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Ricardo Pretti

notas sobre a montagem cinematográfica

a montagem não se resume a uma manipulação de imagens e sons, ela é antes uma educação
com imagens e sons em constante fluxo, onde nunca se sabe exatamente o ponto de partida
e nem o ponto de chegada. assim como mais pode ser menos e menos pode ser mais.

um bom jogador de sinuca poderia ser um bom montador, mas não o contrário. a sinuca é
mais veloz que a montagem. uma boa partida de sinuca alia, instantaneamente, a precisão
de certas leis físicas e matemáticas com a imprevisibilidade de suas ferramentas: jogador,
mesa, taco, giz, etc. (mise en scène?). (numa nota mais pessoal, lembro dos dois anos que
passei jogando sinuca na minha adolescência tardia, foi onde aprendi o real sentido de
humildade: o jogo será sempre maior que o jogador. em outras palavras: o filme, ruim ou
bom, será sempre maior que o montador).

em compensação, um bom montador poderia ser um bom poeta. isso prova que quase não
existem bons montadores, do mesmo jeito que é raro encontrar um bom poeta em qualquer
canto do planeta.

imagine mudar de casa todos os dias… esse é o trabalho do montador enquanto monta um
filme. quando muda de filme é como mudar de cidade, ou seja, o montador pode dizer: “mudo
de casa quase todos os dias e mudo de cidade de três a quatro vezes por ano”. mas de país o
montador nunca se muda porque não existe esse conceito no cinema.

imagine não envelhecer, viver todos os dias como se fosse o primeiro e o último… esse é o
trabalho do montador enquanto não monta um filme. Ezra Pound formulou: curiosidade / um
conselho aos jovens / curiosidade.

a montagem é uma nobre profissão que exige amadores ao invés de profissionais.

dizem que o bom montador sabe contar bem histórias, porém, depois de ter visto milhares de
filmes hollywoodianos da sua era de ouro, posso dizer que isso não é verdade. a história de
um filme nunca será contada na sala de montagem. se não contou na filmagem, já era. a
montagem pode ressaltar, condensar e evidenciar a beleza da história sendo contada, a
montagem pode se apaixonar pelos elementos do filme, e a montagem pode até dar uma
personalidade única à história, mas ela não pode contar uma história. no final das contas,
quem conta a história é o próprio espectador e sua imaginação. um espectador sem
imaginação é a morte do cinema.

como seria uma escola pra formar montadores? 1º ano: assistir a filmes e mais nada. 2º ano
(pros que ficaram): assistir ao material bruto de um filme, pensar um pouco sobre o que fazer,
tentar fazer e fracassar algumas vezes até chegar no corte final. 3º ano (pros três gatos
pingados que permaneceram): remontar o filme quatro vezes exatamente do mesmo jeito que
ele estava montado no corte final (pra isso acontecer da melhor forma é necessário não fazer
backup de nada e quebrar acidentalmente, porém com firme propósito, os HD. durante uma
bebedeira pode ser bem eficaz a conclusão dessa etapa). o montador precisa lembrar de todos
os takes usados e pontos de corte (ou quase todos, se ele convencer a si mesmo que são
todos). Ao fim de tudo isso, o ideal é que ele perceba que o mesmo filme nunca é o mesmo
filme, e assim ele perceberá que um plano nunca é um mesmo plano etc. mas pra isso
funcionar é preciso que o filme seja o mesmo filme e o plano seja o mesmo plano etc.
alternate take era bastante comum nos discos de jazz dos anos 50. uma mesma música era
gravada mais de uma vez no mesmo disco (essa prática só foi possível porque os músicos
tocavam todos juntos, permitindo que cada gravação fosse diferente). straub e huillet usaram
diferentes takes de um mesmo plano em alguns filmes (visita ao louvreé o mesmo filme
montado duas vezes com diferentes takes). um plano equivale a uma canção e cada take é uma
versão diferente da mesma canção. quando chegou o free improv não precisou-se mais da
ideia de take, pois também já não havia canção. no cinema de ficção isso equivaleria a filmar
de forma sempre diferente um conjunto de ideias (uma sequência ou um plano).
consequentemente, isso seria transformar toda noção de unidade contida numa duração em
take, em vez de plano (ideia que evoluiu numa conversa que tive com meu irmão luiz). ou
seja: “quantos takes vamos filmar hoje?”. Isso pro montador significaria uma libertação de
certo sofrimento e exaustão causado pelo visionamento vazio de inúmeros takes que dizem a
mesma coisa, no melhor dos casos.

muita gente acredita que intuição é ausência de pensamento ou de método para o pensamento.
pra mim intuição é a conciliação do pensamento com o mundo, da sala de montagem com o
universo do filme. ou seja, não importa quantas regras a gente se impõe, deverá sempre
permanecer um espaço pra intuição. (a intuição pode ser exercitada diariamente com jogos de
associação livre, escrita automática e sessões de hipnose.)

quando um filme acaba é importante deixar ele ir embora, esquecê-lo de vez. um montador
possessivo é muito chato, já basta o pobre do diretor.

o controle ou a vontade de controlar destrói o filme e/ou o montador. montagem é desejo e


jogo de sedução, não é uma relação entre pais e filhos. por isso é bom fechar a porta ao entrar
na ilha.

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