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Platão e Aristóteles: os dois olhos de um único Tomás

Scott Randall Paine


UnB

Estamos acostumados a considerar os autores da Patrística como


caracteristicamente platônicos em seus hábitos especulativos, e os autores da
Escolástica como aristotélicos. Apesar da correção óbvia de tal qualificação em
um contexto amplo e esquemático, ela pode, contudo, levar-nos facilmente a
desconsiderar dois aspectos igualmente óbvios, e que devem influenciar
profundamente a maneira pela qual entendemos essa caracterização. Mesmo
que os fatos aos quais me refiro não sejam mais do que simples pontos na
escala cronológica, eles evidenciam linhas de causação não menos cruciais
para a sequência temporal do que aquelas existentes entre um pai e seu filho.
Os fatos são extremamente simples: 1) Platão foi o mestre de
Aristóteles; e 2) os padres da patrística foram os mestres dos escolásticos. Os
mestres precedem seus discípulos, tanto em termos cronológicos quanto –
presumivelmente – em sabedoria, pelo menos até onde a transferência
pedagógica é considerada. Mas, na medida em que essa transferência seja
bem sucedida e o ardor do estudante em aprender resulte numa apropriação
vital dos hábitos e insights dos professores, espera-se ordinariamente desse
filósofo novato uma sabedoria que ultrapasse a seus genitores intelectuais. E
poderá fazê-lo ou corrigindo-os ou seguindo a estrela-guia de seu ensinamento
até lugares que nem mesmo seus mestres se aventuraram ir.
É a maior pertinência deste último aspecto ao caso presente, para onde
eu gostaria de dirigir as atenções. É fácil resumir a relação de Aristóteles com
Platão como a do discípulo dissidente para com seu equivocado mentor, ou
retratar a postura de Tomás de Aquino diante de Agostinho em termos de uma
cuidadosa reverência em suas referências a ele, mas escondendo, todo o
tempo, uma profunda e substancial crítica. Tais fórmulas não logram perceber o
modo pelo qual tanto Platão como Agostinho participou profunda e
permanentemente na formação de seus mais importantes discípulos. Os
padres da patrística, é claro, estavam todos mortos quando a escolástica surgiu
com Santo Anselmo, no início do século XII; a “educação” de Santo Tomás por
Santo Agostinho, contrariamente à de Aristóteles por Platão, não poderia ter
ocorrido oralmente, mas apenas pela palavra escrita. No entanto, a palavra
escrita de Agostinho provou ser uma das forças pedagógicas mais poderosas
do Ocidente, e poucos homens folhearam suas páginas com mais entusiasmo
e alacridade do que o “boi mudo” de Aquino.
O que estou sustentando é o seguinte: Platão não somente propôs seus
ensinamentos ao jovem Aristóteles – ele imiscuiu-se em sua mente como um
interlocutor permanente. E apesar desse pupilo ter posteriormente submetido
alguns dos ensinamentos expressos nos diálogos de seu mestre a um severo
questionamento1, foi somente no espírito desses mesmos diálogos que um tal
questionamento fora possível em princípio. Esse é um ponto extremamente
pertinente. Vinte anos de aprendizagem na atmosfera sempre excitante da
Academia, vibrando com a grande variedade de interpretações dos insights
platônicos, fizeram Aristóteles tornar-se quem ele foi. Estaremos errados em
medir a relação entre os dois filósofos na escala única dos diálogos escritos de
Platão, que, por insistência do próprio autor, eram basicamente experimentos
dialéticos, explorações e tentativas de aproximação das respostas definitivas.
Além disso, o que Aristóteles aprendeu nas centenas de diálogos não
registrados dizem respeito a um corpus teórico sobre o qual Platão mesmo
disse:

Eu certamente nada escrevi relativamente a isso, nem nunca


deverei fazê-lo no futuro, pois não existe maneira pela qual possa
colocar em palavras como em outros estudos. O conhecimento
desses assuntos, ao contrário, deverá surgir após um longo período
de comparecimento às instruções sobre os temas e de uma íntima
aproximação, quando, repentinamente, como uma brilhante chama
acesa por uma inquieta fagulha é gerada na alma e imediatamente
torna-se autossustentável.2

Sem adentrar na imensa produção teórica desenvolvida em torno da


questão da evolução do pensamento aristotélico relativamente ao de Platão, é
suficiente destacar o crescente consenso entre os estudiosos de que o
relacionamento foi complexo e íntimo, e que se pode achar bastante mais

1 Por exemplo, Metafísica, 987ª29-988ª16, 990ª33-993ª10.


2 7ª Carta, 341c. Proponentes principais da centralidade das “doutrinas ágrafas” de Platão são H.J.
Krämer, Areté bei Plato und Aristoteles, Heidelberg, 1959, e K. Gaiser, Platons ungeschriebene Lehre,
Stuttgart, 1962 (2nd ed. 1967), e mais recentemente, G. Reale, Per una nuova interpretazione di Platone,
Milão, 1989. O crítico mais notável da tal posição continua sendo H. Cherniss, Aristotle’s Criticism of
Plato and the Academy, Baltimore, 1944.
continuidade entre os dois homens do que jamais existia entre as duas escolas
históricas de pensamento que eles fundaram.3
Em poucas palavras, Aristóteles foi devedor de Platão não só porque
este ofereceu-lhe material contra o qual ele pôde afiar seu próprio senso crítico,
mas mais caracteristicamente, até mais fecundamente, por tê-lo gerado como
o filósofo complementar de que precisava. Os dois homens, separadamente,
exploraram e mapearam os polos norte e sul do mundo intelectual do
pensamento humano, e identificaram os lóbulos esquerdo e direito do cérebro
racional. E se Aristóteles deixou seus primeiros diálogos (a maior parte deles
perdidos) em favor da escrita de longos tratados sistemáticos, não o fez para
criticar os excessos de seu mestre, e sim para suplementar o modo dialético,
em que Platão brilhou, com seu método mais científico, tratados que essa
mesma dialética tornou possíveis.
Os diálogos, afinal, já tinham sido escritos. Sócrates “fixou o
pensamento pela primeira vez sobre as definições” 4 ; Platão demonstrou como
formular as perguntas mais profundas e abrangentes, que nos levariam a tais
definições. Os diálogos, em resumo, ensinam-nos a conversar com disciplina,
porque sem uma conversação rigorosamente ordenada, as perguntas podem
facilmente levá-nos para fora e longe da verdade, ao invés de para dentro e na
sua direção (como a palavra sugere: virar-se juntamente a algo: con-versari).
Platão simplesmente lançou os grandes paradigmas da dialética, que servirão
como método da inquisição racional para todo o sempre.
Aristóteles, tendo aprendido bem suas lições, mas desconfiado de
algumas das respostas oferecidas (assim como, no mais das vezes, o próprio
Platão permaneceu desconfiado!), prosseguiu na individuação e análise das
estruturas constantes do pensamento racional nas suas obras lógicas, e na sua
aplicação metódica às várias áreas do conhecimento em seus outros tratados.
O que quero dizer é simples: o diálogo continuava na mente de Aristóteles,
todo o tempo em que ele escrevia cuidadosamente seus tratados. Platão
estava dentro dele, e for por meio dele, e não apesar dele, que Aristóteles foi
além.
Costumamos destacar como Aristóteles amava mais a verdade do que
Platão e, "enquanto ambos nos são queridos, a devoção requer de nós que
honremos a verdade acima de nossos amigos". 5 O que perdemos amiúde é

3 Ver, especialmente, I. Düring, Aristotles: Darstellung und Interpretation seines Denkens, Heidelberg,
1966, e E. Berti, Profilo di Aristotle, Roma, 1979.
4 Met., 987b 3-4.
5 Ética a Nicômaco, 1096a 16-17.
que foi com Platão, mais do que qualquer outro, que Aristóteles aprendeu a
observar esses protocolos de prioridade acadêmica.
Os diálogos de Platão e os tratados de Aristóteles pertencem juntos, não
apenas nas prateleiras de nossas bibliotecas, mas também nas nossas
mentes. Sua separação hermética, tanto em escolas como em temperamentos,
assentou-se na raiz de, talvez, o maior número de incompreensões e
antagonismos que contaminou o pensamento ocidental em toda a sua história.
Desde os Acadêmicos e Peripatéticos aos estudantes de Plotino e Alexandre
de Afrodísia, aos Agostinianos e Averroistas, aos Tomistas e Scotistas, até à
moderna inflexão dessa mesma polarização: à Academia Florentina e os
Alexandristas de Pádua, e até - mutatis mutandis - aos racionalistas e
empiristas, até aos idealistas e positivistas e, em nosso próprio século, até os
fenomenologistas e filósofos analíticos - em todas essas oposições, observam-
se duas exigências racionais, frequentemente usando suas energias em uma
abençoada desconsideração de suas contrapartes, lados opostos, mas
potencialmente complementares.
Não foi assim com Aristóteles. Sua successão platônica foi um sucesso
platônico, e assim o fez sem negá-lo nem suplantá-lo. Se lermos bem
Aristóteles nos descobriremos voltando sempre para os diálogos em que as
grandes questões, para as quais tão frequentemente Aristóteles encontrava
respostas, foram primeiramente desveladas e - quase em êxtase -
perguntadas. A Ética a Nicômaco nos fará voltar à República e ao Mênon; a
Metafísica ao Sofista e ao Parmênides; a Política às Leis. E retornaremos a
esses trabalhos não por saudades, mas em busca de novo insight, porque os
diálogos platônicos são os grandes úteros nos quais a maioria das questões
seminais da filosofia foi primeiro gestada; muitas delas também daí nasceram.
Enquanto seguimos por sua adolescência e maturação em Aristóteles, a
continuidade do crescimento orgânico é evidente, mesmo quando a
adolescência se livra das despreocupações da primeira infância e a maturidade
corrige a precipitação juvenil. Existe algo de eternamente agradável e
provocativo a respeito da incubadora platônica de Ideias, e por serem, por
definição, inteligíveis, Aristóteles recusa-se a parar de pensar nelas com sua
inteligência. Entrementes, as Ideais começam a crescer, a se desenvolver e se
solidificar, enquanto se encontram, muitas vezes, com surpreendentes destinos
na sua mente.
Na medida em que olhamos mais de perto para a maneira particular pela
qual o polo aristotélico do pensamento ocidental foi magnetizado na era
escolástica, e como o “platonismo dos Padres” (uma expressão tornada famosa
por R. Arnou no Dictionnaire de Théologie Catholique) gerou o aristotelismo da
escolástica, eu penso que encontraremos uma significante exceção à
costumeira escolha de lados na grande divisão especulativa. Apesar de Alfred
North Whitehead ter sustentado que nascemos ou platônicos ou aristotélicos,
temo que essa caracterização falha a não levar em consideração aqueles
poucos que conseguiram tornar-se discípulos dos dois mestres. Existem,
portanto, uns poucos pensadores de certas épocas que foram além de seu
destino genético, e renasceram – ou melhor, foram batizados – no fogo das
mesmas intuições que uniram Platão e Aristóteles, que os uniu em uma
fraternidade bem mais poderosa do que qualquer uma de suas diferenças
pudesse comprometer.
Santo Agostinho de Hipona foi um desses pensadores; Santo Tomás de
Aquino foi outro. Que a mente mais destacada da patrística latina seja
considerada um (neo)platônico e o mais importante escolástico, um aristotélico,
somente enfatiza a inadequação dessas categorias para aqueles que leram
longa e profundamente nos livros de qualquer um deles. Para se ter certeza,
havia alguns poucos e preciosos escritos de Aristóteles disponíveis para o
bispo de Hipona, onde um médio-platonismo era mais fácil de se encontrar, e
sua própria admissão da influência neoplatônica é difícil de contradizer. 6
Realmente, é o próprio Santo Tomás que destaca:

Sempre que Agostinho, inspirado pelas doutrinas do platonismo,


achava em seus ensinamentos qualquer coisa de consistente com a
fé, ele a assimilava, e aquelas coisas que considerava contrárias à
fé, ele alterava.7

Contrariamente, poucos diálogos de Platão estavam disponíveis para


Tomás. Porém, com o tempo, quase todos os tratados de Aristóteles estavam
traduzidos para o latim. Nem se pode negar o manifesto estilo platônico de
Agostinho, mais um retórico e dialético do que um filósofo científico, nem o
método peripatético escolhido por Tomás, completo com a dicção e o estilo
sucintos a que estamos acostumados em Aristóteles (fazendo com que um
comentador pouco simpático observe que ler Aristóteles equivale a mastigar
cascas de ovos). Aqui, contudo, uma vez mais, aproximamo-nos perigosamente
de lançar duas forças complexas em seus convenientes escaninhos; corremos
o perigo de não entrever uma afinidade muito mais profunda que deveria
prender nossa atenção, bem mais profunda do que uma superficial divergência.
6 Confissões, VII, 9,13.
7 Summa Theologiae, I, q. 84, a.5.
Agostinho era precisamente um “padre” (ou pai), e embora tivesse inúmeros
“filhos” platônicos, intelectual e espiritualmente falando, Tomás era certamente
um deles.
Você recebe de um pai somente aquilo o que ele tem a lhe oferecer, e
não aquilo que o filho poderá unicamente desenvolver revestindo-se de sua
herança. Salomão foi mais sábio que David somente porque aprendera com
seu pai. Agostinho foi um pioneiro da sabedoria cristã e, nesse domínio,
explorou as questões da mesma maneira que Platão havia feito no domínio da
filosofia grega. Ele arriscou respostas, assim como Platão havia feito, e por
vezes, suas respostas ficaram aquém do desejado. Mas pais ensinam seus
filhos a andar, não lhes ensinam, necessariamente, aonde ir.
Quando Tomás corrige Agostinho, ele o faz somente porque encontrou
algo que o próprio Agostinho teria querido corrigir, caso lhe fosse apontado.
Ambos foram, como Platão e Aristóteles antes deles, simplesmente homens
ardentes pela verdade – dia e noite sedentos por doses renovadas da água da
sabedoria. Assim que Aristóteles aprendeu tudo o que Platão tinha para lhe
ensinar, e deixou seu mestre assim como uma flecha deixa para trás o arco, da
mesma maneira Tomás surgiu de seu aprendizado com os padres da patrística
e, acima de todos, com sua aprendizagem com o pai intelectual, Agostinho.
Os escritos de Agostinho e, junto com eles, os diversos tratados
neoplatônicos conhecidos à época (Liber de Causis, Corpus Areopagiticum
dentre outros), trouxe a inspiração de Platão para dentro da mente e da
mentalidade de Tomás. Sua própria leitura de Aristóteles e seus comentadores
introduziram a inspiração complementar de Aristóteles em seus cada vez mais
profundos recursos. Embora o regime escolástico do século XIII determinasse
que seus ensinamentos fossem arranjados na forma de artigos, questões,
comentários ao texto e sumas, existe no pensamento mais íntimo de Tomás de
Aquino uma mente que pensa com os dois lóbulos do cérebro ocidental. Ele é
geralmente aristotélico em seu método, frequentemente platônico em seus
insights, mas sempre ambos na síntese. Resta agora destacar algumas das
questões especulativas mais proeminentes de seu pensamento, trazendo essa
harmonia platônico-aristotélica para diante de nossos olhos. Esses olhos que,
certamente, estão predispostos contra a secura de estilo e pelo dificultoso
método, presumindo a hegemonia aristotélica no conteúdo, vendo Platão como
um estranho. Mas, esses olhos estão vesgos, vendo imagens duplicadas;
vamos apurar nosso foco e tentar ver um único Tomás, como ele realmente é.
Sócrates – um mestre tanto em Platão quanto em Aristóteles – ensinou-
nos a procurar essências e trabalhar duro para formular definições. Platão
apontou para uma raiz transcendente da universalidade e necessidade que
essas essências e suas definições requereriam, caso realmente fossem aquilo
que pensamos estar procurando. Ele enfatizou a transcendência do arquétipo e
a natureza imperfeita, derivativa, da reflexão imitadora e mundana. Aristóteles
ouviu longa e atentamente à múltipla articulação dessa ênfase e, convencido
finalmente dessa verdade soberana, seguiu-a aonde quer que fosse, com um
pastor segue suas ovelhas. E eis que ela voltou para o mundo. Como Platão,
ele havia começado, nas pegadas de Sócrates, a procurar no mundo um local
de descanso para o olho da mente, esse olho que, com Platão, veio a
descansar numa realidade transcendente, um mundo arquetípico de
estabilidade e luz. Contudo, enquanto Platão quase esgotou suas energias
mapeando esse mundo e analisando sua lógica interna, Aristóteles não pôde
deixar de perceber algo sumamente importante sobre as Formas, sobre esses
arquétipos, porém quase sempre esquecido – o fato de que são arquétipos
mesmos!
As Ideias platônicas são tipos primordiais, os primeiros modelos para
aquilo que será moldado. O fato mesmo de evidenciarem tão claramente essa
finalidade arquitetônica indica que o mundo aqui embaixo está longe de ser
periférico. Um arquétipo intrinsecamente preparado para comunicar sua
excelência formal para um mundo de participantes já indica, por si mesmo, o
valor desse mundo como um fim providencialmente antecipado – esse mundo
já está lá dentro de seu próprio desígnio. De certa forma, o mundo é até mais
importante do que os próprios arquétipos, uma vez que as Ideias estão todas
direcionadas para as coisas, como seus destinatários ontológicos.
Talvez possamos colocar a questão da seguinte forma: Platão disse que
este mundo é somente um reflexo de um mundo mais real das Ideias, enquanto
Aristóteles disse que este mundo é mesmo um reflexo de um mundo ainda
mais real. Isso quer dizer – como na disputa entre o otimista e o pessimista a
respeito do copo meio cheio ou meio vazio – que se pode destacar o fato de
que tudo neste mundo não é nada mais que imitação de um mundo superior,
voltado para essa superioridade, ou pode-se enfatizar o fato bem mais
sugestivo (para Aristóteles) de que se este mundo está tendo algum sucesso
em imitar uma ordem superior de existência, isso se deve às suas próprias
forças e significância ou, ainda mais sugestivamente, a um certo interesse
positivo que o mundo superior vem demonstrando pelo inferior. Em resumo,
essa é a diferença entre dizer “este mundo não é nada mais do que um símbolo
dos arquétipos superiores” e “este mundo é um verdadeiro símbolo dos
arquétipos superiores”. Aristóteles não negou a primeira afirmação; todavia,
galgando lentamente sobre os largos ombros do divino Platão e seguindo o
olhar fixo de seu mestre após o tempo e a morte terem-no enfraquecido, ele viu
toda a verdade da segunda assertiva. Esse é o motivo pelo qual o fundador do
Liceu começou a se interessar pelo mundo das pedras e dos organismos.
Existem quatro conceitos-chave no pensamento filosófico de Tomás de
Aquino, que delimitam, como quatro pilares, o impressionante edifício de sua
visão. Suspeito que foi o efeito combinado dessas quatro fontes luminosas que
deram à sua mente o alcance metafísico que provavelmente nunca tenha sido
igualado. Muitos têm tentado isolar uma inspiração dominante ou um só
princípio soberano, que parece estar na raiz de toda a variegada sabedoria do
Angélico Doutor. Para Manser, foi simplesmente a adoção e o desenvolvimento
da doutrina aristotélica do ato e da potência 8; para Gilson, foi a distinção real
entre o “ato do ente” e a essência 9; para Fabro, que eu considero mais próximo
à verdade do que a maioria dos outros, foi o desenvolvimento da noção
aristotélica de causalidade, a partir de um contexto da participação platônica 10.
Somente Fabro tentou focar toda essa tridimensionalidade dada à vasta obra
de Tomás pelo duplo olhar dos dois gênios atenienses.
Para mim, os quatro conceitos que melhor resumem as contribuições
reunidas de Platão e Aristóteles na visão de Tomás são: abstração e analogia,
no nível epistemológico; substância e criação, no nível ontológico. Os primeiros
termos de cada par são frutos, acima de tudo, do legado aristotélico; os
segundos, do legado platônico. Entretanto, nenhum desses conceitos, na
mente de Tomás, pode ser alçado intacto dos diálogos de Platão ou dos
tratados de Aristóteles. Todos os quatro alcançam uma resolução – seja nas
Questões Disputadas sobre o Poder ou na Summa Theologiae, por exemplo –
que apenas uma mente nutrida nas exigências da transcendência platônica e
da imanência aristotélica poderia ter produzido. No que se segue, ofereço
somente reflexões iniciais sobre os contornos desses conceitos na obra de
Tomás. Prateleiras de livros já foram escritas sobre eles, de forma
relativamente isolada; talvez uma apresentação sintética surja algum dia.
Quando empreendemos a conhecer qualquer coisa que seja, de forma
racional, começamos a abstrair. A doutrina aristotélica da abstração é aceita por
Tomás e submetida a um notável desenvolviment 11. Porém, a compreensão
básica tomista do tema carrega as marcas inconfundíveis de seus dois

8 G. Manser, Das Wesen des Thomismus, 3a ed., Friburgo, 1949.


9 E. Gilson, Being and Some Philosophers, Toronto, 1949.
10 C. Fabro, Partecipazione e Causalitá, Torino, 1958; também, A nozione metafisica di partecipazione,
ib., 3ª ed., 1963.
11 Ver De Trinitate, q. 5, a. 3; De Ver., q. 10, a. 6; também L. Ferrari, “ ‘Abstraction Totius’ and ‘Abstractio
Totalis’ “, em The Thomist, 24 (1961).
mentores. Achamos tanto a insistência platônica no chorismós (separação)
entre este mundo e o mundo ideal (porque o universal deve ser ab-straído
dessa matriz de contingência e mudança para que possa ser conhecido),
quanto a insistência aristotélica no mundo imanente da experiência como ponto
de partida de todo o conhecimento, inclusive o abstrato (porque somente coisas
que carregam algo da excelência participada, semelhante à ideia a ser gerada,
poderiam servir como, para citar Porfírio, “rampas de lançamento para o
domínio da mente”).
Estava claro para Tomás, sem dúvida, que a doutrina da abstração era
aristotélica. E, ao longo do principal eixo de sua articulação, ele manteve-se
firme com a assertiva de Aristóteles de que não são os inteligíveis já iluminados
o que a mente simplesmente se prepara para vislumbrar (como uma leitura ao
pé da letra de Platão parece sugerir), mas antes, são as formalidades
potencialmente cognoscíveis que se tornam inteligíveis pelo trabalho do
intelecto agente. Ainda assim, o “tornar-se inteligível”, que é o genuíno trabalho
de abstração produzido pela mente, somente é possível porque o intelecto
agente “ilumina” os fantasmas da imaginação. A luz pela qual isso é feito é
entendida por Tomás como derivada da divina luz intelectual de Deus. 12 Em um
rico texto, cujo tema é repetido em inúmeros trabalhos posteriores, uma
posição agostiniana é assumida tão claramente quanto se poderia desejar:

A luz do intelecto agente na alma racional resulta, como de sua


primeira origem, de substâncias separadas, especialmente de
Deus... Na luz do intelecto agente, toda a ciência é, de certa forma,
provida desde sua origem pelos recursos dos conceitos universais,
que são imediatamente conhecidos pela luz do intelecto agente; por
meio desses conceitos, tal como por meio de princípios universais,
nós julgamos todas as coisas, e temos uma certa presciência delas
nesses princípios.13

Em um texto famoso, Santo Tomás responde a uma objeção contra a


pluralidade de intelectos nos homens, asseverando que “não importa muito se
falamos que as coisas inteligíveis participam de Deus ou que é a luz, que as
torna inteligíveis, que participa de Deus”14. Não se deve, é claro, levar essas
afirmações muito longe. Sempre que se trata de uma questão de escolha entre
12 “A ação de qualquer inteleto criado depende de Deus em dois respeitos: primeiro na medida em que
tem dele a perfeição pela qual age, a saber, luz; e no segundo lugar na medida em que é movido por
ele.” Summa Theologiae, Ia-IIae, q. 109, 1.c (minha tradução); também Ia, q. 88, 1c, e Ia-IIae, q. 50, 5c.
13 De Veritate, q. 10, a. 6c; cf. Summa Theol., Ia, q. 12, a. 2; q. 84, a.5.
14 De spiritualibus creaturis, q. 10, ad 8m. (minha tradução)
a visão platônica dos inteligíveis que já são inteligíveis por sua própria
natureza, de um lado, ou da visão aristotélica de meras potencialidades, do
outro, Tomás claramente está ao lado de Aristóteles. Mas, o que me parece
importante é que a mente de Tomás estava bem comprometida com a
necessidade de uma fundamentação transcendental de todo o conhecimento
intelectual, tão cara a Platão. E a vetusta teoria agostiniana da iluminação, tão
platônica em sua inspiração, nenhuma vez é exposta ao desprezo no longo
tratado de Tomás sobre o conhecimento humano na Prima Pars. Tomás está
olhando para a questão da abstração, munido de ambas as perspectivas.
Enquanto o pano de fundo desse referente transcendental na abstração
é investigado por direito próprio, a análise de Tomás do conceito de ente
começa a desdobrar diante de nossos olhos uma paisagem mais
explicitamente platônica. O conceito sempre pressuposto em todo juízo, e
implícito em toda abstração, resiste à redução, tanto ao sujeito ou predicado na
análise proposicional, quanto a uma formalidade abstrata na abstração. De
fato, as univocidades, que constituem a glória da abstração, deixam de
funcionar diante de um conceito para o qual todas as diferenças específicas em
potencial já estão contidas na unidade de sua natureza. É também mais radical
do que sujeito e predicado, porque esses são o que são somente através dos
serviços copulativos do conceito de ente.
Essa luz do intelecto que torna inteligíveis todas as abstrações, e se une
em matrimônio semântico a todos os termos proposicionais, é o objeto mais
primordial do próprio intelecto: o ente. O intelecto é, em suma, a faculdade do
ente. Sem nos aventurarmos para dentro das aproximações kantianas de
Joseph Maréchal e companhia, será suficiente para a finalidade deste artigo
destacar quão amplo – quão platonicamente amplo – é, de fato, o horizonte
para o qual apontam as precisas considerações sobre a doutrina aristotélica do
intelecto agente feitas por Tomás. Esse pano de fundo do ente necessita do
suporte de todo o conhecimento intelectual – por meio de todas as abstrações
unívocas e suas variadas relações proposicionais – pelo conceito originário de
de toda analogia: o ente.
Tudo está inspirado por aquilo que Louis de Raeymaeker chama de “o
valor do ente”15. A mente de Tomás está constantemente equilibrando-se entre
uma essência unívoca, que está tentando, por abstração, tornar mais e mais
inteligível, e um valor análogo – o do ente –, que está continuamente
transcendendo suas instâncias mundanas, necessariamente limitadas. O que
uma coisa é, é uma formalidade imanente; que a coisa é, é um referente

15 La philosophie de l’être, Louvain, 1948.


transcendente. Entre abstração e analogia, uma dialética se segue, ou melhor –
para falar como Bernard Lakebrink – uma analética se segue16, porque a noção
analógica do ente se mostra como o prior (se não a priori) conhecimento, a
condição mesma de possibilidade de qualquer abstração.
Agora ambos esses conceitos epistemológicos estão unidos na mente
de Tomás a dois conceitos ontológicos correspondentes, um platônico e outro
aristotélico, interações que deixam às claras, uma vez mais, o horizonte
tridimensional sempre presente no pensamento do santo. Aristóteles tinha
seguido as Ideias platônicas, em sua pura força ontológica, de volta ao mundo
que as espelhava, somente para descobrir que o espelho era um reflexo bem
mais valioso do que o mundo sombrio que as considerações mais grandiosas
de Platão procuravam macular. Então, o trabalho da abstração tomou a sério o
mundo das coisas, enquanto os sentidos lutavam com a variedade de
acidentes pelos quais as coisas asseguravam sua limitada continuidade na
existência. Segurando alto a laterna do conceito iluminador do intelecto agente,
a saber, o conceito de ente, a mente investigou com atenção os sentidos.
Seguindo em frente até os acidentes, deu para perceber que, como o seu
conceito de ente estava por trás de toda a análise e abstração, havia uma
reserva do ente lá fora, dentro das coisas também. Em uma palavra, existiam
substâncias.
Paradoxalmente, o maior tributo que Aristóteles prestou às Ideias
platônicas foi sua insistência na existência de substâncias materiais individuais.
Percebe-se aqui quão poderosas e paradigmáticas as Ideias realmente são,
porque aqui está sua prole. A cuidadosa análise de Aristóteles da estrutura da
existência finita e seu conceito-chave, ousia (substância), é o marco objetivo
oposto de seu igualmente cuidadoso estudo do processo subjetivo de
abstração. E ambas as análises levam a cabo, de uma maneira insuspeita para
Platão, todas as implicações ontológicas e epistemológicas na descoberta
socrática e platônica das essências universais e no significado das definições
que nós elaboramos a partir delas. Como Tomás pensou toda a doutrina da
abstração até sua mais profunda dependência da doutrina da analogia do ente,
ele poderia igualmente seguir a doutrina aristotélica da substância a uma
consumação até mesmo mais surpreendente: a doutrina da criação do ente.
É na doutrina metafísica da criação onde o mais profundo e o mais
original pensamento de Tomás é encontrado. Os outros três conceitos já foram
desenvolvidos ou, como no caso da analogia, vislumbrado em Platão e
Aristóteles. A noção de criação, entretanto – a produção de entes completos de

16 Bernard Lakebrink¸ Hegels Dialektische Ontologie und die Thomistische Analektik, Colónia, 1955.
todas as coisas limitadas a partir do nada – essa noção era nova. É na
constante rearticulação de seus principais insights sobre a criação que
encontramos a nota mais característica do pensamento filosófico de Santo
Tomás de Aquino.
Ele não está simplesmente desenvolvendo o aristotelismo, nem
simplesmente refutando o agostinianismo. Ele está, ao contrário, olhando para
o real com dois olhos treinados nas mais profundas exigências primeiramente
demarcadas pelos dois inigualáveis mestres da razão ocidental. A
transcendência platônica e a imanência aristotélica, libertadas pelo cuidadoso
desdobrar, por um lado, dos conceitos de analogia e criação, e por outro, dos
conceitos de abstração e substância, traz a visão de Tomás para um foco
tridimensional que é o seu maior legado para todos nós: um exemplar de como
olhar longa e atentamente ao que está aí na nossa frente, e depois pensar
coerentemente a respeito.
Embora o ente substancial tenha encontrado seu caminho no
cosmos aristotélico, Deus teve menos sucesso; Ele era transcendente apenas
como movente, e nunca imanente como criador. E, embora os inteligíveis
platônicos fossem, sem dúvida, transcendentes, a Grande Inteligência que é
Deus, nunca se tornou suficientemente substancial para criar o universo. É o
exemplo mais revelador da dupla perspectiva de Tomás de Aquino, alimentada
simultaneamente pelo kósmos gnostós platônico e pelo kósmos physikós
aristotélico. Ele veio a perceber a primeira causa de todas as coisas, Deus,
como perfeitamente transcendente ao mundo que ele criou, justamente por ser
a causa totalmente imanente de sua própria substancialidade.

VERSÃO FINAL
Tradução de Bruno Paranhos (brunoparanhos615@gmail.com)

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