 Dossiê

volução proletária mundial, passando pela tomada do poder nos dis-


tintos países, que eliminará a propriedade privada dos meios de pro-
dução, a exploração do trabalho assalariado e eliminará, além disso,
as fronteiras nacionais dos países atrasados. A segunda será daí até o
comunismo.
“Para nós, é um fato inegável que esta situação das massas exploradas
é o que as leva a reduzir a importância ou a ignorar muitos dos pro-
blemas que afetam grupos importantes de pessoas, inclusive a metade
da humanidade, como as mulheres”.

27- Essa parte do livro apresenta uma perspectiva histórica marcada


pelo determinismo, com uma sequência pré-determinada, na qual pri-
meiro a exploração capitalista seria combatida. A luta contra as opres-
sões só teria centralidade depois da vitória da revolução socialista
mundial.
Isso é o oposto da concepção de Lenin em relação a essas lutas de-
mocráticas. É o oposto da concepção de revolução permanente, em
que as tarefas democráticas podem cumprir papéis de transição.
Essa visão choca-se com a realidade. As lutas contra as opressões ti-
veram no século XX, e seguem tendo no XXI, centralidade nos pro-
cessos revolucionários, seja ao redor das lutas das nacionalidades,
seja contra as opressões dos negros, mulheres, LGBTs, imigrantes.
28- Em segundo lugar, o livro ignora a caracterização da opressão no
seio do proletariado. Esse elemento da realidade ganha peso a cada
dia, pela política da burguesia de dividir conscientemente a classe
entre brancos e negros, homens e mulheres, héteros e LGBTs, nativos
e imigrantes.
A opressão divide o proletariado e a luta contra as opressões é uma
luta para unir a classe contra a burguesia. Como dizia Marx sobre a
questão irlandesa, a defesa contra a opressão nacional sobre a Irlanda
é uma condição para unir o proletariado na Inglaterra para lutar pela
revolução.
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Seminário Materialismo Histórico 207

29- Ao cometer esses dois erros (o determinista e por não ver a opres-
são no seio da classe), o livro aponta uma visão mecânica da relação
entre exploração e opressão, priorizando a luta contra a exploração e
secundarizando a luta contra as opressões.
Não estamos aqui fazendo balanço da LIT ou de qualquer um de seus
partidos. Temos uma história marcada pela luta contra as opressões
em todos os terrenos. Estou debatendo com um livro que expressa
erros teóricos sobre o tema.

30- Defendemos o proletariado como sujeito social da revolução e a


estratégia da revolução socialista para poder acabar não só com a ex-
ploração, mas também com todas as opressões.
Mas, isso implica no entendimento do proletariado como uma totali-
dade concreta, na qual se verá a maioria negra dos operários brasilei-
ros, o peso gigantesco dos imigrantes nos proletariados europeu e
norte-americano, os 40% ou mais de mulheres no proletariado em
todo o mundo (em alguns setores, como maioria da classe), etc.
É preciso que a vanguarda do proletariado seja também a vanguarda
contra as opressões no interior da classe. Para que o proletariado
possa se unificar contra a burguesia, será necessário combater a opres-
são no seu interior cotidianamente, seja pela educação seja pelo cons-
trangimento. E, para que o partido possa mover a vanguarda nessa
perspectiva, o próprio partido deve combater exemplarmente as ex-
pressões das opressões em seu interior.

31- No processo revolucionário, as questões democráticas podem as-


sumir um caráter de transição, exatamente pela impossibilidade do
capitalismo de resolvê-las de forma definitiva. O determinismo ex-
pressado nesse capítulo do livro choca-se diretamente com a lei do
desenvolvimento desigual e combinado.
O proletariado, para que seja o sujeito da revolução, terá de combater
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a opressão não só em seu próprio seio como no conjunto da socie-


dade.
Por esses motivos, a compreensão da totalidade exploração-opressão
contida no livro está equivocada. Não se pode combater o policlas-
sismo frente-populista de Mary-Alice Waters com uma postura equi-
vocada de subestimar as lutas democráticas contra as opressões.

***

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Seminário Materialismo Histórico 209

O MARXISMO COMO TEORIA DO CONHECIMENTO

Alejandro Iturbe – Brasil

O seminário sobre materialismo histórico realizado recentemente


surgiu como uma necessidade, a partir das diferenças existentes em
determinados debates programáticos, essencialmente em relação à
opressão da mulher e sobre a opressão nacional. Uma parte dos com-
panheiros faz uma crítica às formulações de Nahuel Moreno em
ambos os aspectos (ou a elaborações feitas sob sua orientação) e
dizem que estão baseadas em um enfoque determinista e esquemático
da relação entre estrutura e superestrutura e, portanto, da relação entre
exploração e opressão. Derivado deste debate (ou combinado com
ele) surgem outros como os da existência ou não de leis e da dialética
como tais (quer dizer, da realidade ou não da sua aplicação geral) e
de suas interpretações do materialismo históricos ou de seus aspectos.
Do meu ponto de vista, o marxismo, em linhas gerais e de forma
analítica, compõe-se de três partes muito ligadas entre si: uma con-
cepção de mundo, a relação do homem com ele e dos homens entre
si (o materialismo histórico); um sistema de leis (a dialética); e uma
aplicação da elaboração sobre a base anterior, que concretiza, corrige
e enriquece essa elaboração (a práxis ou prática consciente). Isto é,
neste enfoque, a aplicação é parte inseparável do conjunto.
Como dizia Lenin, considero que em teoria avançamos por apro-
ximações sucessivas como um guia para a ação. A realidade muda de
forma permanente e surgem novas combinações e novos processos.
Como se costuma dizer: a realidade é mais rica que qualquer esquema
e toda a teoria tem sempre um aspecto esquemático. Ao mesmo
tempo, Lenin apresentava-nos o outro lado de sua consideração: sem
teoria revolucionária não há ação revolucionária. Ou seja, toda ação
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210 Dossiê

que realizamos não é uma peça solta, mas adquire seu pleno sentido
em um marco teórico que a enquadra.
Portanto, mesmo a melhor formulação teórica contém erros e im-
precisões, e seu contraste com a realidade permitirá corrigi-la e mel-
horá-la, em um processo contínuo de avaliação da interação entre
teoria e prática. Neste ponto de correção, cabe, por um lado, deter-
minar a natureza do erro e, ao mesmo tempo, definir que parte deve-
mos corrigir e o que reafirmamos do conjunto (ou seja, o que
chamamos negar afirmando). Por exemplo, foi o que Moreno fez ao
criticar a formulação fechada das Teses da Revolução Permanente e
incorporar suas conclusões sobre os processos revolucionários do
pós-segunda guerra. Negou uma parte da teoria e reafirmou e enri-
queceu a essência do conjunto.
Considero que o marxismo é a ciência que tenta compreender a
transformação e o surgimento do novo. Por isso, contra a caricatura
feita pelo stalinismo, é o oposto do determinismo: o futuro não está
pré-determinado. No entanto, por um lado podemos formular hipó-
teses possíveis baseadas na combinação das tendências complexas da
realidade. Por outro lado, construímos determinações, conceitos pro-
vados pelo curso e estudo da história, que se transformam em pilares
da nossa compreensão da realidade e, a partir daí, da nossa orientação
programática e política. Vejamos algumas delas:
a) As premissas do valor de Marx, que se aplicam a diversos tipos
de sociedade no decorrer da história, com diversas formas de apro-
priação do produto excedente. A teoria do valor-trabalho é um
exemplo de sua aplicação na sociedade capitalista.
b) A história da humanidade é a história da luta de classes e de frações
de classe, sobre uma determinada base de desenvolvimento das
forças produtivas. Esta determinação também se aplica no decorrer
da história. Entre outras conclusões, leva-nos a rejeitar e combater
todos aqueles que nos propõem a colaboração entre classes anta-
gônicas, como a burguesia e o proletariado.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 211
c) Para mudar a estrutura socioeconômica do capitalismo é necessário
fazer uma revolução operária e socialista, tomar o poder, destruir
o Estado burguês e iniciar a construção de um Estado de novo tipo
que, cumprida sua missão, poderá “desaparecer”, etc. Isso nos leva
a rejeitar e combater toda formulação reformista de transformar o
sistema capitalista e seu Estado através de reformas, ou de disputá-
lo ou humanizá-lo
Na constatação dos erros teóricos e políticos que cometemos,
abrem-se dois debates. O primeiro é que, em função de corrigir um
erro, alguns camaradas passam dos limites e afetam partes que deve-
mos conservar. Acredito que é o que se passa com o tema de opres-
sões e a relação e interação entre estrutura e superestrutura. Em
função de corrigir uma visão que havia sido determinista e mecânica
sobre a interação entre ambas, acabam dissolvendo-as em uma uni-
dade praticamente indiferenciada. No entanto, não vou aprofundar
esse tema neste artigo. No seminário e em elaborações posteriores,
vários camaradas defenderam com profundidade um ponto de vista
que compartilho.
O segundo debate se abre com alguns camaradas que exacerbam
tanto a fase da aplicação que chegam à conclusão de que não há um
sistema geral, mas apenas sistemas que surgem da aplicação concreta
e que, fora disso, falar de leis da dialética é “metafísica” (na Mar-
xismo Vivo – Nova Época n.15 há um artigo de Gustavo Lopes Ma-
chado com essa visão). O marxismo ficaria então reduzido a uma
lógica dos processos concretos. Na Marxismo Vivo – Nova Época n.
16 há um primeiro artigo de resposta escrito por Alicia Sagra, com
cujo conteúdo geral eu tenho acordo.

O desenvolvimento da lógica marxista


O tema que quero aprofundar é que o marxismo como teoria do con-
hecimento, ou seja, como gnosiologia em seus diferentes aspectos: a
relação sujeito-objeto do conhecimento, os critérios da verdade, as fe-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
212 Dossiê

rramentas para essa relação e a construção dessas ferramentas. Acredito


que, neste campo, há um ponto de partida qualitativo em Marx e em
Engels, a partir das Teses sobre Feuerbach e do método empregado
n’O Capital, no Anti-Dühring e no Dialética da Natureza. Isto é, a
lógica marxista baseada nas leis da dialética de Hegel (depois de rom-
per com seu idealismo), unida à concepção materialista, já despojada
de seu mecanicismo anterior. Em outras palavras, o materialismo dia-
lético.
Alguns camaradas argumentam que Marx nunca escreveu uma Ló-
gica; ou seja, nunca elaborou uma formulação completa e específica
neste campo. Na verdade, ele sempre se referia a seu “método”, prin-
cipalmente nos trabalhos e escritos que antecederam O Capital, con-
hecidos como os Grundrisse. Ao mesmo tempo, nestes trabalhos, diz
que formulará de modo mais completo esse método após escrever
essa obra (algo que sabemos que não chegou a fazer).
Diante disto, cabem duas interpretações. A primeira é que este
adiamento era parte do próprio método de Marx e que, ao postergar
sua exposição, queria dizendo que era um método específico surgido
do objeto de estudo ao qual estava voltado (o modo de produção ca-
pitalista) e que só se aplicava a ele. Portanto, as leis estudadas e des-
cobertas só existiam como tais neste sistema. É o que defendem
alguns camaradas.
A segunda é que, assim como Marx criticou a visão de uma lógica
como sistema fechado e acabado, sempre reivindicou e utilizou as
leis da lógica dialética de Hegel e considerava que, despojadas do
idealismo hegeliano e invertendo-se a relação entre ser (matéria) e
consciência, eram “exatas”. Assim as aplicou, e não só ao sistema ca-
pitalista como também aos outros modos de produção. Engels fez o
mesmo (pela divisão de tarefas que havia feito com Marx) em outros
campos da ciência: em livros como o Anti-Dühring ou Dialética da
Natureza (incompleto). É errado, portanto, afirmar que o marxismo
não utiliza e/ou não descobre leis de aplicação geral.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 213
Para nós, o conjunto de leis herdadas da dialética hegeliana e en-
riquecidas por Marx e Engels constituí um sistema e, portanto, uma
lógica, uma ferramenta conceitual de compreensão da realidade. Mas,
apresentava duas diferenças com a maioria das lógicas anteriores: por
um lado, não estava fechada sobre si mesma (como o sistema hege-
liano) e sim aberta e em permanente processo de enriquecimento de
construção; por outro, não era uma lógica contemplativa ou mera-
mente especulativa, mas incorporava a interação com a realidade
como sua parte inseparável.
Portanto, de fato não temos uma lógica (ou seja, um livro especí-
fico), mas temos sua formulação nos diversos trabalhos de Marx e
Engels e trata-se de compor esse conjunto e interpretá-lo (e, na me-
dida do possível, enriquecê-lo). Parece-nos que foi o que fizeram seus
melhores discípulos: Lenin e Trotsky.

Lenin e Trotsky
Em seu artigo na revista Marxismo Vivo – Nova Época n. 16, Alicia
Sagra apresenta várias citações de textos de Lenin, de diferentes épo-
cas, nos quais ele considera o marxismo como uma teoria do conhe-
cimento, de aplicação muito mais geral, não se limitando ao sistema
capitalista. Uma delas, tirada dos Cadernos Filosóficos (1915) é
muito significativa:
“Da mesma forma deve ser o método de exposição (ou de estudo) da
dialética em geral (pois, para Marx, a dialética da sociedade burguesa
é somente um caso particular da dialética)”.

Ao mesmo tempo, Lenin reivindica a influência de Hegel e de suas


leis da dialética em Marx, e dedica um período de estudo às suas
obras para compreender melhor O Capital, no processo de elaboração
que o levaria a desenvolver seu trabalho sobre o imperialismo. Pes-
soalmente, acredito que Lenin não incorpora nenhum conceito novo
a esta base da dialética marxista. Mas, ao mesmo tempo, interpreta-
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
214 Dossiê

a com perfeição e a aplica com maestria às novas realidades: a ques-


tão agrária na Rússia, a teoria do imperialismo e, como contribuição
qualitativa ao marxismo, a concepção de partido para dirigir as mas-
sas até a revolução.
Considero que Trotsky faz uma contribuição qualitativa com a for-
mulação da Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado, desen-
volvida a partir do estudo do processo da revolução russa. Na
realidade, trata-se de uma “lei de leis” (ou de uma teoria em si
mesma) porque, ao mesmo tempo, articula e sintetiza todas as demais
leis da dialética. É impossível entender a realidade e operar sobre ela,
não só no campo da política, sem compreender e manusear esta lei.
Depois deles, há dezenas de autores marxistas que pouco ou nada
contribuíram, salvo em algum elemento pontual, ou tiveram visões
equivocadas (Marcuse, Lefebvre, Althusser, Sartre etc.). Depois da
queda do Muro de Berlim, alguns autores dessa geração abandonaram
o marxismo e, com outros que nunca foram marxistas, constroem as
distintas vertentes do pós-modernismo.

Nahuel Moreno
Em 1973, Nahuel Moreno escreve Lógica Marxista e Ciências
Modernas que acredito ter feito novas contribuições ao campo do
marxismo como teoria do conhecimento. O contexto em que esse
livro foi escrito é o seguinte: havia acabado de traduzir para o espan-
hol um trabalho de George Novack (Introdução à Lógica Marxista).
Este livro tinha alguns problemas deterministas e esquemáticos
(definição que escutei do próprio Moreno em um curso sobre lógica).
Inicialmente, Moreno pensou em escrever um prefácio, mas logo che-
gou à conclusão de que deveria escrever um material específico, com
outro ponto de vista. Ou seja, seu livro é, na realidade, uma crítica a
Novack. Só que, como Moreno gostava e respeitava muito Novack,
não o fez de forma polêmica, mas pela positiva.
Quatro temas centrais são abordados nesse livro. O primeiro é a
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Seminário Materialismo Histórico 215
reivindicação da influência de Hegel em Marx contra diversos autores
que consideravam que esta influência era negativa (idealista). O se-
gundo é a abordagem de um debate entre os que reivindicavam o as-
pecto hegeliano do marxismo: se o que primava em Marx era o
conceito de “totalidade” ou o de “contradição”. Moreno diz que
ambas as interpretações eram polos de uma unidade dinâmica. Sua
conclusão é brilhante: “A totalidade existe como verdade, mas é uma
verdade relativa”. Ao mesmo tempo, formula uma imagem da relação
entre as ciências como uma constelação de formação circular e espi-
ral, com relações próximas entre algumas e de todas com o conjunto,
com a lógica (a teoria do conhecimento) no centro do processo.

Piaget e Vygotsky
Até aqui, estamos no campo de interpretação do marxismo. Qual
é a contribuição de Moreno, então? A reivindicação de Piaget, de sua
epistemologia e de sua lógica hipotética-dedutiva como análoga ao
marxismo, embora sem origem nele.
Considero que Piaget é profundamente materialista e dialético,
desde a sua visão do “conhecimento” como uma função imanente à
vida e como um mecanismo de adaptação até a construção de ferra-
mentas do conhecimento, como os conceitos de estrutura e gênese (e
sua inter-relação), análogas à que Moreno considera para a totalidade
e a contradição.
Mas, acredito que o salto (e a grande contribuição que devemos
adicionar ao marxismo) é dado por Piaget ao formular o conjunto de
seu sistema (a lógica hipotética-dedutiva), que permite estabelecer
várias hipóteses possíveis do curso da realidade futura a partir da es-
trutura atual. Como diz Moreno, esse “real” (futuro) passa a ser “um
momento do possível”. Para mim, esta é uma contribuição extraordi-
nária, porque resolve a tensão existente entre o fato de o futuro não
estar pré-determinado e o de que há tendências que podem ser pre-
vistas a partir do que conhecemos hoje, e operar sobre elas.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
216 Dossiê

Há diversas críticas a Piaget: algumas delas o consideram só um


“estruturalista sofisticado”, outras são provenientes do marxismo e
da reivindicação do enfoque de Vygotsky (que era marxista) sobre o
processo do conhecimento. Sempre acreditei (pelas épocas distintas
em que viveram e desenvolveram seus trabalhos) que eles nunca ti-
veram contato. Mas descobri que, no final da vida de Vygotsky e na
etapa inicial de Piaget, eles mantiveram alguma correspondência.
Pessoalmente, acredito que entre os dois houve fortes bases de
coincidência e, neste marco, algumas diferenças de certo peso. Entre
as coincidências:
a) O conhecimento (inteligência) é uma construção que surge da inter-
ação do pensamento com a realidade.
b) Existem estágios nessa construção, em um processo de aperfeiço-
amento.
c) É possível realizar previsões a partir do pensamento.

Quais são as diferenças? Eu vejo duas centrais:

a) Piaget formula uma série de estágios naturais (biológicos), essen-


cialmente de dentro para fora e, neste sentido, pré-determinados.
Vygotsky era marxista, e coloca no centro a relação indivíduo-so-
ciedade (contexto social, interação com o meio) e, portanto, não
há automatismo nem pré-determinação nos estágios, mas alterna-
tivas de desenvolvimento de um ponto de partida. Acredito que
Vigotsky tem razão na dinâmica mais geral do processo. Mas, ao
mesmo tempo, que é correta a consideração de Piaget ao assinalar
que, sem uma base biológica de amadurecimento, não podem exis-
tir estágios superiores. Finalmente, por seu enfoque, Piaget tra-
balha em maior profundidade o campo das ferramentas do
conhecimento e sua construção, enquanto Vygotsky coloca no cen-
tro o educador e a escola como mediadores da relação entre socie-
dade- indivíduos e como orientadores do processo.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 217

b) Vygotsky afirma que a linguagem e a inteligência (construção do


conhecimento) estão profundamente ligadas, surgem de modo si-
multâneo e não se pode entender uma sem a outra. Piaget defende
que a linguagem já é o resultado de uma primeira construção de
um sistema lógico que a precede. Acredito que, neste caso, Piaget
tem razão, embora seja evidente que a linguagem e seu desenvol-
vimento contribuem tanto para a construção da lógica quanto para
seu desenvolvimento.
Pelo já exposto, acredito que os desenvolvimentos teóricos de
ambos não são opostos e sim complementares, e que se enriquecem
mutuamente. Uma companheira argentina, formada em teoria da edu-
cação, acaba de me enviar materiais de especialistas que afirmam esta
posição. Por exemplo, o canadense Michael Chapman e outros auto-
res. Também me enviou materiais de autores que partem de Piaget
para analisar outros caminhos de construção da inteligência que não
provêm do raciocínio lógico-matemático (o único considerado por
Piaget).
Muitos camaradas poderão se perguntar o que isto tem a ver com
os debates do seminário. Do meu ponto de vista, todo debate político
e/ou programático que se estende e permanece no tempo implica ne-
cessariamente diferenças teóricas (explícitas ou implícitas). Em nosso
caso, essas diferenças teóricas não têm uma base social ou material:
são debates entre revolucionários que (com todos os nossos erros) de-
dicam suas vidas à tarefa de construção da ferramenta para a revolu-
ção e é isso o que forja nossa unidade sólida e estratégica.
Mas, isso não significa que não existam diferenças entre nós sobre
o método de análise e compreensão da realidade, que se transformam
em formulações teóricas e, inevitavelmente, em debates programáticos
e políticos. Baseado no fato de que todos reivindicamos o marxismo,
a dialética e o materialismo histórico, nem todos os interpretamos e os
aplicamos da mesma maneira.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
218 Dossiê

Trata-se, então, de tentar pensar da melhor maneira possível para


melhor intervir sobre a realidade. Neste sentido, o marxismo sempre
buscou, em outros campos da ciência, raciocínios e construções que
o confirmem e o enriqueçam. Marx e Engels utilizaram Darwin,
Lenin fez várias vezes referências aos avanços da incipiente física
atômica, Moreno utiliza Piaget... Recentemente, a biologia desenvol-
veu o conceito de “equilíbrio pontuado” para explicar o desenvolvi-
mento de novas espécies; há uma riquíssima produção da mecânica
quântica e suas contradições com a teoria geral da relatividade de
Einstein etc.
Junto a isto, já disse que considero que o marxismo contém uma
teoria do conhecimento. Por isso, acredito que seja útil e necessário
o estudo daqueles que trabalharam e aprofundaram este campo, como
Piaget e Vygotsky, assim como contribuições posteriores. Não se
trata de perda de tempo. Pelo contrário, acredito que seja um estudo
útil e necessário para melhorar nossa capacidade de pensamento, de
interpretação da realidade, e da formulação de nosso programa e da
nossa política.
Minha experiência pessoal indica isso. Pertenço a uma geração de
quadros que, neste campo, foi educada pelo morenismo através da
Lógica marxista e Ciências Modernas e no estudo como forma de se
armar melhor para a ação. Apesar de todos os nossos erros, continua-
mos aqui.

***

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 219

SOBRE OS CONCEITOS DE "ESTRUTURA"


E "SUPERESTRUTURA" NO MARXISMO
E O PROBLEMA DA OPRESSÃO

Florence Oppen - Estados Unidos

Parte dos debates teóricos que travamos na compreensão das rela-


ções de opressão a partir de uma perspectiva marxista tem a ver com
o uso das categorias de estrutura e superestrutura e uma tendência a
encaixar nelas as relações de exploração e opressão, respectivamente.
Em reação a estas abordagens, alguns camaradas perguntam se não
deveríamos abandonar completamente estas categorias. Antes de de-
cidir o que fazer com elas, é importante entender que papel estes con-
ceitos desempenharam no trabalho de Marx, e como eles foram
posteriormente interpretados e distorcidos.

1. As categorias de “estrutura” e “superestrutura” em Marx

O esquema, ou metáfora, mais utilizado pelos marxistas para sim-


plificar e facilitar aos trabalhadores a análise materialista da sociedade
é o esquema do “edifício estruturalista”, ou seja, o esquema da estru-
tura e da superestrutura. As categorias de estrutura e superestrutura
foram mencionadas muito brevemente por Marx em 1859, em seu Pre-
fácio a Contribuição à Crítica da Economia Política e, mais tarde, re-
tomadas por Engels em algumas cartas. Essas categorias foram
posteriormente transformadas em um esquema pelo stalinismo em
seus manuais de marxismo, levando ao determinismo econômico,
onde a estrutura determina mecanicamente a superestrutura.
Marx escreve este prefácio para retomar sua luta contra o idealismo
filosófico de Hegel e dos neo-hegelianos. Estas categorias foram ela-
boradas para superar a filosofia do direito de Hegel. O objetivo de
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
220 Dossiê

Marx era entender as relações jurídicas com base na realidade material


e não com base nestas relações em si. É neste contexto que Marx apre-
senta as categorias de "estrutura" e "superestrutura", usando uma me-
táfora espacial para representar a sociedade:
“O resultado geral ao qual cheguei e que, uma vez obtido, serviu
como fio condutor em meus estudos, pode ser resumido da seguinte
forma: na produção social de suas vidas, os homens estabelecem cer-
tas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção que correspondem a um determinado estágio de des-
envolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade des­
sas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual a superestrutura jurídica e política
é construída e à qual correspondem certas formas de consciência so-
cial. O modo de produção da vida material condiciona o processo
geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência do
homem que determina seu ser, mas é seu ser social que determina
sua consciência”1.
Quero fazer três observações aqui:
1) As categorias de "estrutura" e "superestrutura" não se referem
a coisas concretas, mas aos “conjuntos de relações” que formam
estas esferas, que obviamente estão em nosso pensamento. São ca-
tegorias de análise da realidade, mas não têm referências concretas.
Estamos em um alto nível de abstração, pois pensamos na natureza
da relação entre as coisas e não nas coisas em si. A categoria de es-
trutura permite-nos entender como as relações de produção funcio-
nam entre si, e a categoria de superestrutura permite-nos entender
como as relações jurídicas e políticas funcionam entre si, qual é sua
lógica própria.
2) Em segundo lugar, Marx obviamente nos diz que, para enten-
der ambas adequadamente, não basta apenas entender sua lógica pró-
pria, mas é preciso entender como funcionam no todo, que função
1
Destacados meus.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 221
cumprem na lógica do todo social. A chave está em como ambas as
relações, as relações de produção e as relações jurídico­políticas
(e as formas de consciência) relacionam­se entre si no conjunto
da formação social que é o capitalismo. Para pensar o todo social,
este esquema torna-se estático e deve ser superado. O esquema serve-
nos bem para separar os dois tipos de relações, para ver se elas são
distintas, para analisá-las separadamente, etc., mas não para entender
como elas se combinam e se determinam na realidade. Se deixarmos
ali o trabalho de análise, ficamos com um esquema dualista e meca-
nicista da realidade social, e voltamos a um modelo de causalidade
não dialética, anterior a Hegel: um esquema em que os elementos
são determinados de forma linear e unidirecional. Hegel introdu-
ziu uma visão mais dialética das relações de determinação para pensar
o todo como um organismo com múltiplas determinações. Marx e
Engels levaram isso mais longe em seu entendimento dessas relações
de causa-efeito.
3) Para descrever “como as duas esferas estão relacionadas”,
Marx usa três palavras diferentes: "corresponder", "condicionar" e
"determinar", e, além disso, usa-as como equivalentes. É verdade que
estas três formulações podem ter significados diferentes, mas o mais
importante é entender que Marx e Engels procuravam superar o mo-
delo hegeliano de causalidade e determinação. Eles não abandonam
o conceito hegeliano de determinação, mas lhe dão outro significado.
Como aponta Engels em sua carta a Bloch:
“Há uma interação entre todos esses fatores, na qual, por meio
de uma infinidade de casualidades (ou seja, de coisas e eventos
cuja interconexão interna é tão remota ou tão difícil de comprovar
que podemos considerá-la inexistente, como insignificante), o mo­
vimento econômico finalmente se afirma como necessário.”2
Esta “interação” das partes umas sobre as outras produz uma “in-
finidade de casualidades”, ou seja, de acidentes que mudam e mo-
2
ENGELS, F. Carta a Bloch de 21-22 de setembro de 1890 (C1, p. 200)
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
222 Dossiê

dulam as formas de determinação. Cada elemento é determinado por


algo, mas, por sua vez, determina algo mais, embora, é claro, cada
coisa determine e seja determinada de uma maneira diferente (dife-
rença em quantidade e qualidade). Mas, para Marx, além disso, o todo
social ou conjunto de relações, ou o que é chamado de formação so-
cial, também deve ser entendido como uma causa imanente que pro-
duz efeitos nas partes, pois a sociedade deve ser pensada como um
organismo vivo que reproduz constantemente suas relações. Ou seja,
o conjunto das relações de produção (estrutura) e das relações jurí-
dico-políticas (superestrutura) compõe uma determinada formação
social, e esta forma, por sua vez, determina o funcionamento da es-
trutura e da superestrutura. Se as relações da estrutura são para a for-
mação social o que o motor é para um carro, podemos afirmar o
seguinte: o mesmo motor funciona de forma diferente em cada tipo
de carro (de acordo com a marca, o modelo, de acordo com as partes
do qual é composto), portanto o motor determina uma série de coisas
fundamentais no funcionamento do carro, mas o carro como um todo
(o conjunto de suas partes e relações) também determina como o
motor pode funcionar, o que ele pode e não pode fazer... e, sobretudo,
o motor por si só, fora de um carro... não funciona. É uma peça de
museu.

2. O uso das categorias nos materiais de formação


do morenismo
Encontramos o esquema estrutura-superestrutura reelaborado por
Moreno, no Conceitos Elementares do Materialismo Histórico (1984)
e é também o ponto de partida teórico do livro Mulheres Trabalha-
doras e Marxismo (1978). Moreno acrescentou um andar ao edifício
projetado por Marx em 1859, ou melhor, ele cavou um porão. No edi-
fício metafórico de Moreno há 3 andares e não 2: um andar inferior
ou -1, que é a infraestrutura (a relação do homem com a natureza, as
forças produtivas), um andar principal e básico, que dá para a rua, a
estrutura (as relações sociais de produção, a economia), e um andar
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 223

“de cima”, a superestrutura (as relações políticas, ou seja, o Estado e


as ideologias). Entretanto, a elaboração de Moreno não ajudou a su-
perar os problemas herdados de interpretação das categorias de Marx,
porque ele tendia a usar as metáforas de Marx como descrições de
categorias concretas do real, e não como categorias abstratas e analí-
ticas, que precisam ser superadas.
O principal problema do texto de Moreno é um problema de mui-
tos materiais pedagógicos do marxismo, que tentam "concretizar" as
categorias abstratas de "estrutura" e "superestrutura" e usam a metá-
fora do edifício para nele colocar as figurinhas da realidade socia.3
No térreo da estrutura, colocamos as seguintes figurinhas:
“A burguesia e o proletariado são as classes antagônicas e fundamen-
tais da sociedade capitalista. Há também os proprietários de terras,
os pequenos proprietários e o lumpem-proletariado.”4
O mesmo acontece quando chegamos à “superestrutura”::
“Em primeiro lugar, as instituições, como o Estado, a polícia, o exér-
cito, a igreja, a escola, o parlamento, e poderíamos acrescentar os
partidos políticos, os sindicatos, etc., etc. As instituições apareceram
à medida que a humanidade avançava, à medida que a exploração
surgia e à medida que a vida social tornava-se cada vez mais com-
plicada e desenvolvida. Grupos de homens especializaram-se em ati-
vidades não econômicas, não produtivas, destinadas a administrar,
não a irrigação ou o armazenamento de grãos, mas os próprios ho-
mens.”5

3
É a ideia do conhecimento como teoria do reflexo, para a qual o conhecimento é ter
uma imagem da coisa adequada à coisa, saber relacionar cada ideia com sua referência,
etc. A dificuldade dos cursos de formação em materialismo histórico é justamente tentar
superar esta concepção empírica do conhecimento, onde os conceitos não são mais ape-
nas "cópias mentais" ou "imagens" das coisas, mas sim conceitos analíticos que pensam
as relações entre as coisas. Porque, não esqueçamos que o conceito de estrutura em Marx
não é a imagem de uma coisa da realidade, mas uma abstração do todo social do ponto
de vista das relações de produção, é um conjunto de relações.
4
MORENO, Nahuel. Conceptos elementales del materialismo histórico (1984).
5
Idem.
São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021 ‐
224 Dossiê

Os fenômenos da vida social tornam-se "coisas" que vivem no té-


rreo ou no primeiro andar. Já vemos o absurdo a que tal "concretiza-
ção" empírica de categorias abstratas leva. Onde colocamos a polícia
e o exército? Ah, isso vai lá em cima, no primeiro andar, é um apa-
relho estatal, e eles não fazem parte da classe trabalhadora. Bem, mas
os professores do ensino público fazem parte do Estado tecnicamente,
mas também dizemos que fazem parte da classe trabalhadora. Em que
andar vivem os professores? Colocamos todos os militantes partidá-
rios, sejam eles de partidos burgueses ou proletários, no primeiro
andar, com os partidos, ou no térreo, com as classes? E se a ideologia
está no primeiro andar, mudamos os trabalhadores assalariados que
produzem a ideologia - filmes de Hollywood, programas de TV, livros
acadêmicos (que quase ninguém lê) para o primeiro andar ou os co-
locamos no térreo com as classes sociais? E as mulheres, os sujeitos
oprimidos, no térreo ou no primeiro andar?
O leitor pode estar rindo um pouco, mas, quando damos cursos,
estas são as perguntas que nos são feitas, e não é que os alunos sejam
estúpidos, mas temos que entender que estas perguntas são um reflexo
dos problemas do uso de categorias em um esquema empírico e dua-
lista. Podemos dizer, com certeza, que não foi assim que Marx utili-
zou essas categorias. Devemos voltar ao método materialista de
análise e à relação dialética entre as categorias e a realidade material.

3. El método de análisis de Marx (1857)


y las tres etapas del razonamiento

Marx expõe seu método de análise materialista em um texto muito


importante, escrito em 1857: Esboços da Crítica da Economia Polí-
tica (Grundrisse). Ele não o escreveu como um método geral de aná-
lise marxista, mas como um método para analisar os conceitos da
economia política, e como expô-los em seus trabalhos preparatórios
para O Capital. Este texto é chave, mas superdenso e difícil de ler, e
ainda hoje há vários debates de interpretação de algumas partes.
‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021
Seminário Materialismo Histórico 225
Marx primeiro apresenta as três etapas do método de análise dia-
lética da realidade material e aplica-o a várias categorias (“trabalho”,
“dinheiro”, “propriedade” e “população”). Ele começa a explicar o
método mais claramente quando analisa o conceito de “população”:
“Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma represen-
tação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa,
chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do con-
creto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada
vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais sim-
ples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente
chegasse de novo à população, mas desta vez não como a represen-
tação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações.”6
Marx delineia 3 “momentos” do processo de análise: primeiro, co-
meça com “o real e o concreto”, que no fundo já é uma “representa-
ção” intuitiva do real que está composto de “relações gerais abstratas”.
A análise parte, assim, do “concreto representado”. Para Marx (e aqui
ele é muito hegeliano), ”representação” é a forma mais superficial de
ver e entender a realidade, é a primeira imagem que temos do todo
antes de analisá-lo. Esta primeira imagem carece de duas coisas fun-
damentais a) a lógica interna das relações entre suas partes, b) o mo­
vimento da matéria, suas determinações e como elas agem.
Para superar a representação, devemos arregaçar as mangas e ana-
lisar a realidade material concreta, para ver de que é composta esta
imagem do todo, quais são seus “elementos” ou “partes” e suas “de-
terminações” ou “relações”, e ir até os elementos mais simples e ele-
mentares. Este é o trabalho de decomposição ou separação. Marx
resume a primeira etapa da análise da realidade, a passagem do mo-
mento 1 ao momento 2: “Na primeira via, a representação plena foi
volatilizada em uma determinação abstrata.”7 Este é o momento em
6
MARX, K. Introducción General a la Crítica de la Economía Política, p. 50.
7
Idem, p. 51.
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226 Dossiê

que fazemos um esquema mental da realidade para compreendê-la e


interpretá-la.
Depois de ter completado a etapa de análise, diz Marx, temos que
“dar início à viagem de retorno”, temos que ver como esses elemen-
tos se relacionam, não apenas entre si, mas como formam juntos um
todo. Temos que entender a relação concreta, ou seja, tanto a histórica
quanto a lógica das partes no todo. Este é o trabalho de recomposição
ou síntese. No terceiro momento de síntese, reconstruímos a totali-
dade a partir da própria realidade material, que é sempre específica,
determinada no tempo e no espaço. Na síntese, vemos como as cate-
gorias analíticas são expressas em uma determinada formação social.
O objetivo final é retornar a uma visão do todo reconstruído. O que
antes era “uma representação caótica de um todo”, uma totalidade
abstrata, agora nos aparece como uma totalidade concreta, como
“uma rica totalidade com muitas determinações e relações”.
Vejamos um primeiro resumo deste método de análise dialética da
totalidade:

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Seminário Materialismo Histórico 227
O que fazemos no segundo momento da análise é um trabalho de
abstração. Abstrair não é outra coisa que separar, extrair os elementos
da realidade para considerá-los por separado e pensar cada relação
por separado (isto é, separar também os tipos de relações e determi-
nações para analisá-los). Esse é o momento no qual surgem as rela-
ções de opressão e exploração, por exemplo, e também o conjunto
das relações de produção, que depois reagrupamos na categoria ana-
lítica de estrutura, e as que agrupamos na categoria de superestru-
tura.
De fato, estamos abstraindo todo o tempo de maneira intuitiva. A
percepção sensível do real já é uma forma de abstração. Para escutar
alguém em um bar barulhento, temos que fazer um trabalho de abs-
tração sensorial e mental do ruído para separar e concentrar-nos ape-
nas na voz do amigo com quem conversamos. Quando vamos a um
show, podemos escutar a banda, abstraindo o ruído do público e nossa
respiração de maneira quase intuitiva, mas podemos também nos con-
centrar mais conscientemente no guitarrista, ou na bateria, ou no can-
tor, para fazer uma abstração de tipo mais analítico (se formos muito
nerds em música). Quando abstraímos a música tocada pelo guita-
rrista e focamos nele e em sua música, podemos estudar melhor sua
técnica, a melodia, sua relação com a banda, ou como a guitarra com-
bina-se com o resto da banda. Esse é o momento 2 da análise. Mas,
se ficarmos nisso durante todo o show… é uma pena, não desfrutamos
realmente da música da banda em seu conjunto, porque estamos “ob-
cecados” com o guitarrista.8
A diferença entre o esquema das relações abstratas entre as coisas
que temos no “momento 2” e a totalidade concreta reconstruída no
“momento 3” é um pouco como a diferença entre entender a anatomia
de um corpo (onde estão e o que são cada osso, músculo, órgão) e
8
O bom da música, é que quanto mais se sabe de música mais va se fazendo esse exer-
cício de analisar/sentir as partes para analisar e sentir melhor o todo, mas não fazê-lo
como “estudo”, de forma linear mas alternando análises da parte / análise do todo. É
uma interação bem mais livre com a totalidade.
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entender sua fisiologia, (como um corpo se mantém vivo e como fun-


ciona, as relações entre as partes, a diferença entre um osso, um mús-
culo e um órgão, para que serve cada órgão etc.). Para ter o
conhecimento fisiológico, temos que passar primeiro pelo conheci-
mento anatômico (momento 2) e, para isso, temos que abrir e estudar
o corpo, porque a imagem ou percepção exterior de um corpo (mo-
mento 1, “o concreto representado”) já não nos serve e deve ser su-
perada. Então, está claro que os momentos 1 e 2 são “momentos” em
um processo dialético do pensamento (dialético consigo mesmo e
com sua relação na realidade) que têm que “culminar” na síntese do
momento 3.
De certo modo, é como se disséssemos que a melhor maneira de
conhecer verdadeiramente uma máquina é saber desmontá-la, enten-
der o que é cada peça, para que serve, como se relacionam, e depois
saber voltar a montar a máquina e… que funcione!
As categorias de análise são como o mapa ou o manual de instru-
ções da máquina… mas, não são a máquina; a máquina é mais com-
plexa que o esquema, e produz efeitos materiais quando se põe a
funcionar. Quando alguém fizer isso com uma máquina, por mais
simples que seja, mesmo que seja uma cafeteira italiana, já não volta
a vê-la com os mesmos olhos, terá outra concepção da cafeteira, de
como usá-la, e uma ideia de como o café é feito e, obviamente, deixa
o manual de lado e passa a manusear a cafeteira. Fazer isso com o
motor de um carro ou com um computador é ainda mais difícil. E
com uma sociedade, com uma formação social, isto é, com um todo
social orgânico, vivo e em movimento, é ainda mais. É um grande
desafio, mas essa é a exigência científica que Hegel e Marx no pro-
põem (ou nos impõem).

4. O uso dualista e empírico das categorias de análise


Agora que entendemos os três momentos do método de análise,
veremos qual é o problema, segundo Marx, com o método da econo-

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 229
mia política burguesa do qual quer se diferenciar. Esta última começa
bem o trabalho, mas faz uma má “viagem de retorno” em direção à
síntese. Ou seja, para fazer a síntese, ela nunca “volta à realidade con-
creta”, mas reconstitui o todo com base em generalidades abstratas.
Este é tipicamente o problema do pensamento empírico que leva ao
formalismo, porque se decompõe em análise, mas, quando se recom-
põe, o faz com um mau método, porque não volta à realidade para
ver como a própria realidade é determinada por essas relações abs-
tratas determinantes, mas raciocina a partir das categorias de análise:
“A primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua
gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre
com o todo vivente, a população, a nação, o estado, os vários estados,
etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abs-
tratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que
descobrem por meio da análise.”9

A economia política burguesa acaba pensando que a relação esta-


belecida entre as categorias abstraídas em nossa mente é idêntica à
relação das coisas na realidade, e que, portanto, podemos raciocinar
diretamente a partir dessas categorias, sem ter que fazer o trabalho
pesado de voltar ao real, e contrastar nosso pensamento com o mundo
material. Para o formalismo, não importa tanto como as determina-
ções concretas e materiais entre as partes são produzidas. É basica-
mente um desprezo pela realidade material e sua história. É uma
forma de “arrogância” do pensamento humano, que se acredita ser
”mais inteligente” que a matéria, o que impede-o de chegar a uma
visão rica e complexa das múltiplas determinações da totalidade, e
de explicar as mudanças sociais.
Ao voltarmos aos nossos textos de formação sobre materialismo
histórico onde apresentamos as categorias de “estrutura” e “superes-
trutura”, vemos agora que a única maneira de “concretizar” catego-
riasabstratas não é “preenchendo-as com conteúdo” no sentido de
9
MARX, K. Introducción General a la Crítica de la Economía Política, p. 50.
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230 Dossiê

atribuir-lhes um referencial concreto na realidade (porque “referen-


ciais” são muitas vezes também abstrações), mas sim fazer o contrá-
rio: ver como a realidade material é determinada por todas essas
relações abstratas de forma concreta, e ver como ambas as relações
são dialeticamente combinadas e subordinadas na realidade. Em vez
de recorrer ao concreto para “explicar” categorias analíticas, devemos
ir à realidade concreta e “preenchê-la” com estas categorias, identi-
ficá-las e analisar como atuam na realidade.
Tomemos os setores de classe. O professor faz parte da classe tra-
balhadora, mas trabalha para o Estado; o policial também é um tra-
balhador público assalariado que trabalha para o Estado, mas não o
consideramos como parte da classe trabalhadora por causa de sua re-
lação com o Estado e a classe. Professores e policiais têm algo em
comum na estrutura, ambos são trabalhadores assalariados do Estado,
trabalhadores públicos não produtivos, mas têm uma relação social e
política diferente com o aparato estatal e, portanto, com a classe tra-
balhadora. Da mesma forma, podemos comparar gerentes-executivos
e professores de escolas privadas: ambos são trabalhadores assalaria-
dos não produtivos... mas não estão na mesma classe. Os primeiros
servem diretamente aos interesses da classe burguesa por causa de
sua relação no aparato de produção, por isso não podemos considerá-
los como parte da classe trabalhadora.
Em cada caso, devemos nos perguntar: que relação têm os dife-
rentes indivíduos ou setores sociais com as relações que estão na es-
trutura, ou seja, com as relações de produção e reprodução, e com as
relações que estão na superestrutura, principalmente com o Estado (e
os diferentes aparelhos do Estado)? E com as ideologias, e com as
organizações existentes, sejam elas partidos, sindicatos, associações
de bairro? Fazer este exercício de síntese ajuda-nos a completar a
análise com uma visão mais rica e completa da realidade, porque cada
elemento da realidade é melhor determinado em relação à estrutura e
à superestrutura, e assim obter uma visão mais dialética do todo.
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Seminário Materialismo Histórico 231
A tendência dos materiais de formação que procuram explicar ca-
tegorias é a de desviar-se do movimento dialético e materialista de
análise da realidade e de permanecer na metade do caminho, fixados
nas categorias. Aqueles que se especializaram em tal raciocínio foram
os stalinistas, mas nós não ficamos imunes. Por exemplo, o grande
debate teórico do seminário de 2014 foi onde “encaixamos” a relação
de opressão: na estrutura ou na superestrutura? Assim colocada, a
questão não faz muito sentido, mas é assim que nossa situação atual
se apresenta. Vejamos duas citações do Mulheres Trabalhadoras e
Marxismo:
“A relação entre opressor e oprimido - brancos e negros, homens e
mulheres, heterossexuais e homossexuais - é totalmente diferente da-
quela entre explorador e explorado - que determina as classes -, já
que não é econômica, mas cultural, social.”10
“Podemos dizer agora, muito brevemente, que a exploração e a opres-
são são categorias distintas. A primeira é econômica e dá origem à
existência de classes. A segunda é cultural e social; dá origem a uma
situação de discriminação, abrange indivíduos de diferentes classes
sociais e pode ter efeitos econômicos de maior ou menor peso.”11
Isto é, depois de separar as duas relações para pensá-las, o que é
correto e necessário, não voltamos ao todo social para ver como se
relacionam entre si de maneira concreta, mas continuamos racioci-
nando no nível da generalidade abstrata, e encaixamos as relações de
exploração e opressão em duas categorias analíticas ainda mais abs-
tratas, as de estrutura e superestrutura, como se fosse uma brincadeira
com bonecas russas. Definimos a relação de exploração como “eco-
nômica” e estrutural, e a de opressão como “social e cultural” e, por-
tanto, superestrutural, indo a um nível maior de abstração sem passar
pela realidade material, isto é, sem ver como essas relações determi-
nam e estão determinadas na realidade.
10
CARRASCO-PETIT, MORENO, Mujeres Trabajadoras y Marxismo, p. 140.
11
CARRASCO-PETIT, MORENO, Op. cit, p. 141.
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232 Dossiê

Produzimos, então, um esquema dualista, não dialético, e meca-


nicista, pois afirmamos que a estrutura determina a superestrutura. A
partir deste esquema, separamos a realidade em duas de maneira for-
mal:
• Superestrutura: a consciência > o Estado, política e a ideologia
> as relações de opressão, as relações jurídicas > as mulheres, os
imigrantes, os grupos raciais etc., os cidadãos etc.
• Estrutura: a matéria > a economia > as relações de produção, isto
é, as relações de exploração > as classes sociais, a classe trabalha-
dora, a burguesia etc.

Este esquematismo foi verdadeiramente desastroso, e levou-nos a


cometer vários erros teóricos. Uma vez armado tal esquema para ana-
lisar a realidade, se não for superado e desarmado para voltar ao todo
complexo, se não houver um retorno à realidade para ver como seus
elementos relacionam-se entre si, incorremos nos mesmos erros dos
pensadores da economia política burguesa criticados por Marx. Deve-
se fazer o movimento dialético de análise até o final.
Então, a pergunta “onde localizamos as relações de opressão?” está
mal formulada, porque pressupõe que as relações não estão na reali-
dade, mas localizadas em categorias abstratas (estrutura ou superes-
trutura). Ambas as relações são igualmente reais e materiais. É tão
correto dizer que as relações de opressão têm uma expressão na es-
trutura, isto é, que determinam as relações de exploração (como é o
caso da superexploração, ou de formas de exploração não salariais),
e que têm uma “base material”, como é correto dizer que as relações
diferenciadas de exploração expressam-se na superestrutura como re-
lações de opressão.

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Seminário Materialismo Histórico 233

5. Os problemas que devemos superar


e algumas conclusões
Devemos abandonar os conceitos de estrutura e superestrutura? O
problema não são as categorias, mas o esquematismo.
Devemos abandonar explicitamente a visão estruturalista, ou
seja, abandonar o esquematismo e ir em direção à dialética. A
compreensão não dialética das categorias analíticas do materialismo
histórico nos levou algumas vezes a adotar um esquema de raciocínio
dualista e determinista e, a partir daí, tendemos a cometer outros erros
teóricos em uma cadeia que precisa ser revisada:

1) Sujeitos explorados e sujeitos oprimidos


Temos que evitar manter formalmente separados os sujeitos opri-
midos (mulheres, imigrantes, negros) e explorados (classe trabalha-
dora). Acreditávamos que os primeiros eram abstrações (simplesmente
o produto da ideologia e das relações jurídicas), enquanto os segundos,
os sujeitos de classe, eram reais porque estavam na estrutura. Isto é
um absurdo, porque ambas as categorias “mulheres” e “classe trabal-
hadora” são categorias que abstraem a realidade a partir de uma de-
terminada relação. Portanto, as categorias são tão abstratas e a
realidade que elas analisam... tão reais. A única diferença é que elas
definem diferentes maneiras de determinar a realidade.

2) Como definimos a “estrutura”, tanto o funcionamento


do capitalismo quanto a composição da classe trabalhadora
A lógica formal leva a absolutizar a relação dominante que compõe
a estrutura, cf. a relação de exploração salarial produtiva, separando-
a do resto e tratando-a como única. Isto leva a uma visão simplista
da economia política do capitalismo, que é muito mais rica. A estru-
tura é composta de um conjunto de relações de produção e reprodução

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234 Dossiê

e, embora a relação de exploração salarial seja a dominante (e nela a


relação de exploração da mão de obra produtiva), não é a única.

3) O corolário do determinismo econômico


é o idealismo na esfera “não econômica”
Ao localizar a opressão no andar "de cima", tendemos a desenvol-
ver uma visão não materialista, ou seja, idealista da opressão, onde a
opressão é reduzida a um problema de ideologias ou tendências cul-
turais. No materialismo dialético, qualquer fenômeno específico que
não explicamos com o método materialista é relegado ao idealismo
ou à metafísica. Portanto, o paradoxo é que, onde há determinismo
econômico, surge um idealismo para entender o não econômico - no
caso as opressões - como algo desligado da classe e da economia po-
lítica da estrutura.

4) A tese do “oportunismo” do capitalismo diante das opressões


Esta tese é defendida por um setor do marxismo e leva em conta
apenas as leis lógicas de desenvolvimento do capital, abstraindo-as
de sua história real. Argumenta que, em um nível lógico e abstrato, as
opressões “não são necessárias” no capitalismo, porque o capitalismo
é governado por leis puramente econômicas. A tese do “oportunismo”
e da “indiferença” do capitalismo às opressões é um problema, porque
ignora que as opressões têm uma base material, que em muitos casos
constituem relações diferenciadas de exploração, e que foram e são
historicamente necessárias para o funcionamento das formações so-
ciais capitalistas realmente existentes.

***

‐ São Paulo ‐ Ano XII ‐ N.° 17, p. 124‐250 ‐ Agosto de 2021


Seminário Materialismo Histórico 235

CRÍTICA AO PÓS-MODERNISMO À LUZ


DA CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA

Gustavo Machado – Brasil

No presente artigo, pretendemos analisar as origens históricas e a


base social do pós-modernismo. Nosso objetivo é contribuir para a
crítica de uma concepção que hoje domina inúmeras organizações e
movimentos sociais, em maior ou menor extensão. O uso de termos
como “lugar de fala”, “um olhar”, “narrativas” e a concepção de um
mundo que entende as teorias como pura representação, comunica-
ção e discurso é um lugar-comum entre os ativistas da atualidade.
Para os pós-modernos, trata-se, em primeiro lugar, de uma batalha
contra os significados ou a cultura hegemônica, consideradas a base
última de toda opressão e exploração. Nessas concepções, notamos a
ausência e até mesmo a repulsa de qualquer projeto de transformação
geral da sociedade. Tais projetos são tomados, de antemão, como
sendo tipicamente modernos e autoritários. Para os pós-modernos,
quanto mais específico e particular e, sobretudo, desvinculado de um
todo, melhor. O que temos é micropoder, micronarrativas, micro-his-
tória em uma batalha de narrativas cada vez mais fragmentada.
Nossa tese, assentada na concepção materialista da história, é
de que, longe dessas microlutas resultarem em uma transformação
geral da sociedade pela soma das pautas específicas, permanecem
sempre e uma vez mais presas aos limites do que combatem. É pre-
ciso partir da forma geral de sociedade e de um programa pela sua
transformação como único caminho que possibilite tornar viável as
demandas e as lutas fragmentadas que motivam a maior parte dos ati-
vistas sob a base do pós-modernismo.
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236 Dossiê

Para dar início a esse empreendimento, é importante esclarecermos


os critérios da crítica que agora iniciamos.
Não se trata de comparar externamente uma concepção a outra.
De um lado, uma concepção materialista da história, de outro, as con-
cepções pós-modernas. O materialismo histórico não é um sistema
preconcebido e pré-formatado que indica em uma só tacada o fun-
cionamento, as leis determinadas e concretas, as tendências e o fun-
damento de toda a história humana. Ao contrário, nega de modo
veemente esta possibilidade.
A concepção materialista da história parte do pressuposto de que
o homem vive necessariamente em sociedade. Mais ainda. Estas so-
ciedades organizam-se sempre em uma dada forma, uma forma de-
terminada que independe de nossas escolhas e vontades individuais.
Cada forma de sociedade possui relações específicas que ela deve ser
capaz de reproduzir, de repetir a cada dia para continuar a existir. So-
mente o estudo das relações necessárias que conformam um dado tipo
de sociedade permite-nos compreender o universo de possibilidades
que ela contêm. O âmbito das escolhas viáveis historicamente.
Nosso estudo deve partir, portanto, do exame da forma de socie-
dade no interior da qual o pós-modernismo surgiu e floresceu: o modo
de produção capitalista. Ainda assim, tal empreendimento é, ainda,
insuficiente para entendermos o fenômeno, seus alcances e limites.
Se o modo de produção capitalista data de alguns séculos, as concep-
ções pós-modernas apenas ganharam maior abrangência na segunda
metade do século XX. Nossa análise deve rumar, também, para os
aspectos específicos do desenvolvimento do modo de produção ca-
pitalista das últimas décadas que fomentaram e estão na base dessas
concepções.
Devemos começar, então, pelos aspectos mais gerais do modo de
produção capitalista e, por isso mesmo, presente em outras concep-
ções burguesas. Veremos que o pós-modernismo não é uma ruptura
com a modernidade, mas sua continuidade, sua radicalização.
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Seminário Materialismo Histórico 237
Modernidade: alicerce do pós-modernismo
Naquilo que se convencionou chamar de Idade Moderna, ocorre-
ram transformações profundas, tanto na sociedade, como nas formas
de pensamento. De uma economia sedentária com trocas pouco des-
envolvidas, de uma riqueza imobilizada em construções sagradas e
profanas, bem como em propriedades agrárias, emergiu um mundo
novo. O comércio floresceu. Os europeus entraram em contato com
novos mundos, novas culturas. As minas de prata na América espan-
hola fizeram jorrar o metal sagrado em toda Europa. A unidade abs-
trata da Igreja católica, centralizada em Roma na figura pessoal do
Papa, foi rompida. A reforma protestante dilacerou esta unidade e os
Estados-nação desafiaram a autoridade universal da Igreja.
Agora, em todos os cantos, desenvolve-se uma universalidade di-
ferente. Não mais a universalidade materializada na relação entre a
Igreja e os seus fiéis; o rei e seus súditos. Cada vez mais, não sem
idas e vindas, impõe-se a universalidade da forma mercadoria, da
forma dinheiro, da forma capital. Uma universalidade que não se ma-
terializa diretamente em nenhuma instituição ou pessoa, mas em um
modo de operar, um modo de proceder: em um tipo de relação social
que faz de toda particularidade, de todos os indivíduos, de todas as
coisas e de todas recém-criadas nações, momentos desse movimento
circular e eterno da acumulação de capital.
Temos aqui uma mudança fundamental. As relações sociais na Eu-
ropa medieval ou antiga eram, sem dúvidas, baseadas na exploração
e na opressão. Mas eram relações diretas: de pessoa para pessoa.
Servo e nobre, rei e súditos, escravo e senhor são colocados direta-
mente como indivíduos desiguais, motivo pelo qual a apropriação da
riqueza também é desigual. Os vínculos que unem os indivíduos nes-
sas relações opressivas mostram-se diretamente: a necessidade do
camponês produzir para se alimentar, a necessidade de que ele pro-
duza o excedente para que o nobre também sobreviva; os diferentes
papéis de ambos nas guerras e na defesa do território que é a fonte da
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produção de riqueza, e assim por diante. Com o desenvolvimento da


sociedade capitalista, esse cenário se altera por completo.
Agora, os vínculos com a sociedade inteira não são mais percebi-
dos diretamente. Os produtos do trabalho são convertidos universal-
mente em mercadorias. O vínculo dessas mercadorias com as demais
aparece por meio de uma representação toda misteriosa: o preço. O
preço, expresso em dinheiro, representa o valor social das mercado-
rias, mas não dá nenhuma pista do mecanismo social que o produziu
e o que ele significa. O dinheiro parece conferir, miraculosamente,
uma propriedade social às mercadorias.
Mas, não é apenas a mercadoria que se relaciona socialmente com
outras mediante uma representação abstrata. Também seus portado-
res: os indivíduos. Para se relacionarem entre si enquanto membros
da sociedade, os indivíduos convertem-se em pessoas. O termo pes-
soa remete diretamente aos personagens de um teatro. A associação
não é arbitrária. Para se relacionar socialmente, os indivíduos con-
vertem-se em uma representação abstrata: pessoas formalmente
iguais, portadoras dos mesmos direitos e deveres. Convertem-se de
indivíduos concretos e postos socialmente como desiguais, em pes-
soas abstratas postas juridicamente como iguais e livres, já que suas
ações são deliberadas em conformidade com a sua vontade. Cada pes-
soa é a causa de seu agir e de seu não agir. Mas ela delibera apenas
sobre si mesma. Miraculosamente, uma ordem natural parece vincular
essas múltiplas vontades. É como se existissem apenas átomos indi-
viduais: coisas e indivíduos. Por trás desses átomos uma razão toda
misteriosa vincula e ordena o processo inteiro.
Observem, agora, a situação inusitada produzida pelo modo de
produção capitalista. O conteúdo desigual das relações sociais não é
posto diretamente, mas indiretamente pelo movimento social inteiro
das mercadorias representadas pelo dinheiro e pelas pessoas que re-
presentam suas mercadorias. Nesse movimento social, vemos que a
grande maioria dessas pessoas não possue os meios que a facultam
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Seminário Materialismo Histórico 239
produzir mercadorias para entrar em contato com o restante da socie-
dade. Elas vendem periodicamente a si próprias, sua capacidade para
trabalhar. Somente assim elas sobrevivem. Mas são pagas também
com uma representação da riqueza social: o dinheiro expresso no sa-
lário. Fica oculto de sua percepção imediata o quanto elas realmente
produziram e o vínculo do que elas produziram com o resto. Fica
oculto precisamente o aspecto universal que vincula a atividade social
dos indivíduos entre si.
Até mesmo os capitalistas, proprietários dos meios de produção,
atuam como personificação ou representação de seu capital. Devem
empregá-lo nos setores mais rentáveis de modo a obter a maior taxa
de lucro. A taxa de lucro, da mesma forma, não revela sua origem.
Parece ser uma quantidade de dinheiro adicionada aos custos de pro-
dução como que do nada. É oculta sua origem como e enquanto tra-
balho excedente de toda sociedade e produto da atividade dos
trabalhadores. Somente de forma mediada as relações entre indiví-
duos mostram-se como relações entre classes sociais.
O que acabamos de indicar revela duas características que o pós-
modernismo compartilha com a tradição moderna. São elas:
1. Como as relações sociais estão apagadas da percepção direta dos
indivíduos, como o vínculo entre indivíduos e coisas com a socie-
dade se dá apenas por representações abstratas que não revelam seu
conteúdo; torna-se possível o esvaziamento da noção de socie­
dade.
2. Como os vínculos entre cada indivíduo – convertidos em pessoas
jurídicas e abstratas – e a sociedade estão apagados das relações di-
retas que estes estabelecem; torna-se possível a concepção de um
indivíduo isolado e autônomo, que não depende de ninguém. Su-
jeito absoluto de suas ações. Como os limites e obstáculos objetivos
que a sociedade coloca às ações individuais não estão determinados
de modo explícito e a priori, o indivíduo acredita não possuir nen-
hum obstáculo e coerção externa.
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240 Dossiê

Vejamos agora como esse mundo de representações que surgia fo-


mentou concepções à sua imagem e semelhança. Antes, faz-se neces-
sário abrir um parêntese. Evidentemente, não existe uma relação
causal e mecânica entre a forma de organização social e as formas de
pensamento, como coisas separadas e determinadas de fora uma pelas
outras. Até o termo interação recíproca é impreciso nesse caso. É
muito mais simples. Os indivíduos, que pensam, estão dentro da
forma de organização social. São partes indissolúveis dela. Pensam,
bem ou mal, aquilo que vivenciam e experienciam.
Antes da modernidade, a ideia de um indivíduo isolado que faz o
que quer, sujeito absoluto de suas ações e que independe de qualquer
forma de sociedade seria considerada coisa de maluco. Os indivíduos
possuíam laços de dependência mútuos e vitalícios, tanto entre si
como em relação à terra em que viviam. Esses laços eram diretamente
percebidos por qualquer um. As relações sociais era diretas e não
eram mediadas por uma representação abstrata. No máximo, tínha-
mos ritos que as simbolizavam como nos juramentos de vassalagem
e suserania entre senhor e servo ou na unção do futuro rei pelo papa.
Mas esses ritos apenas consagravam as diferenças que já existiam.
No juramento de vassalagem, vassalo e suserano diziam diretamente
seus deveres e direitos desiguais uns para com os outros.
Um camponês medieval poderia ser convencido que a situação em
que vivia era justa. Que o nobre pertencia realmente a uma linhagem
superior. Ele tinha até evidências disso, já que esse nobre bem ali-
mentado e com farto tempo livre, possuía melhor porte físico, mel-
hores armas e tempo para desenvolver suas habilidades na guerra. No
caso do alto clero, tempo para desenvolver suas aptidões artísticas,
literárias e oratórias. Falsas concepções poderiam tornar a situação
histórica dos indivíduos e sua estratificação em classes em algo con-
siderado natural e eterno. Mas uma concepção moderna não teria
lugar nem faria qualquer sentido nesse cenário.

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Como agora, no modo de produção capitalista, os indivíduos mes-
mos não possuem controle sobre as relações sociais em seu conjunto
– nem mesmo os mais ricos e poderosos – mas apenas sobre suas pró-
prias ações e sobre a(s) mercadoria(s) de sua propriedade; prolifera-
se, por todos os lados, pensadores que defendem que, no fim das
contas, nada sabemos de certo. A realidade é inalcançável. Não é pos-
sível conhecer as coisas tais como elas são.
Para os empiristas, não podendo conhecer a realidade tal como ela
é, a teoria apenas generaliza os dados da experiência, convertendo-
os em conceitos artificiais e subjetivos. Mas, o que domina é a meta-
física racionalista, cujos principais desenvolvimentos se dão com
Descartes e Kant.
Como a sociedade parece funcionar pelas nossas costas, guiada
por uma razão invisível, postulou-se existir uma razão interna a todas
as coisas e que delas independe. Não temos como analisar a realidade
tal como ela é, em suas relações internas e imanentes. É nosso con-
hecimento, nosso aparato cognitivo, que possui as ferramentas que
podem organizar externamente todo o mundo dos fenômenos. São as
categorias da cabeça dos homens que organizam os impulsos que re-
cebemos do mundo exterior. O mundo passa a se organizar com con-
ceitos, categorias e leis lógicas criadas pela mente humana. É o
dualismo kantiano. De um lado, o mundo dos fenômenos concretos,
sempre particulares e diferentes. De outro lado, o mundo dos concei-
tos que unificam os fenômenos pela ação da mente humana. A teoria
não expressa mais o que é real. Para conhecer, o homem sai do mundo
e se refugia no universo dos conceitos gerais. Depois volta ao mundo.
Essa visão dualista impõe-se em todos domínios. Embora ninguém
controle a distribuição da riqueza na sociedade, existe uma mão in-
visível, uma razão oculta que aloca, por meio de um mercado apa-
rentemente confuso, cada coisa em seu lugar. Na física, temos um
conjunto de leis universais, como a gravitação universal, que regula
um conjunto de seres em permanente movimento. No direito, temos
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um direito natural que faz do homem, por natureza igual, livre e pro-
prietário.
De onde viria essa razão natural e comum que regula todos os do-
mínios da realidade, já que nós não somos capazes de demonstrá-la,
mas apenas de constatar seus efeitos e, por meio deles, atingir sua
forma puramente lógica e conceitual? Ora, para os autores da época
seria Deus o seu criador. Mas o Deus moderno não é aquele do perí-
odo anterior: um Deus concreto que intervem diretamente no mundo.
O Deus moderno dotou o universo e a sociedade humana de uma ra-
cionalidade própria, de uma razão suficiente. Deus torna-se uma es-
pécie de legislador do mundo. Ele criou o melhor mundo possível,
com uma racionalidade impressa em seus caracteres, e foi dormir. É
a religião deísta. Não sem razão, até mesmo a religião altera-se pro-
fundamente no período moderno. Dirá Marx: o “cristianismo, com
seu culto do homem abstrato, é a forma de religião mais apropriada,
especialmente em seu desenvolvimento burguês, como o protestan-
tismo, o deísmo etc.”1
Como se vê, as concepções modernas, empiristas ou racionalistas,
nada mais fazem do que expressar, de modos distintos, o mundo du-
plicado em que vivem: as coisas particulares e as representações uni-
versais dessas coisas. O direito natural converte as pessoas abstratas
do modo de produção capitalista no modo de ser eterno de todo indi-
víduo humano. O mercado universal, com sua suposta razão de alocar
os recursos de forma ótima, converte-se em uma economia natural,
diante da qual todas as demais seriam artificiais. E assim sucessiva-
mente. Cabe a nós examinarmos os fenômenos do mundo e encontrar
os conceitos que nos permitem, em seguida, tudo avaliar, julgar e ad-
ministrar. É a época do método autônomo e a priori. Os conceitos
não são mais extraídos do mundo e o método não segue as exigências
do objeto investigado. Ao contrário, são os conceitos que criamos que
1
MARX, K. O Capital – I. Rio de janeiro: Boitempo Editorial, 2013, p. 154.
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organizam o mundo. O método é aplicado como algo posto de fora,
que somente então organiza os conteúdos. Como vimos, tais conceitos
e tais métodos não passam da naturalização das formas gerais típicas
do modo de produção capitalista.
Mas não é apenas isso. Ao lado da razão universal que tudo dirige,
emergem as filosofias da história. Também esse aspecto é fomentado
pelo capitalismo em desenvolvimento. O capitalismo, ao colocar em
contato e intercâmbio as forças produtivas antes dispersas em todo o
mundo, ao submeter tudo e todos a um processo impessoal de auto-
valorização do capital, possibilitou uma elevação sem precedentes da
capacidade produtiva humana. Até a chamada Idade Moderna, as con-
cepções da história comumente se baseavam em uma visão predomi-
nantemente pessimista e binária da história: um passado em que se
situa a idade de ouro, o paraíso perdido, e um presente marcado pelo
penar, pelo pecado e pelo sofrimento que sempre e uma vez mais re-
torna. Não há nada de novo no front. A visão da história como eterno
penar expressava sociedades marcadas por um lento e instável des-
envolvimento na capacidade humana de produzir riquezas; socieda-
des sempre e uma vez mais assoladas por toda e qualquer variação
natural ou social.
Já no capitalismo ganha coro, principalmente nos séculos XVIII e
XIX, as concepções de progresso. A humanidade caminha rumo à
perfectibilidade, rumo ao progresso. Foi Hegel o autor que forjou uma
teoria que procurou fundir dialeticamente a razão universal e única
que tudo preside com o progresso e a história em permanente muta-
ção. Ao fazê-lo, criou categorias e significações inéditas, de grande
valor. No entanto, o fez para, uma vez mais, justificar a sociedade
existente, como produto de uma razão universal e transparente que
se manifesta e se realiza no tempo e nas águas barrentas da história.
O que este itinerário, que tracejamos aqui em seus contornos mais
gerais, tem que ver com pós-modernismo? Tudo e mais um pouco.

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Vemos, em primeiro lugar, que as bases mais gerais das concepções


pós-modernas estão dadas pela forma de organização social capitalista
e, por isso mesmo, no bojo das próprias elaborações modernas. São
elas:
1. A ideia de um indivíduo isolado que não depende de ninguém.
2. O esvaziamento da noção de sociedade.
3. O conhecimento como mera criação da subjetividade humana.
Como representações, narrativas de uma realidade inalcançável.
Em suma, o pós-modernismo não expressa um novo período his-
tórico, antes disso, trata-se de uma radicalização da modernidade.
Está associado à expansão do capital em extensão e profundidade, fa-
zendo predominar em todos os cantos a esfera da circulação de mer-
cadorias. O pós-modernismo é a vitória do fetiche da mercadoria no
domínio do pensamento: representações que ganham vida própria en-
quanto um emaranhado de imagens, discursos. Situação em que todas
as relações sociais manifestam-se por meio de uma representação abs-
trata que oculta seu conteúdo, convertendo os indivíduos formalmente
em átomos independentes, em pessoas, em personagens de um teatro
em que tudo é representado e apenas o autor da peça – a Razão ou
ordem natural emanada de Deus – conhece, no seu íntimo, o conjunto
da narrativa e os motivos. É sobre a base dessas relações sociais que,
no domínio do pensamento, emergem concepções em que os concei-
tos gerais – desgarrados do mundo – tudo unificam, explicam e sig-
nificam. O mundo burguês é justificado e eternizado.
As concepções modernas eram predominantemente humanistas. O
elemento estável em meio às mudanças históricas encontrava-se em
uma razão misteriosa somente acessível pelas cabeças dos homens.
O dualismo kantiano domina até os dias de hoje. Está na base não
apenas do pós-modernismo, mas de todo um conjunto de “marxistas”
que desfiguraram o marxismo sob influências modernas.
Surge o marxismo humanista em autores como Sartre e Lukács.
Ou ainda, sob a influência do kantismo, a busca pela lógica, método
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e razão que externamente unificam o mundo. Mudam-se apenas as
categorias pelas quais o mundo inteiro é explicado. Como procuramos
sintetizar, Marx, ao entender que nós vivemos em uma forma de so-
ciedade que possui uma estrutura interna, passou a vida toda dedicada
a entender e criticar essa estrutura em O Capital. No século XX, mui-
tos autores deixaram o estudo do capitalismo e de O Capital de lado
e passaram a tudo unificar pelo místico poder das teorias autônomas.
Conceitos que, miraculosamente, já que aqui não há um Deus criador,
colocam-se para além das formas históricas determinadas e, do cume
de sua transcendência, tudo explicam e unificam. Convertem o mar-
xismo em uma teoria moderna (leia-se, burguesa).
O pós-modernismo, como vimos, radicaliza as bases das concep-
ções modernas, mas rompe com o último elemento sagrado que sub-
sistia em suas formulações. Abandona-se a ideia de uma razão comum
que tudo preside e a da marcha humana rumo ao progresso sob os
desígnios dessa razão. A lógica geral do mundo – criada pela subje-
tividade de Deus – é substituída pelas lógicas plurais criadas pelas
subjetividades dos indivíduos.
Como um processo dessa natureza foi acontecer? É o que veremos
no próximo item.

Indicações sobre as origens teóricas e históricas


do pós-modernismo
Os fenômenos ocorridos no século XX abalaram toda ilusão de
progresso que fundamentava as concepções modernas clássicas. A
disputa imperialista conduziu à barbárie das duas guerras mundiais.
Na esteira da Revolução Russa, em todos os cantos, o proletariado
ameaçava com sua organização e luta contra o sistema inteiro. Como
reação, emergiram o fascismo e o nazismo. A crise de 1929 dilacerou
o sonho da razão universal que misteriosamente aloca os recursos de
forma ótima. Não era mais possível acreditar no progresso infinito
do capitalismo.
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A metafísica racionalista e as filosofias da história cederam algum


espaço ao estruturalismo, ao neokantismo, à filosofia analítica. Agora,
as noções de sujeito histórico e de progresso histórico são abaladas.
Todas transformações históricas serão entendidas como distintas ar-
ticulações de uma estrutura comum. Meio ao modo de como a língua
escreve múltiplos discursos sobre a base de um mesmo alfabeto e
uma mesma gramática. Traumatizados com os resultados de um ca-
pitalismo em que não se vê mais progresso algum, surge o culto in-
gênuo das comunidades primitivas. Os diversos tipos de sociedade
nada mais seriam do que combinações diferentes de uma gramática
social que a mente humana organiza. Se Marx estudou exaustiva-
mente as comunidades mais remotas justamente para mostrar a his-
toricidade do capitalismo, sua diferença diante das formas de
organização do passado e, assim, os pressupostos históricos em que
ele se assenta, os estruturalistas, ao contrário, buscam no estudo das
comunidades primitivas uma gramática comum das comunidades hu-
manas. Recorrem ao passado para submeter o passado, o presente e
o futuro às formas comuns, eternas, de uma lógica geral, de uma es-
trutura comum de toda histórica humana: uma gramática geral das
sociedades.
Por isto, uma estrutura, no sentido do estruturalismo, designa um
arranjo formal e abstrato das partes, válido para múltiplos conteúdos,
entretanto, ao mesmo tempo, independente de todos eles. O estrutu-
ralismo nega a noção de uma “estrutura concreta”, um todo orgânico,
com referencial direto na realidade. Tais estruturas não remetem as
relações sociais dos homens entre si a uma forma histórica determi-
nada, antes disto, são consideradas em uma acepção cultural e auto-
nomizada. Assenta-se na linguagem, nos rituais, na arte, na cultura,
no mito. O estruturalismo foi uma reação direta contra todo e qual-
quer projeto assentado em uma perspectiva histórica, não mais pas-
sível de uma racionalidade própria.

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O mundo é organizado por uma estrutura conceitual sem sujeito e
sem devir. São os conceitos, as estruturas criadas pela mente e co-
muns a todas formas de organização social, portanto supra-históricas,
que unificam e regem o conhecimento do mundo. É o dualismo kan-
tiano elevado ao extremo. A teoria, o conceito não expressam as re-
lações efetivamente existentes. A teoria é que unifica o mundo.
Também aqui, vemos surgir o “marxismo estruturalista” que sai à
caça dos metaconceitos, da lógica geral da história humana. Eis Al-
thusser, Balibar, Godelier, entre outros.
Não é casual que o estruturalismo tenha surgido no pós-guerra,
quando os antigos anseios de progresso histórico deram lugar ao ce-
ticismo e à total descrença no futuro. Daí, é um passo para o pós-mo-
dernismo. Associado à crise do capitalismo que uma vez mais retorna
em fins dos anos 60, temos as derrotas históricas do proletariado.
Neste momento, as revoluções socialistas outrora triunfantes, sob o
influxo da contrarrevolução stalinista, não mais moviam mentes e co-
rações. O Maio de 68 irrompe ao mesmo tempo que os tanques so-
viéticos massacram a esperança que vinha de Praga. Mas, não
somente. O próprio capitalismo, com sua sucessão de crises e em
plena decadência, não permite mais aos indivíduos enxergarem razão
alguma por trás das ações individuais atomizadas.
Agora é a dimensão racional e universal ainda existente no estru-
turalismo que será negada. O capitalismo mostra-se diretamente como
caos, como desordem, como ações sempre e cada vez mais fragmen-
tadas. O estruturalismo converte-se em pós-estruturalismo. A cons-
trução de estruturas conceituais em desconstrucionismo. Isto é, o
pós-modernismo. Eis Deleuze, Foucault, Derrida.
Não podendo encontrar as conexões sociais por trás das ações iso-
ladas e não sendo mais possível acreditar facilmente em uma ordem
natural por trás das ações dos indivíduos; os pós-modernos atribuem
aos símbolos universais criados pela modernidade o culpado último

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pela opressão e situação em que o mundo se encontra. Tomando as


construções stalinistas dominantes como referência, o marxismo é
colocado como exemplo máximo do discurso moderno, universal e
autoritário.
A situação toda é a expressão, também, de uma burguesia que não
apenas deixou de ser revolucionária, mas que já não tem nada a ofe-
recer. Tudo é fragmentado, descentralizado, ambíguo, plural, sem
qualquer pretensão à unidade. Não há mais separação entre a repre-
sentação e a realidade, entre o ser e a imagem. O mundo do pós-mo-
dernismo é um mundo em migalhas, em que tudo é representação,
interpretação, símbolos, sonhos. Cabe aos oprimidos lutar para res-
significar os símbolos socialmente construídos que os oprimem: opor
às palavras correntes outras palavras, opor aos conceitos vigentes ou-
tros conceitos. Em particular, suprimir os conceitos gerais por con-
ceitos particulares em uma guerra de narrativas.
Como os indivíduos não podem ver diretamente que as represen-
tações universais que os oprimem são produzidas pelo próprio modo
de produção capitalista, procuram apagar o fogo combatendo a fu-
maça. Em vez de atacar o núcleo central de uma forma de sociedade
que uniformiza tudo que é diferente sob o controle da acumulação
abstrata de capital, os pós-modernos mergulham cada vez mais fundo
nas representações, nas imagens, nas narrativas sob ação de indiví-
duos isolados cada vez mais fragmentados.
Instrumentalmente e metodologicamente, no entanto, a burguesia
continua a ser moderna e kantiana. Seu método é a aplicação dos des-
ígnios de uma razão universal a tudo. Afinal, que cargas d´água seria
um método de análise macroeconômica pós-moderno? O pós-moder-
nismo é, por um lado, uma ideologia burguesa, por outro, um pro-
grama. Não um programa que rege as ações do imperialismo e os
projetos eminentemente burgueses, mas um programa oferecido e
aceito prontamente por amplos setores desiludidos com os caminhos

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do stalinismo, um programa que nega objetivos históricos e interesses
que extrapolem aqueles do indivíduo e grupos cada vez mais separa-
dos do restante da sociedade. Um programa que faz de todas as lutas
um círculo sem fim. Com finalidades particulares que deixam o edi-
fício inteiro intocado. Seu verdadeiro inimigo é o marxismo.
Mas, é impossível combater de modo adequado o pós-modernismo
por meio de um “marxismo” estruturalista kantiano regido por con-
ceitos e lógicas gerais ou por meio de um “marxismo” historicista e
determinista.
Ao revés, a concepção materialista da história permite explicar o
pós-modernismo como sintoma mais agudo de uma sociedade doente.
Não opõe outros conceitos aos conceitos autônomos da ciência bur-
guesa. Ao contrário, fornece um método e uma teoria do conheci-
mento que não pairam nas nuvens, não são a priori como em Kant e
outras concepções modernas assentadas em uma razão divina ou em
uma lógica geral comum a toda história humana. Antes disso, esse
método e essa teoria do conhecimento exigem que penetremos na ló-
gica interna da sociedade capitalista. Expor o objeto de análise apre-
sentando suas partes e seu encadeamento de modo a explicar a base
social de todas suas ideologias e apontar, no mesmo processo, para o
único caminho que permite sua superação. Os significantes vazios da
metodologia burguesa são substituídos por uma universalidade que
não é aquela criada unicamente pela mente ao isolar e autonomizar
um aspecto da realidade, é uma universalidade real, efetivamente
existente: a universalidade do modo de produção capitalista.
À universalidade da exploração capitalista deve-se opor outra força
igualmente universal. Não por força de um conceito criado pela mente
humana em função de uma lógica geral superior vinda sabe-se lá de
onde, mas porque a forma de organização social que reproduz todo
esse universo de representações e irracionalidades é, ela mesma, uni-
versal. É a sociedade mesma que se estrutura sobre a base da explo-

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ração de uma classe sobre a outra, sob a mediação de representações


universais. O conceito ou a teoria nada mais faz do que se apropriar
teoricamente da totalidade capitalista efetivamente existente e, por
meio de sua crítica, indicar os caminhos de sua superação. Apontar
sua historicidade. É o capitalismo que exige, em função de sua natu-
reza, um programa que vincule todos problemas particulares à uni-
dade da classe em vistas de sua destruição. Em vez de fragmentar a
organização e a luta contra um sistema universal abstrato, como
fazem os pós-modernos, compreender a universalidade concreta do
capitalismo de modo a combater tudo que fragmente a classe trabal-
hadora para que sua unidade seja real. Único caminho que possibilita
destruir o capitalismo e suas formas abstratas de expressão.

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