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VIDA DE

ORAÇÃO

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Tradução
Jorge Camargo

Supervisão editorial
Marcos Simas

Capa
Oliverartelucas

Revisão
Carlos Buczynski
Alzeli Simas

Diagramação
Clara Simas



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VIDA DE
ORAÇÃO
PARA QUEM DESEJA CONHECER
DEUS NA INTIMIDADE

Teresa de Ávila

Resumido e editado por


James M. Houston

Introdução à edição brasileira


Osmar Ludovico

Brasília
2007

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© 2007 Editora Palavra

© 2006, 1983 by James M. Houston, second edition


Cook Communications Ministries, 4050 Lee Vance View, Colorado Springs, Colorado 80918
U.S.A. Originally published 1982 by Multnomah Press, Portland, Oregon 92766

Título original
Life of prayer

Impressão
Imprensa da Fé, SP

1ª Edição brasileira
Abril de 2007

Todas as citações bíblicas foram extraídas da NVI – Nova Versão Internacional,


da Sociedade Bíblica Internacional. Copyright © 2001, salvo indicação em contrário.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio,
por escrito, dos editores, exceto para breves citações, com indicação da fonte.

Publicado no Brasil com a devida autorização


e com todos os diretos reservados pela
Editora Palavra
CLN 201 Bloco “C” subsolo
Brasília - DF
CEP. 70832-530
Tel: 61-3326-7883
www.editorapalavra.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


CIP-Brasil. Catalogação na fonte

W664c de Ávila, Teresa


Vida de Oração / Teresa de Ávila ;
resumido e editado por James M. Houston. – Brasília-DF : Palavra, 2006.

192 p.; 14 x 21cm.

Obra publicada originalmente em inglês sob o título: Life of Prayer

ISBN

1. Cristianismo e Fé. 2. Fé Cristã. 3. Cristianismo – História. I. Houston, James M.


II. Título.

CDD: 230
CDU: 274.1/07

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Sumário

Prefácio ..................................................................................... 7

Nota do Editor ........................................................................ 11

Introdução .............................................................................. 21

Capítulo I ................................................................................ 27
Os primeiros anos de Teresa, de fracasso, e os últimos, de dificuldades
na oração

Capítulo II .............................................................................. 55
Princípios básicos para uma vida de oração

Capítulo III ............................................................................. 79


Oração, como fé e fervor por Deus somente

Capítulo IV ........................................................................... 105


A vida de oração como um jardim

Capítulo V ............................................................................ 147


O castelo interior: a vida interior como muitas mansões para a pre-
sença de Deus: parte 1

Capítulo VI ........................................................................... 181


O castelo interior: parte 2

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Capítulo VII .......................................................................... 217
O castelo interior: parte 3

Capítulo VIII ........................................................................ 251


Conseqüências práticas de uma vida de oração

Apêndice ............................................................................... 273

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Prefácio

Prefácio à série Clássicos


da Espiritualidade Cristã

C om a profusão de livros sendo agora publicados,


grande parte dos leitores cristãos necessita de algu-
ma orientação acerca de uma coleção básica de obras espiri-
tuais que permaneçam como companheiras para toda a vida.
Esta nova série de clássicos da espiritualidade cristã está sendo
editada para oferecer uma biblioteca básica para o lar. As obras
selecionadas podem não ser todas conhecidas na atualidade,
mas cada uma delas possui um interesse central de relevância
para o cristão contemporâneo.
Outro objetivo desta coletânea de livros é o de um des-
pertamento. Um despertamento para os pensamentos e medi-
tações espirituais dos séculos esquecidos. Muitos cristãos, hoje,
não têm noção do passado. Se a Reforma é importante para suas
convicções, eles saltam da Igreja apostólica para o século XVI,
esquecendo-se de catorze séculos da obra do Espírito Santo en-
tre muitos que se dedicaram a Cristo. Estes clássicos retirarão o
fosso, e enriquecerão seus leitores por meio da fé e da consagra-
ção de santos de Deus através de toda a história.
E assim, nos voltamos para os livros, e ao seu propósito.
Alguns deles mudaram a vida de seus leitores. Observe como
A Vida de Antônio, de Atanásio, afetou Agostinho ou Um Cha-

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8 VIDA DE ORAÇÃO

mado Sério para a Vida Santa, de William Law, influenciou John


Wesley. Outros, tais como as Confissões, de Agostinho, ou a Imi-
tação de Cristo, de Thomas à Kempis, têm permanecido como
fontes perenes de inspiração através dos séculos. Esperamos de
coração que as obras selecionadas nesta série tenham um efeito
semelhante sobre nossos leitores.
Cada um dos clássicos escolhidos para esta série é profun-
damente significativo para o leitor cristão contemporâneo. Em
alguns casos, os pensamentos e reflexões do escritor clássico se
espelham nas ambições e desejos genuínos do leitor atual, uma
identificação de corações e mentes incomum de se encontrar.
Assim, alguns indivíduos foram convidados a escrever a intro-
dução do livro que teve um significado tão importante para sua
própria vida.

Editando os clássicos

Alguns clássicos de espiritualidade tiveram seus obstácu-


los. Sua linguagem original, o estilo arcaico das edições mais
recentes, sua extensão, as digressões, as alusões a culturas ultra-
passadas – tudo isso torna seu uso desestimulante para o leitor
moderno. Reimprimi-los (como feito em larga escala no século
passado e ainda hoje) não supera estas deficiências de estilo,
extensão e linguagem. A fim de buscar pelo grão e remover a
casca, o trabalho desta série envolve resumir, reescrever e editar
cada um dos livros. Ao mesmo tempo, procuramos manter a
mensagem essencial da obra, e manter, tanto quanto possível, o
estilo original do autor.
Os princípios de edição são os seguintes: manter as sen-
tenças curtas. Também diminuir os parágrafos. O material é re-
sumido quando há digressões ou alusões a questões específicas
de seu tempo. As palavras arcaicas são atualizadas. As conexões
lógicas podem ser acrescentadas ao material resumido. A iden-
tidade do tema ou do argumento é mantida o tempo todo em

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PREFÁCIO 9

mente. Alusões a outros autores recebem uma breve explicação.


E textos de rodapé são acrescentados a fim de fornecer resumos
concisos de cada seção principal.
Para o cristão, a Bíblia é o texto básico para a leitura es-
piritual. Todas as outras leituras devocionais são secundárias e
jamais deveriam substituí-la. Portanto, as alusões às Escrituras
nestes clássicos de espiritualidade e devoção são pesquisadas e
mencionadas no texto. É neste ponto que outras edições desses
livros ignoram as suas qualidades bíblicas, que são inspiradas e
conduzidas pela Bíblia. O foco nas Escrituras é sempre a marca
registrada da verdadeira espiritualidade cristã.

O propósito para os clássicos: leitura espiritual

Uma vez que nossa cultura impaciente e guiada pelos sen-


tidos torna a leitura espiritual algo estranho e difícil para nós, o
leitor deveria estar pronto a ler esses livros com vagar, estar dis-
posto a meditar e a refletir. Não se pode lê-los de maneira afoba-
da, como se lê uma história de detetive. Em lugar da novidade,
eles se concentram na recordação, em nos lembrar de valores de
conseqüências eternas. Podemos apreciar muitas coisas novas,
mas valores são tão antigos quanto a criação de Deus.
O alvo do leitor desses livros não é o de buscar informa-
ção. Ao contrário, esses volumes nos ensinam acerca de viver
sabiamente. Isso demanda obediência, submissão da vontade,
mudança de coração e um espírito dócil e terno. Quando João
Batista viu Jesus, reagiu, “Convém que ele cresça e que eu di-
minua”. Do mesmo modo, a leitura espiritual diminui nossos
instintos naturais para permitir que o Seu amor cresça dentro
de nós.
Esses livros também não são textos ou pacotes de “como
fazer” algo. Eles nos recebem como somos – ou seja, como pesso-
as, e não como funcionários. Eles nos guiam para que “sejamos”
autênticos, e não necessariamente nos ajudam a promover mais

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atividades profissionais. Tais livros demandam tempo para sua


digestão vagarosa, espaço para que seus pensamentos entrem
em nossos corações e disciplina para deixar que novas percep-
ções “grudem” e tornem-se parte de nosso caráter cristão.

James M. Houston

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Nota do Editor

Teresa de Ávila e a relevância


deste clássico

Afalta da oração como um modo de vida entre os cristãos


torna esta antologia dos escritos de Teresa oportuna.
Mas eu espero que a intensidade da vida de oração de Teresa, com
suas experiências místicas de vozes e visões, sua sinceridade e seu
desejo de Deus, não pareça ser demais para o cristão comum.
Minha mãe, uma missionária protestante na Espanha,
foi apedrejada fora de um vilarejo perto de Ávila, o lugar onde
Teresa viveu. Com essa experiência quando criança, nunca
pensei que viria a admirar a devoção dessa mulher católica. No
entanto, quanto mais tento compreender o espírito de Teresa,
mais sinto a profundidade de sua devoção em seu fervor por
Deus, em seu desejo de ser como Cristo e em seu realismo
prático, como fundadora de dezessete conventos.
Tendo em consideração a distância de quatro séculos e
os preconceitos das diferenças religiosas, Teresa nos alcança a
todos. Ela nos preenche com o alento da oração e nos desafia
a enriquecermos nossa vida interior mais plenamente com
a presença de Cristo. O Dr. Alexander Whyte escreveu uma
antologia sobre algumas das obras de Teresa em 1897.

O maior e melhor talento que Deus concede a qual-


quer homem ou mulher neste mundo é o talento da

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oração – foi isso o que primeiro me atraiu em Tere-


sa, sua originalidade singular na forma de orar e sua
completa dedicação à oração; o tempo que ela passava
orando, e o refúgio, a paz, a santificação e o poder para
realizar o trabalho duro e não correspondido que ela,
por toda a sua vida, encontrou em oração; sua fide-
lidade e sua entrega incondicional a esta primeira e
última de todas as suas obrigações religiosas até que se
transformasse mais em um prazer e, na verdade, mais
uma satisfação do que uma obrigação. Com Teresa,
era primeiro a oração, a oração por último, e a ora-
ção sempre. Com Teresa, literalmente, todas as coisas
eram santificadas, e adocicadas, e tornadas frutíferas
pela oração.1

Os escritos de Teresa

Se a oração é muito negligenciada hoje, nos tempos


de Teresa ela também era alvo de muita desconfiança. Em
1525, a Inquisição condenou quarenta e oito proposições dos
alumbrados (aqueles que buscavam experiências místicas através
da inspiração interior). O temor da possessão demoníaca era
outra preocupação à época.
Assim, a sociedade espanhola daquele tempo não via com
bons olhos mulheres como Teresa, ou qualquer pessoa que tives-
se experiências místicas de oração. Diante dessas circunstân-
cias, ela tomou a sábia atitude de buscar conselheiros espirituais
e de estar aberta para descrever na sua totalidade o estado de
sua alma. Ela assim fez através de vários documentos que foram
publicados posteriormente.
Primeiro, ela compôs uma série de Relações Espirituais
para informação de seus confessores. Em seguida, empenhou-
se na descrição detalhada de sua Vida em 1562, a pedido do
Padre Garcia de Toledo. Não se trata de uma autobiografia
propriamente dita, assim como as Confissões, de Agostinho ou
Abundante Graça, de Bunyan não são biografias. Ao contrário,

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NOTA DO EDITOR 13

trata-se de uma apologia do crescimento de sua vida espiritual.


Ela mesma negou que o livro fosse a história de sua vida,
preferindo chamá-lo de As Misericórdias de Deus.
Quando outro de seus conselheiros, Domingo Bãnez, não
autorizou suas freiras a ler A Vida, elas imploraram a ela que lhes
escrevesse algumas orientações simples acerca da oração vocal.
Caminho de Perfeição (1566) foi sua resposta ao pedido de que
escrevesse “algumas coisas sobre a oração”. Três anos depois, ela
revisou essa obra. Nela, ela enfatiza que a oração incessante é
a verdadeira vida do cristão, porque Cristo está ao lado dele o
tempo todo.
Teresa também havia escrito o seu Meditações sobre o
Cântico dos Cânticos, possivelmente em 1566; ela o revisou
entre 1572 e 1575. Foi algo ousado de se fazer, tendo em vista
a prisão do Frei Luis de Leon, de 1572 a 1577, por ter traduzido
o Cântico de Salomão para o espanhol. De fato, Teresa não
tinha nenhum conhecimento de latim, de modo que seu acesso
às Escrituras se dava somente por meio da compreensão de
referências bíblicas no breviário – um livro contendo orações,
hinos, etc., que os clérigos na igreja católica memorizavam – e
outros livros.
Uma solicitação adicional foi feita pelo padre Graciano
em 1577 para que Teresa escrevesse outro livro sobre a vida
espiritual, uma vez que a Inquisição havia tomado posse de seu
livro Vida. Ela tinha sessenta e dois anos, e, após cinco anos de vida
contemplativa em união com Deus, Teresa escreveu O Castelo
Interior em poucos meses. Talvez essa seja a sua obra prima sobre
a vida de oração. Como mostram algumas de suas cartas, aquele
ano em particular foi difícil para ela, marcado por perseguições e
calúnias. No entanto, foi também um ano de riqueza espiritual.
Teresa escreveu Máximas ou “Admoestações às suas freiras”
em 1582; que foram publicadas com Caminho de Perfeição.
Após sua morte, Frei Luis de León editou suas Meditações ou
“Solilóquios da Alma para Deus” em 1588. Eles revelam alguns

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14 VIDA DE ORAÇÃO

dos sentimentos religiosos mais íntimos de Teresa. O Livro dos


Fundamentos foi iniciado como um diário dos começos de cada
uma de suas casas. Ele foi escrito de 1576 a 1582 e publicado
em 1610.
Suas outras obras menores, que não estão incluídas nesta
presente antologia, são: Constituições Dadas às Suas Freiras,
1568; Julgamento; e Método de Visitação dos Conventos das Freiras
Carmelitas Descalças. Ela escreveu vários poemas e hinos, alguns
intercalados em sua correspondência e outros manuscritos.
Allison Peers selecionou trinta e um deles. Algumas de suas 441
cartas também foram selecionadas e editadas junto com outros
vinte e sete fragmentos, material que está datado entre 1546 e
1582.2

O imaginário das obras de Teresa

Teresa tem produzido um impacto significativo sobre


muitos cristãos desde sua época. O fervor e a dedicação com
que ama a Deus são profundos. O poeta Crashaw começa seu
poema com as seguintes palavras:

Possa eu ler tua vida de modo a


Que toda a minha possa morrer.
(“Hino ao nome da admirável Santa Teresa”)

Mas suas imagens são muito intensas e vivas. Frei Luis de


León, em sua edição dos escritos de Teresa, em 1588, diz, “eu
nunca conheci ou vi Madre Teresa enquanto ela viveu sobre a
terra...mas agora que ela mora no céu eu a conheço, eu a vejo
quase que continuamente em duas imagens vivas de si mesma
que ela nos deixou em suas filhas e em seus livros.”
Com exceção talvez de Cervantes, nenhum outro escritor
no mundo de fala espanhola é mais conhecido que ela. Eruditos
e leitores comuns se encantam por ela de igual modo, não
porque ela fosse erudita – ela não era. Tampouco são leitores

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NOTA DO EDITOR 15

impressionados apenas com sua devoção – embora ela inspire


a todos com sua profunda experiência de vida e de oração. As
pessoas se impressionam com sua autenticidade, que se manifesta
em um auto-esquecimento inconsciente. E prática, ah, muito
prática! Concisa, vigorosa, viva, ela fala conosco através de
metáforas cintilantes que iluminam delicada e naturalmente o
caminho do espírito.
As imagens literárias têm a capacidade de nos afetar
profundamente. Elas são a linguagem da alma. A primeira das
imagens de Teresa é a da jornada ou peregrinação da alma.
Ela tem possibilidades infinitas porque é a jornada para Deus
unida à experiência de se estar perto de Deus. Trata-se de uma
jornada composta de uma série de transformações, pois esse é
o propósito de Deus para o homem por meio da criação, que o
homem possa carregar consigo a imagem de Deus e que, por meio
da redenção, possa ser transformado à imagem de Seu Filho.
As imagens de Teresa exploram esses propósitos da Escritura e,
por conseguinte, são alusões essencialmente bíblicas. Elas são
também imagens intrinsecamente humanas.
A imagem dominante que ela retrata é a do Castelo.
Trata-se de uma imagem da totalidade da alma. Ele é o lugar
das experiências da pessoa como um todo com Deus em Seu
lugar de habitação, Deus sendo Rei dos Reis, a quem Teresa
carinhosamente chama de “Sua Majestade”. Ela nos diz que essa
imagem veio repentinamente, como “um globo de cristal muito
lindo”. Isso indicou a preciosidade de cada pessoa, única diante
de Deus, em quem Deus viria habitar. Em lugar da limitação
da alma solitária sem Deus, Teresa vê a vastidão infinita de
experimentar sozinha a presença de Deus dentro de sua vida
interior. Pois é a presença de Deus dentro da alma do homem
que propicia a ela espaço e deleite. Quão contrastante é O
Castelo, de Kafka, com sua temerosa ausência do proprietário,
descrevendo não somente a ausência do pai terreno do novelista,
como também a alienação de Kafka para com Deus.

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16 VIDA DE ORAÇÃO

Esse talvez seja o cerne da revelação bíblica acerca


do homem. Pois ele é criado para ser um adorador de Deus.
A adoração, portanto, não é outra coisa senão o espírito de
lealdade que o homem súdito tem para com Deus enquanto
“Sua Majestade.”
Do mesmo modo, o propósito de toda peregrinação é voltar
para casa, onde devemos viver; a saber, com Deus. Isso Teresa
fundamentalmente vê como nada menos que a união com Deus.
Cada estágio da jornada tem suas próprias estipulações que, uma
vez não cumpridas, tornam impossível o próximo passo.
Teresa observa primeiro em Mansões, de um a três, que a
alma é o domicílio de Sua Majestade. Isso requer que adotemos
os modos e o protocolo da corte, a saber, uma vida piedosa.
Assim, animais impuros, serpentes e outras criaturas que rastejam
diante do pecado e da paixão devem ser erradicados sempre que
possível. Nas últimas quatro Mansões, a proximidade de Sua
Majestade se torna ainda mais íntima. É quando se observa o
movimento a partir de Sua presença próxima em direção à Sua
amizade, ao Seu noivado, e, enfim, à união com Ele.
A água é outra imagem muito utilizada por Teresa. Sua
escassez nas estepes áridas de Castela e as práticas de irrigação
que a Espanha herdou dos mouros lhe eram familiares. A água, de
igual modo, é uma imagem primordial de vida freqüentemente
usada na Escritura. Ela pensa na água como uma imagem da
vida inteira, dizendo, “não encontro nada mais apropriado
para explicar essas experiências espirituais que a água” (Castelo
Interior, IV, 2, 2).
Em particular, a água para Teresa representava os diferentes
tipos de oração – as verdadeiras fontes da vitalidade espiritual
– que são experimentados na vida de um cristão. Primeiro, ela
vincula a água retirada do poço por meio de baldes ao exercício
da meditação ativa. Esta é também a experiência de Deus nas
primeiras três Mansões. A segunda experiência de oração ela
associa à metáfora do aqueduto, ou canal, que leva água a partir

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NOTA DO EDITOR 17

de uma nascente ou fonte. Ela associa isso à oração que se


concentra inteiramente na presença de Deus e produz grande
alegria pessoal e paz que não são resultado de qualquer esforço
humano. É isso que ela experimenta da quarta à sexta Mansão.
Ela então fala do refrigério das chuvas que fartam a
terra como a união suprema que a alma tem com Deus. Isso é
experimentado na sétima Mansão.
Teresa, portanto, une três grupos de imagens – a Jornada,
o Castelo Interior e a Água no Jardim. No entanto, ao
contrário da psicologia secular, que busca conhecer por meio
do autoconhecimento, Teresa admite: “em minha opinião,
nunca conheceremos por completo a nós mesmos se não nos
empenharmos em conhecer a Deus” (Castelo Interior, I, 2, 8).
Outra imagem encantadora que ela nos dá é a da borboleta.
A borboleta representa a vida nova, embora frágil, que tão
maravilhosamente aparece quando a alma deixa a escuridão de
seu casulo egoísta e vem para a luz do amor e da união com
Deus. Libertar-se a si mesmo para uma relação com Deus requer
transformação; é a presença de Deus que pode promover essa
libertação e a subseqüente transformação. A oração é o segredo
disso tudo. O casulo é o eu alienado, a separação de Deus por
meio do pecado. A luta da alma para se libertar é a história
completa das sete Mansões. Teresa reconta suas lutas muito
intensamente, lutas em seus sofrimentos, que são compostas de
pecaminosidade e ao mesmo tempo de desejo de Deus. “Quantas
provas exteriores e interiores a alma sofre antes de alcançar a
sétima habitação!” (Castelo Interior, VI, 1, 1).
Imagens assim têm como objetivo, por parte de Teresa, ser
um encorajamento e um guia para se viver uma vida que esteja
centrada na oração. Ela nos lembra que há uma quarta dimensão
de nossa existência além das esferas empíricas e científicas, além
da estética e até mesmo além da pessoal. Essa quarta dimensão
é a esfera da oração e da união com Deus. Ela é o terreno da
adoração diante de Sua Majestade.

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18 VIDA DE ORAÇÃO

Na compilação desta antologia, consultei várias outras,


notadamente as de Alexander Whyte3 e Pierre Serouet.4 Usei
vários comentários também, tais como os de Ruth Burrows5 e
Trueman Dicken,6 e as biografias de Stephen Clissold,7 Mary
Terese Donze8 e Allison Peers.9
Talvez muita ênfase tenha sido tradicionalmente
colocada sobre as categorias e estágios de oração que Teresa
descreve. Ela cria que nem todos experimentariam aquilo que
ela experimentou, de modo que eu creio que a sua ênfase se
encontre mais no relacionamento individual com Deus em
Cristo, e não em que todos os cristãos deveriam tomar a direção
que ela tomou a fim de repetir tudo o que ela experimentou.
Eu, portanto, organizei o material de modo a refletir os vários
aspectos da oração nessa mulher extraordinária. A condensação
de Castelo Interior – a síntese mais sucinta já desenvolvida de
todas as suas obras – também foi a mais difícil de ser feita. Os
leitores são encorajados a ler o texto completo desse clássico em
outras publicações.
O texto é baseado na revisão das seguintes fontes básicas:

- Dalton, John. The Way of Perfection (incluindo Con-


ceptions of Divine Love, Letters, Maxims). London: C.
Dolman, 1852.
- Dalton, The Interior Castle (e Letters). London:
Catholic Publishing and Bookselling House,
1859.
- Lewis, David. The Life of St. Teresa of Avila (in-
cluindo Relations ou Manifestations of Her Spiritual
State). London: Thomas Baker, 1854.

Também sou grato por poder consultar traduções moder-


nas tais como as de Allison Peers10, e Kieran Kavanaugh e Otí-
lio Rodriguez.11
Também sou muito grato à senhorita Cheryl Bjorklund

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NOTA DO EDITOR 19

por digitar o manuscrito, e ao senhor Craig Gay por seu auxílio


na pesquisa.
James M. Houston

Notas

1. Alexander Whyte, Saint Teresa, an Appreciation (Lon-


don: Oliphant, Anderson, & Ferrier, 1897), 18-19.
2. Efren de la Madre de Dios & Otger Steggink, Santa
Teresa de Jesus, Obras Completas (Madrid: Biblioteca Autores
Cristianos, 1974), 667-1126.
3. Whyte, Saint Teresa, an Appreciation.
4. Pierre Serouet, Saint Terese d´Avila (Amour et Priere:
Paris, Editions du cerf, 1965).
5. Ruth Burrows, Fire Upon the Earth [The Interior Castle
Explained] (Denville, NJ: Dimension Books, 1981).
6. Trueman Dicken, The Crucible of Love (New York:
Sheed & Ward, 1963).
7. Stephen Clissold, Saint Teresa of Avila (London: Shel-
don Press, 1979).
8. Mary Terese Donze, Teresa of Avila (New York: Paulist
Press, 1982).
9. E. Allison Peers, Mother of Carmel (Wilson, CT: Mo-
rehouse-Barlow, Co., 1944).
10. Peers, The Works of Saint Teresa of Jesus, 3 vols. (Lon-
don: Sheed & Ward, 1946).
11. Kieran Kavanaugh & Otilio Rodriguez, St. Teresa of
Avila, 2 vols. (Washington, D.C.: Institute of Carmelite Stu-
dies, 1976, 1980).

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Introdução

Introdução à edição brasileira

É
com grande alegria, mas também com temor, que faço
a apresentação deste livro.
Alegria por este espaço de convívio literário e espiritual
com Tereza de Ávila e James Houston. Temor pelas minhas pró-
prias limitações face à profundidade e alcance da obra.
James Houston já é conhecido pelos leitores brasileiros
pelos seus livros, por suas conferências e retiros em Curitiba,
São Paulo e Brasília, e também por aqueles que tiveram a feli-
cidade de estudar na Regent College, em Vancouver, Canadá.
Ele é respeitado e admirado no mundo todo pela sua erudição
e piedade.
Tereza de Ávila, por outro lado, embora conhecida de
nome, tem sua vida e obra em grande parte desconhecidas no
meio evangélico. Ela faz parte da Monástica, um movimento de
homens e mulheres que consagraram suas vidas a Deus através
de votos perpétuos de castidade, pobreza e obediência, para vi-
ver em uma comunidade estável.
A Monástica surge cerca de 300 d.C., depois que Cons-
tantino conquista a vitória sobre seus adversários e assume o
poder no império romano. Ele atribui sua inesperada vitória ao
Deus dos cristãos, pois havia tido um sonho no qual recebera a

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22 VIDA DE ORAÇÃO

instrução de colocar o monograma de Cristo no uniforme dos


soldados.
A Igreja deixa de ser perseguida e o cristianismo se torna
religião oficial do Estado. Sai das catacumbas e vai para os pa-
lácios. Nessa ocasião, surge o movimento dos Pais do Deserto.
Homens e mulheres que não querem participar da igreja do po-
der se retiram para regiões remotas para se dedicarem à leitura
da Bíblia e à oração.
Monastérios surgem e são um fator decisivo no proces-
so civilizatório na Europa. Unidos em torno do lema ora et
labora, homens e mulheres vivem em comunidade e buscam
incessantemente a Deus, mas também produzem para seu
próprio sustento. Ao redor do monastério surge uma econo-
mia solidária e o desenvolvimento de técnicas de produção.
Estudiosos dos clássicos e das Escrituras, montam bibliotecas
e escolas. Separam o espaço do sagrado, privilegiando a be-
leza e a arte. Assim, acolhem arquitetos, pintores, escultores
e artesãos que ornamentam suas capelas.
Nós, reformados, negligenciamos tão rica tradição, que
enfatiza o coração, o silêncio, a Lectio Divina (método de
oração a partir do texto das Sagradas Escrituras, sem exclu-
são de outros textos religiosos), a contemplação, a teologia
espiritual (apofática). Fomos muito mais influenciados pela
Escolástica, isto é, a mente, a argumentação, a explicação, o
racional, a teologia sistemática (catafática).
Nenhum outro movimento da História da Igreja gerou
tantos nomes ilustres e santos como a Monástica. Para citar
alguns: Antão (Antônio), João Crisóstomo, Jerônimo, Ben-
to de Núrcia, Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Catarina
de Siena, João da Cruz. No tesouro da herança monástica,
Tereza de Ávila é uma das jóias mais preciosas.
Este livro promove, então, uma feliz e oportuna parceria.
Ela, santa medieval e católica, ele, homem de Deus contem-

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INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA 23

porâneo e reformado. Uma ponte entre a mística monástica


católica e a espiritualidade reformada, entre a idade média e o
século XXI, indicando que, num mundo fragmentado e dividi-
do, pontes podem ser construídas unindo o que existe de bom
nas diferentes confissões, tradições e gerações.
Vida de Oração é uma publicação mais do que oportuna
num momento em que a Igreja já não consegue responder a
uma sociedade marcada pela ganância, corrupção e violência,
mas que anseia por paz e fraternidade.
Já não sabemos mais orar como convém, ao contrário, a
oração tem se tornado um meio de obter benefícios materiais,
alimentando a ambição e o egoísmo e, ao mesmo tempo, dis-
torcendo quem Deus é. Esta obra pode nos ajudar a reencon-
trar o verdadeiro sentido da oração, que nos introduz a uma
amizade desinteressada com Deus. A verdadeira vida de ora-
ção gera intimidade com Deus, autoconhecimento e amizade
significativa.
Olhamos cada um para nosso próprio interesse e negli-
genciamos o Criador da família humana. Somos complacentes
com nossos pecados, mas contundentes com o erro dos outros,
e assim esquecemos que temos um Salvador que perdoou nossos
pecados.
Não é de estranhar que a Igreja tenha também sido afe-
tada pelo senso comum atual e tenha se tornado, em grande
parte, uma instituição religiosa cuja boca fala do Criador e do
Salvador, mas cujo coração está distante e equivocado.
Este é um livro que nos ajudará a reencontrar o Criador
e Salvador, desfrutar do misterioso amor da Trindade e viver
todos os dias de nossas vidas na Sua presença, para, então, ser-
vi-lo no mundo com humildade, doçura, santidade, coragem
e alegria. E caminhar lado a lado com homens e mulheres que
desejam aprender a amar a Deus, a melhor se conhecer e servir
ao próximo.

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24 VIDA DE ORAÇÃO

Cabe, no entanto, uma advertência: todo aprendizado


adulto requer uma desconstrução, isto é, uma transformação
(metanóia). No processo de aprender, a primeira lição é de-
saprender. É preciso estar aberto para novos caminhos. A ri-
gidez da tradição e a segurança do caminho conhecido impe-
dem-nos de nos deixar conduzir pelo Espírito Santo a novas
descobertas e experiências de comunhão com Deus através
da oração. Para chegar à terra prometida, há um caminho
no deserto. Muitas vezes estamos inquietos e inconformados
com a mediocridade de nossa vida, mas permanecemos pa-
ralisados no deserto, com saudades do Egito e com medo dos
gigantes da Terra Prometida.
Para experimentar uma metanóia na nossa vida de oração,
precisamos desconstruir alguns dos nossos pressupostos equivo-
cados. O principal deles é que através da oração acessamos um
poder capaz de mudar as circunstâncias, adequando-as ao nosso
conforto. Ao contrário, a vida de oração nos leva a participar da
eterna comunhão da Trindade, nos conduz à amizade e comu-
nhão com Deus, nos ajuda a superar nossa ferida narcísica que
vê Deus em nós mesmos. A verdadeira vida de oração muda a
nós mesmos e não as nossas circunstâncias. Na oração, nos en-
tregamos e nos submetemos a Deus como Senhor e nos deixamos
levar por Ele, para onde queira, até mesmo onde não queiramos
ir. Perdemos o controle de nossa vida e nos abandonamos com-
pletamente à direção do Espírito Santo, para todas as surpresas,
todos os imprevistos, que a todo o momento e em qualquer lugar
Ele queira manifestar.
A vida de oração é ao mesmo tempo um dom de Deus e
uma disciplina a ser desenvolvida. Ao mesmo tempo em que
descansamos na graça, somos operosos nas boas obras. Assim,
extasiados pelo amor de Deus e imersos na Sua graça, empre-
endemos uma jornada de exercício e disciplina espiritual diária
de leitura bíblica e oração.

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INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA 25

Este livro nos ajuda a desconstruir a relação utilitária


com Deus, para um aprendizado de amá-lo desinteressadamen-
te, simplesmente buscando Sua amizade e companhia. Teresa
de Ávila nos conduz a essa viagem ao coração de Deus e ao
coração de nós mesmos, para percebermos que oração é ouvir
o coração de Deus e abrir nosso coração a Ele.
Não se trata de uma obra para leitura rápida e super-
ficial. Ao contrário, recomendo saborear cada palavra, cada
frase, cada capítulo, ou seja, fazer dele, durante algum tempo,
um livro de cabeceira. Quanto tempo? Até experimentarmos
uma celebração íntima, uma alegria indizível e inexplicável,
no profundo da alma, no regozijo de estarmos diante da face
amorosa de Deus, que nos perdoa e nos recebe em Sua pre-
sença. Sim, somos de fato pecadores redimidos pelo sangue
de Cristo. Sim, de fato, estávamos longe e Deus nos fez filhos
amados, não porque merecíamos, mas porque Ele nos amou e
nos salvou.
Então experimentaremos como Tereza de Ávila, no quo-
tidiano da nossa vida de oração, essa santa, doce e bendita
presença acolhedora que deseja falar ao nosso coração, ouvir
nossos segredos e participar de nossa vida.

Osmar Ludovico da Silva


Mentor Espiritual
Cabedelo, Paraíba, março de 2007

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Capítulo I

Os primeiros anos de Teresa, de


fracasso, e os últimos, de
dificuldades na oração

I. Introdução

Não sem razão, irei me deter por muito tempo sobre


aquele que tem sido o período mais difícil de minha
vida. Não me apoiei sobre meu forte pilar de oração, de modo
que vinte anos de minha vida passei navegando em um mar bra-
vio, constantemente arremessada pela tempestade, sem nunca
chegar ao porto. Foi a vida mais dolorosa que se possa imaginar,
porque eu não tinha nenhuma doçura em Deus, e certamente
nenhuma doçura no pecado.
Eu quase sempre ficava com raiva de mim mesma por con-
ta das muitas lágrimas que derramava por minhas faltas. Não
podia evitar a constatação de que eram inexpressivas as melho-
ras que minhas lágrimas produziam em meu caráter. Elas não me
impediram de pecar, até que passei a encará-las como a pequena
ausência de uma ilusão; elas, no entanto, não o eram.
Foi bondade do Senhor conceder-me tamanho remorso
de consciência, embora sem que estivesse acompanhado de uma
completa reforma interior. Tenho descoberto que a raiz de todo
o meu mal reside em não evitar por completo todas as oportuni-

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28 VIDA DE ORAÇÃO

dades para pecar. Devo ainda acrescentar que meus líderes espi-
rituais me auxiliaram muito pouco naquele tempo. Se tivessem
apenas me dito que aquela estrada em que eu viajava era muito
perigosa e que eu precisava desprezar todas as oportunidades
que davam lugar ao pecado, eu acredito, sem qualquer dúvida,
que o problema teria sido remediado mais rapidamente.
Contudo, posso identificar claramente a misericórdia de
Deus para comigo. Durante todo aquele tempo, eu ainda tinha
a coragem de orar. Digo coragem, porque não conheço nada
no mundo inteiro que demande maior coragem do que tramar
traição contra o Rei, ciente de que Ele sabe, e, ainda assim,
continuar a freqüentar Sua presença em oração.
Passei mais de dezoito anos naquela condição miserável,
tentando reconciliar Deus com a minha vida de pecado.
Conto e repito isso com freqüência com o intuito de que
todos os que lêem meus escritos possam compreender quão
grande é essa graça de Deus que atua no filho inconstante. Ele
concede à alma errante o desejo de orar, mesmo quando ela
ainda não abandonou o pecado por completo.
Se a alma perseverar, a despeito do pecado, da tentação e
das muitas negligências, nosso Senhor por fim a conduzirá ao por-
to da salvação para o qual Ele, por certo, está me conduzindo.
Digo isso por experiência própria: que aquele que come-
çou a orar jamais pare, mesmo que sua vida piore constante-
mente. A oração é a única maneira de corrigir uma vida, e sem
a oração ela jamais será corrigida. Que essa pessoa não se deixe
ser tentada pelo Diabo como eu fui, a fim de desistir da oração
por se achar indigna. Que ela possa crer que, se tão-somente se
arrepender e orar, nosso Senhor ainda a ouvirá e responderá.
Eu era, por muitas vezes, tomada pelo desejo de que o
tempo separado para a oração terminasse logo. Costumava, na
verdade, ficar com os olhos fitos na ampulheta. E a tristeza que
às vezes sentia ao entrar em minha capela de oração era tão
grande que era preciso reunir toda a minha coragem para pra-

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
29
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

ticamente forçar-me a entrar. Por fim, nosso Senhor vinha em


meu auxílio. E quando eu persistia nesse caminho, encontrava
uma paz e uma alegria muito maiores do que quando orava com
entusiasmo e êxtase emocional.
Se nosso Senhor me agüentou tanto tempo em toda a
minha perversidade, por que alguém se desesperaria, por mais
perverso que pudesse ser? Por mais que tenha sido perverso até
aqui, esse alguém não permanecerá em sua perversidade por
muitos anos, como eu permaneci, depois de receber tantas gra-
ças de nosso Senhor. E eis que digo mais: a oração foi a verda-
deira porta por meio da qual nosso Senhor demonstrou toda a
Sua graça tão generosamente para comigo.
Oração e confiança. Eu costumava verdadeiramente orar
por auxílio. Mas agora vejo que cometi o erro fatal de não co-
locar toda a minha confiança em Sua Majestade. Eu deveria ter
desconfiado e suspeitado de mim mesma por completo. Busca-
va ajuda. Por vezes sofria grandes dores para obtê-la. Mas não
entendi o pouco uso de tudo aquilo até que extirpasse toda a
confiança em mim mesma e a colocasse de uma vez por todas e
absolutamente em Deus. Aqueles foram dezoito anos miseráveis
(Vida, VIII).

II. Uma família piedosa

Tive um pai e uma mãe dedicados e tementes a Deus.


Nosso Senhor também me auxiliou com Sua graça. Tudo isso
teria sido suficiente para me tornar boa se eu não tivesse sido
tão perversa.
Meu pai era muito dado à leitura de bons livros; ele os tinha
em espanhol para que as crianças pudessem lê-los. Esses livros,
juntamente com a criação cuidadosa de minha mãe, que incluía
a obrigatoriedade de que fizéssemos as nossas orações e tivéssemos
uma atitude sincera para com Deus, começou a me fazer pensar
seriamente quando eu tinha seis ou sete anos de idade.

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30 VIDA DE ORAÇÃO

Algo que também me ajudou foi que eu nunca vi meu pai


e minha mãe respeitarem alguma coisa que não fosse a bondade.
Eles mesmos eram muito bons.
Meu pai era um homem que exercia a caridade para com
os pobres, a compaixão pelos doentes e a consideração pelos ser-
viçais. Ele nunca foi persuadido a ter escravos, pois tinha muita
pena deles. Uma escrava que pertencia a um dos irmãos de meu
pai certa vez foi à sua casa; meu pai a tratou com a mesma ternu-
ra com que tratava seus próprios filhos. Ele costumava dizer que
não conseguia resistir à dor de ver que ela não era livre.
Meu pai foi um homem de grande sinceridade. Ninguém
jamais o ouviu agredir com palavras ou falar mal de ninguém.
Sua vida foi muito pura.
Minha mãe também era uma mulher de grande bondade,
mas que passou sua vida lutando contra as enfermidades. Ela era
de uma pureza singular em todos os seus caminhos. Embora pos-
suísse grande beleza, ninguém jamais soube que ela tenha dado
qualquer importância a isso. Tinha apenas trinta e três anos de
idade quando morreu, e, no entanto, sua aparência era a de uma
mulher já idosa. Ela era muito calma e tinha uma grande digni-
dade. Os sofrimentos pelos quais passou durante sua vida foram
cruéis, mas sua morte foi uma morte cristã.
Tive duas irmãs e nove irmãos. Todos, pela misericórdia
de Deus, eram bondosos como meus pais, exceto eu mesma,
embora fosse a mais querida de meu pai. Quero crer que nosso
Senhor teve alguma razão para isso, porque fico muito triste
sempre que penso nos bons desejos com os quais Ele me inspi-
rou e do uso desprezível que fiz deles (Vida, I).

III. Ideais românticos de adolescência

Um de meus irmãos era quatro anos mais velho que eu.


Era ele quem eu mais amava. Ele gostava muito do resto da fa-
mília, e, graças ao amor de Deus, eles gostavam muito de mim.

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
31
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Meu irmão preferido e eu costumávamos ler sobre a vida


dos santos juntos. Quando eu lia sobre o martírio experimen-
tado pelos santos por amor a Deus, ficava impressionada com
o fato de que, para muitas pessoas, a visão de Deus fosse algo
banal. Senti, então, um grande desejo de morrer a morte de um
mártir. Não que isso fosse fruto de qualquer consciência de mi-
nha parte acerca do amor de Deus. Desejei, no entanto, poder
rapidamente desfrutar de todas aquelas grandes alegrias sobre as
quais havia lido, e que estavam reservadas aos santos sofredores
no céu. Meu irmão e eu passamos então a discutir como podería-
mos nos tornar mártires.
Decidimos ir, juntos, ao país dos mouros, implorando a
Deus que pudéssemos ser decapitados ali. Nosso Senhor, eu
creio, nos havia dado coragem ainda muito jovens. Se tivésse-
mos encontrado os meios, teríamos ido. Mas nossa maior difi-
culdade pareceu vir de nosso pai e de nossa mãe.
Ficamos muito impressionados ao encontrar nos textos
que estávamos lendo que o prazer e a dor eram eternos. Conver-
sávamos muito sobre isso. E tínhamos enorme prazer em repetir
freqüentemente, “para sempre e sempre e sempre.” Através da
pronúncia constante dessas palavras, o Senhor se alegrava por
eu ter uma impressão duradoura do caminho da verdade ainda
tão criança.
Tão logo percebi que seria impossível ir a qualquer lugar
onde as pessoas me matassem por causa de Deus, meu irmão e
eu decidimos nos tornar eremitas. No orquidário pertencente
à casa, tentamos construir eremitérios empilhando pequenas
pedras umas sobre as outras. Elas, obviamente, caíam de ime-
diato.
Por fim, não encontramos maneira alguma de realizar nosso
desejo. Mesmo agora, tenho um sentimento de devoção, sem-
pre que considero o quanto Deus me deu em minha infância e
que mais tarde perdi por minha própria culpa. Dava o máximo
de esmolas que podia, o que, para mim, era pouco.

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32 VIDA DE ORAÇÃO

Eu costumava tentar ficar só para recitar minhas orações.


Elas eram muitas, especialmente o rosário. Minha mãe tinha
grande devoção por ele e fez com que o apreciássemos tanto
quanto ela o apreciava. Eu costumava, juntamente com outras
crianças, ter grande prazer em construir monastérios e fingir que
éramos freiras. Pensei que desejava ser uma freira, não tão in-
tensamente, no entanto, como quando desejava ser uma mártir
ou mesmo uma eremita (Vida, I).
Penso muito agora no quanto os pais agem errado ao não
serem cuidadosos com aquilo que seus filhos observam ser bom.
Pois embora minha mãe fosse aquilo que eu disse que era – mui-
to boa – contudo, quando alcancei a idade da razão, não herdei
sua bondade como deveria ter herdado. Na verdade, não herdei
quase nada dela.
Ao contrário, o mal que com ela aprendi me causou gran-
de dano. Ela gostava muito de ler livros sobre cavalaria. Esse
passatempo lhe era inofensivo porque ela nunca perdia seu
tempo com esse tipo de literatura. Mas isso me causou grande
prejuízo. Como filhos dela, éramos livres para ler todos esses
livros. Talvez ela fizesse isso para distrair seus pensamentos a fim
de esquecer suas muitas dores e entreter seus filhos para que não
se desviassem para outros caminhos. Mas isso irritava meu pai
profundamente; tínhamos de tomar cuidado para que ele nunca
nos visse lendo.
Desenvolvi então o hábito de ler esses livros vorazmen-
te. Olhando para trás, essa pequena falta que observei em mi-
nha mãe foi o princípio da indiferença para com meus pró-
prios desejos bons e o ensejo para a minha queda com relação
a outras coisas. Eu pensei que não havia mal algum em perder
horas noite e dia em uma ocupação assim tão sem sentido,
mesmo quando a fazia escondida de meu pai. Fiquei tão com-
pletamente dominada por essa paixão que pensei que jamais
poderia ser feliz se não tivesse sempre um novo livro ao meu
lado.

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
33
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Também comecei a dar muita atenção às minhas roupas.


Eu queria agradar os outros com a minha aparência. Gastava
tempo e esforço com minhas mãos e meu cabelo, usava perfu-
mes, e, de fato, exercitava todas as vaidades que estivessem ao
meu alcance. Elas eram muitas, pois eu dedicava muito tempo
a elas. Eu não tinha intenções malignas porque nunca sonhei
que alguém como eu pudesse ofender a Deus. Mas essa atenção
exagerada para com a limpeza durou alguns anos. Na verda-
de, duraram também outras práticas que, pensei, não fossem de
modo algum maléficas. Mas agora vejo o quão errado tudo isso
deve ter sido (Vida, II).

IV. Companhias: más e boas

Eu tinha uma irmã que era muito mais velha do que eu.
Sua modéstia e bondade eram grandes, mas nada aprendi com
elas. Infelizmente, aprendi todo o mal de nossa prima, que es-
tava sempre em casa. Ela era tão superficial e frívola que minha
mãe fazia grande esforço para mantê-la fora de nosso lar. Minha
mãe previu a má influência que minha prima poderia exercer
sobre mim.
Mas minha mãe não foi bem sucedida em impedir que mi-
nha prima nos visitasse; havia muitas razões para as suas visitas.
Eu gostava muito de sua companhia; nós conversávamos e fofo-
cávamos juntas. Ela me ajudava em todos os divertimentos que
eu gostava de ter; e, mais importante, encontrava alguns deles
para mim e me comunicava suas próprias vaidades. Eu não a co-
nhecia, quero dizer, ela não havia sido simpática ou conversado
comigo até aproximadamente meus catorze anos.
Àquela altura eu não havia desejado afastar-me de Deus
de maneira deliberada e pecaminosa ou deixar de temê-lo. Por
essa razão, nunca perdi minha reputação (no que diz respeito à
virgindade). Quanto a isso, não havia nada no mundo pelo qual
eu a trocasse, e ninguém no mundo que eu gostasse o bastante a

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34 VIDA DE ORAÇÃO

ponto de me persuadir a tolerar esse pecado. Assim, eu poderia


ter tido força para nunca fazer qualquer coisa contra a honra de
Deus se tivesse considerado Sua honra como sendo equivalente
à minha.
Nunca observei, no entanto, que estivesse de algum modo
falhando. Na busca vã por minha honra, eu era extremamente
cuidadosa. Mas no uso dos meios necessários para preservá-la
era absolutamente descuidada. Tinha a ansiedade de tão-so-
mente não me perder por completo.
Essa amizade com minha prima afligia por demais meu pai
e minha irmã. Eles freqüentemente me responsabilizavam pela
aflição que sentiam. Mas como não podiam impedir que essa
pessoa viesse a nossa casa, todos os seus esforços foram inúteis. E
eu era muito hábil em fazer qualquer coisa que estivesse errada.
Às vezes fico impressionada com o mal que uma má com-
panhia pode trazer à vida de uma pessoa. A conversa de minha
prima me mudou tanto que nenhum traço sequer da disposição
natural de minha alma à virtude restou. Eu me tornei um refle-
xo dela ou de qualquer outra que fosse dada aos mesmos tipos
de divertimento.
Sei do grande benefício que há em se ter boas compa-
nhias. Estou certa de que, se naquele tempo eu tivesse sido co-
locada entre boas pessoas, teria perseverado na virtude. Pois se
naquele tempo eu tivesse encontrado alguém para me ensinar
a temer ao Senhor, minha alma teria se fortalecido o suficiente
para não cair.
Posteriormente, o temor do Senhor havia se apartado de
mim e somente o temor da desonra havia restado. Isso foi um
tormento para mim em tudo o que fazia. Quando pensava que
ninguém jamais saberia, eu me aventurava em muitas coisas que
não eram nem honrosas, nem agradavam a Deus.
No começo, essas conversas não causavam mal algum.
O erro não era delas, mas meu. Pois, mais tarde, minha pró-
pria perversidade foi suficiente para me fazer desviar do cami-

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
35
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

nho, juntamente com meus serviçais, que encontrei prontos o


bastante para todo tipo de mal. Se qualquer um deles tivesse
me dado bons conselhos, eu talvez tivesse tirado bom proveito
deles. Mas eles estavam cegados pelo interesse próprio, assim
como eu, pela paixão.
Ainda assim, nunca fui inclinada à pratica do mal, pois
naturalmente odiava qualquer coisa desonrosa. Simplesmente
gostava da diversão de uma conversa agradável. A ocasião para
o pecado, no entanto, era um perigo à mão, e eu expus isso a
meu pai e aos meus irmãos. Deus me libertou de tudo isso para
que não me perdesse em um comportamento que era visivel-
mente contra a minha própria vontade. Por outro lado, ele não
era tão secreto a ponto de permitir que eu dele escapasse sem a
perda de minha reputação ou evitasse as suspeitas de meu pai.
Eu não havia, penso, gasto mais de três meses na prática
dessas vaidades quando eles me levaram para um monastério na
cidade (Monastério Agostiniano de Nossa Senhora da Graça)
onde eu morava.
Nos primeiros oito dias sofri intensamente. Mas sofri mais
com a suspeita de que a minha vaidade chegasse ao conheci-
mento das freiras do que por medo do monastério. Eu já estava
exausta de mim mesma, e, embora ofendesse a Deus, nunca ces-
sei de ter muito medo dele. Decidi me confessar o mais rápido
possível, pois me sentia muito desconfortável.
No entanto, depois de oito dias, ou talvez antes, eu estava
muito mais contente do que havia estado em minha própria
casa. Todas as irmãs estavam felizes comigo, pois nosso Senhor
me havia concedido o espírito gracioso de agradar a todos, onde
quer que estivesse. Assim, promovi um autêntico rebuliço no
monastério. Embora naquele tempo odiasse ser freira, eu pare-
cia feliz aos olhos das irmãs, que eram muito boas, muito pru-
dentes, observadoras da Regra e serenas.
Tive uma conversa com uma delas, possivelmente confi-
denciando-lhe meu desejo de casar (Vida, II).

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36 VIDA DE ORAÇÃO

Comecei aos poucos a gostar das conversas santas e boas


dessa freira. Como costumava falar bem de Deus! Ela era uma
pessoa de grande discrição e santidade. Eu costumava ouvi-la
com prazer. Nunca houve uma ocasião em que não tive alegria
em ouvi-la.
Ela começou me dizendo como se tornara uma freira atra-
vés da mera leitura das palavras do Evangelho: “muitos são cha-
mados, porém poucos são os escolhidos” (Mateus 20.16). Ela
falava da recompensa que nosso Senhor dá àqueles que abando-
nam todas as coisas por Ele.
Essa boa companhia começou a extirpar os hábitos que a
má companhia havia formado e levou novamente meu pensa-
mento a desejar as coisas eternas. Ela também até certo ponto
eliminou o grande desprazer que eu havia tido de ser uma freira.
O sentimento havia sido muito forte. Se visse alguém aos pran-
tos em oração, ou a expressar devoção de alguma outra maneira,
eu invejava aquela pessoa por demais, pois meu coração estava
tão duro que eu não conseguia derramar sequer uma lágrima ao
ler um Salmo. Isso era motivo de grande tristeza para mim.
Permaneci no monastério por um ano e meio, e fui fican-
do muito melhor com a experiência. Comecei a recitar muitas
orações e pedir às irmãs que orassem por mim para que, se Deus
me colocasse naquela posição, eu estivesse disposta a servi-lO.
Mas, com tudo isso, eu, em meu íntimo, não desejava ser uma
freira. Enganava a mim mesma dizendo que Deus não queria
que eu fosse uma, embora ao mesmo tempo temesse muito o
casamento.
Ao final de minha estada ali, passei a ter uma inclina-
ção maior por me tornar uma freira. Não escolhi aquela casa
por conta de certas práticas devocionais que entendia serem
preponderantes ali e que, eu pensava, eram um pouco radicais.
Algumas irmãs mais jovens me encorajaram em meu desejo se-
creto de ser uma freira. Se todas fossem unânimes, eu provavel-
mente teria me beneficiado disso.

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
37
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Então eu tive também uma grande amiga em outro mo-


nastério. Isso me fez decidir que, se eu fosse me tornar uma frei-
ra, seria na casa onde ela estava. Em todas essas coisas, olhei
mais para o prazer e para a vaidade dos sentidos naturais que
para o bem de minha alma. Mesmo a boa intenção de ser uma
freira somente me ocorria de tempos em tempos, mas logo me
deixava e eu não conseguia persuadir a mim mesma a me tornar
uma.
Àquela altura, eu não estava descuidada acerca de meu
próprio bem. Nosso Senhor, no entanto, estava ainda mais in-
teressado em meu destino e tratou de me dispor para aquele
estado de vida que era verdadeiramente o melhor para mim. Ele
me enviou uma doença muito séria que me obrigou a retornar
à casa de meu pai.
Quando fiquei curada, fui levada para ver minha irmã em
sua casa em um vilarejo no interior, onde ela morava. Seu amor
por mim era tão grande que, se dependesse de sua vontade, eu
nunca a teria deixado. Seu marido também tinha grande afei-
ção por mim; ao menos demonstrava muita bondade para comi-
go. Isso eu também devo a nosso Senhor, pois tenho recebido
bondade de toda parte. E toda a minha adoração, em resposta a
isso, é que sou o que sou.
Um irmão de meu pai vivia a quatro léguas de Ávila; ele
era um homem prudente, de grande caráter e viúvo. Nosso Se-
nhor também o estava preparando para Si. Já em idade avança-
da, ele abriu mão de todas as suas posses e se tornou um monge.
Voltando para casa depois de ter estado com Maria, visitei esse
tio. Ele insistiu que ficasse com ele por alguns dias. Seu hábito
era ler livros em espanhol. Suas conversas cotidianas eram sem-
pre sobre Deus e sobre a vaidade do mundo. Ele fez com que eu
lesse esses livros para ele.
Embora não gostasse muito de fazer isso, eu dava a en-
tender que gostava. Ao proporcionar prazer aos outros, sempre
ficava ansiosa por agradá-los. Embora essa prática fosse dolorosa

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38 VIDA DE ORAÇÃO

para mim, eu estava mais preocupada com aquilo que os outros


poderiam pensar de mim. Isso sempre foi um grande erro de mi-
nha parte, porque era quase sempre extremamente insincera.
Ó meu Deus, de quantas maneiras Sua Majestade me pre-
parou para a Sua vontade e a condição na qual eu O serviria!
No entanto, como foi preciso que Ele me constrangesse, contra
minha própria vontade! Seja bendito para sempre! Amém.
Fiquei com meu tio por alguns dias. Através das impres-
sões produzidas em meu coração pelas palavras de Deus ouvidas
e lidas, e também pelas boas conversas com meu tio Pedro, com-
preendi a verdade que havia ouvido em minha infância. Aprendi
que todas as coisas são nada, e que o mundo é vaidade que passa e
se dissipa rapidamente. Também comecei a temer que, se viesse a
morrer, iria direto para o inferno. Embora ainda não cogitasse da
possibilidade de ser uma freira, percebi que a condição religiosa
seria talvez a melhor e mais segura. Assim, pouco a pouco, decidi
forçar-me a assumir essa vocação (Vida, III).

V. Diretores espirituais: sábios e imprudentes

Sempre admirei homens instruídos, embora confessores


de conhecimento limitado tivessem feito grande mal à minha
alma. Nem sempre encontrei confidentes cujo aprendizado fos-
se tão bom quanto eu desejasse. Sei, por experiência própria,
que é melhor se os diretores espirituais são homens bons e de
vidas santas e se não têm instrução nenhuma, do que somente
um pouco. Pois homens assim nunca confiam em si mesmos sem
consultar os que são instruídos, nem eu confiaria neles.
Um diretor verdadeiramente sábio nunca deixei de perce-
ber. Nem os outros, néscios, me enganaram deliberadamente; eles
careciam de mais conhecimento. Pensei que fossem instruídos,
e que eu não estivesse sob a obrigação de acreditar neles. Mas
as instruções que me deram eram frouxas e me deixaram mais
livre. Naquela fase de minha vida, eu era tão perversa que se

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eles tivessem sido rígidos comigo eu teria procurado por outros.


Aquilo que de fato era pecaminoso, eles me asseguravam que
não era pecado de modo algum. Ou algo que fosse muito sério
eles diziam que era de pouca importância.
Isso me causou um mal tão grande que não é de admirar
que eu hoje fale sobre isso como uma advertência a outros. Que
eles possam evitar esse perigo. Pois digo com toda a clareza que,
aos olhos de Deus, eu não tinha qualquer desculpa. As coisas
que fiz eram em si mesmas ruins; isso deveria ser suficiente para
me manter longe delas. Creio que Deus, por causa dos meus
pecados, permitiu que esses conselheiros enganassem a si mes-
mos e a mim. Eu mesma enganei a muitos outros, dizendo-lhes
aquilo que me havia sido comunicado.
Continuei nessa cegueira por mais de dezessete anos, até
que um padre dominicano muito instruído me expôs à realida-
de. Houve então aqueles membros da Companhia de Jesus que
também me deixaram com medo ao insistir com veemência no
erro desses princípios. Falarei sobre isso mais tarde.
Comecei indo me confessar a um clérigo com quem eu já
havia falado em outro lugar. Ele se afeiçoou muito a mim, por-
que eu tinha, na ocasião, pouco que confessar em comparação
com o que vim a ter tempos depois. Além disso, eu tinha pouco
a dizer a ele. Não havia nenhum mal em gostar de mim do modo
como ele gostava, mas isso deixou de ser bom, porque se tornou
excessivo. Ele entendeu claramente que eu estava determinada
a não fazer nada que pudesse ofender a Deus. Deu-me uma ga-
rantia semelhante sobre si e sobre suas intenções, de modo que
nossos encontros eram muito freqüentes. Mas, naquela altura,
por causa do entendimento e do temor do Senhor que enche-
ram minha alma, o que mais me dava prazer em todas as minhas
conversas com outros era falar do Senhor. Como eu era muito
jovem, isso o deixou envergonhado.
Como conseqüência da boa vontade que tinha para comi-
go, ele começou a me contar sobre sua condição desprezível. Era

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tudo muito triste, pois ele havia estado quase sete anos em uma
situação de grande perigo no terreno moral, devido à sua paixão
e ao seu contato com uma mulher do lugar. Ele, no entanto,
continuava exercendo suas funções de sacerdote.
O problema se tornou público de modo que sua honra e
seu bom nome foram perdidos, e ninguém se arriscava a falar
com ele sobre isso. Lamentei muito, porque gostava muito dele.
Eu era àquela época muito tola e cega por pensar que ser grata e
leal a quem gostasse de mim era uma virtude. Maldita seja essa
lealdade que chega a tal extremo de se opor à Lei de Deus. Tra-
ta-se de uma loucura comum no mundo e que agora me deixa
furiosa por percebê-la.
Comecei a ter mais informações sobre o caso através de
membros de sua própria família. Fiquei sabendo mais sobre essa
condição desastrosa, e vi que a falha do pobre homem não foi
tão séria, porque a mulher miserável havia tentado seduzi-lo.
Quando soube disso, comecei a demonstrar mais afeição
por ele. Minhas intenções eram boas, mas o ato foi errado. Pois
eu não deveria cometer um erro, por menor que fosse, em nome
de qualquer bem, por maior que esse bem pudesse parecer para
mim. Falei com ele muitas vezes sobre Deus. Isso lhe deve ter
feito algum bem, embora eu creia que aquilo que mais o tocou
tenha sido sua grande afeição por mim.
Em suma, ele rompeu todas as relações com aquela mu-
lher por completo e jamais se cansou de dar graças a Deus pela
luz que Ele lhe havia concedido. Ao final do ano em que o en-
contrei pela primeira vez, ele morreu.
Como disse antes, eu não havia feito nada de errado. Pen-
so que a sua percepção acerca de minha determinação o aju-
dou a ter afeição por mim. Pois creio que todos os homens têm
maior afeição por mulheres nas quais eles vêem disposição para
ser virtuosas (Vida, V).
Até aquela altura, minha vida era minha. Mas, uma vez
que comecei a explicar esses métodos de oração, minha vida

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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

tem sido tal que Deus passou a habitar em mim, ou, ao menos,
foi o que me pareceu.
Quando comecei a evitar o pecado e me dedicar mais à
oração, nosso Senhor começou a derramar Suas graças sobre
mim, na condição de alguém que desejava recebê-las. Sua Ma-
jestade começou a me dar muito freqüentemente a graça da
Oração de Quietude, e muitas vezes também a da União, que
permaneceu por algum tempo. Mas como, naqueles dias, as mu-
lheres haviam caído nas ilusões e enganos cada vez maiores de
Satanás (por exemplo, Madalena da Cruz), comecei a ficar com
medo; temia, porque a alegria e a doçura que eu sentia eram tão
grandes e quase sempre iam além do meu poder de evitá-las. Por
outro lado, senti uma profunda convicção de que Deus estava
comigo, especialmente quando orava. Notei, também, que eu
melhorava e me fortalecia a cada dia.
Mas, após algumas distrações, comecei a temer e a ima-
ginar que talvez fosse Satanás quem estivesse interrompendo
minha compreensão acerca de minha experiência de oração. Eu
cria que ele estava me fazendo pensar que minha experiência
era boa demais a ponto de me privar da oração mental. Eu cria
que Satanás estava também comprometendo minha meditação
sobre a Paixão e me impedindo de usar meu próprio entendi-
mento.
Como eu não entendia o que estava se passando, me senti
totalmente perdida. Uma vez que a última coisa que eu desejava
era ofendê-lO e expressar o quanto eu Lhe devia, esse medo me
deixou obcecada. Ele fez com que eu diligentemente buscasse
pessoas espirituais com quem pudesse discutir meu estado de
espírito. Eu já havia ouvido de falar algumas delas.
Os Padres da Sociedade de Jesus haviam visitado a loca-
lidade, e embora eu não conhecesse nenhum, fui grandemente
atraída por eles. Eu havia ouvido acerca de seu estilo de vida e
de sua prática de oração. Mas não me senti digna de conver-
sar com eles ou forte o suficiente para obedecer-lhes. Isso me

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deixou ainda mais temerosa. Seria algo muito difícil para mim
conversar com eles e ainda continuar a ser aquilo que eu era.
Passei mais um tempo nessa condição e, depois de muita
angústia interior e muitas lágrimas, decidi que deveria me con-
fessar a uma pessoa espiritual. Precisava perguntar-lhe qual era
a natureza do tipo de oração que eu estava experimentando, e
pedir que me mostrasse se havia algo de errado nisso. Estava
determinada a não ofender a Deus. Por falta de coragem, no en-
tanto, eu era muito tímida. Que erro terrível de se cometer, em-
bora querendo fazer o bem, eu me afastar dele! Deus me ajude!
Uma vez que não conseguia superar esse dilema, creio que
o Diabo deve ter colocado muita ênfase sobre isso no começo
do caminho da devoção. Ele sabe que o alívio completo da alma
depende da troca de idéias com os amigos de Deus. Eu não tinha
força para fazer isso. Estava esperando endireitar meus cami-
nhos primeiro, e quando abandonei a oração – o que eu jamais
deveria ter feito – comecei a cair no pecado dos pequenos hábi-
tos que me cegavam até mesmo acerca do mal. Eu necessitava
muito da ajuda de outros, e eles poderiam ter me dado a mão
para me erguer. Bendito seja o Senhor! A primeira mão que se
estendeu a mim foi a Tua.
Falaram-me de um clérigo instruído, que morava em Ávi-
la, e cuja bondade e vida piedosa nosso Senhor estava come-
çando a revelar ao mundo. Planejei encontrá-lo por meio de
um nobre consagrado [Francisco de Salcedo se tornou um dos
amigos mais próximos de Teresa. Ele era primo da esposa de um
tio dela.]
Esse nobre era casado, mas sua vida era tão exemplar e
virtuosa, tão repleta de oração e de atos de caridade, que a bon-
dade e a perfeição de sua vida brilhavam em tudo que fazia. Sua
reputação era sólida por causa do grande bem e da bênção que
ele vinha sendo para muitos. Embora se considerasse deficien-
te por ser um leigo, sua vida, no entanto, esteve sempre visi-
velmente relacionada à benemerência. Era muito sábio, sensí-

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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

vel com todos, e suas conversas eram estimulantes, atrativas e


santificadas, além de cativar a todos com quem se relacionava.
Tudo que fazia visava ao bem daqueles com quem conversava.
Não parecia ter nenhum outro interesse que não o de fazer o
bem e abençoar os que conhecia e com quem encontrava.
Bem, esse homem abençoado e santo, com todo o esforço
que fez a meu favor, foi verdadeiramente o começo de uma pro-
funda benção em minha alma. Sua humildade em nosso rela-
cionamento me impressiona, pois ele possuía entre trinta e sete
e quarenta anos de experiência em oração. Toda a sua vida era
orientada à devoção.
Sua esposa também era uma grande serva de Deus, cheia
de bondade, e ele de modo algum era contido por ela. Ela, na
verdade, era a esposa escolhida, a quem Deus sabia que O servi-
ria muito bem. Alguns de seus parentes são casados com alguns
dos meus. Eu também tive um bom contato com outro grande
servo de Deus que era casado com uma de minhas primas.
Desse modo, consegui que o clérigo, a quem mencionei há
pouco ser um servo de Deus, viesse falar comigo. Mas, quando
o nobre trouxe o clérigo para falar comigo, fiquei muito cons-
trangida de estar na presença de alguém tão santo. Eu então
abri a ele o meu coração acerca da condição de minha alma e
do modo como eu orava.
Ao mesmo tempo, não quis me confessar a ele. Disse-lhe
que estava muito ocupada, e isso, é claro, era verdade. Mas ele
demonstrou uma santa persistência em me orientar, sabendo
que eu era uma pessoa forte. Ele observara o tipo de vida de
oração que eu estava exercitando. Eu estava fazendo isso para
evitar ofender a Deus.
Quando notei que ele estava muito determinado a pôr um
ponto final nos hábitos triviais sobre os quais eu havia falado,
não tive coragem de desistir de uma vez. Como conseqüência,
senti-me péssima. Percebi que ele estava tentando me apressar
por demais no processo de mortificação das coisas às quais mi-

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44 VIDA DE ORAÇÃO

nha alma estava amarrada. Havia a necessidade de um cuidado


muito maior.
Em suma, percebi que o modo como estava lidando comigo
não ajudaria de fato a minha condição. Esses modos combinavam
mais com os que eram mais maduros espiritualmente. Embora
acostumada a receber favores de Deus, eu ainda estava em um
estágio muito inicial quanto à disciplina e à automortificação.
Se eu não tivesse tido mais ninguém a quem consultar
exceto esse clérigo, acredito que minha alma não teria feito ne-
nhum progresso, uma vez que o desânimo que sentia ao ver que
não fazia nada que ele me pedia que fizesse fez com que eu me
desmotivasse e desistisse de tudo. Às vezes me pergunto como
ele, sendo alguém que tinha um modo especial de orientar ini-
ciantes nas coisas de Deus, não conseguia entender minha situa-
ção ou assumir o cuidado de minha alma. Vejo hoje que tudo
isso serviu para o meu bem, para que eu pudesse conhecer e me
comunicar com outros, tão santificados quanto os membros da
Sociedade de Jesus.
Foi nessa ocasião que consegui fazer com que o santo e
nobre homem viesse me ver novamente. Isso mostra quão gran-
de foi a sua humildade, pois consentiu em se comunicar com
alguém que era tão má quanto eu era. Ele começou a me vi-
sitar, encorajar e dizer-me que não desistisse. Pouco a pouco
fui sendo convencida de que Deus faria a obra paulatinamente.
Por alguns anos ele mesmo não havia conseguido libertar-se de
algumas pequenas deficiências. Ó humildade! Quantas bênçãos
tu trazes sobre aqueles em quem habitas, e àqueles que se apro-
ximam dos que possuem a ti!
Esse santo homem – pois penso que devo justamente cha-
má-lo assim – falou-me de suas próprias fraquezas a fim de me
ajudar. Ele, em sua humildade, pensou que elas eram fraquezas.
Considerando sua condição existencial, não havia qualquer fal-
ta ou imperfeição comparada às fraquezas que eram tão lamen-
táveis em minha condição de vida.

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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Pode parecer que estou dando muitos detalhes sobre coi-


sas sem importância, mas digo isso com alguma razão, pois essas
coisas são muito importantes no início para encorajar uma alma
e mostrar-lhe como voar quando não possui asas, como diz o
ditado. Mas porque espero em Deus que Vossa Reverência possa
ajudar a muitas outras almas, estou mencionando isso aqui.
Esse cavalheiro foi minha salvação. Ele soube como me
curar, e teve a humildade e o amor para permanecer ao meu lado.
Ele também foi paciente ao notar que eu não estava mudando
tudo de uma só vez. Pouco a pouco, no entanto, ele continuou,
discretamente, me mostrando como vencer a Satanás. Minha
afeição por ele cresceu tanto que eu ficava inquieta, exceto no
dia marcado para encontrá-lo. Contudo, o via muito raramen-
te. Se ele se atrasasse, costumava ficar angustiada, pensando que
não viria me ver porque eu era muito má.
Quando começou a tomar contato com minhas grandes
imperfeições – elas poderiam muito bem ser chamadas de peca-
dos – e, uma vez que lhe contei acerca das bênçãos que Deus me
havia concedido, ele me disse que minhas imperfeições eram
muito incompatíveis com os favores a mim concedidos. De fato,
esses dons eram dados àqueles que já estavam espiritualmente
avançados e mortificados. Assim sendo, ele não poderia deixar
de estar temeroso, porque a ele parecia que eu devia ter um
espírito mau, embora não tivesse chegado a uma conclusão de-
finitiva sobre o assunto. No entanto, pensou bem sobre minha
vida de oração e me falou a respeito dela.
Minha dificuldade era que eu não sabia o quanto dizer
acerca de minha experiência de oração. Só recentemente foi
que Deus me deu esse dom de compreender o que representa
e como devo falar sobre ela. As observações desse cavalheiro
sobre o assunto e o temor que senti me angustiaram profunda-
mente e eu chorei muito, pois, certamente, estava ansiosa por
agradar a Deus, e, no entanto, não conseguia me convencer de
que Satanás não tinha nada a ver com isso. E estava com medo,

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46 VIDA DE ORAÇÃO

por conta de minha própria consciência de pecado, que Deus


me conduzisse às cegas, de modo que eu nunca viesse a enten-
der a situação claramente.
Procurei em muitos livros a fim de conseguir aprender
como explicar a oração que eu estava experimentando. Li
um, chamado Subida ao Monte (de Bernardino de Laredo),
que trata da união da alma com Deus, e menciona os sinais
que eu havia experimentado, mas sobre os quais não havia
refletido.
Até então, minha experiência se resumira a não conseguir
refletir sobre o estado em que me encontrava durante a oração.
Assinalei a passagem e dei-lhe o livro, para que ele e outro clé-
rigo pudessem examiná-lo e me dizerem o que eu deveria fazer.
Decidi que desistiria por completo daquele método de oração se
eles achassem ser a coisa certa a fazer, pois por que deveria eu
me expor ao perigo moral, quando, ao final de quase vinte anos,
descobrisse que na nada ganhei, exceto cair na ilusão do Diabo?
Não seria melhor desistir?
Desistir, no entanto, seria difícil para mim. Eu já havia
descoberto como seria a minha alma sem a oração. Assim, tudo
parecia muito complicado. Eu era como uma pessoa no meio
de um rio que, para qualquer direção que se voltasse, temeria
um perigo enorme, cada vez mais iminente, e um afogamento
inevitável. Isso para mim foi uma grande provação, e tenho so-
frido muitas delas, conforme mostrarei mais adiante. Embora
o assunto possa parecer trivial, creio que é útil para mostrar o
quanto alguém pode ser provado.
É, penso, particularmente importante que às mulheres
não seja dito tão enfaticamente que o Diabo está ocupado tra-
balhando com elas, uma vez que nossas fraquezas são imensas.
A questão, como um todo, deve ser considerada muito cuidado-
samente, e nós devemos ser poupadas de quaisquer perigos que
possa haver. Por certo, é fundamental que o aconselhamento ao
qual venhamos a nos submeter seja mantido em segredo.

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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Falo agora sobre alguém que está sofrendo uma provação


amarga porque meu caso não foi mantido em segredo; ao contrá-
rio, esse e outro foram consultados sobre isso. Toda essa situação
me causou um enorme dano. Houve conversas que deveriam ter
sido mantidas em segredo, pois se tratavam de coisas sobre as
quais nem todo o mundo deveria saber. E a impressão que ficou
foi a de que era eu quem as estava publicando em toda parte.
No entanto, creio que o Senhor permitiu tudo isso sem
qualquer falha da parte deles para que eu pudesse sofrer. Não
estou dizendo que falaram sobre aquilo que dialoguei com eles
em confissão. Mas, uma vez que eram pessoas a quem eu estava
confidenciando minhas ansiedades a fim de que me ajudassem,
a mim me parece que deveriam ter contido suas palavras. Con-
tudo, nunca ocultei nada delas.
O que estou dizendo é que quem aconselha almas deve
fazê-lo com muita discrição, encorajando-as e dando-lhes pa-
ciência até que o Senhor as ajude, como fez comigo. Pois, se o
Senhor não tivesse me curado, eu teria sofrido enorme prejuízo,
uma vez que estava apavorada e muito ansiosa. Com a tensão
que estava sofrendo, estou surpresa por não ter sofrido maiores
danos.
Ao dar-lhes o livro e contar a história de minha vida e
meus pecados da melhor maneira que pude (embora não atra-
vés de uma confissão oficial, uma vez que um deles era leigo),
expliquei-lhes claramente quão miserável eu era. Os dois servos
de Deus então, com muito amor e afeição, consideraram o que
era melhor para mim. Esperei pela resposta deles com grande
medo, tendo solicitado a muitas pessoas que orassem por mim.
Eu também havia orado muito durante aqueles dias.
O nobre homem veio a mim em grande angústia e me
disse que, na opinião deles, eu estava iludida por um espírito
maligno. Aconselhou que a melhor coisa a fazer seria solicitar a
um certo padre da Sociedade de Jesus que me visitasse, pois eu
estava necessitada de ajuda. Disse também que eu deveria con-

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48 VIDA DE ORAÇÃO

tar-lhe, de modo geral e com o máximo possível de clareza, um


resumo de toda a minha vida e da condição presente em que me
encontrava. Deus então, em virtude de minha confissão, daria
a ele mais luz com respeito a mim. Esses padres eram homens
muito experientes nas questões relacionadas à espiritualidade.
Além disso, eu não deveria desviar-me um ponto sequer dos
conselhos daquele padre. Corria grande perigo se não tivesse
ninguém para me orientar.
Isso me assustou e feriu tanto que eu não sabia o que fazer.
Assim, não conseguia fazer outra coisa senão chorar. Enquanto
estava no oratório, profundamente aflita, sem saber o que seria
de mim, li em um livro - que parece ter sido colocado em mi-
nhas mãos pelo próprio Senhor - aquilo que o apóstolo Paulo
disse, que Deus é fiel (I Coríntios 10.13). Ele nunca permitiria
que aqueles que O amam fossem enganados pelo Diabo. Isso me
trouxe grande conforto.
Quando fiz uma confissão detalhada da condição de minha
alma àquele padre servo de Deus, ele compreendeu tudo que eu
lhe havia dito. Ele a explicou a mim e me encorajou muito.
Disse que isso, por certo, era algo da parte do Espírito de Deus e
que, portanto, era necessário retornar à oração. Eu claramente
não estava bem fundamentada e não havia de fato começado a
entender o que a mortificação significava para mim.
Não queria de modo algum desistir da oração. Pelo con-
trário, estava disposta a lutar muito mais, uma vez que Deus
havia me abençoado com favores tão especiais. Ele também in-
dagava a si se o Senhor não tinha por intento abençoar outros
através de mim. Seguimos adiante, pois ele parecia profetizar
sobre algo que o Senhor faria comigo e disse que eu estaria em
grande falta se não respondesse aos favores que Deus me estava
concedendo.
Parece-me que o Espírito Santo estava falando através
dele a fim de curar minha alma, tão profunda foi a impressão
que me causou. Ele fez com que eu sentisse muita vergonha de

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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

mim mesma e me conduziu por um caminho que parecia me


mudar por completo. Que coisa maravilhosa é a capacidade de
compreender uma alma!
Ele disse que eu deveria dedicar-me à oração todos os dias
a partir de algum aspecto da Paixão e que me beneficiaria dessa
oração ao me concentrar somente sobre a humanidade de nosso
Senhor. Resisti ao máximo entregar-me a essas experiências de
lembrança e de consolação até que ele me desse mais orienta-
ções sobre o assunto.
Ele me proporcionou consolo e profundo encorajamento,
e o Senhor ajudou a mim e a ele a entendermos minha situação,
bem como lhe deu sabedoria para que continuasse a me orien-
tar. Decidi não me desviar de nada com relação àquilo que ele
me dissesse para fazer, e até hoje tenho guardado seu conselho.
Nosso Senhor seja louvado por ter me concedido a graça de
ser obediente a meus diretores espirituais, ainda que de modo
imperfeito. Eles têm sido quase todos aqueles maravilhosos ho-
mens da Sociedade de Jesus, muito embora, como disse, eu os
tenha seguido de modo imperfeito (Vida, XXIII).
Comecei com um amor renovado por Sua humanidade
santíssima. Minha oração começou a tomar forma a exemplo de
um edifício que possui um sólido fundamento.
Fiz tudo, porque a mim me pareceu que o Senhor assim
havia ordenado. Deus deu ao diretor espiritual a habilidade de
me conduzir de tal modo a me fazer obediente a ele. Minha alma
ficou extremamente sensível a qualquer ofensa que eu cometes-
se contra Deus, por mínima que fosse. Assim, eu não conseguia
orar de maneira apropriada até que me livrasse dela.
Orei intensamente para que nosso Senhor me segurasse
pela mão e não permitisse que eu caísse de novo, agora que me
encontrava sob a direção de Seus servos, pois agora me parecia
que voltar para o caminho que me havia sido mostrado seria
muito prejudicial e esses homens perderiam sua reputação por
minha causa.

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50 VIDA DE ORAÇÃO

Nessa época, padre Francis, duque de Gandia, veio a Ávi-


la. Alguns anos antes, ele havia doado todas as suas posses e
entrado para a Sociedade de Jesus. Meu confessor e o nobre
homem que eu havia mencionado anteriormente marcaram um
encontro entre mim e padre Francis, a fim de que eu pudesse
contar-lhe acerca do meu caminho de oração, pois eles o co-
nheciam e sabiam tratar-se de um homem abençoado e con-
fortado por Deus. Ele havia aberto mão de muitas coisas e fora
recompensado por isso ainda nesta vida.
Depois de me ouvir, ele me disse que isso era obra do Es-
pírito de Deus e achava que eu não deveria prolongar mais mi-
nha resistência. Até ali, havia sido prudente agir assim, uma
vez que eu estivera a meditar em um determinado aspecto da
Paixão. Desse modo, se nosso Senhor elevasse meu espírito, eu
não deveria resistir, mas permitir que Sua Majestade o elevasse,
uma vez que eu não estava buscando por isso. Como alguém que
havia feito um grande progresso espiritual, ele me deu remédio
e conselho. Disse que mais resistência seria um erro. Senti-me
imensamente confortada. O nobre homem também muito se
alegrou quando ouviu que isso era obra de Deus. Ele sempre me
ajudara e aconselhara nas questões que pôde, e que eram muitas
(Vida, XXIV).
Passo agora a resumir a história de minha vida. Experi-
mentei grande angústia e dor. Muitas orações, como disse, fo-
ram feitas a meu favor, para que o Senhor me conduzisse a outro
lugar, mais seguro, pois me disseram que eu estava sob suspeita,
em função do caminho que estava trilhando. A verdade é que,
embora estivesse orando a Deus antes disso e desejasse um outro
caminho [ter as visões dela], quando, no entanto, vi o progresso
que estava fazendo, não consegui verdadeiramente desejar qual-
quer mudança, embora orassem por mim nesse sentido. Havia,
no entanto, expectativas quando fiquei abatida com aquilo que
algumas pessoas me disseram e pelos temores com os quais elas
me encheram.

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
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E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

No entanto, senti que estava totalmente mudada. Nada


me restou fazer senão colocar-me nas mãos de Deus. Ele sabia o
que era conveniente para mim. Que Ele aja em mim conforme
a Sua vontade em todas as coisas. Percebi que, dessa maneira,
eu estava voltada em direção ao céu, ao passo que antes estava
indo para o inferno. Desse modo, não poderia forçar-me a dese-
jar qualquer mudança, nem crer que estava sob a influência de
Satanás.
Ao final de dois anos passados em oração por mim e por
outros para esse fim – a saber, que nosso Senhor ou me conduzisse
por um outro caminho, ou me mostrasse a verdade dessa expe-
riência (pois agora as aparições de nosso Senhor eram extrema-
mente freqüentes) – isso aconteceu comigo. Eu estava certo dia
em oração. Era o dia da festa do glorioso São Pedro, e vi Cristo
perto de mim; ou, para descrever de maneira mais exata, eu O
senti. Pois não vi nada com os olhos do corpo, nem coisa alguma
com os olhos da alma. Pareceu-me que Ele estava muito perto, ao
meu lado. E também creio que O vi falando comigo.
Eu era completamente ignorante quanto à possibilidade
de uma visão assim. Fiquei muito assustada, a principio, e não
fiz outra coisa senão chorar. No entanto, Ele falou comigo com
uma palavra para me tranqüilizar. Eu me refiz e fiquei, como
sempre, calma e confortada, sem qualquer medo. Jesus Cristo
parecia estar ao meu lado continuamente. Como a visão não
era imaginária, não vi forma alguma. Mas tinha o sentimento
mais profundo de que Ele estava à minha mão direita, como
testemunha de tudo o que eu fazia. Nunca, em tempo algum,
a menos que estivesse muito distraída, eu poderia ficar incons-
ciente de Sua presença próxima.
Em grande angústia, fui imediatamente falar com meu
confessor sobre o ocorrido. Ele me perguntou em que forma eu
via nosso Senhor. Disse a ele que não o via em forma alguma.
Ele então disse, “como você soube que era Cristo?” Respondi
que não sabia como sabia.

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52 VIDA DE ORAÇÃO

Mas não pude evitar a constatação de que Jesus Cristo


estava bem perto, ao meu lado, e que eu O vi distintamente,
e senti Sua presença. A lembrança de minha alma era ainda
mais profunda e contínua durante a Oração de Quietude. Desse
modo, os efeitos foram muito diferentes daqueles que eu havia
anteriormente experimentado. Isso foi absolutamente certo. Eu
podia apenas fazer uma comparação a fim de explicar a mim
mesma. Mas, claramente, não havia comparações por causa do
tipo de visão que pode ser descrita.
Posteriormente aprendi do Frei Pedro de Alcântara, um
homem piedoso de grande espiritualidade, e com outros de
grande sabedoria, que essa visão estava entre as mais sublimes, o
tipo de visão sobre a qual o Diabo menos pode interferir (Vida,
XXVII).
Nosso Senhor teve prazer em prestar-me grande socorro
ao trazer até mim o bendito Frei Pedro de Alcântara. Já falei so-
bre ele, e disse algo sobre sua vida ascética. Entre outras coisas,
tenho como certa a informação de que ele usou por vinte anos
um cinto feito de ferro. Ele é o autor de muitos livros em espa-
nhol sobre oração que são agora de uso comum. Por ter muito
interesse sobre o assunto, suas orações são muito proveitosas
para aqueles que são dados à oração. Ele cumpriu a Regra do
bendito São Francisco em todo o seu rigor, e fez essas coisas que
já descrevi.
Bem, uma viúva, serva de Deus e minha amiga, sabedo-
ra de que um homem maravilhoso como esse viria, soube exa-
tamente o que fazer. Ela havia acompanhado minha grande
angústia e fora de grande conforto para mim. Sua fé era tão
forte que ela não fez outra coisa senão crer que aquilo que os
outros diziam ser obra do Diabo era obra do Espírito de Deus.
Por ser uma pessoa de muito bom senso e prudência e alguém
para quem nosso Senhor é muito generoso em oração, aprouve
a Sua Majestade permitir que ela discernisse aquilo que homens
sábios não conseguiam ver.

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OS PRIMEIROS ANOS DE TERESA, DE FRACASSO,
53
E OS ÚLTIMOS, DE DIFICULDADES NA ORAÇÃO

Assim, quando soube que o bendito homem de Deus (Pe-


dro de Alcântara) viria, ela obteve licença para que eu ficasse
em sua casa sem me dizer nada. Desse modo, pude trocar idéias
com ele na primeira vez em que veio. Posteriormente, tive mui-
tas conversas com ele em várias outras ocasiões.
Para alguém que experimentou os eventos místicos que
experimentei, não pode haver maior prazer ou conforto do que
o de encontrar-se com outra pessoa a quem Deus tenha conce-
dido o mesmo tipo de experiência. Ele se entristeceu muito por
mim, dizendo-me que uma das maiores provações no mundo
era aquela que eu já estava suportando, a saber, a contradição
das boas pessoas. Na verdade, eu achava que havia mais coisas
reservadas a mim (Vida, XXX).
Que possa ser do agrado de Sua Majestade que aquilo que
escrevi seja de alguma utilidade a você, meu pai! Tenho tão
pouco tempo, e, portanto, muita dificuldade para concluir este
texto. Mas tudo terá valido muito a pena se eu conseguir dizer
algo que produza ao menos um simples ato de louvor a nosso
Senhor. Nesse caso, eu me sentiria suficientemente recompen-
sada (Vida, XL).

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Capítulo II

Princípios básicos para


uma vida de oração

I. Introdução

Vocês me pediram que eu lhes dissesse algo sobre o


tema da oração. Em resposta àquilo que irei dizer,
espero que leiam esses textos com freqüência.
Mas antes que eu diga qualquer coisa sobre as questões
interiores da alma, ou seja, sobre a oração, irei mencionar al-
gumas coisas que são necessárias àqueles que buscam seguir
a senda da oração. Elas são de fato tão necessárias que, mes-
mo que pessoas não sejam muito contemplativas em sua dis-
posição, elas, contudo, podem progredir muito no serviço ao
Senhor se possuírem essas qualidades. Se não as possuir, no
entanto, será impossível que desenvolvam a contemplação de
Deus. E se pensam que já são contemplativas sem elas, estão
redondamente enganadas.
Assim, possa o Senhor me ajudar a falar dessas coisas, e
me ensinar aquilo que estou para dizer, de modo que elas pos-
sam ser para a Sua glória. Amém.
Não pensem, minhas amigas e irmãs, que as sobrecarrega-
rei com muitas coisas. Que o Senhor nos capacite a fazer essas
coisas que nosso Pai Celestial estabeleceu e observou; pois, an-

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56 VIDA DE ORAÇÃO

dando no caminho que elas mesmas estabeleceram, mereceram


o título que a elas atribuímos.
Estaria errada se buscasse qualquer outro caminho, ou
tentasse aprendê-lo com qualquer outra pessoa. Apenas discor-
rerei sobre três coisas que são, por natureza, muito importantes
a fim de que compreendamos o caminho. É fundamental que
estejamos interessados em observar essas coisas que desejamos
obter dentro e fora do nosso coração, aquela paz que nosso Se-
nhor tanto nos recomendou.
A primeira dessas coisas é amarmos uns aos outros. A se-
gunda é termos desprendimento com relação a todas as coisas
criadas. A terceira é a mais importante de todas. Na verdade,
ela inclui todo o resto (Caminho de Perfeição, IV, 2,4).

II. Amor uns pelos outros

A primeira necessidade é a de que nos amemos uns aos


outros. É importante que tenhamos esse amor, pois não há abor-
recimento que não possa ser tolerado entre aqueles que se amam
mutuamente. A sua ausência deve ser algo que cause extrema
contrariedade antes que a sua presença possa causar qualquer
desprazer. Se esse mandamento fosse observado no mundo como
deveria ser, penso que perceberíamos que o amor nos ajuda na
observância de todas as outras tarefas. Mas, quer pelo excesso,
quer pela carência de amor, nunca chegamos a ponto de guardar
esse mandamento de modo perfeito.
Embora tenhamos a impressão de que ter amor excessivo
entre nós jamais seja algo ruim, esse excesso carrega consigo
muitos malefícios e imperfeições em que eu não acho que al-
guém creia – a não ser que tenha sido testemunha ocular.
É nesse contexto que o Diabo encontra oportunidade
para armar muitas armadilhas, uma vez que esse excesso é muito
pouco notado por aqueles cujas consciências se importam ape-
nas superficialmente em agradar a Deus. O excesso de um amor

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 57

assim pode lhes parecer muito virtuoso. Os que estão interessa-


dos na maturidade espiritual, no entanto, possuem um profundo
entendimento dos danos que esse excesso de amor pode causar.
Pouco a pouco, compreenda, o amor excessivo entre nós
pode minar a força da vontade em seu desejo de estar totalmen-
te ocupada com o amor a Deus.
Isso, penso, acontece mais freqüentemente a mulheres
que a homens, e faz um tremendo mal à comunidade. Dá ensejo
às seguintes coisas: ao fracasso no amor igualitário; ao ressenti-
mento para com uma injúria feita ao amigo de alguém; ao dese-
jo de ter posses a fim de dar presentes; à preocupação com a ne-
cessidade de comunicar à pessoa amada o quanto ela é querida.
Essas e outras coisas frívolas distraem a pessoa a fim de que
não ame a Deus, uma vez que essas grandes amizades raramente
estão voltadas a auxiliar alguém no sentido de fazê-lo amar mais
a Deus. Ao contrário, acredito, essas coisas foram criadas pelo
Diabo a fim de promover facções no seio da comunidade. Pois,
quando o amor está a serviço de Sua Majestade, a vontade não
é precedida pela paixão; ela precede a busca de auxílio para
conquistar outras paixões.
Eu preferiria, portanto, que houvesse muitas amizades
dentro de uma grande comunidade. Mas em uma casa onde não
há mais que quinze [essa era a situação sobre a qual Teresa es-
tava falando], então todas devemos ser amigas umas das outras,
todas devemos ser amadas, todas devemos considerar umas às
outras, todas devemos ser mútua e igualmente ajudadas.
Assim, cuidado com essas amizades que se fazem passar
por amor ao Senhor, por mais santas que possam parecer. Mes-
mo entre irmãos, elas podem ser nocivas. Eu não vejo qualquer
benefício nelas. Se os amigos são parentes, a situação é muito
pior; é uma luta!
Creiam-me, irmãs, que falo a verdade, embora ela possa
parecer extrema. Em uma verdade assim, repousam a maturida-
de e a verdadeira paz. Muitos ensejos ao pecado são removidos

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58 VIDA DE ORAÇÃO

daqueles que não enfatizam por demais determinada virtude.


Mas se a nossa vontade se inclina mais a uma virtude que a
outra (e é natural que seja assim), podemos então ser induzidos
a amar de uma forma desequilibrada. Estanquemos esse mal cui-
dadosamente e não soframos, deixando-nos dominar por esse
sentimento. Amemos as virtudes e o bem interior, e usemos
todo cuidado e diligência para evitar que façamos muito alarde
com relação ao elemento exterior.
Não nos tornemos, portanto, tão submissas a ponto de
permitir que nossas vontades sejam escravizadas por ninguém,
exceto por Aquele que nos comprou com o Seu próprio sangue
(I Pedro 1.18,19).
A fim de rompermos essas amizades que envolvem de-
terminada paixão, é necessário um grande cuidado a partir do
início da amizade. Esse rompimento deve ser feito delicada e
amorosamente, jamais de forma agressiva e ríspida.
Voltem comigo ao tópico do amor mútuo. Não faz sentido
algum recomendá-lo, pois há alguns que são tão brutos que não
amarão uns aos outros, embora estejam sempre se relacionando
e na companhia uns dos outros.
Essas pessoas podem não se relacionar ou se divertir com
pessoas de fora da comunidade. Elas crêem que Deus as ama de
uma maneira especial porque, em Seu nome, deixaram tudo.
Mas esse amor uns pelos outros deve ser praticado.
Qual é a natureza desse amor virtuoso, que é o amor que
eu quero praticar? E como sabermos se temos esse amor? É verda-
deiramente uma grande virtude tê-lo, pois nosso Senhor mesmo
o recomendou veementemente a nós (João 13.34). Só posso ex-
pressar-me sobre ele de acordo com a extrema incapacidade de
minha própria mente. Se em outros livros você encontrar uma
explicação detalhada, não aproveite nada de mim. Talvez eu real-
mente não tenha conhecimento acerca do que estou falando.
Há dois tipos de amor com os quais estou lidando aqui. Um
tipo é espiritual. Esse amor parece não fomentar a carnalidade ou

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 59

afetar a ternura de nossa natureza e retirar de nós nossa pureza.


O outro tipo de amor está espiritualmente misturado com nossa
sensualidade e compaixão. Ele é legitimo como o tipo de amor
que temos por nossos parentes e amigos, por exemplo.
Quero, portanto, falar especificamente sobre o amor es-
piritual, aquele amor que não é afetado por nenhuma paixão.
Pois, uma vez que a paixão se instala, a harmonia é rapidamente
comprometida (Caminho de Perfeição, VI).
Agora, parece-me que aqueles que experimentam o Seu
cuidado amam a outros muito diferentemente daqueles que ain-
da não conhecem o amor de Deus. Essa percepção clara é sobre
a natureza do mundo, sim, a de que há de fato um outro mundo
e uma grande diferença entre eles. Um é eterno e o outro, ape-
nas um sonho.
Amar o Criador também é diferente de amar a criatura.
Isso se observa através dos olhos da experiência, porque expe-
rimentar a distinção é completamente diferente de meramente
concebê-la ou crer nela.
As pessoas que sabem as distinções entre o amor da cria-
tura e o amor do Criador são muito mais indiferentes ao amor
que outras lhes dão ou ao amor que elas têm por outras. Essas
pessoas podem às vezes se sentir repentinamente bem por serem
amadas; no entanto, quando pensam a respeito mais sobriamen-
te, percebem que é tolice permanecer nesse amor, exceto se ele
faz bem às suas almas por meio do aprendizado ou das orações.
Não que cessem de ser gratas para com aqueles que as amam e
deixem de recomendá-los a Deus. Elas, no entanto, consideram
nosso Senhor como sendo a Pessoa mais interessada entre aque-
las que as amam. Elas sabem que o amor vem de Deus (Caminho
de Perfeição, VI).
Esse grupo de pessoas deixa por conta de Sua Majestade
a retribuição àqueles que as amam, e imploram que Ele assim
o faça. Desse modo, permanecem livres. Pois lhes parece que a
retribuição ao amor não é realmente o seu negócio.

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60 VIDA DE ORAÇÃO

A você parecerá que essas pessoas não amam ou conhe-


cem ninguém a não ser Deus. Eu digo, “sim, elas amam, com um
amor muito maior, mais genuíno e mais intenso. Mas trata-se
de um amor mais benéfico”. Na verdade, é amor. E essas almas
estão mais inclinadas a dar que a receber. Mesmo com respei-
to ao próprio Criador, elas estão acostumadas a dar, mais que
a receber. Isso, eu digo, é aquela atitude que verdadeiramente
merece o nome de “amor”, pois todos os outros vínculos básicos
têm usurpado o nome “amor” se comparados a ele.
Um amor assim espiritual parece estar imitando o amor
que o grande Amante Jesus tem tido por nós. Esse amor espiri-
tual é o tipo de amor que eu desejo que todas tenhamos. Muito
embora seu princípio seja tão imperfeito, o Senhor irá gradati-
vamente amadurecê-lo.
Comecemos usando os meios apropriados, pois, embo-
ra o amor carregue consigo alguma ternura natural, nenhum
dano será causado contanto que sua ternura seja demonstrada
para com todos. É às vezes bom e necessário no amor mostrar
e também ter sentimento. É bom sentir algumas das agruras e
enfermidades de nossas irmãs, por menores que sejam. Pois há
tempos quando coisas insignificantes causam mais sofrimento
a uma do que grandes provações a outra. As pequenas coisas
podem produzir muita angústia a pessoas que têm natureza sen-
sível. Se você não é assim como essas almas sensíveis, não deixe
de ser compassiva para com elas. É importante saber como ex-
pressar compaixão ao próximo em suas lutas, por menores que
possam ser.
Quão bom e verdadeiro é esse amor quando uma irmã
pode ajudar outras, ao colocar de lado seu próprio interesse.
Agindo assim, obtêm muito maior progresso em todas as suas
virtudes. Melhor amizade será gerada desse modo do que por
todas as palavras de ternura que possam ser expressas, pois pa-
lavras ternas não são suficientes. Se você fizer o que estiver ao
seu alcance, o Senhor a fortalecerá de modo que, como mulher,

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 61

você impressionará os homens. E isso é algo muito fácil para


Sua Majestade, uma vez que Ele nos fez do nada.
Outra prova desse amor espiritual é a de que você se es-
força em suas tarefas domésticas a fim de aliviar o trabalho de
outras. Você também se alegra e louva ao Senhor agindo assim.
Todas essas coisas, sem mencionar o grande bem que elas pro-
porcionam por si, também ajudarão e muito a promover paz e
unidade entre as irmãs. Que seja do agrado de Sua Majestade
que esse amor sempre continue (Caminho de Perfeição, VII).

III. Desprendimento

Falemos agora sobre o desprendimento que devemos ter


em relação às coisas criadas, pois, se esse desprendimento for
praticado com perfeição, incluirá todas as coisas. Digo que in-
cluirá “todas as coisas” porque, quando abraçamos o Criador e
não damos ouvidos a nenhuma outra criatura, Sua Majestade
nos concede Suas virtudes. Fazendo pouco a pouco o que po-
demos, não teremos nada mais contra o que lutar. O Senhor é
a nossa defesa e quem assume a batalha contra os demônios do
mundo em nosso favor.
Pensamos muito em nós mesmas e somos tardias em
nos entregarmos inteiramente a Deus. Como Sua Majestade
não permitirá que nos beneficiemos de qualquer vínculo que
nos seja precioso e caro, devemos nos preparar para isso. Vejo
claramente que é apenas através do autodesprendimento que
um bem como esse pode ser obtido nesta vida. Se, no entan-
to, não nos apegarmos a nada neste mundo e tivermos todos
os nossos pensamentos e conversas voltados para o céu, creio
então que todas essas bênçãos nos sejam rapidamente con-
cedidas. Elas nos seriam dadas desde que nos equipássemos
por completo e de modo definitivo, como alguns santos têm
feito. Pensamos que estamos dando tudo a Deus. Na verdade,
somos como os habitantes de uma fazenda que oferecem a

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62 VIDA DE ORAÇÃO

produção em troca da ocupação da terra, pensando que ela


lhes pertence.
Decidimos nos tornar pobres. Essa é uma decisão de gran-
de mérito. Ao mesmo tempo, decidimos silenciosamente não
ter falta de nada. Fazemos assim não somente com as necessi-
dades básicas da vida, mas também com seus luxos. Além disso,
fazemos amigos entre aqueles que podem nos suprir.
Nessas maneiras ocultas de cuidar de nós mesmos, cau-
samos grande mal à nossa integridade. Também nos expomos
a um maior perigo moral do que se tivéssemos, ao contrário
de nos tornar ascéticas, simplesmente nos apegado às nossas
posses.
Também pensamos que havíamos desistido de todo o de-
sejo e ambição por honras mundanas quando assumimos nossa
vida devocional e estávamos apenas buscando a piedade. No
entanto, logo somos tocados em alguma área de significância
pessoal e então, repentinamente, esquecemos que havíamos
entregado essa área ao Senhor. Nós a apanhamos de volta em
nossas próprias mãos, tirando-a das mãos dEle. Agimos assim
a despeito do sentimento de que entregamos nossas vontades
totalmente a Deus. E assim é com todas as outras coisas!
Essa é uma maneira agradável de buscar o amor de Deus!
Continuamos com nossos próprios sentimentos, querendo nos
agarrar um pouco ao amor de Deus! Não fazemos esforço algum
para que os nossos ideais se realizem ou para erguê-los acima das
coisas deste mundo. No entanto, ainda assim esperamos receber
consolações espirituais.
Essa atitude não é boa o suficiente! Estamos, na verdade,
buscando manter juntas coisas que são incompatíveis. Por não
nos entregarmos por completo e imediatamente a Deus, esse
tesouro não nos é dado por inteiro e imediatamente. Que a boa
vontade de nosso Senhor nos permita recebê-lo pedaço a peda-
ço. Enquanto isso, essa nossa atitude faz com que passemos por
todas as provações no mundo.

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 63

Deus mostra grande misericórdia a quem Ele concede a


graça e que está determinado a lutar por essa bênção. Deus não
se furta a atender ninguém que persevere. Ele fortalecerá pouco
a pouco aquela alma para que ela prevaleça. Quero dizer àquele
a quem é dada a “determinação” diante da multidão de coisas
que Satanás coloca em seu caminho. Ele tenta nos impedir até
mesmo de começar a peregrinação de nossas almas rumo a Deus.
Satanás sabe aquilo que irá perder; não somente aquela alma,
mas uma multidão de outras inspiradas em seu exemplo.
Portanto, quem quer que entre nessa estrada do desprendi-
mento irá, com a ajuda de Deus, alcançar o fim dela em segurança.
Creio que essa alma nunca viajará sozinha, porque levará muitos
consigo. Deus lhe concede, a exemplo de um competente oficial
do exército, um bom grupo que lhe fará companhia (Vida, XI).
Vocês pensam, irmãs, que é pequena a bênção que rece-
bemos ao obter essa graça de nos doarmos ao Todo-Poderoso
inteiramente e sem reservas? Nele se encontram todas as bên-
çãos. Louvemos muito a Ele, irmãs, por nos juntar aqui, onde
o único interesse é o de nos entregarmos inteiramente a Ele.
Talvez eu só possa falar com propriedade sobre essa questão,
suponho, a partir daquilo que experimentei sobre o oposto do
desprendimento.
As pessoas já observam quão desligadas estamos de todas
as coisas quando olham aqui para dentro, estando elas do lado
de fora. Parece-me que o Senhor deseja que nós, que ele juntou
aqui, nos separemos de tudo. Sua Majestade então pode nos
conduzir para mais perto dEle sem qualquer obstáculo.
Ó meu Criador e Senhor, como pude merecer tão grande
honra? É como se tu tivesses buscado todos os meios necessários
para te aproximares ainda mais de nós. Que a tua Bondade nos
conceda não perdermos esse favor por culpa nossa. Ó minhas
irmãs! Pelo amor de Deus, compreendam a grande honra que
nosso Senhor concedeu àquelas que Ele aqui juntou. Há tantas
melhores que eu e que de bom grado assumiriam essa posição.

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64 VIDA DE ORAÇÃO

No entanto, nosso Senhor a concedeu a mim, que a merece tão


pouco (Caminho de Perfeição, XIII).
Tendo abandonado o mundo e nossos parentes, e viven-
do sob as Regras que mencionamos anteriormente, parece-nos
que fizemos tudo e não deixamos nada com o que contender. Ó
minhas irmãs! Não sejam tão presunçosas nem se permitam ser
sonolentas, ou serão como aquele que deita muito rapidamente
em sua cama e que, ao trancar a porta por medo de ladrões, ao
mesmo tempo os tem dentro da casa. E vocês sabem que não há
ladrão pior que o doméstico.
Uma vez, portanto, que nossa natureza permanece sempre
a mesma, devemos ter muito cuidado e todas deveriam negar
sua própria vontade. Sim, muitas coisas podem afastar essa san-
ta liberdade do espírito de nosso alcance. Mas devemos buscar o
vôo em direção ao nosso Criador, a despeito dos fardos da terra
e do mundo.
O grande remédio contra o mal da vontade própria é con-
tinuamente lembrar-se da vaidade de todas as coisas e de como
em breve elas passarão. Desse modo, tiraremos nossos senti-
mentos das coisas que são terrenas e os colocaremos nas coisas
que nunca terão fim.
Essa lembrança contínua pode parecer um remédio fraco,
mas fortalece grandemente a alma. E, com respeito às coisas pe-
quenas, é bom tomarmos cuidado quando tivermos paixão por
qualquer objeto. Devemos desviar nossos pensamentos dele e
fixá-los em Deus. Sua Majestade nos auxilia quanto a isso e nos
presta um grande favor, porque, nesta casa, a maior dificuldade
já foi superada.
Mas essa separação de nós mesmas e o negar-se e renun-
ciar-se é muito difícil. Estamos intimamente presas a nós mes-
mas e nos amamos excessivamente. Eis aqui onde deve se esta-
belecer a verdadeira humildade, uma vez que é essa virtude e
a da mortificação que parecem sempre andar juntas. Parecem
duas irmãs inseparáveis. Elas de fato o são.

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 65

IV. Humildade: verdadeira e falsa

O fundamento de toda oração deve ser lançado sobre a


humildade. Quanto mais a alma se humilha em oração, mais
Deus a exalta (Vida, XII, 5). Quanto mais nos aproximamos de
Deus, mais essa virtude deve crescer; se não crescer, tudo está
perdido (Vida, XII, 5). A oração mais sofisticada é inaceitável
por Deus, a menos que seja acompanhada pela humildade (Ca-
minho de Perfeição, XXII, 4).
Vocês devem pensar e ter noção de com Quem estão falan-
do. O tempo de mil vidas não seria suficiente para conseguirmos
entender como o Senhor merece ser abordado; diante da Sua pre-
sença até mesmo os anjos tremem (Caminho de Perfeição, XXII,
7). Seria bom que lembrassem com Quem estão falando e quem
vocês são, para que isso as levasse a falar com a reverência apro-
priada. Pois como conseguirão chamar o Rei, “Vossa Alteza”, ou
saber quais as cerimônias adequadas quando nos dirigimos a um
nobre, se não compreenderem apropriadamente qual é a posição
dEle e a sua própria? (Caminho de Perfeição, XXII, 4).
Pensem sobre certos tipos de humildade que existem e
aqueles sobre os quais estou falando. Alguns pensam que humil-
dade é não crer que Deus está concedendo Seus dons a eles.
Entendamos de maneira clara isto: é perfeitamente trans-
parente o fato de que Deus concede Seus dons sem qualquer
mérito de nossa parte. Sejamos gratas a Sua Majestade por eles.
Se não reconhecermos os dons recebidos de Suas mãos, nunca
seremos levadas a amá-lO. Uma verdade cristalina é que, por
mais ricas que nos vejamos, confessando ao mesmo tempo a
nossa pobreza – maior será o nosso progresso e mais autêntica
será a nossa humildade.
Um caminho oposto há de nos tirar toda a coragem. Pen-
saremos em nós como incapazes de receber grandes bênçãos se
começarmos a temer a vanglória quando nosso Senhor começar
a mostrar a Sua misericórdia sobre nós.

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66 VIDA DE ORAÇÃO

Creiamos que, quando o Diabo começar a nos tentar,


Aquele que dá os dons também nos dará graça para identificar
Satanás e a força para resistirmos a ele. Isso, se caminharmos em
simplicidade diante dEle e tivermos como alvo agradar somente
a Ele e não ao homem. Trata-se de algo óbvio que o nosso amor
por uma pessoa aumente quando mais distintamente lembra-
mos do bem que ela nos fez.
Se, portanto, é legítimo e recomendável lembrar que fo-
mos criadas do nada por Deus e que Ele nos sustenta, lembre-
mos também todos os benefícios de Sua morte e Paixão. Ele
sofreu por nós muito antes de nos ter criado. Assim sendo, não
deveria também ser legítimo discernir, confessar e considerar
sempre que eu outrora vivia a falar somente de vaidades? E não
é legítimo também considerar que nosso Senhor me deu a graça
de falar somente dEle?
Devemos reconhecer que não temos nada por nós mes-
mas. Devemos confessar a grande misericórdia de nosso Senhor,
Aquele que, sobre uma alma tão miserável, pobre e extrema-
mente indigna como a minha, derramou as mais ricas bênçãos
que eu jamais poderia merecer. Ele nos cumula de riquezas,
mesmo quando a primeira dessas pérolas seria suficiente para
qualquer alma.
Devemos renovar nossos agradecimentos por servi-lO.
Devemos lutar a fim de não sermos ingratas, porque é sob essas
condições que nosso Senhor dispensa Seus tesouros. Pois se não
fizermos bom uso deles e do alto patamar ao qual Ele nos eleva,
Ele voltará e os tirará de nós. Nós então ficaremos mais pobres
que nunca.
Sua Majestade dará as pérolas a quem as produzir e em-
pregar com proveito para Ele e para os outros. Pois como al-
guém será útil, como gastará com liberalidade, se não souber
que é rico? Não é possível, sendo a nossa natureza como é, que
alguém tenha a coragem necessária para grandes coisas se não
souber que Deus está do seu lado.

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 67

Somos tão miseráveis, tão inclinadas às coisas deste mun-


do, que não conseguimos nos aborrecer ou nos desprender das
coisas terrenas quando falhamos em nos agarrar a essas coisas
acima descritas. É por meio desses dons que nosso Senhor nos
dá a força que, através de nossos pecados, perdemos.
Ninguém desejaria ser desprezado e aborrecido por outros,
nem buscaria as outras grandes virtudes que os espiritualmente
maduros possuem se não tivessem o penhor do amor pessoal de
Deus aliado a uma fé viva. Nossa natureza é tão morta que só
corremos atrás daquilo que está diante de nossos olhos.
São essas graças, portanto, que estimulam e fortalecem a
nossa fé. É bem possível que eu, que sou tão má, meça os outros
por mim; e que outros não demandem nada mais de si mesmos
a não ser a legitimidade da fé, a fim de transmitir suas palavras
mais perfeitamente. Ao mesmo tempo em que eu, miserável
que sou, careço de todas as coisas! (Vida, X, 4-9).
Mantenham-se longe, minhas filhas, da falsa humildade
sugerida pelo Demônio em relação à grandeza de nossos peca-
dos, pois, desse modo, ele tenta afastar-nos da Santa Comunhão
e também da oração.
Trata-se às vezes de grande e verdadeira humildade nos
considerarmos más como somos. Mas outras vezes trata-se de
uma humildade falsa e espúria. Falo com propriedade porque
experimentei isso eu mesma.
A verdadeira humildade, embora grande, não desassos-
sega nem desordena a alma. Ela vem acompanhada de grande
paz, grande serenidade e grande prazer. Embora devêssemos en-
xergar nossa extrema malignidade, o quanto merecemos estar
no inferno e o quanto Deus e o homem devem nos desprezar e
abominar, a verdadeira humildade, no entanto, vem com uma
certa doçura e satisfação. E não suprime ou esmaga a alma. Ao
contrário, a alegra e estimula a um melhor serviço para Deus.
Enquanto aquela outra dor aflige, confunde e destrói
tudo, trata-se de humildade do Demônio quando nos tenta a

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68 VIDA DE ORAÇÃO

desconfiar de Deus. Quando se virem assim, deixem de lado


todo pensamento sobre sua própria condição miserável, medi-
tem na infinita misericórdia de Deus e reflitam nos méritos e na
graça inesgotável de Jesus Cristo.
Eu estava certa vez considerando a razão pela qual nosso
Senhor tanto apreciou a humildade em nós. De repente, me
lembrei que Ele é, em essência, a suprema verdade e que a hu-
mildade é simplesmente o nosso caminhar na verdade, pois o
fato de não termos nenhum bem em nós é uma grande verdade;
só temos em nós desgraça e insignificância. Quem não compre-
ende isso caminha na mentira. Mas quem melhor entende isso
é quem mais agrada à Suprema Verdade. Que Deus nos conceda
esse favor, irmãs, de nunca deixarmos de ter em nós mesmas o
conhecimento que nos torna humildes.
Ó soberana dentre todas as virtudes! Ó senhora de todas
as criaturas! Ó imperatriz do mundo inteiro!
Com quem quer que tenhas de ir e lutar corajosamente,
seja com todo o inferno de uma só vez, que teus soldados não
temam, pois a vitória já é deles. A única coisa que os teus solda-
dos temem é desagradar a Deus. Imploram constantemente que
Ele preserve neles todas as virtudes.
Essas virtudes de fato possuem essa qualidade: ocultam-
se daquele que as possui, de modo que ele nunca as veja em si
mesmo, nem pense que possa possuir uma só delas. Os outros
homens vêem nele todas as virtudes, mas ele as valoriza tanto
que ainda as persegue e as busca como algo que nunca poderá
ser obtido por alguém como ele.
Humildade é uma dessas virtudes. Ela é a rainha, a im-
peratriz e a soberana de todas elas. A realidade é que um ato
de verdadeira humildade aos olhos de Deus tem mais valor que
todo o conhecimento, sagrado e profano, do mundo inteiro [Ci-
tado em A. Whyte, Santa Teresa, uma Apreciação, pp. 61,62].
Retornemos agora ao nosso castelo de muitas Mansões
(veja o capítulo 5 deste livro)

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 69

Você não deve conceber esses quartos como um seguido


de outro em seqüência. Volte seus olhos para o centro; trata-se
do alojamento ou palácio onde está o Rei. Pense nele como um
palmito que tem folhas cercando e cobrindo a parte saborosa
que pode ser comida. Aqui, em volta desse quarto central, há
muitos outros.
A mesma comparação vale para as virtudes mencionadas
acima. As coisas da alma devem sempre ser consideradas como
abundantes, espaçosas e largas. Fazer isso não é de modo algum
exagerar, pois a alma é capaz de muito mais do que podemos con-
ceber, e o sol que está na câmara real brilha em todas as partes.
É muito importante para qualquer alma que pratique pou-
ca ou muita oração não se conter e permanecer em um canto.
Que ela possa caminhar por entre os tabernáculos que estão
no alto, embaixo e em toda a sua extensão e largura, uma vez
que Deus tem dado à alma essa grande dignidade. Não a force a
ficar muito tempo em um aposento apenas, a menos que seja o
aposento do autoconhecimento.
Quão necessário é esse aposento do autoconhecimento
– espero que me entendam – mesmo para aqueles que nosso Se-
nhor recebe na mesma câmara em que Ele próprio se encontra.
Por mais favorecidos que sejam, eles devem saber que somente
a oração e o autoconhecimento podem amadurecê-los. Eles não
conseguiram alcançar a piedade de outro modo, embora dese-
jassem que isso fosse possível, pois a humildade deve sempre
estar em ação.
Como uma abelha que voa e suga as flores, assim a alma,
através do conhecimento de si, às vezes voa até as alturas tam-
bém, para considerar a grandeza e a majestade de seu Deus. Ali
ela descobrirá que sua verdadeira pequenez é melhor que o pen-
sar em si mesma, e que estará mais livre dos animais nocivos
que entram no primeiro aposento e que são os do autoconheci-
mento introspectivo. Pois, embora seja pela graça de Deus que
uma pessoa pratique o autoconhecimento, é esse autoconheci-

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70 VIDA DE ORAÇÃO

mento, que se aplica a questões menores, o qual será muito mais


aplicado às coisas mais importantes. E, creiam-me, praticaremos
muito melhor virtude com a ajuda de Deus do que se estivermos
amarradas à nossa própria desgraça.
Não sei se me expressei com clareza suficiente, pois co-
nhecer a nós mesmos é algo tão importante que eu não desejaria
qualquer complacência sobre esse assunto, independentemente
do quão alto vocês possam subir aos céus, uma vez que, enquan-
to estamos nesta terra, nada é mais importante para nós que a
humildade.
Repito que é bom tentar entrar primeiro nas Mansões
onde o autoconhecimento é praticado do que voar às outras.
Esse é o único caminho para todas elas. A humildade é a estrada
correta, e, se pudermos viajar por um caminho seguro e equili-
brado, para que termos asas para voar?
Empenhemo-nos, portanto, em seguir mais adiante nes-
se caminho, pois, em minha opinião, nunca conseguiremos
conhecer a nós mesmas a menos que nos esforcemos em co-
nhecer a Deus. Ao considerarmos Sua grandeza, entraremos
em contato com a nossa própria pequenez. Ao observarmos
Sua pureza, enxergaremos nossa própria imundície. Ao pon-
derarmos sobre a Sua humildade, veremos quão longe estamos
de ser humildes.
Muitas almas pensam que todos os seus temores têm ori-
gem na humildade. Há tantas outras fontes que eu poderia men-
cionar. Esses temores vêm de não entendermos a nós mesmas
por completo, pois distorcem o autoentendimento. E eu não me
surpreenderei se nunca conseguirmos nos libertar, pois essa au-
sência de liberdade de nós mesmas é o que deveríamos temer.
Assim, eu digo, filhas, que devemos colocar os nossos
olhos somente em Cristo, que é o nosso Deus e a nossa Verda-
de, e sobre os Seus santos, pois assim aprenderemos a verdadeira
humildade. O intelecto, então, será realçado, e o autoconheci-
mento não nos subjugará covardemente.

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 71

Embora essa seja a primeira mansão, ela é tão rica e pre-


ciosa que, se a alma fugir dos animais nocivos que estão dentro
dela, nada a impedirá de avançar. Mas são astutos e terríveis
os enganos usados pelo Demônio. Ele age de tal forma a não
permitir que as almas conheçam a si mesmas ou entendam seus
próprios poderes (Castelo Interior, I, parte 2).
[Para ilustrar a importância do autoconhecimento, Teresa
cita um exemplo.]
Eu lhes contarei sobre uma pessoa com quem conversei
intimamente não faz muito tempo. Era alguém que amava se
comunicar com freqüência, e nunca fez mal algum a ninguém.
Essa pessoa tinha um bom coração. Vivia em solidão con-
tínua, morando em sua própria casa. Tinha uma disposição tão
doce que nada a deixava com raiva. Nunca dizia coisas incon-
venientes. Nunca se casara, e agora havia passado da idade de
casar. Havia passado por muitas aflições e enfrentara todas elas
com a paz e a serenidade que lhe eram usuais.
Quando notei essas boas qualidades, pensei que fossem
sinais de uma alma que havia crescido muito nos caminhos de
Deus, e de uma alta regularidade em oração. Em princípio me
afeiçoei muito a ela, porque vi que não havia cometido nenhu-
ma ofensa contra Deus. Ouvi de outros também que tinha mui-
to cuidado em não cometer nenhuma.
Mas quando conversamos um pouco mais, comecei a
perceber que tudo ia bem com ela até que o seu interesse ou
amor-próprio fossem tocados. Sua consciência então não era
tão meiga. Ao contrário, era muito bruta, pois descobri que,
embora tivesse sofrido todas as coisas que lhe foram ditas com
paciência, ainda se agarrava a questões de honra e de auto-es-
tima. Ela então se encontrava imersa em sua desgraça, o que a
mantinha de fato cativa.
Também estava tão viciada em ouvir e indagar sobre aquilo
que estava sendo dito e feito no mundo, que me perguntei como
uma pessoa assim poderia tolerar estar a sós consigo mesma por

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72 VIDA DE ORAÇÃO

uma hora, pois era apegada ao seu próprio bem-estar. Ela come-
çou a passar de largo por suas ações e a dar desculpas a si por
seu pecado. Conforme as razões que deu, pensei que as pessoas a
haviam interpretado mal em algumas coisas. Ela me convenceu
sobremaneira, e quase todos a consideravam uma santa.
Depois de conhecê-la, tive uma visão diferente acerca das
perseguições que dizia ter sofrido. Ela não deveria se apresentar
como sendo livre de toda a responsabilidade. Eu não poderia
invejar seu modo de vida nem a sua santidade. Ela e duas outras
pessoas que eu havia visto em minha vida – que eram santas aos
seus próprios olhos – haviam me aterrorizado mais que todos
os pecadores que conheci. Que nosso Senhor possa, portanto,
nos iluminar para que, seja qual for a maneira como trabalha
o Demônio, ele não as engane do mesmo modo que engana os
que vivem em suas próprias casas (Concepções do Amor Divino,
XI, 242, 243).

V. Tentação e humildade

Ocorreu-me falar sobre algumas tentações que iniciantes


estão sujeitos a ter. Eu mesma tive algumas delas. Pode ser útil
então dar conselhos sobre esse assunto.
Esforcem-se no princípio em caminhar na alegria e na li-
berdade, porque há algumas pessoas que pensam que a sua de-
voção se perderá se viverem espontaneamente. No entanto, é
correto ter medo de si mesmo. Quando não confiamos em nós
mesmos, não nos colocamos sob aquelas circunstâncias que nor-
malmente levam os homens a pecar contra Deus, pois o temor
em confiar em nós mesmos se faz extremamente necessário.
Se, então, a tentação vem do nosso temperamento natu-
ral, há alguns poucos que podem se considerar fortes o bastante
a ponto de serem negligentes quanto a esse perigo. Enquanto
vivermos, em nome até mesmo da humildade, é bom que seja-
mos realistas acerca de nossa natureza caída.

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 73

Mas, como já disse, há muitas razões pelas quais nos é


permitido relaxar. Podemos então retornar com mais força à
oração. A discrição é requerida em todas as coisas.
Precisamos ter grande confiança. É necessário que conte-
nhamos os nossos desejos e coloquemos a nossa confiança em
Deus. Se nos forçarmos, gradualmente, embora não de uma vez,
alcançaremos aquele patamar que muitos santos, por Sua graça,
alcançaram. Se eles não tivessem decidido aspirar por isso, e
nunca, pouco a pouco, tivessem agido à luz dessa decisão, ja-
mais teriam atingido esse patamar tão alto.
Sua Majestade busca e ama almas corajosas. Mas elas de-
vem ser humildes em todos os seus caminhos e não confiar em si
mesmas. Eu nunca vi nenhuma delas ficar para trás no caminho,
nem uma alma covarde progredir em muitos anos aquilo que as
corajosas podem progredir em apenas alguns poucos. Nunca me
canso de contemplar com espanto quão importante é ser cora-
joso na luta em prol de grandes coisas ao longo do caminho. A
alma pode não ter força para ser corajosa e humilde ao mesmo
tempo. No entanto, ela voa e sobe às grandes alturas, e, como
um pássaro cujas asas estão muito fracas, pode fatigar-se e ter de
descansar.
Em certa época, pensei muito nas palavras do apóstolo
Paulo: “Posso todas as coisas naquele que me fortalece” (Fili-
penses 4.13). Percebi de maneira clara que não podia fazer nada
por mim mesma. Essa percepção me foi de grande ajuda, assim
como as palavras de Agostinho: “Dá-me, Senhor, aquilo que
ordenas, e ordena aquilo que desejas.” Eu sempre pensei que o
apóstolo Pedro não perdeu nada ao lançar-se ao mar, mesmo
ficando com medo depois (Mateus 14.30).
Essas primeiras decisões são de grande importância, em-
bora em seu estado inicial seja necessário às vezes se conter e
estar limitado pela discrição e sob orientação de um diretor
espiritual. Mas devemos ser cuidadosas para que alguém não
nos ensine a nos movermos lentamente como sapos, nem se

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74 VIDA DE ORAÇÃO

satisfaça quando a alma se mostrar pronta apenas para apanhar


lagartos. A humildade deve sempre ir adiante de nós para que
saibamos que essa força não vem de nós mesmas.
Mas é necessário que compreendamos como é essa hu-
mildade, pois creio que Satanás tentará nos causar enorme
dano. Ele atrapalha aqueles que começam a orar, impedindo-
os de ir adiante ao sugerir-lhes falsas noções de humildade. Ele
os faz pensar que é orgulho ter ambições espirituais, desejar
imitar os santos e ansiar ser um mártir. Ele nos dirá ou nos
fará pensar que, uma vez que somos pecadores, as obras dos
santos servem apenas para nossa admiração e não para que as
imitemos.
Eu, igualmente, digo essas mesmas coisas. Mas devemos
observar quais são aquelas ações que admiramos e também as
que podemos imitar sem orgulho. Seria errado da parte de uma
pessoa que é fraca e enferma fazer jejum, praticar um ascetismo
intenso e se instalar em um deserto onde não possa dormir ou
encontrar comida.
No entanto, devemos pensar que podemos, com a ajuda
de Deus, lutar para ter um grande desprezo pelo mundo, para
não nos apegarmos à honra e para nos desprendermos de nossas
posses materiais. Temos corações tão avarentos que parece que
perderemos o mundo inteiro se negligenciarmos só um pouco
o corpo em prol do espírito. Nós então argumentamos que nos
ajuda estarmos seguros do suprimento de algumas necessidades,
porque a preocupação para com elas está perturbando a nossa
vida de oração.
É doloroso para mim que a nossa confiança em Deus seja
tão insuficiente, e que o nosso amor-próprio seja tão forte, de
modo que a ansiedade com relação às nossas necessidades nos
perturbe. Mas assim é, pois, quando nosso progresso espiritual é
tão frágil, um mero nada nos dará tantos problemas como ques-
tões grandes e importantes dariam a outros. E nós nos conside-
ramos espirituais!

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 75

Entrem, minhas filhas, entrem em seu interior, e sigam


adiante dessas suas obras miseráveis que vocês são convocadas a
realizar como cristãs. Que seja suficiente o fato de que vocês são
súditas de Deus. Não desejem nada além disso.
Considerem os santos que entraram na câmara desse Rei,
e vocês verão por meio da vida deles que diferença há entre a
deles e a nossa. Não exijam aquilo que não têm merecido. Seja
qual for o serviço que prestemos, não devemos pensar que pode-
mos merecê-lo, nós, que temos ofendido a Deus!
Ó humildade, humildade! Desconheço a tentação que
veio sobre mim com relação a esse assunto, ou não posso im-
pedir a mim mesma de crer que aquele que está por demais
preocupado com a aridez de sua alma esteja de algum modo
carecendo da virtude da humildade. Assim, não desejo ater-me
a essas grandes aflições interiores sobre as quais falei antes, mas
creio que isso evidencia uma grande falta de humildade (Castelo
Interior, III, parte 1).
Considerem bem, minhas filhas, esses pontos que desta-
quei para vocês, pois não sei como melhor expressá-los. Nosso
Senhor, no entanto, fará com que vocês os entendam a fim de
que possam extrair humildade de sua aridez espiritual e não de
sua inquietude, pois é isso que almeja o Demônio.
Obtenhamos, portanto, humildade, irmãs, pois é esse o un-
güento de nossas almas. Se possuirmos essa virtude, o Médico (que
é Deus) virá e sarará as nossas feridas, embora possa se atrasar um
pouco (Castelo Interior, III, capítulo 1, 1, e capítulo 2, 2, 6).

VI. Humildade e impaciência espiritual

Meu objetivo na seção anterior foi o de explicar o quanto


podemos nos ater a nós mesmas. Nesses primórdios da devoção
estamos aptas, até certo ponto, a ajudar a nós mesmas. Pensar
sempre e ponderar acerca dos sofrimentos de nosso Senhor por
nossa causa nos leva à compaixão, à tristeza e às lágrimas, que

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76 VIDA DE ORAÇÃO

são doces. O pensamento da bem-aventurança pela qual espera-


mos, o conhecimento do amor que nosso Senhor nos transmitiu
e a compreensão de Sua ressurreição acende em nós uma alegria
que não é de todo espiritual nem de todo carnal. A alegria é
virtuosa, e a tristeza é eficaz.
Tudo isso nos ajuda a desenvolver devoção através do
nosso entendimento. A devoção, no entanto, não é merecida
ou alcançada por meio de nós mesmos se Deus não a conceder.
É melhor para a alma à qual Deus não ergueu a um pa-
tamar mais elevado não tentar ou buscar erguer-se mais alto.
Que isso seja muito bem considerado, porque tudo que a alma
conseguirá com respeito a isso não será outra coisa senão per-
da. Em sua condição atual, ela pode fazer muitos atos baseados
em decisões boas e firmes de fazer muito mais para Deus e am-
pliar o seu amor por Ele. Há outros atos que podem ajudar no
crescimento das virtudes, de acordo com o que está escrito no
livro chamado A Arte de Servir a Deus (de Rodriguez de Solis).
Trata-se de uma obra de excelência e útil para os que desejam
compreender esse processo.
A alma pode também se colocar na presença de Cristo e
acostumar-se a muitos atos de amor por causa de Sua sagrada
humanidade. A alma pode permanecer em Sua presença conti-
nuamente e falar com Ele; pode orar a Ele por suas necessidades
e reclamar com Ele de seus problemas. Pode alegrar-se com Ele
em todas as suas alegrias e ainda não se esquecer dEle por causa
de sua felicidade. Tudo isso a alma pode fazer sem orações pron-
tas, mas com palavras que sejam relevantes para seus desejos e
necessidades.
Esse é um excelente modo de avançar rapidamente na
maturidade. Quem se empenha por ter essa maravilhosa com-
panhia muito se beneficiará dela e amará sinceramente a nosso
Senhor, a quem tanto devemos.
Não há, portanto, nenhuma razão para nos perturbarmos
porque não temos mais nenhuma evidência externa de devo-

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PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO 77

ção. Agradeçamos a nosso Senhor que nos permite ter desejo de


agradá-lO, embora nossas obras sejam tão pobres. Essa prática
da presença de Cristo é de grande utilidade em todos os níveis
de oração e um caminho seguro de progresso espiritual.
Quem seguir adiante desse estágio a fim de satisfazer am-
bições espirituais que lhe são negadas irá, em minha opinião,
perder o atual e o futuro. [Isso porque perderá a oração da de-
pendência silenciosa de Deus, uma vez que está agora buscando
voluntariamente abandoná-la antes de ser abençoado por ela.
E não chegará ao próximo estágio porque está tentando fazer
isso por suas próprias forças]. O homem não é capaz de obtê-las
por si mesmo porque elas são bênçãos sobrenaturais. Ao tentar
fazê-lo, ficará desolado e em grande aridez. Quando buscamos
patamares mais altos, isso caracteriza um tipo de orgulho espiri-
tual. Lembre-se de que Deus desceu tão baixo que nos permite,
sendo quem somos, que nos acheguemos a Ele.
Isso não deve ser entendido como um discurso de mi-
nha parte para que evitemos que nossas mentes considerem as
coisas elevadas do céu e de sua glória; ou considerem a Deus
e à Sua grande sabedoria. Eu nunca fiz isso, porque não tive a
capacidade para tal, como já disse antes. Deus me deu a graça
de entender a verdade acerca das coisas desta terra. No en-
tanto, muito mais importante é pensar nas coisas celestiais.
Outros podem se beneficiar desse modo, particularmente os
que são instruídos. A instrução, no entanto, será um grande
tesouro no exercício dos pensamentos das coisas celestiais se
for acompanhada de humildade. Tenho observado isso em al-
guns homens instruídos que iniciaram sua jornada espiritual e
tiveram um rápido progresso. Essa é a razão pela qual fico an-
siosa para que muitos homens instruídos se tornem espirituais.
Falarei disso mais adiante.
Não nos exaltemos se Deus não nos exaltar. Esta é a lin-
guagem da verdadeira espiritualidade. Quem tiver tido alguma
experiência me compreenderá. E se eu não souber como expli-

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78 VIDA DE ORAÇÃO

cá-la ou se aquilo que disse não fizer sentido, essa pessoa, com a
experiência, compreenderá.
Na teologia mística, a compreensão cessa suas ações, por-
que Deus as suspende. Mas não podemos imaginar que sejamos
capazes de promover essa suspensão. Isso não deve ser feito.
Nem podemos permitir que a compreensão cesse suas ações.
Neste caso, seremos tolos e frios, e o resultado não será nem um
nem outro. Mas, quando nosso Senhor suspende a compreensão
e faz com que ela cesse suas ações, Ele coloca diante dela aquilo
que a espanta e a ocupa. Sem fazer qualquer reflexão, a mente
então é capaz de compreender, em um momento, mais do que
compreenderíamos em todos os nossos anos, e com todos os es-
forços do mundo.
Eu repito meu conselho. É muito importante que não ten-
temos elevar nossos espíritos por nós mesmos, se Deus não os
elevar por nós. Se ele assim o fizer, não haverá nenhum equí-
voco.
Para as mulheres isso é particularmente errado, porque o
Demônio pode iludi-las. Eu estou certa, no entanto, que nos-
so Senhor nunca permitirá que magoemos ninguém enquanto
nos esforçarmos em nos aproximar de Deus com humildade. Ao
contrário, tiraremos mais benefícios e vantagens a partir da ten-
tativa de Satanás de nos ferir por meio da humilhação. Tenho
me dedicado a este assunto há um bom tempo por causa de sua
importância (Vida, XII).

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Capítulo III

Oração, como fé e fervor


por Deus somente

Que ruína completa é o estado das pessoas religiosas


na atualidade. Não estou comparando homens com
mulheres, ou se as Regras da Ordem são mais guardadas por um
que pelo outro. Estou falando da condição onde duas opções
são dadas, uma de observância e virtude, e outra de desrespeito
e de descuido moral. No entanto, não são opções iguais, pois a
pecaminosidade de nossos corações é tamanha que a última é a
que predomina. Por se tratar do caminho mais largo, é a escolha
mais popular.
Uma vez que o caminho da observância religiosa é tão
pouco praticado, aqueles que optam por ele descobrem que
têm de temer seus próprios colegas mais que aos próprios de-
mônios. Têm de cuidar muito bem de como falam de sua ami-
zade com Deus. É muito mais fácil falar sobre amizades que o
Demônio arranja nas comunidades religiosas. Assim, eu me
pergunto por que ficamos tão surpresos de que a igreja esteja
passando por tantas dificuldades. Vemos os que deveriam ser
um exemplo para outros desfigurarem os santos de Deus de
tempos idos. Que possa ser do agrado de Sua Majestade aplicar
um remédio a isso, de acordo com a necessidade que Ele obser-
var! Amém (Vida, VII).

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80 VIDA DE ORAÇÃO

A oração como afeição e desejo por Deus

A oração nada mais é que ter amizade com Deus. Ela é,


freqüentemente, conversar em secreto com Ele, que nos ama. O
verdadeiro amor e a amizade duradoura exigem certas afeições;
as de nosso Senhor, nós sabemos, são absolutamente perfeitas.
As nossas são viciadas, carnais e ingratas. Vocês não podem,
portanto, amá-lo como ele as ama, porque não têm a mesma
disposição para tal. Se vocês não o amam, deveriam estar preo-
cupadas em ter a Sua amizade, notar quão grande é o Seu amor
por vocês e então poder se erguer acima dessa dor de estarem
muito com Ele, que é tão diferente de vocês (Vida, VIII).
Um dia, quando fui ao oratório para orar, vi um retrato
que havia sido pendurado ali para celebrar uma festa em par-
ticular da igreja. Era uma representação de Cristo gravemente
ferido. Aquela visão me tocou profundamente, pois mostrava
em forma de imagem o quanto Jesus havia nos amado através de
Seus sofrimentos por nós. Senti tão claramente a minha parte
em suas feridas, que pensei que meu coração se partiria. Assim,
lancei-me ao chão ao lado do quadro, chorando copiosamente.
Implorei a Ele que me fortalecesse de uma vez por todas, a fim
de que jamais viesse a entristecê-lo novamente.
Eu tinha um grande carinho por Maria Madalena, e sem-
pre pensava em sua comunhão com nosso Senhor, especial-
mente quando ia à Santa Comunhão. Quando então eu tive a
certeza de que nosso Senhor estava dentro de mim, habituei-
me a colocar-me a Seus pés, pensando que minhas lágrimas,
a exemplo das de Maria, também não seriam desprezadas. Eu
não sabia o que estava dizendo. O que sei é que Ele fez grandes
coisas por mim.
O Senhor parecia contente por me ver derramando aque-
las lágrimas. Olhando constantemente para aquela imagem, eu
parecia fazer cada vez mais progressos em minhas devoções, pois
agora não confiava mais em mim mesma. Coloquei toda a mi-

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 81

nha confiança em Deus. Parece-me ter-Lhe dito que não me le-


vantaria até que atendesse ao meu pedido. Creio, por certo, que
isso ajudou a minha adoração, porque a minha vida de oração
melhorou depois disso.
Foi assim que orei: Imaginei Cristo dentro de mim. Eu
costumava pensar naquelas ocasiões em que esteve totalmente
só. Durante aqueles momentos, Ele deve ter se sentido aflito e
solitário, como alguém em tribulação. Eu, então, cheguei bem
perto dEle.
Fiz muitas coisas simples assim. Em particular, costumava
me imaginar no jardim do Getsêmani ao Seu lado, fazendo-lhe
companhia. Pensava no suor de sangue e na aflição que Ele so-
freu ali. Eu desejava, se fosse possível, enxugar aquele suor dolo-
roso de Sua face e lembrava que nunca havia ousado fazer isso,
pois meus pecados estavam muito fortemente diante de mim.
Costumava permanecer com Ele ali enquanto meus pensamen-
tos pudessem se concentrar nEle.
Mas eu tinha muitos outros pensamentos ali para me ator-
mentar. Por muitos anos antes de dormir à noite, eu costumava
meditar um pouco no mistério dessa cena da oração de Cristo
no jardim, enquanto fazia minhas próprias orações. Creio ter
sido muito beneficiada por essa prática. Ela me levou, por mui-
tas vezes, a orar sem perceber que estava orando. Agora tem se
tornado meu hábito constante (Vida, IX).
Como tenho dito, eu costumava ter essas imagens diante
de mim e lançar-me aos pés de Cristo. Às vezes, quando estava
lendo, um sentimento da presença de Cristo vinha sobre mim
de maneira inesperada. Eu não tinha a menor sombra de dúvida
de que Ele estava dentro de mim, ou que eu estava totalmente
absorvida dentro dEle. A alma, naquele momento, se elevava
de tal modo que parecia ficar totalmente fora de si mesma. A
vontade ama. A memória fica completamente absorvida, pare-
ce-me. A compreensão não faz reflexões. No entanto, não está
perdida. Nada faço a não ser sentar-me em assombro diante da

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82 VIDA DE ORAÇÃO

grandeza das coisas que estão sendo experimentadas, pois Deus


deixa claro que todas as coisas que Sua Majestade coloca diante
da alma são inefáveis.
Antes de ter esse tipo de experiência, tive um certo tipo
de ternura de alma que foi muito duradoura, induzida, até certo
ponto, por meus próprios esforços, uma consolação de espírito
que não era totalmente dos sentidos nem completamente no
espírito. Tudo isso é, claramente, o dom de Deus.
No entanto, creio que ajudamos a experimentar essa ter-
nura quando temos contrição por todas as nossas maldades e in-
gratidão para com Deus, quando consideramos todas as grandes
coisas que Ele tem feito por nós, Sua Paixão, com suas terríveis
dores, e Sua vida, tão cheia de aflições. Essa ternura é também
induzida dentro de nós quando nos alegramos na contemplação
de Suas obras, Sua grandeza e no amor que Ele tem por nós.
Muitas outras meditações irão encher o coração daque-
le que deseja fazer progressos nas coisas de Deus. O progresso
ocorre, embora tropecemos nessas meditações por ignorância.
Onde houver um pouco de amor, a coração será amolecido e as
lágrimas começarão a fluir (Vida, X).
Agora penso que seja para o bem da alma que ela se dei-
xe abandonar inteiramente nos braços de Deus. Se Ele a levar
ao Céu, que seja assim. Se a levar até mesmo ao inferno, não
importa; ela irá até lá com o seu soberano Senhor. Se a vida
chegar a um fim para sempre, que assim seja. Se Ele desejar que
ela perdure por mil anos, a alma assim o desejará.
Sua Majestade pode fazer o que quiser com a alma. Ela
é propriedade dEle. A alma não mais pertence a si mesma. Ela
foi entregue por completo a nosso Senhor. Deixe, pois, de lado,
todos os seus cuidados para sempre e sempre.
Nesse estágio da oração, a alma percebe que Deus está
fazendo Sua obra sem nenhuma tensão sobre o intelecto. Ela
está simplesmente impressionada por poder ver o Senhor agir
como um bom Jardineiro da alma. É então que, como o sopro

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 83

sem esforço do perfume das flores, a fragrância da alma é espa-


lhada para todos. Quando Deus eleva uma alma a esse estado,
ela pode fazer isso e muito, muito mais (Vida, XVII).
Minha alma não foi forte, mas muito fraca, em relação
a abrir mão de certas amizades, embora eu não estivesse ofen-
dendo a Deus com elas. Havia um carinho natural nelas, e eu
pensei que seria um ato de ingratidão se rompesse com elas.
Assim, consultei meu conselheiro espiritual sobre o assunto. Ele
me disse que levasse a questão diante do Senhor por alguns dias
e recitasse o hino Veni, Creator, para que Deus me iluminasse
quanto à melhor atitude. Um dia, tendo orado por algum tempo
e implorado ao Senhor que me ajudasse a agradá-lO em todas as
coisas, comecei a cantar o hino. Enquanto cantava, entrei tão
repentinamente em um êxtase que fui como que carregada para
fora de mim mesma.
Essa foi a primeira vez que nosso Senhor me concedeu a
graça do êxtase. Eu ouvi estas palavras: “farei não que conver-
ses com homens, mas com anjos.” Isso me maravilhou demais,
uma vez que a confusão em meu espírito era grande e aquelas
palavras calaram fundo em minha alma deixando-me temerosa,
embora tenham me proporcionado grande conforto de modo
que, quando a estranheza que me causou medo se foi, senti-me
profundamente consolada.
Aquelas palavras haviam sido cumpridas, pois eu nunca
havia conseguido estabelecer uma amizade, encontrar conforto
ou ter qualquer amor em particular por pessoas, exceto para com
aquelas que creio amarem a Deus, ou seja, as que se empenham em
servi-lO. Não estava em mim fazer isso. Para mim, não representa
nada o fato delas serem parentes ou amigos se não amam a Deus,
ou não são pessoas dedicadas à oração. É para mim uma dolorosa
cruz a ser carregada conversar com alguém que não ame verdadei-
ramente a Deus. Esta é a verdade até onde posso entendê-la.
Desse dia em diante, tenho tido uma enorme coragem para
deixar todas as coisas por Deus, que viu por bem, em determinado

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momento, transformar Sua serva em outra pessoa. Conseqüente-


mente, não houve mais nenhuma necessidade de qualquer ordem
sobre o assunto. Quando meu conselheiro viu o quanto eu me
agarrava a essas amizades, ele não se arriscou a me pedir que deli-
beradamente desistisse delas. Deve ter esperado até que o Senhor
fizesse a obra, como Ele de fato fez. Nem eu pensei que pudesse,
com sucesso, fazer isso sozinha, pois havia tentado em vão an-
teriormente. A dor que essa tentativa me causou foi tão grande
que abandonei a tentativa com a desculpa de que não era errado
ter tais apegos. Agora nosso Senhor me libertou, e tem me dado
força para agir corretamente (Vida, XXIV).

Sofrendo por Deus

Eu estava em oração certa noite, perto da hora de ir dor-


mir, sentindo muitas dores, quando meu mal-estar rotineiro
chegou [Tratava-se de seu mal-estar matinal, que a impediu por
vinte anos de comer qualquer alimento até depois do meio-dia
(Vida,VII,18)]. Eu me via muito como uma escrava de minha
própria fraqueza, ainda que meu espírito buscasse sua liberdade
para desfrutar de Deus. Isso me angustiava tanto que eu chora-
va copiosamente, sentindo-me triste comigo mesma. Isso me
aconteceu não uma, mas muitas vezes, desgastando-me a ponto
de produzir em mim repugnância para com o meu próprio eu.
Habitualmente, eu sei, não sinto ódio de minha própria pessoa,
pois busco fazer aquilo que é bom para mim. Que o Senhor me
conceda a graça de não me dedicar a fazer mais por mim mesma
que o necessário! Mas eu temo que venha a agir assim.
Estando assim angustiada, o Senhor me apareceu, confor-
tou-me imensamente e me disse que devo aceitar esta aflição em
Seu nome, e suportá-la por amor a Ele. Meu espinho na carne
agora se tornou irrelevante para mim, e, desde então, não tenho
experimentado nenhuma dor real, uma vez que decidi servir
meu Senhor e meu Consolador com todas as minhas forças.

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 85

Embora Deus tenha me permitido sofrer por um tempo,


Ele, no entanto, também me consolou de tal modo a agora me
fazer até mesmo desejar tribulações. Hoje é como se não hou-
vesse mais nada pelo que viver do que isso, a ponto de fazer com
que o sofrimento seja aquilo que mais sinceramente peço que
Deus me conceda em oração. Às vezes digo a Deus com todo
o meu coração, “Ó Senhor, não Te peço nada além de morrer
ou sofrer! Não peço nada além disso para mim”. É um conforto
ouvir o relógio marcar mais uma hora que me aproxima da vi-
são que terei de Deus, e mais uma hora que se passou desta vida
(Vida, XL).
Ó meu Deus, que sofrimentos indescritíveis nossas almas
têm de suportar. Elas perderam a sua liberdade e não são mais
donas de si. Que torturas recaem sobre elas nesta condição. Às
vezes me pergunto como posso viver tamanha agonia de alma
enquanto sofro. Deus seja louvado por me dar Sua própria vida
em minha alma para que eu escape de uma morte tão impla-
cável! Minha alma em verdade recebeu grande força de Sua
Divina Majestade. Ele tem tido compaixão de minha grande
miséria e tem me ajudado.
Ó, que angústia é para a minha alma ter de retornar ao
trato com este mundo depois de ter tido contato com o céu; ter
de desempenhar um papel na triste farsa desta existência terre-
na! Eu, no entanto, estou dividida entre eles (Filipenses 1.23).
Não posso fugir desta vida. Devo permanecer neste mundo para
cumprir a minha missão.
Enquanto isso, contudo, quão forte é o meu cativeiro. Es-
tou tão infeliz em minha alma. E uma das piores angústias é esta,
que estou só em meu exílio. Ao meu redor, pessoas parecem ter
encontrado seu objetivo e propósito na vida dentro deste presí-
dio horrível, e têm dito: alma, “descanse” (Lucas 12.19).
Mas a vida de minha alma é de luta incessante. A cruz
está sempre sobre meus ombros. Ao mesmo tempo, tenho, por
certo, feito algum progresso. Deus é a Alma de minha alma. Ele

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86 VIDA DE ORAÇÃO

a inclui em Seu abraço. Ele a alivia e fortalece. Cuida dela dia e


noite. Dá a ela mais e mais graça. E isso não aconteceu por mi-
nha causa. Nenhum esforço de minha parte gerou essa atitude
divina. Sua Majestade fez tudo. Ele tem me segurado pela mão,
para que eu não retorne ao meu estado anterior.
Quase sempre acontece de eu não estar sequer pensando
nas coisas de Deus - e sim envolvida com outros assuntos, ou
quando a oração parece estar para além de minhas forças – e
os esforços que faço para orar nessas condições, embora dores
físicas prejudiquem a minha espiritualidade, são recompensados
por uma elevação ou contemplação do espírito. Isso ocorre tão
repentinamente que não posso controlar, mas em um instante
os frutos e alegrias dessa elevação são meus. E acontece sem
qualquer visão, locução ou consciência de onde estou, exceto
que, quando a alma está nesse estado, experimenta um grande
progresso. Isso eu não poderia ter feito por mim mesma em um
ano inteiro. O benefício é enorme.
Em outras ocasiões, certas impetuosidades excessivas ocor-
rem, acompanhadas por uma entrega sem limites da alma a Deus,
para que eu não tenha controle sobre mim mesma. É como se a
minha alma tivesse chegado ao fim. Tenho de pedir e clamar a
Deus por ajuda. Isto vem sobre mim com grande veemência. Às
vezes não consigo permanecer sentada, tamanha é a opressão
do coração. Essa dor vem sem que eu faça qualquer coisa para
causá-la. A razão para isso é que minha alma não quer nunca
mais estar sem ela enquanto eu viver.
Os anseios que tenho, no entanto, são de não continuar
vivendo. Esses sentimentos me vêm porque é como se eu vivesse
sem qualquer alívio, pois o alívio vem somente a partir de uma
visão de Deus que só pode vir por meio da morte. Ainda que a
morte seja algo que eu nunca promova por mim mesma. Com
tudo isso, minha alma pensa que todos estão repletos de consolo
e encontram ajuda para seus problemas, menos eu! A angústia
que tudo isso cria é tão intensa que, se nosso Senhor não a ali-

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viasse, lançando-me em um transe – onde tudo se aquieta e a


alma descansa em grande calma e na satisfação de ouvir outras
coisas – seria inteiramente intolerável resistir por mais tempo.
Em outros momentos, certos desejos de servir a Deus vêm sobre
mim com tamanha intensidade que a experiência é indescrití-
vel e se faz acompanhar por certos tipos de dor quando contem-
plo quão inútil eu sou.
Nessas ocasiões, me parece que não há nada nessa obra,
nem morte, nem martírio, a que eu não pudesse resistir com fa-
cilidade. Esta convicção também vem em um lampejo e é resul-
tado de reflexão minuciosa. Estou inteiramente mudada e não
sei como recebi coragem tão grande. Sinto que deveria gritar do
alto da casa quão importante é que nenhum homem se satisfaça
com sua situação presente, ao ver as coisas maravilhosas que
Deus está preparado para nos dar (I João 3.1).
Repito: esses desejos são tão grandes que eu me sinto der-
reter dentro de mim, pois desejo aquilo que não posso conter. O
corpo então parece ser uma prisão por causa de sua inabilidade
de servir a Deus e da condição na qual estou. Não fosse pelo
corpo, a essa altura, e eu estaria apta a fazer coisas poderosas até
onde meu desejo me levasse. Mas porque me vejo sem qualquer
força para servir a Deus, sinto a dor dessa frustração. Ela é insu-
portável. A saída se encontra somente no deleite, na contem-
plação e no consolo de Deus.
Em outros tempos, quando esses anseios de servir a Deus
vêm sobre mim, desejo somente fazer penitência. Mas sou inca-
paz de fazê-la. Isso me seria de grande alívio, mas sou tão fraca
que não sou capaz de executá-la. Por causa de minha fraque-
za física, nada posso fazer. Ao mesmo tempo, suspeito que se
abrisse mão de tais desejos, seria incapaz de manter qualquer
moderação.
Às vezes, quando falo com outros, fico grandemente an-
gustiada; desejo apenas estar só. Isso me faz chorar abundan-
temente dentro de mim, pois é a solidão diante de Deus que

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88 VIDA DE ORAÇÃO

anseio viver. Em tempos assim, no entanto, eu talvez não leia


nem ore; o trabalho penoso das conversas superficiais em tem-
pos assim parece opressivo, me faz sentir escravizada, exceto
naquelas ocasiões quando a conversa se volta para assuntos que
dizem respeito à oração e à alma. Neles, encontro conforto e
alegria, embora até mesmo eles sejam demais para mim e eu
preferisse não ver ninguém; quero ir para onde possa estar só.
No entanto, este nem sempre é o caso, pois aprecio aqueles que
são meus diretores espirituais.
Em outras ocasiões, a obrigação de ter de comer ou dormir
me causa muita dor, pois reconheço que não posso privar-me
dessas coisas. Submeto-me então às suas necessidades para que
possa servir a Deus com mais eficiência. Mesmo essas tarefas eu
ofereço a Deus.
O tempo parece tão curto que nunca tenho tempo su-
ficiente para a oração, uma vez que nunca me canso de estar
sozinha com Ele. Gostaria sempre de ter mais tempo para lei-
tura, pois sempre gostei muito de livros. Leio muito pouco,
uma vez que nunca consigo mergulhar na leitura, pois, quando
começo a meditar no prazer que ela me proporciona, transformo-
a em oração, embora seja rara para mim a possibilidade de
fazer isso. Tenho muitas tarefas que não me proporcionam o
mesmo prazer que a leitura, contudo, elas precisam ser realiza-
das (Relações, I).
Outro tipo de oração que normalmente experimentei [por
Teresa] é certo tipo de ferimento. É como se uma flecha fosse
fincada através do coração ou através da própria oração. Isso
causa tal sofrimento ao coração que a alma é forçada a reclamar.
O sofrimento, no entanto, é também tão arrebatador que a alma
espera que ele nunca termine.
O sofrimento não pertence aos sentidos, nem a ferida é
física, uma vez que eles se dão dentro do próprio coração, sem
qualquer sintoma exterior de dor. Não posso compará-lo com
outras dores sem parecer ridícula. Não é algo sobre o qual eu

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consiga escrever ou falar, pois é impossível a qualquer um que


não o tenha experimentado pessoalmente compreendê-lo.
É suficiente, contudo, entender que as dores espirituais
são infinitamente mais agudas que as dores físicas. Eu me per-
gunto, portanto, como deve ser a intensidade dos sofrimentos
do inferno.
Em outras ocasiões, essa ferida de amor parece ter brotado
do mais profundo da alma. Grandes são os seus efeitos. Quan-
do nosso Senhor não a impõe, ela não tem qualquer utilidade,
seja o que for que possamos tentar induzir com ela. Nem pode-
mos evitá-la quando Sua Majestade decide impô-la. Mas os seus
efeitos são: um anseio por Deus, uma aversão ao pecado e uma
profunda consciência de como o homem foi roubado, pela que-
da de Adão, do propósito de Deus para o homem à Sua imagem
(Relações, VIII).
Durante a Oitava de Todos os Santos, tive dois ou três dias
de intensa angústia como conseqüência da reflexão que fiz sobre
meus grandes pecados. Também temi ser perseguida, o que não
tinha qualquer fundamento, exceto pelo fato de que acusações
maliciosas foram feitas contra mim. Assim, todas as minhas de-
cisões de sofrer qualquer coisa por Deus fracassaram. Embora
buscasse encorajar-me e agisse de acordo com essa busca, ela se
mostrou fútil, pois a dor jamais me deixou. Um conflito agudo
se estabeleceu.
Deparei-me então com uma carta que meu bom pai havia
escrito, na qual citava o apóstolo Paulo: Deus não permitirá que
sejamos tentados além de nossas forças (I Coríntios 10.13). Essa
mensagem me foi de grande consolo.
Mas na noite seguinte, li outra palavra do apóstolo Paulo
durante meu tempo de leitura, por meio da qual comecei a ser
confortada. Enquanto meditava, pensei em como tinha o Senhor
presente dentro de mim, de modo que verdadeiramente o via
como o Deus Vivo. Enquanto meditava nisto, Ele falou comigo,
e eu O vi no mais íntimo de meu ser. Ele estava bem dentro do

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meu coração. Ele falou comigo de modo audível. Suas palavras


foram: “Eu estou aqui, e só quero que vejas que sem mim não
podes fazer coisa alguma”. Fiquei imediatamente tranqüilizada,
e meus temores me deixaram (Relações, IX).
Em outra ocasião, isso voltou a ocorrer como um doloroso
teste [relacionado à fundação de um de seus conventos]. Quase
todas, no lugar onde eu estava vivendo, e os membros de minha
própria Ordem envolveram-se contra mim. Quando eu estava
em meio a essa angústia, e afligida por muitas situações de an-
siedade interior, nosso Senhor falou comigo, dizendo: “Do que
tens medo? Não sabes que eu sou o Todo-Poderoso? Farei por ti
aquilo que prometi”. E foi assim, conforme Ele prometera. Per-
cebi-me forte, e imediatamente senti como se pudesse enfrentar
provas ainda maiores em Seu serviço (Vida, XXVI).

A visão de Deus

Um dia, enquanto em oração, experimentei tamanha do-


çura em minha alma que comecei a pensar no quão pouco eu
merecia aquela bênção. Passei então a pensar que a única coisa
que merecia era a condenação no inferno.
Enquanto envolvida em meus pensamentos, fui carrega-
da pelo fogo, de um modo que não consigo descrever. Tive a
impressão de ter sido inundada e absorvida pela grandeza de
Deus. Naquela majestade imponente, recebi a verdade de um
determinado entendimento, que é a plenitude de toda a verda-
de, embora não possa explicar como, pois não vi coisa alguma.
A mim me foi dito que não vi por meio de quem a visão veio,
embora eu soubesse muito bem por intermédio de Quem ela
viera, a saber, a Própria Verdade. “Aquilo que estou fazendo por
ti não é pouco. É uma daquelas coisas para as quais tu Me deves
muito, pois todos os males do mundo vêm da ignorância acerca
das verdades da Santa Escritura em sua clara simplicidade, da
qual nem um til desaparecerá” (Mateus 5.18).

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 91

Eu pensava que todos os cristãos a aceitavam, e que eu


tinha de crer nela. Ele então disse, “Ah, minha filha, são pou-
cos os que Me amam de verdade. Se os homens Me amassem,
Eu não esconderia deles os Meus segredos. Tu sabes o que re-
almente significa Me amar de verdade? Significa admitir que
tudo é uma mentira que não está Me agradando. Agora, tu não
entendes isto claramente, mas entenderás depois, por causa do
benefício que isto trará à tua alma.”
Louvado seja o Senhor, esta palavra se cumpriu em mim,
pois, após essa visão, tenho olhado para as coisas que não são
destinadas ao serviço de Deus como vaidade e mentiras. Não
posso dizer o quanto estou convencida disso, nem o quanto la-
mento por aqueles que vejo estarem vivendo na escuridão, sem
conhecer a verdade. Recebi também outras bênçãos a partir
dessa experiência, algumas das quais posso descrever, e outras
que são indescritíveis.
Nosso Senhor, ao mesmo tempo, proferiu uma palavra es-
pecial da mais profunda graciosidade. Não sei como Ele fez, mas
fui cheia de tal modo que não posso descrever. Esse derramar
manifestou-se a mim na forma da mais extrema convicção e do
mais sincero propósito de observar com todas as minhas forças
tudo o que estava contido nas Santas Escrituras. Senti-me capaz
de transcender qualquer obstáculo para fazer isso.
Sobre essa verdade divina implantada em mim, não sei
como ela, que me enche de uma nova reverência por Deus,
permanece. Ela me inspira com um senso e um poder de Sua
Majestade de um modo que não consigo sequer começar a des-
crever. Posso avaliar que ela é muito elevada. Senti um grande
desejo de não falar sobre essas verdades profundas a ninguém;
elas em muito ultrapassaram tudo que poderia ser dito a seu
respeito aqui neste mundo. Assim, experimentá-las começou a
ser algo muito doloroso para mim.
A visão me deixou com um grande sentimento de ternura,
alegria e humildade. Pareceu-me que o Senhor agora me dava

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grandes coisas. Não tive nenhuma suspeita, qualquer que fosse,


de estar sendo iludida. Compreendi agora o que representa para
uma alma estar caminhando na verdade, na presença da Própria
Verdade. O que entendi foi simplesmente isto: Nosso Senhor
mesmo é a própria Verdade (Vida, XL).
Certa ocasião, enquanto orava, tive uma visão na qual vi
como as coisas são vistas em Deus. Não posso explicar, mas o
que vi permanece até hoje profundamente impresso em minha
alma. Foi um grande ato da graça de Deus dar-me essa visão.
Sinto-me envolta em indescritível confusão, vergonha e horror
sempre que me lembro daquela visão magnífica, e então penso
em meu pecado. Creio que se o Senhor quisesse ter me enviado
essa grande revelação de Si mesmo antes em minha vida, eu
teria deixado de cometer muitos pecados.
A visão foi tão delicada, tão sutil e espiritual, que minha
compreensão limitada sobre ela não consegue, mesmo nesta
distância de tempo, alcançá-la. A título de ilustração, ela ocor-
reu como segue.
Suponha que o Ser Supremo seja como um vasto globo de
luz, um globo maior que o mundo inteiro, e que todas as nossas
ações sejam observadas nesse globo que a tudo abarca. Foi algo
assim que vi, pois observei todos os meus atos imundos reunidos
e refletidos sobre mim a partir daquele mundo de luz. Digo-lhes
que foi a coisa mais deplorável e pavorosa de ver. Eu não sabia
onde me esconder, pois aquela luz resplandecente, na qual não
havia nenhuma escuridão, sustentava dentro dela o mundo in-
teiro, e os demais mundos.
Vocês perceberão que eu não consegui fugir de sua pre-
sença. Ó, que aqueles que cometem obras da escuridão pudes-
sem ser capacitados a vê-la! Ó, que não fizessem nada mais a
não ser ver que não há nenhum lugar secreto para Deus. Que
tudo o que fazem é feito diante dEle, e nEle! Ó, a loucura de
se cometer pecado bem na presença de tão grande Majestade,
diante de cuja santidade todo o nosso pecado é abominável.

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 93

Nessa luz, vi também Sua grande misericórdia de sofrer para


que uma pecadora como eu ainda pudesse viver (Vida, XL).
Ó Tu, Senhor de minh’alma e meu Eterno Bem, por que,
quando uma alma decide seguir-Te, e faz o seu melhor para
abandonar tudo por Ti, não aperfeiçoas de imediato o Teu amor
e a Tua paz dentro dessa alma?
Tenho, no entanto, falado tola e insensatamente, pois so-
mos nós que estamos em falta em relação à oração, Tu, jamais.
Somos lentos e reticentes em se tratando de entregarmos os
nossos corações a Ti. E Tu não permitirás que desfrutemos de Ti
sem que paguemos à altura por um bem tão precioso.
Não há nada em todo o mundo com que comprarmos a
disseminação do Teu amor em nosso coração, exceto o amor
do nosso próprio coração. Se, no entanto, fizéssemos o que po-
díamos, não nos apegando com nossos corações a nada neste
mundo, mas tendo o nosso tesouro e a nossa atenção somente
nas coisas do céu, essa bem-aventurança logo seria nossa, como
testificam todos os Teus santos, pois Deus nunca nega Sua pre-
sença àquele que paga esse preço e que persevera em buscá-lo.
Ele irá, pouco a pouco, agora e sempre, fortalecer e restaurar
essa alma até que ela seja por fim vitoriosa.
Se aquele que entra nesse caminho só comete violência
suficiente contra si mesmo, não somente irá ao Céu como não
irá sozinho, pois levará outros consigo. Deus dará a ele, assim
como a um bom líder, aqueles que o seguirão. Só não permita
que nenhum homem de oração espere desfrutar de sua plena
recompensa aqui. Ele deve permanecer um homem de fé e de
oração até o fim.
Que ele decida, portanto, qualquer que seja seu senso de
aridez ou de falta de devoção, não sucumbir completamente sob
sua cruz. Virá o dia quando receberá todas as suas petições em
uma grande resposta, e todos os seus salários em uma grande
recompensa, pois serve a um bom Mestre que cuida e zela por
ele. E que ele nunca se entregue aos maus pensamentos, mesmo

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que brotem no meio de sua oração, a exemplo de São Jerônimo,


quando foi atormentado no deserto.
Mas todas essas armadilhas da alma têm sua recompensa
certa reservada a elas. E eu posso lhes assegurar, como alguém
que sabe o que está dizendo, que uma simples gota d’água da
fonte de água viva de Deus sustentará e recompensará você por
outro dia e outra noite de sua vida de oração constante e para
toda a vida.

A Oração do Senhor

Não lhes darei meditações sobre A Oração do Senhor,


uma vez que, na multiplicidade dos livros, às vezes parece que
perdemos toda a devoção por essa oração. É importante que
nunca nos esqueçamos dela.
É notório que, quando um mestre ensina algo, desenvolve
um amor por seus discípulos, de modo que aquilo que ele ensina
inspirará e alegrará o discípulo. É também útil prestar atenção
àquilo que está sendo ensinado. Nosso Pai celestial age para
conosco do mesmo modo.
Não se preocupem, portanto, com os temores que os ho-
mens podem representar [como orar, como alguns teólogos ar-
gumentavam no tempo de Teresa], ou com os perigos que colo-
cam diante de vocês. Considerem que estes não são tempos nos
quais deveríamos crer em todo o mundo, mas somente naqueles
que vocês observam estarem caminhando em conformidade
com a vida de Cristo (Caminho de Perfeição, XXI).
As orações mentais e vocais pertencem uma à outra. Se
alguém lhe disser que vocês podem recitar o Pai Nosso e ao
mesmo tempo ficar pensando no mundo, me calarei com triste-
za. Pois se se colocassem diante de um Senhor tão grande, seria
apropriado que percebessem a Quem estão se dirigindo, que Lhe
prestassem o devido respeito. Como podemos nos dirigir a um
rei, chamá-lo de “sua majestade”, ou conhecer a etiqueta quan-

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 95

do nos dirigimos a um nobre, a menos que estejamos familiari-


zados com sua posição e dignidade
O que, então, é isto Ó meu Soberano! Como tolerar algo
assim! Pois Tu és o meu Deus, o Rei Eterno, cujo Reino não é
emprestado de ninguém! Devo, portanto, meditar sobre a gran-
deza de Deus, mesmo quando oro a Ele silenciosamente (Cami-
nho de Perfeição, XXII).
Sobre a oração, também preciso enfatizar-lhes que, para
os iniciantes, depende muito de uma firme resolução. Há muitas
razões para isto, mas mencionarei apenas algumas.
A primeira é que, uma vez que Deus nos tem dado tanto,
e uma vez que continua a nos abençoar, é apropriado estarmos
decididos a levar Sua pessoa a sério, e assim, oferecermos nossas
orações de coração. Se damos tempo a outros, o Senhor merece
menos que eles? Não nos deixemos levar pela ilusão de que o
nosso tempo nos pertence, antes o entreguemos inteiramente
a Ele.
A segunda razão para a determinação é a de que o Demô-
nio tem muito menos poder para nos tentar quando estamos em
oração. Ele tem muito medo de almas resolutas, pois sabe por
experiência própria que estas lhe causam grande dano.
Uma terceira razão é a de que a alma resoluta luta com
maior coragem. Ela sabe que, aconteça o que acontecer, não
deve recuar (Caminho de Perfeição, XXIII).
Quando fazemos a oração de nosso Senhor, Deus nos im-
possibilita de esquecer Quem esse Mestre que nos ensinou esta
oração realmente é [Veja Mateus 6.9-13]. Estejamos também
atentos no sentido de orarmos com amor e com vontade, a fim
de que nos beneficiemos dessa atitude.
Sua Majestade também nos ensina que essa oração deve
ser feita em isolamento, pois Ele também orava assim. Ele assim
fazia, no entanto, não por causa de Suas próprias necessidades,
mas para nossa instrução. Lembrem-se daquilo que já disse, que
não podemos orar a Deus e ao mundo ao mesmo tempo. Estare-

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96 VIDA DE ORAÇÃO

mos fazendo assim, no entanto, se pensarmos em todo o tempo


naquilo que os outros pensam de nossas orações, ou se nos dis-
trairmos ou vagarmos sem rumo em nossas imaginações disper-
sas (Caminho de Perfeição, XXVI).
Considerem as palavras que Sua boca divina profere, pois
através das primeiras palavras que forem ditas aprenderão acer-
ca do grande amor que Ele tem por vocês. Não é pequena a bên-
ção de perceber que um Mestre ama Seus discípulos (Caminho
de Perfeição, XXVI).
“Pai nosso que estás nos céus”. Ó meu Deus! Quão legi-
timamente Tu pareces ser o Pai de um Filho assim, e quão bem
Teu Filho parece ser o Filho de um Pai assim! Bendito sejas para
todo o sempre! Concluir com esta percepção seria maravilhoso,
mas este é o modo como a oração começa. Bem no princípio,
Tu, portanto, enches nossas mãos e nos presenteias com bênçãos
assim. Isto é suficiente para ocupar todos os nossos pensamentos
a ponto de não conseguirmos dizer mais nada.
Ó como a contemplação deveria assumir o seu lugar, mi-
nhas filhas! Que razão maior pode ter a alma para entrar no seu
interior a fim de que Cristo faça com que ela entenda como o
Céu, onde o Pai habita, deve ser um lugar glorioso! Deixemos,
pois, esta terra, minhas filhas, uma vez que um favor como este
será desvalorizado se permanecermos aqui.
Ó Filho de Deus e meu Senhor! Como é possível que nos
tenha dado tanto nesta primeira palavra! Como é possível que
Tu não somente tenhas Te humilhado a ponto de unir-Te co-
nosco em nossas petições e Te tornado nosso Irmão, a despeito
de toda a nossa vileza, mas também que nos tenha dado, em
nome do Pai, tudo que pode ser dado? Tu fizeste assim porque
quiseste que Ele nos adotasse como filhos. Tua palavra jamais
falhará. Ele foi obrigado por Ti a manter Sua palavra, o que não
é coisa pouca.
Como um Pai, é paciente conosco, por mais ofensivos
que sejam os nossos pecados, se retornarmos, como o filho pró-

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digo retornou. Ele nos perdoa e consola como um Pai o faria.


Ele deve, é claro, ser melhor que qualquer pai terreno, uma
vez que não pode haver nada nEle que não seja perfeito. Além
de tudo isso, é Sua vontade nos fazer parceiros e co-herdeiros
contigo! Assim, agora, filhas, vocês não acham que Ele é um
bom Mestre, que, a fim de nos instigar a aprendermos aquilo
que ensina, começa nos dando tamanho favor? (Caminho de
Perfeição, XXVII).
Considerem a seguir aquilo que o Mestre tem a dizer:
“Que estás no céu.” Vocês acham que é de pouca importância
saber sobre o Céu, onde nosso Pai Santíssimo se encontra? É
muito importante, no entanto, saber isto por causa de nossos
pensamentos errantes. Saber isto é amarrar juntas a nossa com-
preensão e a nossa contemplação da alma. Vocês já sabem que
Deus está em toda parte. Agora, é claro que, onde está a corte,
ali também está o Rei. Assim, onde Deus está, ali também está
o Céu. Sem qualquer dúvida, vocês podem saber que onde Sua
Majestade está, ali está também a Sua glória.
Mas ponderem também nas palavras de Agostinho. Ele
buscou Deus em muitos lugares e veio por fim a encontrá-lO
dentro de si. Quão vital é para uma alma atormentada perceber
esta verdade de que não há nenhuma necessidade de falar alto,
pois, por mais baixo que falemos, Ele está perto o suficiente para
ouvir. Nem precisamos de asas para voar e buscá-lO, pois pode-
mos nos aquietar na solidão e contemplá-lO dentro de nós.
Lembremos que existe dentro de nós um palácio imenso,
cujo edifício magnificente é de ouro e de pedras preciosas. Ele é
tudo que deveria ser para um Senhor assim. Ele se assenta sobre
um trono de enorme valor: o seu coração.
Isso pode parecer ridículo à primeira vista! Mas o que é de
admirar é que Aquele que poderia encher, por Sua imensidão,
milhares de mundos encerrou-se em um lugar tão pequeno! Ele,
no entanto, teve prazer em confinar-se dentro do útero de uma
virgem sagrada.

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98 VIDA DE ORAÇÃO

Ele, sendo Senhor, nos traz liberdade; e ao amar-nos tan-


to, Ele se reduz à nossa natureza. Quando uma alma começa a
conhecê-lO, Ele não se revela por inteiro de uma vez, a fim de
que a alma não se acabrunhe por ser tão pequena e ainda assim
ser capaz de conter um Deus tão grande. Mas, por degraus, Deus
amplia o coração dessa alma de acordo com a necessidade que
observa. Eu, portanto, digo que Ele traz consigo liberdade, pois
tem o poder de ampliar esse palácio.
O importante é que nos entreguemos a Ele com uma
atitude decisiva e completa, a fim de que possa fazer o que
quiser de nossas vidas. Este é o Seu prazer, e Sua Majestade
tem suas próprias razões. Não O recusemos sob nenhuma hi-
pótese. Uma vez que não nos forçará, Ele só recebe aquilo que
Lhe entregamos. Ele, contudo, não Se entrega inteiramente
a nós se não nos entregamos inteiramente a Ele (Caminho de
Perfeição, XXVIII).
Consideremos agora o que mais Ele diz em Sua oração. O
que pede ao Pai? Até mesmo a pessoa mais estúpida irá consi-
derar aquilo que irá pedir de antemão a um personagem muito
importante. Ela também não considera aquilo de que pode pre-
cisar antes de pedir? Tu não poderias, Jesus, ter pedido em uma
palavra tudo que porventura pudéssemos necessitar? Assim, não
poderias ter pedido, “Dá-nos, Pai, aquilo que nos convém,” uma
vez que, para Aquele que compreende todas as coisas tão bem,
nada parece tão necessário?
Ó Eterna Sabedoria! Entre Ti e Teu Pai, isso teria sido su-
ficiente, e assim Tu oraste no jardim. Tu revelaste Tua vontade
e mostraste a Tua submissão. Renunciaste a Ti mesmo em prol
da vontade do Pai. E sabes que não temos renunciado tanto
por Ti como renunciaste pelo Pai, pois nossa natureza é tal que,
a menos que recebamos aquilo que desejamos, não aceitaría-
mos naturalmente aquilo que Deus nos daria. Embora isso possa
parecer o melhor a longo prazo, nunca pensamos que seremos
ricos, a menos que tenhamos dinheiro em nossos bolsos.

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 99

Ó Senhor, por que a nossa fé é tão inativa e tão insensí-


vel? É tão vital, portanto, que saibamos aquilo que estamos fa-
zendo quando dizemos, “Pai nosso”. Prestem atenção para que,
quando Ele lhes atender o pedido, vocês não o lancem de volta
em Sua face. Tomem cuidado com aquilo que dizem a Deus.
Nosso bom Jesus nos instrui a dizermos estas palavras nas
quais pedimos que um Reino venha a nós: “Santificado seja o
Teu nome: Venha o Teu reino”.
É necessário que compreendamos aquilo que estamos pe-
dindo quando dizemos “Teu Reino”. Sua Majestade, sabendo
que somos incapazes de santificar, louvar, exaltar ou glorificar
este Santo Nome do Pai Eterno de maneira apropriada, estabe-
leceu para nós o Seu Reino aqui na terra. Por isso Jesus colocou
esses dois pedidos juntos [Teresa acredita que a contemplação,
a “Oração de Quietude”, é o dom do Reino] (Caminho de Per-
feição, XXX).
Nosso Senhor começa a tornar conhecido o fato de que
ouviu nossas orações e que já começou a nos dar Seu Reino
aqui, a fim de que possamos verdadeiramente louvar e santi-
ficar Seu nome e nos empenhar em ajudar todos os homens a
fazer o mesmo. Nosso Senhor entrega Seu reino nas mãos deles
[por intermédio do dom da Oração de Quietude]. No entanto,
nos fazemos surdos porque amamos muito ouvir a nós mesmos
falando, e repetimos tantas orações vocais com muita pressa,
como alguém que corre para conseguir um emprego. Fazemos
isto todos os dias. Assim, quando nosso Senhor entrega o Rei-
no em nossas mãos, não o aceitamos, imaginando que fazemos
melhor com essas orações vocais. Como conseqüência, muitos
podem perder um grande tesouro.
É, portanto, melhor dizer uma palavra do “Pai Nosso”
do que repeti-lo sem refletir sobre seu verdadeiro significado
ou realmente compreendê-lo. Aquele a Quem vocês oram está
muito perto. Ele não deixará de ouvi-las. Assim, vocês podem
verdadeiramente louvar e santificar Seu nome porque agora

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100 VIDA DE ORAÇÃO

glorificam a Deus como se pertencessem à Sua casa; e O louvam


com paixão e vontade ainda mais ardentes. É como se não con-
seguissem deixar de conhecê-lO melhor depois que provaram
“o quão precioso Ele é”. (Caminho de Perfeição, XXXI).
Tendo nos concedido tamanho favor ao nos tornar seus
irmãos, consideremos agora aquilo que o Filho deseja que en-
treguemos a Seu Pai, aquilo que Ele nos oferece e aquilo que Ele
deseja de nós.
Uma vez que nos deste Teu Reino, meu Senhor, Tu não
nos tens privado de nada. E nós entregamos tudo o que po-
demos quando dizemos as palavras a seguir: “Seja feita a Tua
vontade assim na terra como no céu”. Tu fizeste bem, ó Senhor,
em perguntar isto, de modo que oferecemos a Ti aquilo que Tu
já deste a nós para entregar. Se não fosse assim, seria impossível
fazê-lo. Uma vez que Teu Pai nos oferece o Seu Reino, sei que
poderemos, pela fé, dar a Ele aquilo que Tu ofereces a nós, pois,
quando o Céu se tornar a terra, será possível realizar a Tua von-
tade em mim. Sem isto, em uma terra tão estéril como a terra
que sou, não sei de que outra maneira isso seria possível.
Desejo lembrar-lhes qual é a vontade dEle. Não se pre-
ocupem que ela seja dar a vocês riquezas, prazer e honras, ou
qualquer vantagem terrena. Nosso Senhor tem por vocês um
amor maior do que o amor que faz essas coisas. Ele valoriza e
muito aquilo que vocês dão a Ele, e assim deseja recompensá-
las amplamente. Mesmo quando estão vivas, Ele lhes dá de Seu
Reino.
Querem ver aquilo que Ele faz aos que oram “seja feita a
Tua vontade” com sinceridade? Perguntem a Seu glorioso Filho,
que disse isso quando orou no jardim. Ao proferir Sua oração
com determinação e de todo o coração, a resposta foi uma inun-
dação de sofrimento físico, dores e perseguições que, por fim,
culminaram com Sua vida doada em uma cruz. Observem aqui,
portanto, aquilo que Deus dá àqueles que mais ama. É assim que
sabemos o que é conhecer a Sua vontade.

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Nós então oramos, “seja feita a Tua vontade. Que ela se


cumpra em mim, do modo que quiseres. Se desejares que ela
seja cumprida por intermédio de aflições, concede-me apenas a
força e deixa que venham. Sejam perseguições, doença, desgra-
ça e pobreza, vejam, aqui estou. Não virarei meu rosto, ó meu
Pai! Nem é apropriado que eu dê minhas costas a elas todas,
pois o Teu Filho ofereceu, em nosso favor, tudo isso. Por que eu
fracassaria em agir do mesmo modo? Mas concede-me o favor
de dar ao Teu Reino minha capacidade de fazer a Tua vontade.
Dispõe-me inteiramente a Ti, de acordo com a Tua vontade”
(Caminho de Perfeição, XXXII).
Conhecendo nossas fraquezas, que quase sempre nos con-
vencemos a crer que não sabemos a vontade de Deus porque so-
mos muito fracos, e sendo tão misericordioso, Ele percebeu que
um remédio se fazia necessário. Assim, pediu em nosso favor a
Seu Eterno Pai por este pão celestial. Ele percebeu que fazer a
vontade de Deus sem essa provisão era muito difícil para nós,
pois, diga a alguém que vive com fartura e é tratado suntuosa-
mente que a vontade de Deus é que sejamos moderados, a fim
de que os que estão morrendo de fome possam ter algum pão, e
ele dará mil desculpas por não conhecer a vontade de Deus. Ou
diga a alguma pessoa perversa que ame seu próximo como ama a
si mesma, e ela irá impacientemente dar todas as desculpas por
não conhecer a vontade de Deus.
Nosso bom Jesus, portanto, viu a nossa necessidade e nos
deu esta petição: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Ele pe-
diu por mais nesta petição do que em todo o resto, porque sabia
que o fariam sofrer e sabia das terríveis afrontas que teria de
suportar. E quantas afrontas são hoje oferecidas a Ele no Santís-
simo Sacramento? Sua Majestade assim nos deu este alimento,
o maná de Sua humanidade, para que jamais venhamos a ter
fome ou morrer de inanição (Caminho de Perfeição, XXXIV).
Nosso bom Mestre, observando que fazer Sua vontade fica
mais fácil para nós por intermédio desse alimento espiritual,

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implora a Ele agora que perdoe nossas dívidas, assim como per-
doamos aos nossos devedores. Continuando em Sua oração, Ele
usa estas palavras: “e perdoa as nossas dívidas, assim como per-
doamos aos nossos devedores”. Notem que Ele não diz, “assim
como perdoaremos”. Ao contrário, já tendo renunciado em prol
da vontade de Deus e tendo recebido o grande dom da petição
anterior, essa pessoa já perdoou às outras.
Quem quer que já tenha dito, “seja feita a Tua vontade”,
já deve ter sido perdoado também. Mas quem quer que esteja
decidido em oração a perdoar e se levanta dela sem ter perdoado,
não pensa muito sobre a oração. De fato, o mais autêntico teste
de nossa oração é se fazemos ou não a vontade de Deus, incluindo
o espírito de perdão (Caminho de Perfeição, XXXVII).
Aqueles, no entanto, que se elevam aos mais altos pa-
tamares espirituais necessitam mais que nunca vigiar para não
cair. Para que não sejam enganados sem que percebam, Ele
acrescenta esta petição aos que estão vivendo nesta terra de
exílio: “e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do
mal.” O Diabo pode nos causar muito dano, sem que perceba-
mos, ao fazer-nos crer que temos virtudes que não possuímos.
Este engano é uma terrível moléstia, pois passamos a não ad-
quirir a virtude que pensamos já possuir. E assim prosseguimos,
embalados por uma falsa segurança, e caímos na vala da qual
não conseguimos sair. Trata-se de uma tentação muito perigosa.
O melhor remédio contra ela é a oração, a súplica a nosso Pai
Eterno, para que não nos deixe cair em tentação (Caminho de
Perfeição, XXXIX).
[Teresa então fala de outras tentações, tais como pensar
que somos realmente pobres, ou muito humildes, quando esta-
mos nos enganando a nós mesmos].
Não deixe que a sua alma se esconda em um canto, pois,
ao invés de adquirir mais santidade, ela contrairá muitas imper-
feições, através das quais o Diabo a possuirá em todos os seus
caminhos. Aqui, portanto, vocês observam como essas duas vir-

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ORAÇÃO, COMO FÉ E FERVOR POR DEUS SOMENTE 103

tudes, o amor e o temor de Deus, nos capacitam a viajar calma


e quietamente. Como o medo se apresenta antes, não devemos
viajar descuidadamente, pois, enquanto vivermos, não pode-
remos desfrutar de segurança; seria muito perigoso. Nosso Ins-
trutor compreendeu, porque, ao fim de Sua oração, Ele disse a
Seu Pai: “mas livra-nos do mal”. Ele entendeu muito bem nossa
necessidade disso (Caminho de Perfeição, XLI).
Ó meu Deus e meu Senhor, livra-me agora de todo mal,
e agrada-Te de conduzir-me até onde estão todas as coisas boas.
O que podemos esperar deste mundo, aqueles dentre nós a
quem Tu tens dado algum conhecimento do mero nada que é
este mundo, e aqueles dentre nós que têm uma fé viva naquela
glória que Teu Pai celestial tem reservado para eles? Pedir por
isto com intensa vontade e uma firme resolução de desfrutar de
Deus é um sinal seguro para quem se dedica à oração: saber que
os favores que recebe em oração vêm de Deus. Conseqüente-
mente, que aqueles que os possuem também os tenham em alta
estima.
Ele me fez compreender as grandes coisas que pedimos
quando fazemos esta oração celestial. Que Ele seja para sempre
bendito, uma vez que é certo que nunca imaginei que esta ora-
ção incluísse tão grandes mistérios. Vocês já observaram como
ela inclui em si mesma o caminho da perfeição, desde o início,
até quando Deus recolhe a alma inteira para Si. Ele faz com
que a alma beba abundantemente da fonte de águas vivas nesta
oração. Assim, sou incapaz de ir mais adiante (Caminho de Per-
feição, XLII).

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Capítulo IV

A vida de oração como


um jardim

I. Introdução

A fim de fazer grandes avanços em oração e poder subir às


Mansões que desejamos, devemos lembrar que a inicia-
tiva da oração não consiste em pensar muito, mas em amar muito.
Façam, portanto, qualquer coisa que as estimule a amar mais.
Talvez não saibamos o que seja o amor. Não me pergunto
sobre o amor, pois ele consiste não em ter grandes deleites, mas
em ter decisões e desejos maiores de agradar a Deus em tudo,
além do empenho em não ofendê-lO. O amor reside em im-
plorarmos a Ele que promova a honra e a glória de Seu Filho e
estenda os limites da igreja.
Estes são os sinais do amor. Não imaginem que ele con-
siste em não pensar em mais nada, ou que tudo está perdido se
vocês tiverem algumas poucas distrações (Castelo Interior, IV).
Um principiante em oração deve olhar para si como quem
está fazendo um jardim no qual nosso Senhor tenha prazer, ain-
da que em um solo estéril e cheio de ervas daninhas. Sua Ma-
jestade arranca as ervas daninhas para substituí-las por plantas
boas. Vamos supor que isto já esteja feito quando uma alma
decidiu dedicar-se à oração e começou a praticá-la.

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106 VIDA DE ORAÇÃO

Como bons jardineiros, temos, com a ajuda de Deus, de


zelar para que a plantas cresçam. Devemos regá-las cuidadosa-
mente para que não morram, mas produzam flores. Estas, por sua
vez, produzirão muitas fragrâncias que são agradáveis ao nosso
Senhor e farão com que Ele venha ao jardim, para o Seu deleite,
e tenha prazer de estar no meio dessas virtudes.
Vejamos agora como este jardim deve ser regado. Quantos
problemas isso nos trará? Será o ganho maior que os problemas,
ou quanto tempo ele nos tomará?
Parece-me que o jardim deve ser regado de quatro manei-
ras. A primeira é tirando água do poço, o que dá muito trabalho.
A segunda é através de uma roda d’água, a maneira por meio da
qual eu às vezes tenho apanhado água. É um modo menos tra-
balhoso que o primeiro, e que obtém mais água. O terceiro é por
meio de um riacho ou de um córrego, através do qual o jardim
é muito melhor regado, pois o solo é mais plenamente saturado
e não há necessidade de regá-lo com tanta freqüência. Além
disso, o trabalho do jardineiro é muito menor. E finalmente, por
meio da chuva, o próprio Senhor rega o jardim sem qualquer
trabalho de nossa parte. Este modo é incomparavelmente o me-
lhor de todos sobre os quais falei.
Olhemos agora para as aplicações desses quatro modos de
irrigação que mantêm o jardim. Sem água ele morre. A com-
paração de certa maneira me ajudará a explicar os quatro graus
de oração aos quais nosso Senhor, em Sua bondade, tem oca-
sionalmente elevado minha alma. Que Ele graciosamente faça
com que eu possa tanto falar quanto ser útil a um daqueles que
me mandaram escrever.
Nosso Senhor me elevou em quatro meses a um patamar
mais elevado do que eu havia alcançado em dezessete anos! Ele
o preparou melhor do que eu, e, portanto, é o Seu jardim, sem
trabalho de Sua parte, irrigado por esses quatro meios de irriga-
ção, embora o último meio seja somente gota a gota. Mas ele
está crescendo de tal modo que breve, com a ajuda de nosso

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 107

Senhor, Ele será absorvido naquele lugar. E será um prazer para


mim se Ele achar minha explicação tão absurda que ria dela.

II. Regando a partir do poço

Aqueles que são iniciantes na oração são os que retiram


a água do poço. Este é um processo que, como eu disse, é muito
trabalhoso, pois eles devem se desgastar na tarefa de manter os
sentidos concentrados. Trata-se de um grande labor, porque os
sentidos têm até aqui estado acostumados à distração.
É necessário aos iniciantes que se acostumem àquilo que
ouvem ou vêem, e que coloquem essas coisas de lado duran-
te o tempo de oração. Eles devem estar sozinhos para refletir
sobre sua vida passada, embora todos devam fazer isso muitas
vezes, tanto os principiantes quanto os mais avançados. Todos,
no entanto, não devem fazê-lo tão igualmente, como mostrarei
a seguir.
Iniciantes sofrem muito no princípio porque não estão
convencidos de que estão arrependidos de seus pecados. Eles,
contudo, estão, porque decidiram sinceramente servir a Deus.
Eles devem tentar meditar na vida de Cristo, e a compreensão
com relação a isto é desgastante. Assim, podemos avançar e
muito por nós mesmas, pela graça de Deus, pois, sem isso, como
todas sabemos, não conseguiríamos ter sequer um pensamento
bom.
Isto é começar a tirar água do poço. Que Deus permita
que haja água dentro dele! Isto, no entanto, não depende de
nós. Nós estamos retirando a água, fazendo aquilo que podemos
para regar as flores. Deus é tão bom que, por razões que somente
Sua Majestade conhece, talvez para que nossa necessidade seja
ainda maior, deseja e determina que o poço esteja seco. Nessa
situação, Ele mesmo preserva as flores sem água enquanto nós,
como bons jardineiros, fazendo tudo o que está ao nosso alcan-
ce, descobrimos que nossas virtudes crescem. Por água, aqui,

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quero dizer lágrimas. E se não houver nenhuma, então quero


dizer ternura e um sentimento interior de devoção.
Mas o que alguém fará ali quando vir que, depois de mui-
tos dias, não há nada a não ser sequidão, aversão, repugnância e
muito pouca inclinação para ir ao poço apanhar água?
Esse alguém poderia desistir de cuidar do jardim se não se
lembrasse de que tem de servir ao Senhor do jardim. Desistiria
se não confiasse que seu serviço não foi em vão, e se não espe-
rasse algum ganho por um labor tão grande como o de descer o
balde até o fundo do poço tantas vezes, para puxá-lo sem água
dentro. Pode acontecer de ele muitas vezes não conseguir mo-
ver seus braços para esse propósito ou não ter um único pensa-
mento bom. Trabalhar com a compreensão, portanto, é como
apanhar água de um poço.
Nessa situação, o que fará o jardineiro?
Ele deve se alegrar e ser confortado, reconhecer que esse
é o maior privilégio que poderia ter: trabalhar no jardim de tão
grande Imperador! Uma vez que sabe que agrada ao Senhor, ele
lhe dará muito louvor, pois o Mestre confiou-lhe o jardim por-
que observa que, sem nenhuma reclamação, ele é tão diligente
em relação àquilo que lhe foi pedido que fizesse. Esse jardineiro
ajuda Cristo a carregar a cruz e reflete durante toda a sua vida
que o Senhor vive. Ele não deseja o Reino do Senhor aqui em-
baixo ou mesmo abandona a oração. Ao contrário, está deter-
minado, mesmo que essa sequidão dure por toda a sua vida, a
não deixar que Cristo caia com a cruz.
O tempo virá quando ele será pago de uma vez por todas.
Que ele então não tema que seu trabalho tenha sido fútil, pois
serve a um bom Mestre, cujos olhos estão sobre ele. Que ele
não se distraia com pensamentos maus, mas lembre que Sata-
nás também sugeriu esses mesmos pensamentos a São Jerôni-
mo no deserto. Esses trabalhos têm a sua recompensa, como
eu mesma posso afirmar, pois sou alguém que os executou por
muitos anos. Quando apanhei uma única gota de água de Seu

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 109

poço bendito, considerei que isso se deveu à misericórdia de


Deus.
Assim, sei quão laboriosos são esses esforços, e que exi-
gem uma coragem maior que muitas outras neste mundo. Mas
tenho observado claramente que Deus não necessita deles sem
uma grande recompensa, mesmo nesta vida. Pois é certo que,
em uma hora, durante a qual nosso Senhor permitiu que eu
provasse de Sua doçura, todas as ansiedades que tive de carregar
quando perseverava em oração, posteriormente, me pareceram
perfeitamente recompensadas.
É minha opinião que, no princípio, e no que vem depois
dele, o Senhor quase sempre deseja dar esses tormentos e muitas
outras tentações eventuais a fim de provar aqueles que O amam e
descobrir se eles beberão o cálice; Ele busca aqueles que O ajudarão
a carregar a cruz antes de confiar-lhes responsabilidades maiores.
Eu creio ser para o nosso bem que Sua Majestade nos con-
duz deste modo, a fim de podermos compreender perfeitamente
quão indignos realmente somos, pois as graças que Ele nos con-
cede mais tarde são de grande valor. Ele deseja que conheçamos
por experiência própria a nossa indignidade, de modo que aqui-
lo que aconteceu a Lúcifer não aconteça conosco.
Ó meu Senhor, aquilo que Tu fazes é sempre visando a um
bem maior para a alma que, Tu sabes, já é tua e deseja seguir-Te
onde quer que fores, até mesmo à morte de cruz. Teu poder nos
é dado para ajudar-nos a carregar essa cruz.
Aquele que reconhece em si essa atitude resoluta nada
tem a temer. Não, pessoas espirituais assim não têm nada a te-
mer, pois quem já foi elevado a esse plano de desejar conversar a
sós com Deus e abandonar os prazeres do mundo não tem razão
para se sentir angustiado. A maior parte da obra já foi feita. As-
sim, dêem louvor a Sua Majestade por isso, e confiem em Sua
bondade, que nunca faltou àqueles que O amam.
Fechem os olhos da imaginação, portanto, e não per-
guntem por que Ele dá devoção a determinada pessoa em um

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110 VIDA DE ORAÇÃO

período de tempo tão curto e nenhuma a mim, depois de tan-


tos anos. Creiamos, somente, que tudo isso concorre para o
nosso bem. Deixemos que Sua Majestade nos guie na direção
que Ele desejar. Não pertencemos a nós mesmas; pertencemos
a Ele.
Ele nos mostra misericórdia suficiente quando é Seu pra-
zer que estejamos dispostas a cavar em Seu jardim e estar mais
próximas do Senhor desse jardim. Ele, certamente, está perto de
nós. Se for de Sua vontade que algumas dessas plantas e flores
devam ser regadas e crescer e outras não recebam nenhum tra-
tamento, que tenho eu a ver com isso?
Ó Senhor, cumpre a Tua vontade! E não deixes que mi-
nha virtude se perca. Se me deste alguma, isso é fruto de Tua
bondade. Desejo sofrer porque Tu, Senhor, sofreste. Cumpre de
todas as maneiras a Tua vontade em mim. Que nunca seja a Tua
vontade que o dom de algo tão precioso como o Teu amor seja
dado a alguém que Te sirva somente por causa de consolo.
É muito importante que se note, e eu digo isto porque sei
por experiência própria, que a alma que começa a andar nesse
caminho da oração resoluta, a despeito da alegria ou da aflição,
de grande ternura ou da falta de consolo, essa alma já trilhou
boa parte do caminho. Independentemente do quanto tenha
tropeçado, ela não deve ter medo de que virá a recuar.
O edifício dessa alma foi erguido sobre um sólido funda-
mento. Isto é verdade porque o amor de Deus não é feito de
lágrimas nem do deleite da ternura, embora em grande parte a
desejemos e encontremos nisto conforto. A vontade de Deus,
no entanto, consiste em servir com justiça e coragem de alma,
além de humildade. Sem certo serviço, parece-me que estare-
mos recebendo tudo e dando nada.
Quanto a uma pobre mulher como eu, fraca e sem forças,
parece necessário que seja conduzida ao consolo como Deus
está fazendo agora, a fim de que eu possa suportar certas aflições
que Sua Majestade entende que devo sofrer.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 111

Irrita-me, no entanto, quando servos de Deus, homens


proeminentes, cultos e eruditos, fazem muito estardalhaço por-
que Deus não lhes concede devoção. Não quero com isto dizer
que não deveriam aceitá-la se Deus a desse a eles, ou que não
deveriam valorizá-la, uma vez que Sua Majestade entende que
isto seja apropriado. Mas quando eles não tiverem devoção,
não devem fatigar-se. Devem compreender que, uma vez que
Sua Majestade não a concedeu, ela não é necessária. Eles de-
veriam ser mestres de si mesmos. Deveriam crer que seu desejo
por consolo é falso. Tenho observado e experimentado isso. Eles
deveriam crer que esse estardalhaço denota imperfeição, falta
de liberdade de espírito e a ausência de coragem para alcançar
algo.
Não estou dizendo tudo isso para os iniciantes, embora
enfatize a importância de que deveriam ter liberdade e determi-
nação desde o princípio. Estou dizendo isso aos outros, pois há
muitos que começam, mas nunca chegam ao fim. Creio que isso
se deve em grande parte ao fracasso em abraçar a cruz desde o
início. Pensando que não estão fazendo nada, eles se aborrecem.
Quando o intelecto cessa de trabalhar, não conseguem tolerar
isso. Mas é aí, talvez, então, que sua vontade esteja de fato sen-
do fortalecida e reforçada, embora não se dêem conta do que
está acontecendo.
Não devemos jamais pensar que o Senhor esteja indife-
rente acerca dessas inabilidades. Muito embora elas nos pare-
çam falsas, na verdade não são. Sua Majestade já conhece a
nossa angústia e nossa natureza caída melhor que nós, e sabe
que essas almas desejam pensar nEle e amá-lO. E é esta deter-
minação que Ele deseja.
As outras aflições que infligimos a nós mesmas não têm
outro propósito senão o de inquietar a nossa alma. E se ela an-
tes era incapaz de passar uma hora em oração, agora continuará
por quatro. Essa incapacidade é quase sempre fruto de alguma
desordem física.

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112 VIDA DE ORAÇÃO

Tenho bastante experiência neste assunto de aflição físi-


ca, e sei que aquilo que digo é verdadeiro porque o considerei e
discuti cuidadosamente com pessoas espirituais. Somos tão mi-
seráveis que nossas pobres e aprisionadas almazinhas também
compartilham das misérias do corpo. Assim, mudanças no cli-
ma e os ciclos de nossa condição física quase sempre acabam
por afetar a alma. As almas não conseguem fazer aquilo que
desejam, pois estão constantemente sofrendo. Em ocasiões as-
sim, quanto mais forçamos a alma, maior é o dano e mais tempo
ele dura. Desse modo, devemos ter discernimento a fim de des-
cobrir se a saúde frágil seria ou não a causa. A pobre alma não
deve ser reprimida.
Que aqueles que sofrem com isso possam entender que es-
tão fisicamente doentes. Uma mudança deveria ser feita no ho-
rário da oração, e ser mantida por alguns dias. Que eles sofram
essa experiência de deserto da melhor maneira que puderem,
pois se trata de um grande infortúnio para uma alma que ama
a Deus observar que vive em tamanha penúria. Ela é frustrada
em seus desejos porque tem como convidado desventurado o
corpo.
Eu já disse que devemos usar discernimento, porque o
Diabo é, às vezes, também a causa. Assim, nem sempre é bom
abandonar a oração quando há grande distração e aborrecimen-
to na mente, assim como nem sempre é bom torturar a alma
para que faça aquilo que não pode fazer. Há outras coisas a se-
rem feitas na vida, tais como a caridade e a leitura espiritual. No
entanto, ela não estará saudável para elas. Cuidemos, portanto,
do corpo por amor a Deus, porque em muitas outras ocasiões ele
serve à alma. Pratiquem alguns exercícios físicos, tais como uma
boa conversa com um amigo, ou uma caminhada no campo, se
recomendada por seu diretor espiritual.
A experiência é de grande ajuda em tudo isso, pois ensina
aquilo que é apropriado para nós, e Deus, desse modo, pode ser
servido em todas as situações. Seu fardo é leve (Mateus 11.30).

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 113

Assim, é de grande utilidade não pressionar por demais a alma,


mas sim conduzi-la delicadamente, a fim de obter um progresso
maior mais adiante.
Volto ao conselho que já dei. Não preciso repeti-lo mui-
tas vezes, uma vez que é importante que ninguém se angustie
ou se aflija com a sequidão, a impaciência ou os pensamentos
dispersivos.
Se alguém deseja obter liberdade de espírito e não estar
sempre atribulado, que comece por não temer a cruz. Agindo
assim, ele verá como o Senhor ajuda a carregá-la. Ganhará sa-
tisfação e se beneficiará com todas as coisas. É claro que, se o
mundo é seco, ele não pode regá-lo. Sim, é verdade que não
devemos nos tornar negligentes. Quando houver água, deve-
mos apanhá-la, porque assim o Senhor deseja multiplicar nossas
virtudes através desses meios (Vida, XI).
Da mesma forma que é necessário esforço para tirar água
do poço, assim também nesses princípios de devoção somos ca-
pazes de nos ajudar de algum modo. Pensar e meditar nos sofri-
mentos de nosso Senhor por nossa causa nos leva à compaixão;
a tristeza e as lágrimas que resultam dessa reflexão são doces.
A contemplação da bem-aventurança pela qual esperamos, do
amor que nosso Senhor nos tem dado e de Sua ressurreição pro-
move em nós uma alegria que não é nem totalmente espiritual,
nem totalmente carnal. A alegria, no entanto, é edificante e a
tristeza, redentora (Vida, XII).
Por que desejamos tanto apanhar essa água?
Ela é “a Fonte de Água Viva” sobre a qual o Senhor falou
à mulher samaritana; quem dela beber “nunca mais terá sede”
(João 4.13). Quão verdadeira é esta afirmação, uma vez que foi
feita por aquele que é a própria Verdade. Quem beber nunca
mais terá sede nesta vida, com relação às coisas deste mundo.
No entanto, com relação às coisas da outra vida, essa sede au-
menta consideravelmente. Ela, na verdade, vai muito além do
que podemos imaginar com relação à nossa sede natural.

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114 VIDA DE ORAÇÃO

Mas com que tamanha sede essa sede é desejada! A alma


compreende seu grande valor. Ela é uma sede muito dolorosa,
que nos aflige. No entanto, traz consigo uma satisfação por meio
da qual nossa outra sede é saciada. Ela é, portanto, uma sede
ardente, que só sacia uma sede por coisas terrenas. Ela também
nos afeta de tal modo que, quando Deus a satisfaz, um dos gran-
des favores que podemos fazer à alma é deixá-la em sua neces-
sidade, pois ela acaba por ter um desejo ainda maior de beber
novamente dessa água.
A água tem três propriedades que ilustram bem o que que-
ro dizer. Talvez tenha outras.
A primeira propriedade é a de refrescar. Por mais quen-
tes que estejamos, quando tomamos água, nossa quentura vai
embora. Se há um grande fogo, a água extingue todos os focos,
exceto quando o vento os leva adiante, o que gera ainda mais
fogo.
Ó meu Deus! Quantas maravilhas há nesse fogo que quei-
ma ainda mais quando a água é jogada sobre ele; ele é um fogo
forte e poderoso, que não está sujeito aos outros elementos! Se
eu fosse um cientista, poderia explicar esse fenômeno. Conhe-
cendo as propriedades dos elementos, eu conseguiria explicar
melhor o que quero dizer. No entanto, tenho de entreter a mim
mesma falando, pois não sei como lidar com ele de modo apro-
priado.
Mas quando Deus as leva, irmãs, a beber dessa água, vocês
se alegram nela como aqueles que agora dela bebem. E experi-
mentarão como o verdadeiro amor de Deus é mais que todos os
elementos do mundo.
Uma vez que a água vem da terra, não temam que ela sacie
esse fogo do amor de Deus, pois esse fogo não está sob jurisdição
terrena. E embora os dois pareçam contrários um ao outro, esse
amor é agora o mestre absoluto. Ele não está sujeito à água.
Irmãs, não se surpreendam que eu tenha dito tantas coi-
sas neste livro sobre oração, pois anseio que vocês obtenham

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 115

essa liberdade. [Aqui Teresa escreve de modo muito confuso.


Mas seu argumento é que, quando essa água de oração se junta
ao fogo, o amor de Deus, a combinação então produz um ardor
celestial que não pode ser contido]. Devo, portanto, assegurar-
lhes que essa água não deixará nenhum amor por este mundo.
Uma combinação assim inflamaria o mundo inteiro, se a alma
não fosse contida por essas coisas terrenas.
A segunda propriedade da água é a da limpeza de coi-
sas sujas. Se não tivéssemos água para lavar, o que seria deste
mundo? Vocês sabem quão bem fica essa “água viva”, essa água
celestial, essa água pura, limpa, quando está livre e pura de
sedimentos? Se bebermos dela somente uma vez, estou certa
de que deixará a alma pura e limpa de seus pecados. Como já
disse, Deus não permitirá que nenhuma alma beba dessa água,
exceto para limpá-la e purificá-la, deixando-a livre da sujeira
e da miséria.
Outras consolações, contudo, que vêm através da com-
preensão, são aquelas apanhadas da água que brota do chão.
Os que dela bebem não estão bebendo da nascente. Esta água,
portanto, sempre conterá impurezas.
Não chamo isto de oração, pois, conquanto zelosamente
desejemos estar limpas, nossas almas sempre contraem algumas
impurezas, a despeito de nossa vontade. Esta natureza vil e o
corpo que todas possuímos contribuem muito para esse estado.
Deixem-me explicar meu pensamento um pouco mais.
Talvez estejamos meditando no caráter do mundo e em como
todas as coisas terão um fim, de modo que não queremos ser
tentadas e estimuladas por elas. Assim, quase sem que perceba-
mos, nossos pensamentos vagueiam pelas coisas às quais esta-
mos ligados. Embora desejemos ser libertas delas por um tempo,
nos distraímos pensando no mundo ao nosso redor, no que será,
no que temos feito e no que queremos fazer. Ao pensarmos nas
coisas que podem nos ajudar a sermos libertas destas distrações,
ficamos vulneráveis a outros perigos.

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116 VIDA DE ORAÇÃO

Assim, devemos temer, pois é o nosso próprio Senhor que


toma este cuidado com relação a Si, pois não deseja que con-
fiemos em nós mesmas. Ele valoriza tanto a nossa alma que não
permitirá que ela se envolva com coisas que possam prejudicá-
la durante o tempo em que deseja favorecê-la. Ele imediata-
mente a coloca perto de Si, mostra mais verdade e dá a ela um
conhecimento mais claro de que todas as coisas são mais do que
podemos obter nesta vida depois de muitos anos. A nossa visão
não é livre. A poeira ainda nos cega enquanto caminhamos.
Nosso Senhor então nos leva ao fim de nossa jornada sem que
jamais saibamos como.
A terceira propriedade da água é a da satisfação e da sa-
ciedade da sede. Parece-me, no entanto, que a sede implica o
desejo de algo pelo qual aguardamos, e que, não obtido, nos
destruirá. Que coisa estranha é esta que, se desejamos, nos pre-
encherá, e que, se tomarmos em excesso, também destruirá a
vida, assim como observamos acontecer com os que se afogam
nas súplicas.
Ó meu Senhor! Quem pode ser mais abençoado que
aquele que se encontra tão imerso nessa “água viva” a ponto
de terminar a sua vida dentro dela? Isso pode acontecer? Sim!
Pois o amor e o desejo de Deus podem crescer a tal ponto que a
natureza não consiga tolerá-lo. Conheço ao menos uma pessoa
[provavelmente a própria Teresa] sobre quem essa “água viva”
foi derramada tão abundantemente que, se Deus não tivesse
vindo em seu auxílio, ela teria perdido os sentidos por completo
e definitivamente.
No entanto, devemos lembrar que, uma vez que nada
pode vir de modo imperfeito de nosso Deus Supremo, tudo o
que Ele nos dá é para o nosso bem. Portanto, por mais abun-
dante que seja essa água, nunca há um excesso. Não pode haver
algo como excesso em nada que pertença a Deus. Se Ele muito
concede, também proverá os meios para que a alma beba muito.
É como um fabricante de vidros que dará a eles o formato neces-

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 117

sário para que contenham certa quantidade. O desejo por esta


água nunca virá sem defeito, uma vez que vem de nós mesmas.
Quando ele tem algo bom em si, isso ocorre por meio do auxilio
de nosso Senhor.
Mas somos tão tolos que, embora a água seja uma coisa
doce e agradável, pensamos que nunca podemos nos satisfazer
com ela. No entanto, nós a desejamos sem medida, e quando
aumentamos esse desejo, ela às vezes nos mata.
No entanto, quão bendita é essa morte! Talvez por meio
da vida uma pessoa assim possa ajudar muitas outras a morrer
com um desejo por tamanha dívida. Isto é aquilo que creio que
o Diabo faz, porque sabe a perda que terá se alguém viver assim.
Ele então nos tenta a fazermos penitências tolas que destruirão
a nossa saúde. Desse modo, Satanás ganha muito.
E assim eu digo que qualquer que tenha essa sede extrema
deve ser muito cuidadoso; que possamos saber como lidar com
essas tentações. Embora essa pessoa possa não morrer de sede,
perderá a sua saúde e mostrará isso de maneira externa, embora
deseje por todos os meios evitar o dano físico. Às vezes, nossa
diligência é de pouco proveito, uma vez que não podemos ocul-
tar tudo aquilo que tanto desejamos. Mas sejamos cuidadosos
quando esses desejos de grande ímpeto despertarem em nós.
Este é um pensamento importante porque podemos, por
exemplo, ter de abreviar o tempo que passamos em oração, por
mais prazeroso que seja. Quando a força física começa a se es-
vair ou quando sentimos dor de cabeça, devemos provavelmen-
te parar de orar. A discrição é necessária em todas as coisas.
Por que vocês pensam, minhas filhas, que tenho tentado
explicar tudo isso? Por que tenho lhes dito sobre as vantagens
que podemos obter em beber dessa fonte celestial e dessa água
viva?
Expliquei sobre a oração e suas dificuldades a fim de que
vocês não possam reclamar das lutas e dores que encontrarem
no caminho e de modo que possam também seguir adiante com

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118 VIDA DE ORAÇÃO

coragem e sem desanimar. Pois, como eu disse, pode ser que,


quando chegarem ao poço, tudo que desejarão é se agachar e
continuar bebendo dessa fonte. E, no entanto, podem deixar
todas as coisas e perder essa vantagem, pensando que não têm a
força para alcançá-la e que não são dignas dela.
Considerem, contudo, como nosso Senhor nos convida a
todos. Uma vez que Ele é a própria Verdade, não há nenhuma
razão para que duvidemos dEle. Se esse banquete não fosse um
convite aberto a todos, nosso Senhor não nos chamaria. Mesmo
se chamasse, não diria, “Eu lhes darei de beber”. Ele poderia ter
dito, “venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarre-
gados, e eu lhes darei descanso” ou poderia ter dito, “se alguém
tem sede venha a mim e beba” (Mateus 11:28). Mas Ele fala a
todos indistintamente, de modo que considerei por certo que
todos os que não se retardam ao longo do caminho não care-
cerão dessa água viva. Que nosso Senhor, que nos prometeu
tanto, nos conceda em Sua misericórdia a graça de buscar essa
água como deve ser buscada (Caminho de Perfeição, XIX).

III. A roda d’água ou a oração da contemplação

Tendo falado sobre os esforços desgastantes e da força


exigida para regar o jardim quando temos de apanhar água do
poço, falemos agora de uma segunda maneira de se obter água,
ordenada pelo Senhor da vinha. Ela é como a noria, ou roda
dágua, com baldes que permitem ao jardineiro apanhar mais
água com menor esforço e assim descansar sem ter de trabalhar
o tempo todo. Aplico esta metáfora de oração que irei descrever
à chamada oração de quietude ou da contemplação.
Nela, a alma começa a se recolher, passando a tocar em
coisas que são divinas, algo que nunca conseguiria fazer por
meio de esforço próprio. Ela parece às vezes se cansar ao lado da
roda, como que a labutar com o entendimento enquanto enche
os baldes. Mas no segundo estágio, a linha d’água está mais alta,

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 119

e o trabalho de apanhar a água é muito menor. Quero dizer que


quanto mais perto a alma está da água, mais a graça se revela a
ela de modo distinto.
Nesse tipo de oração, as faculdades da alma estão muito
mais integradas, de modo que conseguem desfrutar dessa sa-
tisfação com grande prazer. Mas elas não estão perdidas, nem
adormecidas. Ocorre que a vontade é ocupada de tal maneira
que, sem saber como, se tornou sujeita à vontade de Deus. Ela
simplesmente permite que Deus a capture, como alguém que
sabe bem como ser cativada por seu amante.
Ó Jesus, meu Senhor! Quão precioso é o teu amor por
nós aqui! Ele cativa tanto o nosso amor que não permite a ele
a liberdade, durante esse tempo, de amar qualquer outra coisa
exceto Tu.
As outras duas faculdades [ou seja, o intelecto e a memó-
ria] ajudam a vontade a fim de que possa estar apta a gerar frutos
muito bons. No entanto, ocasionalmente acontece que, mesmo
quando a vontade está em união, elas a atrapalham muito. Ela
então não deveria nunca dar ouvidos a elas, mas simplesmente
permanecer em seu silêncio e gozo. Se a vontade tentasse fazer
com que as faculdades a recompusessem, perderia o seu rumo.
A situação é a mesma de pombas insatisfeitas com o alimento
que o seu criador lhes dá, um alimento que está disponível sem
que tenham de buscá-lo. Elas então procuram comida em outro
lugar, mas encontram tão pouca que têm de voltar. Essas facul-
dades então vão e voltam, a fim de observar se a vontade lhes
dá o que a alma aprecia.
Se o Senhor deseja dar-lhes algum alimento, elas param.
Se não, retornam à sua própria busca. Elas devem pensar que
estão beneficiando a vontade.
Às vezes, no desejo de representar a vontade naquilo que
estão desfrutando, a memória e a imaginação a prejudicam.
Bem, então tenham o cuidado de se comportarem como expli-
carei a seguir.

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120 VIDA DE ORAÇÃO

Tudo que ocorre neste estado atual traz a maior de todas


as consolações. O trabalho é tão leve que a oração, mesmo per-
severante por um tempo, nunca é cansativa. Isto porque a com-
preensão está agora trabalhando muito suavemente e apanhan-
do muito mais água do que apanhava do poço. As lágrimas que
Deus agora envia fluem com alegria. Embora nós as sintamos,
elas não são resultado de nenhum esforço de nossa parte.
Essa água de grandes favores e bênçãos faz com que a vir-
tude cresça incomparavelmente mais que nos estágios anterio-
res de oração. A alma está agora elevada acima de sua própria
tristeza e recebendo um pequeno conhecimento dos deleites da
glória. Essa água faz com que as virtudes cresçam melhor e tam-
bém leva a alma para muito mais perto da verdadeira Virtude,
que é o próprio Deus, fonte de todas as virtudes. Sua Majestade
está começando a se comunicar com a alma, uma vez que quer
que ela experimente como Ele se comunica.
Quando a alma atinge esse ponto, não é de admirar que
comece a perder o desejo pelas coisas terrenas, pois observa cla-
ramente que, mesmo por um breve momento, essa alegria não
deve ser experimentada na terra. Não há riquezas, nem autori-
dade, nem honras, nem deleites que possam, por um breve mo-
mento, mesmo um piscar de olhos, fornecer tamanha alegria,
que é plena satisfação, e essa alma percebe que está plenamente
satisfeita.
Nós, que estamos na terra, no entanto, dificilmente com-
preenderemos onde reside a nossa satisfação, pois ela está sujei-
ta a se decepcionar. Nessa experiência, no entanto, não há de-
cepção. A decepção só chega mais tarde, quando a alma observa
que o tempo passou e que não tem poder para reproduzi-lo, nem
sabe como fazê-lo. Mesmo que a alma fosse picada em pedaços
pela penitência e pela oração e exercitasse qualquer outro tipo
de austeridade, tudo isso seria inútil se não fosse concedido por
nosso Senhor. Pois Deus, em Sua grande misericórdia, faz com
que a alma entenda que Sua Majestade está tão perto dela que

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 121

não precisa enviar mensagens; pode falar diretamente com Ele.


Isto pode ser feito sem gritos porque Ele já está muito perto, e
entende até mesmo o movimento de nossos lábios.
Parece impertinente dizer isso uma vez que sabemos que
Deus sempre nos compreende e está presente conosco. Mas nos-
so Imperador e Senhor deseja que saibamos que Ele nos com-
preende, que Sua presença está conosco, e que quer começar a
trabalhar na alma de uma maneira especial. Tudo que o Senhor
deseja mostrar-nos é fruto de uma grande satisfação, interior e
exterior, que Ele dá à alma. Ele também nos mostra a diferença
entre esse deleite e felicidade e os deleites da terra. Pois esse de-
leite parece preencher o vazio que temos causado à nossa alma
através de nossos pecados.
Essa satisfação reside na parte mais íntima de nossa alma.
A alma não sabe de onde ela veio, nem como pode desejá-la
ou orar por ela. A alma parece encontrar satisfação sem prévio
aviso, e não saber aquilo que encontrou.
Não posso explicar isso, porque, para muitas coisas, o
aprendizado é essencial. A essa altura, seria útil explicar cla-
ramente a distinção entre graça geral e graça particular, pois
há muitos que são ignorantes acerca dessa diferença. Seria
também útil saber como o Senhor deseja que a alma, através
da oração, veja com seus próprios olhos a realidade dessa graça
particular.
O aprendizado também é exigido para explicar muitas ou-
tras coisas que talvez eu não tenha expressado com exatidão.
Mas, uma vez que aquilo que digo será conferido por pessoas
que reconhecerão qualquer erro, não estou preocupada com
isso. Em questões teológicas e espirituais, sei que posso estar
enganada. No entanto, como este registro terminará em boas
mãos, esses homens instruídos compreenderão e removerão
aquilo que estiver errado.
Retornemos agora ao nosso jardim de flores ou orquídeas,
e vejamos se as árvores estão se enchendo bem de seiva para a

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122 VIDA DE ORAÇÃO

chegada dos brotos. Eis que chegam então os frutos, as flores e


também as plantas com suas fragrâncias.
Esta ilustração tem seu encanto para mim, pois, muitas
vezes, deleito-me em considerar minha alma um jardim e re-
fletir no fato de que o Senhor passeia por ele comigo. Tenho
implorado a Ele que aumente a fragrância das pequenas flores da
virtude que estavam começando a brotar e preserve-as para que
possam existir para a Sua glória, pois não tenho desejado nada
para mim mesma. Tenho Lhe pedido que corte as que Ele quer,
pois já sei que melhores brotarão.
Eu disse “cortar” porque há ocasiões quando a alma não
tem nenhum pensamento acerca desse jardim. Tudo parece seco
e não há água para sustentá-la, nem que jamais tenha havido na
alma algo de virtuoso.
Essa, portanto, é uma estação de duras provas. E o Senhor
faz com que o pobre jardineiro suponha que toda a dificuldade
que teve para manter e regar o jardim pareça não ter tido propó-
sito algum. Esse é um tempo para capinar e arrancar toda planta,
por menor que seja e que não tenha valor, com o conhecimento
de que nenhum esforço de nossa parte é suficiente se Deus reti-
ver de nós as águas de Sua graça. Assim, desprezando-nos como
nada ou até menos que nada, obtemos grande humildade, e as
flores crescem novamente (Vida, XIV).
Voltemos agora ao assunto. Essa quietude e contemplação
da alma se fizeram sentir através da satisfação e da paz que nela
se manifestam com grande alegria e um suave descanso das fa-
culdades. À alma parece que, uma vez que não foi adiante, nada
restou para desejar. Assim, ela diria com toda a disposição o que
disse o apóstolo Pedro, que faria seu tabernáculo ali (Mateus
17.4). Ela não ousa se mover ou se agitar porque pensa que essa
bênção que recebeu desapareceria de suas mãos. Desse momen-
to em diante, mal consegue respirar. A pobre e pequena alma
não está ciente de que, por si mesma, não poderia fazer nada
para receber essa bênção. Desse modo, é ainda menos capaz de

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 123

retê-la um único momento a mais do que deseje nosso Senhor


que ela permaneça.
Eu já disse que, na contemplação, as faculdades da alma
não cessam de funcionar. Mas ela fica tão satisfeita com Deus
que, enquanto durar a contemplação, o silêncio e a paz não se
perdem, uma vez que a vontade está unida a Deus, embora as
faculdades possam estar distraídas. Na verdade, pouco a pou-
co, a vontade conduz o intelecto e a memória à contemplação.
Conquanto a vontade possa não estar totalmente absorvida, ela
está tão preocupada em conhecê-la que, não importa quais es-
forços as duas faculdades, do intelecto e do reconhecimento,
possam fazer, elas não são capazes de tirar o contentamento e
a alegria da vontade. Com quase nenhum esforço, a vontade é
gradualmente auxiliada, de modo que essa pequena fagulha do
amor de Deus não pode ser apagada.
Oh! que eu possa ser agraciada por Sua Majestade a fim de
explicar esse estado bem o suficiente! Há muitas, muitas almas
que o alcançam, mas poucas que seguem para além dele. Eu não
sei o motivo disso. Definitivamente, não é Deus quem falha,
pois, uma vez que Sua Majestade concedeu a uma alma o favor
de alcançar esse estágio, não creio que falharia em conceder-
lhe muito mais favores, a menos que nossos muitos defeitos a
impeçam.
É muito importante que a alma que alcança esse estágio
perceba a grande importância de sua posição e o grande favor que
o Senhor lhe outorgou. É importante também observar que ela
então não pertence à terra, porque, ao que parece, Sua bondade
a teria tornado uma cidadã do céu. Isto, desde que não estacione
em sua própria falha. Seria uma infelicidade, no entanto, se ela
recuasse. Na verdade, penso que recuar significa cair de volta no
fundo do poço, que é para onde eu teria ido se a misericórdia de
Deus não tivesse me resgatado. Na maioria das vezes, esse recuo
virá como resultado de falhas sérias. Não é possível abandonar
tanto bem sem a cegueira causada por tanto mal.

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124 VIDA DE ORAÇÃO

Portanto, pelo amor de nosso Senhor, eu imploro a essas


almas, a quem Sua Majestade tem dado tanta graça para al-
cançar esse estado, que saibam e se empenhem com humilde e
santa presunção a fim de nunca retornarem à vida regalada do
Egito. Se através da fraqueza, do pecado e de uma natureza mi-
serável elas caírem como eu caí, que sempre tenham em men-
te o bem que perderam. Que sejam desconfiadas e caminhem
com temor do Senhor. Elas estão certas em agir assim, porque se
não retornarem à oração irão de mal a pior. Aquilo que chamo
de verdadeiramente cair da graça é o desenvolvimento de uma
aversão ao caminho do qual recebemos tanto bem. É para essas
almas que estou falando. Não estou dizendo que nunca devem
ofender a Deus nem cair em pecado, embora isso fosse o corre-
to para qualquer um que começou a receber esses favores: que
fosse vigilante a fim de não pecar. No entanto, somos criaturas
miseráveis.
O que aconselho veementemente é: não abandonem o há-
bito da oração, pois é nela que uma pessoa compreenderá aquilo
que está fazendo e buscará arrependimento no Senhor e forças
para se erguer. Vocês devem crer que quando estão desistindo da
oração, estão, em minha opinião, cortejando um grave perigo.
Não sei se compreendo aquilo que estou dizendo, porque, como
disse, estou julgando a partir de minha própria experiência.
Aquilo que a alma deve fazer durante essas estações de
quietude resume-se em não mais que agir suavemente e sem
qualquer ruído, em oração. Quero dizer por ruído usar por de-
mais o intelecto, procurar muitas palavras e significados para
dar graças por determinado dom, detalhar pecados e faltas até
concluir que o dom é imerecido. Tudo está em movimento e
agitação. O intelecto está pensando muito e a memória vascu-
lhando o passado.
Essas faculdades por certo irão me esgotar de tempos em
tempos. Embora tenha uma memória ruim, ainda assim não
consigo controlá-la. Com calma e sabedoria a vontade tem de

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 125

compreender que não se lida bem com Deus por intermédio


da força; nossos esforços, então, são como o uso descuidado de
pedaços grandes de madeira que extinguem uma pequena fagu-
lha de fogo. Alguém deve perceber isso e humildemente dizer:
“Senhor, o que sou capaz de fazer aqui? O que um servo tem a
ver com seu Senhor, ou o que tem a terra a ver com o céu?” Ou
deveria usar outras palavras de amor surgidas em sua mente e
que estão bem fundamentadas no conhecimento de que aquilo
que é dito é a verdade. Assim, não preste atenção ao intelecto,
pois ele é como um moinho triturador.
Se a vontade deseja comunicar ao intelecto uma porção
desses frutos que obteve, ou se trabalha para fazer o intelecto
lembrar, ela não terá sucesso, pois quase sempre acontece de
a vontade estar em harmonia com o intelecto e de descansar
enquanto este está em extrema desordem.
É melhor a vontade deixar o intelecto sozinho do que se-
gui-lo, e permanecer como uma abelha sábia, em contemplação
e no gozo desse dom. Se nenhuma abelha entrasse na colméia e
se ocupasse de seguir uma à outra, nenhum mel seria produzido.
Como conseqüência, a alma perderá muito se não for cuidadosa
com relação a isso, especialmente se o intelecto for perspicaz.
Quando a alma começa a refletir e a buscar por razões, ela pen-
sará, num primeiro momento, estar fazendo algo se seus discur-
sos e sua busca por idéias parecerem bons.
A única razão para a reflexão da alma que deve ser cla-
ramente reconhecida é a de que não há nenhuma outra razão
senão a da pura bondade de Deus. Por que deveria Deus nos ca-
pacitar a percebermos que estamos tão próximos dEle e dar-nos
a habilidade de orar pedindo por Suas misericórdias? Em Sua
presença podemos pedir por Seus dons e orar pela igreja e por
aqueles que pediram nossas orações.
Portanto, em tempos de silêncio, que a alma permaneça
em seu repouso. Coloque de lado o aprendizado. Virá o tempo
quando o aprendizado será útil ao Senhor. Ele deve ser valoriza-

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126 VIDA DE ORAÇÃO

do de modo a não ser abandonado por nenhum outro tesouro,


mas deve ser usado somente para servir a Sua Majestade. So-
mente assim tem utilidade.
Creiam-me, na presença da Sabedoria Infinita, um peque-
no exame de humildade e um ato de humildade valem mais que
todo o conhecimento do mundo, pois, neles, não há exigên-
cia de raciocínio, mas simplesmente de conhecimento daquilo
que somos e o entendimento de que estamos humildemente na
presença de Deus. Ele deseja, portanto, que a alma se torne ig-
norante em Sua presença, como ela de fato é. Lembremos que
Sua Majestade se humilha a fim de permitir que estejamos perto
dEle, a despeito de quem somos.
O intelecto pode muito bem ser estimulado a compor ora-
ções de ações de graças. Mas a vontade, calmamente, sem ousar
erguer seus olhos como o publicano (Lucas 18.13), dá graças
mais eficazes que as que o intelecto possa expressar com todos
os seus recursos de retórica.
Finalmente, nesse estágio, não é preciso renunciar por
completo à oração discursiva ou ao uso de alguma liturgia, ou
mesmo a algumas orações vocais espontâneas, caso haja desejo
e habilidade. Mas se a oração requisitada for grande, é difícil
falar sem certo grau de esforço.
Eu mesma acredito que podemos discernir se esse silêncio
é do Espírito de Deus ou se é fruto do nosso esforço próprio, uma
vez que Deus começa a nos dar devoção. Nós mesmas queremos
passar à oração do silêncio por esforço próprio. Quando pro-
curarmos a quietude por nós mesmas, ela não produzirá efeito
algum e nos deixará rapidamente, nada deixando para trás, a
não ser aridez. Se ela vem de Satanás, a alma experiente, em
minha opinião, detectará isso, uma vez que deixa para trás os
problemas, com humildade insuficiente e disposição insatisfa-
tória – o oposto daquilo que a oração que vem de Deus produz
– não conferindo luz ao intelecto nem gerando constância na
verdade.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 127

Satanás, no entanto, pouco ou nenhum dano pode causar


à alma que direciona a Deus o prazer e a doçura que sente, e
que fixa seus pensamentos e desejos nEle, conforme aconselha-
do. Satanás então não pode obter ganho algum sobre ela. Deus,
ao contrário, permitirá a Satanás, por meio do prazer que ele
proporciona à alma, perder muito, pois esse prazer estimulará
de imediato essa alma, uma vez que ela pensa que é Deus quem
concede o prazer, a retornar freqüentemente à oração com um
anseio pelo Senhor.
Se for uma alma humilde e não inquiridora ou preocupada
com prazeres, mas acima de tudo uma amiga da cruz, dará pouca
atenção ao consolo que é oferecido pelo Demônio, e será inca-
paz de ignorar o consolo que vem do Espírito de Deus, tendo,
ao contrário, por ele enorme estima. Tudo que Satanás oferece,
no entanto, é como ele próprio: uma total mentira. Quando
Satanás observar que nesse conforto e nesse prazer a alma se
humilha (pois nessa experiência ela deve ter muita humildade,
e em todas as questões relacionadas à oração e ao consolo deve
lutar para ser humilde), ele não voltará com muita freqüência,
porque percebe que perderá quando vier.
Por essa e por outras muitas razões, quando falei do primei-
ro método para apanhar água, insisti na importância de a alma
desprender-se de todo tipo de alegria quando começa a orar. Ela
decide resolutamente que carregará a cruz de Cristo como um
bom soldado, que estará disposta a servir ao Rei sem remunera-
ção, pois está certa de que, ao final, seus olhos serão direcionados
ao verdadeiro e eterno Reino e à vitória definitiva do Rei.
Quando isso é obra do Espírito de Deus, não há nenhuma
necessidade de se buscar forças para estimular atos de humil-
dade e contrição, porque é o nosso Senhor mesmo que os gera
de um modo diferente daquele que poderíamos obter por nosso
próprio esforço.
Assim, a falsa humildade não é nada em comparação com
a verdadeira, que vem da luz que nosso Senhor nos concede e

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128 VIDA DE ORAÇÃO

que verdadeiramente nos constrange. É fato notório que Deus


dá um conhecimento que nos faz perceber que não temos bem
algum em nós mesmas. Assim, quanto maior o favor, maior se
torna esse conhecimento.
É Deus quem outorga um forte desejo de crescer em ora-
ção e não desistir, não importa as provas que venham nos testar.
A alma oferece a si mesma em todas as coisas. Ela se sente se-
gura, embora ainda humilde e temerosa, de que será salva, pois
Deus deve tirar dela todo o medo subserviente e conceder-lhe
uma fé mais madura e confiante. A alma tem assim consciên-
cia do princípio de um amor por Deus que possui muito menos
interesse próprio. Ela desejará períodos a sós, a fim de desfrutar
cada vez mais desse bem.
Concluindo, essa oração de quietude é o princípio de todas
as bênçãos. As flores já estão no ponto no qual quase nada lhes
falta para brotar. Assim é com a alma que vê muito claramen-
te, de modo a ser impossível persuadi-la de que Deus não esteja
com ela. Somente quando olha novamente para suas falhas e im-
perfeições ela começa a temer tudo. É bom a alma ser temerosa,
embora haja algumas que se beneficiem mais da convicção de
que essa oração vem de Deus do que experimentando todos os
possíveis medos. Pois se alguém, por natureza, é mais amoroso e
grato, a memória do favor que Deus concedeu faz muito mais no
sentido de trazê-lo de volta para Deus do que todas as ameaças
de punição eterna. Foi assim, ao menos, que aconteceu comigo,
muito embora eu ainda seja uma grande pecadora (Vida, XV).

IV. A água de um canal irrigado ou de um córrego

Falemos agora do terceiro tipo de suprimento de água


para esse jardim. Trata-se da água que corre de um rio ou de
um canal, através do qual o jardim é irrigado com muito menos
problemas, embora possa haver algumas orientações quanto ao
direcionamento da água.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 129

Nesse estado, nosso Senhor ajudará o jardineiro de tal


modo que ele faça todo o trabalho. Trata-se de “um sono das
faculdades da alma, que não está totalmente inconsciente, em-
bora não compreendam como estão em atividade”. O consolo,
a doçura e o prazer são agora incomparavelmente maiores que
aqueles experimentados na oração anterior. A água da graça er-
gue-se até a boca da alma. Ela está tão cheia que não sabe o que
fazer. Tudo que deseja é desfrutar dessa glória suprema.
Não tenho outras palavras para descrever essa experiên-
cia, nem sei como explicá-la. A alma não sabe se fala ou se fica
calada, se ri ou se chora. Essa oração é uma tolice gloriosa, uma
loucura celestial, onde a verdadeira sabedoria é aprendida. Para
a alma, é o modo mais prazeroso de satisfação.
Na verdade, já se passaram cinco ou seis anos desde que
o Senhor me deu pela primeira vez esse estado de oração em
sua plenitude. Eu não sabia como falar sobre ele. Assim, minha
intenção original àquela altura era dizer muito pouco ou nada
sobre isso, pois percebi claramente que, embora não fosse uma
união completa das faculdades, essa oração foi muito mais ex-
celente que a anterior, embora, confesso, eu não conseguisse
discernir ou compreender onde estaria a diferença entre elas.
No entanto, creio que foi a humildade de sua Reverên-
cia, ao se dispor a ser auxiliado por uma pessoa simplória como
eu, que me encorajou, pois o Senhor, hoje, após a comunhão,
atendeu a meu pedido. Interrompendo minha ação de graças,
Ele colocou diante de mim a diferença entre esses dois estágios
de oração, me ensinou como eu poderia explicá-la e o que é que
a alma deve fazer. Eu, é claro, fiquei espantada, embora tenha
entendido imediatamente.
Eu com freqüência havia ficado como alguém desnorteado
e embriagado em seu amor. No entanto, nunca consegui com-
preender o caráter desse amor. Compreendi clara e suficiente-
mente que ele era obra de Deus, mas não conseguia entender
como Ele estava atuando nesse estágio de oração, pois a verdade

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130 VIDA DE ORAÇÃO

é que as faculdades estão quase totalmente unidas com Deus e


tão absorvidas nEle que não conseguem funcionar. Estou muito
feliz por poder entender isso agora. Bendito seja o Senhor, que
tem me abençoado tanto!
Nesse estágio, as faculdades da alma estão tão concen-
tradas que só conseguem se ocupar completamente com Deus.
Não parece que qualquer uma delas ouse se mover, nem que
possamos agitá-las, a menos que nos distraiamos forçosamente.
Mesmo assim, não penso que consigamos fazer isso por comple-
to. Assim, proferimos muitas palavras em louvor a Deus sem
pensar nelas, a menos que o Senhor as pense por nós. Nesse
estágio, o intelecto por certo não desempenha papel algum. A
alma talvez deseje gritar em louvor como se estivesse ao lado de
si mesma em uma inquietação prazerosa.
As flores agora estão de fato desabrochando e começando
a espalhar a sua fragrância.
Nesse estado, a alma teria todos os homens voltados para
ela e juntando-se ao seu prazer, para que louvem a Deus e a
auxiliem a louvá-lO mais. Ela os teria como parceiros de sua
alegria, pois a alegria dEle é maior do que ela pode suportar. A
mim me parece que é como a mulher no Evangelho que cha-
mou todas as suas vizinhas (Lucas 15.9). O espírito admirável
de Davi, o monarca profeta, deve ter experimentado a mesma
coisa quando ele tocava a harpa e cantava louvores a Deus. Te-
nho um profundo respeito por esse maravilhoso rei. Gostaria
que todos tivessem, particularmente os pecadores como eu.
Ó meu Deus, o que deve ser essa alma quando se encon-
tra nesse estado? Ela desejaria ser toda língua, a fim de, intei-
ra, poder louvar nosso Senhor. Ela fala tolices em milhares de
maneiras santas, sempre tentando encontrar modos de agradar
àquele que a possui.
Conheço alguém [a própria Teresa] que, embora não sen-
do poetisa, compôs sem qualquer preparação certas estrofes
cheias de significado e que muito bem expressavam a sua dor.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 131

Elas não foram obra de sua própria compreensão. Mas, a fim


de melhor usufruir desse prazer que lhe ocasionou uma dor tão
doce, reclamou dele desse modo a Deus. Ela se dispôs a ser cor-
tada em pedaços, alma e corpo, para mostrar o prazer que sentiu
nessa dor. A que tormentos poderia ela então ser exposta que
não fossem deliciosos de suportar por seu Senhor? Ela observa
claramente que os mártires fizeram pouco ou quase nada por si
ao suportarem suas torturas, porque a alma estava muito cons-
ciente de que a sua força era derivada de Outra Fonte.
Mas quais serão os seus sofrimentos quando ela voltar a
viver mais uma vez no mundo, usando seus sentidos, e retor-
nar às ansiedades e cuidados que possui? Não penso que tenha
exagerado de modo algum, mas careço de falar dessa alegria que
nosso Senhor de bom grado dá à alma nisto: em seu exílio. Ben-
dito sejas Tu, ó Senhor! E que todas as coisas criadas Te louvem
para sempre (Salmo 150.6, Vida, XVI).
O suficiente tem sido dito sobre essa maneira de orar, da
qual a alma tem de falar, sobre o que Deus está fazendo dentro
dela, pois é Ele que agora assume o trabalho do jardineiro e que
fará a alma repousar. A exceção é que a vontade está consen-
tindo nas graças. As graças são a fruição daquilo que a vontade
tem e daquilo a que ela deve renunciar a fim de fazer tudo que
a Verdadeira Sabedoria realizaria nela. Para isso é certo que ela
necessita de coragem. Por essa alegria ser tão grande, a alma
agora parece estar a ponto de sair do corpo. Que morte abençoada
seria essa!
Quero dizer que, em um estado de oração assim tão exal-
tado, a alma compreende que Deus está fazendo Sua obra sem
qualquer desgaste do intelecto. A alma, penso, fica impressio-
nada ao ver quão bom Jardineiro é o Senhor, e como Ele não
deseja que ela faça nenhuma outra obra senão deleitar-se com a
fragrância das flores que estão começando a enviar seu perfume.
Quando Deus ergue uma alma a esse estado, ela pode fazer isto
e muito mais, pois estes são os seus efeitos sobre ela.

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132 VIDA DE ORAÇÃO

Em uma dessas visitas, por mais breve que seja, a água é


dada sem medida, porque o jardineiro é Quem Ele é: o Criador
da água. É Ele Quem derrama a água sem limites. Assim, aquilo
que a pobre alma com todo o seu esforço fez, talvez em vinte
anos, e do qual não pôde usufruir, o Jardineiro celestial agora
realiza em um único instante.
Desse modo, o fruto cresce e amadurece de tal modo que a
alma pode ser sustentada por seu jardim, se o Senhor assim o desejar.
Ele, no entanto, não lhe dá permissão para distribuir o fruto até que
esteja bem fortalecida por aquilo que tem comido. Caso contrário,
ela estaria dando a outros a oportunidade de provar, sem receber
qualquer benefício ou ganho, mantendo-os e dando-lhes de comer
às suas custas. A alma talvez seja abandonada para morrer de fome.
Essa possibilidade tem sido muito bem explicada por aqueles que
são doutos e que saberão como fazer a aplicação melhor que eu, em
minha tentativa de explicar através de meu próprio esforço.
Finalmente, as virtudes estão agora mais fortes do que na
oração anterior do silêncio. A alma não as ignora, porque en-
tende que são diferentes e não sabe como isso aconteceu. Ela
começa a realizar grandes obras por meio da fragrância que as
flores exalam, pois o Senhor deseja que elas floresçam para que a
alma veja que possui virtude. Ela, no entanto, está plenamente
consciente de que não poderia, nem depois de muitos anos, ad-
quiri-las, nem estava capacitada para tal. Ela também percebe
em um instante que o Jardineiro celestial as deu.
Eis aqui então aquela humildade que permanece na alma,
muito maior e mais profunda do que no passado, pois a alma
observa mais claramente que não fez muito mais que consentir
nos favores do Senhor e recebê-los com a sua vontade.
Esse estado da oração me parece ser uma união muito dis-
tinta da alma como um todo com Deus. Mas Sua Majestade de-
seja dar liberdade às faculdades, para que possam compreender
e se alegrar nas muitas coisas que Ele está agora realizando, pois
Ele é Aquele que as está fazendo.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 133

Muitas vezes acontece da vontade estar unida, e a alma,


ciente disso, observar que a vontade está cativa e, no entanto,
alegre. Eu digo que ela observa claramente que a vontade está
somente em profunda quietude. O intelecto e a memória, por
outro lado, estão tão livres que podem voltar-se para os afazeres
e se envolverem em obras de caridade.
Essa oração difere da oração da quietude da qual falei,
embora pareçam uma só, pois, nessa oração, a vontade delibe-
radamente não se agita nem se move, mas tem prazer no santo
repouso de Maria, que se assentou aos pés do Mestre. Na ter-
ceira oração, no entanto, a alma também pode ser ativa como
Marta.
A alma, desse modo, está vivendo tanto a vida ativa quan-
to a contemplativa ao mesmo tempo; ela pode agora dedicar-se
a obras de caridade, aos afazeres e à leitura espiritual. Não é, no
entanto, mestre de si mesma por completo. Ela entende clara-
mente que a melhor parte da alma está em algum outro lugar.
É como se estivéssemos falando com alguém ao nosso lado e do
outro houvesse uma outra pessoa também falando a ela. Não
podemos prestar total atenção nem a um nem a outro.
Esta oração é algo que se sente muito claramente, e
que dá profunda satisfação e felicidade quando experimenta-
da. É uma excelente preparação para que a alma alcance um
profundo silêncio quando dedica tempo a estar a sós consigo
mesma e livre de seus afazeres. Ela é como a vida de um ho-
mem que está de barriga cheia e pede que não o sirvam mais,
porque satisfez seu apetite. Ele não comerá mais nada que for
colocado diante dele, a menos que não esteja satisfeito o sufi-
ciente e não se recuse a comer se vir algo que seja uma iguaria
desejável.
A alma assim não tem nenhuma satisfação no mundo, e
não busca nele prazer, porque tem em si aquilo que lhe dá uma
satisfação muito maior, maiores alegrias em Deus e maiores de-
sejos pela satisfação de estar com Ele (Vida, XVIII).

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134 VIDA DE ORAÇÃO

V. Água da fonte

Pode ser que tudo que digo soe confuso. Temo por isso.
Penso que estava falando sobre consolações espirituais e ten-
tando explicar como às vezes elas estão amarradas a nossas pai-
xões [assim como a água de um canal pode ser suja]. Elas fre-
qüentemente causam acessos de soluço. Ouvi de algumas pes-
soas portadoras de contrações causadoras de dores no peito que
não podem controlar, ou outras que têm sangramentos nasais
extremos ou produzem sintomas similares desconcertantes.
Sobre tudo isso nada posso dizer, pois não tenho experiên-
cia. Mas deve haver alguma causa de conforto nessas coisas.
Tudo isso leva a um intenso desejo de agradar a Deus e desfrutar
de Sua Majestade.
Aquilo que chamo de “consolações de Deus” e que em
outro lugar denominei de “Oração de Quietude” é algo de na-
tureza muito diferente. Aquelas dentre vocês que, pela graça de
Deus, têm experimentado isso, saberão.
Para entender melhor, suponham que estamos olhando
para duas fontes, cujas bacias podem ser cheias de água [Aqui
Teresa está pensando em duas bacias grandes de mármore orna-
mental que eram muito comuns nos quintais de estilo mouris-
co das casas espaçosas na Espanha de seus dias]. Não encontro
comparação mais apropriada para explicar realidades espirituais
que esta da água. Registro isto porque tenho muito pouco co-
nhecimento e minha habilidade é de pouca utilidade. No en-
tanto, por amar muito esse elemento que tenho considerado
mais profundamente que outros, usemos a analogia. Eu a tenho
observado com mais atenção que qualquer outra.
Essas duas cisternas são supridas por água de modos dife-
rentes. Uma recebe água à distância, por meio de vários canos e
com habilidade humana. Mas a outra foi construída na fonte de
água, ou seja, sobre uma nascente, que enche o recipiente sem
qualquer ruído. Se a nascente é abundante, como é a de que

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 135

estamos falando, ela envia um grande volume de água depois


de haver enchido a cisterna. Nesse caso, nenhuma habilidade
é necessária, e nenhum cano teve de ser feito, pois a água flui o
tempo todo.
Vocês vêem aqui a diferença, pois a água que vem através
dos canos lembra, em minha opinião, a ternura e os prazeres
mencionados no terceiro estágio de oração que apanhamos de
nossa meditação, pois esses apanhamos de nossos pensamentos,
com o auxílio da meditação sobre as coisas criadas. Em resu-
mo, os pensamentos são obtidos por nossa própria diligência,
de modo a fazerem ruído quando os enchemos. Isso acontece,
portanto, quando estamos cheios dos benefícios desses pensa-
mentos.
A água agora vem direto da origem, para outra fonte. Essa
origem é Deus. Assim, quando é da vontade de Sua Majestade,
e Ele se alegra em conceder-nos favores especiais, Sua vinda é
acompanhada por uma grande paz, pelo silêncio e pela doçura
dentro de nós. Não consigo dizer onde ela surge, ou como acon-
tece. Esse contentamento e esse prazer não são sentidos como
sentimos os prazeres terrenos no coração. Não no princípio, ao
menos. Mais tarde, a bacia se enche por completo, e então essa
água começa a transbordar todas as Mansões e faculdades até
que alcança o corpo. É por esta razão que eu disse que ela tem
sua origem em Deus e, no entanto, termina em nós. Pois é cer-
to, e qualquer um que a tenha experimentado saberá, que o ho-
mem exterior como um todo também desfruta dessa consolação
e doçura.
Enquanto escrevo estas palavras, penso neste versículo:
“dilataste o meu coração” (Salmo 119.32). Essa dilatação não
é algo que, penso, ocorre dentro do coração, mas a partir de
alguma outra parte interior que é verdadeiramente profunda.
Penso que deva ser o centro da própria alma, pois descubro esses
segredos maravilhosos dentro de mim. Eles me impressionam.
Mas quantos mais existem!

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136 VIDA DE ORAÇÃO

Ó meu Senhor e meu Deus! Quão maravilhosa é a Tua


grandeza! No entanto, aqui vivemos como muitos meninos pas-
tores estúpidos, imaginando que temos obtido algum conheci-
mento de Ti. Contudo, quando digo, “isso equivale a nada”,
quero dizer que Tu és infinitamente grande. Isto não porque os
sinais de grandeza que vemos em Tuas obras não sejam maravi-
lhosos, mas temos de fato aprendido muito pouco a conhecer
sobre elas.
Retornando então a esse versículo, penso que aquilo que
ele diz sobre dilatar o coração pode nos ser de alguma ajuda.
Aparentemente, quando essa água celestial começa a fluir a
partir da fonte da qual estou falando – de nossas profundezas –,
passa a se espalhar dentro de nós e a causar uma expansão inte-
rior, produzindo uma bênção inefável, de modo que a alma não
consegue compreender tudo que está recebendo. A fragrância
que ela experimenta, poderíamos dizer, é como se nessas profun-
dezas interiores houvesse um braseiro no qual perfumes doces
estivessem sendo queimados. A luz não pode ser vista, nem o
lugar onde ela habita, mas o odor da fumaça e o calor penetram
em toda a alma. Com muita freqüência, os efeitos se estenderão
por todo o corpo.
Espero que me entendam bem neste ponto, pois nenhum
calor é sentido, nem nenhum cheiro é percebido, uma vez que
é algo mais sutil que essas experiências sensoriais. Falo de ma-
neira direta, a fim de ajudá-las a me compreender, mas pessoas
que não experimentaram isso precisam perceber que essa situação
realmente acontece. Sua ocorrência é capaz de ser observada, e
a alma se torna consciente disto mais claramente do que estas
minhas palavras podem expressar. Não é algo que possamos ima-
ginar, nem lutar por adquirir, pois está muito claro que se trata
de algo que não é feito de metal humano, ao contrário, é feito do
mais puro ouro da sabedoria divina. Nesse estado, as faculdades
não estão em união, mas ficaram absorvidas e estão impressiona-
das com aquilo que consideram estar acontecendo a elas.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 137

É possível que ao escrever sobre essas experiências inte-


riores eu possa de algum modo estar contradizendo o que disse
antes. Não é de admirar, pois quinze anos se passaram desde
que escrevi meu livro (Vida). Desde então, o Senhor tem me
dado uma percepção cada vez mais clara dessas questões. Na-
quela ocasião e agora, é claro, ainda posso estar equivocada em
relação a tudo isso, mas não posso mentir acerca de minhas ex-
periências. Pela misericórdia de Deus, eu preferiria morrer mil
mortes. Assim, estou falando dessas experiências exatamente
como as entendo.
A vontade certamente me parece estar de algum modo
unida à vontade de Deus. Mas é pelos efeitos dessa oração e
das ações que se seguem a ela que a genuinidade da experiência
pode ser realmente provada, pois não há teste melhor a ser feito
que este. Se uma pessoa que recebe essa graça a reconhece por
aquilo que ela é, o que significa dizer que nosso Senhor está
concedendo a ela um enorme favor, o Senhor também lhe dará
outro grande favor se ela não recuar.
Vocês, portanto, desejarão, minhas filhas, lutar por ater-
se a esse modo de orar, e farão certo se agirem assim. Como eu
disse, a alma não consegue compreender por completo os favo-
res que o Senhor lhe concede. Nem o amor que nos atrai cada
vez mais para perto dEle. É, por certo, desejável que saibamos
como obter esse favor. Assim, eu lhes direi o que descobri a esse
respeito.
Os efeitos dessa oração são muitos, alguns dos quais men-
cionarei agora. Há um outro tipo de oração, no entanto, que se
inicia quase antes dessa. Deixe-me, portanto, falar um pouco
dela, embora eu já a tenha mencionado anteriormente.
É a Oração da Contemplação, que também a mim parece
ser divinamente concedida, pois não requer da alma estar no
escuro, nem fechar o olho, nem fazer qualquer gesto externo.
Ela quase sempre acontece sem que a desejemos, os nossos olhos
se fecham e desejamos a solidão. Então, sem qualquer plane-

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138 VIDA DE ORAÇÃO

jamento, ela é como um edifício que parece ser erigido para a


oração que já mencionei.
Os sentidos e todas as coisas externas então parecem per-
der sua influência sobre a alma, de modo que ela recupera o
que foi perdido. Dizem que a alma entra dentro de si própria, e
que algumas vezes se eleva acima de si mesma. Por meio dessas
expressões não conseguirei explicar coisa alguma, pois tenho
esta infelicidade de pensar que vocês me entenderão melhor de
acordo com o modo com o qual posso expressar a minha própria
experiência. Talvez, então, ninguém exceto eu mesma verda-
deiramente compreenda (Castelo Interior, IV, capítulo 3).
Nesse quarto estágio, não há nenhum sentido de coisa
alguma; há somente o desfrute, sem a compreensão do que seja
esse gozo que é concedido. Compreende-se que seja a frutifica-
ção de certo bem que contém em si todos os bens. Mas essa bon-
dade não é compreendida. Os sentidos estão todos ocupados
nesse desfrute de tal modo que nenhum deles tem a liberdade
de se concentrar em qualquer outra coisa, quer externa, quer
interna.
Os sentidos tiveram permissão, antes, de dar alguns sinais
da grande alegria que sentem. Mas agora, nesse estado, a alegria
da alma é incomparavelmente maior, e o poder de mostrá-la
está ainda menos disponível, pois não há nenhum poder no cor-
po ou na alma por meio do qual esse gozo possa se fazer conheci-
do. Qualquer coisa assim seria um grande entrave, uma tortura e
um distúrbio para o resto. E eu digo que se ela é realmente uma
união de todas as faculdades, a alma, mesmo que quisesse, não
poderia dar-se a conhecer, pois, se pudesse, então isso não seria
uma união.
Como isso que chamamos de união se dá e o que é não
posso dizer. A teologia mística pode explicá-la, mas eu não co-
nheço os termos dessa ciência. Não posso compreender o que é
a mente, nem como ela difere da alma ou do espírito, pois todas
as três me parecem ser a mesma coisa, embora eu saiba que a

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 139

alma às vezes salta para fora de si como um fogo que queima e


se torna uma chama. Ocasionalmente esse fogo aumenta ex-
tremamente e a chama se eleva acima do fogo. Mas ela não é,
entretanto, algo diferente. É a mesma chama do mesmo fogo.
O seu conhecimento, meus pais, os capacitará a compreender o
assunto, mas eu não posso ir adiante.
O que estou me comprometendo a explicar é aquilo que
a alma sente quando está em união com Deus. Está claro o sufi-
ciente aquilo que essa união é. Trata-se de duas coisas distintas
que se tornam uma só. Ó meu Senhor, como Tu és bom! Bendito
sejas para sempre, ó meu Deus! Que todas as criaturas louvem a
Ti, que nos amaste tanto, para que possamos verdadeiramente
falar dessa comunicação que Tu tens com as almas neste nosso
exílio! Sim, mesmo que elas sejam almas boas, é em Ti que en-
contramos generosidade e bondade. Em uma única palavra, é a
Tua benignidade, ó meu Senhor (Vida, XVIII).
Para falar sobre a Oração da Contemplação, omiti os efei-
tos ou sinais a serem observados nas almas a quem essa oração
é concedida por nosso Senhor. Fica claro que uma dilatação da
alma ocorre, como se a água que procede da fonte não tivesse
meios para correr. Ao contrário, a fonte possuía um equipamen-
to que, quanto mais a água fluísse dentro, maior se tornava a ba-
cia. Assim é com esse tipo de oração. Deus opera muitas outras
maravilhas na alma, adaptando-a e gradualmente capacitando-
a a reter tudo que Ele lhe dá.
Esse movimento delicado e a dilatação interior da alma
fazem com que ela esteja menos restrita a questões relacionadas
ao serviço de Deus do que era antes; ela também possui muito
mais liberdade. Não está angustiada por causa do medo do in-
ferno. Embora agora sinta um temor maior por ter ofendido a
Deus, está, no entanto, liberta do temor servil e tem uma maior
confiança de que desfrutará dEle. O temor que a alma costuma-
va ter de perder sua saúde por meio da prática ascética também
acabou, e ela pensa que pode fazer tudo em Deus. Tem mais

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140 VIDA DE ORAÇÃO

desejo que nunca de usar a disciplina espiritual. O medo das


aflições que costumava ter é também agora moderado, porque
ela possui uma fé mais viva. Ela sabe que se as suportar em nome
de Deus, Sua Majestade lhe dará graça para suportá-las com
paciência. Na verdade, às vezes a alma as deseja, uma vez que
possui um grande desejo de fazer algo para Deus. E como agora
compreende melhor a Sua grandeza, ela conseqüentemente se
considera mais desprezível.
Tendo também provado os deleites de Deus, a alma, em
comparação, considera os do mundo como esterco (Filipenses
3.8), passando a separar-se deles pouco a pouco. Ao fazer isso,
tem mais controle sobre si mesma. Em uma palavra, ela ama-
dureceu em toda virtude e não deixará de amadurecer cada vez
mais, a menos que seja relapsa e ofenda a Deus mais uma vez.
Tudo então seria perdido, por mais alto que a alma possa ter
chegado, na virtude e na contemplação (Castelo Interior, IV, ca-
pítulo 3).
Estou agora falando da água que desce do céu para encher
e saturar em sua abundância o jardim inteiro. Se nosso Senhor
nunca deixou de derramá-la sempre que necessário, o jardi-
neiro certamente teria tempo de sobra para descansar. Se não
houvesse inverno, mas uma estação única o ano todo, os frutos
e flores nunca murchariam. O jardineiro teria sempre prazer.
Nesta vida, no entanto, isto não é possível. Devemos sempre
ser cuidadosos, quando faltar uma água, na hora de obtermos
outra. Essa água do céu desce freqüentemente quando o jardi-
neiro menos espera.
A alma que busca a Deus está consciente da alegria ex-
cessiva e doce que é, como foi, desfalecer por completo em um
tipo de transe. A respiração e toda a força do corpo parecem
faltar, de modo a ser impossível mover as mãos sem grande dor.
Os olhos se fecham involuntariamente, e, se eles se abrem, não
conseguem ver nada. A leitura é impossível, pois as letras pare-
cem deslocar-se e não podem ser identificadas. Os ouvidos ou-

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 141

vem, mas aquilo que é ouvido não é compreendido. Os sentidos


não têm função, senão atrapalhar o gozo da alma, passando a
feri-la. É inútil tentar falar, porque não é possível conceber se-
quer uma palavra. Mesmo que ela fosse concebida, não haveria
força suficiente para proferi-la. Todo o vigor físico se esvai en-
quanto a força da alma aumenta, a fim de capacitá-la a desfrutar
melhor dessa alegria. Grande e mais perceptível também é a
alegria exterior que é agora sentida.
Por mais tempo que dure, essa oração não faz mal algum.
Ao menos não fez a mim. Nem me lembro, por mais enferma que
tenha estado no começo do processo, de ter piorado por causa
dela. Ao contrário, sempre melhorei depois de terminá-la. Que
mal poderia produzir uma bênção tão grande assim? Os efeitos
externos são muito claros para que não fique dúvida alguma de
que deve ter havido uma grande causa. Ela nos rouba de nossas
faculdades físicas com muita alegria, a fim de torná-las maiores.
A verdade é que ela passa tão rapidamente no início que
não consegue ser percebida nem pelos sinais externos, nem
pela falência dos sentidos. Mas fica claro, pela abundância
transbordante de graça, que o brilho do sol que foi mostrado
deve ter sido grande, uma vez que derreteu a alma. A mim me
parece que o período de tempo durante o qual as faculdades
da alma estiveram arrebatadas, por mais longo que pareça ter
sido, é realmente curto. Talvez meia hora, mas isso seria mui-
to. Eu não penso que jamais tenha estado em um transe assim
por tanto tempo.
A verdade da questão é esta: é extremamente difícil saber
a duração, porque os sentidos ficam em suspense. Mas penso
que, seja qual for o tempo, ele não pode ser muito longo, antes
que uma das faculdades se recupere. É a vontade que persiste
no trabalho. As outras duas faculdades rapidamente começam
a perturbá-la. Quando a vontade se acalma, elas voltam nova-
mente à superfície; por um tempo ficam em silêncio, e então se
recuperam mais uma vez.

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142 VIDA DE ORAÇÃO

Desse modo, algumas horas podem ter se passado em oração.


Quando as duas faculdades começam a beber fundo e sen-
tir o gosto desse vinho divino, elas se entregam com grande
disposição, a fim de serem absorvidas o máximo possível.
Elas seguem à vontade e as três se alegram juntas. Mas
esse estado de completa absorção, juntamente com o resto da
imaginação – pois eu creio que mesmo a imaginação fica total-
mente em repouso – dura apenas um período curto de tempo.
Embora as faculdades não se recuperem a ponto de serem as
mesmas por horas, Deus, no entanto, de tempos em tempos, as
atrai para Si.
Passemos agora a descrever aquilo que a alma sente inte-
riormente. Quem sabe o que se passa que descreva, pois, como é
impossível compreender, muito mais impossível é descrever.
Quando planejei escrever isto, eu havia acabado de expe-
rimentar e de me erguer da oração da qual estou falando. Estou
pensando naquilo que alma então estava fazendo. Nosso Se-
nhor me disse: “Ela se anula por completo, Minha filha, a fim
de que possa dar-se mais e mais a Mim. Não é ela quem agora
vive, mas Eu” (Gálatas 2.20). Uma vez que a alma não pode
apreender aquilo que não compreende, ela compreende quando
desiste de compreender.
Tudo que posso dizer é que a alma é representada como
estando perto de Deus. Subsiste certa convicção muito forte que
não consegue dissipar essa certeza. Agora, todas as faculdades
falham e ficam suspensas de tal modo que suas obras não podem
ser rastreadas. Se a alma está fazendo uma meditação em algum
assunto, a sua memória é perdida de uma vez, como se isso não
tivesse sido pensado. Se ela lê, aquilo que é lido não é lembrado
ou assimilado. Assim é com a oração vocal.
Quando comecei a ter essas experiências, me ocorreu que
eu era ignorante acerca de algo: não percebi que Deus esta-
va em todas as coisas. Quando Ele me pareceu estar tão perto,
pensei que isso devia ser impossível. Não acreditar que Ele es-

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 143

tivesse presente estava além de minhas forças, pois me pareceu


ser evidente que eu sentia Sua real presença ali. Alguns ho-
mens ignorantes costumavam me dizer que Ele estava presente
somente por intermédio de Sua graça. Eu não podia acreditar
nisso, porque Ele me parecia estar presente.
Então, fiquei angustiada. Foi um homem muito sábio da
Ordem Dominicana quem me libertou dessa dúvida, pois me
explicou que Ele estava presente e como tinha comunhão co-
nosco. Isso me foi de grande conforto.
É preciso observar e compreender que essa água do Céu,
essa grande graça de nosso Senhor, sempre deixa na alma os
melhores frutos (Vida, XVIII).
Quando a oração da união está concluída, permanece na
alma uma enorme ternura. Ela é tão grande que poderia des-
manchar-se, não a partir da dor, mas através de lágrimas de ale-
gria. Ela se encontra banhada nessas lágrimas sem que delas dê
conta, e não sabe como ou quando as derramou. Contemplar a
intensidade do fogo dominado pela água – o que o faz arder ain-
da mais – dá à alma um grande prazer. É como se estivéssemos
falando uma outra língua. É assim que acontece, no entanto.
Já me ocorreu em certas ocasiões, quando esta oração es-
tava concluída, de eu estar ao lado de mim mesma sem saber
se havia sonhado ou se o prazer que senti era realmente meu.
Vi-me numa enchente de lágrimas que haviam escorrido sem
dor com tanta veemência e rapidez que é como se uma nuvem
no céu as tivesse derramado. Isso não foi sonho. Foi assim co-
migo no início, quando ela passou muito rapidamente. A alma
permanece possuída de tanta coragem que, se fosse cortada em
pedaços, haveria grande consolo nisso.
Este, portanto, é um tempo de decisão resoluta, de deter-
minação heróica, de energia viva de bons desejos, do início da
aversão ao mundo e de uma clara percepção de sua vaidade. A
alma faz um progresso maior e mais elevado do que fez nos está-
gios anteriores de oração. Ela cresce mais e mais em humildade,

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144 VIDA DE ORAÇÃO

porque vê claramente que nem obter, nem reter essa graça a


capacitará a fazer coisa alguma por si mesma. Ela se vê como a
mais indigna de todas. É como o sol que entra com força em um
quarto onde nem uma teia de aranha pode ser ocultada. Ela vê
sua própria penúria de modo muito claro. A presunção própria
é tão remota que é como se ela nunca tivesse nenhuma, pois
agora os próprios olhos da alma contemplam quão pouco ela
poderia fazer, se é que faria alguma coisa.
A alma permanece a sós com Ele. O que significa isso se-
não amá-lO? Ela nem vê nem ouve, senão à força. Não há ne-
nhuma responsabilidade sobre a alma. Sua vida pregressa está
diante dela, juntamente com a grande misericórdia de Deus, em
aguda distinção. Não é mais necessário para alma ir, com o seu
entendimento, à procura de alimento, porque agora pode comer
e ruminar aquilo que já está preparado. No que diz respeito a si,
ela sabe que merece o inferno e que essa punição é justa.
Os bons efeitos dessa oração permanecem na alma por
algum tempo. Ela agora claramente assimila que o fruto não é
propriamente seu. A alma pode então começar a compartilhá-lo
com outros sem qualquer perda para si. Começa a mostrar sinais
de ser uma alma que está acumulando em si os tesouros do Céu, e
está desejosa de comunicá-los a outros. Anseia orar a Deus pedin-
do que não seja a única alma a ser enriquecida por eles.
Ela começa a beneficiar seu semelhante sem perceber, ou
sem fazer coisa alguma conscientemente. Seus semelhantes no-
tam o que ocorre porque a fragrância das flores ficou tão forte
que os faz querer se aproximar. Eles observam que essa alma está
cheia de virtude. Observam o seu fruto e o seu sabor delicioso e
desejam ajudá-la a comê-lo.
Se esse solo é bem cavado por tribulações, perseguições,
enfermidades e outras dificuldades, são poucos os que sobem tão
alto sem ele. Se a alma for quebrantada por meio de um gran-
de desprendimento de todo o interesse próprio, irá beber tanta
água que provavelmente jamais se ressecará de novo.

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A VIDA DE ORAÇÃO COMO UM JARDIM 145

Mas se o solo, que é mero lixo e está coberto de espinhos


(como eu, quando comecei), não evitar o pecado, ele então será
um chão ingrato, inapropriado para receber uma graça tão gran-
de, e se ressecará novamente. Se o jardineiro for descuidado e
se nosso Senhor em Sua bondade não enviar chuva sobre ele, o
jardim então estará arruinado. Assim tem sido comigo, mais de
uma ocasião, de modo que estou impressionada com tudo isso.
Se não tivesse tido essa experiência, eu mesma não acreditaria
que ela é possível.
Escrevo isto para o conforto das almas que são fracas como
a minha. Que elas nunca se desesperem nem deixem de confiar
no poder de Deus. Mesmo que caiam depois do Senhor as ter
colocado nesse alto patamar de oração, elas não devem desani-
mar, a menos que se percam por completo. As lágrimas do arre-
pendimento conquistam tudo, e uma gota d’água atrai outra.

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Capítulo V

O castelo interior: a vida inte-


rior como muitas mansões para a
presença de Deus – parte 1


Carta VII: ao ilustríssimo Dom Alonso Velasquez,
bispo de osuna

Óque eu possa fazer sua Reverência compreender a


quietude e a tranqüilidade que minha alma desfruta!
Pois estou muito certa de que desfruto de Deus. Ele parece ter
dado à minha alma a propriedade, embora não a satisfação, dEle.
É como se alguém tivesse, por meio de uma escritura, doado a
outra pessoa uma enorme propriedade sobre a qual ela tomaria
posse depois de um determinado período e da qual recebesse os
aluguéis. Por hora, no entanto, pode desfrutar somente da pro-
messa da escritura em seu nome.
Por causa da gratidão que sente pelo proprietário, ela
não deseja usufruir a propriedade agora. Acha que não a me-
rece. Seu único desejo é o de servi-lO, mesmo que em meio a
muito sofrimento. Ela às vezes acha que isso é muito pouco,
embora suas aflições possam durar até o fim do mundo, desde
que sejam úteis ao Doador da propriedade, pois, em verda-
de, essa pessoa não está sujeita às misérias do mundo como
costumava estar anteriormente. Embora persevere mais, isso
parece ser apenas externamente, pois a alma é como se fosse

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148 VIDA DE ORAÇÃO

um castelo com poder soberano; e assim, não tem qualquer


ansiedade.
Essa segurança, no entanto, não impede a alma de ter um
grande temor de ofender a Deus e de remover tudo que possa
comprometer o seu serviço a Ele. Na verdade, ela aumenta o seu
temor e cuidado. A alma, contudo, está tão atenta a seu próprio
interesse que parece em parte ter perdido sua essência, tão in-
conscientemente desinteressada tem se tornado. Em tudo está
atenta à glória de Deus e a como melhor fazer a Sua vontade.
Está atenta a glorificá-lo.
Uma paz interior, bem como a presença das Três Pesso-
as, continua. Elas o fazem de tal modo que claramente pareço
experimentar aquilo que o apóstolo João diz: “nós viremos a
ele e faremos morada nele” (João 14.23). Ele assim o faz, não
somente pela graça, mas faz também com que a alma perceba
a Sua presença, uma experiência que traz consigo tantas coisas
boas e que não pode ser adequadamente descrita, especialmente
porque não há nenhuma ocasião para buscar consideração por
saber que Deus está na alma.
Essa presença ocorre quase o tempo todo, exceto quan-
do a alma está oprimida por grave enfermidade. Às vezes pa-
rece que Deus desejou que ela sofresse sem qualquer consola-
ção interior. Mas nunca, nem durante um primeiro impulso,
isso faz com que a alma deseje que a vontade de Deus não
seja cumprida nela. A resignação da alma a essa vontade pos-
sui uma força tal que a faz não desejar nem a morte, nem a
vida, exceto por um período curto de tempo, quando deseja
ver a Deus.
Mas a presença dessas Três Pessoas é imediatamente re-
presentada para a alma com tal força que mesmo a minha tris-
teza por estar distante de meu Esposo é diminuída. Um desejo
de viver continua, se isto for de Sua vontade, a fim de servi-lO
mais. Meu desejo é o de ser apenas um instrumento que leve
ao menos uma alma a amá-lO mais, e a louvá-lO por todos os

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
149
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

meios. Embora seja por muito pouco tempo, penso que será mais
benéfico que desfrutar da glória eterna.
Vossa serva e filha indigna de Vossa Senhoria.
Teresa de Jesus

As primeiras mansões: oração pela auto-compreensão


diante de Deus

Parte um: A Beleza e Dignidade da Alma


Hoje, enquanto pedia ao Senhor que falasse através de mim,
não consegui pensar em nada a dizer e não tinha idéia de como
poderia cumprir a obrigação a mim imposta por meio de minha
obediência. Veio-me então à mente aquilo que deveria falar e co-
locar no papel a fim de ter uma base sobre a qual construir.
Ocorreu-me o pensamento de que cada uma de nossas al-
mas é como um castelo feito inteiramente de um diamante ou ao
menos de um cristal muito claro. Nele há muitos aposentos, assim
como no céu há muitas habitações (João 14.2). Ao refletir cuida-
dosamente sobre isso, irmãs, percebemos que a alma do justo nada
mais é do que um paraíso. Nela, Deus nos lembra que Ele se alegra
(Provérbios 8.31). Se Ele é um Rei tão poderoso, tão sábio, tão
santo e tão cheio de bondade, como você acha que deve ser um
aposento com o qual Ele se deleita? Nada pode ser comparável à
grandeza ou à beleza e à capacidade da alma. Este é um mistério
que mesmo o intelecto mais aguçado não pode compreender, assim
como não consegue compreender Deus. Mas Ele mesmo nos diz
que nos criou “à Sua imagem e semelhança” (Gênesis 1.26).
Bem, então, se isso é verdade, não há razão para nos des-
gastarmos tentando entender a beleza desse castelo. Embora ele
não seja nada além de criação Sua – e há uma enorme diferença
entre ele como há entre Deus o Criador e qualquer criatura – o
simples fato de Sua Majestade dizer que o fez à Sua imagem
significa que dificilmente podemos formar qualquer concepção
definitiva da sublime dignidade e beleza da alma.

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150 VIDA DE ORAÇÃO

É muito ruim e realmente lamentável que, através de


nossa própria transgressão, não compreendamos a nós mesmas
ou saibamos quem somos de fato. No entanto, não acharíamos
realmente absurdo se alguém fosse tão ignorante que, ao ser
inquirido sobre quem era, respondesse que não tinha idéia de
quem ele, ou seu pai, ou sua mãe era, ou em que país nascera?
Se isso é absurdamente estúpido, nosso estado não será
muito pior se não tentarmos descobrir quem somos ou souber-
mos apenas vagamente que estamos vivendo nestes corpos? Nós
somente supomos que, porque nossa fé assim nos diz, possuímos
nossas almas, mas não temos verdadeiramente como saber se
isso é verdade. Raramente consideramos qual a qualidade de
nossa vida interior, ou Quem habita ali, ou quão preciosa ela
realmente é. Como conseqüência, fazemos pouco esforço para
preservar a beleza da alma. Ao contrário, todo o nosso interesse
está concentrado naquilo que é externo, como em um diamante
em estado bruto, ou nos muros exteriores do castelo; isso signifi-
ca dizer que nos concentramos em nossos corpos.
Bem, imaginemos então que esse castelo – minha alma
– tem muitas Mansões. Algumas estão acima, outras embaixo,
outras ao lado. Mas no centro está a habitação principal, onde
ocorrem as trocas mais íntimas entre Deus e a alma.
É necessário que vocês tenham esta comparação em men-
te, pois talvez Deus queira usá-la para lhes demonstrar parte dos
favores que Ele se alegra em conceder às almas, bem como notar
a diferença entre eles.
Mas estou certa de que se alguém acha que será prejudi-
cado por crer que Deus concede esses favores, essa pessoa está
muito necessitada de humildade e de amor por seu semelhan-
te. Como podemos evitar a alegria de saber que Deus concede
esses favores a um irmão nosso, quando observamos que isso
não o impede de conceder o mesmo a nós? Sua Majestade às
vezes os concede somente para mostrá-los, como disse acerca do
homem cego a quem restaurou a vista (João 9.3). Ele concede

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

esses favores, portanto, não porque aqueles que os recebem são


mais santos do que aqueles que não os recebem, mas para que a
Sua grandeza possa ser manifestada. Observamos isto no caso do
apóstolo Paulo e de Maria Madalena. Assim, podemos louvá-lO
em Suas criaturas.
Alguns podem dizer, “Essas coisas parecem impossíveis,
portanto, não é bom escandalizar os fracos”. “Minha resposta é
que crer nessas maravilhas tem menos prejuízo do que se privar
de fazer o bem àqueles a quem Deus as concede”. A conseqüên-
cia será estar mais estimulada a amar Aquele que mostra tama-
nha misericórdia e Cujo poder e majestade são tão grandes.
Qualquer que seja o caso, não creio estar falando a alguém
que corra esse perigo, porque todos sabem e crêem que Deus nos
dá ainda maiores evidências de Seu amor. Mas se alguma de vo-
cês não crê nele, nunca o encontrará em sua própria experiência,
pois nosso Senhor tem um enorme desejo de que as Suas obras
não sejam limitadas. Assim, irmãs, nunca permitam que isso
aconteça a nenhuma de vocês.
Voltemos ao nosso belo e agradável castelo. Temos agora de
examinar como iremos entrar nele. Pode parecer que o que estou
dizendo é ridículo, porque, se esse castelo é a alma, é óbvio não
haver necessidade de entrar nele, uma vez que a alma é o próprio
castelo. Isso é tão ridículo quanto dizer a uma pessoa para ir a
um determinado aposento se ela já está nele. No entanto, vocês
devem compreender que há uma grande diferença entre um apo-
sento e outro. Muitas almas habitam perto dos muros do castelo,
a saber, onde estão os guardas, e, no entanto, não se interessam
em se deslocar mais para dentro dele, nem desejam saber aqui-
lo que está dentro desse precioso palácio, nem quem mora nele,
nem que aposentos ele possui. Vocês devem ter ouvido ou lido em
muitos livros de devoção que “uma alma é aconselhada a entrar
dentro de si mesma”. É exatamente isso que estou dizendo aqui.
Um homem muito instruído, certa vez, me disse que as
almas que não exercitam a oração são como um corpo que está

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152 VIDA DE ORAÇÃO

paralisado ou aleijado. Embora tenha mãos e pés, não pode usá-


los. Do mesmo modo, há algumas almas que estão tão fracas
e tão envolvidas com questões externas que não têm idéia de
como conseguir entrar dentro de si mesmas. Na verdade, fica-
ram tão acostumadas a lidar com os insetos e vermes que estão
nos muros que cercam o castelo, que se tornaram quase como
eles. Embora tenham recebido uma natureza tão ricamente do-
tada que sejam capazes de manter comunicação com o próprio
Deus, no entanto, não encontram remédio para si. Assim como
a esposa de Ló, que olhou para trás e se transformou em uma
estátua de sal, essas almas que não lutam para compreender e
melhorar sua condição de penúria serão do mesmo modo trans-
formadas em colunas de sal (Gênesis 19.26).
Conforme a entendo, a porta de entrada desse castelo é a
oração e a meditação. Estou falando tanto da oração silenciosa
quanto da vocal, pois, se uma pessoa não pensa a Quem está se
dirigindo e naquilo que está pedindo, eu não posso crer verda-
deiramente que esteja orando. Pode estar movendo os lábios
constantemente, mas isto é tudo. Na verdade, é possível às ve-
zes orar sem dar ouvido a essas coisas, mas isso somente porque
foram pensadas previamente. Se um homem tem o hábito de fa-
lar com a Majestade de Deus como se estivesse falando com um
escravo seu ou profere vãs repetições e nunca pondera e pensa
se está se expressando apropriadamente, ele então não ora.
Que Deus não permita que jamais cristão algum fale com
Ele desse modo! Minhas irmãs, espero em Deus que nenhuma
de vocês aja assim, pois estamos acostumadas aqui a conversar
sobre assuntos da alma. Essa é uma boa maneira de evitar cair
em práticas assim tão abomináveis.
Pensemos naqueles que, por fim, entrarão no castelo. No
momento, estão muito absorvidos por questões terrenas. Suas
intenções são boas. Às vezes, embora não com tanta freqüência,
eles se comprometem com nosso Senhor, mas pensam sem qual-
quer zelo sobre o estado de suas almas. Estão cheios de milhares

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

de preocupações, e assim oram somente algumas poucas vezes


no mês. Via de regra, estão pensando o tempo todo em seus afa-
zeres terrenos, pois estão muito ligados a eles. Somos lembradas
de que, “onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu co-
ração” (Mateus 6.21). Eles às vezes colocam essas coisas de lado,
e a compreensão e a consciência de que não estão progredindo
espiritualmente a fim de chegar à porta ganham importância.
Essas pessoas ao menos entram nos primeiros aposentos,
que são inferiores. Mas há tantos répteis atravessados no ca-
minho que elas são impedidas de ver as belezas do castelo e de
encontrar o silêncio interior. Sentem que fizeram o suficiente
simplesmente por terem entrado.
Agora, minhas filhas, vocês podem pensar que, por causa
da bondade do Senhor, não são como um desses, e que aquilo
que estou dizendo é irrelevante, mas, tenham paciência, pois
não há outro modo de explicar-lhes algumas das idéias que te-
nho tido sobre as questões interiores que dizem respeito à ora-
ção. Explicar-lhes aquilo que eu gostaria de dizer é muito difícil,
a menos que tenham tido essa mesma experiência pessoal. Mas
qualquer um que tenha tido uma experiência semelhante, como
vocês poderão ver, não conseguirá evitar falar nesses assuntos.

Parte Dois: A Feiúra do Pecado na Alma


Antes de seguir adiante, desejo que considerem o espetá-
culo que é contemplar esse castelo. Ele brilha magnificamente
e tem a beleza de uma pérola do Oriente; é uma árvore de vida
plantada junto a correntes de água da vida (Salmo 1.3).
Que tragédia é, quando ele, então, é imerso de volta no
pecado. Quando isso acontece, não pode haver escuridão mais
densa e nada mais obscuro e negro. Mas vocês precisam saber
somente uma coisa sobre isso, que é: embora o Filho tenha dado
a ela todo o seu esplendor e beleza, Ele ainda está ali, no centro
da alma. Se o pecado ocorre, no entanto, é como se Ele não
estivesse ali, desvinculando-se de qualquer participação que a

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154 VIDA DE ORAÇÃO

alma possa ter nEle. Isto, embora a alma seja capaz de desfrutá-
lo, assim como o cristal reflete a luz do sol.
Quando a alma está em uma situação como essa, não se
beneficia de coisa alguma. Por conseguinte, quando cai em pe-
cado, nenhuma das boas obras que ela possa fazer terá qualquer
utilidade para conceder-lhe glória, pois o pecado não tem sua
origem no princípio da graça, que é o de que Deus somente, que
é a causa de nossa virtude, é Ele mesmo virtuoso. Estar separado
dEle significa que não podemos agradá-lO de modo algum. Na
verdade, o propósito de qualquer um que cometa pecado é agra-
dar o Demônio, que é a escuridão encarnada, e não Deus. Desse
modo, a pobre alma se torna ela mesma escuridão.
Conheço alguém a quem nosso Senhor quis mostrar como
é para uma alma estar em pecado [novamente, a própria Teresa].
Esse alguém diz que se as pessoas realmente compreendessem
o estado pecaminoso, não cogitariam a possibilidade de pecar.
Seria ao menos impossível pecar deliberadamente, por mais que
a alma fosse testada da maneira mais severa. O Senhor deu a
ela um forte desejo de que todos pudessem perceber isso. Que
Deus possa dar a vocês, filhas, o desejo de implorar a Ele fervo-
rosamente por todos os que estão nesse estado, que se tornaram
escuridão total, e cujas obras também se tornaram escuridão.
Assim como todos os riachos que brotam de uma nascente
limpa são limpos, assim é uma alma em estado de graça. Porque
os riachos que têm origem nessa fonte de vida, uma fonte na
qual a alma é plantada como uma árvore (Salmo 1.3), são mais
agradáveis aos olhos de Deus e do homem. Mas não haveria
nenhum refrigério, nenhuma frutificação, se não fosse por essa
fonte que sustenta a árvore do homem justo. Ela impede que a
alma seque, e a ajuda a produzir bons frutos.
Em contraste, a alma que deliberadamente se separa dessa
fonte só pode estar plantada em uma poça de água suja e estag-
nada, de onde brotam igualmente riachos imundos e fétidos.
Mas, devemos entender de maneira clara que essa fonte e esse

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

sol resplendente – o centro da alma – não perdem seu brilho e


sua glória; eles sempre permanecem e nada pode tirar essa be-
leza; mas, se alguém cobrir o cristal com um pano preto quando
este estiver exposto ao sol, é óbvio que, embora o sol possa bri-
lhar sobre ele, isso não terá efeito sobre o cristal.
Almas redimidas pelo sangue de Jesus Cristo – saibam e
lamentem sobre si! Como é possível que, conhecendo essa ver-
dade como conhecem, vocês não tentam tirar o breu do cristal?
Considerem que, uma vez a vida terminada, vocês nunca volta-
rão a desfrutar dessa luz.
Ó Jesus! Que penúria há em contemplar uma alma que
esteja separada e privada dessa luz! Que objetos miseráveis são
as pobres Mansões de uma alma assim! Quão desordenados são
os seus sentidos! Quão infelizes são as pessoas que neles vivem!
Com que cegueira e desgoverno suas faculdades tomam deci-
sões; elas são seus governadores, defensores e mordomos! Em
resumo, quando uma árvore é plantada onde o Demônio está,
que fruto pode dar?
Certa vez ouvi um homem piedoso dizer, “eu não me per-
gunto sobre o mal que uma pessoa cometeu ao pecar, mas sobre
o que ela não cometeu.” Que Deus possa, em Sua misericórdia,
nos livrar de tão grande mal, pois, enquanto vivermos nesta
vida, o pecado merece somente o nome de mal, uma vez que
somente traz sobre nós mal eterno. Minhas filhas, isso é o que
devem temer, e de que devemos implorar a Deus que nos liberte
em nossas orações. Pois “se não é o Senhor que vigia a cidade,
será inútil a sentinela montar guarda” (Salmo 127.1). Nós so-
mos a própria vaidade.
Eu me referi a uma pessoa acima que disse, “recebi dois
benefícios do favor que Deus me concedeu ao mostrar o mi-
serável estado de minha alma no pecado”. O primeiro foi um
enorme temor de ofendê-lO, e, portanto, ela estava constante-
mente Lhe implorando que não a deixasse cair, pois conseguia
vislumbrar o terrível mal decorrente disso.

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156 VIDA DE ORAÇÃO

O segundo benefício foi que ela obteve um espelho a fim


de promover humildade nela, pois sabia que o bem que fazemos
não tem origem em nós, mas na fonte na qual a árvore de nossas
almas é plantada. É esse Sol que dá calor às nossas ações. Ela
disse que isso lhe foi tão claramente representado que, quando
fazia alguma boa obra, ou via alguma feita por outro, se referia
novamente a esse princípio de que Deus somente é a fonte de
toda bondade. Ela viu que sem Ele “nada podemos fazer” (João
15.5). Foi isso que a levou a louvar a Deus. Via de regra, sempre
que fazia alguma boa ação, nunca pensava em si.
Assim, irmãs, se puderem lembrar essas duas coisas, o tem-
po que terão gasto lendo tudo isso e o tempo que gastei escreven-
do não terão sido em vão.
Sei muito bem que é importante para vocês que eu lhes
explique essas coisas interiores o melhor que puder, uma vez que
sempre ouvimos: “que coisa boa é a oração”. Estamos limitadas,
por nossa Regra Carmelita, de exercitar a oração muitas horas ao
dia, conquanto isso não nos seja explicado. Pouco é mencionado
com respeito àquilo que podemos fazer em oração, ou em como o
Senhor opera dentro da alma, fazendo Sua obra sobrenatural.
Como isso nos é tão pouco explicado, será de grande con-
forto para nós contemplar esse edifício celestial e interno. Os
mortais o compreendem muito pouco, embora muitos passem
por ele.
Voltemos agora ao nosso castelo de muitas Mansões. Não
imaginem que essas Mansões estejam todas dispostas em uma
única fila, uma atrás da outra. Ao invés disso, fixem a sua aten-
ção no centro, no aposento ou palácio que é ocupado pelo Rei.
Pensem nele como um palmito [um arbusto que é comum no
leste e no sul da Espanha]. Ele tem muitas cascas que cercam
suas partes interiores, saborosas e delicadas, que devem ser to-
das retiradas antes que o coração possa ser degustado. Do mes-
mo modo, ao redor do aposento central, há muitas Mansões
belas, assim como em cima.

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
157
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

Em se tratando da alma, devemos sempre pensar nela


como uma esfera elevada, ampla e espaçosa. Isso pode ser feito
sem o menor exagero, porque a capacidade da alma é muito
maior do que podemos alcançar. O Sol que está nesse palácio
irradia a Sua influência a todas as partes dele.
Agora, é muito importante para uma alma que faz uso da
oração não se sentir confinada ou restrita dentro do palácio. Que
ela possa caminhar livremente por todas as Mansões, acima, abai-
xo, e em todos os lados, uma vez que Deus deu a ela tamanha dig-
nidade. Não se sinta constrangida a permanecer por muito tempo
em nenhuma Mansão, não, ao menos até que chegue à Mansão
do autoconhecimento. Esse é o andar correto para se começar. Se
pudermos viajar avançando de maneira segura, por que iríamos
querer asas para voar? Façamos todos os esforços para progredir no
autoconhecimento. É minha opinião, no entanto, que nunca co-
nheceremos a nós mesmas por completo, a menos que busquemos
conhecer a Deus. É contemplando Sua Majestade que tomamos
contato com a nossa inferioridade. É olhando para a Sua pureza
que enxergaremos a nossa imundície. É refletindo sobre a Sua hu-
mildade que veremos quão distantes estamos de ser humildes.
Vocês devem ter notado que, nessas Primeiras Mansões,
quase nenhuma luz vem da câmara do Rei. Embora não sejam
escuras ou negras, como quando a alma está em pecado, elas,
contudo, são de algum modo obscurecidas, de modo que a alma
não é iluminada nesses aposentos. Isso não se deve a qualquer
transgressão das Mansões, mas porque há muitas coisas más
como serpentes, lagartos, víboras e outras criaturas venenosas
que entram na alma e não permitem que ela perceba a luz. É
como se uma pessoa entrasse em um lugar onde o sol estivesse
brilhando, mas seus olhos estivessem tão cobertos de lama que
ela não conseguisse abri-los. Na verdade, o chão é brilhante,
mas ela não desfruta de seu brilho por causa do impedimento de
coisas como esses animais selvagens ou feras rastejantes que fa-
zem com que a pessoa feche os seus olhos a tudo, exceto a eles.

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158 VIDA DE ORAÇÃO

Assim, penso que essa deva ser a condição da alma. Em-


bora ela talvez não esteja em uma situação ruim, está tão envol-
vida com as coisas deste mundo e tão absorvida por suas posses-
sões, sua honra ou seus muitos afazeres que, conquanto queira
ver e desfrutar de sua beleza, essas coisas não lhe permitem fazer
assim, nem ela se sente capaz de escapar desses muitos impedi-
mentos.
É muito importante que, se deseja entrar no interior dessas
Segundas Mansões, a alma lute para desistir de qualquer ativi-
dade que não seja necessária. Até que faça isso, ela nunca con-
seguirá entrar nas Mansões íntimas do castelo. Ao invés disso,
permanecerá na primeira série de aposentos onde já está e onde
estará exposta ao perigo. Ali, entre muitas criaturas peçonhen-
tas, é impossível não ser picada em um ou outro momento.
Pensem também, minhas filhas, na possibilidade de que
nós que já estamos livres dessas ciladas, como estamos, e entra-
mos mais adiante dentro do castelo a outros lugares secretos,
possamos retornar, por meio de nossas transgressões, ao lugar
onde há tanto tumulto. Por causa dos nossos pecados, há muitas
pessoas a quem Deus pode ter concedido favores e que caíram
de volta a esse estado de miséria.
Aqui, em nosso convento, estamos livres dos perigos ex-
ternos. Mas, nas questões internas do coração, que o Senhor
se agrade de que também estejamos livres e possa nos libertar.
Assim, guardem-se, minhas filhas, de todos os cuidados exterio-
res. Lembrem-se de que há poucas habitações nesse castelo nas
quais os demônios não estão preparados para travar batalhas.
Sim, é verdade que há alguns aposentos onde os guardas
(ou seja, as nossas faculdades) têm força para lutar. Mas é essen-
cial que não sejamos descuidadas em reconhecer as artimanhas
do Demônio e também que ele nos engana disfarçando-se em
anjo de luz. Há muitas coisas que ele pode fazer para nos preju-
dicar, pois pode entrar sutilmente até causar todo o dano sem
que percebamos.

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

Ele é de fato um espertalhão silencioso. Precisamos reco-


nhecê-lo desde o princípio. Deixe-me dizer algo agora que lhes
explicará isso melhor.
Por exemplo, Satanás pode dar a uma irmã vários dese-
jos de fazer penitência. A ela pode parecer que não consegue ter
descanso a não ser quando atormenta a si mesma. Esse pode
ser um bom começo. Mas se a Superiora ordenou que nenhu-
ma penitência devesse ser feita sem permissão e o Demônio
faz a irmã pensar que a prática é tão boa que deva ser feita à
revelia, ela pode entregar-se a isso secretamente, a ponto de
perder a sua saúde e não observar a Regra que foi ordenada.
Vocês, portanto, observam claramente que esse bem acaba em
mal.
Ou o Demônio pode inspirar outra irmã com grande zelo
a buscar a santidade. O zelo é bom em si mesmo, mas pode ser
exercido de tal modo que cada pequena falta que as irmãs co-
metam pareça a ela uma transgressão séria. Ela se tornará crítica
ao observar se elas cometem essas coisas, e então informará à
Superiora. Isto poderia acontecer inclusive em momentos em
que ela não veja suas próprias transgressões, por causa de seu
zelo intenso pela observância religiosa. Uma vez que as outras
irmãs não compreendem o que está se passando dentro dela, e,
no entanto, observam todo a sua preocupação, elas podem não
aceitar tão entusiasticamente esse seu zelo.
O objetivo do Demônio em tudo isso não é modesto. É,
de fato, o esfriamento do amor recíproco e de nossa caridade.
Isso produz grande dano à comunidade. Lembremos, filhas, que
a verdadeira perfeição consiste no amor a Deus e ao próximo.
Quanto mais somos capazes de observar esses dois preceitos
consistentemente, mais perfeitas seremos. A nossa Regra como
um todo e nossas Constituições para nada mais servem senão
capacitar-nos a fazer essas duas coisas com mais perfeição. Evi-
temos, portanto, o zelo exagerado que pode nos ferir como co-
munidade, e que cada uma cuide de si.

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160 VIDA DE ORAÇÃO

Esse amor mútuo é tão importante que espero que vo-


cês nunca o esqueçam, pois é através da obsessão com questões
insignificantes sobre os outros – com pouco conhecimento do
interior da alma da outra pessoa – que uma pessoa crítica pode
perder sua própria paz de espírito e também perturbar a paz de
outras. Considerem, portanto, o custo daquilo que estão fazen-
do em sua busca por santidade.
O Demônio também pode suscitar tentações contra a Su-
periora, e isso pode se mostrar, nesse caso, ainda mais perigoso.
Grande discernimento, portanto, é necessário. Se as fal-
tas são cometidas contra “as regras e constituições”, elas não
podem ser tratadas superficialmente; mas é a Superiora, e não
outras, que deve ser informada sobre elas. Se não forem corrigi-
das, a Superiora deve saber sobre o assunto, pois isso é caridade.
Novamente, se qualquer falta grave for constatada entre as ir-
mãs e relevada, mesmo se esse gesto seja por medo de que possa
ser somente uma tentação, isso por si só é uma tentação.
Assim, devemos tomar muito cuidado para que o Demô-
nio não nos engane e intimide a não mencionar o problema
a outra pessoa. Desse modo, ele pode obter muito proveito e
introduzir o hábito da fofoca na comunidade. Falem sobre isso
com quem pode e deve remediar o mal, pois, nesta casa que
é para a glória de Deus, não deve haver espaço para a fofoca;
pelo contrário, o silêncio contínuo deve ser guardado. Devemos
manter nossa guarda para o nosso bem.

As segundas mansões: oração de contemplação acerca


do caráter de Deus e a necessidade da auto-entrega

A Importância da Perseverança
Consideremos agora os tipos de alma que entram nas Se-
gundas Mansões e o que elas fazem ali.
Esta seção tem a ver com as que já começaram a praticar
a oração e que percebem a importância de não permanecer nas

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
161
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

Primeiras Mansões. Elas, ao mesmo tempo, não têm determi-


nação suficiente para permanecer nesse segundo estágio sem
retornarem esporadicamente, pois não evitam as oportunidades
para pecar. A falha em evitá-las pode ser muito perigosa. Essas
pessoas, no entanto, têm recebido uma boa dose de misericórdia
no fato de que encontram um modo de escapar das cobras e ou-
tras criaturas venenosas, ainda que apenas por períodos curtos.
Elas percebem que é bom fugir delas.
Em certo sentido, essas almas têm uma dificuldade muito
maior do que as que estão nas Primeiras Mansões, mas correm
menores perigos, pois parecem agora entender sua situação, e
há uma enorme esperança de que penetrem ainda mais fundo
no castelo.
Eu digo que habitar nesses aposentos envolve mais esfor-
ço, porque os que estão nas primeiras habitações são como sur-
dos-mudos. Assim, a dificuldade de não falar é mais facilmen-
te tolerada por surdos-mudos do que por aqueles que ouvem,
mas não podem falar, ou seja, os das Segundas Mansões. Essas
pessoas são capazes de ouvir o Senhor quando Ele as chama.
Uma vez que estão chegando mais perto de onde habita Sua
Majestade, Ele é um ótimo vizinho. Tão grandes são sua miseri-
córdia e bondade que, embora continuemos viciadas em nosso
passado, nossos afazeres, nossos prazeres e negócios, e embora
ainda caiamos no pecado e nos levantemos de novo, contudo,
nosso Senhor anseia tanto por nossa companhia que nos chama
incessantemente para virmos a Ele. Sua voz é tão doce que nos-
sa pobre alma é consumida pela tristeza quando não consegue
cumprir Sua ordem de imediato. É por isso que eu digo que uma
alma assim sofre mais do que se não conseguisse ouvi-lO.
Não quero com isso dizer que Ele fale conosco e nos cha-
me de uma maneira pré-determinada. Seus apelos vêm através
de conversas com pessoas boas, de sermões, da leitura de livros
devocionais ou de muitas outras maneiras através das quais te-
mos ouvido Deus nos chamar. Eles podem vir através da doença

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e da adversidade. Seus apelos podem ser feitos por meio de uma


verdade especial que Ele nos ensinou durante nossos períodos
de oração. Por mais descuidados que esses tempos de oração
possam ser, eles, no entanto, são muito estimados por Deus.
Assim, minhas irmãs, não negligenciem esse favor, nem
desanimem, embora possam não corresponder de imediato ao
nosso Senhor. Sua Majestade sabe como esperar muitos dias e
até anos, especialmente quando vê que estamos perseverando
com desejo sincero. É isso o que mais precisamos fazer, porque
pela perseverança nunca deixaremos de ganhar muito.
Mas o ataque do Demônio pode ser mais terrível de mi-
lhares de maneiras diferentes e causar mais aflição à alma do
que nas Mansões anteriores. Nelas a alma era muda e surda, ou
ao menos ouvia pouco e resistia com muito menor freqüência,
desistindo de toda esperança de vitória. Mas nessas Mansões a
compreensão é muito mais alerta e as faculdades são aguçadas,
embora o estrépito de armas e o barulho do canhão sejam tão
altos que a alma não consiga evitar ouvi-los.
Aqui os demônios novamente mostram à alma as víboras,
isto é, as coisas deste mundo. Eles agora, no entanto, fingem que
esses prazeres terrenos são quase eternos em seu valor. Lembram
constantemente à alma a estima que os homens têm tido por nós.
Eles nos lembram nossos amigos e parentes. Fazem-nos lembrar
que nossa saúde será arruinada pelas austeridades de nossa au-
todisciplina, pois uma alma que deseja entrar nessas Mansões
sempre começa a desejar a automortificação. Dessa maneira e em
milhares de outras, eles nos apresentam obstáculos.
Ó Jesus! Que confusão os demônios trazem à nossa pobre
alma. E quão angustiante é não saber se podemos seguir adiante
ou se temos de retornar às Mansões onde estávamos antes!
Por outro lado, a razão diz à alma o quanto ela está enga-
nada em pensar que essas coisas terrenas são de muito pouco va-
lor se comparadas àquilo que está buscando. A fé ensina à alma
aquilo que é suficiente para ela. A memória revela como todas

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
163
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

essas coisas chegarão ao fim, e lembra-lhe que os que têm rece-


bido muita alegria delas têm morrido. Eles às vezes têm morrido
de repente e sido rapidamente esquecidos. Pessoas que eram co-
nhecidas por serem muito prósperas estão hoje debaixo da terra.
Quando pisamos sobre seus túmulos, pensamos que agora seus
corpos estão cheios de vermes. Destas e de muitas outras coisas
a alma é lembrada pela memória.
A vontade se inclina a amar Aquele em Quem ela tem
visto muitos atos e sinais de amor. Ela gostaria de voltar a essa
Pessoa. A alma fica particularmente impressionada de que esse
verdadeiro Amante nunca a abandona, mas sempre espera por
ela e lhe dá vida e existência. A faculdade da compreensão en-
tra, então, e ajuda a alma a saber que, mesmo que viva muitos
anos, nunca encontrará um amigo melhor que Deus. O mundo
está cheio de engano. Esses prazeres que o Demônio propõe a
ela estão cheios de problemas, cuidados e contradições. Assim,
a compreensão dá à alma a certeza de que, fora desse castelo, ela
jamais encontrará segurança ou paz. Ela lembra à alma que não
deve ir a outras Mansões, uma vez que essa Mansão está muito
bem abastecida de coisas boas; é só a alma usufruir delas.
Quão afortunada, então, é a alma que pode encontrar
tudo de que necessita em casa, especialmente quando tem um
Convidado que lhe dá todas as coisas boas como possessão. As-
sim, por que vagar longe de casa como um filho pródigo e ser
forçado a comer a comida dos porcos?
São reflexões como esta que ajudam a vencer os demô-
nios. Mas, ó meu Senhor e meu Deus, como tudo é arruinado
pelos hábitos tolos nos quais caímos, e pela maneira como todos
os seguem! A nossa fé é tão morta que desejamos aquilo que ve-
mos mais do que aquilo sobre o que a fé nos fala. E, na verdade,
só vemos infortúnio sobrevindo àquelas pessoas que perseguem
esses desatinos visíveis.
Mas essas coisas venenosas com as quais estamos lidando
são a causa desse infortúnio, pois se um homem é picado por

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164 VIDA DE ORAÇÃO

uma víbora, seu corpo inteiro incha e fica envenenado. Assim


é neste caso, e nós, no entanto, não nos cuidamos, nem nos
vigiamos. Claramente, há muitos remédios necessários para
curar-nos, e Deus muito nos favorece quando não morremos da
picada. Obviamente, essa alma sofrerá grandes provações nes-
se tempo, especialmente se o Demônio vir que seu caráter e
seus hábitos são tão firmes que ela esteja pronta a fazer maiores
progressos espirituais. Todos os poderes do inferno, então, se
juntarão para tê-la de volta novamente.
Ah, meu Senhor! A tua ajuda é tão vigorosamente ne-
cessitada aqui, pois, sem ela, nada podemos fazer! Assim, em
Tua misericórdia, não permitas que essa alma seja enganada e se
desvie quando sua jornada apenas começou. Dá-lhe luz para ver
que todo o seu bem-estar consiste em evitar as más companhias.
É, portanto, muito importante conversar com aqueles que estão
andando no caminho certo, não somente com os que estão nos
mesmos aposentos onde a alma está, mas também com aqueles
que ela sabe terem entrado mais para dentro das Mansões que
estão mais próximas do Rei, pois será de grande ajuda para a
alma poder conversar com eles de tal modo que possam levá-la
com eles para mais adiante.
Assim, deixe que a alma tenha um propósito fixo de não
se permitir ser picada, pois se o Demônio vir que ela está re-
solutamente decidida a perder sua vida e paz e qualquer coisa
para não retornar às Primeiras Mansões, em breve deixará de
incomodá-la. Que a alma esteja sempre em guarda, a fim de que,
nesse ataque, não seja derrotada pela rendição.
Sejam, portanto, cuidadosas, e não como aqueles que,
quando foram para a batalha, se ajoelharam para beber (Juí-
zes 7.5, ou seja, com Gideão). Que esteja determinada, uma
vez que está indo lutar com todos os demônios. Não há melhor
arma que a cruz. Embora tenha mencionado isso em outras oca-
siões, faço questão de repetir aqui, pois desde o início devemos
evitar pensar nessas coisas como favores espirituais. Esse é um

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

modo muito pobre de começar a construir um edifício tão nobre


e caro. Se começarmos a construí-lo sobre a areia, ele desabará e
sempre teremos aborrecimentos e tentações. Não é nessas Man-
sões, mas nas que estão adiante, que o maná desce do Céu. Uma
vez nelas, a alma terá tudo aquilo que anseia ter, porque deseja
somente aquilo que é a vontade de Deus e que agrada a Deus.
É, na verdade, muito estranho, embora estejamos cheios
de milhares de imperfeições e impedimentos e que nossas vir-
tudes sejam tão imaturas que mal tenhamos aprendido como
caminhar, que, a despeito de tudo isso, descobrimos que não
temos vergonha de desejar os prazeres da oração e de reclamar
dos períodos de aridez. Nunca permitam que isso lhes aconteça,
minhas irmãs. Ao contrário, recebam a cruz que o seu Noivo
carregou sobre Seus ombros e percebam que vocês também de-
vem carregá-la. Que aquele que é capaz do maior sofrimento
sofra mais por Ele e experimentará a mais perfeita liberdade. Na
verdade, todas as outras coisas têm importância secundária. Se
nosso Senhor por acaso concedê-las a vocês, então dêem a Ele
as mais sinceras graças.
Vocês podem pensar que estão plenamente decididas a
resistir a todas as provações exteriores se Deus tão-somente lhes
conceder favores interiores. Mas Sua Majestade sabe melhor
aquilo que é suficiente para nós. Ele não precisa de conselhos
quanto àquilo que nos deve dar, uma vez que pode justamen-
te nos dizer, “vocês não sabem o que estão pedindo” (Mateus
20.22). Nunca esqueçam que o principiante em oração deve,
acima de tudo, trabalhar, estar decidido e se preparar com toda
diligência possível para fazer com que a sua vontade se confor-
me à vontade de Deus.
É na vontade de Deus que reside toda a verdadeira espiri-
tualidade. É nela que fazemos nosso progresso espiritual. Quan-
to mais perfeitamente a praticarmos, mais receberemos de nosso
Senhor, e mais adiante avançaremos em Seu caminho. Mas não
pensem que devemos usar jargão estranho ou tentar fazer coisas

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166 VIDA DE ORAÇÃO

sobre as quais não temos conhecimento ou compreensão, pois o


nosso completo bem-estar está naquilo que já descrevi, a saber,
em fazer a vontade de Deus.
Mas se errarmos no início e desejarmos que Deus imedia-
tamente faça a nossa vontade e nos conduza de acordo com as
nossas fantasias, que força terá esse edifício? Esforcemo-nos em
fazer tudo que pudermos e em nos cuidar com relação a essas
criaturas venenosas que o Senhor freqüentemente permite que
nos importunem. Na verdade, elas nos afligem sem que consiga-
mos nos livrar delas. Há ocasiões em que Ele permite que essas
feras nos piquem e nos deixem na aridez espiritual, para que
possamos posteriormente aprender como evitá-las. Ele então
deseja provar se estamos arrependidos por tê-lO entristecido.
Mas não desanimem se às vezes caírem. O mais importan-
te é não negligenciar a caminhada adiante, pois com essas que-
das Deus pode suscitar o bem a nosso favor, assim como prover
o antídoto para aqueles que tomaram o veneno. Isso prova que
seu antídoto é realmente eficaz.
Mesmo se não víssemos nossa condição miserável ou o
grande mal que uma vida distraída nos faz por qualquer outro
meio que não este assalto, ele por certo seria suficiente, pois
pode haver mal maior do que aquele que encontramos habitan-
do dentro de nossa própria casa? Que esperança podemos ter de
conseguirmos descansar na casa de outras pessoas se não puder-
mos descansar em nossa própria casa? Mas parece que aqueles
amigos e parentes mais íntimos e sinceros (quero dizer as facul-
dades da alma) com quem sempre devemos viver às vezes fazem
guerra contra nós, como que sentindo a rebelião que os nossos
vícios suscitaram contra eles. “Paz, paz seja com vocês”, minhas
irmãs, como disse nosso Senhor (João 20.21). Mas, creiam-me,
se não tivermos paz nem nos empenharmos em encontrá-la em
nosso próprio lar, não a encontraremos no lar de outra pessoa.
Assim, pelo sangue de Cristo derramado por nós, que essa
guerra dentro de nós cesse. Imploro a vocês que ainda não co-

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

meçaram a entrar dentro de suas próprias almas, e a vocês que


começaram, que não permitam que essa guerra as faça recuar.
Devem perceber que cair uma segunda vez é pior que cair a pri-
meira. Vocês podem observar que isso as levará por fim à ruína.
Que esses habitantes, portanto, coloquem sua confiança
não em si, mas na misericórdia de Deus, e possam ver como Sua
Majestade as conduzirá de uma Mansão a outra e as colocará
em uma terra onde essas feras não poderão tocá-las ou atacá-
las, mas onde poderão subjugá-las e rir delas com escárnio. Elas
então, mesmo nesta vida, poderão desfrutar de mais coisas boas
do que jamais imaginaram.
A contemplação só pode vir suavemente. Vocês poderão
posteriormente praticá-la por períodos cada vez mais longos de
tempo. Assim, não falarei mais disso aqui, exceto para decla-
rar a minha convicção de que é muito importante para vocês
consultar pessoas com mais maturidade e experiência. Caso
contrário, pensarão que estão falhando seriamente ao fazer algo
necessário. Contanto que não abandonemos nossa vida de ora-
ção, o Senhor transformará tudo que fazemos para nosso be-
nefício, embora não encontremos ninguém para nos ensinar.
Não há outro remédio para esse mal de desistir da oração do
que começar de novo. Caso contrário, a alma irá gradualmente
continuar a perder um pouco mais a cada dia. Que Deus lhes
permita perceber isso.
Algumas de vocês podem ser tentadas a pensar que seja
perigoso recuar. Não seria melhor nunca ter entrado, mas per-
manecer sempre do lado de fora do castelo? Eu já lhes disse no
começo, e o Senhor disse também, “o caminho dos ímpios leva
à destruição” (Salmo 1.6). A porta pela qual podemos entrar
nesse castelo, no entanto, é a da oração.
Pensar que podemos entrar no Céu sem oração e que po-
demos entrar no interior de nós mesmas sem o conhecimento de
quem somos e a consciência de nossa própria miséria e daquilo
que devemos a Deus é mera tolice, pois nosso Senhor mesmo

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168 VIDA DE ORAÇÃO

disse, “ninguém vem ao Pai, a não ser por mim” (João 14.6).
Não sei se são exatamente estas as palavras, mas penso que são.
Ele também acrescenta, “quem me vê, vê o Pai” (João 14.9).
Agora, se nunca olharmos para Cristo, nem considerar-
mos o quanto devemos a Ele, não vejo como poderemos co-
nhecê-lO ou realizar obras em Seu nome, pois que valor pode
ter a fé sem essas coisas, e que valor podem ter essas coisas, se
não estão unidas aos méritos de Cristo? Nem podemos saber
quem pode nos estimular a amar esse Senhor. Que Sua Majes-
tade nos faça saber como custamos a Ele um alto preço, e que
“o discípulo não está acima do seu mestre” (Mateus 10.24).
Devemos trabalhar a fim de desfrutar de Sua glória, e por esta
razão devemos também orar, para que não caiamos em tenta-
ção (Mateus 26.41).

As terceiras mansões: o engano de uma vida boa e


exemplar ainda centrada em si mesma

Parte Um: A Precariedade Moral da Vida


Para aqueles que, por meio da bondade de Deus, têm ven-
cido essas batalhas, e, através da perseverança, têm alcançado
as Terceiras Mansões, que direi eu? Certamente estas palavras:
“Como é feliz o homem que teme o Senhor” (Salmo 112.1).
Não tem sido pequeno o favor que Sua Majestade tem
concedido de me fazer entender agora o significado destas pa-
lavras em minha própria língua. Com razão chamamos tal ho-
mem de “feliz”, uma vez que, até onde podemos entender, a
menos que recue, ele está agora seguro de sua salvação.
Aqui vocês vêem, irmãs, quão importante é ter vencido
as batalhas anteriores, pois considero certo que o Senhor não
deixará de colocar a alma que chegou até aqui em segurança de
consciência. E isso não é pouca bênção. Eu disse “segurança de
consciência”, mas eu errei, pois não há segurança nesta vida.

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

Assim, entendam sempre que quero dizer “a menos que ele se


desvie do caminho no qual começou”.
É verdadeiramente uma grande miséria ter de viver uma
vida na qual andamos como homens cujos inimigos estão pos-
tados às suas portas, e que não podem, portanto, colocar de lado
suas armas, mesmo quando estão dormindo ou comendo. Ao
contrário, estão sempre com medo de serem surpreendidos por
uma brecha ou ponto fraco em sua fortaleza.
Ó meu Senhor e meu Deus! Como desejas que vivamos
uma vida tão miserável, tornando impossível de nossa parte evi-
tar o desejo e o pedido de que sejamos dela tirados? Assim pedi-
ríamos, não fosse a esperança de perdê-la por Ti, ou de gastá-la
inteiramente em Teu serviço, e, acima de tudo, porque sabemos
que é Teu prazer que a vivamos. Se assim for, meu Deus, que
morramos contigo, como disse Tomé (João 11.16). Pois viver
sem Ti, e com medo de que seja possível perder-Te para sempre,
nada mais é que morrer muitas vezes.
Assim, eu penso, filhas, que a bênção pela qual devemos
orar é a de desfrutarmos a completa segurança dos bem-aventu-
rados, pois que prazer alguém pode ter quando está sitiado por
esses temores, se o seu único prazer consiste em agradar a Deus?
Considerem que tudo isso e muito mais poderia ser dito acerca
de algumas almas santificadas que caíram em pecados graves; e,
no entanto, não podemos estar certos de que Deus nos dará a
Sua mão e nos ajudará a abandonar esse mal.
Certamente posso assegurar-lhes, minhas filhas, que, en-
quanto escrevo estas palavras, estou tão dominada pelo medo
que não sei o que escrever nem como viver quando reflito sobre
este assunto. E isso faço freqüentemente. Assim, orem, minhas
filhas, para que Sua Majestade possa viver sempre dentro de
mim, pois, caso contrário, que segurança pode ter uma vida
como a minha, que tem sido tão má? Mas não se aborreçam de
ouvir que ela tem sido assim. O que poderei fazer, no entanto, se
eu perder esta santidade por causa de minha transgressão? Não

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170 VIDA DE ORAÇÃO

posso reclamar que Deus tenha cessado de me ajudar a cum-


prir Seus desejos para comigo. Não posso evitar dizer isso sem
lágrimas e grande confusão quando percebo que escrevo para
aqueles que são capazes de me instruir.
Essa é uma obediência difícil. Mas que o Senhor conceda
que, como isso foi realizado em Seu nome, que possa de algum
modo mostrar-se benéfico a vocês. Se não por qualquer outra ra-
zão, que isso possa ajudá-las a implorar o perdão de nosso Senhor
por esta pecadora miserável tão convencida. Mas Sua Majesta-
de sabe que só posso supor isso por Sua misericórdia. Uma vez
que não posso evitar ter sido o que fui, não tenho outro remédio
senão recorrer à Sua misericórdia e confiar nos méritos de Seu
Filho. Mesmo os meus pecados e o ser o que sou não têm sido
suficientes para trazer qualquer mancha a esta Ordem sagrada.
Mas desejo adverti-las contra uma coisa, a saber, a presun-
ção. Lembrem-se de que, embora Davi fosse um homem muito
santo, vocês lembram em que Salomão se tornou. Não devem se
apoiar no fato de que estão enclausuradas e têm vidas de peni-
tência. Nem devem ser confiantes demais porque estão sempre
falando sobre Deus, continuamente envolvidas com oração ou
completamente afastadas das coisas deste mundo e, até onde eu
sei, as aborrecem. Todas essas práticas são muito boas, mas não
são razões suficientes, como eu disse, para que paremos de ter
medo. Repitam este versículo sempre e tenham-no em mente:
“Feliz é o homem que teme ao Senhor” (Salmo 112.1).
Retornando ao que comecei a dizer com respeito às almas
que entraram nas Terceiras Mansões, eu poderia considerar isso
como um grande favor que nosso Senhor concedeu a elas. Na
verdade, trata-se de um favor muito especial, a saber, que elas
venceram as primeiras dificuldades, pois creio que há muitas al-
mas assim no mundo que, através da bondade de nosso Senhor,
estão extremamente desejosas de não ofender Sua Majestade.
Elas se guardam de cair em pecado; são amantes da disciplina
espiritual; gastam horas em meditação e oração. Ao fazer isso,

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
171
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

ocupam-se bem, e estão exercitadas nas obras de caridade para


com os seus semelhantes. São muito regulares em todas as suas
ações e na administração de seus próprios lares, ao menos as que
têm famílias.
Trata-se de um estado muito desejável, e parece não haver
nenhuma razão para que lhes seja negada a entrada na última
das Mansões. Nem nosso Senhor lhes negará isso se estiverem
dispostas a ir adiante, pois se trata de uma excelente disposição
essa, a de induzi-lO a mostrar-lhes todos os tipos de favores.
Ó Jesus! Quem não exclamará que está desejoso de tama-
nha bênção, especialmente por ter superado a maior de todas
as provações? Todos devem desejá-la. Na verdade, todos dize-
mos que a desejamos. Mas se algo mais é exigido a fim de que
nosso Senhor tome posse por completo de nossa alma, não é
suficiente dizer essas palavras, assim como não foi suficiente
para aquele jovem rico que perguntou a nosso Senhor como ser
perfeito (Mateus 19.16-22). Na verdade, desde que comecei a
falar sobre essas Mansões, tenho estado com aquele jovem rico
em minha mente, pois somos exatamente como ele. Esta, via
de regra, é a origem dos nossos longos períodos de esterilidade
em oração, embora eles possam também ter outras causas. Não
estou falando aqui de provações inferiores, que podem irritar
extremamente muitas almas boas sem que tenham cometido
transgressão alguma. Nosso Senhor sempre resgata os piedosos
dessas provações, para enorme benefício deles. Ele também as-
sim o faz para aqueles que sofrem de depressão e de outras enfer-
midades emocionais. Na verdade, nessas coisas devemos deixar
que Deus seja o juiz.
Mas eu pessoalmente creio que aquilo que disse é o que
normalmente acontece. Uma vez que essas almas percebem
que nada deveria induzi-las a cometer um pecado, muitas delas
não cometeriam intencionalmente nem um pecadilho [pecado
pequeno]. Assim, conduzem bem suas vidas e suas casas. Com
uma atitude como essa, não conseguem aceitar pacientemente

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172 VIDA DE ORAÇÃO

que a porta de entrada do palácio onde habita nosso Rei esteja


fechada para elas, uma vez que se consideram Suas servas. Mas
embora um rei aqui na terra tenha muitos súditos, nem todos
entram em seus aposentos íntimos.

Parte Dois: Aridez na Vida de Oração


Conheço algumas almas – e creio que posso dizer muitas
– que alcançaram esse estágio e têm vivido muitos anos nesse
caminho honrado e bem ordenado tanto no corpo quanto na
alma, até onde se sabe. No entanto, depois de todos esses anos,
quando parecia que elas tinham obtido completo controle sobre
o mundo ou estivessem agora totalmente desconectadas dele,
Sua Majestade enviou-lhes provações nada pequenas. No pro-
cesso, elas se tornaram tão inquietas e deprimidas no espírito
que ficaram exaltadas. Na verdade, fizeram com que eu passasse
a temê-las por completo. Parece inútil lhes dar qualquer conse-
lho, pois há tanto tempo estão envolvidas na prática da vida es-
piritual que podem ensinar outras; ao mesmo tempo, se sentem
mais justificadas para estarem deprimidas como estão.
Bem, com pessoas assim eu não consigo encontrar – nem
nunca encontrei – qualquer modo de encorajá-las, exceto ex-
pressar grande tristeza por sua dificuldade. Quando então perce-
bo que as estou fazendo sentir-se mais miseráveis, realmente me
entristeço por elas. É inútil argumentar com elas, pois persistem
em remoer seus ais e se convenceram de que estão sofrendo em
nome de Deus.
Assim, elas nunca compreendem que o tempo todo isso se
deve à sua própria imperfeição. Não deveríamos estar surpresos
diante do que estão experimentando. No entanto, penso que
os sentimentos amontoados devem passar rapidamente, pois é
quase sempre propósito de Deus que Seus eleitos estejam cons-
cientes de sua miséria, de modo que Ele retira a Sua ajuda de-
les por um tempo, não mais do que o necessário para fazer-nos
reconhecer nossas próprias limitações muito rapidamente. Elas

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
173
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

devem perceber a realidade de que ainda estão sofrendo por coi-


sas terrenas e não muito importantes. É, eu penso, uma grande
misericórdia da parte de nosso Deus que, embora estejam no
erro, possam obter uma grande parcela de humildade.
Infelizmente, esse não é o caso das pessoas sobre quem
estou falando, pois, embora teoricamente admirem esses ideais
e desejem que outros os admirem do mesmo modo, elas não
os estão experimentando de fato. Assim, mencionemos alguns
desses sentimentos para que possamos compreender e nos pro-
var antes que o Senhor nos prove, pois é muito importante de
antemão estarmos preparados e termos algum entendimento
acerca de nós mesmos.
Suponhamos que haja uma pessoa rica, sem filhos ou al-
guém a quem desejasse deixar seus bens e que perca a sua saúde.
Ela, no entanto, não perdeu tudo; não carece de nada para si
ou para a manutenção de sua casa. Pode até mesmo ter sobras
para poupar. Agora, se ela andasse aparentando preocupação e
perturbação como se não tivesse sequer uma casca de pão para
comer, como nosso Senhor pode pedir-lhe que deixe tudo por
amor a Ele? Pode ser, é claro, que esteja sofrendo por querer dar
o dinheiro aos pobres, mas eu acho que Deus preferiria que eu
me resignasse àquilo que Sua Majestade faz, e mantivesse mi-
nha própria paz de espírito a fazer atos de caridade como esse.
Essa pessoa, portanto, não pode renunciar a si mesma,
porque o Senhor não a guiou nesse sentido. Muito bem. Mas
ela deveria entender que carece desse espírito de liberdade. E
porque o Senhor lhe pedirá isso, ela deve se preparar para que o
Senhor possa dar-lhe isso.
Ou suponham que outra pessoa tenha abundância de re-
cursos para viver e algo para poupar. Suponham que se apresente
uma oportunidade de obter mais propriedade e que ela a aprovei-
te. Se lutar para obtê-la, no entanto, e mais e mais, por melhor
que seja a sua intenção, esse indivíduo pode estar certo de que
nunca entrará nas Mansões que estão mais próximas do Rei.

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174 VIDA DE ORAÇÃO

É a mesma coisa quando as pessoas são desprezadas de al-


gum modo ou se perdem a sua reputação. Deus freqüentemente
lhes concede a graça de suportar essas provações bem, pois ama
ajudar as pessoas a serem virtuosas para com as outras. Isso Ele
faz para que a virtude em si que elas possuem não seja desvalo-
rizada. Ou talvez Ele as assista porque elas O serviram, pois esse
nosso Deus é de fato bom. No entanto, elas ficam inquietas,
pois não conseguem fazer aquilo que gostariam ou controlar os
seus sentimentos.
Meu Deus! Não são essas mesmas pessoas que antes es-
tavam meditando em como o Senhor sofreu e pensando que
coisa boa era poder sofrer, e que estavam até mesmo querendo
sofrer? Gostariam que outras vivessem uma vida regrada como
elas tinham. Deus, não permitas que elas agora imaginem que as
ansiedades que estão sofrendo são somente pelas transgressões
de outros, pois em seus próprios pensamentos elas se imaginam
verdadeiramente virtuosas.
Vocês podem pensar, irmãs, que estou me desviando do
assunto e que aquilo que estou dizendo não se relaciona a vocês.
Aqui, nesta casa, não há coisas assim, uma vez que não temos
o desejo nem buscamos por riqueza, nem ninguém nos causa o
menor dano. Vocês podem dizer que essas comparações não têm
nada a ver com vocês.
É verdade que esses exemplos não se aplicam diretamente
a nós, mas muitas deduções e aplicações são relevantes, pois é
por meio dessas comparações que você descobre a si mesma ou
se está completamente desconectada de todos os laços que ha-
via abandonado. Incidentes insignificantes ocorrem, os quais,
embora não exatamente os mesmos que este, ainda lhes dão a
oportunidade de se autotestarem e descobrirem se realmente
obtiveram o controle sobre suas próprias paixões.
Creiam-me, a questão não está centralizada em vestir este
ou aquele hábito religioso, mas em tentar praticar a virtude e
em submeter a sua própria vontade em tudo à de Deus. Ela tam-

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
175
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

bém consiste em regularmos nossas vidas de acordo com aquilo


que Sua Majestade ordenar e indicar, e desejarmos não a nossa
própria vontade, mas a dEle. Uma vez que possamos ainda não
ter atingido esse estágio de humildade, vamos praticá-la, pois
ela é o ungüento de nossas feridas. Se formos verdadeiramente
humildes, Deus, o nosso Médico, virá no tempo devido, embora
possa demorar-se, a fim de nos curar.
As disciplinas ascéticas que devem ser praticadas são equi-
libradas, assim como suas vidas são. Elas têm um grande desejo
por essas disciplinas, de servir ao Senhor por meio delas. Não
há nada errado com isso, e assim elas são muito discretas ao
fazê-las de um modo que não prejudique sua saúde. Não tenham
qualquer medo de que se matem, pois elas são pessoas eminen-
temente sensíveis! Seu amor não é ainda ardente o suficiente
para dominar a sua razão.
Como desejo que não nos contentássemos com esse há-
bito de sempre servir a Deus em ritmo de lesma! E, como pa-
recemos estar caminhando e nos cansando o tempo todo, pois
se trata de uma jornada desgastante, devemos nos considerar
afortunadas se escaparmos de nos perder. Vocês não acham, fi-
lhas, que se pudéssemos chegar a um país, vindo de outro, em
uma semana, seria aconselhável, com todos os ventos, neve,
enchentes e estradas ruins levar um ano para isso? Ou não seria
melhor encerrar a jornada rapidamente? Há, pois, todos esses
obstáculos para superarmos e há também o perigo das serpentes.
Eu poderia lhes dizer muito mais sobre tudo isso! Eu diria a Deus
que havia chegado mais adiante do que cheguei, embora esteja
sempre temerosa de que não tenha chegado!
Quando seguirmos adiante com timidez e cautela, en-
contraremos pedra de tropeço em toda parte, pois estamos com
medo de tudo e não ousamos ir em frente. Não temos coragem
de nos aventurar e crer que poderíamos chegar a essas Mansões,
deixando outras para resistir às dificuldades do caminho. Isso,
no entanto, não é possível.

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176 VIDA DE ORAÇÃO

Assim, irmãs, pelo amor de Deus, nos encorajemos a con-


tinuar e a deixar nossas razões e nossos medos em Suas mãos.
Esqueçamos essa fraqueza natural que nos ocupa tão facilmente.
Deixemos que nossas Superioras tomem conta de nossos corpos,
pois essa é a preocupação delas. Nossa única tarefa é viajar com
boa velocidade para que possamos ver o Senhor. Embora tenha-
mos pouco ou nenhum conforto aqui, estaremos cometendo um
grande erro se nos preocuparmos com a nossa saúde, especial-
mente porque ela não melhorará por causa da ansiedade. Isso eu
sei por experiência própria. Também sei que o nosso progresso
não tem nada a ver com o corpo, que é a coisa que menos im-
porta de todas.
A jornada sobre a qual estou me referindo exige grande
humildade, e é a falta dela que nos impedirá de fazer progresso.
Podemos pensar que avançamos apenas alguns poucos passos e
considerar que o progresso de nossas irmãs é muito mais rápido.
Além disso, devemos lutar para que elas nos considerem muito
piores que outras.
Quando a humildade estiver presente, esse estado será de
extrema excelência. Mas se não houver humildade, permanece-
remos nesse estado toda a nossa vida e sofreremos milhares de
dificuldades e de aflições. Sem a auto-renúncia completa esse
estado é muito árduo e opressivo. Deveríamos caminhar opri-
midos por esse barro da nossa miséria humana, que não é tanta
naqueles que alcançaram as Mansões mais recentes.
Nessas Mansões atuais, o Senhor não deixa de nos recom-
pensar com justiça e mesmo com generosidade, pois Ele sempre
nos dá muito mais do que merecemos ao nos conceder sereni-
dade espiritual. Esta serenidade é muito maior do que aquilo
que eu poderia obter com os prazeres e distrações desta vida.
Mas eu não acho que Ele dê muitas bênçãos espirituais, exceto
quando ocasionalmente nos convida para ver aquilo que está
acontecendo nas Mansões restantes, de modo que possamos nos
preparar para entrar nelas também.

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
177
MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

A vocês pode parecer que as consolações e os deleites es-


pirituais sejam a mesma coisa. Por que então eu devo fazer essa
distinção? Para mim parece haver uma grande diferença entre
os dois. Eu poderia estar errada, no entanto, mas falarei sobre
isso quando falar das Quartas Mansões, pois então terei algo a
dizer sobre as consolações que o Senhor dá àqueles que habitam
nelas.
Grande conforto é dado às almas que Deus conduz às
Quartas Mansões. E a confusão vem sobre aqueles que pensam
que já têm tudo. Se as almas forem humildes, elas serão levadas
a dar graças. Mas se houver falta de humildade, elas sentirão
uma aversão para a qual não encontrarão motivo. A maturidade
espiritual e a sua recompensa não consistem em deleites espi-
rituais, mas no aumento do amor. Nossas ações de justiça e de
verdade dependem disso.
Qual a utilidade de falarmos dessas bênçãos interiores, e
como podemos descobrir como elas devem ser conhecidas? Isso
eu não sei. Pergunte Àquele que me ordenou que escrevesse so-
bre o assunto, pois eu não contestaria minhas Superioras, uma
vez que isso seria inconveniente. Eu simplesmente lhes obede-
ceria. O que posso verdadeiramente lhes dizer é que, quando
eu não tinha nenhuma dessas bênçãos, não sabia nada delas
por experiência, e de fato nunca esperei ter conhecimento de-
las em toda a minha vida, contudo, quando escrevo em livros
sobre essas bênçãos e consolações que o Senhor concede às al-
mas que o servem, isso me dá muito conforto e me leva a dar
muitos louvores a Deus. Bem, se Ele fez isso a mim, cuja alma
é tão deplorável, então aquelas almas que são boas e humildes
O louvarão muito mais! E se somente uma pessoa for levada a
louvá-lO ainda que uma vez, é muito bom que o assunto seja
mencionado. Podemos então aprender mais sobre a alegria e a
felicidade que perdemos através de nossa transgressão.
Mas não imaginem que não haja importância nenhuma
se trabalhamos ou não para obtê-las, pois, se a transgressão não

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178 VIDA DE ORAÇÃO

é nossa, o Senhor é justo e aquilo que Sua Majestade nega a


vocês desse modo, Ele lhes dará de outros, uma vez que Sua
Majestade sabe o que é melhor. Os segredos, no entanto, estão
escondidos no fundo. Tudo o que Ele fizer será, sem a menor
sombra de dúvida, o melhor para nós.
É pela bondade do Senhor que somos conduzidos a esse
estado. Ele nos mostra grande misericórdia em nos conduzir até
Ele. Mas é de grande benefício para nós que estamos a ponto
de sermos elevados ainda mais alto perceber que devemos estar
mais atentos para Lhe dar pronta obediência.
Embora essas pessoas não estejam em uma ordem religio-
sa, é de grande importância para elas ter alguém a quem se di-
rigir, como muitas pessoas fazem. Assim, não estarão seguindo
suas próprias prescrições em nada, pois essa é normalmente a
maneira que temos de nos prejudicar espiritualmente e de nos
enganar. Elas não deveriam procurar ninguém que esteja mol-
dado na mesma fôrma que elas, que pode apenas adulá-las, ao
invés de lutar para que se desprendam das coisas deste mundo.
Elas deveriam, no entanto, conseguir alguém que conheça bem
os enganos do mundo, porque, conversando com quem já os co-
nheça, estarão mais bem capacitadas a descobrir esses enganos
por elas mesmas. Pelo fato de que algumas coisas que em prin-
cípio parecem impossíveis se tornam possíveis quando observa-
mos que outros podem executá-las facilmente e são santificados
nelas, escolher alguém que diga quem tem tido sucesso muito
nos encorajará. Por meio de seu vôo, podemos nos aventurar a
voar, assim como fazem os jovens pássaros. Embora não consi-
gam, num primeiro momento, fazer um vôo alto, eles, no entan-
to, o fazem aos poucos ao imitarem os mais velhos.
Por mais determinadas que essas pessoas estejam em não
ofender a Deus, é melhor, no entanto, que não corram nenhum
risco de ofendê-lO, pois estão tão perto das Primeiras Mansões
que poderiam facilmente retornar a elas se a sua coragem não
repousasse sobre um sólido fundamento. Assim, elas precisam

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O CASTELO INTERIOR: A VIDA INTERIOR COMO MUITAS
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MANSÕES PARA A PRESENÇA DE DEUS – PARTE 1

da orientação daqueles que já estão calejados com o sofrimento.


Essas pessoas estão familiarizadas com as tormentas do mundo e
percebem que não há quase nenhuma necessidade de temê-las
ou de desejar os prazeres mundanos, pois, se aqueles de quem
estou falando tivessem de sofrer grandes perseguições, poderiam
muito bem retornar a esses prazeres. E o Demônio sabe bem
como provocar essas tempestades a fim de nos prejudicar. Es-
sas pessoas, intentando através de um zelo louvável impedir os
pecados de outras, mostram-se incapazes de resistir àquilo que
pode acontecer a elas em certas ocasiões.
Assim, cuidemos de nossas próprias transgressões, e não
nos perturbemos com as de outras pessoas, pois aqueles que vi-
vem vidas cuidadosamente regradas estão aptos a se chocarem
com qualquer coisa, ainda que possamos aprender lições muito
importantes com aqueles que nos chocam. É verdade que a nos-
sa conduta e comportamento externos podem parecer melhores
que os deles, mas isso, embora seja bom, não é a coisa mais im-
portante. Não deveríamos esperar que todo o mundo trilhasse a
nossa própria jornada, e não deveríamos tentar indicar a eles o
caminho espiritual quando talvez não saibamos o nosso.
Mesmo com esses desejos de que Deus possa dar-nos de
ajudar outros, irmãs, podemos cometer muitos erros. Portanto,
a melhor atitude é seguirmos a direção de nossa Regra, que é:
sempre se empenhem em viver no silêncio e na esperança, uma
vez que nosso Senhor cuidará das almas que Ele ama. E se não
negligenciarmos a oração a Sua Majestade, iremos, com Sua
ajuda, avançar muito. Que Ele seja bendito para sempre.

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Capítulo VI

O castelo interior –
parte 2


As quartas mansões: a oração de quietude e o princípio
de um encontro pessoal com o Deus vivo

Parte Um: Os Benefícios da Oração Contemplativa

A gora que estou para falar das Quartas Mansões, é


necessário, como eu disse, que me entregue ao Espírito
Santo, implorando-Lhe que fale por mim. É necessário que eu diga
algo sobre essas Mansões que vocês ainda possam compreender,
pois aqui começo a tocar em assuntos sobrenaturais. É muito
difícil explicar, a menos que Sua Majestade tome isso nas mãos,
assim como fez quando discorri sobre o assunto, até onde podia
compreender, catorze anos atrás. Embora eu tivesse aprendido e
experimentado essas coisas, é diferente tentar explicar os favores
que Deus concede a algumas almas. Assim, que Sua Majestade
possa incumbir-se disso, se houver alguma vantagem a ser obtida
com esse gesto. Se não houver, então não desejo fazê-lo.
À medida que as Mansões se aproximam da câmara onde o
Rei habita, maior é a sua beleza. Há coisas refinadas a serem vistas
e apreciadas de modo a fazer com que o entendimento seja inca-
paz de encontrar palavras para explicá-las. Mas qualquer um que
tenha experiência entenderá muito bem o que estou dizendo.

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182 VIDA DE ORAÇÃO

Para chegar a estas Mansões, talvez seja necessário viver


por um longo tempo nas anteriores. Via de regra, é preciso ter
morado naquelas que já descrevi, embora a regra não seja infa-
lível em relação a isso, pois nosso Senhor concede Seus favores
quando, como e a quem Lhe aprouver; e como seus dons perten-
cem a Ele, não se trata de cometer injustiça com ninguém.
Répteis venenosos raramente entram nessas Mansões. Se
entrarem, não farão mal algum. Na verdade, talvez façam até
algum bem à alma. Penso que nesse estado de oração é muito
melhor para eles entrar e fazer guerra contra a alma, pois, se não
houvesse tentações, o Demônio poderia desencaminhar a alma
com respeito às consolações dadas por Deus. Essas víboras fazem
muito mais mal do que ele pode fazer quando a alma está sendo
tentada. Não acho seguro uma alma permanecer sempre em um
mesmo estado. Nem me parece possível que o Espírito de Deus
continue, durante esse exílio, no mesmo estado.
Preciso discutir as diferenças entre consolações e deleites
espirituais. O termo “consolações” pode ser dado a essas expe-
riências que adquirimos através de nossas próprias meditações
e petições ao Senhor. Isso procede de nossa própria natureza,
embora, é claro, Deus desempenhe um papel no processo (Em
todas as coisas que digo vocês devem entender o papel dEle,
pois, sem Ele, nada podemos fazer).
Essas “consolações” têm origem nas boas obras que rea-
lizamos e que pensamos ter adquirido através do nosso esforço
próprio. Estamos certas em sentir satisfação por ter trabalhado
desse modo. Mas quando pensamos atentamente sobre isso, a
mesma satisfação talvez tenha origem nas inúmeras coisas que
podem nos acontecer aqui no mundo.
Por exemplo, uma pessoa pode repentinamente adquirir
uma propriedade valiosa, ou também repentinamente encon-
trar alguém por quem se apaixone, concluir uma atividade ou
alguma outra coisa importante com sucesso, de modo que todos
falem bem dela, ou uma mulher pode saber que seu marido,

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 183

irmão ou filho está morto e então que voltou à vida. Em experi-


ências como essas tenho visto pessoas derramarem lágrimas de
grande alegria. Eu mesma já fiz isso. Penso então que, embora
essas consolações de alegria nos sejam naturais, elas também
nos são fornecidas pelas coisas de Deus, conquanto pensemos
nas últimas mencionadas como sendo mais nobres. No entanto,
as outras não são ruins. Em algumas pessoas, as consolações de
alegria em oração têm sua origem na natureza humana, embora
terminem em Deus.
Podemos resumir dizendo que, embora os deleites espi-
rituais tenham sua origem em Deus, a natureza humana pode
sentir e desfrutar deles tanto quanto sente e desfruta daqueles
mencionados acima – na verdade, muito mais. Ó Jesus! Como
anseio ser capaz de explicar-me nisso! Pois penso discernir uma
diferença clara, embora não tenha o conhecimento para ser ca-
paz de me explicar. Que o Senhor me ajude a fazê-lo.
Eu me lembrei de um versículo que dizemos ao final do últi-
mo Salmo às 6 da manhã. As últimas palavras do versículo foram
“percorrerei o caminho dos teus mandamentos, quando dilatares
o meu coração” (Salmo 119.32). Para qualquer um que tenha
tido alguma experiência espiritual, essas palavras são suficientes
para mostrar a diferença entre as consolações e os deleites espiri-
tuais. Para aqueles que não tiveram essa experiência, há a neces-
sidade de mais explicação. O salmista indica que as consolações
que são mencionadas não dilatam o coração. Ao contrário, elas
parecem contraí-lo, embora haja grande consolo ao ver aquilo
que é feito em nome de Deus. Ele, no entanto, derrama algumas
lágrimas amargas que parecem de algum modo ser resultado das
paixões. Não sei muito sobre essas paixões da alma. Se soubesse
mais, talvez pudesse então deixar as coisas mais claras e explicar
aquilo que procede da carnalidade e aquilo que é de nossa própria
natureza. Mas sou muito lerda. Se eu tão-somente soubesse como
explicar a mim mesma da forma como experimentei. Conheci-
mento e aprendizado são de grande ajuda para tudo.

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184 VIDA DE ORAÇÃO

Mas a minha própria experiência dessa condição (quero


dizer, dessa alegria e consolação que vem através da meditação)
é a de que, se eu começasse a chorar por causa de minha pai-
xão, não conseguiria parar até que ficasse com uma forte dor de
cabeça. Se fizesse assim por meus pecados, a mesma coisa acon-
teceria. O Senhor então me concedeu um grande favor. Não
quero entrar no assunto sobre a diferença entre uma e outra,
ou examinar se uma é melhor que a outra, pois as lágrimas às
vezes rolam em consideração a essas coisas e os desejos brotam
auxiliados por nossa própria natureza e temperamento. Mas,
como disse, elas ao menos terminam em Deus, a despeito de sua
natureza. Elas devem ser valorizadas se houver humildade para
compreender que ninguém é melhor que ninguém por causa de
suas experiências, pois não é possível saber se elas são resultado
do amor. Mas quando são, isso é dom de Deus.
Em sua maioria, as almas que habitam nas Mansões pos-
teriores são aquelas que têm esses sentimentos de devoção, pois
trabalham quase que continuamente com o entendimento e
fazem uso dele em suas meditações. Elas estão certas de agir
assim, porque nada mais tem sido experimentado por elas. No
entanto, também seria bom, às vezes, se elas se empenhassem
em realizar atos de amor e de louvor a Deus, se alegrassem em
Sua bondade e em Seus outros atributos e também desejassem
Sua honra e glória. Ao fazermos tudo isso da melhor maneira
que pudermos, esses atos estimularão poderosamente a vontade.
Mas que elas tomem o cuidado, no entanto, quando o Senhor
lhes conceder essas afeições, de não abandoná-las, a fim de con-
cluírem sua meditação habitual.

Parte Dois: Experiências Confusas na Vida Contemplativa


Às vezes, fico terrivelmente confusa e oprimida pela agi-
tação do pensamento. Na verdade, foi somente há quatro anos
que comecei a entender, por experiência, que “pensamento”
(ou falando de modo mais claro, imaginação) não é a mesma

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 185

coisa que compreensão. Perguntei a um homem instruído sobre


isso e ele disse que eu estava muito certa. Isso me deu encoraja-
mento, pois, uma vez que a compreensão é uma das faculdades
da alma, eu achava difícil enxergar por que ela era, às vezes, tão
indecisa, ao passo que pensamentos, via de regra, voam tão rá-
pido que somente Deus pode refreá-los. E isso Ele faz por vezes,
nos unindo de tal modo que parecemos em certo sentido estar
libertas deste corpo. Mas me frustra ver como as faculdades da
alma, como pensei, estavam ocupadas com Deus e recolhidas
nEle, enquanto a imaginação (pensamento) parecia, por outro
lado, tão confusa e excitada.
Ó Senhor, leva em conta as muitas coisas que sofremos
como conseqüência da falta de conhecimento! O pior disso é
que não percebemos que precisamos saber mais quando pensa-
mos em Ti, e, no entanto, não podemos perguntar àqueles que
sabem. Na verdade, não temos qualquer idéia sobre aquilo que
devemos perguntar. É por isso que temos de sofrer provações
terríveis, porque não entendemos a nós mesmas. Muitas vezes
nos preocupamos com relação àquilo que não é mau, mas bom,
e às vezes pensamos de maneira muito errada.
É desse modo que as aflições de muitas pessoas que pra-
ticam a oração e suas reclamações de provação interior – es-
pecialmente se são pessoas sem instrução – geram depressão.
A saúde delas se deteriora e elas deixam de orar porque não
conseguem perceber que há um mundo interior aqui dentro
de nós. Não podemos deter mais a revolução dos Céus, que se
move com tanta velocidade que precisamos restringir os nossos
próprios pensamentos. As faculdades da alma a acompanham,
e pensamos que estamos perdidos e que desperdiçamos o tempo
gasto diante de Deus.
Enquanto isso a alma talvez esteja totalmente unida a
Ele nas Mansões que estão muito próximas de Sua presença,
enquanto a mente está nos arredores do castelo, sofrendo com
milhares de feras selvagens e venenosas, merecendo favor por

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186 VIDA DE ORAÇÃO

meio desses sofrimentos. Isso não deveria nos aborrecer, nem


deveríamos ser tentados a desistir da luta, como o Demônio
tenta fazer. Grande parte dessas provações e desses tempos de
inquietude tem origem no fato de não compreendermos a nós
mesmas.
Mesmo enquanto escrevo, penso sobre aquilo que está se
passando em minha cabeça com o grande barulho que mencio-
nei no início. Fica quase impossível, para mim, escrever aqui-
lo que fui ordenada a escrever. É como se houvesse em minha
cabeça muitos rios afluentes e que essas águas estivessem cor-
rendo leito abaixo. Um grande número de passarinhos parece
estar cantando, não em meus ouvidos, mas na parte superior
da cabeça, onde dizem que está a parte mais elevada da alma.
Eu fiquei nessa parte superior de meu ser por um longo tempo,
pois pareceu que esse movimento poderoso do espírito é de uma
elevação muito rápida.
Por favor, Deus, que eu possa me lembrar de mencionar
a causa dessa elevação ao discutir sobre as habitações que vêm
adiante; este não é um lugar certo para fazê-lo, no entanto. Na
verdade, eu não me surpreenderia se o Senhor tivesse me dado
essa dor de cabeça para que eu pudesse entender melhor essas
coisas, pois toda essa agitação em minha mente não impede
a oração ou aquilo que estou dizendo, mas a alma é comple-
tamente tomada em seu silêncio, enquanto o amor em minha
alma fica totalmente intacto, bem como seus desejos e a sua
clareza de mente.
Mas se a parte mais elevada da alma está na parte supe-
rior da cabeça, então por que a alma não se perturba? Não sei a
resposta para isso. Mas o que sei é que aquilo que digo é verda-
deiro. Eu sofro quando a minha oração não se faz acompanhar
por uma suspensão das faculdades. Quando as faculdades são
suspensas, no entanto, nenhuma dor é sentida até que a suspen-
são passe. Seria algo terrível se essa experiência me forçasse a
desistir de todo da oração.

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 187

Parte Três: A Oração da Contemplação em Atenção a Deus


Imaginemos que os sentidos e as faculdades, que tenho
chamado de guardiões do castelo, tenham saído dele, e, por dias
e anos, se associado a estranhos para quem todas as coisas boas
no castelo sejam detestáveis. Percebendo então o quanto per-
deram, retornam a ele, sem contudo entrar de volta no castelo,
porque os hábitos que formaram são agora difíceis de reverter.
Eles não podem, no entanto, ser considerados traidores, e assim
caminham pelos arredores do castelo. O grande Rei, que habita
nas Mansões dentro desse castelo, percebe a boa intenção deles
e, em Sua grande misericórdia, deseja trazê-los de volta para Si.
Como um Bom Pastor, Suas ovelhas conhecem a Sua voz por
meio de uma melodia que quase não conseguem ouvir (João
10.4). Ele assim o faz para que elas não vagueiem e se percam,
mas retornem a suas Mansões. Esse chamado do Pastor tem
tanto poder que elas abandonam imediatamente todas aquelas
coisas externas que as enganam e se apressam a voltar para o
castelo. Não penso que tenha explicado isso melhor antes do
que expliquei tão claramente aqui.
Buscar a Deus dentro de nós é encontrá-lO mais efetiva-
mente e mais beneficamente que em outras criaturas. Refiro-me
a Santo Agostinho que, tendo-o buscado em muitos lugares, o
encontrou dentro de si (Confissões, X, 27). Será, portanto, uma
grande ajuda se Deus nos conceder esse favor. Não suponham
que a compreensão possa alcançá-lO meramente ao tentar pen-
sar nEle como existindo dentro da alma, ou mesmo por meio da
imaginação, retratando-O ali. Trata-se de um bom hábito, um
excelente método de meditação, pois está baseado nessa verda-
de, a saber, que Deus está dentro de nós. Mas não é isso o que
quero dizer aqui, porque todos podem fazer isso com a ajuda de
nosso Senhor.
A oração sobre a qual estou falando é de uma natureza
bem diferente. Essas pessoas, às vezes, estão no castelo antes de
terem começado a pensar em Deus. Não posso dizer quando en-

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188 VIDA DE ORAÇÃO

traram ou como ouviram o chamado do Pastor. Ele certamente


não veio pelo ouvido, porque não houve externamente nenhum
chamado audível, mas a experiência de um doce recolhimento
no interior delas, semelhante ao recolhimento que aqueles que
passam por esse caminho experimentam. Não sei como expres-
sar melhor o que quero dizer.
Penso que ouvi que essa experiência é comparada à de
uma tartaruga, que se recolhe dentro de si mesma. Quem quer
que tenha feito uso dessa comparação sem dúvida a entendeu
muito bem, pois essas criaturas recolhem-se para dentro de si
sempre que desejam. Esse, no entanto, não é o caso do recolhi-
mento sobre o qual estou falando. Quando Deus decide confe-
rir-nos esse favor, é nossa responsabilidade recebê-lo. Penso que
sempre que Sua Majestade o confere, Ele o faz somente àqueles
que já se desligaram das coisas deste mundo. Não digo que já
estejam desligados, porque talvez seu estado não permita que
estejam. Mas estão desligados em relação às suas afeições e seus
desejos, uma vez que Ele os convida especialmente para dedi-
car-se a questões interiores.
Por isso, creio que se nos entregássemos por inteiro a Sua
Majestade, Ele daria não somente esse, mas muitos outros dons
àqueles que Ele começa a chamar para coisas mais elevadas. Que
todo aquele que experimenta isso louve grandemente a Deus, pois
é de bom tom que compreendamos os favores e agradeçamos por
eles. Ele então poderá dispor-se a outros favores ainda maiores.
A disposição que nos preparará para isso é a de ouvir
atentamente qualquer coisa que nosso Senhor nos fale inte-
riormente. Para isso, devemos cuidar para não usar recursos de
raciocínio, mas em nos aplicarmos para descobrir aquilo que o
Senhor está trabalhando dentro da alma, pois, a menos que Sua
Majestade comece a nos dar êxtases, não posso entender como
a mente pode ser refreada. Isso provavelmente nos faz mais mal
do que bem, embora seja uma questão freqüentemente discuti-
da entre algumas pessoas espirituais.

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Certo alguém me falou de um determinado livro do santo


Frei Pedro de Alcântara, pois realmente creio que tenha sido
um santo. Ele é convincente, porque sei o quanto sabia acerca
dessas coisas interiores. Ao ler o livro, constatamos que ele disse
o mesmo que eu, embora não usasse as mesmas palavras. Mas
podemos concluir, a partir do que ele disse, que o nosso amor
deve ser mantido acordado (Veja “Oitavo Conselho”, do Trata-
do de Oração e Meditação, II, pp. 113,114).
É possível que eu esteja enganada, mas baseio a minha
opinião sobre questões interiores nos seguintes argumentos: pri-
meiro, em uma atividade espiritual como essa, a pessoa que mais
faz é aquela que pensa menos e deseja fazer o mínimo. Tudo
que temos de fazer é pedir, como algumas pessoas pobres diante
de um imperador poderoso e rico, e imediatamente baixarmos
nossos olhos e esperarmos com humildade. Quando por meio
de seus caminhos misteriosos parece que Ele nos ouve, é bom
então ficar em silêncio, uma vez que nos permite estar mais per-
to dEle. Não será inoportuno, se possível for, nos abstermos de
trabalhar com o entendimento.
Mas se não estivermos bem certos de que o Rei nos ouviu
ou de que esteja prestando atenção em nós, não devemos agir
como néscios, pois a alma se torna totalmente tola quando tenta
induzir essa oração por sua própria conta. Como conseqüência,
ela se resseca. A imaginação, então, se torna mais inquieta com
o esforço que é feito para não pensar. O Senhor, por sua vez,
deseja que Lhe imploremos e brademos à mente que estamos em
Sua presença. Ele sabe aquilo que é apropriado para nós.
Ao mesmo tempo, não posso persuadir-me a crer que o es-
forço humano tenha qualquer proveito em questões como essa
por causa dos limites que Sua Majestade estabeleceu e que deseja
reservar para Si. Isso Ele não tem feito em muitas outras coisas
que estão ao nosso alcance, conquanto nos assista. Exemplos es-
tariam na disciplina ascética, na oração e em outras boas obras,
onde a nossa miserabilidade não pode fazer essas coisas sozinha.

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190 VIDA DE ORAÇÃO

A segunda razão é que essas obras interiores são todas dó-


ceis e apaziguadoras. Fazer algo penoso causaria mais mal que
bem. Por algo “penoso” quero dizer alguma coisa que possamos
tentar forçar-nos a fazer. Por exemplo, é penoso sustentar o nos-
so fôlego. Deixem, portanto, a alma inteiramente nas mãos de
Deus para que Ele faça com ela aquilo que desejar, sem que se
preocupem acerca de seu próprio interesse. Sejam totalmente
submissas à vontade de Deus.
A terceira razão é que todo esforço que a alma fizer a fim
de deixar de pensar talvez desperte o pensamento e faça com
que ele trabalhe ainda mais.
A quarta razão é que a coisa mais importante e agradável
aos olhos de Deus é ter somente Sua honra e glória à vista, e
que nos esqueçamos de nós mesmas, nossos próprios benefícios,
nossos deleites e prazeres. Como, no entanto, pode uma pes-
soa deixar-se perder no esquecimento de si mesma quando tem
enorme cuidado sobre suas ações a ponto de não permitir que o
seu entendimento ou que seus desejos sejam instigados?
Quando Sua Majestade quer que o trabalho do nosso enten-
dimento cesse, Ele o faz de outra maneira, e ilumina a compreen-
são da alma a um nível tão mais alto do que aquele que podemos
obter que nos leva a um estado de absorção. Neste estado, a alma
é mais bem instruída do que jamais poderia ser por meio de seus
próprios esforços, os quais somente poriam tudo a perder, pois,
quando Deus nos dá as faculdades para que trabalhemos com elas,
não precisamos tentar lançar um encanto sobre elas, mas deixar
que façam o seu trabalho até que Deus nos dê algo melhor.
Conforme a minha compreensão, a alma que Deus, por
Sua vontade, tem conduzido para dentro dessas Mansões fará
melhor se agir de acordo com o que tenho dito. Deveríamos,
da mesma maneira, nos empenhar, sem excesso ou esforço, em
poupar o entendimento de todo raciocínio discursivo. Não de-
veríamos, no entanto, suspender o entendimento, nem fazer
cessar todos os nossos pensamentos. Faz bem à alma lembrar

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 191

que está na presença de Deus e perceber quem esse Deus é. Se


aquilo que ela sente é a causa de seu êxtase, muito bem. Mas
que ela não tente entender o que é isso, pois, uma vez conce-
dido à vontade, que ela desfrute dessa experiência sem uso de
qualquer esforço. Que a alma não faça nada, exceto balbuciar
algumas poucas palavras amorosas, pois, embora lutemos aqui
para que os pensamentos não cessem, eles às vezes cessam, ain-
da que por pouco tempo.
Sejam extremamente cuidadosas para não expor ninguém
a qualquer situação na qual venham a ofender a Deus, pois a
alma ainda sequer desmamou, mas é como uma criança que está
começando a sugar o peito de sua mãe. Se ela for tirada de sua
mãe, o que mais se pode esperar que aconteça, senão que morra?
Essa, lamento muito, será a sorte de qualquer um a quem Deus
tenha concedido esse favor, se desistir da oração. A menos que
o faça por uma razão muito excepcional, ou que retorne rapida-
mente para ela, essa pessoa irá de mal a pior.
Sei que há uma enorme razão para se temer nesse caso,
e conheço algumas pessoas de quem tenho enorme pena, pois
tenho visto isso sobre o que tenho falado lhes acontecer quando
abandonaram Aquele que tão ardentemente desejou ser amigo
delas e provou isso através de Suas ações. Eu as adverti anteci-
padamente que evitassem as ocasiões, porque o Demônio traba-
lhará muito mais contra essas almas do que contra muitas outras
a quem nosso Senhor não conceder esses favores, pois sabe que
essas lhe causarão muito mais dano, ao atrair outras pessoas que
podem trazer grande benefício à igreja de Deus. O Demônio tal-
vez não veja nada mais, exceto que Sua Majestade mostra por
elas uma afeição especial. Isso, no entanto, é suficiente para in-
duzi-lo a fazer o máximo para destruí-las. É por isso que Satanás
as ataca com tanta ferocidade. Se derrotadas, elas arruinarão
outras muito mais profundamente.
Até onde sabemos, irmãs, vocês estão livres desses peri-
gos. Mas que Deus as livre do orgulho e da vanglória, e conceda

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que o Demônio não falsifique esses favores. Essas falsificações,


no entanto, serão identificáveis, porque não produzem efeitos
espirituais, mas outros, totalmente diferentes.
No entanto, desejo adverti-las sobre um perigo do qual
falei em outro momento. Tenho visto pessoas que vivem a vida
meditativa – especialmente mulheres – que possuem uma cons-
tituição física mais frágil ou enfraquecida por uma severa vida
ascética, que desmaiam ao receber algumas consolações místi-
cas, levando seu físico ao colapso. Tão logo sentem qualquer
alegria interior, uma fraqueza física e uma prostração se abatem
sobre elas, e, dormindo, ficam confusas sobre seus sentimentos
e julgam que deveriam estar absorvidas nessa situação. Quan-
to mais relaxam, mais absortas se tornam porque, de fato, sua
condição física continua a se deteriorar. Elas colocam então em
suas cabeças que estão experimentando um êxtase. Eu chamo
isso de simples estupidez, pois nada mais é que perdermos nosso
tempo e destruirmos nossa saúde.
Posso me lembrar de alguém que ficou assim por oito ho-
ras, sem ter nem o senso nem qualquer percepção real das coisas
divinas. Somente quando foi alimentada apropriadamente, pos-
ta para dormir e eliminou todas as suas penitências indiscretas é
que foi curada. Ela havia induzido ao erro seu confessor e outras
pessoas, embora o fizesse de forma totalmente inconsciente e
sem a intenção de enganar. Creio que o Demônio usou essas cir-
cunstâncias para o seu próprio ganho. Na verdade, ele começou
a ter grandes progressos com essa pessoa.
Devemos, portanto, perceber que quando uma experiência
realmente vem de Deus, embora possa haver uma prostração in-
terior e exterior, não haverá jamais qualquer prostração na alma,
pois ela terá fortes emoções ao se ver tão perto de Deus. Além
disso, essa situação continua somente por um período muito cur-
to de tempo. Embora a alma possa ser absorvida novamente nesse
tipo de oração, no entanto, exceto em casos de fraqueza física, o
corpo não será sobrepujado ou terá produzido nela qualquer sen-

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 193

sação exterior. Assim, certifiquem-se de que, quando experimen-


tarem esse tipo de coisa, o seu diretor espiritual esteja ciente.
Tenham, portanto, o máximo de tempo de recreação pos-
sível, e não se prolonguem em oração por muitas horas. Vocês
devem dormir e comer o suficiente até que sua força normal seja
restaurada no caso de a terem perdido nesse exercício de oração.
Mas se a constituição física de alguém é tão fraca que isso não
seja suficiente, então essa pessoa deve estar certa de que Deus
não a está chamando para nenhuma outra coisa senão o ato de
viver, pois há espaço nos conventos para todo tipo de pessoas.
Que alguém assim se ocupe com suas tarefas, certifique-se de
que não seja deixada sozinha por muito tempo ou sua saúde
poderá ser completamente destruída. Isso sim seria uma grande
mortificação para ela. O Senhor pode estar testando seu amor
por Ele ao ver como reage à Sua ausência prolongada, e, após
um tempo, Ele pode vir a restaurar suas forças. Mas, se não, suas
orações em voz alta e sua obediência farão por ela o mesmo que
teria obtido de outras maneiras; na verdade, talvez mais.
Pode haver também algumas que são fracas de inteligência
e de imaginação. Elas podem ser tão ingênuas que crêem ver tudo
que imaginam. Trata-se de um estado muito perigoso de se estar, e
talvez devêssemos falar sobre isso mais adiante. Eu já disse o sufi-
ciente sobre essa habitação, porque é um lugar onde muitas almas
entram. No entanto, uma vez que é uma esfera onde o natural e o
sobrenatural se encontram, o Demônio pode causar muito dano
aí. Mas nessas habitações que ainda serão discutidas, o Senhor
não permite à pessoa muito espaço para movimento. Que Sua
Majestade seja louvado para sempre. Amém.

As quintas mansões: a oração da simples união com Deus

Parte Um: Experiência da Presença de Deus


Minhas queridas irmãs, como posso explicar-lhes as rique-
zas, tesouros e deleites que se encontram nas Quintas Mansões?

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Sou tentada a pensar que seria melhor não dizer nada sobre es-
sas Mansões que restam, pois não há nenhuma maneira de des-
crevê-las. O intelecto é incapaz de compreendê-las, e nenhuma
comparação pode ajudar a explicá-las. As coisas terrenas são
muito grosseiras para um propósito como esse.
Ó meu Senhor! Envia luz do Céu para que eu possa es-
clarecê-las, Tuas servas, uma vez que a Ti aprouve que algumas
delas desfrutem desses deleites. Ilumina algumas delas para que
não sejam enganadas pelo Demônio, que se transforma em anjo
de luz, pois o único desejo delas é agradar a Ti.
Embora eu tenha dito “algumas”, há somente poucas que
entram dentro das Mansões sobre as quais não irei falar. Há
vários degraus, e, por essa razão, digo que a maioria entrará nas
Mansões anteriores, mas creio que somente poucas irão adiante
e experimentarão as Quintas Mansões. No entanto, mesmo que
alcancem somente o lado externo do portão, Deus estará ainda
lhes mostrando um grande favor. Embora muitos sejam chama-
dos, poucos são os escolhidos (Mateus 22.14).
E então eu digo agora que, embora todas usemos este há-
bito sagrado do Carmelo e sejamos todas chamadas à oração e à
contemplação (porque esta era a nossa Regra no princípio, que
aqueles santos padres do Monte Carmelo escreveram; eles adqui-
riram este tesouro e esta jóia preciosa sobre a qual agora falamos
por meio de grande solidão e de desprezo ao mundo), no entanto,
poucas dentre nós se dispõem a ponto de o Senhor descobrir que
essa jóia de contemplação é nossa característica. Externamente
podemos nos apresentar com tudo que é necessário. Mas, na prá-
tica das virtudes que são necessárias para se chegar a esse estado,
carecemos de muitas coisas. Assim, não podemos nos dar o luxo
de ser negligentes em nenhum detalhe.
Desse modo, minhas irmãs, imploremos com sinceridade
a nosso Senhor que possamos de algum modo desfrutar do Céu
na Terra; que Ele nos conceda Sua graça e nos mostre o cami-
nho, para que não o percamos por causa de nossa transgressão.

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 195

Que Ele dê força à nossa alma para capacitar-nos a cavar até que
encontremos o tesouro escondido que está, certamente, dentro
de nós. Gostaria de explicar isso, se o Senhor me permitir. Eu
disse “força à alma” a fim de que saibam que, com respeito à
força física, não há nenhum obstáculo para aquele a quem o
Senhor não a concede. Ninguém está impedido de adquirir Sua
riqueza. Se alguém dá aquilo que tem, Deus fica satisfeito. Ben-
dito seja um Deus assim tão grande!
Reflitam, no entanto, minhas filhas, que, a fim de obte-
rem esse objeto do qual estamos falando, Ele não deseja que
vocês retenham nada, quer pequeno, quer grande. Ele quer o
nosso tudo, e, na proporção com que sabem que têm dado, Ele
lhes concede benefícios maiores ou menores. Não há prova
maior que esta para descobrir se chegamos à oração que alcança
a união. Não pensem nela como um estado, como o último,
no qual sonhamos. Digo “sonhamos” porque a alma parece es-
tar como que prostrada, nem adormecida, nem acordada. No
entanto, nesse sonho, está completamente desperta para Deus,
embora dormindo para as coisas mundanas e para nós mesmas,
pois, na verdade, durante o pouco tempo que dura, a alma está
quase desmaiada e incapaz de pensar em qualquer coisa, mesmo
que desejasse.
Ó segredos maravilhosos de Deus! Nunca irei me can-
sar de tentar explicá-los, mas sei que nunca conseguirei. Direi
então milhares de tolices, conquanto me ocorra tocar em um
ponto importante. Mas eu disse que não era um sonho, pois, nas
Mansões anteriores, até que a experiência da alma seja grande,
fica a dúvida acerca daquilo que realmente aconteceu, se ela
teve um desejo, se estava adormecida, se a experiência veio de
Deus ou se o Demônio se transformou em um anjo de luz. Em
resumo, a alma tem milhares de suspeitas; e é bom que tenha,
uma vez que a nossa natureza pode por vezes nos enganar.
Nessas Mansões não há muito espaço para que entrem
coisas venenosas, embora os lagartos mais finos talvez consigam.

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Sendo muito pequenos, eles podem se insinuar em toda parte,


embora não causem danos, especialmente se forem desprezados.
Eles representam as pequenas fantasias que brotam da imagi-
nação, e que foram mencionadas anteriormente. Eles podem
muitas vezes, no entanto, ser bastante inoportunos. Mas esses
lagartos, embora pequenos, não podem entrar nessas Mansões
porque nelas não há nenhuma imaginação, nem memória, nem
entendimento que possa deter esse bem.
Também ouso dizer que se a união vem de Deus, então o
Demônio não pode entrar ou causar qualquer dano. Sua Ma-
jestade está tão unido à alma que o Demônio não ousa se apro-
ximar, nem consegue entender esse segredo, pois fica claro que
não conhece os nossos pensamentos, muito menos é capaz de
entender um segredo tão profundo como é o dessa união. Isso
se aplica aos atos do entendimento e da vontade, pois o Demô-
nio vê claramente os pensamentos da imaginação, a menos que
nosso Senhor o cegue naquele momento.
Ó estado bendito no qual esse maldito não pode nos ferir!
A alma desse modo obtém muito mais bênçãos, porque Deus
trabalha nela sem ninguém, nem a própria alma, capaz de im-
pedi-lO. E o que então não dará quem está tão disposto a dar?
Quem pode fazer aquilo que Deus deseja?
Parece-me que vocês ainda não estão satisfeitas, pois po-
dem considerar essas questões interiores muito difíceis de exa-
minar. Embora o que tenha sido dito seja suficiente para alguém
que as experimentou, quero, no entanto, dar-lhes uma prova
clara por meio da qual vocês podem se certificar se ela veio de
Deus, pois Sua Majestade trouxe hoje a prova à minha mente e
ela me parece confiável.
Em questões difíceis – embora eu pense que as compre-
enda e fale a verdade – sempre uso estas palavras: “parece-me”,
pois posso estar enganada, embora estivesse mais disposta e
pronta a crer naquilo que homens instruídos me comunicassem.
Eles não experimentaram essas questões, embora tenham gran-

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 197

de peso porque são grandes estudiosos. Como Deus os considera


como luzes em Sua igreja, Ele lhes revela a verdade das coisas
a fim de que possam reconhecê-la. Se eles não forem pessoas
imorais, mas verdadeiros servos de Deus, nunca ficarão assom-
brados com Sua grandeza, porque sabem que Seu poder é capaz
de fazer infinitamente mais do que pedimos ou pensamos (Efé-
sios 3.20).
Tenho tido uma vasta experiência com homens eruditos
e também alguma experiência com homens tímidos e não tão
letrados, cujos defeitos têm me custado muito. A partir disso te-
nho aprendido que todo aquele que não crê que Deus pode fazer
muito mais e que ainda se alegra em revelar-Se às Suas criatu-
ras, manterá o portão fechado no que tange a receber qualquer
favor para si.
Que isso nunca aconteça a vocês, minhas irmãs, antes,
creiam que Deus pode fazer muito mais. Nem considerem se
aqueles a quem Ele comunica Seus favores são bons ou maus.
Sua Majestade sabe tudo sobre isso, assim, qualquer intervenção
de nossa parte é desnecessária. Com humildade e simplicidade
de coração sirvamos a Sua Majestade e O louvemos por Suas
obras e maravilhas.
Voltemo-nos agora à indicação que tenho descrito como
sendo decisiva. Vocês podem observar que Deus fez dessa alma
uma tola com respeito a tudo, à medida que prontamente tem
imprimido nela a realidade da verdadeira sabedoria, pois, en-
quanto essa alma estiver nesse estado, não poderá ver, nem ou-
vir, nem compreender. O período desse estado é sempre curto,
e à alma parece ser ainda mais curto do que realmente é. Deus
se instala no interior dela de tal maneira que, quando cai em si,
não consegue evitar a convicção de que estava em Deus e Deus
estava nela. Essa verdade se torna tão profundamente enraizada
nessa alma que, embora muitos anos possam se passar antes que
Deus conceda um favor semelhante, ela nunca irá esquecê-lo.
No entanto, isso está totalmente à parte em relação aos efeitos

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198 VIDA DE ORAÇÃO

que permanecem dentro dela e dos quais irei falar mais adiante.
O que importa agora é a convicção.
Como a alma vê essa verdade ou a compreende? Minha
resposta é que a alma não a viu no momento, mas depois, e
de maneira bem clara, pois ela não foi tanto uma visão, mas
mais uma convicção que permanece na alma e que somente
Deus pode plantar dentro dela. Conheci alguém que não sabia
que Deus estava em todas as coisas por meio de Sua presença,
poder e essência. Por meio de uma experiência desse tipo, que
foi recebida da parte de Deus, no entanto, ela passou a crer
firmemente, e um dos homens pouco instruídos sobre quem eu
já falei respondeu que Deus estava ali apenas pela Sua graça.
Contudo, a verdade estava tão fixada no seu interior, que ela
não acreditou nele. Posteriormente, ela perguntou a outros que
lhe disseram que a verdade que a confortou excedia!
Mas não se enganem pensando que essa convicção tenha
qualquer coisa a ver com uma forma corpórea. Deus não está
presente dessa maneira, mas somente por meio de Sua divinda-
de. Você pode perguntar novamente, no entanto, como posso
ter certeza se não a vejo? Não sei, porque isso é obra dEle. Mas
sei que aquilo que digo é verdadeiro. A todo aquele que não tem
essa convicção, tudo o que posso dizer é que não experimentou
essa união da alma com Deus.
Em todas essas questões não devemos buscar as razões
como elas são feitas, uma vez que o nosso entendimento não
pode compreendê-las. Por que então deveríamos trabalhar em
vão e nos inquietar sobre isso? É, por certo, suficiente saber que
Ele, que é Todo-Poderoso, fez isso. Com relação àquilo que eu
estava dizendo sobre a nossa inabilidade de fazer qualquer coisa,
lembro o que ouvi a noiva dizer em Cântico dos Cânticos: O
Rei “levou-me à sala do banquete” (Cântico dos Cânticos 1.4;
2.4). O texto não diz que ela foi. Ele também nos diz que ela
estava vagando em todas as direções, procurando por seu Ama-
do (Cântico dos Cânticos 3.2). Por “sala do banquete” entendo

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 199

que seja o lugar onde nosso Senhor se alegra em nos colocar,


quando e como deseja. Mas não podemos entrar nela através de
nossos próprios esforços. Sua Majestade deve nos colocar ali e
entrar no centro de nossa alma.
Para mostrar claramente Suas maravilhas, Ele não quer
que nossa vontade tenha qualquer papel a desempenhar, pois a
vontade já Lhe foi totalmente entregue. Nem deseja que a por-
ta de nossas faculdades e sentidos que estão todos adormecidos
seja aberta para Ele, pois virá para o centro da alma sem usar
uma porta, como fez certa vez, quando veio a Seus discípulos
e disse, “Paz seja com vocês” (João 20.19). Mais adiante, nas
últimas Mansões, vocês verão como Sua Majestade deseja que a
alma desfrute dEle em seu próprio centro, ainda mais que aqui.
Ó minhas filhas! Que coisas grandes veremos se desejarmos
olhar para nada mais senão a nossa própria baixeza e insignificân-
cia e compreendermos que não somos dignas de sermos servas de
um Senhor tão grande, pois Suas maravilhas ultrapassam todo
entendimento. Que Ele seja louvado eternamente! Amém.

Parte Dois: Crescimento da Alma para Receber Mais de Deus


Vocês podem pensar que já mencionei aquilo que deve ser
visto nessas Mansões. Muito mais, no entanto, resta a ser dito,
pois, como já disse, há muito mais ainda por vir. Com respeito
à união mística, penso que não posso acrescentar mais nada.
Quando, no entanto, uma alma à qual Deus concede esses fa-
vores se prepara para eles, há muitas coisas a serem ditas sobre
aquilo que o Senhor faz nela. A fim de explicar melhor o estado
da alma, farei uso de uma comparação que se aplique a esse pro-
pósito. Que nós possamos ver como, embora essa obra que nosso
Senhor faz seja algo sobre o qual nada podemos fazer, a nossa
disposição pode contribuir e muito para induzir Sua Majestade
a conceder-nos Seu favor.
Vocês já conhecem a maneira maravilhosa como é feita
a seda, uma maneira que ninguém poderia inventar a não ser

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200 VIDA DE ORAÇÃO

Deus. Ela vem de uma semente que não é maior que pequenos
grãos de pimenta. Nunca vi isso, só ouvi a respeito, assim, se a
informação estiver incorreta em qualquer aspecto, a culpa não
é minha. Quando chega o verão e as folhas começam a apa-
recer na amoreira, as sementes começam a brotar. Até então,
estavam mortas. As larvas da seda se alimentam das folhas da
amoreira até que estejam totalmente desenvolvidas, e é então
que ramos são colocados de modo que, com suas bocas minús-
culas, as larvas podem começar a girar a seda, fazendo pequenos
casulos compactos nos quais elas se alojam. A larva da seda, que
está gorda e feia, então morre, e em seu lugar uma bela borbole-
ta branca sai do casulo.
No entanto, quem creria nisso, uma vez que não vimos o
que aconteceu? Isso nos foi contado como tendo ocorrido em
muitas ocasiões e em diferentes países. Sem essa evidência, a
nossa razão poderia compreender que uma criatura tão vazia de
raciocínio como um bicho da seda ou uma abelha fossem tão
diligentes e aplicados no trabalho pesado em nosso benefício?
Na verdade, a pequena e pobre larva perde a sua vida nesse tra-
balho. Por ora, que isso lhes possa servir, irmãs, como uma me-
ditação por um período de tempo, sem eu ter de dizer nada mais
sobre isso, pois é por meio dessa ilustração que vocês podem ter
alguma idéia das maravilhas e da sabedoria do nosso Deus.
O que então deveríamos fazer se fôssemos entender a pro-
priedade de todas as coisas criadas? É muito proveitoso para nós
estarmos ocupadas em meditar nessas maravilhas, e em nos ale-
grarmos em ser as esposas de um Rei tão sábio e poderoso.
Mas retornemos agora àquilo que estava dizendo e apli-
quemos a nós a comparação que mencionei. Essa larva passa
a ter vida quando, aquecida pelo Espírito Santo, começa a fa-
zer uso dessa ajuda geral que nosso Senhor dá a todos e a tirar
vantagem dos remédios que Deus deixou em Sua igreja. Esses
remédios incluem os sacramentos, a leitura de bons livros e a
apreciação de bons sermões, pois eles são poderosos para uma

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 201

alma que esteja morta pela negligência e pelo pecado e imer-


sa em situações de pecado. Essa larva então começa a viver e
se sustentar com boas meditações até que esteja plenamente
desenvolvida. É isso que me interessa agora, pois o resto é de
pouca importância.
Quando está plenamente desenvolvida, ela começa então
a girar sua seda e a construir a casa na qual irá viver. Quero que
por “essa casa” vocês entendam “Cristo”. Penso que li ou ouvi
em algum lugar que a nossa vida “está oculta” em Cristo e em
Deus (Colossenses 3.3), de modo que Cristo é a nossa vida.
Aqui então, filhas, podemos aprender, com a ajuda de
Deus, a fazer aquilo que podemos, uma vez que Sua Majestade
é a nossa Mansão, assim como está nessa Oração de União; essa
Mansão nós mesmos giramos. Posso ser mal compreendida ao
dizer que podemos tirar ou acrescentar algo a Deus ao afirmar
que Ele é a nossa Mansão e que estamos aptos a erigi-la para
nossa própria habitação. A verdade, no entanto, é que não po-
demos subtrair nem somar nada a Deus. Mas podemos tirar ou
somar a nós mesmas, assim como fazem as pequenas larvas, pois,
antes que façamos tudo o que podemos sobre isso, Deus unirá
nossos esforços insignificantes, que não são nada diante de Sua
própria grandeza. Ele então dará a elas um valor tão alto que
nosso Senhor mesmo, para quem isso custou tanto, unirá as nos-
sas provações às grandes provações que Ele sofreu, e as tornará
todas uma só.
Ó minhas filhas, façamos rapidamente essa obra, e gire-
mos esse casulo, colocando de lado todo o amor próprio e a
nossa própria vontade; e não nos associemos a qualquer coisa
terrena. Pratiquemos penitência, oração, mortificação, obedi-
ência e todas as outras boas obras que vocês valorizem. Que
Deus permita que ajamos de acordo com o nosso conhecimento
e com as instruções que recebemos com respeito às nossas tare-
fas. Que essa larva morra; que morra quando tiver feito aquilo
para que foi criada. E então vocês irão perceber como vemos a

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202 VIDA DE ORAÇÃO

Deus. E se contemplarão imersas em Sua grandeza, assim como


a larva em seu casulo. Notem como digo “Veremos a Deus”. Isso
se dá à proporção que Ele permite ser assimilado nesse tipo de
união.
E agora consideremos em que esse bicho da seda se trans-
forma, pois tudo o que tenho dito conduz a esse propósito. Tão
logo nessa oração ele se torne suficientemente morto para o
mundo, ele então surge como uma borboleta branca.
Ó maravilhosa grandeza de Deus! Quão transformada é
a alma por ficar apenas um pequeno período de tempo – meia
hora, no máximo – imersa na grandeza de Deus e intimamente
unida a Ele! Digo em verdade a vocês que a alma não se conhe-
ce, pois vocês devem lembrar que há aqui a mesma diferença
que houve ali entre o feio bicho da seda e a bela borboleta. A
alma não consegue entender como pode ter merecido uma bên-
ção assim, ou como ela aconteceu.
Agora a alma anseia louvar a Deus, de modo a, de bom
grado, ser consumida e morrer mil mortes por Ele. Então se vê
capaz de sofrer e suportar grandes aflições e incapaz de fazer o
contrário. Seus desejos por penitência, solidão e de que todos
os homens conheçam a Deus são todos excessivos, e, por conta
disso, ela fica profundamente angustiada toda vez que vê Deus
sendo ofendido. Nas próximas Mansões, iremos lidar com essas
coisas mais detalhadamente, pois, embora as experiências des-
sas Mansões e da próxima sejam quase as mesmas, seus efeitos
têm muito mais poder.
Mas agora observem a inquietude dessa pequena borbole-
ta. Embora nunca tenha estado mais silenciosa e calma em sua
vida, ela ao mesmo tempo não sabe onde pousar e descansar.
Retornará ao lugar de onde veio? Ela não pode, pois isso não
está ao nosso alcance, até que seja do agrado de Deus conceder-
nos esse favor.
Ó Senhor! Que novas lutas começam agora para essa
alma! Quem poderia imaginar isso, depois de ter recebido bên-

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 203

çãos tão sublimes? Pois, em uma palavra, de um modo ou de


outro, devemos carregar a cruz enquanto vivermos. Será que
alguém deveria dizer que, tendo alcançado essas Mansões, irá
agora sempre descansar e ter prazer? Minha resposta é que pen-
sar assim é evidência de que essa pessoa nunca chegou a essas
Mansões. Talvez tenha experimentado algum outro prazer espi-
ritual se entrou nas Mansões anteriores e então sua experiência
o ajudou através de uma fraqueza espiritual ou talvez até mesmo
do Demônio. O Demônio lhe dá paz para que subseqüentemen-
te possa travar uma guerra muito maior contra ele.
Não quero dizer que aqueles que chegam não terão paz. É
claro que eles a têm e ela é muito profunda, pois as aflições que
eles têm tido são muito valiosas e possuem raízes tão boas que,
embora pareçam demasiadas, suscitam paz e contentamento. O
grande dissabor que é causado pelas coisas do mundo desperta o
desejo de deixá-lo. Isso, no entanto, não é capaz de confortar a
alma, pois, a despeito de todos os benefícios que tem amealha-
do, ela ainda não está totalmente entregue à vontade de Deus,
embora não deixe de agir em conformidade com a vontade de
Deus, agindo, no entanto, em meio a muitas lágrimas e grande
tristeza por não ser capaz de fazer mais porque não recebeu mais
capacidade para tal. Toda vez que a alma ora, sua tristeza se faz
acompanhar por muitas lágrimas. Essa dor parece surgir até cer-
to ponto por causa de sua aflição extrema ao contemplar Deus
ofendido e tão pouco valorizado neste mundo. Além disso, a
alma está angustiada diante do destino de muitas almas, tanto
hereges quanto inimigas.
São os pseudocristãos, no entanto, que mais estimulam
a sua compaixão, pois, embora ela veja que a misericórdia de
Deus é grande e que, por mais perversamente que possam viver,
eles ainda podem se arrepender e serem salvos, ela, no entanto,
teme que muitos se percam.
Oh, a grandeza de Deus! Só faz alguns poucos anos, talvez
apenas alguns dias, que eu estava pensando em nada a não ser

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204 VIDA DE ORAÇÃO

em mim mesma. Agora, a minha alma mergulhou na ansiedade


dolorosa em favor de outras. Mesmo se tentássemos meditar por
anos sem fim, não seriamos capazes de sentir isso tão ardente-
mente como a alma sente.
Deus, ajuda-me! Se eu pudesse passar muitos dias e anos
simplesmente tentando perceber que ofender a Deus é um gran-
de pecado, e refletir que aqueles que estão condenados são Seus
filhos, e então fosse meditar sobre a vida miserável que meus
irmãos e irmãs vivem, isso tudo nos satisfaria? Não, filhas, não!
Essa não é a dor que é sentida aqui, pois, com a ajuda de nos-
so Senhor, podemos aprofundar a nossa tristeza alongando-nos
nessas coisas. Mas essa dor não penetra nem pode alcançar a
parte mais íntima da alma, do modo como ocorre e que estou
aqui descrevendo, pois ela parece moer a alma até o pó sem ob-
ter esse estado ou mesmo, por vezes, sem que ela o deseje.
O que então é esse desgosto? De onde vem? Deixe-me
dizer-lhes.
Um pouco antes eu me referi à noiva e a como Deus a
colocou na sala do banquete e lhe deu o seu amor (Cântico dos
Cânticos 2.4). Bem, esta é a situação aqui. A alma, tendo se
entregado inteiramente às Suas mãos e sido cativada pelo Seu
amor, não conhece nem deseja outra coisa senão que Deus faça
com ela aquilo que Ele desejar. Até onde posso entender, Deus
nunca irá conferir esse favor a qualquer alma, exceto àquela
que Ele mesmo escolher. Ele se alegra, sem que ela saiba como,
de que a alma parta daqui marcada com Seu selo, pois ela aqui
reage como a cera quando um selo é colocado sobre ela. A cera
não pode selar a si mesma, mas está apenas disponível, o que
significa dizer que está amolecida. Ela não amolece a si mesma
para esse objeto, mas, quando ele lhe é colocado em cima, ela
permite que a impressão seja feita.
Ó bondade de Deus! Tudo isso às Tuas custas. Tu pedes
somente a nossa vontade, e que não haja nenhuma resistência
na cera. Vocês podem ver, irmãs, aquilo que o nosso Deus faz

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 205

por nós a fim de que essa alma possa saber que é dEle. Ele lhe
dá a mesma imagem que Seu Filho teve nesta vida, o que é um
favor extremamente grande.
Quem mais desejaria deixar esta vida do que Ele? Assim,
ele declarou na ceia: “desejei ansiosamente...” (Lucas 22.15).
A morte dolorosa que Tu estavas prestes a morrer apresentou-
se a Ti, ó Senhor, como algo tão atroz e terrível? “Não, porque
Meu grande amor e Meu desejo de que as almas fossem salvas
transcendeu todas as dores acima de qualquer comparação. Na
verdade, as muitas coisas terríveis que sofri desde o tempo em
que vivi no mundo e que ainda continuo sofrendo são tão gran-
des que, comparadas a elas, não são nada.”
Sempre pensei sobre isso, sabendo quais os grandes tor-
mentos que uma certa alma que conheço suportou e ainda su-
porta por ver Deus sendo ofendido. Na verdade, essa alma pre-
feriria morrer a continuar suportando isso. Se essa alma, quando
comparada a Cristo, tem tão pouco amor e, no entanto, suporta
uma dor intolerável pelo pecado, o quanto Cristo, nosso Se-
nhor, deve ter sofrido? E que vida deve ter vivido, tendo todos
os Seus sofrimentos postos diante dEle, sempre contemplando
os terríveis crimes que seriam cometidos contra Seu Pai? Creio
piamente que eles foram muito maiores do que aqueles que Ele
suportou em Sua mais sagrada paixão, pois nela Ele viu o fim
deles.
A alegria de Cristo ao ver a nossa redenção adquirida por
meio de Sua morte e ao testificar o amor que tinha por Seu Pai
ao sofrer tanto por Ele, sem dúvida diminuiu a Sua dor. É o mes-
mo que acontece aos homens neste mundo que, através da força
do amor, podem fazer grandes penitências e quase não as sentir.
Na verdade, gostariam de fazer mais e mais, porque tudo parece
pequeno para eles. O que então teria sentido Sua Majestade
quando se viu capaz de provar a Seu Pai Sua perfeita obediência
ao viver o amor ao Seu próximo? Oh, o grande prazer de sofrer
por fazer a vontade de Deus!

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206 VIDA DE ORAÇÃO

Mas a constante visão das muitas ofensas cometidas con-


tra Sua Majestade e tantas almas indo para o inferno devem, eu
penso, ter sido muito dolorosas para Ele. Tanto isso é verdade
que, se Ele não tivesse sido mais que homem, um dia de tal
tormento teria sido suficiente para colocar um fim a várias vidas
que Ele pudesse ter, que dirá apenas uma.

Parte Três: Evidências do Nosso Noivado com Cristo


Vejamos agora algo daquilo que Deus concede à alma nes-
se estado. Devemos sempre lembrar que precisamos nos esforçar
para prosseguir no serviço de nosso Senhor e no conhecimento
de nós mesmas, pois, se a alma recebe apenas essa graça, fica
descuidada em sua vida como se já estivesse definitivamente
estabelecida e sai do caminho que leva ao céu, acontecerá a
ela aquilo que aconteceu àquela criatura que saiu do bicho da
seda: deixa semente para a produção de mais bichos da seda e
então morre para sempre. Digo que ela deixa semente porque,
de minha parte, creio que seja a vontade de Deus que uma bên-
ção assim tão grande não seja concedida em vão, e que, se a
alma que a recebe não se beneficiar dela, outras se beneficiarão,
pois quando a alma possuir essas virtudes e desejar as virtudes
do alto, se perseverar nelas, sempre fará o bem a outras almas
ao adverti-las com o calor de Seu desejo. No entanto, mesmo
depois de perder isso, ela pode ainda desejar que outras se be-
neficiem e tenham prazer em anunciar as graças e favores que
Deus concede àqueles que O amam e servem.
Sei a quem isso aconteceu (Vida, capítulo VII), e que
embora tenha se desviado (ou seja, abandonando a oração por
um tempo), ainda assim continuou a ensinar a outros, que não
compreendiam, o caminho da oração. Ela também lhes trouxe
grandes benefícios. Nosso Senhor, em Sua misericórdia, pos-
teriormente deu-lhe luz, pois ela, na verdade, ainda não havia
experimentado os efeitos mencionados acima. Mas com quan-
tos que Deus chama para o apostolado, como chamou Judas,

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 207

Ele se comunica? Quantos Ele chama para uma coroa, como


chamou Saul, que, no entanto, depois perecem por causa do seu
pecado?
Assim, irmãs, cheguemos à conclusão de que, a fim de
obter mais virtude e não nos perdermos como eles se perderam,
não podemos ter nenhuma outra segurança senão a “obediên-
cia” e uma firme determinação de não transgredir a lei de Deus,
pois falo com aqueles a quem Ele concede favores, e igualmente
com todas as pessoas.
A minha impressão é que, a despeito de tudo que tenho
dito, essas Mansões ainda parecem até certo ponto obscuras.
Mas, uma vez que há tanto a ser ganho ao se entrar nelas, é
bom para aqueles a quem Deus não conceder favores sobrenatu-
rais não se considerarem sem esperanças. Com a ajuda de nosso
Senhor, uma verdadeira união poderá ser obtida facilmente se
nos esforçarmos em conquistá-la tendo nossa vontade unida so-
mente à vontade de Deus.
Oh! Quantos de nós podemos dizer isso: “nada mais de-
sejamos, e morreríamos por essa verdade”? Eu lhes digo nova-
mente que, quando esse for o caso, teremos obtido esse favor de
nosso Senhor. Não fiquem ansiosas sobre essa outra doce união
sobre a qual lhes falei antes, uma vez que o que quer que seja
mais valioso nela se encontra naquilo que estou falando agora.
Que união desejável é essa! Feliz é a alma que a obteve!
Ela viverá com conforto nesta vida, e nenhum dos males dessa
existência a perturbará, exceto algum temor de perder a Deus
ou vê-lO ofendido. Nem doença, nem pobreza, nem a morte
de qualquer pessoa pode perturbá-la a não ser a morte de al-
guém de quem a Igreja possa precisar. Uma alma como essa vê
claramente que nosso Senhor sabe o melhor em relação a esse
assunto.
Notem com muito cuidado, filhas, que os bichos da seda
devem necessariamente morrer. Isso é o que custará a muitas de
nós, pois a morte chega muito mais facilmente quando alguém

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208 VIDA DE ORAÇÃO

se vê vivendo uma nova vida. Nossa tarefa agora é continu-


ar vivendo esta vida presente, e, no entanto, por assim dizer,
matarmos a larva. Reconheço que isso nos custará muito, mas
terá a sua recompensa. Assim, se vocês obtiverem a vitória, sua
recompensa será muito maior. Mas vocês não devem duvidar
da possibilidade dessa união real com Deus. Essa é a união que
desejei toda a minha vida. É isso o que tenho pedido conti-
nuamente de meu Senhor, pois ela é a mais genuína e segura
das uniões.
Mas, ai de mim! Quão poucas de nós a alcançam, embora
a alma cuide de não ofender a Deus e tenha entrado na vida re-
ligiosa pensando que fez tudo. Oh! Quantas larvas permanecem
ainda encobertas até que, como a larva que roeu a aboboreira de
Jonas (Jonas 4.6,7), elas tenham roído nossas virtudes. Essas lar-
vas são o amor próprio, a autovalorização, a crítica severa mes-
mo nas pequenas coisas (que dizem respeito ao nosso próximo,
à falta de caridade para com eles e ao fracasso em não amá-los
como amamos a nós mesmas). Ainda quando cumprimos nossas
obrigações e aparentemente não cometemos pecados estamos
muito longe de fazer o que é requerido de nós, a fim de estarmos
totalmente unidas à vontade de Deus.
O que vocês imaginam que seja a vontade dEle, filhas?
Não é que sejamos totalmente perfeitas a fim de nos tornar-
mos um com Ele e com o Pai, como orou Sua Majestade (João
17.22)? Considerem quão distantes estamos de chegar a esse
estado. Posso assegurar-lhes que estou muito atrás, e tudo por
causa de minhas transgressões. Para cumprir esse objetivo, não
é necessário que nosso Senhor nos conceda novos favores, por-
que ter-nos dado Seu Filho para nos mostrar o caminho é sufi-
ciente.
Não pensem que se, por exemplo, meu pai ou meu irmão
morrerem, devo estar em tamanha conformidade à vontade de
Deus que não lamentarei a perda deles. Ou que se a doença ou
as aflições vierem sobre mim, irei suportá-las com alegria. Seria

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 209

bom se tivéssemos essa disposição e às vezes isso é uma questão


de bom senso. Mas, incapazes de ajudar a nós mesmas, podemos
transformar nossa necessidade em virtude. Com muita freqüên-
cia, filósofos costumavam agir assim, ou de modo semelhante, e
eles eram verdadeiramente sábios!
Mas aqui o Senhor só requer duas coisas de nós, a saber:
que amemos a Deus e amemos ao nosso próximo. Esses são ob-
jetivos que devemos trabalhar para alcançar, pois por meio da
perfeita observação dessas leis faremos Sua vontade e conse-
qüentemente estaremos unidas a Ele. Quão longe estamos de
fazer essas duas coisas do modo como deveríamos fazer a um
Deus que é tão grande! Que Sua Majestade nos conceda a graça
para que possamos merecer alcançar esse estado, como está ao
nosso alcance fazer se realmente desejarmos.
O sinal mais evidente para descobrir se estamos observan-
do esses dois mandamentos é o amor ao nosso próximo, pois, uma
vez que não podemos saber se amamos a Deus mesmo que tenha-
mos provas contundentes disso, esses sinais podem ser muito mais
facilmente identificados no amor ao nosso próximo.
Estejam certas, portanto, de que quanto mais avançarem
nesse amor, mais também avançarão no amor a Deus, pois a afei-
ção que Sua Majestade tem por nós é tão grande que, como retor-
no pelo amor que demonstramos ao próximo, Ele fará com que o
amor por Ele aumente. Disso eu não tenho a menor dúvida.
É muito importante para nós, então, observar diligente-
mente como agimos em relação a isso, pois se nos esforçarmos
perfeitamente para adquirir esse amor ao próximo, teremos fei-
to tudo. Como nossa natureza é corrupta e má, a menos que
isso venha da raiz (que é o amor de Deus), nunca possuiremos
perfeitamente o amor ao nosso próximo. Uma vez que isso é tão
vital, irmãs, lutemos para conhecermos umas às outras cada vez
melhor, mesmo nas menores coisas.
Observem atentamente os ótimos planos que distraem a
nossa mente quando estamos em oração e que pensamos em co-

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210 VIDA DE ORAÇÃO

locar em operação e levar adiante em relação ao nosso próximo,


na esperança de salvar uma alma. Pois se nossas ações não es-
tiverem em harmonia com esses planos, não teremos nenhuma
esperança de crer que podemos colocá-los em prática. Eu digo a
mesma coisa sobre a humildade e sobre todas as virtudes, pois as
artimanhas do Demônio são muitas. Ele irá correr mil vezes ao
redor do inferno se, fazendo isso, puder nos convencer de que
temos uma única virtude que verdadeiramente não temos. E ele
está certo, pois idéias assim são prejudiciais, e virtudes falsas es-
tão sempre associadas à vanglória. Por outro lado, essas virtudes
que são de Deus estão livres do preço e da vanglória.
Eu me divirto às vezes de ver certas almas que pensam
que, em nome de Deus, deveriam estar alegres por serem hu-
milhadas e expostas à vergonha pública, que, no entanto, ten-
tam esconder um pequeno pecado que seja, e que deveriam ser
acusadas de algo que não fizeram...! Deus nos livre de ter de
escutá-las então!
Assim, se ninguém pode suportar algo assim, tenham o
cuidado de prestar atenção às resoluções que tenham feito em
particular.
Pois, de fato, essas não são resoluções que tenham sido fei-
tas pela vontade enquanto ato genuíno da vontade; um ato genu-
íno da vontade é uma coisa bem diferente. Elas provavelmente
são resultado da imaginação. E o Demônio faz bom uso da imagi-
nação no modo como exercita suas surpresas e enganos.
O Demônio fará isso a mulheres e homens não instruídos
porque não podemos entender a diferença entre as faculdades e
a imaginação, e centenas de outras coisas na vida interior? Oh,
irmãs, com que clareza podemos observar aquilo que o amor ao
próximo realmente significa para algumas de vocês, e que imper-
feição ele tem atingido em outras! Se vocês compreendessem a
importância dessa virtude, não se preocupariam com mais nada.
Quando vejo pessoas tentando com muito zelo compre-
ender o tipo de oração que estão experimentando e a sua preo-

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 211

cupação com elas mesmas, sem ousar desviar seus pensamentos


e assim perderem os níveis mais sutis de sentimento da ternura e
da devoção que têm experimentado, percebo claramente como
entenderam muito pouco acerca do modo de obter essa união
com Deus. Elas pensam que a questão toda consiste nesses exer-
cícios.
Mas não! Irmãs, não! Nosso Senhor deseja obras. Assim,
se vocês virem uma irmã doente, a quem podem de algum modo
aliviar, não tenham medo de que irão perder seu tempo de de-
voção se forem atendê-la. Se ela estiver com dor, chorem com
ela e, se necessário, jejuem para que ela possa ter o alimento que
vocês comeriam. Façam isso por ela porque sabem que essa é a
vontade do Senhor. Isso é a verdadeira união à Sua vontade.
Ou então, se ouvirem alguém sendo muito elogiado, não
tenham inveja, mas fiquem mais satisfeitas do que se estivessem
elogiando vocês. Isso será fácil se forem humildes, pois, nesse
caso, ficarão constrangidas de serem elogiadas. Mas ficar feliz
quando as virtudes de suas irmãs são elogiadas é algo maravi-
lhoso. Quando virmos uma transgressão em alguém, devemos
chorar por ela como se a transgressão fosse nossa. Devemos en-
tão tentar ocultá-la dos outros.
Assim, peço a nosso Senhor que lhes conceda esse amor
perfeito por seu próximo. Deixem que Sua Majestade somente
o faça sozinho, pois Ele lhes pode conceder muito mais do que
aquilo que jamais desejaram. Vocês devem ser submissas e não
ter vontade própria, para que a vontade de suas irmãs seja feita
em tudo, mesmo que isso faça com que percam seus próprios
direitos. Vocês têm de esquecer o bem em favor próprio e abrir
mão de seu prazer a fim de agradá-las. Façam isso, mesmo que o
seu eu natural possa se opor.
Quando a oportunidade se apresentar, tentem também
carregar o fardo do próximo a fim de aliviá-lo. Não pensem que
isso não lhes custará nada ou que outros farão o mesmo por
vocês. Ao contrário, pensem no amor que custamos a Ele, pois

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212 VIDA DE ORAÇÃO

para nos libertar da morte Ele sofreu a mais dolorosa morte na


cruz.

Parte Quatro: A Vida de Oração de Nosso Noivado


Parece-me que ainda não atingimos o ponto do noivado
espiritual nessa união. Mas isso é bem parecido com o que acon-
tece em nossa vida terrena quando duas pessoas estão para se
casar. A primeira consideração que elas discutem juntas é se são
apropriadas uma para outra, se gostam uma da outra e se estão
apaixonadas. Elas então se encontram de novo para aprende-
rem a apreciar uma à outra e conhecer uma à outra melhor.
Assim é com essa união espiritual. Quando há mútuo con-
sentimento e a alma entendeu claramente a bem-aventurança
de sua sorte, e está firmemente decidida a fazer a vontade de
seu Esposo em tudo, então Sua Majestade se dispõe a tomá-la,
sabendo muito bem se a alma está ou não decidida. Ele então
lhe concederá a Sua misericórdia, desejando que possa conhe-
cê-lO melhor, e que se encontrem em uma entrevista, para que
se una a ela.
A questão como um todo se resolve muito rapidamente,
pois todos os procedimentos terminaram, e agora é somente ne-
cessário que a alma veja em secreto Quem o Esposo com quem
ela está se unindo realmente é. Mas se fosse usar seus sentidos
e faculdades, a alma não conseguiria compreender em mil anos
aquilo que ela agora compreende nesse período de tempo tão
curto. Mas o Esposo, sendo quem é em Seu amor, depois daque-
la visita, a deixa ainda mais digna de unir-se a Ele.
A alma então se apaixona por Ele e faz tudo, de sua parte,
para não romper esse noivado divino, pois se fosse descuidada
e colocasse a sua afeição em outra coisa que não Ele, perderia
tudo. Na verdade, sua perda seria tão grande quanto os favores
que Ele lhe concedeu, e esses são muito maiores do que aquilo
que possa ser descrito em palavras. Assim, então, almas cristãs,
eu lhes imploro em nome dEle que não se descuidem, mas evi-

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 213

tem todas as ocasiões para o pecado, pois mesmo nesse estado a


alma ainda está vulnerável a eles. Somente depois do casamen-
to, e ele ocorre nas próximas Mansões, é que não haverá mais
perigo.
Uma vez que essa comunicação não passou de um rápido
encontro, o Demônio fará todos os esforços para evitar essas
núpcias, pois só depois que ele vir que a alma já se entregou
por completo a seu Esposo não ousará mais nenhuma ação. Ele
aprendeu por experiência própria a temer que, se atacar a qual-
quer tempo, pode sofrer uma grande derrota, e ela, obter uma
grande vitória.
Eu lhes digo isso, filhas, porque conheço pessoas com um
alto grau de espiritualidade que alcançaram esse estado e que,
no entanto, o Demônio conquistou de volta para si com grande
sutileza e habilidade. Para esse propósito ele empregará todos
os poderes do inferno, pois, como digo sempre, se pudermos
ganhar uma única alma, então ganharemos também toda uma
multidão. Ele adquiriu grande experiência neste assunto.
Aprendemos, a partir disso, em que concentrarmos toda
a nossa diligência. Primeiro, devemos constantemente pedir
a Deus em nossas orações que nos mantenha a salvo em Suas
mãos, e que considere sempre que, se Ele nos deixar, seremos de
imediato lançados no abismo. Nunca devemos colocar nenhu-
ma confiança em nós mesmas. Isso é tolice.
Acima de tudo, devemos caminhar com determinação e
atenção, vigiando o progresso que fazemos nas virtudes e cui-
dadosamente observando se estamos indo para frente ou para
trás, particularmente em relação ao amor uns pelos outros e ao
nosso desejo de não sermos reconhecidos, além de outras ques-
tões comuns. Se então olharmos para essas coisas e implorarmos
ao Senhor que nos dê Sua luz, iremos imediatamente descobrir
se ganhamos ou perdemos, pois vocês não devem imaginar que
uma alma que Deus levou tão longe será rapidamente tirada de
Suas mãos ou que o Demônio possa capturar sem muito esfor-

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214 VIDA DE ORAÇÃO

ço. Não! Sua Majestade deseja tão profundamente que ela não
deve ser perdida que, de muitas maneiras, dará à alma centenas
de advertências interiores a fim de que evite o perigo.
A conclusão de todo este discurso é que devemos sem-
pre nos esforçar para seguir adiante e temer ao extremo quando
não seguimos, pois não há dúvida de que se a alma cessar de
ir adiante, o Demônio tentará apanhá-la. Isto porque o amor
não pode nunca ficar ocioso. Portanto, não progredir é um mau
sinal, porque uma alma que tenha decidido se tornar esposa de
Deus, que já tenha conversado intimamente com Sua Majesta-
de, e agora chegou ao ponto mencionado anteriormente, não
pode se deitar e dormir novamente.
A fim de que possam ver, filhas, aquilo que o Senhor faz
por essas almas a quem escolheu por Suas esposas, comecemos
agora a pensar sobre as Sextas Mansões. Vocês verão como é
realmente leve todo o serviço que Lhe podemos prestar, ou todo
o sofrimento que podemos suportar por Ele, e toda a prepara-
ção que podemos fazer por esses grandes favores. Talvez tenha
sido a vontade de nosso Senhor que eu tenha sido incumbida
de escrever esta obra a fim de que esqueçamos nossos prazeres
terrenos triviais e fixemos os nossos olhos na recompensa. Con-
siderem quão infinita é a misericórdia que O faz tão desejoso
de se comunicar com larvas que somos. Assim, incendiadas por
esse Seu amor, correremos a prova com os nossos olhos fixos em
Sua grandeza.
Que Ele me ajude a explicar algo dessas coisas difíceis,
pois, a menos que Sua Majestade guie a minha pena, sei muito
bem que é impossível escrever. Se aquilo que eu disser não as
ajudar, imploro a nosso Senhor que não me permita dizer coisa
alguma, pois Sua Majestade está ciente de que, até onde eu sei,
não tenho nenhum outro objetivo senão que Seu nome seja
louvado.
Esforcemo-nos, então, para servir a um Senhor que nos
recompensa abundantemente ainda nesta vida. Que Ele nos

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O CASTELO INTERIOR – PARTE 2 215

ajude a formar alguma idéia daquilo que Ele nos dará no Céu,
onde todos os perigos e trabalhos entediantes que hoje nos cer-
cam e nos afligem não mais nos perturbarão. Que prazer seria
para nós continuar trabalhando para um Deus, Senhor e Esposo
tão grande sem o medo do perigo de perdê-lO ou ofendê-lO.
Que Sua Majestade permita que possamos merecer prestar a Ele
um serviço sem tantas imperfeições, as quais estamos sempre
repetindo, mesmo em nossas boas obras. Amém.

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Capítulo VII

O castelo interior –
parte 3

As sextas mansões: a oração da união íntima


e do noivado com cristo

Parte Um: Maiores Favores Espirituais Envolvem


Mais Sofrimento

F
alemos agora com a ajuda do Espírito Santo, sobre as
“Sextas Mansões”, as Mansões nas quais a alma foi feri-
da pelo Esposo. Buscando mais que nunca a solidão, a alma tenta
renunciar a tudo que a possa perturbar em seu isolamento. Essa
visão dEle (mencionada nas Mansões anteriores) impressionou
tanto a alma que todo o seu desejo é desfrutar dela de novo. In-
sisto que nada que é visto nessa oração pode propriamente ser
chamado de “visionário”, pois ela não é algo que se imagine. Eu a
chamo de visão por conta da comparação que uso.
A alma está agora determinada a não escolher outro Es-
poso. Parece, no entanto, que o Esposo está desconsiderando
seus anseios pela consumação das núpcias. Isso porque o Noivo
anseia que a alma deseje o noivado mais intensa e profunda-
mente, pois quer que essa bênção ultrapasse todas as coisas em
sua riqueza. Tudo o mais possui pouca importância se compara-
do à grandeza dessa bênção, filhas. A prova e a segurança que ela

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218 VIDA DE ORAÇÃO

tem de possuir esse ganho são mais que suficientes para capacitá-
la a suportar o seu adiamento.
Ó meu Deus, que sofrimento no interior e no exterior da
vida deve ser suportado antes que possamos entrar nas Sétimas
Mansões! Quando realmente penso nelas, às vezes temo que, se
tivéssemos antecipado sua intensidade, teria sido extremamente
difícil para nós, fracas que somos, ter a determinação suficiente
que nos capacitasse a suportá-las ou a firmeza suficiente para
sofrê-las. E isso é verdade, mesmo quando temos a vantagem de
saber que, quando alcançarmos as Sétimas Mansões, não haverá
mais nada a temer. Mas penso ser correto e apropriado men-
cionar-lhes algumas dessas preocupações que, por certo, sei que
serão enfrentadas. Talvez nem todas as almas sejam conduzidas
dessa maneira, embora eu duvide muito que aquelas que às ve-
zes desfrutem tão verdadeiramente de coisas celestiais possam
viver livres das provações terrenas de um tipo ou de outro.
Percebo que, ao falar sobre essas provações, posso dar con-
solo a alguma alma em situação semelhante se ela for capaz de
compreender aquilo que está acontecendo àqueles a quem Deus
concede esses favores. Caso contrário, alguém poderia pensar
que tudo estava perdido. Não irei narrar essas dificuldades na
ordem em que ocorrem, mas conforme vêm à minha memória.
Começarei com a menor delas. Isso surge do clamor que
algumas pessoas fazem quando uma alma tem de enfrentar aqui-
lo que essas pessoas pensam dela e o seu julgamento sobre ela,
embora ela não as conheça ou tenha se comunicado com elas.
Elas dizem, “ela pensa que está se tornando uma santa!” ou “ela
só está chegando a esses extremos a fim de fazer com que to-
dos pareçam menos espirituais que ela, quando, na verdade,
são cristãos melhores sem essas extravagâncias”. O que elas não
percebem é que isso é requerido de quem busca a Deus com
sinceridade.
As pessoas que ela pensou serem suas amigas se afastaram
dela, e assim, as que a afligem mais são aquelas que pensam e

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 219

lamentam que sua alma esteja, na opinião delas, arruinada e


obviamente iludida. Na verdade, elas estão certas de que tudo
isso vem do Demônio. Desse modo, fofocam e dizem que terá
o mesmo fim de fulano e sicrano e que beltrano já viu quem se
arruinou desse modo. Pensam que, através de suas transgressões,
ela arrastará outros e enganará seus próprios diretores espiritu-
ais. Desprezam a pobre alma e falam sobre ela em suas costas
vezes sem conta.
Conheço alguém [sem dúvida a própria Teresa] a quem
tudo isso estava acontecendo e que ficou com muito medo de
que não houvesse ninguém em quem pudesse confiar. Há tan-
to que eu poderia lhes dizer sobre tudo isso, mas não pararei
para fazer isso agora. O pior disso tudo, no entanto, é que essas
provações não terminam rapidamente; persistem durante toda
a vida da pessoa. Assim, ninguém é enviado ao “exílio social”
pelas advertências que essas pessoas dão umas às outras.
Oh, mas vocês dizem, “Certamente deve haver alguém
que falará bem dela.” O fato, minhas filhas, é que há poucos
que realmente crêem que suas ações sejam realmente boas, em
comparação aos muitos que tão intensamente a desaprovam!
Isso nos leva a uma segunda provação e essa diz respeito a
quando somos elogiadas, pior do que a que já foi mencionada,
pois a alma vê muito claramente que se há algum bem em nós,
ele só pode ser dom de Deus e não nosso. Na verdade, a alma
claramente observa que, não faz muito tempo, estava mergulha-
da na mais terrível falência e na mais profunda pecaminosidade.
Assim, essa frase se torna uma dor intolerável de suportar, pelo
menos a princípio, mas que pode começar a diminuir mais tarde
por várias razões.
A primeira dessas razões para a diminuição da dor é a que a
experiência mostra que pessoas podem tão facilmente falar bem
ou mal de nós, de modo a que as pessoas não façam distinção
entre um modo ou outro. A segunda razão que nosso Senhor tem
mostrado com grande prazer é que, embora “em mim, em minha

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220 VIDA DE ORAÇÃO

carne, não habite nenhum bem”, o bem que pode ser achado é
verdadeiramente dom de Sua Majestade. Assim, a alma irrompe
em louvor como que contemplando o bem em uma terceira pes-
soa que não ela mesma. A terceira razão é que, tendo visto como
outros têm sido auxiliados ao reconhecer os favores que Deus
lhes tem concedido, a alma pode mudar de postura e assumir que
são as suas virtudes que devem ser valorizadas. Na realidade, é
claro, as coisas não são assim. A quarta razão é que, ao continuar
apreciando a honra e a glória de Deus mais que a sua própria
glória, a alma não é mais tentada a pensar que essas frases que
causaram mal a outros causarão mal a ela. A alma fica então li-
vre da preocupação relacionada à sua reputação, conquanto isso
seja para o louvor da glória de Deus, venha como vier.
Essas e outras razões diminuem o constrangimento que
é estimulado por esses louvores falsos, embora sempre alguma
angústia seja ainda sentida. Somente quando a alma não dá
atenção nenhuma a eles é que está livre. Na verdade, ter a alma
publicamente valorizada sem razão é uma provação bem maior
que qualquer daquelas já mencionadas. Uma vez que a alma te-
nha aprendido a cuidar pouco de sua reputação, ela se importa-
rá muito menos com a outra provação. Na verdade, ela se alegra
e vê essa provação como a mais agradável das músicas. Isso é
realmente verdade, pois a alma é fortificada e não desanimada,
uma vez que a experiência tem agora lhe ensinado o grande
benefício que ela obtém nesse processo.
Parece à alma que essas pessoas não estão ofendendo a
Deus em sua perseguição, mas que realmente Sua Majestade
está permitindo essas provações para o seu maior benefício. Ela
observa isso claramente, e, portanto, pode ter um amor terno,
especial e profundo por elas de modo a considerá-las como suas
melhores amigas. Elas são, de fato, mais benfeitoras que aqueles
que falam bem da alma.
Nosso Senhor está também acostumado a enviar à alma
doenças dolorosas. Essa é uma provação muito mais severa, es-

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 221

pecialmente quando as dores são agudas, pois, quando são as-


sim, elas então parecem ser as mais severas aflições que podem
ser suportadas nesta terra.
Essas provações afetam a alma tanto interna quanto ex-
ternamente de tal modo que a alma não sabe o que fazer ela
mesma ao sofrer essas dores físicas agudas. Nesse estado, a alma
de bom grado suportaria qualquer martírio, desde que fosse rá-
pido, a continuar sofrendo tão intensamente. Deus, por Sua mi-
sericórdia, não nos permite suportar mais do que podemos, de
modo que elas não se prolongam com tanta intensidade. Além
disso, Sua Majestade, primeiramente, nos concederá paciência
para que as suportemos.
Mas há outras grandes dores e enfermidades de diferen-
tes tipos. Conheço alguém [a própria Teresa] a quem o Senhor,
quarenta anos atrás, concedeu esse favor. Desde então, quase
nenhum dia se passa sem que ela sinta dor ou outros tipos de
sofrimento. Isso devido à sua frágil saúde física, para não dizer
das outras provações que ela tem tido de suportar. A verdade é
que ela se vê como tão perversa que considera as dores como
pequenas se comparadas ao temor do inferno, que merecia.
Talvez outras que não tenham magoado tanto nosso Se-
nhor possam ser conduzidas por Ele através de outro caminho,
mas eu sempre escolheria o caminho do sofrimento, porque de-
sejo imitar nosso Senhor Jesus Cristo. Eu faria isso, mesmo se
não houvesse nenhuma outra vantagem. No entanto, é claro,
há muitos outros benefícios. Mas ó, se eu tão-somente pudesse
descrever com propriedade as aflições interiores de modo a fazer
com que fossem compreendidas! Então quão insignificantes es-
sas outras pareceriam em comparação a elas. Mas é impossível.
Sobre uma experiência assim de dor, a alma não precisa
refletir a fim de compreender essa verdade sobre a aflição inte-
rior (especialmente a aflição que gera depressão), porque a ex-
periência que ela já teve de se ver completamente desamparada
agora a faz conhecer sua própria desesperança absoluta. Embora

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a alma permaneça em estado de graça a despeito de todo esse


tormento, a experiência da graça, no entanto, está tão oculta
que a alma pensa que não tem nem nunca teve a mínima fagu-
lha de qualquer amor por Deus. Se ela fez algo de bom ou se Sua
Majestade lhe concedeu algum favor, a alma parece sentir que
isso não passou de um sonho ou de uma vã fantasia.
Ó Jesus! Quão trágico é ver uma alma assim tão abando-
nada nesse caminho e ter tão pouco, no caminho do conforto
terreno, para sustentá-la! Assim, não pensem, irmãs, que, se vo-
cês se encontram algumas vezes nessa condição de depressão, os
ricos e os que desfrutam de sua maior liberdade tenham um re-
médio mais eficaz contra esses tempos. Oh, não! Parece-me que
colocar todos os prazeres do mundo diante de pessoas que estão
condenadas a morrer, e que, portanto, não têm recursos para
sustentar nenhum deles, irá somente aumentar o seu tormento.
Assim, é o mesmo aqui. A consolação deve vir do alto, pois nes-
sa situação os confortos terrenos não têm benefício algum. Esse
grande Deus deseja que conheçamos a nossa própria miséria e O
reconheçamos como nosso Rei.
Assim, o que essa pobre criatura deve fazer se continuar
nesse caminho por um longo tempo? Se ora em voz alta, é como
se não estivesse orando. Quero dizer, ela não recebe nenhum
consolo com suas orações, pois seu ser interior não as experi-
menta. Ela sequer compreende aquilo por que está orando, nem
compreende a si mesma, embora possa orar com sua voz. Quanto
à oração contemplativa, esse não é o tempo para tal, porque ela
não tem forças para isso. Mesmo a solidão faz a ela um grande
mal e se mostra um outro tormento. Ela não consegue suportar
estar na companhia de ninguém, nem conversar com nenhuma
pessoa. Embora lute para vencer essa depressão, ainda tem suas
variações de humor, que não consegue esconder dos outros. É
impossível para a alma que passa por isso comunicá-los, pois
são conflitos e dificuldades espirituais para os quais nenhum
nome pode ser encontrado. O melhor remédio – não digo para

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 223

se livrar da dificuldade, pois não conheço nenhum para isso,


mas para capacitar a alma a suportá-la – é ocupar-se com coisas
externas e com obras de caridade, esperando na misericórdia de
Deus. Sua misericórdia nunca falta àqueles que nEle confiam.
Que Ele seja bendito para sempre. Amém.
O Demônio pode suscitar outras provações que são ex-
teriores, mas essas não serão tão comuns, nem há razão para
falar delas, pois não se comparam às graves que mencionei aci-
ma. Pois, seja o que for que esses demônios façam, eles jamais
podem, em minha opinião, inibir as faculdades ou perturbar a
alma de uma maneira angustiante, pois a razão permanece livre
para considerar que eles não podem fazer mais que aquilo que o
Senhor lhes permita. Assim, quando o poder de raciocínio de
alguém não for perdido, tudo é pequeno se comparado àquilo
que mencionei antes.
Lidarei agora com outras aflições interiores que são experi-
mentadas nessas Mansões. Falarei dos diferentes tipos de orações
e favores de nosso Senhor. Alguns deles, conforme evidenciado
pelos efeitos que deixam no corpo, são mais difíceis de suportar
que outros. Mas eles não merecem o nome de dificuldades, nem
há qualquer razão para chamá-los assim, uma vez que são grandes
favores de nosso Senhor. A alma, quando em meio a eles, sabe
que são assim, embora não sejam dignos de consideração por
parte dela. Essa grande aflição vem, junto com muitas outras,
quando a alma está pronta para entrar nas Sétimas Mansões.
Mencionarei algumas delas, mas todas é impossível.

Parte Dois: Um Desrespeito Crescente pelo Eu


Parece que deixamos nossa pombinha muito para trás,
mas na realidade não deixamos, pois essas são as dificuldades
que a fazem voar bem alto. Comecemos agora a tratar do modo
como a esposa lida consigo mesma diante dEle.
Claramente, ela pertence totalmente a Ele, e assim Ele se
faz grandemente desejado de muitas maneiras, algumas tão su-

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224 VIDA DE ORAÇÃO

tis que a alma sequer as reconhece, nem tem consciência delas;


maneiras que são, portanto, indescritíveis, exceto para as pessoas
que tenham tido alguma experiência com elas, pois algumas des-
sas influências são tão sutis e delicadas, por procederem do cerne
da alma, que não conheço nenhuma ilustração capaz de poder
explicá-las. Elas são muito diferentes de tudo que podemos con-
seguir dentro de nós, e também dos prazeres já mencionados.
Muitas vezes, sem imaginá-las ou lembrando Deus, Sua
Majestade acorda uma ao iluminar sem trovejar, por assim dizer.
Embora nenhum ruído seja ouvido, a alma, no entanto, percebe
claramente que está sendo chamada por Deus. Isso é tão óbvio
que ela às vezes treme inteira, especialmente no princípio, e
emite gemidos, embora possa não sentir dor, pois se sente praze-
rosamente ferida, mas não sabe nem como nem por quem. Sabe,
no entanto, muito bem que é um favor que deve ser apreciado e
deseja nunca ser curada dele. A alma reclama com palavras de
amor, externas, endereçadas ao Esposo, pois não consegue fazer
de outro modo, uma vez que sabe que Ele está presente, embora
não esteja disposto a se revelar.
Essa é uma grande, porém agradável aflição. Se a alma
desejasse não tê-la, não poderia, nem pode jamais desejar ser
deixada sem ela, pois essa aflição dá a essa alma mais prazer que
a Oração de Quietude, que não tem nenhuma angústia a ela
associada.
Estou fazendo o meu máximo, irmãs, para que entendam
essa operação de amor, mas não sei como fazê-lo, pois parece
uma contradição que o Amado, embora sem ser visto, deixe
a alma perceber claramente que está nela. Ele parece chamá-
la por meio de um sinal que é tão evidente que não pode ser
questionado, e com um assovio que produz um som tão pene-
trante que não pode deixar de ser ouvido. A impressão é a de
que quando o Esposo fala à alma, ele está nas Sétimas Mansões.
Todos os outros habitantes das outras Mansões, a saber, os sen-
tidos, a imaginação e as faculdades, não ousam se agitar.

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 225

Ó poderoso Deus! Quão grandes são os Teus segredos e


quão diferentes são as coisas espirituais de tudo o que é visto ou
conhecido aqui sobre a terra! Ninguém de modo algum é capaz
de expressar esse favor, embora pequeno, se comparado àquele
grande que Tu promoves nas almas.
Tão poderoso é esse chamado de Ti dentro da alma que
ela se torna consumida por desejo e anseio, embora não saiba o
que pedir por estar tão fortemente persuadida de que Deus está
dentro de si.
Se Deus está tão conscientemente presente, você pode
perguntar, o que mais ela desejaria? O que perturba a alma? Que
bem maior ela poderia pedir? Não posso dizer. Mas isso eu sei
muito bem: que ela sofre, e que essa dor penetra no íntimo de
seu ser. Quando Aquele que fere a alma retira o dardo, é quase
como se a tivesse rasgado de alto a baixo, de tanto que ela dese-
ja profundamente esse amor.
Tenho pensado ultimamente que se concebo o meu Deus
como um braseiro com carvões em brasa, e se uma pequena fa-
gulha deve ser retirada dele e cair sobre a alma de tal modo a
fazê-la sentir-se inflamada, mas não consumida, ela continuará
com essa dor, que é muito prazerosa. O simples toque dessas fa-
gulhas produz essa experiência. Essa é a melhor comparação que
eu consegui encontrar, pois essa dor prazerosa não é de fato uma
dor, nem continua com a mesma intensidade, embora às vezes
possa perdurar por um certo tempo e, em outras ocasiões, cessar
rapidamente, conforme o Senhor desejar comunicá-la. Eu insis-
to, pois, que ela não deve ser obtida com esforço humano, em-
bora às vezes permaneça por um tempo, conquanto flutue; em
uma palavra, ela se aquieta, e, portanto, não cessa de inflamar a
alma, exceto quando está pronta para se extinguir. Ela então se
apaga e deixa a alma com um desejo de sofrer. De novo, trata-se
de uma dor amorosa que essa fagulha causa.
Não há razão para crer que essa experiência seja natural,
ou que seja causada por depressão, ou muito menos que seja uma

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226 VIDA DE ORAÇÃO

ilusão do Demônio, ou o efeito de uma alucinação. É perfeita-


mente claro que essa experiência só pode vir de nosso Senhor,
que é imutável. Seus efeitos são distintos dos de outras devoções
de cuja genuinidade possamos duvidar por causa de seu cará-
ter extático. Nessa experiência, todos os sentidos e faculdades
nunca são suspensos, e ela não induz a nenhuma introspecção.
Eles estão, ao contrário, em alerta para descobrir o que está se
passando. O exercício deles, até onde posso ver, não causa ne-
nhum distúrbio, e eles não aumentam essa dor prazerosa, nem a
eliminam. Qualquer um a quem nosso Senhor tenha dado essa
experiência a reconhecerá ao ler essa descrição. Que essa pessoa
agradeça a Deus e não tema que ela possa ser um engano.
Do mesmo modo, que essa pessoa não seja ingrata por tão
grande privilégio, que também lute para servi-lO e em tudo me-
lhorar a sua vida. Ela então verá o efeito saudável dessa expe-
riência e como esperar receber ainda mais e mais. Uma pessoa
que recebeu essa bênção passou vários anos desfrutando dela.
Ela sentiu, tendo servido ao Senhor por tanto tempo suportan-
do grandes provações, que, ainda assim, valeu a pena. Que Ele
seja bendito para sempre e sempre. Amém.
Talvez vocês perguntem como alguém pode estar tão con-
fiante em relação a essas experiências. Vocês podem ter certeza
disso pelas seguintes razões: primeiro, o Demônio jamais pode
conceder à alma uma dor prazerosa. Ele pode, de fato, dar cer-
tos prazeres que podem parecer espirituais, mas está além de
suas forças unir uma dor que é muito intensa à quietude e à
alegria que ela produz na alma, pois a sua força é meramente
externa e suas provações, quando ele as envia, nunca são doces
ou serenas, mas sempre inquietas e turbulentas. Segundo, essa
tempestade prazerosa surge de outra área que é muito diferente
daquela sobre a qual ele possa ter qualquer influência. Terceiro,
grandes benefícios aparecem na alma, os quais são geralmente
resoluções de sofrer por Deus. Isso não pode ser do Demônio.
A alma ganha a determinação de privar-se de todos os prazeres

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 227

mundanos, do discurso mundano e de outras coisas, a fim de


suportar as muitas aflições.
É muito óbvio que isso não é nenhuma fantasia, porque
embora o Demônio possa às vezes empenhar-se em criá-la, não
pode falsificá-la. A determinação é tão claramente experimen-
tada que não pode de modo algum ser fingida. Quero dizer que
não pode parecer ser aquilo que claramente não é, nem deixar
dúvida daquilo que realmente é. Os impulsos são genuínos, pois
os percebemos claramente, como se pudéssemos ouvir um ruí-
do alto em nossos ouvidos. Ela não pode ser confundida com
depressão mental, pois as fantasias criadas pela melancolia são
apenas uma ficção da imaginação; isso procede do interior da
alma. É impossível que eu esteja enganada, e, até que ouça ra-
zões mais fortes de alguém que entenda do assunto, manterei a
minha opinião. Por acaso conheço alguém [provavelmente ela
mesma] que tinha muito medo de ser enganada desse modo, e
que, no entanto, nunca teve medo desse tipo de oração.
Nosso Senhor também emprega outros meios para des-
pertar a alma. Por exemplo, quando alguém está orando em voz
alta, sem pensar nas coisas interiores, a alma parece pegar fogo
de uma maneira abrupta e prazerosa. É como sentir repentina-
mente um perfume muito forte que se espalha por todos os sen-
tidos, embora eu não diga literalmente que é um perfume. Eu
simplesmente uso isso como uma ilustração a fim de comunicar
o entusiasmo com o qual a alma fica excitada na presença do
Esposo e o desejo inebriante de desfrutá-lO. Isso a leva a estar
pronta para qualquer gesto heróico e a dar louvor a nosso Se-
nhor.
A fonte desse favor já foi discutida. Mas aqui não há
nenhuma dor, nem são dolorosos esses desejos de desfrutar de
Deus. Isso é o que é mais comumente sentido pela alma. Assim,
não penso que haja alguma razão aqui para temor. Ao contrá-
rio, devemos somente nos esforçar por receber esse favor com
gratidão.

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228 VIDA DE ORAÇÃO

Parte Três: A Alma Despertada por Locuções


Nosso Senhor tem um outro modo de despertar a alma.
Embora possa parecer um favor maior que os já discutidos, ele,
no entanto, se mostra mais perigoso. Assim, darei mais detalhes
sobre ele. A alma é acordada por meio de vozes, das mais dife-
rentes formas. Algumas parecem vir de fora. Outras do seu mais
profundo interior. Outras parecem vir de cima, enquanto outras
estão, de novo, tão completamente fora da alma que podem ser
ouvidas como se proferidas por uma voz humana.
Às vezes tudo isso pode parecer fantasioso, especialmente
naqueles que estão propensos à depressão. Quero dizer com isso
os que estão afetados por uma verdadeira melancolia ou pesso-
as que possuam uma imaginação fraca. Nenhuma atenção deve
ser dada a esses dois tipos de pessoas, embora digam que vêem,
ouvem e compreendem. Nem devemos levar a sério a impressão
de que ouviram essas coisas do Demônio. Devemos, ao contrá-
rio, olhar para elas como pessoas enfermas. A Madre Superiora
e o confessor ou a pessoa em quem confiam deve aconselhá-las
a não dar atenção a essas ilusões, pois isso não é um meio atra-
vés do qual possam servir a Deus, e o Demônio tem enganado
a muitos assim. Animem essas pessoas de modo a não sentirem
mais dor. É inútil dizer-lhes que estão em depressão mental, pois
não acreditarão em vocês. Insistirão em que estão na verdade
vendo e ouvindo coisas porque isso parece muito claro a elas.
A solução pode ser certificá-las de que têm menos tempo
para oração, e que, tanto quanto possível, deveriam ser dissua-
didas a dar importância a essas ilusões. O Demônio está acos-
tumado a fazer uso de almas assim fracas para a sua própria des-
truição ou ao menos para ferir a outros, pois, tanto para almas
enfermas quanto para alma saudáveis, há motivo para apreensão
acerca dessas coisas até que fique esclarecido o tipo de espírito
responsável por elas. Eu também creio que é melhor para essas
pessoas livrarem-se dessas coisas primeiro, pois, se elas são de
Deus, buscar dispensá-las nos ajudará muito a avançar em Seus

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 229

caminhos. Quando são provadas desse modo, elas tendem a au-


mentar, mas a alma não deve se permitir ser muito incomodada
por isso, porque então não posso realmente ajudá-la.
Retornemos agora àquilo que eu dizia sobre esses “discur-
sos” que a alma pode experimentar. As coisas diferentes que
mencionei podem vir de Deus, do Demônio, ou da própria ima-
ginação da pessoa. Descreverei as características pertencentes a
esses diferentes tipos e também alertarei quando esses “discur-
sos” podem ser perigosos, pois há muitas almas entre as pessoas
de oração que os percebem. E eu não quero que vocês, irmãs,
imaginem que fazem mal em crer ou em não crer neles. Quando
são somente para o seu próprio prazer, ou para revelar a vocês
os seus defeitos, então não importa se são verdadeiros ou falsos.
Eu as advirto contra uma atitude como esta de pensar além de
si mesmas por causa da experiência, embora as coisas pareçam
vir de Deus, pois nosso Senhor falou freqüentemente com os
fariseus a esse respeito.
Todo o nosso bem está no modo como tiramos vantagem
de Suas palavras. Assim, não prestem atenção a qualquer “dis-
curso” que não esteja estritamente em harmonia com as Escri-
turas, pois se assim não for, é como se tivessem vindo do pró-
prio Demônio. Tais palavras podem, de fato, vir somente de
sua própria imaginação débil. Vocês então devem considerá-las
como tentações que provam a fé. Portanto, sempre resistam a
elas para que cessem gradualmente. E elas assim o farão, pois
têm muito pouco poder em si mesmas.
Retornemos agora ao primeiro ponto. A menos que as
locuções venham de Deus, pouco importa se cremos que te-
nham vindo de dentro, de cima ou mesmo do mundo exterior.
A evidência mais significativa que elas podem ter, em minha
opinião, é a seguinte: o primeiro e mais verdadeiro é o sen-
so de autoridade e de poder que esses “discursos” trazem com
eles. Eles são consistentes em provar aquilo que dizem. Vou me
explicar um pouco mais claramente. Uma alma, por exemplo,

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230 VIDA DE ORAÇÃO

pode estar totalmente dominada pela aflição e pela inquietação


interior, além de estar experimentando aridez e escuridão de
entendimento. Se o mundo inteiro e todos os seus estudiosos
se reunissem para dar à alma razões para não estar aflita, não
conseguiriam, com todos os seus esforços, remover essa aflição
[aqui Teresa está falando de sua própria experiência].
A alma pode estar perturbada porque seu diretor espiritual
e outros podem lhe dizer que “ela está possuída por um espírito
maligno”. Se, no entanto, por meio da palavra que diz, “sou eu,
não temas”, a alma é então liberta de todos os seus temores, fica
alegre e imagina que ninguém seja capaz de fazê-la crer no con-
trário, então essa deve ser uma experiência genuína. Por mais
ansiosa que essa alma possa estar quanto às conseqüências de
sua depressão e do desânimo que vislumbre no futuro, se ouve
essa afirmação: “aquiete-se porque tudo acabará bem”, ela pode
então ficar segura e sem qualquer preocupação no mundo. Essa
afirmação pode ter o mesmo efeito de muitas outras maneiras.
O segundo sinal é que uma profunda paz permanecerá
na alma, de modo que ela possa desfrutar de um recolhimento
dedicado e cheio de paz, e ter a disposição de louvar a Deus.
Ó meu Senhor! Se uma palavra comunicada por um dos Teus
servos tem tamanha força (ao menos nessas Mansões), como
será quanto Tu mesmo estiveres unido à alma e, por meio desse
amor, a alma estiver unida a Ti?
O terceiro sinal é que essas palavras não são esquecidas
por um longo tempo. Na verdade, jamais serão esquecidas.
Isso as faz totalmente diferentes das palavras que são faladas
no mundo pelos homens por mais sábios e instruídos que se-
jam, pois suas palavras jamais poderiam ser tão profundamente
impressas em nossas memórias, nem poderíamos dar tamanho
crédito a elas em comparação com essas palavras que Ele dá.
Elas jamais podem ter tamanha exatidão quando relacionadas
ao futuro, embora falem sobre coisas que parecem ser absoluta-
mente impossíveis de prever.

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 231

Às vezes, dúvidas podem surgir quanto à sua possibilidade


ou quanto a serem verdadeiras ou falsas, de modo que a alma
pode, dessa maneira, oscilar um pouco. Há, no entanto, na
alma, uma profunda segurança de que ela não pode ser persua-
dida, embora tudo pareça contrário ao que ela ouviu. Embora
alguns anos se passem, a alma, no entanto, permanece com a
sua confiança de que Deus empregará todos os Seus meios to-
talmente desconhecidos de nós os quais, ao final, tornarão essas
coisas em realidade.
Contudo, a alma não pode evitar o sofrimento quando vê
tantos obstáculos contra ela, pois as circunstâncias que viveu
durante o tempo em que ouviu as palavras e a certeza que elas
deixaram dentro dela da parte de Deus são agora passado e no-
vas dúvidas começam a surgir. Essas palavras vêm do Demônio,
ou são fruto da imaginação? Quando a alma experimenta essas
palavras, no entanto, não tem nenhuma dúvida ou temor; ela
morreria pela verdade.
Há muito que temer com respeito ao Demônio e ao exer-
cício da imaginação. Mas se as características acima forem ob-
servadas, a pessoa então pode ficar tranqüila de que essa obra
vem de Deus. No entanto, ela pode não ocorrer da maneira que
nós experimentamos palavras que são ditas e que estão relacio-
nadas a alguma questão importante que envolve ação da parte
do ouvinte, ou questões que afetem uma terceira pessoa. Em
uma situação como essa, nada deve ser feito sobre ela, nem nada
deve ser considerado sem o conselho de um sábio diretor. Uma
confirmação clara da parte de Deus deve ser solicitada, além da
compreensão sobre a origem da mensagem.
Não se trata apenas de investigar se ela é racional ou
não, mas simplesmente se é desejo do Mestre, pois a obediência
àquilo que Ele ordena é essencial. Se experimentarmos isso, não
poderemos então permitir que nosso diretor espiritual assuma
o lugar de Deus quando não houver nenhuma dúvida de que
essas palavras são ordem dEle. Se a questão é complexa, essas

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232 VIDA DE ORAÇÃO

palavras nos ajudarão a ter coragem, e nosso Senhor também


falará ao diretor. Se for de Seu agrado, Ele nos capacitará a reco-
nhecer que isso é obra do Seu Espírito. Se Deus não fizer assim,
não temos obrigações posteriores. Agir diferente do modo como
temos sido orientadas e nos deixarmos ser guiadas de acordo
com a nossa opinião é uma prática muito perigosa. Assim, eu as
advirto, irmãs, em nome de nosso Senhor, que estejam atentas
para que isso nunca aconteça a vocês.
Há uma outra maneira na qual o Senhor fala à alma. Eu
considero com alguma certeza que ela realmente vem dEle, e
por meio de uma certa visão intelectual sobre a qual falarei mais
adiante. Isso ocorre no interior da alma. As palavras são tão
claramente ouvidas dentro dela que é como se tivessem sido
ditas pelo próprio Senhor. Tão íntima é a maneira como são
comunicadas que o modo como a alma as compreende, junta-
mente com os efeitos que são produzidos pela visão, convencem
a alma e a deixam absolutamente certa de que de modo algum
isso pode ser obra do Demônio. A experiência produz efeitos
maravilhosos, suficientes para nos fazer crer na realidade daqui-
lo que aconteceu.
Fica muito claro que isso não procede da imaginação, e
quem quer que reflita estará sempre certo disso pelas seguintes
razões:
Primeiro, há uma diferença com relação à clareza do dis-
curso. Ele é tão simples que a alma lembra cada sílaba do que
foi ouvido. Do mesmo modo, ela sabe em que estilo específico
as palavras foram ditas, embora todas possam não ter um signifi-
cado. Em contraste, aquilo que brota na fantasia da imaginação
nunca é dito clara ou distintamente, mas é como algo proferido
por uma pessoa que esteja sonolenta.
Segundo, aquilo que é ouvido na maioria das vezes não foi
pensado antes. O que quero dizer é que vem inesperadamente.
Às vezes, quando a pessoa está envolvida em uma conversa,
uma resposta é dada que parece somente vir repentinamente,

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 233

através de nossos pensamentos, ou que tenha passado por eles


antes. Freqüentemente isso está em coisas das quais não nos
lembrávamos como eram ou como poderiam ser. Daí a imagina-
ção não ter podido moldá-las. A alma não é enganada, portan-
to, ao fantasiar aquilo que não havia desejado, nem querido, e
ao qual não havia prestado atenção anteriormente.
Terceiro, quando Deus fala, somos como alguém que ape-
nas ouve. Quando isso é fruto da imaginação, é como se alguém
fosse compondo gradualmente aquilo que deseja ouvir.
Quarto, há uma grande diferença nas palavras a partir de
algo que alguém normalmente ouve. Por exemplo, em um dis-
curso genuíno, uma palavra pode comunicar todo um mundo de
significados que o entendimento jamais poderia ter construído
tão rapidamente e colocado em linguagem humana.
Quinto, trata-se de uma experiência comum quando não
somente palavras podem ser ouvidas, mas um modo de ouvi-las
nos é dado, o qual não podemos explicar. Há uma profundidade
de entendimento que é inexprimível. Trata-se de algo muito
sutil, pelo qual nosso Senhor deve ser louvado.
Com respeito a essas maneiras diferentes e à distinção
entre elas, há algumas pessoas que são muito céticas. Eu parti-
cularmente conheço alguém que as tem tentado por experiên-
cia própria [ou seja, a própria Teresa]. Pode haver ainda outras
pessoas que não poderiam entendê-las plenamente. Mas essa
pessoa de quem falo, eu sei, as tem considerado minuciosa-
mente, pois o Senhor tem constantemente concedido seu fa-
vor a ela.
A maior dúvida que ela teve é se estava imaginando a
coisa como um todo quando a experimentou pela primeira vez,
pois, quando os discursos vêm do Demônio, suas fontes podem
ser muito mais rapidamente identificadas, embora seus artifícios
sejam tão numerosos que ele possa facilmente enganar e repro-
duzir o Espírito de luz. Creio que ele faz isso ao pronunciar suas
palavras muito claramente, de modo a não haver mais dúvida

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234 VIDA DE ORAÇÃO

acerca de serem entendidas como se tivessem sido faladas pelo


Espírito da verdade. Ele não está apto a falsificar os efeitos que
foram descritos, de modo que, ao invés de deixar a alma em paz
e na luz, ele promove inquietação e conflito. Assim, ele pode
causar pouco ou nenhum dano se a alma for humilde e fizer
aquilo que mencionei.
Se os favores e dons vêm de nosso Senhor, que a alma ob-
serve cuidadosamente se considera estar melhor através deles.
Quando ouve mais expressões amorosas, se não se sente peque-
na e impressionada por elas, a alma pode estar certa de que isso
não é do Espírito de Deus, pois, quanto maior o favor concedi-
do, menos a alma se valoriza. Ela se lembrará ainda mais de seus
pecados, e, esquecendo o interesse próprio, se empenhará com
mais freqüência na busca diligente e na lembrança somente da-
quilo que é para a honra e glória de Deus. A alma então agirá
mais cautelosamente no caso de negligenciar o cumprimento
da vontade de Deus. Do mesmo modo, compreenderá com mais
exatidão que não merece favores e sim o inferno.
Uma vez que todas essas coisas e favores que recebe pro-
duzem esses efeitos, que a alma não se perturbe. Confie na mise-
ricórdia de nosso Senhor, que é fiel e está disposto a não tolerar
que o Demônio a iluda. No entanto, o melhor para a alma, sem-
pre, é viver em temor.
Que Sua Divina Majestade nos conceda que sempre lute-
mos para agradá-lO e sempre nos esqueçamos de nós mesmas.
Amém. Que o Senhor permita que eu tenha explicado correta-
mente aquilo que tinha intenção de explicar, e que isso sirva de
direção àqueles que recebem esses favores.

Parte Quatro: Grande Coragem Exigida para


Experimentar Tais Coisas de Deus
No meio de todos esses esforços e provações, o que resta
à pobre borboleta, uma vez que todas essas coisas servem para
inflamar seus desejos de desfrutar do Esposo? Sua Majestade,

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 235

conhecendo nossas fraquezas, continua a preparar a alma para


que tenha coragem de escolhê-lO como seu Esposo dessas e de
outras maneiras.
Vocês podem pensar que isso é absurdo, e talvez riam ao
me ouvir dizer isso, pois a coragem não é algo que vocês pensem
que seja necessário a uma mulher que deseje desposar um rei.
No entanto, eu creio que é, em se tratando de um rei terreno.
Mas eu lhes digo que casar-se com um Rei celestial de-
manda muito mais coragem do que podem imaginar, pois a nos-
sa natureza é muito egoísta e temerosa diante de tão sublime
realidade. Na verdade, penso que é certo que isso seria impos-
sível se Deus não nos desse forças para essa responsabilidade.
Louvemos, portanto, muitíssimo a Ele por permitir que o co-
nheçamos. Amém. Amém.

Parte Cinco: “O Vôo do Espírito” Chamado Êxtase


Há um segundo tipo de êxtase que chamo de “o vôo do
espírito”. Embora seja substancialmente o mesmo que um êxta-
se comum, ele é, no entanto, experimentado de uma maneira
muito diferente interiormente, pois, às vezes, a alma fica cons-
ciente de um movimento tão rápido que o espírito parece se
mover a uma grande velocidade. A princípio isso pode causar
muito medo e é por isso que eu lhes disse que era necessária
uma autêntica coragem em uma experiência assim. Confiança,
dependência e resignação absoluta nas mãos de nosso Senhor
são requeridas, bem como a entrega da alma à vontade dEle.
Não há como resistir a essa experiência. Ela parece sugerir
que Deus quer que a alma esteja tão amolecida e verdadeira-
mente entregue em Suas mãos de modo a não ter mais direito
sobre si, e, a partir daí, seja visivelmente carregada nesse tipo
de movimento.
Isso me faz lembrar aquela cisterna de água que se encheu
em um determinado estágio silenciosa e suavemente, quero di-
zer, sem qualquer ruído.

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236 VIDA DE ORAÇÃO

Do mesmo modo, esse grande Deus que controla todas as


fontes de água e não permite que o amor ultrapasse suas fronteiras,
aqui libera os riachos e correntes de onde a água vem. Com grande
força, uma enorme onda se levanta e ergue bem alto a pequena em-
barcação. Se em uma situação assim o barco nada pode fazer, nem
piloto algum ou tripulação têm qualquer poder de controlar as on-
das quando se erguem em fúria e as vagas o arremessam segundo sua
vontade, muito menos o interior da alma pode permanecer onde
gostaria de estar. Igualmente, nem os sentidos ou faculdades podem
estar no controle quando se encontram tão desgovernados.
Só de escrever sobre isso, irmãs, fico espantada quando
reflito em quão vasto é o poder desse grande Rei e Imperador
que se manifesta nessas experiências.

Parte Seis: Efeitos Práticos dessas Experiências


A partir da experiência com esses favores sublimes, a alma
deseja ardentemente desfrutar por completo dAquele que a ela
os concede. Esses anseios se tornam tão agudos que a vida passa
a ser uma deliciosa tortura e a alma anseia então morrer. Assim,
em lágrimas contínuas, ela implora a Deus que a tire desse exí-
lio. Tudo aquilo que vê nessa vida produz cansaço e enfado. Na
solidão, encontra algum alívio, mas então a tristeza mais uma
vez se abate sobre ela.
Em uma palavra, essa pobre borboleta não consegue en-
contrar repouso permanente. Na verdade, por estar cheia de
amor terno, qualquer oportunidade que represente o reacender
desse fogo mais e mais faz com que bata as suas asas. Como
conseqüência, nessas Mansões, êxtases são muito comuns, sem
que ela consiga evitá-los, mesmo quando ocorrem em público.
Perseguições e calúnias imediatamente se seguem, pois, embora
deseje não ter medo, ela, no entanto, não é deixada só, porque
há muitos que o causam, especialmente confessores.
Embora por um lado a alma pareça ter grande segurança
dentro dela, especialmente quando está a sós com Deus, por

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 237

outro, está em grande aflição. Ela teme que o Demônio possa


enganá-la, a fim de fazer com que ofenda Aquele que ela tanto
ama. Ela raramente se deixa influenciar pelo que outras pesso-
as pensam ou dizem a seu respeito, especialmente quando seu
próprio confessor a aflige e diz que ela poderia fazer mais a fim
de evitar esses êxtases. Ela então não faz nada, senão pedir a
todos que orem a seu favor, e implorem a Sua Majestade que a
conduza por algum outro caminho.
Mas Tu não precisas ter pena dela, pois, auxiliada pelo
Teu poder, ela será capaz de carregar muitas cruzes, e está de-
terminada a fazê-lo: deseja carregá-las todas. Estende Teu bra-
ço forte, ó Senhor! Que a vida dela não seja desperdiçada em
coisas vis. Que a Tua Grandeza se manifeste em uma criatura
feminina tão humilde que todos os homens, vendo que ela não
pode fazer nada por si mesma, louvem a Ti, custe o que custar,
pois isso é o que ela deseja, e daria mil vidas (se as tivesse) para
que, através dela, uma alma pudesse louvar um pouco mais a Ti.
Ela consideraria todas bem vividas, sabendo perfeitamente bem
que não merece sofrer a menor das cruzes por Ti, tampouco a
menor das mortes!
Deus dá a almas como esta o desejo extremo de não O
ofender nem nas coisas menores, e, se possível, não cometer
sequer a menor das imperfeições. Por essa razão somente, se não
houvesse nenhuma outra, ela fugiria de todas as pessoas. Assim,
ela inveja aqueles que vivem ou que viveram em desertos. Por
outro lado, a alma gostaria de mergulhar diretamente no meio
do mundo a fim de tentar ser um instrumento para fazer com
que ao menos uma alma louve a Deus com toda a sinceridade.
Como mulher, lamenta que seu sexo coloque-a em desvanta-
gem para realizar o seu propósito. Desse modo, ela inveja muito
os que têm o poder de gritar bem alto, e de proclamar Quem é
esse grande Deus dos Exércitos.
Oh, pobre borboletinha! Tu és tão limitada pelos mui-
tos obstáculos que não permitem que voes como gostarias. Tem

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238 VIDA DE ORAÇÃO

piedade dela, meu Deus! Disponibiliza os recursos para que ela


possa de algum modo cumprir seu desejo de honrar e glorificar
a Ti. Não contemples a fragilidade de seus méritos, nem a sua
depravação natural.
Pois tu és capaz, ó Senhor, de fazer com que o mar pode-
roso se retire, que o grande Jordão se divida e até mesmo fazer
qualquer outra coisa impossível!
Desejos assim ocorrem em pessoas maduras. O Demônio
pode muito bem fazer com que imaginem que elas são as mais
entendidas em sua competência por causa do número de expe-
riências que tiveram. Daí ser sempre bom caminhar com um
senso de temor. Ao mesmo tempo, não creio que o Demônio
possa encher a alma com tranqüilidade e paz. Ao contrário, os
sentimentos que surgem são apaixonados, como aqueles que ex-
perimentamos quando estamos perturbados com os afazeres do
mundo.

Parte Sete: Sensibilidade Intensificada ao Pecado


Talvez vocês possam pensar, irmãs, que essas almas com
quem o nosso Senhor se comunica de um modo especial se sen-
tirão tão seguras na alegria de desfrutá-lO para sempre a ponto
de não temer ou não lamentar seus pecados passados. Aqueles
que podem particularmente pensar assim são os que nunca foram
abençoados por esses favores, pois, se já os tivessem experimen-
tado e vindo a Deus, entenderiam o que estou dizendo. Isso, no
entanto, é um grande erro, uma vez que a tristeza pelo pecado
na verdade aumenta muito quando recebemos mais favores de
Deus. De minha parte, creio nisso porque, até chegarmos onde
ninguém possa nos perturbar, essa tristeza nunca nos deixará.
É verdade que essa aflição pode nos afetar mais em deter-
minados momentos do que em outros, e também de maneiras
diferentes, pois uma alma assim não reflete nem sobre a punição
que merece por seus pecados, nem em quão ingrata tem sido
para com Alguém a quem deve tanto, e que tanto merece ser

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 239

servido, pois é através desses favores sublimes que Ele lhe comu-
nica que ela descobre muito mais da grandeza de Deus. Ela fica
impressionada diante de Sua ousadia. Lamenta seu desrespeito.
Sua conduta parece tão tola que ela nunca cessa de lamentá-la,
pois se lembra das coisas tão vis que a fizeram desertar de tão
grande Majestade.
A alma pensa mais nessas coisas do que nas bênçãos que
tem recebido, as quais, embora sejam tão grandes, parecem
como o volume central de água em um riacho que corre rápido,
removendo-as o tempo todo. Seus pecados, no entanto, tam-
bém se assemelham ao fundo enlameado que permanece em sua
memória, que é uma cruz pesada para ela.
Não considero seguro para a alma, por mais que ela pos-
sa ser favorecida por Deus, esquecer como esteve por vezes em
uma condição miserável. Embora seja um pensamento doloro-
so, ele, no entanto, em muitos sentidos é de grande vantagem.
Porque tenho sido tão pecaminosa, talvez seja essa a razão pela
qual isso esteja sempre diante de mim e a lembrança desse fato
esteja sempre em minha mente. Aqueles que têm sido bons não
têm nada que lamentar, embora sempre há de haver imperfei-
ções enquanto vivermos nesse corpo mortal.
A dor não é aliviada ao considerarmos que nosso Senhor
já perdoou nossos pecados e os esqueceu. Ela, ao contrário, au-
menta, pois contempla a grande bondade e misericórdia dis-
pensada a alguém que não merece outra coisa senão o inferno.
Penso que esse tenha sido o grande sofrimento que Pedro e Ma-
ria Madalena suportaram, pois, como possuíam um amor muito
intenso, haviam recebido muitos favores e conheciam a gran-
deza e a majestade de Deus, a lembrança de seus pecados deve
ter sido uma grande aflição para eles. Eles devem tê-la sentido
muito dolorosamente.
Vocês podem igualmente imaginar que alguém que desfrute
de favores tão elevados não precise meditar sobre os mistérios da
mais sagrada humanidade de Cristo, nosso Senhor. Não estaria a

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240 VIDA DE ORAÇÃO

alma já totalmente envolvida e ocupada no amor? É impossível,


no entanto, que uma alma que tenha recebido tanto de Deus es-
queça a lembrança de provas tão preciosas de Seu amor.
A alma compreende esses mistérios de uma maneira mais
perfeita, pois a compreensão os representa diante dela, e eles fi-
cam tão fixados em sua memória que simplesmente contemplar
nosso Senhor prostrado no jardim suando gotas de sangue (no
Getsêmani) é suficiente para ocupá-la não somente por uma
hora, mas por muitos dias.
Há certos princípios, e também métodos, que algumas al-
mas usam que estão começando a ser incorporados à Oração de
Quietude. Eles servem de aperitivo aos doces e prazeres que nos-
so Senhor lhes dá ali. Elas valorizam muito estar continuamente
sendo beneficiadas por essas experiências. Agora, que acreditem
em mim e não se deixem estar muito absorvidas, pois a vida é
longa, e nela há muitas dificuldades. Portanto, a fim de suportar
essas dificuldades com perfeição, devemos considerar como nosso
padrão, Jesus Cristo, e Seus apóstolos e santos as suportaram.
A presença de nosso bom Jesus é uma ótima companhia.
Não devemos deixá-lO. Ele se alegra imensamente quando co-
nhecemos os Seus sofrimentos, embora às vezes percamos nosso
próprio prazer e alegria. Ele se alegra muito mais porque o pra-
zer encontrado na oração não é tão freqüente. Que tenhamos,
então, tempo para tudo [Aqui Teresa adverte aqueles que que-
rem se entregar mais a êxtases e enlevos do que à meditação
consistente sobre a paixão de nosso Senhor em seus tempos de
contemplação].

Parte Oito: Não Desejam Buscar Visões (A Parte Oito


na obra original de Teresa foi excluída)
Não direi mais nada sobre este assunto exceto, primeiro,
aconselhá-las com todo zelo que, embora saibam que Deus con-
cede esses favores a algumas almas, vocês nunca devem pedi-los
a Ele, nem desejar que Ele as conduza nesse caminho, pois, em-

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 241

bora lhes pareça muito desejável e grandemente favorável, não


é, contudo, apropriado pedir.
Em primeiro lugar, desejar aquilo que vocês nunca mere-
ceram denota falta de humildade. Assim, creio que todo aque-
le que deseja essas experiências mostra pouca humildade. Um
simples trabalhador está longe de desejar ser um rei, e considera
tal coisa impossível porque não a merece. Do mesmo modo,
uma pessoa humilde está longe de desejar tais favores divinos.
Estou certa de que eles nunca serão concedidos, exceto àque-
les que são humildes de coração, pois, antes de nosso Senhor
conceder esses favores, Ele nos dá uma verdadeira percepção de
nós mesmas. Deveríamos verdadeiramente compreender que a
alma tem um grande favor a ela demonstrado que é o de não ser
lançada no inferno. Deveríamos exercitar essa gratidão.
Segundo, uma pessoa assim é muito fácil de ser enganada,
ou corre o grande risco de ser, uma vez que o Demônio nada
mais deseja senão encontrar uma pequena porta a fim de nos
conduzir a milhares de enganos.
Terceiro, quando o desejo é forte e a imaginação é vívida,
eles fazem com que alguém veja e ouça aquilo que quer. Esse
estímulo acontece àqueles que durante o dia pensam nisso tão
intensamente que sonharão com isso durante a noite.
Quarto, é muita presunção desejar escolher um caminho
por si mesmas, quando não sabem o que é melhor para vocês.
Ao contrário, vocês deveriam entregar a questão como um todo
a nosso Senhor, que melhor as conhece, a fim de que Ele possa
conduzi-las no caminho que Ele julga apropriado.
Quinto, as dificuldades resultantes não são tão poucas
quanto vocês imaginam. Ao contrário, as que a alma enfrenta
são inúmeras e de vários tipos. Como vocês sabem se serão ca-
pazes de suportá-las?
Sexto, pode acontecer de vocês perderem aquilo que pen-
saram ter ganhado com essa experiência. Foi o que aconteceu
com Saul quando se tornou rei.

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242 VIDA DE ORAÇÃO

Assim, em resumo, irmãs, há outras razões para vocês não


desejarem visões, razões essas que devemos lembrar. Creiam-me
que a melhor coisa a fazer é desejar somente a vontade de Deus.
Coloquemo-nos inteiramente em Suas mãos, pois Ele nos ama
muito e nós não podemos errar se, com diligência, perseverar-
mos em Seu amor. Vocês também devem saber que não seremos
merecedoras de mais glória por recebermos muitos desses favo-
res. Ao contrário, somos obrigadas a servi-lO muito mais por
causa deles.
Que Ele seja louvado para sempre por ter desejado revelar
Sua glória ao humilhar-se conversando com criaturas tão mise-
ráveis. Amém.

As sétimas mansões: a oração do casamento com Jesus


como uma total transferência de vida

Parte Um: O Que Mais Pode Ser Dito?


Vocês podem pensar, irmãs, que se tanto já foi dito com
respeito ao caminho espiritual, nada mais pode ser acrescenta-
do. Mas é um grande erro pensar desse modo, pois, assim como
a grandeza de Deus não tem limites, Suas obras também não.
Quem é capaz de enumerar todas as Suas misericórdias e mara-
vilhas? É impossível. Assim, nunca questionem o que tem sido
dito, ou o que será dito, porque isso é apenas uma mera fração,
comparada a tudo que poderia ser dito com relação a Deus. Ele
tem sido muito misericordioso para conosco ao ter comunicado
essas coisas a uma pessoa [ou seja, a própria Teresa], por meio
de quem temos podido conhecê-las. Mas quanto mais tomamos
consciência de que Ele se comunica com suas criaturas, mais
louvamos Sua grandeza e nos empenhamos em valorizar mais
essa alma em quem nosso Senhor tanto se alegra e deleita. Cada
uma de nós tem essa alma, mas, uma vez que não a consideramos
como uma criatura feita à imagem de Deus deveria considerar,
não compreendemos os grandes segredos que a alma contém.

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 243

Se, no entanto, for do agrado de Sua Majestade guiar mi-


nha pena, que Ele me conceda esse favor de me capacitar a ex-
plicar parte das muitas coisas que ainda estão para ser mencio-
nadas e que Ele revela àqueles que Ele conduz a essas Mansões.
Tenho solicitado fervorosamente esse favor de Sua Majestade,
uma vez que Ele sabe que o meu único desejo é o de deixar
que Suas misericórdias sejam reveladas. Espero, irmãs, que Ele
me conceda esse favor, não por mim, mas por vocês, a fim de
que possam compreender quão importante é para o Seu Esposo
celebrar esse casamento espiritual com suas almas, pois ele traz
consigo muitas bênçãos. É também necessário que vocês não
coloquem nenhum obstáculo no caminho.
Ó Grande Deus! Sendo uma criatura assim tão miserável,
e tendo falado sobre um assunto do qual sou tão indigna de
compreender, eu tremo. A verdade é que tenho estado envol-
vida em grande confusão, pois estou indecisa se devo ou não
encerrar essas Mansões em poucas palavras. Estou temerosa
demais de que outros possam pensar que meu conhecimento
disso venha por experiência própria, e isso me faz sentir muito
envergonhada. O fato é que, conhecendo a mim mesma como
conheço, um pensamento assim é terrível. Por outro lado, qual-
quer que seja o Teu julgamento, me parece que essa vergonha se
deve à fraqueza e à tentação.
Que o mundo inteiro grite contra mim, contanto que
Deus seja louvado e um pouco mais compreendido. Eu posso es-
tar morta antes que este livro seja visto por outros. Seja bendito
Aquele que vive e viverá para sempre. Amém.
Quando nosso Senhor se agrada de ser tocado por aquilo
que a alma sofre e a alma sofre por causa de seus desejos por Ele,
Ele permite a ela entrar nas Sétimas Mansões, pois agora a es-
colheu espiritualmente como Sua esposa para a consumação das
núpcias espirituais. Pois assim como Ele possui uma habitação
no céu, onde vive sozinho, necessita agora de uma habitação na
alma. Chamemos esse lugar de Céu sagrado.

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244 VIDA DE ORAÇÃO

É muito importante para nós, irmãs, não imaginarmos que


a alma está de algum modo obscurecida. Embora não possamos
vê-la, geralmente pensamos que não haja nenhuma outra luz
interior, exceto aquilo que vemos, e que haja na alma uma certa
obscuridade. Na verdade, atribuo isso a vocês, referente a uma
alma que não está em estado de graça porque não é capaz de
receber a luz, como mencionei nas Primeiras Mansões.
Não devemos pensar na alma como uma criatura limita-
da e insignificante, mas como um mundo interno que contém
muitas Mansões maravilhosas. Quando for do agrado de Sua
Majestade conceder à alma o favor de seu casamento divino
mencionado acima, Ele a levará às Suas próprias Mansões. Sua
Majestade não deseja que isso seja como foi em outros tempos,
quando Ele lhe enviava êxtases. Nesse instante, ela está unida
a Ele como na Oração da União mencionada anteriormente.
A alma então não se sente chamada a entrar em seu próprio
centro, como é aqui nessas Mansões, mas é afetada somente em
suas partes superiores.
No entanto, pouco importa o que está se passando. Seja o
que for, o Senhor está unindo a alma a Si mesmo.
Mas ela fica cega e muda, como aconteceu com o apóstolo
Paulo em sua conversão (Atos 9.8). Isso foi feito para evitar a
alma de ter o senso do como, ou do modo que esse favor lhe é
concedido e do qual desfruta. Aquilo de que a alma está cons-
ciente é o grande prazer de perceber que está muito perto de
Deus. Mas, quando Ele se une a ela, ela nem compreende, nem
sabe coisa alguma, pois todas as faculdades estão perdidas e ab-
sorvidas.
Aqui, no entanto, tudo é diferente nessas Mansões, pois
o nosso bom Deus se agrada de tirar as escamas de nossos olhos,
para que a alma possa ver e compreender parte do favor que Ele
lhe concede. E Ele faz isso de uma maneira estranha. A alma é
levada para dentro dessas Mansões por meio da convicção da
fé na qual, através da representação da verdade, a Santíssima

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 245

Trindade se revela à alma em todas as Três Pessoas. A alma é


incendiada como se estivesse envolvida por uma nuvem de ex-
traordinário brilho. Essas Três Pessoas são distintas, e, por meio
de um maravilhoso conhecimento concedido à alma, ela com-
preende a grande verdade de que todas essas Três Pessoas são
uma substância, um poder, um conhecimento e um só Deus.
Conseqüentemente, aquilo que contemplamos por fé, a
alma aqui compreende, como alguém diria, por vista. Esse ver,
no entanto, não se dá com os olhos do corpo, porque não é
uma visão imaginária. Todas as Três Pessoas aqui se comunicam
e falam com a alma, fazendo com que entenda essas palavras
mencionadas no Evangelho onde nosso Senhor diz: “que Ele, o
Pai e o Espírito Santo viriam e fariam morada na alma daquele
que o ama e guarda os Seus mandamentos” (João 14.23).
Ó meu Deus! Que diferença ouvir essas palavras e enten-
der como são realmente verdadeiras! Essa alma é cada dia mais
e mais surpreendida porque essas palavras parecem nunca apar-
tar-se dela, mas ela vê claramente (da maneira descrita acima)
que elas estão em seu mais profundo recôndito. Uma vez que
nunca aprendeu a expressar isso, ela não consegue fazê-lo, mas
pode apenas perceber que essa companhia divina está dentro
dela.
Vocês podem pensar que com uma experiência assim a
alma fique tão fora de si e tão absorta por isso que não pode se
dedicar a mais nada. Ao contrário, ela fica mais ocupada que
antes com qualquer coisa que se relacione ao serviço de Deus.
Quando não estiver tão envolvida, ainda estará repousando
nessa companhia prazerosa. Ainda que a alma seja infiel a Deus,
Ele permanece fiel a ela, pois creio que Ele lhe dá a mais certa
garantia de Sua presença. A alma tem grande confiança de que
Deus nunca a deixará e que, tendo lhe concedido essa bênção,
nunca permitirá que perca essa confiança. A alma faz bem em
pensar assim, embora o tempo todo caminhe mais cuidadosa-
mente que nunca, a fim de não desagradá-lO em coisa alguma.

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246 VIDA DE ORAÇÃO

Experimentar essa Presença dentro da alma não é neces-


sariamente algo mais importante que o primeiro encontro da
alma com ela, pois é impossível para a alma pensar em qualquer
outra coisa, ou mesmo viver entre os homens, quando tem essa
iluminação. Embora a luz que a acompanhe nem sempre seja
tão clara, a alma está consciente de que está constantemente
experimentando essa companhia.
Podemos compará-la a uma pessoa que está com outras em
um aposento muito iluminado. Suponhamos então que as per-
sianas sejam tão bem fechadas que todas as pessoas fiquem no
escuro. A luz através da qual elas podiam ser vistas foi removida,
e, até que seja restaurada, não conseguimos vê-las. No entan-
to, estamos conscientes de que ainda estão ali. Assim, alguém
pode perguntar se essa pessoa olhará para elas novamente se a luz
voltar. Fazer isso não está ao alcance da alma, pois ela depende
apenas de quando nosso Senhor decidir abrir as persianas do en-
tendimento. Sua misericórdia é suficiente para a alma, pois Ele
nunca a deixará, e deseja que ela entenda isso claramente.
No entanto, parece que Sua Divina Majestade, por meio
desse maravilhoso acompanhamento, está preparando a alma
para algum grande favor, pois está claro que essa alma está
sendo grandemente fortalecida para amadurecer e lançar fora
o temor que antes por vezes sentia, quando outros favores lhe
eram concedidos. Isso se mostrou verdadeiro, pois a pessoa se
viu [ou seja, Teresa] melhorando em todas as coisas, e achou
que, a despeito de todos os cuidados e dificuldades que havia
enfrentado, a alma nunca se afastou daquela habitação. Em cer-
to sentido, houve uma divisão entre ela e sua alma. Para lidar
com as grandes dificuldades que lhe sobrevieram em um curto
período de tempo depois de Deus ter lhe concedido esse favor,
ela reclamou com a sua alma, como Marta fez com Maria, pois
nem sempre desfrutava dessa quietude. Ao contrário, ela se sen-
tia mergulhada em muitas dificuldades e ocupações, a ponto de
não sentir a companhia de sua alma.

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 247

Vocês podem achar isso ridículo, mas é realmente o que


acontece. É claro que a alma nunca se divide de fato, mas essa
impressão é uma experiência muito comum, pois é fácil obser-
var a clara diferença entre a alma e o espírito. Embora sejam,
em geral, uma mesma coisa, entre eles, no entanto, pode se per-
ceber uma distinção sutil que às vezes eles parecem trabalhar de
modo diferente um do outro. Assim também é o conhecimento
que nosso Senhor lhes dá. Também me parece que a alma é dis-
tinta das faculdades. Em uma palavra, há tantas diferenças sutis
em nosso interior que seria presunção de minha parte tentar
explicá-las. No céu, nós as veremos, se nosso Senhor em Sua
bondade conceder-nos o favor de nos levar ali, onde compreen-
deremos esses segredos.

Parte Dois: Distinção entre União Espiritual e


Casamento Espiritual
Embora um favor assim sublime não possa ser inteiramen-
te possuído nesta vida, falemos agora do casamento divino e es-
piritual. Nós o fazemos experimentalmente, pois, se nos retirás-
semos de Deus, essa grande bênção seria perdida. Na primeira
vez que Deus concede esse favor, Sua Majestade se agrada em se
revelar à alma por meio de uma visão imaginária de Sua San-
tíssima Humanidade. Ele assim o faz a fim de que a alma possa
entender claramente um dom assim tão imenso. Para outros,
Ele pode aparecer em outra forma. Mas para aquela de quem
falamos [Teresa], nosso Senhor se mostrou, imediatamente após
ter se comunicado, em uma figura de grande esplendor, beleza
e majestade, assim como estava depois de Sua ressurreição. Ele
lhe disse, “agora é o tempo de considerares meus negócios como
teus, e eu tomarei conta dos teus”. Outras palavras foram profe-
ridas que devem ser mais bem sentidas que faladas.
Vocês podem achar que isso não foi nada novo, porque em
outras ocasiões nosso Senhor havia se apresentado a essa alma do

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248 VIDA DE ORAÇÃO

mesmo modo. Mas essa apresentação foi tão diferente que a dei-
xou totalmente desarmada e assombrada, pois essa visão veio com
grande força e com palavras que Ele mesmo falou. No interior de
sua alma, onde Ele se revelou a ela, ela nunca antes havia experi-
mentado visões assim como essas, pois vocês devem entender que
há uma enorme diferença entre esta e as Mansões anteriores. A
diferença é tão grande como a que existe entre aqueles que estão
noivos e os que estão verdadeiramente casados.
Já mencionei que, embora essas analogias sejam usadas
porque nenhuma outra mais apropriada pode ser encontrada, é
preciso que se entenda que aqui o corpo não é mais lembrado
senão pelo fato de que a alma estava fora dele. Entre o casa-
mento espiritual e o corpo há ainda menos conexão, pois essa
união secreta é realizada no interior central do castelo da alma,
que deve certamente ser onde o próprio Deus reside. Nenhuma
porta é necessária para se entrar.
Em tudo o que disse até aqui, os efeitos parecem ser causa-
dos por meio dos sentidos e das faculdades, e as representações
da humanidade de nosso Senhor devem, por certo, ser dessa
natureza. Mas o que ocorre na união do casamento espiritual é
muito diferente, pois aqui nosso Senhor aparece no centro da
alma, não por meio de imagens, mas na convicção da fé. Essa
aparição é mais sutil que aquelas que mencionei anteriormente.
Ele aparece, assim como fez aos apóstolos, sem entrar pela porta,
quando disse a eles: “Paz esteja com vocês” (João 20.19-22).
O que Deus comunica aqui à alma em um instante é um
segredo tão íntimo, uma graça tão sublime, que a alma sente
enorme alegria que não se compara a nada que eu conheça.
Tudo o que posso dizer é que nosso Senhor Se agrada, naquele
momento, de revelar à alma a glória que há no Céu. E isso Ele
faz de um modo mais sublime do que aconteceria por meio de
qualquer visão ou outro deleite espiritual.
Mais não pode ser dito ou compreendido do que o fato de
que essa alma se torna uma com Deus. Sendo Ele mesmo um

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O CASTELO INTERIOR: PARTE 3 249

espírito, Sua Majestade Se agrada de revelar o amor que tem por


nós mostrando a algumas pessoas a extensão desse amor para
que louvemos a Sua grandeza, pois Ele Se comprometeu a unir-
Se a uma criatura de tal modo que, assim como marido e mulher
não podem se separar, Ele nunca Se separará da alma.
O Rei está no Seu palácio, embora possa haver muitas
guerras dentro de Seu reino. Muitas coisas ofensivas podem ser
cometidas. No entanto, Ele, por conta disso, não deixa de estar
em Seu trono. Assim é aqui. Embora possa haver muitos tumul-
tos e muitas criaturas venenosas nas outras Mansões, e o baru-
lho que elas fazem seja ouvido, no entanto, coisas assim não
podem entrar nessas Mansões. Nem a alma pode ser removida
à força daqui. Embora elas causem dor à alma, algo assim não a
perturbará nem a privará de sua paz, pois as paixões estão agora
dominadas de tal modo que têm medo de entrar aqui porque
sairão ainda mais mortificadas. O corpo inteiro está dolorido,
mas se a cabeça está sã, nenhum mal pode ser feito a ele.
Eu rio dessas analogias, pois elas na realidade não me sa-
tisfazem. Não consigo, contudo, encontrar melhores. Seja o que
for que pensarem delas, eu disse a verdade.

Conclusão

Quando comecei a escrever este discurso, senti a confu-


são que mencionei anteriormente. No entanto, depois de tê-lo
concluído, fiquei profundamente satisfeita com ele, e considerei
meu esforço como bem recompensado.
Portanto, considerando sua clausura muito estrita, e os
poucos momentos de lazer que vocês têm, minhas irmãs, e a
falta de conveniências que são exigidas em alguns de nossos
monastérios, penso que lhes será de algum prazer vocês se di-
vertirem dentro desse “Castelo Interior”, um castelo no qual
podem entrar sem qualquer permissão minha ou de qualquer
outra pessoa. Amém. E Amém.

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Capítulo VIII

Conseqüências práticas de uma


vida de oração

Dissemos antes que essa borboleta morre com grande


alegria, porque encontrou descanso. Ela sabe que Cris-
to vive nela. Consideremos agora que tipo de vida leva, qual a
diferença entre a sua situação presente e a sua existência anterior,
pois veremos, por meio dos efeitos, se aquilo que foi descrito é
verdadeiro. Até onde posso entender, esses são alguns deles.
A primeira conseqüência é o esquecimento do eu. Ela
verdadeiramente parece, como eu disse, não mais existir. É afe-
tada de tal maneira que nem conhece a si mesma, nem lembra
que há um Céu, vida, ou qualquer honra que lhe seja destinada.
Está totalmente comprometida em buscar somente a glória de
Deus.
As palavras ditas por Sua Majestade, convenceram-na a
cuidar dos afazeres dEle, que Ele cuidará dos dela. Assim, não
está preocupada com nada que possa lhe acontecer. Está tão in-
consciente em seu auto-abandono que parece não mais existir,
nem tem qualquer desejo de continuar vivendo, exceto quando
percebe que pode de algum modo promover a honra e a glória
de Deus. É por isso que ela daria de bom grado a sua vida.
Mas não imaginem, filhas, que, por causa disso, ela negli-
gencie o cuidado para com o comer e o dormir ou o fazer todas

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252 VIDA DE ORAÇÃO

as coisas a que é obrigada em sua situação de vida. Estamos fa-


lando aqui de questões interiores. Quanto às obras exteriores,
pouco pode ser dito. Ao contrário, para ela trata-se de uma afli-
ção considerar como tudo que é capaz de fazer por suas próprias
forças é inútil. Qualquer coisa que entenda ser proveitosa para
a glória de nosso Senhor, não será omitida por ela, por nada no
mundo.
O segundo efeito é um grande desejo de sofrer, ainda que
não como o que tinha anteriormente, pois aquele costumava pre-
ocupá-la. O desejo que almas assim têm de que a vontade de Deus
seja feita nelas é tão intenso que recebem com alegria qualquer
coisa que Sua Majestade lhes envie. Desse modo, se Ele deseja
que sofram, elas ficam contentes. Se não, elas não se torturam a
respeito, como costumavam fazer em outras ocasiões.
Essas almas igualmente sentem uma grande alegria inte-
rior quando são perseguidas, pois desfrutam de mais paz do que
aquela a respeito da qual falei. Não sentem o menor ódio con-
tra seus perseguidores. Na verdade, experimentam por eles um
tipo particular de afeição. Elas os amam tanto que, se os vissem
passando por qualquer aflição a sentiriam profundamente e se
compadeceriam deles. E orariam com toda a sinceridade por
eles a Deus que, por sua vez, lhes concederia essas aflições, tudo
a fim de que elas não ofendessem Sua Majestade.
Se estão tão dispostas a suportar esses sofrimentos e afli-
ções e preparadas para cavar fundo para desfrutarem do Senhor,
o que dizer do seu desejo de servi-lO? Ele pode ser louvado atra-
vés de suas vidas desse modo também?
Sim. Elas anseiam ajudar outros, e, assim, não somen-
te desejam morrer, mas ao mesmo tempo anseiam poder viver
muitos anos. Elas suportarão muitas cruzes a fim de que nosso
Senhor, por meio delas, possa ser honrado nas menores coisas.
Embora estejam totalmente certas de que quando a alma deixar
o corpo irão imediatamente desfrutar de Deus, não levam isso
em conta. E não valorizam a glória que os santos possuem, pois

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 253

não a desejam no presente, uma vez que toda a glória consis-


te em estar apto a assistir ao seu Senhor crucificado de algum
modo. Quando vêem o Senhor muito ofendido, especialmente
quando são tão poucos os que desejam acima de tudo ter a Sua
honra verdadeiramente em seus corações, essas servas desejam
somente viver para Ele mais e mais.
Às vezes, quando esquecem seu propósito, o desejo de
desfrutar de Deus e de deixar essa terra de exílio se manifesta
diante delas com ternura. Deus é verdadeiramente terno consi-
derando o muito pouco que elas O servem. Mas imediatamente
retornam a si mesmas e refletem no quão continuamente O têm
diante delas e que com isso estão satisfeitas. Assim, oferecem a
Sua Majestade, mais uma vez sua disposição de viver para Ele,
a mais preciosa oferta que poderiam Lhe oferecer. Não temem
a morte, mas olham para ela como uma suave transição. O fato
é que Ele, que antes lhes deu esses desejos com muita dor, agora
os concede com doçura. Que Ele seja bendito e louvado para
sempre!
Os desejos de seus corações não anseiam agora por con-
solo e deleite, simplesmente porque sabem que têm a Cristo
nosso Senhor sempre com elas. Sua Majestade agora vive den-
tro delas. Fica claro que, como Sua vida nada mais foi que um
sofrimento contínuo, Ele assim faz com a vida delas, ao menos
no que diz respeito ao anseio por Ele. Ele as conduz em fraque-
za, dando-lhes, quando vê que é necessário, Sua força. Elas se
sentem desligadas de tudo e têm o desejo de ficar a sós ou en-
volvidas nessas coisas que estejam relacionadas ao bem estar de
alguma alma. Não têm nenhuma sequidão, nem angústias inter-
nas, mas sempre uma lembrança e ternura por nosso Senhor. De
bom grado não fariam coisa alguma a não ser louvá-lO.
Quando essas servas negligenciam suas obrigações, nos-
so Senhor mesmo as estimula. Observa-se claramente que esse
impulso (não sei como chamá-lo de outro modo) procede do
interior da alma. Aqui ele é feito com grande doçura, não tendo

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254 VIDA DE ORAÇÃO

origem nem na imaginação nem na memória, nem em qualquer


outra coisa que possa sugerir que a alma tomou a iniciativa. Isso
é tão normal e acontece com tanta freqüência que qualquer um
pode observar. Pois, assim como um fogo que, por maior que
seja não emite suas chamas para baixo, mas para cima, esse mo-
vimento interno da alma parte de seu próprio centro e estimula
as faculdades (Castelo Interior, VII).

Algumas máximas sobre a conduta de vida

1. Por mais fértil que um solo duro possa ser, ele só produ-
zirá cardos e espinhos; assim é com a mente do homem.
2. Sempre fale bem das coisas espirituais.
3. Quando estiver no meio de uma multidão, fale pouco.
4. Seja modesto em tudo o que fizer e disser.
5. Nunca contenda vigorosamente, especialmente em as-
suntos que são de pouca importância.
6. Fale a todos com alegria comedida.
7. Nunca tenha desprezo por ninguém.
8. Nunca reprove ninguém, exceto, discreta e humilde-
mente e com senso de nossa própria inadequação.
9. Acomode-se ao humor da pessoa com quem está fa-
lando. Alegre-se com os que se alegram e chore com os que
choram. Em resumo, faça-se de tudo para com todos os homens
a fim de ganhar a todos (I Coríntios 9.22).
10. Nunca fale sem pesar cuidadosamente suas palavras,
e recomende-as zelosamente a nosso Senhor no caso de dizer
alguma coisa que O desagrade.
11. Nunca peça desculpas por você, exceto quando for
muito provável que esteja certo.
12. Nunca mencione coisa alguma sobre si com respeito
àquilo que mereça elogio como formação escolar, suas virtudes
ou sua posição social, a menos que espere que algum benefício
possa advir disso. Assim, se você falar sobre essas coisas, faça-o

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 255

com humildade, e sempre lembre que esses dons vêm das mãos
de Deus.
13. Nunca exagere, mas expresse suas opiniões com mo-
deração.
14. Em todas as suas conversas e diálogos, tente sempre
introduzir temas espirituais. Desse modo você evitará palavras
fúteis e caluniadoras.
15. Nunca seja dogmático, a menos que esteja certo de
que é verdade.
16. Nunca se ofereça para dar sua opinião sobre nada a
menos que alguém a peça, ou exija que a dê.
17. Quando alguém falar com você sobre questões espiri-
tuais, ouça humildemente, como um discípulo, e aplique à sua
vida todas as coisas boas que ouvir.
18. Revele a seu diretor espiritual todas as suas tentações
e imperfeições bem como suas dificuldades, para que ele possa
aconselhá-lo e ajudá-lo a encontrar remédio para vencê-las.
19. Não permaneça fora de si mesmo. Saia somente por
alguma boa razão. Quando sair, peça graça a Deus para não
ofendê-lO.
20. Não coma ou beba, exceto em ocasiões apropriadas, e
então sempre dê graças a Deus de coração.
21. Faça tudo como se realmente estivesse na presença
de Sua Majestade, pois desse modo grande será o seu benefício.
22. Não escute coisas ruins ou fale mal de ninguém, exce-
to para a avaliar apropriadamente a si mesmo. Quando começar
a agir assim, estará fazendo progresso espiritual.
23. Toda ação que fizer, ofereça a Deus. Ore também para
que ela promova Sua honra e glória.
24. Quando estiver contente, não expresse sua alegria rindo
em excesso. Que ela seja humilde, modesta, afável e edificante.
25. Imagine-se como sendo servo de todos. Considere
Cristo nosso Senhor em tudo o que fizer. Assim, mostrará aos
outros respeito e reverência.

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256 VIDA DE ORAÇÃO

26. Sempre esteja pronto a cumprir seu voto de obediên-


cia, como se Cristo nosso Senhor, na pessoa de seu Superior,
tivesse ordenado isso a você.
27. Examine a sua consciência em tudo o que fizer e em
todo o tempo. Tendo visto suas transgressões, busque corrigi-las
com a ajuda de Deus. Agindo assim, você obterá maturidade
espiritual.
28. Não se atenha aos defeitos dos outros, mas concentre-
se em suas virtudes. Cuide de seus próprios defeitos. Sempre
acalente o intenso desejo de sofrer por Cristo em todas as coi-
sas, e em todas as ocasiões.
29. Todos os dias faça ofertas freqüentes de si a Deus, e
faça isso com grande fervor.
30. Qualquer que seja a sua primeira meditação de ma-
nhã, tenha-a diante de si por todo o dia e coloque em prática os
desejos que lhe foram dados em seu tempo de oração. Isso será
de grande benefício para você.
31. Observe cuidadosamente os pensamentos com os
quais nosso Senhor pode inspirá-lo, e coloque em prática os
desejos que Ele lhe der em oração.
32. Sempre evite ser singular, até onde puder, pois na vida
comunitária ser “um ser isolado” é um grande mal.
33. Leia as regras e regulamentos de sua Ordem freqüen-
temente, e observe-as fielmente.
34. Reflita sobre a providência e a sabedoria de Deus em to-
das as coisas criadas. Dê graças a Deus em louvor por todas elas.
35. Desligue o seu coração de todas as coisas. Busque a
Deus e você O encontrará.
36. Nunca expresse externamente nenhuma devoção que
não tenha experimentado internamente, embora possa com ho-
nestidade ocultar qualquer carência de devoção.
37. Não revele nenhuma devoção interna, exceto em
circunstâncias especiais. São Francisco e São Bernardo dizem:
“mantenho meu segredo comigo”.

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 257

38. Não reclame de sua comida, quer seja boa ou ruim.


Lembre-se do fel e do vinagre de Jesus Cristo.
39. Não fale com ninguém à mesa e não levante seus olhos
para olhar para outra pessoa [pois a Ordem de Teresa guardava
silêncio à mesa].
40. Medite sobre a mesa celestial e sobre seu alimento,
que é o próprio Deus. Seus convidados são os anjos. Erga seus
olhos para a mesa e deseje sentar-se ao seu lado.
41. Na presença de seu Superior, busque ver Jesus Cris-
to. Somente fale quando for necessário e com verdadeira re-
verência.
42. Nunca faça nada que não faria diante de todos.
43. Nunca compare uma pessoa com outra, pois compara-
ções são detestáveis.
44. Quando for responsabilizado por algo, receba a repre-
ensão com humildade interior e exterior. Ore a Deus pela pes-
soa que lhe fez a reprovação.
45. Se um Superior ordena que faça alguma coisa, não
diga que outra pessoa lhe ordenou que fizesse o contrário. Per-
ceba que ambos agiram com boas intenções e obedeça às ordens
conforme foram dadas a você.
46. Não tenha a curiosidade de fazer perguntas sobre coi-
sas que não são de sua conta.
47. Lembre-se de lamentar sua vida pregressa, sua presen-
te mornidão e quão despreparado você está para ir para o Céu.
Desse modo você pode viver em temor, que é a causa de grande
bênção.
48. Sempre faça aquilo que aqueles em sua comunidade
querem que você faça, contanto que não seja contrário à obedi-
ência. Responda-lhes com humildade e mansidão.
49. Exceto em casos de muita necessidade, não peça ali-
mentação ou vestimenta especiais.
50. Nunca deixe de se humilhar e mortificar constante-
mente de todas as maneiras, até o fim de sua vida.

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258 VIDA DE ORAÇÃO

51. Habitue-se sempre a exercitar gestos de amor, pois


eles inflamam e suavizam a alma.
52. Torne reais todas as outras virtudes.
53. Ofereça todas as coisas ao Pai Eterno, em união com
os méritos de Seu Filho, Jesus Cristo.
54. Seja amável com todos, mas severo consigo mesmo.
55. Nos dias de santos, medite sobre suas virtudes e peça
ao Senhor que as conceda a você.
56. Todas as noites, examine diligentemente sua própria
consciência.
57. Quando receber a comunhão, que você peça em ora-
ção para perceber que, miserável como é, terá permissão para
receber a Deus. À noite, considere que O recebeu.
58. Se você é um Superior, nunca responsabilize ninguém
com raiva. Quando ela tiver passado, sua repreensão será então
benéfica.
59. Busque conduzir todos os seus afazeres com devoção e
com a intenção de se aperfeiçoar.
60. Exercite-se freqüentemente no temor do Senhor, pois
ele mantém a alma contrita e humilde.
61. Note como as pessoas mudam muito rapidamente e
como podemos confiar muito pouco nelas. Apegue-se a Deus,
que nunca muda.
62. Tente discutir questões relacionadas à sua alma com
um amigo espiritual e sábio.
63. Toda vez que se comunicar, peça algum dom de Deus,
através da grande misericórdia que Ele tem mostrado ao vir à
sua pobre alma.
64. Quando estiver triste e em dificuldade, não desista
das boas obras de oração e de penitência que você tem tido
o hábito de praticar, pois o Demônio irá tentar persuadi-lo
a abandoná-las, e desestabilizá-lo. Ao contrário, pratique-as
mais que antes, e você verá a rapidez com que o Senhor virá
em seu auxilio.

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 259

65. Não fale sobre suas tentações e imperfeições com


membros de sua comunidade que tenham feito um progresso
mínimo, pois, se assim o fizer, prejudicará tanto a eles quanto a
você. Fale somente com aqueles que estiverem mais avançados
espiritualmente.
66. Lembre-se de que tem somente uma alma; que tem so-
mente uma morte para morrer; que tem somente uma vida, que é
curta; que há somente uma glória, que é eterna. Se fizer isso, have-
rá muitas coisas sobre as quais você não terá o menor interesse.
67. Que o seu desejo seja o de ver a Deus; o seu temor, o
de perdê-lO; sua tristeza, a de não ter suficiente gozo nEle; sua
alegria, a de que Ele possa levá-lo para Si. Assim você viverá em
grande paz de mente.

Nada te turbe.
Nada te espante.
Tudo passa.
Deus é imutável.
A paciência tudo alcança.
Quem tem a Deus nada lhe falta.
Só Deus é o bastante.

(Máximas de Teresa de Ávila escritas por suas freiras)

Sobre o amor ao nosso próximo

Há somente duas tarefas que nosso Senhor requer de nós:


o amor a Deus e o amor ao nosso próximo. E, em minha opi-
nião, a melhor maneira de descobrirmos nosso amor por Deus é
descobrindo o nosso amor pelo nosso próximo. Estejam certas
de que, quanto mais avançam no amor ao seu próximo, mais
avançarão no amor a Deus.
Mas ai de nós, quantas larvas estão corroendo as raízes
de nosso amor pelo nosso próximo! Amor próprio, autovalori-

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260 VIDA DE ORAÇÃO

zação, mania de criticar, inveja, ira, impaciência e escárnio. Eu


lhes asseguro que escrevo isso com grande tristeza, vendo a mim
mesma como uma pecadora tão miserável contra todos os meus
semelhantes.
Minhas irmãs, nosso Senhor espera por obras. Portanto,
quando virem alguém doente, tenham compaixão dessa pessoa
como se ela fosse vocês mesmas. Tenham piedade dela. Jejuem
para que possa comer. Acordem para que possa dormir.
De novo, quando ouvirem alguém recebendo elogios,
alegrem-se nisso como se vocês os estivessem recebendo. Isso
deveria de fato ser o mais fácil, porque onde está a verdadeira
humildade, o louvor é inspirado. Também cubram os pecados
de sua irmã como cobririam e não exporiam seus próprios defei-
tos e transgressões.
Sempre que uma ocasião se oferecer, levante a carga de
seu próximo, tire-a do coração dele e ponha-a sobre si mesma.
O próprio Satanás nunca mais seria Satanás se pudesse uma
única vez amar seu próximo como a si mesmo.
Empenhem-se, minhas irmãs, o máximo que puderem em
ser afáveis com todos. Comportem-se de modo que todos os que
têm de se relacionar com vocês possam amar a sua conversa e
desejem viver a vida como vocês a vivem. Que ninguém li-
mite ou deixe a vida de virtude e da religião por causa de
abatimento e morosidade. Isso deveria preocupar, e muito,
as mulheres religiosas, pois, quanto mais santas forem, mais
afáveis e sociáveis devem ser. Nunca fiquem arredias com os
outros, porque a conversa deles não é do seu agrado. Ame-os,
e eles as amarão e então conversarão com vocês, e se tornarão
como vocês, melhores que vocês.
Que a sua alma não se deixe confinar em um canto. Ou,
em lugar de alcançar maior santidade em isolamento orgulho-
so, altivo e impaciente, o Demônio lhes fará companhia ali, e
causará à sua alma seqüestrada muito prejuízo. Sepultem as más
afeições nas boas obras. Portanto, sejam acessíveis e afáveis com

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 261

todos e amem a todos. O amor é um encantamento infinito; é


um mistério e uma fascinação.
Amem essas pessoas o tanto que quiserem, enquanto con-
tinuarem nesse caminho. Elas são poucas em número, mas nos-
so Senhor não deixará de mostrar quando uma tiver chegado
a esse nível de maturidade. Pessoas podem lhes dizer: “Não há
necessidade disso; é suficiente para nós possuirmos a Deus”. Mas
eu respondo que um bom modo de desfrutar de Deus é podendo
conversar com Seus amigos. Há sempre um grande benefício a
ser obtido desse modo. Sei disso por experiência própria, e ao
lado de Deus, devo a pessoas como essas o fato de não estar no
inferno, pois muito desejei que elas me recomendassem a Deus,
e igualmente me empenho em fazer isso eu mesma (Caminho de
Perfeição, p. 36).

Cartas de Teresa

A Filipe II, Rei de Espanha, 1577.


Jesus, a graça do Espírito Santo, seja sempre com Vossa
Majestade. Amém.
Ouvi que um relatório foi apresentado a Vossa Majestade
contra o padre Gracian. Esse estratagema do Demônio e seus
servos me deixou aterrorizada, porque contém uma difamação
do caráter desse servo de Deus (e tanto isso é verdade que ele
traz grande edificação a todas nós; sempre que visita nosso mo-
nastério sou informada de que enche os membros de renovado
fervor). Seus inimigos estão agora tentando ferir aquelas casas
nas quais nosso Senhor é tão dedicadamente servido.
Com esse propósito, fizeram uso de dois frades carmelitas.
Um deles foi servo em sua própria comunidade antes de fazer o
voto, mas se comprometeu de tal modo mais de uma vez, mos-
trando-nos claramente que possuía pouco discernimento. Os
outros que se opõem ao padre Gracian (porque ele tem poder
de disciplina sobre eles) induziram esses carmelitas a fazer acu-

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262 VIDA DE ORAÇÃO

sações tão tolas contra as freiras que eu riria delas, não estivesse
tão profundamente preocupada que o Demônio pudesse criar
estrago a partir delas. Tais acusações, se fossem verdadeiras, se-
riam monstruosas, considerando o hábito que trajamos.
Eu imploro a Vossa Majestade, por amor de Deus, que
não permita que essas acusações escandalosas sejam feitas dian-
te de um tribunal de justiça. Se elas ocorrerem, o mundo pode
ser levado a crer que tenhamos feito algum mal, embora nossa
inocência seja estabelecida.
A reforma da Ordem que até aqui tem sido tão abençoada
pela bondade divina poderia ser seriamente prejudicada por uma
suspeita, por mínima que fosse. Vossa Majestade poderá chegar
a uma conclusão sobre o assunto se ler esse atestado que padre
Gracian pensou ser apropriado escrever com relação a esses mo-
nastérios. Ele inclui um testemunho daqueles que têm contato
com as freiras, que são pessoas de muita reputação e santidade.
Além disso, uma vez que o motivo daqueles que escre-
veram esse relatório pode ser facilmente descoberto, imploro
a Vossa Majestade que examine o assunto, porque a honra e a
glória de Deus estão sendo questionadas, pois, se os nossos ini-
migos virem que alguma atenção é dada às suas acusações, não
hesitarão em evitar uma visitação, para acusar de herege todo
aquele que decidir fazê-la. Isso não seria difícil de acontecer
onde não há temor de Deus.
Eu me solidarizo totalmente com os sofrimentos desse
servo de Deus que os suporta com paciência e coragem. Isso me
leva a implorar a Vossa Majestade que o coloque sob sua prote-
ção ou que remova a origem desses perigos, pois ele pertence a
uma família que é muito leal a Vossa Majestade. Apesar dessa
consideração, ele possui grandes méritos próprios. Eu o conside-
ro um homem enviado por Deus.
Eu permaneço uma serva e súdita indigna de Vossa Ma-
jestade.
Teresa de Jesus

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 263

Carta ao Padre Luis de Granada, da Ordem de São


Domingos, 1577.
A graça do Espírito Santo esteja sempre com Vossa Reve-
rência. Amém.
Eu me considero como uma entre muitas, que amam sua
Reverência no Senhor por haver escrito obras tão santas e úteis,
e que dá graças a Sua Majestade por tê-lo feito um instrumen-
to para o bem-estar de tantas pessoas. Nenhum obstáculo me
impediria de ouvir alguém cujas palavras me consolem tanto
por meio de seus escritos. Mas o fato de eu ser mulher e minha
situação de vida espiritual me impedem de fazê-lo.
Independente disso, sou obrigada a buscar pessoas como
o senhor para acalmar meus temores nos quais tenho agora vi-
vido há alguns anos. Embora não mereça esse favor, tenho sido
consolada pela ordem que recebi de Sua Graça Dom Teutônio
[Arcebispo de Évora] de endereçar esta carta ao senhor. Eu não
teria tido a presunção de fazê-lo por mim mesma, mas a con-
fiança que coloco na obediência me faz ter esperanças em nosso
Senhor de que Vossa Reverência irá às vezes lembrar de mim
em suas orações, pois necessito grandemente delas por causa dos
poucos méritos que tenho em mim e porque estou exposta aos
olhos do mundo. Eu não tenho como conseguir justificar a boa
opinião que as pessoas têm a meu respeito.
Se Vossa Reverência soubesse onde estive situada, seria
levado a conceder-me esse favor, que peço como esmola. O se-
nhor conhece muito bem a Majestade de Deus e pode facilmente
imaginar quão grandes devem ser os sofrimentos de alguém que
tenha levado uma vida tão má como eu levei. Mas embora eu seja
tão perversa, tenho com freqüência tomado a liberdade de pedir
a nosso Senhor que conceda a Vossa Reverência uma longa vida.
Que Sua Majestade me conceda esse favor, e que Vossa Reverên-
cia cresça mais e mais em santidade e em amor divino.
Uma serva indigna de Vossa Reverência,
Teresa de Jesus, Carmelita

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264 VIDA DE ORAÇÃO

P. S.: Dom Teutônio é um daqueles que estão enganados


com relação a mim. Ele me diz que tem Vossa Reverência em
alta estima. Por sua vez, Vossa Reverência deve visitar Sua Gra-
ça, e dizer-lhe que não seja tão crédulo sem razão.

Carta ao Padre João de Jesus Roca, Carmelita de


Pastrana, 1579.
Jesus, Maria e José habitem a alma de meu Padre João de
Jesus.
Recebi a carta de Vossa Reverência nesta prisão [Tere-
sa fora aprisionada por um decreto de um capítulo geral] onde
estou agora cheia do maior dos prazeres, pois suporto todas as
dificuldades por meu Deus e por minha Ordem, mas o que me
entristece, meu Pai, é a aflição que Vossa Reverência sente por
mim. É isso o que realmente me causa incômodo. Não se pertur-
be, no entanto, nem qualquer outra pessoa, uma vez que posso
dizer como Paulo que prisões, trabalhos, perseguições, tormen-
tos, ignomínias e insultos por meu Salvador e por minha Ordem
são para mim prazeres e favores.
Nunca me senti tão livre de dificuldades do que estou
agora. Pois é Deus quem ajuda os aflitos e aprisionados com
o Seu favor e auxílio. Dou a meu Deus centenas de graças. O
certo seria que todos nós oferecêssemos toda gratidão a Ele pelo
favor que tem feito a mim por esta prisão.
Meu filho e pai, pode haver maior prazer e doçura que
sofrer pela causa do nosso bom Deus? Quando os santos tiveram
mais alegria senão quando sofreram por seu Deus e Salvador?
Esse é o caminho mais seguro e certo que leva a Deus, uma vez
que a cruz deve ser a nossa alegria e deleite. Busquemos então,
meu Pai, a cruz. Desejemos a cruz. Recebamos de bom grado
as nossas aflições, e sempre que não tivermos nenhuma, ai da
Ordem das Carmelitas, ai de nós.
O senhor me disse em sua carta como o Núncio Papal
tem dado ordens: “que mais nenhum convento de nossa Ordem

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 265

seja fundado e que aqueles que já foram erigidos sejam derruba-


dos, por ordem do Padre Geral”. O senhor também mencionou
que o Núncio está muito irado comigo, e me considera uma
mulher incômoda e de disposição inconstante. Mas o mundo
está armado contra mim e meus filhos, que se escondem nas
rochas e nas montanhas e nos lugares mais ermos, a fim de não
serem encontrados e presos. É isso que lamento, o que sinto
que me entristece: o fato de que, por uma freira pecadora e má
como eu, meus filhos sofram tantas perseguições e aflições, e
sejam abandonados por todos, ainda que não por Deus. Pois
disso estou certa: Ele nunca nos abandonará, nem àqueles que
O amam tanto.
Mas a fim de que você, meu filho, e seus outros irmãos
possam se alegrar, eu lhes contarei algo muito reconfortante;
mas isso dever ficar somente entre mim, vossa Reverência e o
Padre Mariano, pois eu me entristeceria se outros soubessem.
Você deve saber, meu Pai, como uma certa freira [sem dú-
vida a própria Teresa] de sua casa, estando em oração na vigília
da festa de meu Pai São José, viu esse santo em companhia da
bendita Virgem e seu Filho. Ela notou como eles se levantaram,
pedindo pela reforma (da Ordem). Nosso Senhor disse a ela,
“que muitos, no inferno e na terra, se alegrem grandemente em
ver, como supõem, a Ordem dissolvida. Mas quando o Núncio
ordenou a sua dissolução, Deus a confirmou”. Ele disse a ela
que recorresse ao Rei, que em tudo estaria com ela e seus filhos,
como um pai. Nossa Senhora e São José disseram o mesmo e
várias outras coisas que não posso mencionar em uma carta.
Ela também ouviu que em vinte dias eu deveria ser libertada da
prisão, segundo a vontade de Deus. Alegremo-nos, então, pois
desse dia em diante a reforma continuará avançando cada vez
mais.
O que Vossa Reverência deveria fazer é continuar na casa
de Dona Maria de Mendoza até ouvir novamente de mim. Padre
Mariano deve ir e apresentar esta carta ao Rei e enviar outra

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266 VIDA DE ORAÇÃO

à Duquesa de Pastrana. Espero que Vossa Reverência não deixe


essa casa e seja preso, porque em breve estaremos em liberdade.
Eu estou bem e forte, graças a Deus. Minha companhia
está descontente. Recomende-nos a Deus, e ore com ações de
graças. Não me escreva até que eu lhe diga. Que Deus faça do
senhor um Carmelita santo e perfeito.
Padre Mariano aconselha Vossa Reverência e Padre Jerô-
nimo de la Madre de Dios a consultarem em secreto ao Duque
de Infantado.
Teresa de Jesus

Ao Ilustríssimo Senhor Dom Teotônio de Braganza,


Arcebispo de Évora, 1578.
Jesus e a graça do Espírito Santo sejam sempre com sua
ilustre Senhoria. Amém.
Já se passaram dois meses desde que recebi uma carta de
Vossa Senhoria. Eu deveria tê-la respondido imediatamente,
mas a razão que me obrigou a adiar minha resposta foi que espe-
rei para ver se alguma calma se seguiria às grandes dificuldades
que têm agitado nossas freiras e irmãos desde o mês de agosto.
Fiquei muito ansiosa de dar a Vossa Senhoria um relato de tudo
que se passou, de acordo com a ordem que me deu em sua carta.
Os problemas, no entanto, foram piorando a cada dia, como
informarei a Vossa Senhoria no transcorrer desta carta.
Esteja certo, meu senhor, de que uma questão que é tão
urgentemente levada diante de Deus por almas desejosas so-
mente de que Ele seja servido no que quer que pedirem não
deixará de ser ouvida. Quanto a mim, embora tão má, não me
esqueço de orar assiduamente por Vossa Senhoria e suas servas
[ou seja, as freiras]. Aqui diariamente encontro essas almas, cuja
piedade me constrange imensamente. O Senhor parece estar
muito contente por trazê-las a estas casas. Ele as escolhe por ra-
zões que, humanamente falando, não estão baseadas em nossos
conventos ou em nosso modo de vida.

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 267

Conseqüentemente, meu senhor, tenha ânimo, e não


duvide nem um só momento de que esta é a vontade de Deus.
Eu mesma não tenho a menor dúvida. Na verdade, estou até
mesmo certa de que isso foi ordenado por Deus, e que Sua Ma-
jestade quer que o senhor coloque em prática os bons desejos
que tem de servi-lO. O senhor permaneceu desocupado por
muito tempo, e nosso Senhor está necessitado de um prelado
virtuoso.
Quanto a nós, pouco podemos fazer, uma vez que somos
tão pobres e pequenas. Se Deus não levantar alguém que nos
defenda, que se cumpra a Sua vontade, embora não peçamos
nada mais a Ele senão o Seu santo serviço, pois a maldade é
exaltada a uma altura tal e a ambição e a vaidade são tão en-
corajadas, mesmo por aqueles que querem pisoteá-las sob seus
pés, que parece que nosso Senhor, poderoso como é, quer fazer
uso de Suas criaturas a fim de preservar a justiça. Sem elas não
seremos fortes o suficiente para obter a vitória, pois aqueles que
na verdade deveriam ser os nossos defensores têm nos abando-
nado. Assim, nosso Senhor tem escolhido outros que, Ele sabe,
estariam aptos a ajudá-lO. Fico muito contente de ouvir que a
questão da Duquesa de Elche foi bem resolvida. Fiquei profun-
damente aflita até que ouvi sobre seu feliz desfecho. Deus seja
louvado por isso.
Quando nosso Senhor nos envia uma quantidade assim
tão grande de dificuldades todas juntas, Ele normalmente faz
com que elas trabalhem para o nosso bem. Como é de Seu co-
nhecimento, nós somos extremamente fracas, e, como Ele faz
que todas as coisas concorram para o nosso benefício, permite
que os nossos sofrimentos sejam proporcionais às nossas forças.
Penso que a mesma coisa acontecerá com respeito às tempes-
tades que têm se levantado contra nós nos últimos tempos. Se
não soubesse que nossos pais e irmãs vivem em estrita observân-
cia à Regra, eu temeria por vezes que seus inimigos alcançassem
o objetivo que estabeleceram, a saber, a ruína do princípio da

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268 VIDA DE ORAÇÃO

reforma. O Demônio tem seus artifícios, e parece que nosso Se-


nhor deu a ele liberdade para exercer todo o seu poder nessa
questão.
Na verdade, os estratagemas e a diligência que ele tem
usado para nos difamar, especialmente ao Padre Gracian e a
mim (eu sou a pessoa contra quem a maioria de seus golpes são
direcionados), são inúmeros, e as acusações contra esse bom ho-
mem têm sido tão falsas, e os relatórios apresentados ao Rei tão
escandalosos, que Vossa Senhoria, ao vê-los, teria questionado
como alguém seria capaz de inventar tamanha maldade. Mas
Deus se agradou de fazer que essas pessoas retirassem todas as
acusações com que nos acusaram.
Fiquei muito triste de ver tantas aflições suscitadas por
minha causa. Um grande escândalo aconteceu na cidade [de
Ávila] e muitas almas estão cheias de angústia, pois o número
dos que foram excomungados não é menor do que cinqüenta e
quatro!
O único consolo que me restou é o pensamento de que
usei todo o esforço para evitar que as freiras me elegessem. E,
com certeza, não sem razão, porque essa teria sido a maior de
todas as minhas aflições, eu lhe asseguro, Vossa Senhoria, ver-
me como uma primaz. Teria sido em uma casa, também, onde
não tive sequer uma hora de boa saúde durante todo o tempo
em que ali morei.
Não sei como essa questão irá terminar. Minha grande
aflição é que nossos irmãos foram levados sem que saibamos
onde estão. Mas tememos que estejam confinados [João da Cruz
e Padre Tostado, que foram seqüestrados e aprisionados por seus
próprios irmãos de ordem]. Isso me deixa temerosa de que al-
gum infortúnio lhes tenha sucedido. Que Deus nos envie uma
solução. Espero que Vossa Senhoria me perdoe se esta carta está
longa demais.
Uma Serva e Súdita indigna de Vossa Senhoria,
Teresa de Jesus.

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 269

Ao Senhor Lorenzo de Cepeda [irmão de Teresa], 1577.


Jesus seja com você.
Serna [o mensageiro] me dá tão pouco tempo que não
posso escrever uma carta tão longa quanto gostaria. No entan-
to, enquanto escrevo, não sei como terminá-la. Mas como Ser-
na nem sempre está disponível, deve me dar um pouco mais
de tempo. Quando escrever para Francis, imploro-lhe que não
leia suas cartas, pois estou com medo de que ele de algum modo
se entregue à melancolia e ache difícil falar comigo sobre isso.
Talvez Deus lhe dê essas depressões a fim de livrá-lo de outros
perigos. Espero, no entanto, dar-lhe um remédio. Percebo que
ele está disposto a recebê-lo, pois crê em tudo que lhe digo.
O livro sobre o qual lhe falei [da própria Teresa] é Medi-
tações Sobre a Oração do Pai Nosso. Nele você encontrará mui-
tas coisas que podem ajudar a dirigi-lo na oração da qual você
pode vir a fazer uso, embora ele não tenha a mesma extensão
de minha outra obra. Penso que aquilo que digo você encon-
trará na petição, “venha o Teu reino”. Leia-a várias vezes, ao
menos a Oração do Pai Nosso. Talvez você encontre algo ali
que o ajude.
Não fique aflito por ter que adquirir a fazenda. [Essa era
uma situação que envolvia uma associação em Ávila]. Ela é uma
tentação do Demônio que tenta evitá-lo de ser grato a Deus
por esse grande favor que Ele lhe concedeu. Esteja certo de que
aquilo que você faz é, sob muitos aspectos, para melhor, pois
você tem providenciado para seus filhos algo melhor que uma
propriedade, a saber, honra.
Louvado seja Deus por lhe dar uma fazenda. Não pen-
se que quando tiver bastante tempo sobrando deverá então se
aplicar mais à oração. Isso é um erro, pois tempo bem gasto
em prover um sustento para nossos filhos não exclui a oração.
Em um instante, Deus freqüentemente dá mais do que em um
longo período, pois Suas obras não estão confinadas a tempos e
estações.

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270 VIDA DE ORAÇÃO

Depois que as férias acabarem, chame alguém imediata-


mente para examinar suas escrituras e coloque-as em ordem
como devem estar. Aquilo que você gastou na fazenda foi bem
gasto, e quando chegar o verão você terá grande alegria em
ocasionalmente ir lá. Jacó não deixou de ser um santo por
cuidar de seus rebanhos, nem Abraão, nem Joaquim. Quando
tentamos escapar das aflições, tudo nos cansa. Assim é comi-
go, e, portanto, Deus se agrada de que eu tenha afazeres sufi-
cientes para me ocupar. Nessas questões, fale com Francisco
Salcedo que, por estar envolvido com essas atividades, pode
fazer mais por você.
É uma grande bênção de Deus que aquilo que faz com que
outros descansem é o que nos cansa. Mas você não deve, por
conta disso, desistir de suas atividades, pois devemos servir a
Deus não como desejamos, mas como Ele deseja.
Quando você acordar com esses santos desejos por Deus,
não será inoportuno sentar um pouco em sua cama, contanto,
contudo, que sempre durma o necessário. Caso contrário, em-
bora você possa não notar, finalmente não poderá fazer muito
uso da oração. Também tome cuidado para não se expor muito
ao frio, pois isso não convém à sua saúde.
Não sei por que você deseja ter esses terrores e temores,
uma vez que Deus o conduz sempre pelo caminho do amor. Tal-
vez em alguma ocasião eles fossem necessários. Mas não pense
que seja sempre o Demônio que tente impedir-nos de orar, pois
é a misericórdia que às vezes impede que oremos. Na verdade,
posso até mesmo dizer que isso seja quase que uma bênção tão
grande quanto quando ele nos dá a oportunidade de orar muito.
Há muitas razões que provam isso, mas agora não tenho tempo
nenhum de mencioná-las. A oração que Deus lhe dá é, sem
comparação, muito maior que pensar sobre o inferno, pois não
depende de você dar a preferência a um ou a outro. Você não
pode deixar de seguir aquilo que Deus lhe dá porque isso é a
vontade dEle.

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CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS DE UMA VIDA DE ORAÇÃO 271

Suas cartas não me cansam. Elas me confortam muito.


Assim, devo sentir grande prazer em lhe escrever com mais
freqüência. Mas não posso fazê-lo, porque minhas aflições são
muito difíceis. Mesmo nesta noite, fui impedida de dedicar-me
à oração. Isso não me dá nenhuma hesitação. No entanto, é
ainda uma tristeza não ter nenhum lazer. Que Deus nos conceda
algum, para que possamos sempre aproveitá-lo em Seu serviço.
Amém.
Sua Serva e Irmã indigna,
Teresa de Jesus

P. S.: Pensei que você nos enviaria alguns de seus versos.


Quanto aos meus, eles não têm pé nem cabeça, e, no entanto,
as freiras os cantam, e eu me lembro de alguns que certa vez
compus quando estava absorta em oração. Eles pareceram dar-
me uma tranqüilidade depois de tê-los escrito. Não sei se estão
exatamente como os compus, portanto veja que estou desejosa
de dar-lhe algum divertimento:

Ó formosura que excedeis


a todas as formosuras!
Sem ferir fazeis doer
e sem dor desfazer
o amor às criaturas.

Ó laço que assim juntais


duas coisas tão desiguais,
nem sei porque desatais
pois atado, força dais
a ter por bem os males.

Quem não tem ser juntais


com o Ser que não se acaba.
Sem acabar, acabais,

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272 VIDA DE ORAÇÃO

sem ter de amar, amais,


engrandeceis nosso nada

Não consigo lembrar mais. Eu lhe digo que devo ter sido
muito inteligente quando escrevi essas linhas! Deus lhe perdoe,
pois foi você que me fez gastar meus parcos recursos desse modo;
e, no entanto, essas estrofes podem suavizar seu coração e esti-
mular nele alguma devoção. Não fale deles a ninguém. Dona
Guiomar e eu estávamos juntas na ocasião. Dê-lhe as minhas
saudações.
Teresa de Jesus

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Apêndice

Um guia para a leitura devocional

Amas tu a Deus, como ele ama a ti?! Então digere,


Minh´alma, toda esta meditação,
Como Deus, o Espírito aguardado por anjos
No céu, faz Seu templo em teu coração.
John Donne, Soneto Santo 15

Se alguém hoje lhe perguntasse se você é um “devocio-


nalista”, você seria perdoado por não saber o que isso
significa. Se alguém conversasse sobre ser devocionalmente-orien-
tado, você poderia erguer uma de suas sobrancelhas em sinal de
surpresa.
O século que passou é possivelmente o primeiro no qual
a ação foi mais enfatizada e valorizada que a contemplação.
Hoje nós fazemos coisas. Achamos que a contemplação é perda
de tempo, não produz coisa alguma e atrapalha de modo esta-
banado nossas agendas. A leitura devocional é uma prioridade
questionável para a maioria das pessoas bem-sucedidas na atua-
lidade.
Mas somos cristãos “de sucesso” se estamos tão ocupados or-
ganizando e promovendo a fé cristã a ponto de não conhecermos
de fato a Deus pessoal ou intimamente? A leitura devocional cristã
nos ajuda a encontrar união íntima com Deus. Qual é a sua mo-
tivação? Que amemos a Deus com todo o nosso coração, mente e
vontade.

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274 VIDA DE ORAÇÃO

Leitura devocional – um grande despertamento

O escritor de Eclesiastes se deu conta de que Deus colocou


a eternidade dentro de nossos corações.1 Agostinho observou que
Deus fez o homem para Si mesmo, e que nossos corações não en-
contram descanso até que descansem Nele. Esse anseio eterno for-
ma a base da devoção.
Somos criados com anseios infinitos. Podemos tentar ocul-
tá-los e escondê-los atrás de valores menores tais como a apre-
ciação pelo belo ou o desejo pela verdade e pela autenticidade.
Por outro lado, podemos nos desculpar pelos ideais adolescentes,
pelo otimismo incurável ou pelo romantismo indulgente conec-
tado aos nossos anseios. Mas uma vez tendo sido despertados para
o céu como uma possibilidade, nada mais trará satisfação senão
conhecer mais sobre ele. Somos então como peregrinos que final-
mente descobriram onde está localizado o Santo Graal. Ou talvez
sejamos como crianças na escola. O mistério da matemática está
diante de nós ao tentarmos entender os rudimentos da álgebra e da
geometria, e temos de crer no entusiasmo do professor com o fato
de que elas possuem uma beleza intrínseca.
Mais adiante descobrimos que os desejos de Deus não são
diferentes de nossos próprios desejos mais verdadeiros e íntimos.
No entanto, a conexão entre eles às vezes parece terrivelmente
comprometida pelo egoísmo e pela vontade própria. Refletimos e
começamos a observar que a forma mais profunda de saudade – a
de ser amado, ou ser compreendido, ou de estar religado ao Infinito
para além de todo o universo – não é “ilusão neurótica”, de acordo
com C. S. Lewis. Ao contrário, ela é “o indicador mais verdadeiro
de nossa real situação”.2
Em Cristo nós também descobrimos que não é a pessoalida-
de de Deus que é vaga e intangível. São as nossas próprias persona-
lidades que são incoerentes, fragmentadas e inadequadas. Assim,
a realidade da oração em nome de Jesus é a busca por uma perso-
nalidade mais plena e rica, a personalidade que a maioria de nós
profundamente anseia ter.
À luz disso, vemos a leitura devocional não apenas como
uma opção piedosa de leitura comparada a um bom romance po-
licial ou mesmo a uma obra séria. Ela se relaciona à natureza de

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APÊNDICE 275

um despertamento, como o que o filho pródigo teve enquanto ali-


mentava porcos. Nossa existência animal não é boa o suficiente
quando descobrimos interiormente que temos um Pai que é rei e
que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.
Os hábitos de leitura do chiqueiro não podem satisfazer a
um filho e aos porcos ao mesmo tempo. Os hábitos de leitura dos
“servos”, conduzidos pela mesmice dos livros do tipo “conselhos
práticos”, que definem a vida pela ação e que compram a aceitação
por meio da autoconquista, tampouco trarão satisfação. Pois um
filho amado, embora pródigo, responde à sua aceitação em Cristo.
É tudo o que podemos “fazer”. E isso tem mais a ver com amantes
de mãos dadas do que com homens de negócio tomando decisões
na sala de reunião.
Nós de fato percebemos que a vida consiste em um número
de despertamentos progressivos. Quando estudamos com serieda-
de pela primeira vez, ficamos entusiasmados com o despertamento
de nossa mente para a atividade de analisar e de compreender o
nosso mundo. Nós despertamos de novo na experiência de assumir
a responsabilidade de nossas vidas quando temos de decidir sobre
atitudes e opções de importância. Despertamos também quando
agimos em meio ao sofrimento. A dor é um grande despertador
para as realidades que outrora estavam adormecidas em nossas vi-
das. Mas é o despertamento para o amor de Deus que transcende
todas as outras formas de consciência humana.
Hoje, vivemos o grande perigo de politizar a nossa fé, organizá-
la ao extremo e transformá-la em uma ideologia fria. Precisamos mais
uma vez nos aquietar e ver a Deus. E então começaremos novamente
a viver mais como um filho de Deus do que como um empreendedor
diante dos homens. Emoções profundas serão revividas. Memórias
começarão a ser curadas. A imaginação será redirecionada. E muitas
e novas possibilidades se abrirão a partir dos becos sem saída das ruas,
para nos mostrar paisagens de amor e alegria que nunca imagina-
mos poder visualizar. A esperança sucederá o desespero. A amizade
substituirá a alienação. Acordaremos de manhã e descobriremos que
estamos verdadeiramente livres para nos apaixonar por Deus.
Podemos então começar a compreender aquilo que João Cal-
vino quis dizer quando chamou a fé de um firme reconhecimento

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276 VIDA DE ORAÇÃO

da benevolência de Deus, que está selado no coração. A afirmação


de Calvino fez lembrar o coração inflamado de muitos homens na
história: Jeremias, os discípulos no caminho de Emaús, Agostinho,
Jonathan Edwards. É assim que Deus instila a percepção de que
estamos na comunhão dos santos e simplesmente compartilhan-
do aquilo que muitos outros antes de nós já experimentaram com
grande alegria. Nós também, como eles, agora percebemos que o
céu é o nosso horizonte afinal.

A leitura devocional muda a história

Nada pode sobrepujar a prática da oração ou da leitura de-


vocional da Escritura nas devoções diárias de uma pessoa. No en-
tanto, essas práticas necessitam ambas de reforço e de orientação
a partir do exemplo de outros, do partilhar de suas experiências.
Talvez o uso devocional da Escritura esteja desaparecendo tão ra-
pidamente que somente com a ajuda de outros livros ele possa
ser redescoberto e se tornar uma prática comum hoje. Os resulta-
dos dessas leituras são, na maioria das vezes, bem abrangentes. Na
verdade, os encontros acidentais com grandes clássicos de fé têm
desencadeado toda uma série de reações inesperadas.
Foi assim com C. S. Lewis. Ele se deparou com clássicos
como os escritos de Richard Hooker, George Herbert, Thomas
Traherne, Jeremy Taylor e John Bunyan em conseqüência de seus
estudos em Literatura Inglesa.3
Como estudante, Alexander Whyte – o pregador escocês
do final do século XIX – começou a catalogar as obras de Thomas
Goodwin, do século XVII. Mas ele ficou tão envolvido por elas
que, mais tarde, em sua vida, escreveu sua obra Spiritual Life ba-
seado nos ensinos de Goodwin. Ele confessou, “eu carregava seus
livros comigo até suas capas originais começarem a se desprender,
e até que meu encadernador as colocasse em seu melhor protetor
de capas. Não li mais nenhum outro autor tanto e com tanta fre-
qüência.”4
Quando John Bunyan se casou, seu sogro lhe deu um dote
que consistia na obra de Arthur Dent, The Plaine Man´s Path-Way
to Heaven (1601), e de Lewis Bayly, The Practice of Pietie (1613).
Bunyan mais tarde reconheceu que essas duas obras “produziram

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APÊNDICE 277

dentro de mim alguns desejos pela religião.”5 A popularidade delas


foi reiterada por muitos de seus contemporâneos.
Inácio de Loyola, um jovem e frívolo cavaleiro, foi ferido no
cerco de Pamplona, em 1521. Ali ele foi forçado a passar sua con-
valescença com apenas dois livros em mãos, Life of Jesus Christ, de
Ludolph Carthusian, e Flower of the Saints, de Jacobine Varagine.
Essas obras deixaram uma impressão sobre ele que produziu uma
mudança radical em sua vida.
Amigos cristãos apresentaram deliberadamente Agostinho à
obra Vida de Antônio, de Atanásio. Ela não impactou Agostinho de
imediato, embora seus amigos continuassem a dizer-lhe como em
Trèves, na Gália, um oficial do estado “a leu, maravilhou-se com
ela e foi incendiado por ela”. Enquanto o oficial a lia, começou a
pensar em como poderia abraçar uma vida monástica no deserto
egípcio. Ele pensou em abrir mão de seu trabalho para servir “A
Ti [Deus] somente...; e o mundo passou a não mais fazer parte de
sua mente...enquanto lia, e em seu coração, que agora batia em seu
próprio ritmo, ele por fim caiu em prantos, viu o caminho melhor
e decidiu por ele.”6
Agostinho acrescenta um comentário sobre o resultado de
ter lido um exemplo como o de Antônio. Esse homem e sua com-
panhia foram levados a edificar “uma torre espiritual ao único cus-
to que é adequado, o custo de deixar tudo e seguir a Ti”.7
A influência dos autores místicos sobre Martinho Lutero foi
fartamente documentada. Ele leu em profundidade os sermões de
Johannes Tauler (1515-1516) e editou o tratado anônimo místico
que intitulou de Teologia Alemã (1516, 1518). Quando defendeu
as noventa e cinco teses, em 1518, ele confessou que havia mais
boa teologia nos sermões de Tauler, mais “teologia pura e sólida”
do que em todas as outras obras do escolasticismo. Acerca de Teo-
logia Alemã, ele declarou que “somente a Bíblia e Agostinho o
haviam ensinado mais sobre ‘Deus, Cristo, o homem, e todas as
coisas.’”8
Às vezes, os escritos dos místicos podem prolongar as lutas
no sentido de se conhecer a Deus pessoalmente. Os leitores fica-
ram então entretidos em seus exercícios e percepções espirituais
ao invés de se encontrarem com o próprio Deus. Esse foi o caso de
John Wesley. Com sua mãe, ele aprendera sobre obras devocionais,

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especialmente quando foi para Oxford pela primeira vez como es-
tudante. Ele achou os estudos ali “uma interrupção ociosa e inútil
de estudos proveitosos, horrível e intensamente superficial.”9
Mas Wesley ficou encantado com o Discurso sobre a Simpli-
cidade, do Cardeal Fenélon; a obra deu a ele a percepção de que
a simplicidade é “aquela graça que força a alma a deixar todas as
reflexões desnecessárias e voltar-se para si mesma.”10 Em férias, sua
amiga e guia espiritual, Sally, deu a ele uma cópia do livro de Jere-
my Taylor, Regra e Exercício do Santo Viver e Morrer. Ele admite que
essa obra “selou definitivamente minha prática diária de registrar
minhas ações (que eu tenho fielmente continuado até o presente
momento), e que me levou, mais tarde, a prefaciar aquele primeiro
Diário com as regras e resoluções de Taylor. Isso me ajudou a desen-
volver um estilo de introspecção que me manteria em constante
contato com a maioria de meus sentimentos.”11 É de se questionar
o quanto teriam Fenélon e Jeremy Taylor contestado as convic-
ções de um jovem confuso.
Aproximadamente naquela mesma ocasião, Sally também
encorajou Wesley a ler a obra de Thomas à Kempis, Imitação de
Cristo. Essa obra também deixou sua marca nele, de modo a fazê-
lo decidir-se por pertencer a Deus ou perecer. Essas obras, no en-
tanto, em certo sentido, somente prolongaram por treze anos a
necessidade de John Wesley de reconhecer que deveria “nascer de
novo” e aceitar Deus como seu próprio Salvador. Elas, ao mesmo
tempo, deixaram marcas indeléveis em seu caráter e ministério.
Finalmente, pensamos em C. H. Spurgeon e na profunda
influência que os autores puritanos tiveram sobre toda a sua vida
e ministério. Ele tinha uma coleção de 12.000 livros, aproximada-
mente 7.000 deles de escritores puritanos. Spurgeon leu por vezes
incontáveis Maçãs de Ouro, de Thomas Brooks. Ele também de-
dicou muito tempo à obra de Brooks, Remédios Preciosos Contra
os Artifícios de Satanás. Ele tinha enorme prazer em todas as doces
obras devocionais de Brooks.
Mas livros de Thomas Goodwin, John Owen, Richard Char-
nock, William Gurnall, Richard Baxter, John Flavell, Thomas
Watson, e, é claro, John Bunyan, também eram companheiros
de Spurgeon.12 Ele então confessa em seu Conversa sobre Comen-
tários que a obra Comentário de Matthew Henry sobre as Escrituras

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APÊNDICE 279

é sua primeira opção de companhia constante. Ele recomenda


que todos os alunos a leiam nos primeiros doze meses após terem
terminado a faculdade.13
A influência dos livros sobre os líderes cristãos e, por sua vez,
seu impacto sobre os movimentos avivalistas da igreja são claros.
Como Richard Baxter comentou em sua obra Manual Cristão, do
século XVII, “há muitos que podem ter um bom livro a qualquer
dia ou hora da semana, e que não podem ter um bom pregador”.14
Às vezes o livro e o autor são totalmente desconhecidos na
atualidade, embora suas conseqüências sejam evidentes e perma-
nentes. Quem lê hoje O Caminho Simples do Homem para o Céu?
No entanto, O Peregrino de John Bunyan foi traduzido em 198 lín-
guas. Poucos hoje conhecem Florentino de Deventer; no entanto,
seu discípulo, Thomas à Kempis, teve seu livro Imitação de Cristo
editado mais de 2.000 vezes. Francisco de Osuna e sua obra O Ter-
ceiro Alfabeto Espiritual não significam coisa alguma para muitos
cristãos na atualidade; no entanto, eles inspiraram os escritos de
Teresa de Ávila sobre oração, escritos que ainda nos influenciam
poderosamente. O livro Combate Espiritual (1589), de Nicholas
Scupoli, foi, juntamente com a Bíblia, a leitura de cabeceira de
Francisco de Sales por mais de dezesseis anos. No entanto, é a
Introdução à vida Devotada de Sales que produziu um impacto pro-
fundo na vida de muitos.
A mensagem é, portanto, clara para todos nós. Abra as ja-
nelas de sua alma através da leitura meditativa, e o potencial da
presença de Deus em sua vida poderá ser, como Paulo ora, “infini-
tamente mais do que pedimos ou pensamos.”15

Não há leitores inocentes

Não existe algo como “apenas leitura”. A leitura é também


um instrumento de nossas emoções e do nosso espírito, de nos-
sas motivações e de nossos objetivos. A arte monástica da lectio
divina, a prática de ler meditativamente e em atitude de oração,
visando à nutrição e ao crescimento espirituais é pouco conhecida
fora das tradições católicas de espiritualidade nos dias atuais. A
perda dessa assimilação devocional das Escrituras se reflete na im-
paciência que muitos têm com as leituras espirituais dos grandes

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280 VIDA DE ORAÇÃO

mestres da fé cristã. Ou possivelmente revela uma pura negligên-


cia ou ignorância com relação a essas obras.
C. S. Lewis fala da “idéia estranha difundida de que em
qualquer circunstância os livros antigos deveriam ser lidos por pro-
fissionais, e que os amadores deveriam se contentar com livros mo-
dernos... um constrangimento”, ele acrescenta, “em nenhum outro
lugar mais rompante que na teologia.”16 Mas teríamos uma grande
confusão no cristianismo se sempre nos contentássemos com a su-
perfície do que é dito sobre suas origens e nunca nos motivássemos
a beber pessoalmente da fonte.
Também somos culpados quando não distinguimos leitura
fundamental de leitura acidental, ou leitura edificante de leitura
recreativa. Pois elas são todas distintas.17 Leitura acidental é aque-
la que captura a nossa atenção para as táticas da vida, de modo a
absorvermos uma enorme gama de conhecimento prático, trivial
e significativo. Tudo que se exige desse tipo de leitura é maestria
mental. Leitura fundamental, aquela que fazemos estrategicamen-
te, como parte do treinamento em uma profissão ou disciplina,
demanda docilidade e perseverança. A mudança do primeiro para
o segundo tipo de leitura é de informação para formação, de modo
que a atitude da mente também muda.
A leitura que relaxa é também tática, ainda que por vezes
possa nos apanhar desarmados. Absorvermos as trivialidades que
rotulamos de “recreacionais” pode representar desperdício de tem-
po. Pior, pode tomar e desviar nossas mentes e espíritos dos cami-
nhos da justiça e da pureza.
Uma leitura assim pode verdadeiramente testar nossos espí-
ritos e ser evidência da falta de uma imaginação cristã em nossas
vidas. A leitura estimulante depende muito das escolhas delibera-
das que fazemos. Se quisermos ser mais carnais, nos entregaremos
mais à pornografia pictórica com a qual nossa sociedade tem sido
tão inundada ultimamente. Se quisermos respirar o ar mais limpo
da autenticidade pessoal, desfrutaremos de uma boa biografia, se-
remos tocados pelas orações e diários de grandes guerreiros da fé
ou mergulharemos nas parábolas de nosso Senhor. Ter em mãos
autores favoritos, páginas inspiradoras e temas familiares para revi-
gorar um espírito abatido torna-se um recurso extremo em tempos
de depressão.

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APÊNDICE 281

Não somos leitores inocentes, mesmo quando decidimos


não ler coisa alguma! Nós nos tornamos culpados de fundir nossos
pensamentos à cultura que tão prontamente aceitamos. O apare-
lho de TV, por exemplo, nos tenta com tendências profundamente
manipulativas, uma vez que podemos, ao toque de um botão, nos
transportar para uma dúzia de diferentes ambientes artificiais. Po-
demos literalmente escolher o ambiente onde queremos viver e
do qual depender. Não seremos então tentados a manipular nossos
anseios e necessidades espirituais? Submissão à vontade de Deus
parece mais do que nunca ser um comportamento em desuso. Essa
revolução de atitude aprofunda tanto o nosso egocentrismo que
escutar escritores espirituais torna-se uma tarefa realmente difícil,
embora a docilidade e não a maestria seja a essência da leitura
espiritual e da vida meditativa.
Nós também possuímos uma abrangência muito limitada
de atenção. Nosso estilo é desconjuntado: nossas frases são que-
bradas, nossas mensagens nem sempre têm significado. Vivemos a
fim de sermos entretidos como espectadores, ao invés de estarmos
envolvidos como participantes na vida. Nossos livros refletem o
staccato da modernidade. Mensagens são dadas de forma precisa e
em doses homeopáticas. Por semelhante modo, nossos estilos de
vida se alteram porque o homem procusteano* muda ao sabor da
moda e do entusiasmo do momento. É uma sociedade do divórcio,
onde se troca de parceiro quando o humor também se altera. O
alimento sólido da Palavra, sobre o qual fala o apóstolo, é rejeitado
não somente por leite, mas também por cola. Clássicos da fé e da
devoção não são interessantes para uma geração que vive à base de
pipoca e de goma de mascar.
Temos a tendência de viver do lado externo da vida. Tudo
gira em torno de desempenho, de como podemos impressionar
outras pessoas. Como cristãos, estamos mais preocupados com a
promoção de nossa fé do que com a sua prática privada. Atividade
é mais significativa que espiritualidade. Temos medo de ouvir a

* N. T. termo cunhado a partir do personagem da mitologia grega


Procusto, que convidava os viajantes a se hospedarem em sua casa, mas tinha
uma cama muito grande e outra cama minúscula. Durante a noite, ele procu-
rava adequar o viajante à cama escolhida, serrando os pés dos que optavam
pela cama pequena ou esticando os que escolhessem a cama grande. Seu
objetivo era colocar cada um na sua medida, ou melhor, no seu métron.

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Deus porque estamos mais preocupados com o que as outras pesso-


as vão pensar. A mentalidade de rebanho e a tirania do consenso
– aquilo que Aldous Huxley certa vez chamou de “intoxicação de
rebanho” – nos faz ter medo do isolamento, de encararmos a Deus
sozinhos ou na verdade de encararmos nossos sentimentos interio-
res de culpa e de auto-traição.
A leitura devocional, no entanto, é uma questão muito ín-
tima, interior. Ela requer a coragem moral da humildade, da aber-
tura para perspectivas de mudança de vida e do respeito pelo seu
próprio ser interior. Ela significa mudança de engrenagem, a fim
de que operemos com o temor do Senhor, ao invés de estarmos
preocupados com o medo do homem.
Nós também jogamos o jogo dos números. “Todo mundo
está fazendo isso,” exclamamos. Como então eu poderia, ou deve-
ria, ser o único a destoar?
Em resposta, Kierkegaard nos pediria que deliberássemos:
“você agora vive de modo a estar consciente de si mesmo como
individuo?”18 Acima de tudo, você percebe o mais íntimo dos rela-
cionamentos, “a saber, aquele no qual você, como indivíduo, está
relacionado a si mesmo diante de Deus?”
Na natureza parece haver um enorme desperdício de luz do
sol, de plantas, de animais menores e maiores na grande cadeia
alimentar de nossos ecossistemas. Na violência do homem contra
seus companheiros, fruto de sua insensibilidade, os números pare-
cem ainda não fazer nenhuma diferença. Em nossa desobediência
à voz da consciência, nossos hábitos pessoais de leitura, nossa vida
de oração e a falta de progresso espiritual também parecem não fa-
zer diferença se observarmos o cristianismo como uma multidão.
Mas Deus não julga como julga a multidão. Ao contrário,
como Pai, Ele sabe de cada pardal que cai; cada fio de cabelo de
nossa cabeça é contado por Ele. “Na eternidade, você procurará
em vão pela multidão... Na eternidade, você também será esque-
cido pela multidão.”19 Isso é aterrorizante, a menos que nos prepa-
remos para a eternidade, nos encontrando com Deus agora, com
constância e desejo.
A leitura devocional nos ajuda, então, a termos uma cons-
ciência eterna, não uma consciência de rebanho; a consciência do
homem diante de seu Criador e minha diante de meu Salvador.

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APÊNDICE 283

“Na eternidade”, acrescenta Kierkegaard, “há câmaras suficientes


de modo que cada um possa ser colocado sozinho em uma... uma
prisão solitária, ou a câmara abençoada da salvação.”20 Estaria en-
tão minha leitura espiritual e sua reflexão ajudando-me a ver a
mim mesmo “no lugar”, na vontade e no amor de Deus? O ver-
dadeiro individualismo não está seguindo a moda, mas seguindo
a Deus.

O lugar da intimidade com Deus

Não é coincidência o fato de que o tema “seguir a Deus”


para os israelitas no Êxodo fosse uma experiência no deserto. O
nosso deserto não é normalmente o Saara ou o Gobi, ou mesmo o
grande interior australiano. Nosso deserto é o espaço para refletir-
mos sobre nossos sonhos desfeitos, a alienação que nenhum toque
pode conectar entre até mesmo pessoas que se amam, a incerteza
sem rastros acerca do amanhã e a experiência da escuridão inte-
rior. Ali, Deus nos chama para Si, não a partir de nossa utilidade,
mas a partir de nós mesmos.
Quando dizemos sim para Deus, Ele então nos leva para o
deserto. Não há direções definidas, nada sistemático, nenhuma
proposta concreta, nenhum projeto mirabolante, nenhuma opor-
tunidade promissora; há somente a promessa do não ter medo de
ser. É a entrega total. É a docilidade, qualquer que seja o custo. É a
divina companhia, a despeito das conseqüências.
Carlos Carretto reconheceu que o grande presente que o
deserto dá é a oração.21 O deserto é o lugar do silêncio diante de
Deus, onde a quietude faz com que o coração perceba a Sua pre-
sença mais próxima que a nossa própria respiração. Nesse silêncio
de concentração, escutamos a Deus falando através de Sua Pa-
lavra. O silêncio é desinteressante sem a Palavra, mas a Palavra
perde seu poder criativo sem o silêncio do deserto.
A experiência do deserto não é apenas um ambiente para
o estoicismo. Ela é o lugar da intimidade com Deus. Ela necessita
de um recolhimento silencioso – ao menos temporariamente – do
mundo dos homens para se estar a sós com Deus. Ele é um taber-
náculo reflexivo, onde é possível ver coisas à luz da eternidade
e, portanto, em suas verdadeiras proporções. Ele é a remoção da

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284 VIDA DE ORAÇÃO

agitação, do alvoroço e da velocidade, para que as coisas sejam


vistas na quietude. Ele é onde nós silenciamos nossas paixões e
relaxamos nossas tensões. Assim como alguém que vagueia no de-
serto, nós aprendemos a descobrir o oásis onde a busca não é mais
necessária. Ali nós descansamos, nos refrescamos e renovamos.
A vida do deserto tem um modo de reduzir as necessidades
àquilo que é realmente essencial, como água, alimento e abrigo.
No deserto, a sós com Deus, descobrimos que Ele é suficiente para
satisfazer todas as necessidades. Nossa única necessidade restante
é simplesmente a de precisarmos mais Dele. De todas as lições que
o deserto ensina, nenhuma é maior do que encontrar a intimidade
de Deus.
Não é de admirar, portanto, que algumas das literaturas de
renovação espiritual mais importantes tenham vindo dos Pais do
Deserto – Antônio, Atanásio, Orígenes, Pacomias, Evagrio, Ba-
sil, Gregório de Nissa e muitos anônimos cujos ditados nós ain-
da conservamos na memória. Aquilo que mais tarde se tornou o
“monasticismo” institucionalizado nada mais é que o reflexo da
vida no deserto a sós com Deus. Somos lembrados de que, sem
a experiência de auto-esvaziamento no deserto, de abandono da
idolatria, de entrega compromissada a Deus e de nosso desperta-
mento espiritual para Deus, a leitura devocional não tem nenhum
papel significativo a desempenhar em nossas vidas. Esses são, pois,
os motivos e desejos básicos necessários para a leitura devocional.
Espaço e tempo são exigidos para tornar real o desejo pelo
deserto. “O tempo silencioso” é um espaço em branco para a pieda-
de matinal ou é o espaço mais importante em nossas vidas diárias.
Nossa leitura de cabeceira é outro tempo para nossas devocionais.
Determinados momentos durante o dia dão veracidade à devoção
espiritual.
Emocionalmente, também, nossas experiências de deserto
não são apenas espaços que Deus deveria ser convidado a preen-
cher; elas são lembretes daquilo que Ele realmente quer ocupar
em nossas vidas. Na verdade, o nosso recolhimento é o espaço no
qual estamos conscientes de nossa necessidade Dele. A literatura
devocional nos auxiliará a ver qual espaço, de um universo sempre
em expansão, Sua presença deve preencher. A medida através da
qual observamos progresso espiritual é a nossa crescente necessi-

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APÊNDICE 285

dade de Deus. Não se trata de fraqueza, mas do segredo de nossa


maior força.
No entanto, uma jornada para dentro do deserto requer um
guia, no caso de nos perdermos. Precisamos de direcionamento,
a fim de não sucumbirmos diante de sua sequidão de desencora-
jamento e de derrota. Do mesmo modo, nossa jornada espiritual
necessita de um guia.
Temos o Espírito Santo como nosso Guia Supremo. Mas a
Sua presença depende também da condição de que não O entris-
teçamos nem O extingamos. Nós, portanto, temos os conselhei-
ros, exemplos inspiradores e as experiências espirituais do povo de
Deus para nos ajudar no direcionamento. A história da igreja é a
materialização da comunhão dos santos, cuja fé somos exortados
a seguir.
A superficialidade de grande parte da vida cristã contem-
porânea é a sua modernidade. Nós necessitamos de todos os vinte
séculos de vida de devoção para ajudar-nos a nos tornarmos mais
dedicados a Cristo no início do século XXI.
Aprendamos a desfrutar da comunhão dos santos, revivendo
suas vidas, repensando seus pensamentos e reexpressando o ardor
e o fervor de seus desejos por Deus. Quando ficamos desanimados,
esses exemplos do passado nos mostram que, quando ideais cris-
tãos são verdadeiramente testados, eles produzem um fruto muito
rico. Seus escritos devocionais podem revitalizar nossas formalida-
des sem vida, assim como ossos secos nos lixos dos desertos podem
ser revitalizados na visão de Ezequiel. Em outra metáfora, Paulo
fala da nuvem de testemunhas que torcem pelo atleta na corrida.
Obras devocionais fazem exatamente isso; elas nos encorajam a
seguir até a linha de chegada.

Diretrizes de leitura que transformam a vida

A despeito da avalanche de novos livros e de reedições de li-


teratura espiritual, há pouca orientação sendo oferecida acerca de
como a arte da leitura espiritual pode e deve ser cultivada. Já men-
cionamos que a arte da leitura devocional não é exegética, nem
informacional, nem literária em sua ênfase. A leitura espiritual
é essencialmente formativa da alma diante de Deus. Precisamos,

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286 VIDA DE ORAÇÃO

portanto, lê-la de tal modo que ela nos ajude a estarmos inspirados
e afinados com Deus no “homem interior”. Pois é a escrita que nos
coloca em sintonia com o céu e molda o nosso caráter em Cristo.

1. A leitura espiritual requer uma ênfase primária no uso


devocional da Escritura

Não permita que o primeiro entusiasmo gerado pelo contato


com a literatura devocional o distraia da prioridade que você ain-
da deve dar ao estudo da Bíblia e à meditação. Lembre-se de que
as Escrituras são o cânon da devoção do povo de Deus. Eles viam
unicamente as Escrituras como a revelação final dos propósitos de
Deus para o homem. Eles viam as Escrituras como guiadas pelo
Espírito Santo.
No entanto, o que é necessário ser resgatado ou significa-
tivamente revisado nos exercícios espirituais de muitos cristãos
é como usar e meditar na Bíblia devocionalmente. Pois desde a
Reforma temos tido a tendência de nivelar a interpretação da Es-
critura no processo histórico crítico; queremos vê-la como cremos
que o texto tenha sido originalmente escrito pelo autor. O mon-
ge-estudioso medieval a via, no entanto, de maneira muito mais
rica, como a seguinte rima hermenêutica resume seu quádruplo
significado:

A letra nos mostra aquilo que Deus e os nossos pais fizeram;


A alegoria nos mostra onde a fé está oculta;
O significado moral nos dá regras da vida cotidiana;
A analogia nos mostra onde encerramos nossa luta.

Embora não procuremos sistematicamente por esses quatro


níveis em cada versículo da Escritura, no entanto, o sentido literal
ou simples do texto, conforme cremos que seja, requer também
o uso do simbolismo para nos lembrar de seus mistérios. O uso
da aplicação moral para o cristão individual é também requerido,
bem como a percepção das realidades transcendentes da escato-
logia que estão ocultas no texto. Esse tipo de tratamento é mais
bem observado no Saltério, que sempre foi o mais popular livro da
Bíblia nas leituras litúrgicas da igreja.

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APÊNDICE 287

2. A arte da leitura devocional é menos uma questão de técnica


e mais uma questão de atitude do coração

Observar as pressões e obstáculos de nossa cultura que ne-


gam e esterilizam os valores da leitura devocional é como desen-
volver um “sexto sentido”. É um processo semelhante a desen-
volver discernimento e desejo espirituais. É claramente diferente
da curiosidade por mais informação ou do desafio intelectual de
dominar a compreensão racional. A atitude se altera de um desejo
por informação para uma disposição de ser reformado e um desejo
de ser transformado. O mandamento, na criação, para termos do-
mínio sobre a terra por meio da imago Dei é superado quando nos
mudamos para o mandamento, na redenção, para sermos confor-
mes à imagem de Cristo.
Isso envolve uma nova maneira de conhecer, com uma
mentalidade diferente. A leitura informacional é mais uma busca
por perguntas e respostas. A leitura devocional se concentra nas
questões básicas da vida diante de Deus. A primeira busca transpa-
rência e entendimento; a segunda diz respeito a conviver satisfato-
riamente com os mistérios, em apreciação e adoração. Novamen-
te, leitura informacional é mais dialética e comparativa; a lógica é
importante. Mas a leitura devocional é mais dócil e receptiva, ao
contrário de ser crítica e comparativa.
A leitura informacional tende a ser detalhista. Os dados são
dissecados por meio de análise, a fim de aumentar a possibilidade
do aprendizado de novas coisas em novas disposições. A leitura
devocional, por sua vez, é caracterizada pela disposição de deixar
toda a iniciativa nas mãos de Deus, recordar e refletir acerca da-
quilo que Deus já fez e estar unido com Ele de maneira viva e dinâ-
mica. É como o capitão da embarcação convidando o piloto para
assumir o comando. Por esse motivo, a leitura devocional é muito
mais pessoal e envolve auto-entrega, docilidade e uma disposição
de mudar o curso através de resoluções profundas e por meio de
disciplinas interiores. A manutenção de um diário espiritual pode
começar a sinalizar as mudanças de atitude e os desejos diante de
Deus.
Uma leitura devocional assim, que encoraje as mudanças de
caráter, pode se deparar com batalhas espirituais acirradas e lutas

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emocionais profundas. Ela exigirá mansidão de espírito para evitar


viagens de culpa, sustentar a alegria de espírito e evitar a rigidez
exacerbada consigo mesmo. Ela exigirá paciência e uma visão am-
pla do controle de Cristo sobre nossas vidas.

3. A leitura devocional tem mais o caráter de um despertamento espi-


ritual do sono cultural que o de melhora de atitudes existentes

Nós, de boa vontade, “dormimos” dentro de nossa cultura,


até viajarmos para o exterior e nos surpreendermos com o modo
diferente de viver e de se comportar de outras sociedades. O após-
tolo destaca que precisamos despertar espiritualmente de nossas
conformidades culturais, mentalidade e atitudes que compartilha-
mos com o mundo ao nosso redor; precisamos viver para Deus com
frescor e honestidade (I Tessalonicenses 5:6). Isso, na maioria das
vezes, requer um quebrantamento renovado de espírito, um novo
ou aprofundado senso de pecado ou uma profunda reavaliação de
nossas prioridades. Começamos então a descobrir dois cristãos que
podem partilhar da mesma ortodoxia doutrinária e, no entanto,
têm atitudes de espírito profundamente distintas.
Muito desgaste e confusão no seio da igreja na atualidade
demandam discernimento de atitude entre cristãos para evitar
aquilo que Bonhoeffer chamou de “graça barata” e exercitar a ver-
dadeira devoção diante de Deus. Podemos precisar então “viajar
para fora”, assim como fizeram os Pais do Deserto quando deixa-
ram as cidades dos homens. Talvez tenhamos de explorar, assim
como exploraram os místicos medievais, ou sofrer, como sofreram
os puritanos, a fim de aprendermos quão secular foi o tipo de cris-
tianismo de seu tempo, e como é o nosso hoje.
Confissão e arrependimento devem, portanto, ser as con-
seqüências da leitura devocional. Ela agita o coração de modo a
deixá-lo desconfortável e confuso com relação à leitura de entre-
tenimento. Ela é radical demais para nos manter a salvo, dentro
da esfera do nosso próprio controle de novas informações. A pato-
logia do coração se revela em seus enganos, seus ocultamentos de
pecados e na inabilidade do pecado em ser controlado.22
A confissão, portanto, implica a necessidade do reconheci-
mento (confiteri) da santidade de Deus e em fazer confissão (con-

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APÊNDICE 289

fessio) da culpa e do pecado.23 Somente o sacrifício pode unir o


pecador a Deus, e o único sacrifício que une o homem a Deus é o
de Jesus Cristo. O valor de todos os outros sacrifícios é derivado
deste. A confissão se torna então louvor, uma oferta de gratidão.
Assim nos exorta Bernardo de Clairvaux, “por meio da confissão
dos pecados e por meio da confissão de louvor, que toda a nossa
vida confesse a Ele!”.24 Com o louvor como veste, a confissão se
torna o ato de alguém que recuperou uma beleza interior, o aperi-
tivo da glória vindoura.
Se pensamos em alguns autores espirituais como Thomas à
Kempis em seu Imitação de Cristo como sendo muito rigoroso e se-
vero, não seria porque nossas próprias vidas não são confessionais
o suficiente? Não seria porque estão carecendo de louvor adequa-
do? O louvor flui da gratidão, e a gratidão brota da confissão do
pecado na percepção de quem Deus é. A expressão teológica con-
temporânea da fé como um sistema de crença foi sendo formada ao
longo de todo o século XX por homens como John de Fecamp, que
considerava a teologia primariamente como uma tarefa de louvor,
adoração, executada em espírito de oração e desencadeada pela
contemplação de Deus.25
É na confissão do pecado que descobrimos novas dimensões
do eu e do auto-amor com as quais precisamos lidar. Um desperta-
mento da consciência do pecado que habita o interior do cristão,
como aquela vividamente exposta por John Owen, nos dá uma
nova sensibilidade à realidade de Satanás e nos faz ficar de joelhos.
A tentação se torna uma realidade mais profunda, que requer mais
vigilância moral e mais leitura devocional.26 O arrependimento se
torna uma realidade vívida, que precisa do apoio e do conforto da
comunhão dos santos.
Assim, um desejo de mudar o curso de nossa vida depois de
um fracasso e da desonestidade para com a nossa própria alma in-
tensificará a nossa busca por aprender de outros como lidar com
essas questões. Ver a vida agora com um significado mais profundo
demanda recursos espirituais maiores do que aqueles que anterior-
mente sequer imaginávamos que precisaríamos. Uma vez na pere-
grinação e fora do status quo, estamos em uma longa jornada. Des-
pertamos de um sono profundo e apagado. Assim como o cristão de
John Bunyan, necessitaremos de muitas companhias espirituais.

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4. A leitura devocional tem seu próprio ritmo, um ritmo mais lento

Uma vez que comecemos a ver o discipulado como uma obe-


diência a longo prazo, teremos então de resistir à impaciência de
nossa “Sociedade Instantânea”. Se a nossa leitura devocional tiver
como objetivos a mudança e a formação de vida, não podemos
buscar resultados imediatos. É, portanto, fútil passar os olhos por
cima de uma obra devocional com pressa. Diferente de um roman-
ce de Agatha Christie, não podemos lê-la por completo em uma
noite.
Muita inautenticidade surge em nossa vida porque não di-
ferenciamos velocidades; fazemos as coisas muito rapidamente.
Como, de fato, eu penso mais rápido do que consigo falar, falo
mais rápido do que posso agir e ajo mais rápido do que tenho ca-
ráter para muitas ações. Eu então tenho sempre a tendência de ser
inautêntico.
Espiritualmente, precisamos diminuir a velocidade e gastar
mais tempo na reflexão e no silêncio. Necessitamos do ritmo lento
e pré-estabelecido de tempos regulares e determinados para lei-
tura, mesmo que sejam somente quinze ou trinta minutos no dia.
Absorver as poucas linhas de um autor no coração e através da cor-
rente sanguínea das atitudes é muito mais eficaz que ansiosamente
ler em alta velocidade, em nome da curiosidade. Se o problema de
muitas igrejas é como a velocidade das decisões de gabinete pode
ser comunicada em um espírito de comunidade, então, o problema
da leitura devocional é como a impaciência da mente pode ser
controlada, a fim de deter sua luxúria por mais informação.
O espaço, assim como o tempo, é necessário para a leitura
devocional. Isso pode levar literalmente ao hábito do desenvol-
vimento de um ambiente particular, uma área em determinada
sala, onde se localize um “altar” de devoção. Fisicamente, ele pode
requerer uma postura confortável, talvez uma cadeira específica,
onde seja possível relaxar de imediato e onde uma atmosfera seja
criada especificamente para esses exercícios de devoção, como a
oração e a contemplação. Talvez devêssemos primeiramente levar
a leitura espiritual a sério em um dia de feriado ou em férias; nesse
contexto, sentimos a atmosfera informal e relaxante com o espaço
de que necessitamos para exercícios e disciplinas assim. Um car-

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taz em tom de brincadeira em uma estrada de Los Angeles dizia:


“Com sorvete, todo dia pode ser um sundae (tipo de sorvete cuja
palavra é semelhante a Sunday, domingo em inglês).” A verdade
é que se cada dia é alimentado pela leitura espiritual, todos os dias
são domingos.

5. Escolha os clássicos de fé e de devoção a partir de uma


vasta gama de obras do povo de Deus

Temos observado que a pobreza da cristandade hoje requer


recursos de todos os vinte séculos de tradições espirituais, sejam
eles ortodoxos, católicos ou protestantes. Teríamos então necessi-
dade de sermos hesitantes quanto a receber uma enorme variedade
católica de experiências que outros santos de Deus experimenta-
ram através dos séculos e culturas da humanidade? Na verdade,
aqueles que experimentam as maiores riquezas da graça de Deus
são os que mais têm condições de serem ecléticos em suas leituras
espirituais. E isso eles podem fazer sem perder de modo algum sua
firmeza de fé e doutrina, nem serem descuidados quanto à verdade
essencial do Evangelho.
Um exemplo de como a variedade pode enriquecer um cris-
tão é o da vida e ministério do Dr. Alexander Whyte, um membro
influente da Igreja Livre da Escócia, uma igreja que não é conheci-
da por seus interesses católicos. Quando tinha cinqüenta e seis anos
de idade (1892), Alexander Whyte começou a ler as obras selecio-
nadas de William Law. Ele escreveu uma antologia sobre as obras de
Law em seu livro The Characters and Characteristics of William Law
(As Personalidades e Características de William Law). No prefácio, ele
disse acerca desse anglicano, “o estudo desse autor incomparável
tem sido um período extraordinário em minha vida.”27
Whyte então foi conduzido ao estudo de Teresa de Ávila, a
respeito de quem ele também escreveu. Ele fez tributos a Lance-
lot Andrewes, Sir Thomas Browne, Samuel Rutherford e ao padre
russo John de Cronstadt. Em um período de sete anos, Alexan-
der Whyte teve contato com um vasto cenário de espiritualidade
através de autores que nunca havia conhecido antes. Ele começou
então a perceber que a admiração e o amor dos grandes santos de
Deus é de fato um estudo de grande valor.

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“Exercitem a caridade”, Whyte costumava exortar, “que


se alegra com a verdade”, sempre que ela for encontrada e por
mais estranho que possa ser seu traje. “Os verdadeiros católi-
cos, como o próprio nome diz, são os evangélicos esclarecidos,
de mente aberta, de bom coração e espiritualmente exercitados;
pois ele pertence a todos as facções, e todas as facções pertencem
a ele.”28

6. Cultivem amizades espirituais com amigos de alma a fim de que


possam mutuamente ser beneficiados por um grupo de estudo
ou por um programa de leitura compartilhado

Um grupo assim pode se encontrar a cada duas ou quatro


semanas para ouvir e discutir livros lidos sucessivamente por mem-
bros do grupo. Em princípio, uma leitura como essa pode intensi-
ficar desafios espirituais profundos e gerar todo um novo sentido
de percepção de realidades. Trata-se de uma reação comum ques-
tionar se alguém está perdendo o equilíbrio ou mesmo ficando
louco por ter convicções e anseios como esses. Pois assim como
a recuperação de uma doença grave, a ameaça da morte ou uma
experiência de profundo quebrantamento pode abrir novas portas
de percepção, o novo desafio de ler místicos cristãos pode produzir
o mesmo. É, portanto, muito importante estar sendo encorajado e
conduzido sabiamente por aqueles que são mais experientes. Além
disso, reações divergentes podem dar um sentido de proporção ou
impressões parciais corretas. O alvo comum de crescer em Cristo,
argumenta o apóstolo Paulo, é alcançar uma maturidade corpora-
tiva (veja Ef. 4:13,14).
Um amigo espiritual, disse o autor do século XII Aelred de
Rievaulx em Spiritual Friendship (Amizade Espiritual), é aquele que
é leal e tem as motivações certas, a discrição e a paciência para
ajudar seu amigo a conhecer melhor a Deus.29 Uma vez que as
possibilidades de enganar a mim mesmo são infinitas, eu necessito
de um guia espiritual para me manter honesto. Além disso, o amor
de Deus é efetivamente desenvolvido somente quando meu amigo
me ajuda a sair de mim mesmo e me mostra como posso entrar em
um círculo mais amplo de percepções, onde posso ser mais honesto
comigo mesmo.

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APÊNDICE 293

Desse modo, revelação e honestidade podem dar forma ao


companheirismo espiritual. A vida espiritual se baseia na reve-
lação: a revelação de Cristo, que continuamente nos chama, no
poder do Espírito Santo, para um relacionamento com ele. Ela se
baseia na honestidade: honestidade com respeito àquilo que existe
para ser observado e considerado. O companheirismo espiritual
é um processo de nutrição e de confrontação, quando ambos são
auxiliados pela leitura e pela descoberta da literatura devocional
juntos.
Um verdadeiro amigo em Cristo irá me acordar, me ajudar
a crescer e aprofundar minha consciência acerca de Deus. Pois o
amor de Deus é mediado por relacionamentos humanos, por aque-
les que se importam comigo, me encorajam e desejam que minhas
afeições se tornem centradas em Deus. Na verdade, diz Aelred,
Deus é amizade, de modo que a amizade com aqueles que têm a
mente voltada para a espiritualidade me levará em direção à pie-
dade. Talvez poucos de nós hoje levemos a amizade espiritual tão
a sério.

7. Reconheça que as leituras espirituais lidam com obstáculos que o


desanimam, distraem ou dissuadem, para que você
não persista em sua leitura

Na maioria das vezes, nós não estamos discernindo o sufi-


ciente para enxergar ou questionar por que um livro pode não cap-
turar imediatamente a nossa atenção, ou por que nos parece tão
irrelevante. Isso pode ser causado pelo nosso próprio desânimo ou
pelo nosso estado espiritual, conforme já descrito anteriormente.
O desânimo pode mostrar sua carranca mesmo quando há sinais
claros de que estamos sendo abençoados. Aquilo que os Pais do
Deserto chamam de acídia, tédio, inércia ou depressão pode tam-
bém ser a nossa aflição, quando somos tentados a crer que não
estamos fazendo nenhum progresso espiritual.
Também podemos nos distrair com a leitura dos Pais porque
nunca aprendemos a viver de um livro; o livro tem representa-
do somente entretenimento. Depois de um passeio casual pelos
programas na TV, a leitura concentrada talvez seja uma disciplina
nova. Ou talvez nunca tenhamos vivenciado a experiência da sur-

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294 VIDA DE ORAÇÃO

presa e da admiração na presença de Deus, tal como à que algumas


leituras espirituais irão nos incitar. Essa atitude pode, portanto,
necessitar de desenvolvimento antes que possamos apreciar alguns
mestres espirituais.
Também podemos ser dissuadidos de ir a fundo nos clássicos
espirituais por causa de sua estrutura cultural e teológica limitada
pelo tempo. Por exemplo, os níveis quádruplos de exegese utili-
zados na Idade Média para interpretar a Escritura necessitam de
alguma compreensão e de afinidade antes que os sermões de Ber-
nardo de Clairvaux possam significar muito para nós hoje. Místi-
cos medievais ingleses, tais como o autor anônimo de A Nuvem
do Desconhecido, Richard Rolle, Margery Kempe, Walter Hilton
ou outros tornam-se de difícil leitura para nós quando insistem
em que coloquemos de lado todo o pensamento humano em nossa
contemplação de Deus. Eles argumentam que é o amor, e não a ra-
zão, que nos dá o verdadeiro entendimento. Eles falam em “discri-
ção”, um determinado ponto espiritual de graça, humildade, con-
trição e profunda contemplação de Deus que é verdadeiramente
requerido.
Mesmo a literatura posterior, tal como a dos puritanos, pode
nos confundir por causa de seu estilo latinizado ou sua “precisão”
em tabular títulos e subtítulos maiores e menores.30 É fácil enten-
der seu apelido de “Precisos” pelo modo como freqüentemente
categorizavam ponto após ponto. É por essa razão, relacionada a
mudança de vocabulários, loquacidade, mudanças de estilo, etc,
que assumimos reescrever em uma linguagem mais contemporâ-
nea alguns desses clássicos, uma tarefa que muitos outros editores
estão agora assumindo. Assim, restam poucas desculpas hoje, ao
leitor moderno, para classificar esse material como ininteligível
ou impreciso.
É bem verdade, no entanto, que o imaginário literário dessas
obras seja freqüentemente o de uma cultura antiga. Obras como
as de Bernardo, Teresa ou Bunyan podem parecer símbolos ultra-
passados. No entanto, elas também possuem princípios de batalha
espiritual, entrega do eu à comunhão com Deus ou da vigilância
em relação à tentação, que permanecem para além do tempo. A
mortificação será sempre um exercício vital, ou uma série de exer-
cícios, na vida cristã.

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APÊNDICE 295

8. Busque, em sua leitura, um equilíbrio entre os escritos


modernos e os antigos

Lembre-se de que o escrito moderno não é provado, carece


de qualidade e importância reconhecidas e freqüentemente reflete
as manias do mercado. C. S. Lewis disse:

Um novo livro ainda está sob julgamento, e o amador


não está em posição de julgá-lo... A única segurança é ter
um padrão de cristianismo claro, central (“cristianismo
puro e simples” como Baxter o chamou), que coloque as
controvérsias do momento em sua devida perspectiva.
Um padrão assim só pode ser obtido a partir dos livros
antigos. É uma boa regra, depois de ter lido um livro
novo, nunca começar a ler outro novo sem que tenha
lido um antigo antes. Se isso é muito para você, deveria
ler um antigo a cada três novos.31

A despeito dessa precaução, quando a revista Christianity


Today fez uma pesquisa popular dos “100 Melhores Livros Devo-
cionais” (25 de setembro de 1961), menos de um terço deles tinha
mais de cem anos. A maioria dos escolhidos eram obras contem-
porâneas. Apropriadamente excluídas estavam as obras de religio-
sidade geral, tais como os livros populares de K. Gibran, obras de
misticismo especulativo, tais como as de Mestre Eckart ou Jacob
Boheme, obras refletindo o pensamento positivo contemporâneo
ou obras de doçura e luz, todas do tipo que tem uma visão irreal do
pecado na vida humana.
Ao mesmo tempo, muitos de nós sentimos a necessidade do
ingresso em uma experiência espiritual mais profunda por meio
do uso de escritores modernos, que abrem caminho a fim de seguir
para além da mente moderna e secular e de volta às verdades eter-
nas do cristianismo. O próprio C. S. Lewis necessitou da sanidade
e do humor de G. K. Chesterton e da imaginação cristã de Geor-
ge MacDonald para alimentá-lo simbolicamente. Ele pôde então
se reportar à obra de Boécio, Sobre a Consolação da Filosofia, que
deu a Lewis uma firme consciência da solidez da eternidade, que
era mais que tempo sem medida. Mas é característica da literatura

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que molda a vida o fato de que poucos autores sejam capazes de


produzir isso em nós. Lewis nos asseguraria, portanto, assim como
tantos outros têm experimentado, que ler de tudo pode produzir
pouco efeito em profundidade, embora nos torne pessoas muito
informadas.
Para muitos, hoje, o livro de Michel Quoist, Orações da
Vida, tem revolucionado suas vidas de oração e trazido vida e
humanidade às suas devoções. Eu fui primeiramente impactado
pelo desafio de Pureza de Coração é Desejar uma Coisa Só, de
Soren Kierkegaard. Ele é demolidor no que tange ao relaciona-
mento com o Todo-Poderoso. P. T. Forsythe, em Alma em Ora-
ção, nos lembra que “o pior pecado é a falta de oração”. Oswald
Chambers, em Tudo para Ele, tem estimulado muitos à busca es-
piritual. Ao mesmo tempo, nenhum livro devocional, passado
ou presente, pode fazer qualquer coisa decisiva se não estiver-
mos já buscando uma vida espiritual mais profunda, e preparados
para recebê-la. Assim como há Salmoss para todos os estados de
humor e necessidades da vida, também deveria haver um equi-
líbrio em nossas leituras. Às vezes, tudo o de que necessitamos
é leitura teológica sólida, como as Institutas, de Calvino. Outras
vezes, a celebração de Séculos, de Thomas Traherne, ou os poe-
mas de Templo, de George Herbert, são mais apropriados. João da
Cruz combina alguns dos melhores textos da literatura espanho-
la com expressões do mais intenso sofrimento e fervor por Deus
em Noite Escura da Alma. Os hinos de John e Charles Wesley, ou
o Diário, de George Whitefield, ou as Cartas, de Fènelon, ou o
Pensamentos, de Pascal abrangem as mais variadas expressões da
alma diante de Deus. A diversidade acrescenta equilíbrio à nossa
dieta espiritual.

9. Acrescente à sua leitura espiritual a manutenção de um


diário ou de um caderno de reflexões

Os puritanos costumavam argumentar que, assim como o


capitão de uma embarcação mantinha seus registros, ou o médico
anotava seus casos, ou um negociante controlava a sua contabi-
lidade, os cristãos, do mesmo modo, devem manter registros de
Deus, diários e curtos.

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APÊNDICE 297

Na verdade, a partir dessa tradição de manter um diário, nós


temos alguns dos maiores tesouros da literatura espiritual. Pensa-
mos em John Bunyan e o seu Graça Abundante para o Maior dos
Pecadores, nas Memórias, de David Brainerd, nos diários Quaker de
homens como George Fox e John Woolman, nos diários de John
Wesley e George Whitefield. Seus exemplos ainda nos encorajam
não apenas a registrar sucessos espirituais, mas também a observar
a bondade de Deus em nossos fracassos, depressões e restaurações.
Eles também nos estimulam a considerar as pequenas coisas que
podem parecer triviais e sem importância e que, no entanto, são
também mantidas sob o cuidado atencioso de Deus. Do mesmo
modo, haverá ocasiões quando a nossa aridez de espírito poderá
sugerir que o nosso estudo e a nossa meditação devocionais são
despropositados e inúteis. Nessas horas, o registro fiel e continua-
do, preservado como um trabalho de amor, se mostrará como algo
oferecido para a honra de Deus em todas as circunstâncias.
Escrever é também um exercício útil e reflexivo. Ajuda-nos
a esclarecer os pensamentos quando nossas emoções estão con-
fusas ou inativas; ajuda-nos a manter as coisas dignas de nota e
edificantes. Os frutos de nossa meditação também são preservados
quando “pensamentos maravilhosos” poderiam muito facilmente
se evaporar de novo.
Para alguns, manter um diário parece um exercício muito
árduo e grandioso. Outros jamais irão adquirir esse hábito. No
entanto, suas autobiografias espirituais são ainda vitais para eles,
pois foram ensinados a ver cada evento que acontece desde a sua
conversão como algo significativo. Em alguns círculos, isso pode
gerar uma ênfase doentia em uma experiência definitiva que de-
termina o passado, o presente e o futuro de tal modo que nenhum
progresso espiritual é feito subseqüentemente. Tudo aconteceu de
uma vez por todas. Não, se somos peregrinos, pois a vida então
permanece em aberto diante de nós, de modo que a nossa autobio-
grafia espiritual ainda está sendo elaborada. Tentativas prematuras
de finalizar a “história”, na conversão, ou na “segunda bênção”, ou
mediante a recepção de um dom ou percepção específicos devem
ser rechaçadas.
Talvez, então, precisemos exercitar mais o senso de autobio-
grafia espiritual em nossas vidas, quer por meio da manutenção de

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298 VIDA DE ORAÇÃO

um diário, pequenas anotações diárias, memórias ou apenas uma


lista constante de gratidão pelas muitas circunstâncias que Deus
tem transformado em nossas experiências. Mas precisamos evitar a
expressão muito freqüente de testemunhos públicos que podem ser
exagerados ou espiritualmente desperdiçados pela superexposição.
O herói de Dostoievsky em Notas do Subterrâneo argumenta que
“a consciência é uma doença.”32 O culto à auto-realização desta
“Geração Eu” é certamente uma praga mortal entre nós hoje. Tal-
vez o resgate da autobiografia nos ajude. Pois toda autobiografia é
uma busca por um padrão significativo para a vida, e todas essas
buscas estão fadadas à futilidade sem a referência de nosso Cria-
dor e Redentor. Pois a ausência de Deus em nossos pensamentos
e decisões, desejos e deleites, é o que torna nosso desconforto tão
freqüentemente demoníaco.
A manutenção de um diário juntamente com a nossa lei-
tura devocional nos ajudará a fazer de nossa leitura uma dieta
regular. Será também uma forma de autodirecionamento no cul-
tivo da consciência, de um conhecimento de Deus, ao invés de
um conhecimento próprio. Trata-se de uma maneira de viver que
nos prepara para o céu. O Bispo Joseph Hall, que registrou mui-
tas de suas meditações, nos lembra que reflexões assim registra-
das são “a atividade espiritual do cristão, pois, assim como não é
possível viver sem um coração, do mesmo modo não é possível
ser dedicado a Deus sem meditação”.33 O registro das meditações
nos lembrará constantemente da longa jornada da alma diante
de Deus.

10. Escolha cuidadosamente a obra devocional que você deseja ler


pensando nos benefícios transformadores para a sua alma. Ore com
seriedade e busque alguém que o ajude em sua procura

Há tantos livros de caráter espiritual disponíveis que você


pode se sentir desencorajado a começar, tamanha a variedade.
Primeiro de tudo, portanto, faça distinção entre os clássicos “pri-
mários”, que são leitura básica, das fontes de apoio “secundárias”,
que são apenas clássicos menores em importância. Podemos então
chamar de “leitura terciária” os textos sobre a história da espiri-
tualidade, biografias e outros materiais que ajudem a reforçar o

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APÊNDICE 299

contexto dos clássicos primários. O “quarto” tipo de leitura é a


vasta literatura devocional contemporânea, que ainda não se tor-
nou permanente ou obteve interesse e valor perenes.
Não imite a escolha de outra pessoa por um clássico porque
suas necessidades podem ser distintas. O conselho de um amigo
espiritual pode se fazer necessário para ajudá-lo a descobrir o livro
certo, que possa permanecer como seu companheiro para o resto
da vida. Se você ainda não tem um guia espiritual, a sugestão a
seguir pode ajudar.
Se você sente que seus piores inimigos ainda estão dentro
de você – culpa, luxúria, uma vida cristã de constantes derrotas
– então Confissões de Agostinho pode ser o livro certo para você.
Muitos de nós nos identificaremos com o reconhecimento de
Agostinho de que adiou sua exploração e submissão ao cristianis-
mo porque realmente desejava que sua luxúria por sexo, beleza e
sucesso o satisfizesse, ao invés da cura. “Senhor, torna-me puro,
mas ainda não”. A honestidade e abertura de Agostinho diante
de Deus são muito alentadoras, em se tratando de toda uma vida
de acúmulo de coisas e do adiamento da catarse da alma, a qual
muitos de nós desejamos tão intensamente.
Se você busca um relacionamento genuíno com Deus e tem
sentido a ausência de um discipulado verdadeiro diante Dele, en-
tão A Imitação de Cristo de Thomas à Kempis pode ser o chamado
incisivo que está procurando. A tradição que deu origem a essa
pequena obra foi a das notas (ripiaria) ou coleção de frases das
Escrituras e dos Pais que se tornaram um foco para meditação, não
somente para Thomas à Kempis, como também para incontáveis
gerações de “comprometidos”. Por que não se juntar a esse grupo
nobre de devotos?
Se você vê a vida como uma constante luta e se sente ten-
tado a desistir por conta do desânimo e da fraqueza, então talvez
Combate Espiritual, de Lorenzo Scupoli, seja o de que você preci-
sa. Ele só perde para Imitação de Cristo em termos de influência,
particularmente no leste da Europa, desde a sua publicação, em
1589. Francisco de Sales o manteve ao lado da cama por dezesseis
anos, “o livro de ouro, querido” que lia todos os dias. Para aqueles
que necessitam ser dóceis consigo mesmos em auto-rejeição, as
meditações do próprio Francisco de Sales, Introdução à Vida De-

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votada, são um doce buquê de alívio diário para muitos espíritos


sensíveis.
Apaixonar-se por Deus parece algo temerário para muitos
cristãos. Talvez seja possível viver essa experiência lendo o clás-
sico de Jean Pierre de Caussade, Abandono à Providência Divina.
Ele foi recentemente retraduzido para o inglês por Kitty Mug-
geridge como O Sacramento de Cada Momento e tem o mesmo
tema desta obra. O livro do irmão Lawrence, A Prática da Pre-
sença de Deus, pertence à mesma tradição da devoção francesa
do século XVII.
Tudo isso pode encorajá-lo a retornar ao século XII que, a
exemplo do nosso, estava muito preocupado com a descoberta do
individual através do amor romântico. A resposta de Bernardo de
Claurvaix e de seus amigos foi ver o amor de Deus como a fon-
te da verdadeira pessoalidade. O homem sendo chamado para o
amor, e a fonte do amor é o próprio Deus. A nossa integridade e a
profunda compreensão de nós mesmos se aprofundam quando nos
apaixonamos por Deus como uma realidade permanente. Assim,
pequenas obras como Sobre o Amar a Deus, Amizade Espiritual e
meditações em Cântico dos Cânticos nos ajudam a entrar dentro
dessa realidade.34
Se você sente a necessidade de nutrir a sua vida devocio-
nal com estudo teológico sólido, as Institutas de Calvino, Parte 3,
foram escritas com esse propósito, embora sejam freqüentemente
negligenciadas. Antes de começar, talvez ache útil ler Cristianismo
Verdadeiro, de William Wilberforce, um ataque corajoso à religião
civil, feito por um líder abolicionista contra a escravidão. Se a sua
teologia é clara, mas seus sentimentos estão confusos e fracos com
relação a Deus, então o Tratado Sobre as Afeições Religiosas perma-
nece único em se tratando dessa necessidade de desejos disciplina-
dos para com Deus.35 Esse é um livro que demanda a restauração
do homem pós-moderno.
Talvez você também precise retornar aos livros da infân-
cia, tais como O Peregrino, de John Bunyan, para observar em
níveis mais profundos aquilo que não tem idade e serve a todas
as gerações. Reviver nossa infância com Deus pode ajudar-nos
a redimir o passado visando ao enriquecimento do futuro, como
C. S. Lewis fez com os contos de George MacDonald. Precon-

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APÊNDICE 301

ceitos da infância às vezes necessitam ser descongelados, por


meio da releitura de fontes que, no passado, bloqueavam o nos-
so progresso.
Em suas Máximas, João da Cruz resume aquilo que temos
tentado dizer. “Busque, por meio da leitura, e você encontrará
meditando; clame em oração, e a porta será aberta na contem-
plação.”36 Mas, ele admite, aqueles que são “peregrinos por di-
versão e não por devoção são muitos.” Ele então nos adverte,
“nunca permita que entre em sua alma aquilo que não seja subs-
tancialmente espiritual, pois, se você assim o permitir, perderá a
doçura da devoção e da recordação.” E ele acrescenta, “viva no
mundo como se somente Deus e a sua alma estivessem nele; e
que o seu coração não seja cativado por nada que seja terreno”.

James M. Houston

NOTAS

1. Eclesiastes 3:11.
2. C. S. Lewis, Peso de Glória (São Paulo, SP: Edições Vida
Nova, 1993).
3. C. S. Lewis, God in the Dock, Walter Hooper, ed. (Grand
Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1970), 200-207.
4. Citado em G. F. Barbour, The Life of Alexander White
(New York: George H. Doran Co., 1925), 117-118.
5. Citado em Richard L. Greeves, John Bunyan (Grand Ra-
pids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1969), 16.
6. F. J. Sheed, ed., The Confessions of St. Augustine (New
York: Sheed & Ward, 1949), 164.
7. Ibid.
8. Steven Ozment, The Age of Reform, 1250-1550 (New Ha-
ven, CT: Yale University Press, 1980), 239.
9. Robert G. Tuttle, John Wesley: His Life and Theology
(Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978), 58.
10. Ibid., 100.
11. Ibid., 65.
12. Earnes W. Bacon, Spurgeon: Heir of the Puritans (Grand
Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1968), 108.

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13. C. H. Spurgeon, Commenting and Commentaries (Lon-


don: Banner of Truth, 1969), 2-4.
14. Richard Baxter, Practical Works, William Orme, ed.
(London: James Duncan, 1830), 4:266.
15. Efésios 3:20.
16. C. S. Lewis, God in the Dock, 200-201.
17. A. G. Sertillanges, The Intellectual Life, (Westminster,
MD: Christian Classics, 1980), 152-154.
18. Soren Kierkegaard, Purity of Heart Is to Will One Thing
(New York: Harper & Row, 1954), 184.
19. Ibid., 193.
20. Ibid.
21. Carlos Corretto, Letters from the Desert (London: Dar-
ton, Longman, Todd, 1972), 32.
22. Veja John Owen, Triumph Over Temptation, James M.
Houston, ed. (Colorado Springs: Victor Books, 2004).
23. Jean Leclerc, Contemplative Life (Kalamazoo, MI: Cister-
cian Publications, 1978), 109.
24. Citado por Leclerc, Contemplative Life, 117.
25. Ibid., 116.
26. John Owen, Triumph Over Temptation.
27. G. F. Barbour, Life of Alexander Whyte, 378.
28. Ibid., 389.
29. Bernardo de Clairvaux e seus amigos, The Love of God,
James M. Houston, ed. (Portland, OR: Mutlnomah Press, 1983),
233-251.
30. Veja por exemplo Richard Baxter, Watch Your Walk, Ja-
mes M. Houston, ed. (Colorado Springs: Victor Books, 2004).
31. C. S. Lewis, God in the Dock, 201-202.
32. Citado por Roger Pooley, Spiritual Autobiography (Cam-
bridge: Grove Books, Bramcote, Notts, 1983), 6.
33. Joseph Hall, The Works (London: M. Flesher, 1647), 114.
34. Bernardo de Clairvaux, The Love of God.
35. Jonathan Edwards, Faith Beyond Feelings, James M.
Houston, ed. (Colorado Springs, Victor Books, 2004).
36. David Lewis, ed., The Works of St. John of the Cross
(London: Thomas Baker, 1891).

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Este livro foi impresso em Abril de 2007,
pela Imprensa da Fé para a Editora Palavra.
Composto nas tipologias Goudy OldStyle e Lucida Console.
Os fotolitos da capa e do miolo foram feitos
pela Imprensa da Fé.
O papel do miolo é Chamois Fine 67g/m2
e o da capa é Cartão Supremo 250g/m2



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