Você está na página 1de 6

1

Roteiro de avaliação inicial dos desafios colocados pela Lei Brasileira de Inclusão
no campo da saúde mental

Eduardo Mourão Vasconcelos1

1) Apresentação

A Lei Brasileira de Inclusão (Lei n.o 13.146 de julho de 2015) (LBI) faz parte de um já longo processo
histórico de sedimentação das concepções e práticas do campo dos direitos humanos, que vem se expandindo para
diferentes esferas da vida humana e social e para o meio ambiente, e que se expressam principalmente em convenções
internacionais, particularmente patrocinadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Para o presente campo em
foco, as principais referências são:
a) Convention on the Rights of Persons with Disabilities, da ONU, de 2006, ratificada por 161 países e por diversas
entidades internacionais regionais, com um número recorde de assinaturas já em seu lançamento. Foi homologada em
2008.
b) Esta convenção foi assumida pelo Congresso Brasileiro com o status jurídico de emenda constitucional, e
promulgada pela Presidência da República pelo Decreto n.o 6.949, de agosto de 2009, tendo portanto o mesmo status
jurídico de norma constitucional, com o título de Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Ela
utiliza o termo deficiência, na medida em que em português não temos um termo mais abrangente e equivalente ao
termo em inglês disability, o que nos colocou inúmeros desafios adicionais no campo da saúde mental.
c) Lei Brasileira de Inclusão - LBI (ou Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD), promulgada pelo Lei n.o 13.146
de julho de 2015, que regulamentou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2009.

2) Principais avanços da LBI do ponto de vista conceitual e legal em relação às concepções e leis anteriores

Entre os principais avanços estabelecidos na lei, podemos citar:


a) Ela adota o modelo social de disability/deficiência, superando as visões moral ou estritamente médica anteriores,
pois a apresenta como resultante de uma interação entre impedimentos singulares de cada pessoa (de natureza física,
sensorial, mental ou intelectual) com as barreiras sociais e ambientais, de diversas naturezas (físicas, ambientais,
legais, tecnológicas e de representações sociais discriminatórias), que geram limitações e constrangimentos a sua
participação plena e ao acesso aos direitos na sociedade, em condições equitativas às das demais pessoas. A
disability/deficiência deixa de ser apenas um problema individual de cada pessoa, para constituir um problema de toda
a sociedade, para superação destas barreiras.
b) Ela interage com inúmeras cláusulas do Código Civil (CC) de 2002 e do Novo Código de Processo Civil (NCPC)
brasileiros, este último também recém promulgado, referentes à curatela e interdição, substituindo-as pela tomada de
decisão apoiada, em que a pessoa não perde seus direitos civis básicos e referentes aos atos da vida cotidiana (ex.:
direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho, ao voto, de ser
testemunha e ser ouvida no processo), com exceção dos direitos e decisões de natureza patrimonial e negocial. No
entanto, ainda mantém a possibilidade da curatela como medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades
e às circunstâncias de cada caso, com duração pelo menor tempo possível.
c) Ela supera a parcialidade do laudo pericial estritamente médico, substituindo-o por uma avaliação biopsicossocial,
realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar. Deverá substituir a perícia psiquiátrica unidimensional e
limitada, que tem gerado tantos problemas, e que será portanto a chave para o acesso a direitos básicos inseridos na
LBI, e particularmente para o direito ao transporte público na cidade, questão hoje essencial para os usuários da
saúde mental na maioria das cidades.

1
Este roteiro foi inspirado inicialmente em uma longa conversa telefônica com a Prof.a e Dra. Luciana Barbosa Musse, diplomada
em psicologia e direito, e professora de direito da UniCEUB, Brasília, e também co-autora da publicação “Manual de direitos e
deveres dos usuários e familiares em saúde mental e drogas”, pelo Projeto Transversões- UFRJ, coordenado pelo autor deste
roteiro, publicação esta que está disponível na Internet para download, bastando colocar o título no programa de busca.
2

d) Ela reitera o acesso a diversos direitos sociais especiais (aqueles não disponíveis para os demais cidadãos) para as
pessoas com deficiência/disability, de diferentes naturezas. Entre os principais direitos, estão:
- direitos previdenciários e benefícios sociais específicos, que no Brasil se encontram no âmbito das políticas sociais
de previdência (aposentadorias), do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Sistema Unificado de Assistência
Social (SUAS);
- superação de barreiras ambientais, urbanisticas, arquitetônicas e de mobiliário, e acesso a tecnologias que promovam
a livre circulação, funcionalidade, a comunicação e a participação na vida social;
- acesso ao transporte público sem barreiras
- acesso a moradia inclusiva e adaptadas às condições físicas, e com atenção psicossocial;
- acesso a atendente pessoal, apoio escolar e acompanhante;
- atendimento prioritário em serviços de habilitação/reabilitação e das diversas políticas sociais, e aí se inclui o direito
a “atendimento psicológico, inclusive para seus familiares e atendentes pessoais” (Art. 18. Parágr. 4.o, alínea V); e
restituição do imposto de renda;
- acesso a trabalho acessíveis e inclusivos, com suas “adaptações razoáveis”, como tecnologias assistidas e suportes
individualizados;
- acesso sem barreiras a atividades de lazer, cultura, turismo e esportes etc.
Sabemos das inúmeras dificuldades e barreiras para a implementação de uma lei como essa em nosso país, que
vão desde a atual conjuntura de crise econômica e política, de profundos retrocessos em todo o campo das políticas
sociais, na vida democrática e de busca de saídas autoritárias, até dificuldades conceituais e jurídicas mais específicas,
algumas das quais vamos indicar mais abaixo. Elas se complexificam sobremaneira no campo da saúde mental,
exigindo investimento em seu debate. No entanto, a força jurídica de uma convenção que tem o status de emenda
constitucional e seu detalhamento pela LBI está gerando inúmeras iniciativas de debate, regulamentação e
implementação.
A minha avaliação é de que se trata de um processo inexorável, e que terá muitas implicações para a
política de saúde mental e drogas e nossas lutas, independente se nós, ativistas antimanicomiais, queiramos
participar dele ou não. E pior, as iniciativas de regulamentação/implementação estão em curso, algumas
interessantes, outras não, por suas tentativas de restringir direitos, e nosso não monitoramento delas pode levar
à não consideração das especificidades necessárias ao nosso campo.

3) Iniciativas atuais de debate, regulamentação e implementação da LBI no Brasil

3.1) Aprofundamento interpretativo e debates no campo jurídico


As duas peças legislativas (LBI e NCPC) tiveram sua discussão/aprovação no Congresso Nacional e
promulgadas praticamente no mesmo período, com poucas referências entre si. Além disso, temos o próprio Código
Civil de 2002. Todos eles apresentam dispositivos referentes à deficiência/disability, particularmente relativos à
curatela e interdição, gerando um campo de ambiguidades e diferentes possibilidades de interpretação por parte dos
juristas e membros do Sistema de Justiça.
Tendo em vista o debate destas questões e os desafios e avanços na implementação da LBI, temos assistido a
inúmeras iniciativas de aprofundamento interpretativo e debate por entidades ligadas ao Sistema de Justiça. No Rio de
Janeiro, tivemos agora em agosto e setembro dos seminários neste sentido, e também podemos indicar dois livros
recentes sobre o tema:
a) Eventos: ver os anais e/ou vídeos dos seguintes seminários e fóruns, disponíveis nos sites das entidade promotoras:
- seminário “Aspectos civis, processuais e constitucionais da curatela e tomada de decisão apoiada”, realizado no dia 17/08/2018,
pelo Ministério Público Estadual do Estado do Rio de Janeiro;
- I Fórum dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ, realizado no dia 18/09/18, promovido pela Comissão de Defesa
dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ.
b) Livros:
- Barbosa, Heloisa H e Almeida, Vitor (coord) Comentários ao Estatuto da Pessoa Com Deficiência à luz da Constituição da
República. Belo Horizonte, Fórum, 2018.
- Gonzaga, Eugenia A. e Medeiros, Jorge Luis R. (org) Ministério Público, sociedade e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência. Brasília, Escola Superior do Ministério Público da União, 2018. Disponível em:
3

http://escola.mpu.mp.br/publicacoes/obras-avulsas/e-books/ministerio-publico-sociedade-e-a-lei-brasileira-de-inclusao-da-pessoa-
com-deficiencia

3.2) Iniciativas no âmbito do Executivo Federal e dos órgãos de controle social da política de direitos da pessoa
com deficiência
Temos hoje inúmeras iniciativas tomadas no âmbito da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da
Pessoa com Deficiência, ligada ao Ministério de Direitos Humanos, e do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da
Pessoa com Deficiência. Uma delas é monitorar e tentar interferir no debate dos projetos de lei que estão tramitando
para regulamentação da LBI, alguns deles indicados abaixo. Uma outra iniciativa tem sido a construção de um
Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Outra iniciativa, certamente muito importante para o campo da saúde mental, foi a formação de um comitê
visando a construção e validação de uma escala de avaliação biopsicossocial, que hoje já está sendo em fase de teste
e validação, por meio de uma aplicação em cerca de 6.000 pessoas com os mais diferentes tipos de deficiência.
Segundo fontes orais de pessoas ligadas à Secretaria Nacional, na adaptação para o Brasil, o instrumento
internacional padrão foi modificado para incluir aspectos associados aos transtornos mentais, e quem assessorou
esse processo foi o Ministério da Saúde. Não foi possível colher mais detalhes sobre quem participou, sobre o
conteúdo das novas perguntas sugeridas e sobre o resultado concreto dentro da escala. Certamente, essa é uma
iniciativa na qual nós, do movimento antimanicomial, temos que participar...
Na semana que se iniciou em 29/10/18, foi realizado em Brasília o Seminário Internacional sobre a Avaliação
da Deficiência, com apresentação de trabalhos sobre os modelos de avaliação de inúmeros países europeus e da
America Latina. Vários deles já incluíram o transtorno mental no âmbito desta avaliação.
Temos aliados nesta Secretaria Nacional, que estão dispostos a participar de eventos produzidos por
nós, para nos inteirarmos do andamento deste processo, que já está avançado.

3.3) Iniciativas normativas no âmbito do Legislativo e do Executivo no âmbito federal


Vários projetos de lei têm sido propostos no Congresso Nacional, e alguns deles já foram inclusive aprovados.
Segundo minhas fontes da Secretaria Nacional, que tem tentado monitorá-los, alguns são progressistas, outros não,
com inúmeras tentativas de restrições de direitos, por tocarem em interesses diversos, particularmente do setor
privado. Alguns exemplos:
- Decreto 9296, de marco de 2018, que regulamenta as exigências de acessibilidade em hotéis, pousadas e similares;
- Decreto 9404, de julho de 2018, que regulamenta espaços para pessoas com deficiência em teatros, cinemas,
auditórios, ginásios de esporte e similares
- Decreto 9405 de junho de 2018, que dispõe sobre o tratamento diferenciado para adaptações das micro e pequenas
empresas, quanto às exigências da LBI para pessoas com deficiências
- Decreto 9451 de julho de 2018, que dispõe sobre características das moradias para uso privado multifamiliar etc.
Segundo a avaliação de nossas fontes da Secretaria Nacional, há vários outros projetos em tramitação e
discussão, e no entanto, há pouco conhecimento e baixa participação dos movimentos sociais nas audiências
públicas e na discussão destas iniciativas normativas, com enorme risco de perdas de direitos... Algumas delas
certamente são de interesse para o campo da saúde mental. Uma delas é um projeto de lei em tramitação que
tenta regulamentar o dispositivo de tomada de decisão apoiada, com inúmeras cláusulas restritivas.

4) Desafios da LBI para o campo da saúde mental

4.1) O paradoxo inevitável entre direitos civis e sociais e sua implicações no campo da saúde mental
As lutas no campo dos direitos civis incluem a luta contra a discriminação e o estigma. No campo dos direitos
sociais, as situações de impedimento (disabilities/deficiências) geram direitos sociais especiais, ou discriminação
positiva (ex.: os direitos sociais especiais incluídos na LBI). Como justificá-los perante a sociedade? Quais são os
critérios de inclusão?
4

Várias fontes críticas em sociologia e ciência política que estudam os direitos de cidadania e programas de
discriminação positiva apontam para o seguinte paradoxo entre os direitos civis e direitos sociais 2: a luta e conquista
de direitos sociais especiais, com seus critérios objetivos de avaliação e inclusão, acabam necessariamente
reforçando no campo dos direitos civis a existência de uma diferença real entre as pessoas, gerando perdas na luta
contra a discriminação. É como um cobertor curto que, ao tentar cobrir o peito, descobrimos os pés.
Um exemplo mais dramático e visível disso são as cotas raciais, que geram um enorme debate no movimento
negro e entre defensores dos direitos humanos e sociais. A posição de defesa da discriminação positiva para
compensar a historicamente longa desigualdade étnica gerada pela escravidão e aprofundada pela permanente
desigualdade social até hoje no país, foi hegemônica neste debate, e acredito que este foi um posicionamento correto
para a realidade brasileira atual. No entanto, é fundamental lembrar sempre que ele gera perdas: por exemplo, quando
há dúvidas sobre a autoindicação de negritude por parte de um candidato à cota, podendo indicar fraude, há uma
sindicância sobre as origens da pessoa, para comprovar seu direito à cota... Isso, queira ou não, afirma a diferença que
queremos negar quando lutamos pela não discriminação. De forma similar, um profissional formado, que teve direito à
cota, pode carregar essa perda no início de sua vida de trabalho.
Minha posição é de que esse paradoxo é inexorável, e vamos ter que lidar com ele pensando as melhores
estratégias para maiores ganhos e menores perdas, em cada contexto histórico específico. A LBI é fruto de uma longa
sedimentação deste debate e dessas estratégias, considerando o conjunto médio das disabilities/deficiências. Um
exemplo destas estratégias, por exemplo, é substituir a perícia exclusivamente médica (que reforça a concepção
médica que ela quer combater) por uma avaliação biopsicossocial.
No entanto, esse paradoxo tem diferentes impactos entre os vários tipos de disabilities/deficiências, entre
aquelas mais visíveis e facilmente constatáveis, como a deficiência física, e aquelas cuja avaliação atravessa um
complexo de fatores subjetivos e de representações sociais estigmatizantes, como o transtorno mental. No campo da
saúde mental, afirmar a existência da diferença gerada pelo transtorno, para justificar direitos sociais especiais,
implica necessariamente em perdas na luta contra a discriminação, enfatizando que a pessoa é mesmo diferente,
reforçando a sua desvalorização.
É importante acrescentar que a tradução feita no texto legal da convenção e da LBI no Brasil, de disability
para deficiência, certamente amplificou ainda mais esse paradoxo na área da saúde mental. Há claras resistências entre
todos os atores do campo. Para os profissionais e trabalhadores, o conceito de deficiência empobrece e limita a
abordagem dos diversos aspectos multidimensionais do sofrimento psíquico ou transtorno mental, que se expressa por
exemplo em diferentes terminologias para o fenômeno dentro do campo, dificultando a adoção da LBI como suporte
para as lutas na área. Para os usuários e seus familiares, o termo deficiência carrega um peso ainda maior de estigma e
discriminação do que o transtorno mental, dificultando considerar a LBI em suas lutas por direitos.
Contudo, se pensarmos no conjunto dos usuários do SUS, e na profunda desigualdade social brasileira, penso
que os direitos sociais especiais colocados pela LBI são fundamentais para a reabilitação em saúde mental para a
maioria de nossos usuários. Um exemplo é o direito ao livre transporte urbano e intermunicipal, que lhe possibilita
frequentar os serviços de atenção psicossocial e os inúmeros recursos culturais, artísticos, de lazer e esportes que a
cidade proporciona, componente fundamental de um processo de recuperação em saúde mental não dissociado da
conquista da cidadania.
Além disso, como indicado acima, a inserção do campo da saúde mental no âmbito da LBI constitui um
processo inexorável, e que terá muitas implicações para a política de saúde mental e drogas, independente se nós,
ativistas antimanicomiais, queiramos participar dele ou não. E cabe ainda lembrar que as iniciativas de
regulamentação/implementação estão em curso, algumas interessantes, outras não, por suas tentativas de
restringir direitos, e nosso não monitoramento delas pode levar à não consideração das especificidades necessárias
ao nosso campo.
Adicionalmente, cabe assinalar que em no nosso campo, temos uma outra zona de sombra: como fica a
inclusão na LBI das pessoas com uso problemático de drogas que estão integrados à rede pública de atenção

2
Para aprofundamento neste tema, sugerimos o seguinte trabalho: Vasconcelos, Eduardo M. Reinvenção da cidadania no campo
da saúde mental e estratégia política no movimento dos usuários, in EM Vasconcelos (org) Saúde mental e serviço social. São
Paulo, Cortez, 2000]
5

psicossocial no país? Em caso de não inclusão, é possível pensar em direitos sociais especiais associados apenas à
condição de usuários de serviços de saúde mental e drogas, como no passe livre no transporte coletivo e
intermunicipal?

4.2) As dificuldades e a resistência à LBI no Sistema de Justiça em relação ao campo da saúde mental
A tradução feita no texto legal no Brasil, de disability para deficiência, gera um campo de ambiguidade na
interpretação da LBI pelos atores do Sistema de Justiça, particularmente pelos juízes, resistentes às mudanças
exigidas pela lei, preferindo não incluir o transtorno mental como uma deficiência do tipo mental, que na LBI é
diferenciada da deficiência intelectual, que então corresponde à noção até então usada no senso comum de deficiência
mental.
Além dessas dificuldades conceituais, o campo da saúde mental e as mudanças geradas ainda pela reforma
psiquiátrica, particularmente a partir da Lei 10.216 de 2001, com toda a sua complexidade, são pouco conhecidos
e/ou têm sido objeto de clara resistência por parte de segmentos do Sistema de Justiça. Isso de dá particularmente no
Judiciário, cujos juízes tendem a reproduzir as noções tradicionais de periculosidade, curatela, perícia médica, e de
que a melhor forma de tratamento é a internação psiquiátrica convencional. Da mesma forma, parte significativa dos
advogados também compartilham destas concepções.
A LBI avança muito neste campo, mas sua implementação efetiva vai requerer estratégias claras por parte do
movimento antimanicomial e pelos segmentos do Sistema de Justiça e da OAB que estão abraçando sua causa, para
tentar reverter essas resistências.

4.3) As resistências no campo do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e no INSS


As políticas neoliberais e algumas dificuldades dos sistemas de previdência no mundo geradas pelas
tendências demográficas; a crise fiscal no governo federal brasileiro, e sua estratégia de utilizar os fundos sociais para
aplacar a crise fiscal (será que teríamos mesmo essa tão grave crise fiscal da previdência e do INSS?) reforçam a
resistência à adoção da LBI no MDS e no INSS.
Um dos sintomas disso, somado a um componente de interesses corporativos, é a substituição da perícia
médica por uma avaliação psicossocial. Os peritos estão resistindo bravamente a isso, e para o próprio INSS, essa
mudança torna muito mais complexa a avaliação dos candidatos a benefícios sociais e previdenciários, no quadro de
uma política clara de restrições à oferta destes benefícios. Além disso, as recomendações vigentes são no sentido de
tornar cada vez mas restritivo o acesso aos benefícios sociais (tias como o auxílio-doença, aposentadoria por invalidez
e Benefício de Prestação Continuada – BPC), como forma de controlar gastos em um contexto da tão propalada “crise
da previdência”.
A negação de benefícios, na esfera administrativa do INSS, por sua vez, leva a uma judicialização dos
conflitos, que atrasa a conquista dos direitos por parte dos cidadãos, bem como aumenta o volume de processos no
Judiciário.

5) Possíveis estratégias de enfrentamento para os desafios que atravessam o campo da saúde mental

Tendo em vista esse quadro complexo e de resistência em várias esferas, penso que será necessário atuar em
várias frentes, mas avaliando bem as estratégias mais viáveis e potentes no curto e médio prazos. Neste espírito,
podemos sugerir as seguintes estratégias:
a) (Urgente) provocar, informar, debater e buscar um relativo consenso interno dentro do próprio movimento
antimanicomial, tanto nacional como nos seus núcleos estaduais e municipais, em relação à importância da LBI,
apesar de todas as ambiguidades conceituais e das resistências que hoje os atores internos no movimento têm
intuitivamente em relação à ela. Para isso, os argumentos colocados acima são fundamentais.
b) (Urgente) Criar uma articulação entre os setores já mais esclarecidos do movimento antimanicomial com setores
mais avançados da OAB e dos Ministérios Públicos Federal e estaduais, no sentido de avançar os debates sobre a
LBI junto à categoria dos advogados, ao próprio movimento antimanicomial, e particularmente, iniciar
“provocações” e ações junto a algumas instâncias chaves do Sistema de Justiça, visando conquistar uma
interpretação menos ambígua em relação à inclusão dos transtornos mentais na LBI e dirimir conflitos entre a LBI,
CC e CPC.
6

Inicialmente, avalia-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público
(CNPM) seriam instâncias mais propícias a conquistas parciais no curto prazo neste campo, por meio de suas
recomendações. Presume-se que atuar de imediato junto ao STF e TJ’s requereria uma fundamentação muito
cuidadosa, levaria a uma tramitação mais longa, e dependendo do avanço do debate dentro do Sistema de Justiça como
um todo, há algum risco de não ser aceita.
c) Atuar junto com a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência bem como com as
instâncias e conselhos de controle social, tais como os de Direitos da Pessoa com Deficiência, Direitos Humanos, de
Saúde, de Assistência Social, de Direitos das Crianças e Adolescentes etc, e seus congêneres no nível estadual e
municipal, no sentido de fomentar o debate sobre a LBI, suas implicações em cada área de política social, e as
diferentes estratégias de atuação, visando garantir a sua implementação de forma adequada e sem restrições de
direitos.
d) Atuação junto ao MDS e INSS, promovendo debates sobre a LBI e suas implicações no campo da assistência social
e previdência. Dada a atual gestão política do MDS, este frente de ação dependerá muito do novo governo federal que
tomará posse em janeiro de 2019.
e) Atuar junto às frentes parlamentares antimanicomiais federal (coordenada hoje pela deputada Erika Kokay) e
estaduais, no sentido de propor projetos de lei com suporte na LBI, tanto no sentido mais geral de inclusão do
transtorno mental na interpretação da lei, como também de assegurar os seus respectivos direitos sociais, listados
acima, bem como o direito ao livre acesso ao transporte público municipal e intermunicipal, e leis estaduais de cotas
para o emprego apoiado, com o suporte de programas intersetoriais de implementação de trabalho apoiado e
supervisionado.
Um exemplo já consolidado em relação a este último já existe no estado do Rio de Janeiro há cerca de uma década,
por meio da Lei Estadual 4.323, de 2004, visando garantir, de forma conjunta com o Ministério Público do Trabalho, a
inclusão das pessoas com transtorno mental na Lei Previdenciária Federal 8.213/91/, chamada Lei de Cotas, para
pessoas com deficiência, em empresas com mais de 100 empregados, em uma estratégia qualificada de trabalho e
emprego apoiado e supervisionado, com carga horária e jornada flexibilizadas, ou seja, com adaptações razoáveis,
conforme a LBI. No Rio, esta estratégia está sendo garantida por um programa conjunto e bastante ativo entre as
secretarias estaduais do trabalho e saúde, que criaram o Núcleo de Saúde Mental e Trabalho (NUSAMT), e que hoje
conta com a inserção bem sucedida de dezenas de pessoas com transtorno mental em empresas privadas.

Você também pode gostar