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FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo

<Desenvolvimento da autonomia em pessoas em situação de rua


inseridas em programa de ocupação e renda temporários: estudo

terapêutico-ocupacional>

RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA

<Pesquisadora responsável: Marta Carvalho de Almeida>


<Pesquisadora executante: Débora Lacerda Saes>
O trabalho é ação transformadora da natureza,
realizada pelo seres humanos de forma consciente
e orientada para o fim de atender as suas
necessidades. Sejam as necessidades de garantia
de subsistência e reprodução da vida material (...)
ou outras necessidades sociais historicamente
construídas, inclusive a de dar continuidade ao
conjunto da vida social (...) Assim, como atividade
do processo de trabalho é condição natural e vital
do gênero humano, em qualquer forma social. É
central na história da humanidade e indispensável
à manutenção da vida, além de ser estruturante da
sociabilidade humana. (Silva, 2006, p. 197).
Resumo do Plano Inicial

Em estudos recentes, as pessoas em situação de rua têm sua problemática


analisada no contexto dos processos de inclusão/exclusão social e, particularmente,
sob a perspectiva das mudanças contemporâneas no mundo do trabalho. Alguns
trabalhos elegem essa população como emblemática dos processos de
inclusão/exclusão social brasileiros, considerando que proposições neoliberais
incidiram sobre uma realidade onde não houve consolidação de mecanismos
universais de proteção social. De acordo com esses autores, a falta de emprego tem
empurrado parcelas importantes de desempregados a viver ou extrair renda da rua,
“desnecessários” que são ao circuito econômico vigente. A vida na rua é
caracterizada como o limite extremo de uma trajetória de vulnerabilidades,
fragilização e desvinculação em várias dimensões da existência, entre as quais o
trabalho tem lugar de destaque. A complexidade do problema, portanto, tem
colocado desafios importantes para a formulação de políticas públicas, exigindo que
estratégias de intervenção dialoguem com uma cultura complexa e estruturada,
típica desses grupos populacionais.

O estudo proposto busca analisar trajetórias de pessoas em situação de rua


que são usuárias da Associação Minha Rua Minha Casa (AMRMC) e têm inserção
em ocupação remunerada em caráter temporário, através do projeto "Frente de
Trabalho Especial", uma pareceria entre a Secretaria de Emprego e Relações de
Trabalho do Governo do Estado de São Paulo (SERT) e a Secretaria Estadual de
Assistência e Desenvolvimento Social (SEADS). Busca identificar, nessas trajetórias,
mudanças relacionadas a essa nova condição (reinserção no mundo do trabalho) ao
nível das ações e relações sociais cotidianas. A coleta de dados é pretendida
através de entrevistas abertas com quinze integrantes do projeto e composição de
um Diário de Campo produzido pelo pesquisador executante ao longo do período em
que acompanhará as atividades que os integrantes realizam na AMRMC. A
identificação de processos de ganho de autonomia, embasados nas concepções da
Terapia Ocupacional, pretende contribuir para a compreensão das repercussões do
programa Frente de Trabalho Especial, bem como com o campo de reflexões e
elaborações acerca das intervenções sociais junto a esse segmento da população.
RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO PERÍODO DE
MAIO A OUTUBRO DE 2007

a) Participação em atividades grupais promovidas pela AMRMC junto


aos beneficiários do Projeto “Frente de Trabalho Especial” da SERT e da
SEADS

Conforme previsto, essa participação possibilitou a coleta de dados obtidos


por observação, bem como a obtenção de informações espontâneas que foram
registradas em Diário de Campo. Foram coletadas informações sobre os sujeitos
(rotinas, repertório, modo e freqüência de realização das atividades de trabalho) e
sobre o contexto em que se desenvolviam as ações acompanhadas (rotina e
dinâmica institucional, e interações equipe-usuários).

b) Coleta de dados através de realização de entrevistas

Todas as entrevistas previstas foram realizadas. Foram quinze os


entrevistados, escolhidos aleatoriamente por método de sorteio. Todas as entrevistas
aconteceram na AMRMC, no espaço da sala de curativos (um dos ambientes da
AMRMC em que o barulho do trânsito é menos intenso). Foram gravadas,
apresentando tempo médio de duração de 30 minutos.

c) Transcrição das entrevistas

Foi realizada em grupos de três ou quatro entrevistas, de acordo com a ordem


de obtenção das gravações, criando um fluxo de trabalho para que todas fossem
transcritas. Foi usado o software denominado F4, próprio para transcrição de áudios.
Antes de iniciada a transcrição das entrevistas adotou-se o procedimento de ouvir
toda a gravação e, somente depois, ouvi-la pela segunda vez e transcrever seu
conteúdo. Os trechos incompreensíveis foram marcados, utilizando-se recurso do
programa F4 para que se pudesse ser identificado rapidamente e, sendo ouvido
novamente, compreendido por dedução. Alguns poucos trechos de até 5 (cinco)
segundos permaneceram ininteligíveis, mesmo ao final da transcrição.
d) Composição do perfil do conjunto dos entrevistados

Dados demográficos como idade, sexo e escolaridade foram reunidos ao lado


de outros mais específicos como tempo de permanência na situação de rua, tempo
de vínculo com a AMRMC, entre outros, com a finalidade de compor um perfil dos
entrevistados. Realizou-se a descrição do grupo de entrevistados.

e) Elaboração de relatório parcial das atividades desenvolvidas

Foi elaborado relatório parcial, que apresentou em pormenores as etapas


mencionadas acima.
RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO PERÍODO DE NOVEMBRO
DE 2007 A ABRIL DE 2008

a) Continuidade da participação em atividades grupais promovidas pela


AMRMC junto aos beneficiários do Projeto “Frente de Trabalho Especial” da
SERT e da SEADS

Devido à qualidade das informações coletadas tanto nas entrevistas como


através de registro em Diário de Campo, a partir do início do trabalho de
organização e análise dessas informações, julgou-se que não seria necessário
continuar participando das atividades grupais na AMRMC para que os
pesquisadores pudessem focar seu trabalho.

b) Conclusão da composição do perfil do grupo de entrevistados

Procedeu-se à análise crítica do material descritivo e desta concluiu-se que a


composição do grupo de entrevistados é semelhante à composição geral de
pessoas em situação de rua, particularmente as do município de São Paulo.

c) Busca de informações complementares

Tendo em vista o início da análise dos dados, foram coletadas,


simultaneamente, informações acerca da inserção dos entrevistados na FTE e na
AMRMC, bem como informações complementares acerca da AMRMC e do
Programa Emergencial Auxílio-Desemprego, conhecido como Frente de Trabalho.

d) Revisão Bibliográfica

Foi realizada a revisão de estudos brasileiros sobre pessoas em situação de


rua, no período compreendido entre 2002 e 2007.

e) Organização e análise dos dados coletados

Os dados foram organizados de forma a permitir seu agrupamento temático,


tomando por referência os objetivos da pesquisa. Assim, organizou-se o material a
ser analisado identificando aspectos relacionados às atividades e relações de
trabalho e às atividades e relações cotidianas. A análise das entrevistas foi realizada
de acordo com as categorias temáticas que se fizeram necessárias.

f) Elaboração do relatório final

O relatório final foi redigido, de acordo com normas e orientações da FAPESP.

g) Redação de artigo para publicação

A redação do artigo foi realizada, porém considera-se a necessidade de


realizar revisões e adequações no texto.

h) Preparação de palestra expositiva de resultados

Procedeu-se à preparação de palestra expositiva sobre o estudo,


apresentando-o por meio de recurso áudio-visual (utilizando-se o programa power
point).
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO PERÍODO DE
NOVEMBRO DE 2007 A ABRIL DE 2008
1. APRESENTAÇÃO

As atividades desenvolvidas no período de novembro de 2007 a abril de 2008


se caracterizaram, principalmente, pela análise dos dados obtidos por meio de
realização de entrevistas e participação em atividades na AMRMC junto aos sujeitos
do estudo proposto. Precedeu esse momento, entretanto, a revisão da literatura
brasileira sobre o tema “pessoas em situação de rua”, nos últimos 5 anos, bem como
o acesso a informações complementares sobre a AMRMC e sobre o programa
Frentes de Trabalho Especial, da Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho do
Estado de São Paulo em parceria com a Secretaria Estadual de Assistência e
Desenvolvimento Social de São Paulo.
Com o objetivo de selecionar a literatura a ser consultada na revisão –
compreendendo o período de 2002 a 2007 – foram levantadas informações junto à
listagem do acervo do Centro de Estudos e Pesquisa sobre População em Situação
de Rua da Prefeitura Municipal de São Paulo, que funcionou até meados de 2005, e
nas bases LILACS e Banco de Teses da CAPES (2005/2006). Para acessar teses,
dissertações e artigos na íntegra foram utilizados o Portal Domínio Público, o Acesso
livre de periódicos CAPES e o SCIELO. Este último também foi utilizado no sentido
de subsidiar as buscas em periódicos de outras áreas de conhecimento além do
campo das Ciências da Saúde, tendo em vista que atualmente conta com 538
periódicos em linha, abrangendo também áreas tais como as Ciências Sociais
Aplicadas, Ciências Humanas e Arquitetura. Alguns trabalhos, principalmente
dissertações, teses e livros, foram acessados em bibliotecas não-virtuais como as da
Faculdade de Saúde Pública e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo e a Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri, no
campus Monte Alegre da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

As informações sobre a AMRMC e o programa Frentes de Trabalho foram


localizadas por meio de análise de documentos obtidos junto à AMRMC, à
Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho do Estado de São Paulo, à
Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo e em
sítios da rede mundial de computadores.
Conforme descrito em relatório anterior, a participação dos pesquisadores em
atividades na AMRMC possibilitou a coleta de dados oriundos da observação e do
relacionamento direto com os sujeitos da pesquisa e com o contexto de
desenvolvimento das atividades de trabalho. Assim, tornou possível a obtenção de
informações sobre a dinâmica de funcionamento da entidade e de suas relações
internas, tanto no que se refere à equipe técnica, quanto aos associados e à
interação entre ambos. Possibilitou, ainda, que fosse observada a realização das
atividades de trabalho propostas aos bolsistas no contexto do programa Frentes de
Trabalho Especial. Além disso, permitiu que se coletasse um conjunto consistente de
informações espontâneas emitidas pelos sujeitos da pesquisa.

As informações decorrentes da participação nas atividades da AMRMC foram


registradas em diário de campo e posteriormente organizadas, de acordo com os
focos do estudo: as atividades e relações sociais cotidianas e as atividades e
relações de trabalho. Posteriormente à análise das entrevistas, essas informações
foram agregadas ao conjunto da análise, de modo que por vezes confirmaram
interpretações ou jogaram luz em aspectos pouco evidenciados pelos entrevistados
na ocasião das entrevistas. Assim, o texto produzido em decorrência da análise das
entrevistas foi acrescido de algumas possibilidades interpretativas derivadas do
material coletado durante as atividades de campo.

As entrevistas foram realizadas na AMRMC, com 15 beneficiários do


programa Frentes de Trabalho Especial - FTE. Todas as entrevistas receberam
consentimento para serem gravadas e duraram, em média, 30 minutos. Durante a
entrevista, os sujeitos não apresentaram restrições em discutir ou falar sobre
assuntos que fossem relevantes, nenhuma delas pediu para interromper a
entrevista, e em momento algum foi demonstrado desconforto com o diálogo.
Apenas 3 (três) das pessoas sorteadas para participar da pesquisa não aceitaram.

A transcrição das entrevistas foi realizada de acordo com a ordem de


obtenção das mesmas, sendo que se aguardou a formação de grupos de três ou
quatro gravações para que se procedesse à transcrição. Isso aconteceu inicialmente
de modo não intencional, mas percebeu-se que auxiliou a criar um fluxo de trabalho,
de modo que todas as entrevistas fossem transcritas. Foi usado o software
denominado F4, próprio para transcrição de áudios. Antes de se iniciar a transcrição,
adotou-se o procedimento de ouvir toda a gravação, a fim de apreendê-la em seu
conjunto. Os trechos inaudíveis foram demarcados e posteriormente trabalhados,
utilizando-se recursos do programa F4 e outros procedimentos com o objetivo de
melhorar a qualidade da interpretação. Devido ao barulho externo ao ambiente das
entrevistas, alguns poucos trechos não puderam ser transcritos. Sendo esses
trechos de no máximo 05 (cinco) segundos, a análise das entrevistas não foi
comprometida.

Depois de terminada a transcrição das 15 entrevistas iniciais, realizou-se


leitura com atenção flutuante, de modo que foi possível realizar algumas reflexões
preliminares. Estas reflexões tratam, principalmente, de possíveis repercussões da
condição de inserção dos entrevistados no projeto Frente de Trabalho e de suas
perspectivas de vida. Nessa fase, foram levantadas algumas hipóteses
interpretativas, bem como identificadas lacunas de compreensão.

Os dados obtidos através das entrevistas foram organizados de modo a


considerar os temas previamente identificados através da leitura pormenorizada de
cada uma das entrevistas, seguindo orientações de Bardin (1979). Optou-se por
organizá-los a partir das seguintes dimensões: trabalho, moradia, dinheiro, família,
rua, amigos e outras relações sociais, rotina, AMRMC e religião. Em seguida, foram
grifados em cada uma das entrevistas, de acordo com cada dimensão, os relatos
verbais a elas relacionados. Foi aberta, também, a possibilidade de agrupamento de
outras informações consideradas relevantes e não pertencentes às dimensões
temáticas citadas. Obteve-se, assim, uma organização final com todas as
informações relevantes sobre todos os sujeitos da pesquisa, de acordo com todas as
dimensões.

A análise desse material foi precedida da finalização da composição do perfil


dos entrevistados, na medida em que se considerou importante construir a
possibilidade de observar a existência de possíveis relações entre os relatos e o
perfil dos entrevistados. A análise das entrevistas, que se deu individualmente e
também em seu conjunto, possibilitou a compreensão de algumas construções
simbólicas e, nesse âmbito, as considerações de Minayo (1996) foram essenciais.

Na etapa final, foram reunidas as análises e informações oriundas das


diferentes fontes pesquisadas, de modo a articulá-las criticamente em um todo
coerente que visa a atender ao objetivo do estudo, através da abordagem das
seguintes dimensões:

a) Estratégias de sobrevivência física e material;

b) Modos de realização das atividades de vida diária;

c) Interações com pessoas/grupos de referência (anteriores e/ou


contemporâneos à vida na rua), rede social de apoio e instituições e/ou
organizações eventualmente acessadas;

d) Auto-estima e representação pessoal;

e) Representações da vida laboral;

f) Projeções para o futuro.


2. REVISÃO DA LITERATURA BRASILEIRA: A POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA
Acredita-se que expansão ou inibição do fenômeno
população em situação de rua é condicionada por um
conjunto de fatores econômicos, políticos e sociais. É
provável que, no Brasil, a condição de absoluta
exclusão da cobertura e abrangência das políticas
sociais tenha contribuído para a reprodução do
fenômeno (...) A aposta é que o fenômeno pode ser
inibido pela ação das políticas sociais, ainda que as
condições que lhe dão origem permaneçam, pois as
políticas sociais não são capazes de eliminar a estrutura
de classes da sociedade capitalista, de onde se
originam as causas estruturais do fenômeno. (Silva,
2006, p. 196).

No Brasil, estudos sobre a população em situação de rua são poucos e


recentes. Grande parte deles tem se desenvolvido no âmbito das Ciências da
Saúde, das Ciências Sociais, das Ciências Humanas e da Arquitetura e Urbanismo.
A revisão da literatura permite afirmar que, de modo geral, independentemente de
seu objetivo e foco, os estudos apontam a necessidade da discussão crítica acerca
dos conceitos que circundam a temática da população em situação de rua, tais como
exclusão social, inclusão perversa, pobreza, vulnerabilidade, fragilização, entre
outros. Para desenvolver essa discussão, os autores recorrem sobremaneira a
autores franceses contemporâneos, como Paugam e em especial, a Robert Castel 1.
Esse autor desenvolveu o conceito de desfiliação, considerando dois eixos –
integração/não-integração pelo trabalho e inserção/não-inserção em sociabilidade
sócio-familiar – como vetores a serem analisados no processo de ruptura de vínculo
social (desfiliação).

De acordo com Juncá (2004), a importância dessa revisão conceitual ocorre

porque o uso do termo “excluídos”, várias vezes adotado para caracterizar as

pessoas em situação de rua, é problemático. Em concordância com outros autores,

1
CASTEL, R. Da indigência à exclusão, a desfiliação. Precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional. Saúde e
Loucura n.4. São Paulo: HUCITEC, 1995.
tais como Sawaia2 e Nascimento3, a autora diz que o uso indiscriminado do termo

exclusão social consiste em uma forma de disfarçar ou mesmo ocultar a natureza do

problema.

Ao invés de se recorrer indiscriminadamente ao termo é


preciso, portanto, definir do que se fala, construindo reflexões
sobre as dimensões presentes na rota de exclusão/inclusão,
não deixando de se recorrer também a uma perspectiva
histórica. (Juncá, 2004, p. 69).

Grande parte dos estudos (Borin, 2003; Juncá, 2004; Carneiro Jr. et al, 2006;
Jesus, 2006; Lopes, 2006; Mattos, 2006; e Silva, 2006) discute, ainda, acerca da
melhor denominação para abordar os grupos populacionais que sobrevivem nas
ruas, analisando opções como “moradores de rua”, “população de rua”, “pessoas em
situação de rua”, “população em situação de rua”, entre outros. Considerando os
trabalhos mais recentes, parece ter se instituído certo consenso no uso do termo
“população” ou “pessoas em situação de rua”. Entre os autores que defendem sua
utilização, Silva (2006) esclarece que faz uso da expressão “população em situação
de rua” não por entender que este atribui um caráter passageiro às condições
vivenciadas por esses grupos, mas por considerá-la mais apropriada ao designar o
fenômeno gerado pelo modo de produção capitalista, no qual o aprofundamento das
desigualdades sociais e dos níveis de pobreza da população empurra parcelas
expressivas da classe trabalhadora para a condição de rua. A autora defende o uso
desse termo para designar uma situação recorrente, “(...) da estrutura basilar da
sociedade capitalista, e não apenas das perdas e infortúnios de indivíduos,
considerados fora deste contexto social”. (Silva, 2006, p. 105).

Considerando o conjunto de estudos identificados no percurso de revisão,


nota-se que existe um tratamento que distingue a problemática da infância e
juventude da problemática da vida adulta. Assim, embora alguns estudos que
abordam crianças e adolescentes tragam importantes contribuições para a
2
SAWAIA, B. B. (org.) As artimanhas da exclusão. Análise psicossocial e ética da desigualdade social. 4ª edição.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
3

NASCIMENTO, E. P. hipóteses sobre a nova exclusão social: dos excluídos necessários aos excluídos
desnecessários. Cadernos CRH, 21: 29-27, 1994.
compreensão da vida nas ruas, optou-se por focar a revisão nos estudos que
abrangem a fase adulta, dado que o objeto do estudo envolve o tema trabalho.

Dado esse foco, notou-se que as investigações realizadas em torno da


população em situação de rua se concentram, principalmente, em torno de três
temáticas principais. Há um grupo de estudos que se detém na caracterização das
pessoas que se encontram nessa situação e se preocupam em identificar de modo
abrangente alguns perfis dessa população, seu modo de vida, seus problemas.
Embora não possam ser tratados como estudos de mesmo corte, é importante citar
a existência de estudos como os de Vieira et al (1992), Giorgetti (2004) e Mattos &
Ferreira (2004), que tomam especificamente as representações sociais sobre as
pessoas em situação de rua. Esses estudos apontam para questões inerentes aos
processos de exclusão social vivenciados pelas pessoas em situação de rua,
destacando o lugar dos preconceitos nesses processos. É importante dizer, ainda,
que a maior parte dos estudos, mesmo não tendo por objetivo a identificação desse
grupo populacional, preocupa-se de modo especial em delimitá-lo. Parece que
caracterizar com certa precisão a população em situação de rua tem sido tão
importante que muitos autores detêm-se longamente sobre este aspecto para,
somente em seguida, aprofundar-se em seus objetos principais.

Outro grupo de estudos toma como objeto a caracterização do problema no


que diz respeito às suas origens e às condições atuais de sua permanência e
reprodução. São estudos com forte predominância das ciências sociais.

Há, ainda, um terceiro grupo que, abordando a população em situação de rua,


analisa as políticas públicas voltadas a esse segmento, focando particularmente os
setores da saúde, da habitação, do trabalho e da educação, entre outros.

Embora a delimitação do pertencimento dos estudos a esses três grupos não


seja absoluta, na medida em que vários deles abrangem objetos complexos,
considera-se possível apresentá-los de modo mais detalhado da forma que segue.

A) Estudos que caracterizam a população em situação de rua e seus


problemas
As características e o perfil contemporâneo da
população em situação de rua no Brasil ajudarão a
situar essa população na composição da
superpopulação relativa ou exército industrial de
reserva, evidenciando suas especificidades na cena
contemporânea. (Silva, 2006, p. 76).

Estudos como os de Gomes (2004), Juncá (2004), Mattos & Ferreira (2004),
Varanda & Adorno (2004), Carneiro Jr. et al (2006), e Cerqueira (2006), desenvolvem
caracterizações e discussões a respeito dos perfis atuais da população em situação
de rua. Preocupam-se tanto com os números que a definem quanto em identificar
características das pessoas que se encontram nessa situação. Alguns estudos
realizam recortes específicos, estabelecendo relações com doenças (Jesus, 2006)
ou enfocando sub-grupos etários (Mattos e Ferreira, 2005).

É comum que os estudos mais recentes baseiem-se nos dados do “Censo


dos moradores de rua na cidade de São Paulo”, realizado pelo município de São
Paulo em parceria com a FIPE4 em 2003, no qual foram encontradas 4.213 (quatro
mil, duzentas e treze) pessoas que pernoitam nas ruas da cidade e 6.186 (seis mil,
cento e oitenta e seis) pessoas albergadas, o que totaliza 10.399 (dez mil, trezentas
e noventa e nove) pessoas em situação de rua, sendo que a grande maioria
encontra-se circulando no centro da cidade, onde existem maiores possibilidades de
subsistência em decorrência dos excedentes eliminados pelo comércio e da
cobertura das políticas assistenciais, sejam públicas ou religiosas. O estudo jogou
luz em diversos aspectos do problema, obrigando a revisões importantes, inclusive
sobre a dimensão numérica do problema.

Silva (2006) caracteriza o fenômeno população em situação de rua de acordo


com seis aspectos: ocorre devido a múltiplas determinações; é expressão radical da
questão social na contemporaneidade; localiza-se nos grandes centros urbanos; tem
no preconceito a marca do grau de dignidade e valor moral atribuído pela sociedade
às pessoas atingidas por esse fenômeno e apresenta particularidades em relação ao
local em que se manifesta. A autora aponta, ainda, que a heterogeneidade dessa
população é a característica mais exaltada em diversos estudos, e conclui que

Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, criada em 1973
para apoiar o Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São
Paulo (FEA-USP), com destacada atuação nas áreas de pesquisa e ensino. A Fipe estuda os fenômenos econômicos e sociais
com base no instrumental teórico e metodológico da Economia. (www.fipe.org.br, acessado em 30 de março, às 11h03).
(...) a maioria dos autores descreve as pessoas em situação de
rua como pessoas de origens, interesses, vinculações sociais e
perfis socioeconômicos diversificados, por isso não constituem
um único grupo ou categoria profissional (Silva, 2006, p. 95).

Em seu estudo, Silva destaca três condições que, consideradas e articuladas


entre si, permitem identificar as pessoas em situação de rua como um grupo
populacional: pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a
inexistência de moradia convencional regular – com conseqüente utilização da rua
para moradia e sustento - condição que pode ser temporária ou permanente.

Interessa particularmente a este estudo, contudo, o modo como a autora


organizou a exposição dos dados e informações encontrados 5 sobre o perfil da
população em situação de rua, tendo em vista que ela apresenta características
gerais da população em situação de rua no Brasil, ao lado das especificidades da
cidade de São Paulo. Trabalha sobre as variáveis sexo, idade, escolaridade, origem,
tempo na rua, relações com a família, relações com o trabalho antes da situação de
rua e relações com o trabalho nas condições de rua e uso de álcool e outras drogas,
criando um quadro bastante abrangente.

Em relação à variável sexo, a autora encontra que as pessoas em situação de


rua no Brasil são predominantemente do sexo masculino, sendo que no período de
1995 e 2005 estes são 77,87%. Segundo a autora, isto se deve a condições
estruturais do mercado de trabalho no Brasil, já que a parcela estrutural do
desemprego está associada à taxa de desemprego dos homens. Silva considera,
ainda, características culturais e históricas pois

A responsabilidade de garantir a renda para o sustento da


família é atribuída aos homens, chefes de família. Da mesma
forma, aos jovens do sexo masculino, a partir dos 18 anos, é
atribuída a tarefa do auto-sustento. Em um contexto de
elevadas taxas de desemprego, essas pessoas, pressionadas
a cumprirem essas responsabilidades, utilizam diversas
estratégias para encontrarem uma alocação no mercado de
trabalho, mas nem sempre encontram. Assim, alguns mudam

5
De acordo com a autora, o estudo se baseou em pesquisas realizadas sobre a população em situação de rua entre 1995 e
2005, em quatro grandes metrópoles brasileiras: São Paulo, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte. De natureza
exclusivamente documental, com o objetivo de estabelecer relações entre as mudanças recentes no mundo do trabalho e o
fenômeno da população em situação de rua no Brasil, buscou generalizar análises sobre esse fenômeno no Brasil. (Silva,
2006, p. 09).
de cidade ou saem de casa (...) esse caminho, muitas vezes,
conduz à situação de rua. (Silva, 2006, p. 115).

Enquanto isso, considera a autora que “o papel reservado às mulheres como


reprodutoras e responsáveis pelo cuidado com a prole, bem como a violência contra
elas, inibe-as de recorrer a essa estratégia de sobrevivência, de fazer das ruas
espaço de moradia e sustento”. (Silva, 2006, p. 115).

Em relação à variável idade, conclui que a população em situação de rua está


envelhecendo, pois a faixa etária onde se concentra essa população no Brasil varia
entre 25 e 55 anos no período por ela estudado (de 1995 a 2005). Isso, de acordo
com a autora, difere de estudos encontrados em períodos anteriores, nos quais a
população em situação de rua é, de um modo geral, mais jovem.

Quanto à escolaridade, afirma que o percentual de pessoas em situação de


rua que cursou entre a 1ª e a 8ª série do Ensino Fundamental está, em média, em
68,70%; assim como também vem aumentando a média das pessoas que sabem ler,
que atualmente está em 70,04%. Ao tratar especificamente de São Paulo, a autora
refere que os dados específicos corroboram os dados gerais, mostrando que a
escolaridade entre as pessoas que moravam em albergue em 2005 é mais alta entre
pessoas de até 30 anos, sendo que 33% destas ingressaram no Ensino Médio. Do
total de pessoas entrevistadas nestes estudos, 5% chegaram a ingressar no Ensino
Superior e 2% o concluíram. A autora, baseado nos dados encontrados, afirma a
possibilidade de estabelecer nexos causais entre escolaridade, desemprego e a
situação de rua dos entrevistados, já que no período a que se referem (1995-2005) o
desemprego atingiu os grupos de pessoas que possuíam níveis mais elevados de
escolaridade.

Em relação à origem das pessoas em situação de rua, na cidade de São


Paulo há crescimento do número de pessoas que são provenientes do mesmo
Estado, diminuindo o percentual de migrantes e pessoas oriundas da área rural. Há
uma participação crescente da capital do Estado de São Paulo na composição da
população em situação de rua brasileira, principalmente entre as pessoas mais
jovens.

Quanto ao tempo de permanência nas ruas, a autora explica que esta é uma
variável importante, mas difícil de ser mensurada, pois nenhuma das pesquisas nas
quais se baseou explicita os critérios utilizados para defini-la. Mesmo com isso, Silva
(2006) afirma que há uma elevação do tempo médio de permanência nas ruas ao se
comparar os dados de 1995-2000 com os de 2000-2005. Sobre os mesmos, a
autora propõe três inferências. A primeira relaciona o fenômeno população em
situação de rua com as mudanças recentes no mundo do trabalho ocorridas no
Brasil, na década de 1990, inclusive tomando o fato de que o período apresenta uma
das mais elevadas taxas de desemprego do século. A segunda inferência diz
respeito à falta de formulação e implementação de políticas públicas em âmbito
federal para enfrentar essa problemática, mesmo com o argumento do aumento do
tempo de permanência nas ruas dessa população. A terceira inferência refere que as
mudanças recentes no mundo do trabalho, suas manifestações e efeitos, se refletem
no perfil da população de rua, explicando a centralidade das relações com o trabalho
que esta população desenvolve no conjunto das determinações do fenômeno. A
autora entende que as manifestações e efeitos das mudanças no mundo do trabalho
compreendem

O aprofundamento do desemprego e do trabalho precarizado e


a conseqüente expansão da superpopulação relativa ou
exército industrial de reserva; a queda na renda real média dos
trabalhadores; a regressividade dos direitos sociais; os limites
de abrangência e cobertura das políticas sociais; elevação dos
índices de pobreza e o aprofundamento das desigualdades
sociais. (Silva, 2006, p. 123).

Ainda segundo a autora, os dados encontrados mostram que, em relação aos


vínculos familiares, apenas 10% das pessoas em situação de rua estão
acompanhadas de algum familiar. Silva (2006) discute que isso representa uma
fragilização e/ou rompimento dos vínculos familiares anteriores, mas não significa
que as pessoas em situação de rua permanecem sozinhas nas ruas. Existem
possibilidades de constituição de relações com outras pessoas em situação de rua
que se aproximam a uma nova família. E lembra que, muitas vezes, os vínculos
familiares encontram-se fragilizados antes da situação de rua e diversos outros
fatores – além da situação de viver na rua – dificultam que sejam restabelecidos.
Considera, ainda, que a ausência ou insuficiência de renda para a manutenção da
família é elemento relevante, ao se discutir a fragilização e rompimento dos vínculos.
Da mesma forma, a capacidade de ter sido absorvida pelo mercado de trabalho é
fator relevante para a reconstrução dessas relações.
Sobre as relações de trabalho estabelecidas antes da situação de rua, a
autora assevera que a grande maioria das pessoas chegou a ter experiências de
trabalho, mesmo que precárias. Em média, 72% das pessoas em situação de rua
afirmam ter uma profissão ou já ter trabalhado antes da condição de rua.

As relações de trabalho estabelecidas na condição de rua, bem como as


ocupações laborais, responsáveis pela sobrevivência dessa população são,
sobretudo, precárias. Para além da prática de mendicância, as atividades realizadas
para obtenção de dinheiro constituem-se pelos “bicos” 6, sendo que, na cidade de
São Paulo, esta prática abrange 81,09% das atividades. Dentre estas, as atividades
de catação de materiais recicláveis tem importância crescente.

Há, ainda, autores como Borin (2003) que, acreditando que a problemática da
população em situação de rua deve ser tratada no contexto das discussões sobre a
pobreza urbana e não como um fenômeno isolado, estabelece um paralelo entre o
perfil da população em situação de rua e de pessoas que moram em cortiços e
favelas, afirmando que possuem mais semelhanças do que diferenças, tendo em
vista que ambas as situações podem ser tratadas no âmbito das mudanças recentes
no mundo do trabalho, bem como suas manifestações e efeitos.

Esses trabalhos são importantes referências para a caracterização da


população em situação em situação de rua no Brasil, acrescentando dados ou
iluminando aspectos que, muitas vezes, surpreendem, já que o senso comum
costuma reproduzir um conjunto de preconceitos, quase sempre associados à
culpabilização individual de seus componentes.

B) Estudos que tratam das origens do fenômeno “população em


situação de rua”
As condições histórico-estruturais que deram origem e
reproduzem continuamente o fenômeno população em
situação de rua nas sociedades capitalista são as
mesmas que originam o capital e asseguram a sua
acumulação, resguardadas as especificidades
históricas, econômicas e sociais. (Silva, 2006, p. 79).

Autores como Bursztyn (2000), Borin (2003), Barros (2004), Organista (2006)
6
Silva (2006) define os “bicos” como sendo “atividades que não tem uma continuidade”. (Silva, 2006, p. 129).
e Silva (2006) relacionam o fenômeno atual da população em situação com as
mudanças recentes no mundo do trabalho, partindo da premissa de que esse
fenômeno só é possível devido às condições histórico-estruturais geradas com a
implantação e reprodução do modo de produção capitalista.

Ao promover uma discussão que fixa no mundo do trabalho a origem do


fenômeno da população em situação de rua, autores como Borin (2003), Mattos
(2006) e Silva (2006), partindo principalmente de Karl Marx, fazem uma análise do
trabalho como categoria exclusiva do mundo dos homens e, também, a partir de sua
centralidade na vida humana e da forma estranhada e alienada que adquire nas
sociedades capitalistas.

De acordo com Silva (2006), o surgimento deste fenômeno no cenário da vida


urbana, em várias partes do mundo, se relaciona com o surgimento das cidades pré-
industriais da Europa e teve seus momentos de expansão ou retração ligados ao
desenvolvimento do capitalismo. O fenômeno do pauperismo – no qual também se
insere a população em situação de rua – por meio do qual camponeses e produtores
rurais foram transformados em trabalhadores assalariados, tendo suas terras
expropriadas no contexto da acumulação primitiva do capital e da indústria nascente
no final do século XVIII, compõe o conjunto das condições necessárias de expansão
do modo de produção capitalista pela formação do “exército industrial de reserva” ou
“superpopulação relativa”. Ou seja, responde à necessidade da produção capitalista,
agora mais organizada e independente, para manter a oferta e procura de trabalho,
bem como os salários, atrelados aos interesses dessa expansão. Assim, afirma a
autora, os trabalhadores (...) que só dispunham de sua força de trabalho para
vender – e nem essa foi absorvida pela produção capitalista, compeliu essa
população à situação de absoluta pobreza, vulnerabilidade social e degradação
humana. (...) a reprodução do fenômeno população em situação de rua ocorre no
processo de acumulação do capital, no contexto da superpopulação relativa,
excedente à capacidade de absorção pelo capitalismo. (Silva, 2006, p.75).

Nesse aspecto, concordam com Antunes (2003) - que discute as


transformações do trabalho e suas características no mundo contemporâneo -
autores como Organista (2006) e Silva (2006), entre outros, ao defenderem a tese
de que, apesar dessas transformações recentes no mundo do trabalho e da
reestruturação produtiva, que reduzem a oferta e a criação de postos de trabalho e
precarizam as relações trabalhistas que perduram, atualmente o trabalho permanece
como categoria central da estruturação capitalista e determinante das relações
sociais.

Organista (2006), inclusive, promove discussão acerca de alguns autores que


defendem a permanência da centralidade do trabalho em nossa sociedade e de
autores que defendem o fim dessa centralidade, comparando esses aspectos com
seus achados em entrevistas realizadas com trabalhadores precarizados que
realizam suas atividades no âmbito da rua (camelôs). Concluiu defendendo a
permanência da centralidade do trabalho mesmo para essa parcela da classe
trabalhadora7 porque as mudanças recentes no mundo do trabalho não estão
levando a uma produção simbólica que referende, no mundo cotidiano, a idéia de
que estaríamos vivendo num mundo mais livre das amarras do trabalho. Afirma o
autor que, em sentido oposto, (...) as transformações no mundo do trabalho não se
restringem a ele, mas abrangem todas as relações sociais, emitindo um alerta de
que o trabalho (...) desperta, na sua falta, uma era de incertezas, desesperanças e
angústias, para aqueles que sofrem diretamente com o desemprego, bem como
para aqueles que o cercam (Organista, 2006, p. 20)

Acerca dos sentidos que o trabalho admite, a partir dos discursos dos
próprios entrevistados, afirma que os camelôs constroem suas representações como
trabalhadores e vêm suas atividades para além da satisfação das necessidades
imediatas. Como posição unânime entre os entrevistados, o sentido do trabalho não
é restrito ao “manter-se vivo” sendo composto também por questões valorativas
como moral, direito e justiça. (Organista, 2006).

Por fim, tendo em vista a abordagem de casos singulares realizadas pelo


presente estudo, acredita-se ser relevante destacar as considerações de Borin
(2003). A autora defende a permanência da centralidade do trabalho nos diais atuais
a partir de generalizações dos processos de trabalho, visando o entendimento do
papel do trabalho na reprodução da sociedade. Chama atenção, assim, para que
não se tente enxergar o trabalho como categoria fundante dos homens partindo de
processos singulares de trabalho, pois

7
O autor inclui os camelôs na parcela da classe trabalhadora que realiza seus trabalhos no âmbito da economia informal, sob
condições precárias de realização. (Organista, 2006).
Nenhum ato de trabalho em sua singularidade pode exercer
todas as funções sociais que, no interior da reprodução de uma
sociedade, em um dado momento histórico, são requeridas do
trabalho em sua totalidade. (Borin, 2003, p. 131).

C) Estudos que enfocam relações entre políticas sociais e pessoas em


situação de rua
Por um lado, esse grupo populacional não tem acesso
ao trabalho assalariado ou outra forma de trabalho que,
no Brasil, assegura o acesso às políticas de proteção
social aos trabalhadores. Por outro lado, não tem
acesso às políticas sociais dirigidas aos incapazes para
o trabalho (assistência social) porque são aptos para o
trabalho, embora não estejam usufruindo esse direito.
Assim, enfrentam uma degradação crescente da vida,
em face da pobreza extrema e da ausência de proteção
social. (Silva, 2006, p. 143).

Grande parte dos autores que enfocam a relação entre as políticas públicas e
a situação de rua discutem e concluem que há falta ou ineficiência das políticas
públicas dirigidas a esse segmento da classe trabalhadora. Estudos como os de
Carneiro Jr. e Silveira (2003), Carneiro Jr. et al (2006) e Rosa et al (2005), abrangem
especificamente a políticas de saúde e o acesso aos seus serviços. Outros, como
Varanda e Adorno (2004), articulam suas críticas em relação aos programas sociais
de modo geral, tendo em vista que tratam a população em situação de rua como
“população excedente”. Sendo assim, dizem esses autores, estes programas
apresentam uma forte marca institucional de práticas que objetivam somente a
retirada dessas pessoas da rua e dão poucas possibilidades para que consigam
reestruturar suas vidas. Do mesmo modo, Rosa et al (2005) consideram que as
políticas públicas dirigidas à população em situação de rua são basicamente
compensatórias, assistencialistas e raras vezes visam um projeto de inclusão social.

Questionando a formulação das políticas públicas, diversos autores como


Inojosa (2002), Santos (2004), Abílio (2005) e Itikawa (2006) promovem, também,
uma discussão sobre a organização e o papel do Estado nas atuais sociedades
capitalistas. Partindo novamente de autores marxistas, Silva (2006) concorda com
proposições que consideram que os interesses do trabalho estão em oposição aos
interesses do capital, analisam essas políticas sociais, forjadas no bojo da luta de
classes, como contraditórias, pois devem atender a interesses completamente
distintos, como

Às demandas do capital e do trabalho (...) atender aos


interesses de legitimação da dominação da burguesia e aos
interesses de alargamento da cidadania 8 (...) As políticas
sociais teriam pois, a função de materializar os direitos sociais,
possibilitando uma redistribuição maior da riqueza socialmente
produzida. Porém não são capazes de acabar com as
desigualdades sociais nem tampouco de eliminar a estrutura de
classes sociais. (Silva, 2006, p. 134).

Assim como Santos (2004), que afirma que os determinantes para a


composição de políticas sociais na América Latina “...têm como princípio gerador o
controle da classe trabalhadora (...) em beneficio do mercado produtivo e da
acumulação de riquezas” (Santos, 2004, p. 58), Silva (2006) lembra que, o Estado,
ao trabalhar pelos interesses do capital, deve manter a classe trabalhadora com um
padrão de vida mínimo, ou seja, apenas assegurar a sua reprodução e com isso, a
continuidade dos padrões de acumulação de riquezas. Relacionado à própria
existência do capital, o fenômeno população em situação de rua (superpopulação
relativa ou exército industrial de reserva) sofre com a omissão do Estado, já que a
manutenção desse segmento da classe trabalhadora também interfere
positivamente na acumulação do capital. À vista disso, a autora localiza as políticas
sociais voltadas à população em situação de rua no território da “não proteção” pois
estas não possuem objetivos de melhora da qualidade de vida dessa população nem
muito menos o objetivo de saída da condição de rua. Silva (2006), defende então
que “...o horizonte das políticas sociais deve ser a redução das desigualdades
sociais, em busca da igualdade de condições”. (Silva, 2005, p. 135).

Abílio (2005), se referindo aos termos comumente usados nas formulações do


que denomina “campo das políticas públicas e dos projetos sociais” considera que
os termos-chave são emprestados do vocabulário do marketing e das pesquisas de
mercado, conferindo uma noção de passividade do “público-alvo”, ou seja, das
pessoas beneficiadas. Isto remete a um determinado modo de gestão dos
8
Coutinho (apud Silva, 2006) entende cidadania como a “capacidade conquistada” pelos indivíduos de se apropriarem “...de
bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana aberta pela vida social em cada
contexto histórico...”. (Silva, 2006, p. 134).
problemas sociais, no sentido da criação de uma “tecnologia social” que, por meio
da terceirização das responsabilidades do Estado, os direitos vão se transformando
em benefícios.

Igualmente a Itikawa (2006), diversos autores trazem as políticas públicas a


partir do esvaziamento da noção de direitos que atualmente acontece. Inojosa
(2002) diz ser necessário que se faça uma profunda inversão “...pois a área social
tem sido subordinada às decisões da área econômica e esta não tem os grupos
mais vulneráveis como sua principal preocupação e responsabilidade” (Inojosa,
2002, p. 183).

Autores como Santos (2004), Abílio (2005) e Itikawa (2006) questionam a


lógica de desresponsabilização do Estado e a transferência dessa responsabilidade
à iniciativa privada, terceiro setor, sociedade civil (organizada), entre outros termos
que vêm designar fundações e organizações não-governamentais (ONGs). Trazem,
igualmente, a contestação do papel que as ONGs desempenham na atualidade,
bem como as problemáticas decorrentes do que consideram como lógica de
privatização do Estado.

Santos (2004) acredita que, atualmente, a desresponsabilização do Estado e


a transferência da gestão das políticas públicas para a iniciativa privada (sociedade
civil) culminam no assistencialismo, tratando o efeito do problema e não sua causa.
O “tratamento político” do fenômeno torna-se uma questão técnica. Itikawa (2006)
aponta que as substituições das atribuições que deveriam ser do Estado (poder
público) para o âmbito do “Terceiro Setor” acontecem sem as garantias de
universalização de acesso aos direitos. A esfera pública encontra-se, assim,
dissolvida ou invalidada por critérios que regem a esfera privada. Abílio (2005)
acredita que os interesses em executar as políticas formuladas pelo Estado deixam
de ser públicos quando este “terceiriza sua responsabilidade”, fazendo com que
essa responsabilidade não seja mais localizável.

Alguns autores vão, ainda, discutir a conjuntura que propiciou o surgimento


das ONGs. Nogueira (2005) traz uma análise de que estas originam-se dos
movimentos sociais antes da década de 1990, e sob a lógica e perspectiva de
mobilização e enfrentamento ao Estado. Para ela, porém, a partir dos anos de 1990
são fundadas ONGs que vinculam-se e estabelecem relações de dependência com
o setor privado, voltando-se ao lucro empresarial. Essas entidades desenvolvem
ações que a autora define como “filantropia empresarial” que, contraditórias em sua
essência, integram-se ao cenário social e estabelecem uma lógica de apoiar a
reestruturação do capitalismo em detrimento da formação política (antes trabalhada).
Alinham-se, assim, aos ideais do projeto neoliberal e usam o discurso de origem
socialista para destituí-lo de sua referência histórica e delimitando-o a uma franquia
de conceitos. Assim, aponta, “(...) a crítica se uniformiza – torna-se homogênea –
perdendo-se entre a “falácia” e as ações institucionais” (Nogueira, 2005, p. 120).

Para Lopes (2006) as ONGs surgem na disputa do que denomina “fundo


público” e disputam projetos sociais distintos ao se apropriarem desses fundos
geridos pelo Estado. Reforçam o argumento de que o Estado deve ser reformado
sob a ótica neoliberal, ao desobrigá-lo de deveres contratados com a sociedade. E,
ao contrário de organizar os sujeitos através de suas reivindicações, enfraquecem a
luta, por exemplo, dos sindicatos.
3. O PROGRAMA EMERGENCIAL AUXÍLIO DESEMPREGO – FRENTE DE
TRABALHO ESPECIAL

O Programa Emergencial Auxílio-Desemprego aplicado à população em


situação de rua – a Frente de Trabalho Especial – desenvolveu-se como parte do
Programa Emergencial Auxílio-Desemprego, que é programa do Estado de São
Paulo, criado pela Lei nº 10.321 de 08 de junho de 1999 e regulamentado pelo
Decreto Estadual nº 44.034 de 08 de junho de 1999. Segundo informa, o programa
implica seus beneficiários na prestação de serviços de caráter público, de interesse
comunitário local, com duração de seis horas diárias de trabalho, cumpridas em
órgãos públicos (sendo que os “frentistas” não podem substituir servidores e
empregados desses órgãos). Oferece, em troca, uma bolsa auxílio mensal, cesta
básica e condições para o deslocamento do “frentista”, além de seguro para
acidentes pessoais e seis horas semanais de qualificação profissional por seis
meses, prorrogados automaticamente por nove meses pelo Decreto Estadual nº
44.731 de 28 de fevereiro de 2000. De acordo com a SERT, o programa tem o
objetivo de intervir na situação de desemprego no estado e buscar “provocar
rupturas com o movimento de exclusão”, de proporcionar ocupação e qualificação
profissional e renda para os desempregados e, ainda, reinserção no mercado de
trabalho. Contudo, a participação no Programa não pode representar nenhum tipo
de vínculo empregatício entre “frentista” e governo.

De acordo com o artigo 12 do decreto 44.034, o desligamento do bolsista do


programa está previsto

I - quando, convocado após seleção, não se apresentar para


início das atividades;

II - quando não observar as normas estabelecidas pela


Administração;

III - quando ausentar-se ou não comparecer injustificadamente


às atividades que lhe forem designadas por 5 (cinco) dias
corridos ou 10 (dez) dias intercalados;

IV - quando deixar de comparecer injustificadamente ao curso


de qualificação por 2 (duas) vezes durante o mesmo mês;

V - quando adotar comportamento inadequado ao


funcionamento do Programa (Estado de São Paulo, 1999).

A publicação do Decreto Estadual nº 49.017 de 06 de outubro de 2004


estabelece emendas ao Decreto nº 44.034, cujas modificações torna o PEAD
acessível à população em situação de rua. Com isso, cria-se a Frente de Trabalho
Especial - uma parceria entre a Secretaria de Emprego e Relações do Trabalho do
Governo do Estado de São Paulo (SERT) e a Secretaria Estadual de Assistência e
Desenvolvimento Social de São Paulo (SEADS). De acordo com a SEADS, o
programa é destinado a pessoas desempregadas a mais de 12 meses, incluindo
pessoas em situação de rua que estejam sendo acompanhadas por Entidades
Sociais parceiras. Segundo as informações disponíveis

O projeto prevê acompanhamento socioeducativo,


acompanhamento psicossocial, cursos
profissionalizantes, orientação e encaminhamento para o
mercado de trabalho. O objetivo dessa iniciativa é
reintegrar albergados e moradores de rua ao convívio
social e familiar.
(www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/social).

Igualmente ao PEAD original, a FTE tem o período de duração de nove


meses e oferece mensalmente bolsa-auxílio no valor de R$ 210,00 (duzentos e dez
reais) e bolsa alimentação no valor de R$ 46,64 (quarenta e seus reais e sessenta e
quatro centavos). De acordo com informações da SEADS, o projeto já atendeu a
mais de mil e cinqüenta pessoas nos últimos três anos de funcionamento.

&Inojosa (2002) comparou o discurso da SERT ao dos participantes das


Frentes de Trabalho. Analisando os conteúdos de diversas publicações da SERT,
como leis e decretos, folhetos e cartilhas emitidos na criação e vigência do PEAD 9,
em 1999 e 2000, considera que da perspectiva da SERT (...) o programa tem caráter
assistencial e essencialmente (...) social, e é voltado para pessoas menos
favorecidas, com pouca escolaridade, mas com enorme potencial de aprendizagem
e força de vontade (Estado de São Paulo apud Inojosa, 2002).

A autora questiona o direcionamento e os objetivos dessa política já que a


mesma não é capaz de ser uma “política social reparadora”, ou seja, ser uma
“política preventiva”. Ao contrário, apesar de no Decreto nº 44.731, de 28 de
fevereiro de 2000, a SERT reconhecer que ”...o número de vagas disponíveis no
9
Programa Emergencial Auxílio-Desemprego é a terminologia oficial atribuída pela SERT às Frentes de Trabalho .
mercado [de trabalho] é insuficiente para atender ao contingente de
desempregados...” e prorrogar o programa automaticamente por mais três meses,
Inojosa defende que o governo articule seus diversos programas, sendo capaz de
controlar a zona de vulnerabilidade onde essas pessoas se encontram.
4. A ORGANIZAÇÃO DE AUXÍLIO FRATERNO E A ASSOCIAÇÃO MINHA
RUA MINHA CASA: um contexto específico para o desenvolvimento do
Programa Frente de Trabalho Especial

No decorrer do trabalho verificou-se que a AMRMC tratava-se de um universo


bastante peculiar para o desenvolvimento das atividades do Programa Emergencial
Auxílio-Desemprego (PEAD), conhecido como Frente de Trabalho ou Frente de
Trabalho Especial (FTE). Sua posição de mantida em relação à Organização do
Auxílio Fraterno (OAF), sua trajetória e características atuais compõem um território
específico, considerando-se o contexto assistencial do município de São Paulo.

Ao promover discussão acerca da Organização do Auxílio Fraterno e das


ações e trabalhos que esta desenvolve junto a pessoas em situação de rua desde
1950, a dissertação de mestrado de Barros (2004) adquire relevância para o
presente estudo. A autora descreve que a OAF iniciou seus trabalhos inspirada nos
trabalhos missionários da Igreja Católica, mas sem possuir nenhum tipo de vínculo
jurídico com ela. Considera que a OAF promove ações que atualmente estão na raiz
do paradigma do trabalho de orientação progressista e comunitário. A ONG sempre
se dedicou a ações que tivessem como meta a reinserção produtiva de homens e
mulheres (os “assistidos”) apesar de não contar com projetos específicos sobre isso.
Desse modo, os “assistidos” participavam de atividades formativas e de lazer nos
albergues, oficinas de trabalho, pensões e casas de acolhimento mantidos pela OAF
e recebiam acompanhamento psicológico e de assistência social. Esses locais eram
também destinados à higiene pessoal e convivência e locais onde essas pessoas
poderiam dormir.

A autora refere ainda que, após um momento de reorganização da OAF,


ocorrido a partir de uma avaliação do trabalho que vinha sendo realizado (por volta
de 1994) foram desenvolvidas pela equipe que desenvolviam suas ações (pessoas
religiosas, missionários da Igreja Católica e colaboradores) críticas em relação a
enxergar “os assistidos” como “objeto” e sobre a possibilidade de que as atividades
estivessem imbuídas de um caráter caritativo, sendo desenvolvidas em função de
crises de consciência dos missionários. Isto teria gerado, segundo a autora, um novo
movimento e teria sido este o momento de surgimento da Associação Minha Rua
Minha Casa. Assim, o projeto da AMRMC foi pensado no âmago das proposições
que preconizavam que a OAF deveria voltar às ruas do centro de São Paulo para
trabalhar com aqueles com os quais nem mesmo a Igreja trabalhara. Essa nova
orientação da OAF que, de acordo com a autora, é de “corte comunitário” fez com
que esta ONG encerrasse suas atividades junto a albergues, pensões e casas que
mantinha. O trabalho a ser desenvolvido com o “povo da rua” deveria adquirir um
caráter para além do atendimento baseado na vocação religiosa, pautados em
valores como a defesa da vida, a fraternidade de atenção aos mais pobres e o
compromisso e compaixão com sofredores (Barros, 2004). Já Altemeyer Jr. (2006),
refere que a orientação foi somada a perspectiva de luta social, surgindo daí
iniciativas como a de organização do “Dia de Luta do Povo da Rua”.

Atualmente a Associação Minha Rua Minha Casa atua junto a pessoas em


situação de rua desde 1994, sendo importante referência na região central da
cidade. Localiza-se nos baixos do viaduto do Glicério, que foram cedidos em
comodato pela Prefeitura de São Paulo. Considerando as categorias definidas no
PLAS10, a AMRMC atua como Núcleo de Serviço e Convivência, cujo funcionamento
é diurno e tem a função de prestar “atendimento voltado à reinserção social de
pessoas em situação de rua” e oferecer “espaços adequados para cuidados
pessoais, incluindo alimentação, e para o restabelecimento de vínculos sociais”.
(SMADS, 2006, p. 80).

De acordo com Lucca (2002) Conta com equipe multidisciplinar de


educadores (profissionais do serviço social, pedagogia, terapia ocupacional,
psicologia) e um diretor operacional que atuam de modo articulado, o que não é
usual entre as ONGs do município de São Paulo. Oferece espaço de convívio,
acolhimento, realização de atividades cotidianas (banho quente e alimentação, entre
outros) e de produções coletivas (grupos de discussão, projetos educativos e
culturais, oficinas de atividades artesanais e de geração de renda, entre outras).
Atende atualmente cerca de 200 a 220 pessoas diariamente, de segunda à sábado.
Classifica os usuários nas categorias de associado, participante das 10 e
participante, que indicam o grau de compromisso e, portanto, os benefícios e

10
Plano Municipal de Assistência Social, “PLASsp/2006”, da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
(SMADS), da Cidade de São Paulo, inserido “no processo de concretização do Sistema Único da Assistência Social – SUAS e
de adequação à Norma Operacional Básica – NOB SUAS / 2005”.
responsabilidades dos mesmos com a AMRMC. Essa classificação substituiu a
classificação anterior, que propunha associado, usuário-participante e usuário.

Funciona de segunda a sábado, das 8h às 17h, sendo que no período da


manhã é aberta somente aos associados e, depois das 10h, também aos
participantes das 10, para que, além de trabalhar, possam usufruir os serviços
oferecidos como banho e lavagem de roupas. No período da tarde, a partir das
13h30, a associação tem suas portas abertas, oferecendo seus serviços aos
participantes interessados que se proponham a obedecer regras básicas de
convivência e não estejam alcoolizados. A AMRMC não permite a entrada de
bebidas alcoólicas em se ambiente.

A AMRMC é uma “Entidade Social parceira” da SERT e da SEADS no


Programa Emergencial Auxílio-Desemprego, já tendo abrigado três edições do
programa. É responsável por fazer a indicação das pessoas que serão beneficiárias
(bolsistas) do PEAD e atribuir e supervisionar as atividades de trabalho que estas
vierem a exercer.
5. PERFIL DOS ENTREVISTADOS

Como referido anteriormente foram selecionados 15 (quinze) sujeitos, por


método de sorteio, participantes da Frente de Trabalho no âmbito da AMRC.
A composição do perfil dos sujeitos da pesquisa foi possível a partir das
informações registradas em diário de campo que, ao serem trabalhadas inicialmente,
demonstraram a necessidade da coleta mais sistematizada de algumas informações
que pudessem caracterizar as pessoas que estavam participando da pesquisa. Em
primeira instância, essa coleta disse respeito às variáveis idade, sexo, escolaridade,
estado civil, situação de rua (tempo de permanência nas ruas), relações de trabalho
antes da condição de rua e relações atuais de trabalho (em relação à Frente de
Trabalho).

Conforme já mencionado, o estudo de Silva (2006) propõe análise de


variáveis relevantes para a composição do perfil da população em situação de rua.
Abordando discussões para além das variáveis já discutidas em relatório anterior,
sua obra suscitou, por parte da presente pesquisa, a necessidade de adicionar ao
perfil dos entrevistados discussões que não haviam sido originalmente abordadas
como a origem das pessoas em situação de rua, o vínculo familiar e o uso de álcool
e outras drogas. Tendo sido obtidas através das entrevistas ou estando contidas em
diário de campo, as informações para compor essas outras discussões tiveram
somente que ser sistematizadas e estarão presentes a seguir, juntamente com a
apresentação das demais variáveis.

Em relação à idade, verificou-se que não há concentração de entrevistados


em nenhuma das faixas etárias propostas – entre 20 a 29 anos; entre 30 a 39 anos;
entre 40 e 49 anos; entre 60 e 69 anos: há dois (2) indivíduos na faixa etária dos
vinte anos (entre vinte e vinte e nove anos), quatro (4) indivíduos na faixa etária dos
trinta anos (entre trinta e trinta e nove anos), quatro (4) indivíduos na faixa etária dos
quarenta anos (entre quarenta e quarenta e nove anos), quatro (4) indivíduos na
faixa etária dos cinqüenta anos (entre quarenta e quarenta e nove anos) e, um (1)
indivíduo na faixa etária dos sessenta anos (entre sessenta e sessenta e nove
anos). De acordo com as observações de Silva (2006), pode-se afirmar que a
amostra de quinze indivíduos se encaixa no que a autora define como perfil geral da
população em situação de rua que, em relação à variável idade, diz que essas
pessoas estão envelhecendo já que há grande concentração de pessoas na faixa
etária entre 25 e 55 anos. Na pesquisa, os únicos três sujeitos que estão foram
dessa faixa etária discutida por Silva, estão acima dela (possuem 56, 57 e 63 anos),
ou seja, corroboram com as proposições da autora.

Em relação ao sexo, existe apenas uma pessoa do sexo feminino no grupo


de quinze sujeitos sorteados para participar da pesquisa. Silva (2006) citando os
dados encontrados no censo realizado pela FIPE, em 2003, afirma que no município
de São Paulo existe prevalência de indivíduos masculinos em relação a indivíduos
femininos em situação de rua, o que coloca o perfil dos entrevistados em
consonância com os do município de São Paulo. A autora assevera que grande
parcela dos desempregados no Brasil é composta por homens, o que justifica a
grande prevalência de homens dentre as pessoas em situação de rua. Afirma,
também, que esta característica tem ligação com fatores histórico-culturais, já que
aos homens é reservado o papel de geração de renda para a família e aos homens
após os dezoito anos, é implicada a função do auto-sustento. Em contrapartida,
Silva (2006) expõe que o papel das mulheres como reprodutoras e responsáveis
pelo cuidado com a prole, bem como as possibilidades de sofrerem violência, as
impede ou limita que busquem a rua como estratégia de sobrevivência.

Em relação à escolaridade, a maior parte das pessoas entrevistadas atingiu


somente o Ensino Fundamental. Nove (9) dos quinze sujeitos ingressaram no
Ensino Fundamental, sendo que apenas dois (2) o concluíram e apenas 01 (um)
afirma não saber ler. Em relação ao Ensino Médio, 4 (quatro) pessoas cursaram e
apenas 2 (duas) concluíram seus estudos nesse nível. É relevante dizer que as 7
(sete) pessoas que continuaram seus estudos, apesar de estarem em situação de
rua, concluindo-os ou não, no Ensino Fundamental ou Médio, o fizeram cursando o
ensino supletivo. Não há informações sobre duas (2) pessoas, porém a observação
em campo permite dizer que estes sujeitos sabiam ler e escrever. Nesse âmbito os
achados aproximam o perfil dos sujeitos da pesquisa em relação aos dados gerais
apresentados por Silva (2006), salientando que, nos últimos anos, as pessoas em
situação de rua não são analfabetas e possuem escolaridade mais elevada em
relação às primeiras décadas de manifestação do fenômeno.
Quanto ao estado civil e aos vínculos familiares, a maior parte dos
entrevistados falaram pouco ou não se referiram a esse assunto. Desse modo,
caracterizar o estado civil dos sujeitos bem como a qualidade dos vínculos
estabelecidos com seus familiares foi tarefa difícil. Tem-se assim, dados mais gerais
em relação a essa caracterização.

Dos quinze sujeitos da pesquisa, 7 (sete) estão ou estiveram em situações


informais de casamento e/ou separação sendo que os outros sujeitos têm situações
formalizadas que variam entre solteiro, casado, divorciado e viúvo, sem que haja
predomínio de alguma. Com o registro das informações em Diário Campo, no
entanto, pode-se supor que essa dificuldade em definir o estado civil também é
recíproca por parte dos próprios sujeitos já que a maior parte deles não possui
companhia fixa.

Em relação aos vínculos familiares pode-se afirmar que a maior parte dos
entrevistados contata sua família, mesmo que esporadicamente e o faz via contato
telefônico: 3 (três) sujeitos referem pouquíssimo contato com familiares, sendo estes
sempre por via telefônica; 4 (quatro) sujeitos referem fazer contato esporádico com
familiares, sendo que 2 (dois) estabelecem este contato por telefone, 1 (um) sujeito
faz visitas e 1 (um) sujeito estabelece este contato via carta; 6 (seis) pessoas
contatam freqüentemente sua família sendo que 5 (cinco) indivíduos estabelecem
contato via telefone e 2 (dois) fazem visitas; e, ainda, 2 (dois) sujeitos não tem
nenhum tipo de contato com nenhum membro de sua família. Os familiares
contatados são: mãe, pai, irmãos, sobrinhos, tios, primos, ex-esposa e esposa e
filhos, sem a predominância de nenhum desses familiares. Considerou-se como
exceção em relação ao perfil obtido o caso de 1 (um) indivíduo que mora com a tia e
um primo. Outra exceção foi o caso de 1 (um) indivíduo que voltou a morar com a
família depois da condição de rua mas, permanecendo pouco tempo, voltou à
situação de rua.

Mattos (2006), em relação aos vínculos familiares, afirma que as pessoas vão
sozinhas para a situação de rua, estabelecendo ou não contato posterior com seus
familiares. Afirma que quando há contato é freqüente a omissão da situação em que
se encontram, seja por temerem serem rotulados como fracassados ou por
vergonha. Neste estudo, não foi possível acompanhar a qualidade do contato que os
sujeitos referem ter com seus familiares. Contudo, há dois sujeitos que, em
entrevista, referem não querer estabelecer contato com sua família ou, quando o
fazem, não falam sobre sua situação.

Minha vida é como se fosse um segredo (...) nem meus pais eu


gosto de comentar minha vida, só comento por cima, coisa que
é do dia a dia mesmo... (P. O).

Mattos (2006) afirma que o rompimento total dos vínculos familiares se dá,
quase sempre, em virtude de sérios conflitos e ressentimentos. Porém, Silva (2006)
discute que essas informações não significam que, em condição de rua, os
indivíduos permanecem sozinhos, já que existe a possibilidade de constituição de
relações com outras pessoas em situação de rua, o que pode se aproximar a uma
nova família.

Em relação à situação de rua e ao tempo de permanência nas ruas, tem-


se apenas três (3) sujeitos que estão nessa situação desde a década de 1990 (97,
98 e 99), os demais estão nessa situação após os anos 2000 (2001, 2002, 2003,
2004, 2005 e 2006). Dentre 15 os sujeitos da pesquisa, apenas 03 (três) estão
dentro do perfil geral da população de rua trabalhado por Silva (2006), onde a
maioria das pessoas recenseadas 11 está na rua há mais de cinco anos. Contudo,
pode-se afirmar que, de um modo geral, o perfil das pessoas em situação de rua
participantes da pesquisa corresponde ao perfil geral encontrado no Brasil, que
aponta que o tempo de permanência nas ruas está se elevando cada vez mais,
tendo em vista a minoria da população está na rua há até um ano. No estudo
desenvolvido, apenas 03 (três) sujeitos estão nessa condição.

Em relação ao tipo de moradia que os entrevistados habitavam no momento


da entrevista apenas um (1) sujeito referiu estar dormindo nas ruas e locais públicos,
sete (7) sujeitos referiram dormir em albergue, um (1) sujeito em Moradia

11
Os dados utilizados pela autora advêm do censo realizado pela FIPE em parceria com o município de São Paulo, em 2003.
Provisória12, um (1) sujeito em Hotel Social13, dois (2) sujeitos referiram estar em
ocupação14 e três (3) sujeitos em quarto de pensão ou casa alugados.

Sobre a variável relações de trabalho antes da condição de rua analisou-


se as informações referentes ao último registro em carteira. Dos quinze
entrevistados: oito (8) indivíduos alegam ter seu último registro antes de 1999
(sendo que três (3) não sabem a data exata), três (3) têm registro após os anos
2000 (2004, 2005 e 2006) e um (1) indivíduo diz estar tentando aposentadoria por
idade, sem apresentar outras informações. Referente às funções que exerciam,
todas fazem parte do setor de prestações de serviços. Apenas dois (2) sujeitos não
apresentam esses dados. Assim, pode-se certificar que os sujeitos da pesquisa
estão dentro do perfil geral encontrado por Silva (2006) tendo em vista que todos
tiveram alguma experiência de trabalho, mesmo que informal e/ou temporária, antes
da condição de rua.

Sobre as relações atuais de trabalho, é de especificidade deste estudo que


todos os sujeitos entrevistados estivessem participando do programa “Frente de
Trabalho Especial”, cabendo nesta variável discutir a situação dos sujeitos em
relação ao programa: cinco (5) das quinze (15) pessoas estiveram nas três edições
do programa que aconteceram na AMRMC; seis (6) pessoas estiveram em duas das

12
Moradia Provisória, de acordo com o PLASsp/2006, desempenha “...o papel de porta de saída para a rede de proteção
social destinada ao atendimento da população em situação de rua. Para grupos de no máximo 20 homens, mulheres e idosos,
em situação de rua e em processo de reinserção social. É destinada para pessoas independentes e socialmente ativas. Os
custos da locação e tarifas públicas são subsidiados e profissional habilitado assessora os moradores para a gestão coletiva da
moradia: regras de convívio, atividades domésticas cotidianas, gerenciamento das despesas e inserção em atividades
socioeducativas.” (SMADS, 2006, p. 82)

13
Hotel Social, hospedagem social ou hotel econômico é um projeto de vagas de moradia para a população em situação de
rua no qual a prefeitura de São Paulo estabelece convênios com hotéis da cidade e encaminha homens que tenham alguma
fonte de renda, mesmo que informal, para ocupar estas vagas. “O convênio assegura pernoite, jantar, café da manhã, local de
lavagem e secagem das roupas dos usuários, lavanderia para lavagem de roupa de cama e banho, limpeza dos dormitórios e
áreas de convivência”. (www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/notícias).
14

É razoavelmente comum que a população em situação de rua se insira nos movimentos sociais urbanos que reivindicam
moradia, tendo em vista que as ações desses movimentos consistem em, diversas vezes, promover ocupações de prédios
públicos abandonados para reivindicar a desapropriação dos mesmos. Neste contexto, algumas pessoas em situação de rua
acabam por conseguir espaços de moradia que vão de acordo com sua condição atual, ou seja, são moradias que a principio
não requerem que a pessoa tenha condições financeiras (para o pagamento de aluguel, por exemplo) o que inviabilizaria sua
estada e a faria voltar para as ruas. Por outro lado, como geralmente são geridas pelos próprios movimentos sociais, as
ocupações definem suas regras em assembléias e plenárias que abarcam todos os moradores e, nesse sentido, mesmo que
sendo rígidas, as regras definidas configuram-se como completamente diferentes das que a população em situação de rua
encontra nos albergues e equipamentos públicos.
três edições – sendo que destas, apenas quatro (4) estavam na terceira; quatro (4)
pessoas estiveram apenas na terceira Frente e antes dos nove meses de programa,
três (3) dessas pessoas pediram desligamento e/ou foram desligadas após a
realização das entrevistas. Desse modo, é possível afirmar que a maioria dos
entrevistados esteve em mais de uma edição do Programa, na AMRMC.

Em relação à origem das pessoas em situação de rua, encontra-se 9


(nove) sujeitos procedentes do Estado de São Paulo, sendo 2 (dois) da capital, 6
(seis) de cidades variadas do interior e apenas 1 (um) sem essa definição; 3 (três)
sujeitos procedentes da região Nordeste do Brasil, sendo que só há definição de 1
(um) sujeito que é do município de Fortaleza, no estado do Ceará; 1 (um) sujeito é
procedente do interior de Minas Gerais; 1 (um) sujeito do interior do Paraná; e, não
se têm informações de 1 (um) indivíduo sobre sua origem. Todos os sujeitos que são
procedentes de fora do Estado de São Paulo dizem que, apesar de estarem
morando atualmente na capital, têm histórias de migração intensa e já moraram em
diversos outros locais, o que inclui outras capitais, como o Rio de Janeiro, por
exemplo. Silva (2006) indica que, em relação aos dados da cidade de São Paulo, há
uma diminuição crescente da participação de migrantes e aumento crescente de
paulistas na composição da população em situação de rua na capital o que, mais
uma vez, coloca o grupo das 15 (quinze) pessoas entrevistadas em consonância
com o perfil mais geral das pessoas em situação de rua no município de São Paulo.

Em relação ao uso de álcool e outras drogas, esta é uma variável que se


tem dificuldade de ser analisada tendo em vista que nenhuma das entrevistas
abordou este assunto diretamente, somente com exposição voluntária dos
entrevistados. Desse modo, não temos informações sobre 6 (seis) dos sujeitos da
pesquisa sendo que desses, devido a registros em diário de campo, pode-se afirmar
que apenas 3 (três) não fizeram nem fazem uso atualmente de álcool ou outras
drogas. Em relação à freqüência com que faziam uso de álcool, 2 (dois) sujeitos
afirmam que bebiam bastante e 1 (um) afirma que bebia com freqüência moderada.
Apenas 1 (um) sujeito afirma ter feito uso, além do álcool, também de outras drogas.
Atualmente, apenas 1 (uma) pessoa diz beber freqüentemente e 4 (quatro) beber
esporadicamente, sendo que ninguém refere fazer uso de outras drogas.

Chamam a atenção as histórias de 2 (dois) sujeitos, que tiveram sua trajetória


de ida para as ruas marcada pela presença de uso de álcool e do uso de álcool e
outras drogas. Um dos sujeitos refere ter optado por continuar a usar álcool em
detrimento de morar com sua família, já que sua esposa teria dado um ultimato para
que ele se decidisse e colocado em oposição o uso de álcool e a permanência com
sua família. Reconhecendo-se como alcoolista, o entrevistado diz que se arrepende
de sua escolha por fazer mais de seis anos que não vê os filhos e não ter notícias
dos mesmos. Atualmente, faz tratamento com o grupo Alcoólicos Anônimos. O outro
entrevistado não se deteve nessa discussão, referindo apenas que tinha saído de
casa por motivo de uso de álcool e outras drogas e que, devido a brigas sérias, não
restabelecia o contato com sua esposa e filhos.

Mattos (2006) afirma que as pessoas que estão em situação de rua e não
fazem uso de álcool e outras drogas podem ser consideradas mais organizadas.
Assim, é especialmente relevante para este estudo as 6 (seis) pessoas encontradas
que não fizeram nem fazem atualmente uso de álcool e outras drogas.
6. TRABALHO E COTIDIANO: UNIVERSOS CONECTADOS?

A) AS ATIVIDADES DE TRABALHO DOS BOLSISTAS DA FTE

Os entrevistados relatam que as atividades de trabalho com caráter de


manutenção da AMRMC são divididas em grupos de trabalho supervisionados por
pelo menos um educador, as denominadas equipes. Entre estas são identificadas as
equipes de limpeza, de manutenção e de cozinha. Em períodos anteriores a FTE,
essas atividades eram comuns a todos os associados, pois eram constituintes do
conjunto de obrigações dessa categoria. No entanto, com o início da FTE, essas
atividades foram definidas como parte daquelas por meio das quais os bolsistas
poderiam cumprir suas horas de trabalho devido a adaptações da equipe de
educadores. Desse modo, de acordo com as categorias mencionadas anteriormente,
os sujeitos da pesquisa que realizam estas atividades na AMRMC podem ser
definidos, como bolsistas e associados.

Como, na prática diária, as equipes de limpeza e manutenção desenvolvem


os mesmos serviços, serão descritas como se fossem uma única equipe. Entre os
15 (quinze) sujeitos entrevistados, 3 (três) deles fazem parte dessas equipes.

Os entrevistados relatam, em parte, o que são e como se organizam essas


atividades na AMRMC. Caracterizam-se, na parte da manhã, pela limpeza do pátio e
das mesas e cadeiras que estão lá dispostas, limpeza dos banheiros e algum
serviço de manutenção hidráulica e/ou elétrica que seja necessário. À tarde, as
pessoas que exerceram as atividades de manutenção pela manhã distribuem-se em
atividades de recepção dos participantes, guarda de bolsas e malas no bagageiro,
distribuição das fichas de banho e lavação de roupas e controle desses serviços,
bem como na distribuição dos lanches. Essas atividades acontecem diariamente em
esquema de rodízio, tendo em vista que todos os dias, pela manhã, é realizada uma
reunião que tem a função de dividir as tarefas entre todas as pessoas presentes -
sendo elas da Frente de Trabalho, ou não. À tarde, as atividades também são
rodiziadas, sendo que há apenas 1 (um) sujeito que é fixo na função do bagageiro.
Parece que isso ocorre devido ao fato deste sujeito estar nesta função há bastante
tempo, antes da existência do programa na AMRMC. Além disso, as características
pessoais do mesmo parecem influenciar na decisão de mantê-lo fixado nessa tarefa:
apresenta habilidades necessárias ao manejo das situações que envolvem a
recepção das pessoas em situação de rua que chegam (quase sempre
freqüentadores irregulares) e parece estar totalmente apropriado e satisfeito com
suas atividades. Porém, como essa e outras exceções ao rodízio das atividades não
são tratadas entre os participantes das equipes acredita-se que isto pode ser motivo
de alguns conflitos existentes tanto entre os associados quanto entre associados e
equipe de educadores.

Durante a participação nas atividades da AMRMC pode-se notar que os


objetos constituintes das tarefas citadas são:

- na tarefa de limpeza – materiais de limpeza básicos (pano, rodo, vassoura e


balde);

- nas tarefas de manutenção da rede hidráulica e elétrica – materiais igualmente


básicos (chave de fenda, alicate, fita isolante, pregos e parafusos);

- na recepção dos participantes – caderno de anotação das pessoas que entram


diariamente, ficha de inscrição contendo algumas informações a ser preenchida
quando a pessoa ingressa pela primeira vez, crachás das pessoas que os têm, ou
seja, que estão indo com alguma freqüência;

- na guarda de bolsas e malas no bagageiro – fichas duplicadas a partir dos crachás


para serem colocadas na bagagem para identificação do dono, tiras de papel
rascunho a serem preenchidas em duas vias (uma para a bagagem e outra como
canhoto para que o dono possa retirar a mesma);

- na organização da fila do banho e da lavação de roupas – tabela para ser anotada


em ordem de chegada das pessoas que querem tomar banho e lavar roupas, fichas
de entrada no chuveiro e de permissão de uso do tanque;

- na organização do banho – fichas de entradas no chuveiro, sabonetes que são


entregues às pessoas que vão tomar banho;

- na organização da lavação de roupas – fichas de permissão de uso do tanque,


sabão em pedra entregue às pessoas que vão lavar suas roupas;

- na distribuição dos lanches – touca e luvas para realização do serviço, copos


descartáveis, jarra de plástico, pratos, talheres.
Esses objetos, porém, praticamente não são citados espontaneamente pelos
entrevistados, ao caracterizar suas atividades de trabalho. Mesmo atividades que
exigem alto nível de organização do trabalhador em relação aos objetos
constituintes não são descritas de modo a destacar a presença dos mesmos.

Cada uma dessas atividades de trabalho requisita que pelo menos um


associado a esteja executando, com exceção da atividade de distribuição do lanche,
que necessita de pelo menos três pessoas para encher os copos, distribuí-los e
entregar os pães ou outros acompanhamentos (como bolachas, por exemplo).

As atividades desenvolvidas pela equipe da cozinha contemplam 3 (três)


entrevistados e se caracterizam pela preparação do almoço, servido apenas para
funcionários, associados e participantes das 10 e pela preparação e distribuição do
lanche da tarde para todos os que lá estiverem. Compõem, também, as atividades
da equipe a limpeza da cozinha e a lavação das louças e panelas utilizadas no
preparo dos alimentos. As tarefas de preparo dos alimentos, limpeza da cozinha e
lavação dos utensílios utilizados, bem como a distribuição do almoço e lanche da
tarde, são rodiziadas internamente na equipe. Os critérios dessa divisão não são
claros aos participantes, e estes fazem queixas em relação às características dessas
tarefas (geralmente quando se tornam repetitivas para os que as realizam). Algumas
das atividades de trabalho dessa equipe, como cozinhar, por exemplo, requisitam
habilidades específicas por parte de quem as realiza, o que pode ser o motivo pelo
qual o rodízio não funcione de modo a propiciar distribuição igualitária. É possível
supor que o silêncio dos participantes em torno das questões que envolvem a
relação entre a execução das tarefas e as habilidades individuais esteja na raiz dos
conflitos dessa equipe. No relato dos entrevistados, pode-se notar que consideram
haver um tratamento desigual em relação aos vários participantes, e o interpretam
como injustiça.

São objetos constituintes da atividade da equipe de cozinha, no preparo dos


alimentos: aventais, toucas, luvas, tampas e panelas, colheres de pau, liquidificador,
escumadeiras, conchas, formas e alguns instrumentos utilizados no preparo dos
alimentos como ralador e batedor; para servir o almoço: pratos, copos e talheres. Os
objetos constituintes do preparo do lanche são praticamente os mesmos do preparo
do almoço e os objetos constituintes usados para servir o lanche variam apenas pelo
fato de serem descartáveis. Os objetos constituintes da limpeza da cozinha e
lavação dos utensílios utilizados para o preparo dos alimentos são: pano, vassoura,
rodo e esponja. No horário de almoço são disponibilizados água quente, sabão e
esponja para que as pessoas que comem possam lavar os utensílios (pratos, copos
e talheres) que usam na refeição. Assim, resta à equipe da cozinha lavar apenas os
utensílios utilizados na preparação dos alimentos e para servi-los.

Entre os entrevistados há 1 (um) deles que pertenceu a ambas as equipes e


que, portanto, desempenhou ambas as atividades descritas até aqui – cozinha e
manutenção e limpeza. Quando entrou para a associação e iniciou sua participação
no programa, R. S. realizava as atividades da equipe de cozinha. Porém, de acordo
com o mesmo, o ambiente quente e úmido da cozinha fazia com que ele se sentisse
mal e, em conversas com seu supervisor, conseguiu transferência para a equipe de
manutenção e limpeza em meados do ano de 2007.

Existem, ainda, outros 2 (dois) entrevistados que podem ser considerados


exceções em relação à divisão anteriormente efetivada. Estas pessoas faziam parte
do grupo de geração de renda denominado de grupo de bijuteria, já que a confecção
e venda de bijuterias eram as atividades que estas pessoas escolheram realizar
antes da FTE. Nessa ocasião esse grupo era composto por diversas pessoas e se
reunia duas vezes por semana para confecção de bijuterias, e quantas vezes
fossem necessárias para a realização da venda das peças em feiras, podendo ser,
por exemplo, muito esporádico ou mesmo diversas vezes em uma ou mais semanas
(eram feitas escalas de venda quando havia participação em feiras, de modo que
todos tivessem essa experiência). Como este era um grupo de diversos indivíduos
com vínculo mais regular com a AMRMC - embora em sua maior parte não fossem
associados – com o início do programa vários deles foram selecionados para FTE, e
o tempo despendido com as atividades de confecção e venda de bijuterias passou a
ser contabilizado entre as horas de trabalho no contexto da FTE. Com isso, o grupo
passou a se reunir mais vezes durante a semana, de modo que as horas fossem
cumpridas. Ao longo do tempo, mudanças na orientação do grupo levaram
gradativamente à sua decomposição e os bolsistas foram deslocados para outras
atividades de trabalho. No caso desses 2 (dois) sujeitos da pesquisa, as atividades
de trabalho em que se inseriram foram as de artesanato (confecção de caixas de
presente, porta-copos, etc) e a manutenção e limpeza. Esses sujeitos não foram
considerados como pertencentes aos grupos de geração de renda, pois no momento
das entrevistas as atividades de artesanato não visavam o mercado externo, e a
conseqüente aquisição de renda complementar à da Frente de Trabalho.

Os grupos de atividades de geração de renda, conforme já se mencionou,


vêm adquirindo caráter de cooperativa devido ao seu grau de autonomia em relação
à AMRMC. Estas atividades, assim como as atividades de manutenção da AMRMC,
já existiam antes da implementação do programa FTE, e após esta implementação
sofreram algumas modificações para que permitissem o cumprimento da carga
horária daqueles que tinham se tornado bolsistas. A especificidade destes grupos
em relação às equipes já citadas é que, além de remuneração extra recebida pela
venda de seus produtos e serviços ao mercado externo, as pessoas que os
compõem, em sua maioria, não desenvolvem atividades propriamente como
associados, ou seja, permanecem com vínculo de associado mas não prestam
serviços para a Associação, tendo em vista que suas horas são inteiramente
executadas nas atividades de trabalho que geram renda. Durante o período esses
grupos atuavam no âmbito da culinária, artesanato, vigilância e zeladoria e
jardinagem. Os sujeitos da pesquisa que executam estas atividades podem ser
definidos, conforme descrito anteriormente, como frentistas, associados e
cooperados ou somente como frentistas e cooperados.

O grupo da culinária contempla apenas 1 (um) dos entrevistados. O grupo


reúne-se diariamente (às vezes até mesmo no fim de semana) para a confecção de
alimentos encomendados, o que, muitas vezes, faz com que os frentistas excedam o
número de horas designados pelo programa. O espaço físico utilizado para tal é um
prédio separado da sede da AMRMC, mas também pertence a ela. As atividades de
trabalho realizadas, bem como os objetos constituintes variam de acordo com a
encomenda recebida, ou seja, dentro das tarefas de culinária, as atividades de
trabalho do dia variam de acordo com os tipos de alimentos a serem preparados:
marmitas para almoço e janta, bolos e salgados para festas, entre outros. A
distribuição da renda alcançada pelo grupo acontece mensalmente, ao ser separada
uma parte do total para ficar no caixa do grupo (servindo, por exemplo, de capital
para comprar os alimentos e materiais para as encomendas) e sendo o restante
dividido igualmente entre os membros do grupo. Esta divisão igualitária, segundo
seus participantes, reconhece que todos os componentes do grupo realizam a
mesma carga de trabalho. Este grupo também produz alimentos para serem
“vendidos” nas Feiras de Trocas Solidárias, mas este não é foco principal do grupo.
Nessas ocasiões, as moedas sociais adquiridas são distribuídas igualmente.

O grupo de geração de renda de artesanato contempla 2 (dois) dos


entrevistados. O grupo reúne-se diariamente para a confecção de produtos com
materiais reciclados em prédio separado da sede da AMRMC. Trabalhando com a
perspectiva de produzir para as Feiras de Trocas Solidárias e, principalmente
voltado às encomendas, o grupo possui um volume de trabalho variável, sendo que
nem sempre há trabalho para todos os componentes. Assim, aqueles que são
bolsistas, quando não possuem trabalhos para realizar pelo grupo, se inserem nas
equipes de manutenção e limpeza nas atividades que estas realizam a fim de
complementar sua carga horária. Os objetos constituintes das ações desse grupo
são: máscaras e luvas, materiais recicláveis (latarias, caixas de leite longa vida, etc),
pistolas de tinta, pistola de cola quente, parafusos e parafusadeira, rebites e
rebitadeira, furadeira, serras, grandes mesas de madeira, entre outros. A divisão da
renda adquirida com as encomendas, (bem como das moedas sociais adquiridas
nas Feiras de Trocas Solidárias), é realizada de modo igualitário entre todos os
componentes do grupo.

O grupo de geração de renda da zeladoria e vigilância sofreu mudanças


desde meados de 2007. É composto por 2 (dois) sujeitos desta pesquisa que,
participando da equipe de vigilância e zeladoria do prédio (com escalas de horários
alternadas com outras duas pessoas que não pertencem ao programa) também
desenvolviam as mesmas tarefas que as equipes de limpeza e de manutenção.
Contudo, devido às peculiaridades das atividades de trabalho que essas pessoas
exerciam e como complementavam sua carga horária com a tarefa de vigilância em
si, a equipe de educadores optou pela desvinculação desses dois sujeitos da
AMRMC, deixando de ser associados, permaneceram como frentistas. De acordo
com os entrevistados, isto foi necessário para que se pudessem tratar os demais
associados e participantes com a autoridade necessária à função que exercem.
Desse modo, a equipe de vigilância e zeladoria passou a funcionar somente como
um grupo de geração de renda. Recebem complementação em seu salário pelos
serviços prestados, tendo em vista que as atividades de trabalho que exercem
superam a quantidade de horas exigidas pelo programa FTE e devido ao adicional
noturno, quando escalados para trabalhar em tal período. O objeto constituinte das
tarefas de vigia é apenas o molho de chaves, que contém as chaves do portão que
dá acesso ao pátio interno e das salas que dão acesso à administração, biblioteca,
sala de curativos, cozinha, demais salas de oficina.

O grupo de geração de renda de jardinagem e paisagismo, conhecido como


Mutirô, pode ser considerado extinto porque, além de estar sendo composto por
apenas 1 (um) sujeito, o “grupo” não tem conseguido serviços externos à AMRMC 15.
O grupo de jardinagem e paisagismo foi criado em 2005 e prestou serviços para a
prefeitura de São Paulo, cuidando de praças no município, o que proporcionava
renda regular aos participantes do grupo, além da renda advinda da contratação de
serviços particulares. De acordo com o último participante, os motivos por ter ficado
sozinho no grupo foram vários. As pessoas que compunham o grupo não queriam
exercer as atividades de trabalho designadas pelo supervisor ou não se adaptavam
ao trabalho, ou seja, não possuíam as habilidades necessárias. Brigas e
desentendimentos internos também colaboraram para a dissolução do grupo. As
atividades realizadas atualmente pelo único componente do “grupo” são as de cuidar
das plantas que ainda existem na AMRMC e, esporadicamente, “vender” algumas
delas nas Feiras de Trocas Solidárias. Os objetos constituintes das atividades de
trabalho de jardinagem e paisagismo são: pás, enxadas, vasos, pneus velhos (para
plantação), cal, areia colorida (para confecção de terrário), vidros de aquários, entre
outros.

A análise das informações coletadas, particularmente aquelas provenientes


das entrevistas, possibilitou que se apreendesse um conjunto de percepções dos
sujeitos em relação às atividades de trabalho que vêm realizando e como estas
estão presentes em suas vidas.

Os entrevistados referem espontaneamente um conjunto de dificuldades,


impedimentos, limites ou barreiras encontrados tanto na realização objetiva das
atividades de trabalho como nas inter-relações pessoais que integram essas
atividades. De um modo geral, os entrevistados apontam problemas de
relacionamento com outros associados e, em alguns casos, de ingerência de
algumas pessoas em relação ao trabalho das outras, quando trabalham juntas.

15
Esta consideração é baseada no fato de que o “grupo”, atualmente, não se concretiza do modo como se definiu o
funcionamento de um grupo de geração de renda, pois não há mercado externo para que se faça prestação de serviços e nem
possibilidades de acessá-lo tendo em vista que o grupo conta com somente um componente.
Percebeu-se que as pessoas que mais citam este tipo de problema são aquelas que
estão freqüentando a AMRMC há mais de três anos, o que pode significar que
possuem relações mais estruturadas, assim como conflitos mais difíceis de
solucionar. Além disso, nota-se que são mais críticos em relação às dinâmicas
internas da AMRMC, particularmente no que se refere à organização do trabalho.
Assumem papéis e posições diferenciadas frente aos demais.

J. S., que está na AMRMC há cerca de três anos, deixa claro suas críticas ao
dizer

Tem hora que tem uns companheiro que atrapalha pra


caramba, viu? (...) hoje tem um bocado de queima arroz aí,
tudo experto (...) um não ajuda o outro (...) não explica direito,
eles explica mas quer fazer de qualquer jeito (...) sempre tem
aqueles um que são mandão, não manda nada e quer ser o
mandão, entendeu? (...) tem muita gente mandando (J. S.).

Principalmente para os sujeitos responsáveis pelo atendimento na chegada


dos participantes (funções de cadastro e guarda da bagagem de quem chega) e
para aqueles que exercem função relacionada com controle dos demais associados
e participantes (vigia e/ou zeladoria), os desentendimentos relatados acontecem
devido à responsabilidade e ao distanciamento próprio das responsabilidades que
têm com as tarefas que executam. Em relação a isso, E. A. afirma que a situação em
que se encontra e a dos participantes é diferente

Por eles estarem do outro lado, né? Eu falo assim: eu estou


dentro da associação, participo desse grupo de geração e eles
estão lá na rua, eu também estive na rua um dia (...) Problemas
há, mas a gente resolve sempre da melhor maneira possível
(...) problemas da, de comportamento deles aqui, às vezes
alguns extrapolam, alguns querem passar na frente, se exaltam
(...) nós, os zeladores temos que cumprir uma ordem (E. A.).

Ainda sobre isso, F. M. fala sobre a necessidade de distanciamento dos


demais associados e participantes:

Eu estou um pouco, sabe? Um pouco afastado (...) porque eu


também não posso criar aquela amizade e não levar a sério (...)
os único que é meu amigo hoje é os pessoal que trabalha junto,
na equipe que eu trabalho (...) nós não somos apenas um vigia,
né? (...) se nós vê alguma coisa errada e não passar pra eles
[educadores] nós somos errado porque nós vimos e não
passamos pra eles (...) nós não viemos aqui pra Associação
pra fazer vista grossa (F. M.)

Há relatos que referem dificuldades em relação à quantidade de trabalho, à


“correria” em realizar as tarefas ou mesmo em conseguir dividir sua carga horária
entre as diversas atividades que devem ser feitas. Estes relatos estão presentes,
sobretudo, nas falas dos sujeitos que, sendo participantes da Frente de Trabalho e
também dos grupos de geração de renda, sentem-se por vezes confusos para
cumprir suas horas e, por vezes sobrecarregados de atividades.

Conforme se mencionou, houve mudanças nas equipes e nos grupos de


geração de renda desde a implementação da FTE, acarretando mudanças não só
nos tipos de atividades de trabalho exercidas, como também na quantidade de horas
de realização das mesmas. A sobreposição das atividades de trabalho da FTE em
relação às atividades próprias da AMRMC parece ter gerado dúvidas que persistem
em J. P., por exemplo, que refere ter problemas ao não conseguir definir a equipe a
que pertence.

Em relação às dificuldades apresentadas, há apenas uma exceção: a pessoa


que está sozinha no “grupo” de jardinagem e paisagismo não apresenta dificuldades,
impedimentos, limites ou barreiras na execução de suas atividades de trabalho, pois
seu problema é ainda anterior: não ter atividades de trabalho para realizar.
Demonstrando angústia frente à não realização de atividades de trabalho pela falta
das mesmas, L. F., apresenta dificuldades inclusive em comentar sobre seu
cotidiano.

Considerando as dificuldades relatadas, pode-se afirmar que a disposição por


parte dos sujeitos em propor soluções está, majoritariamente, no âmbito das
estratégias comportamentais (que devem ser) adotadas para superar essas
dificuldades e/ou favorecer a realização das atividades e/ou inter-relações pessoais
no âmbito do trabalho. Chama a atenção o fato de que a maioria dos relatos se
refere a um comportamento que o próprio entrevistado refere ter e que, ainda que
não afirme explicitamente acreditar que seja um exemplo a ser seguido, nota-se que
a construção de seu argumento denota este objetivo. As estratégias citadas são
basicamente de dois tipos: aquelas em que as pessoas se esforçariam para
executar as regras – chegar no horário, não faltar sem justificativas, cumprir todas as
horas, etc; e aquelas nas quais as pessoas fariam coisas para além do que lhes é
designado – trabalhar mais do que deve, fazer várias atividades e ajudar em tudo o
que for preciso. Não foi possível particularizar os entrevistados que fazem
referências a um ou outro tipo de estratégia, no que diz respeito ao perfil levantado
pelo estudo. Aparentemente, isso significa que esses conteúdos estão ligados às
histórias de vida e trabalho dessas pessoas. Porém, considerando as peculiaridades
da AMRMC, pode-se supor que essas estratégias estejam referidas a um conjunto
de valores permanentemente transmitidos pela mesma, por meio dos quais o
trabalho é moralmente valorizado.

Com menos freqüência, os entrevistados fazem apontamentos que propõem


modos de organização das atividades de trabalho como, por exemplo, que sejam
feitas e seguidas escalas de serviço para a divisão do trabalho na equipe de
cozinha. E, em relação aos desentendimentos entre os componentes das equipes,
propõem que se defina a pessoa que “manda”, ou seja, que haja uma definição mais
clara de quem exerce a função de coordenar o grupo.

Os sujeitos responsáveis pelo atendimento na chegada dos participantes e


aqueles que exercem função relacionada com controle dos demais associados e
participantes dizem que a maneira de superar as dificuldades que encontram no
relacionamento, por vezes conflituoso, encontra-se na forma como eles próprios
lidam com as mesmas, ou seja, devem considerar a situação na qual elas se
encontram e demandar postura cordial.

As pessoas vêm e já têm... Sempre tem uns mais, é... Sei lá,
um pouco nervoso com a situação dele, né? Na rua (...) Então
a gente atende direitinho e vai levando, né? (P. S.).

E.A. diz, ainda:

Com os usuários [participantes], na parte da tarde, [tenho] um


relacionamento muito bom (...) a gente quando tem que pedir
(...) a gente chega, conversa (...) Problemas há, mas a gente
resolve sempre da melhor maneira possível. (E. A.).

Considera-se no âmbito das soluções materiais, criações, estratégias


comportamentais e/ou maneiras adotadas para superar essas dificuldades e/ou
favorecer a realização das atividades e/ou inter-relações pessoais no âmbito do
trabalho apenas duas exceções relevantes. A primeira diz respeito a um único
entrevistado, que refere ter vontade de desistir de trabalhar na AMRMC e ir embora,
devido aos conflitos que encontra. Mas refere motivo religioso para explicar o porquê
de não ter levado à cabo esta idéia. A segunda exceção se refere ao entrevistado
que não possui atividades de trabalho, apontando, portanto, a procura de serviço
externo e o futuro desligamento do “grupo” como solução possível para sua
situação. Demonstrando se incomodar com tal fato, L. F. parece acreditar que a
entidade deveria se responsabilizar por proposições que sanassem seus problemas
em relação às atividades de trabalho, ao mesmo tempo que confere descrédito a
essas ações:

Isso aqui não vai mais pra frente (...) os grupos aqui não vão
pra frente, todos os grupos foram fechados (...) Você não pode
ficar num lugar que não dá o futuro (...) O grupo está no fundo
do poço (L. F.).

Nos relatos dos entrevistados é praticamente unânime a presença de


considerações acerca do status de trabalhador daqueles que estão na FTE e/ou de
que as atividades que realizam são atividades de trabalho. É possível, assim,
estabelecer um paralelo com Organista (2006) que discute a representação que o
trabalho tem na vida dos camelôs que entrevistou, considerando-os como uma
parcela da classe trabalhadora que realiza suas atividades de trabalho no âmbito da
economia informal, somadas a condições precárias de realização, como as ruas. O
autor afirma que os camelôs buscam se afirmar como trabalhadores e se diferenciar
das pessoas que estão na marginalidade e na ilegalidade. Nesse mesmo sentido, ao
criticar a falta de investimento público em pontos de venda de artesanatos, M. N.
tenta promover essa diferenciação:

Eu acho que o prefeito deveria ter, deveria dar valor nos


trabalhadores (...) ele deveria dar mais a valor à gente, porque
nós somos morador de rua, mas só que a gente somos aqueles
morador de rua que quer se levantar e quer ser alguém na vida,
entendeu? (M. N.).

Justificando essas falas, Organista (2006) explica que no Brasil há um forte


“vínculo simbólico” do trabalho como dever moral, já que não é qualquer trabalho
que é visto como portador de uma conduta moralmente aceita, assim, há uma
“...necessidade imperativa de os camelôs constituírem suas representações como
trabalhadores em oposição aos malandros”. (Organista, 2006, p. 19). Desse modo,
trabalhadores como os camelôs promovem tentativas de estabelecer uma oposição
entre trabalho e vadiagem, o que parece acontecer também com as pessoas em
situação rua integradas na FTE.

Foram bastante freqüentes as idéias de que a importância do ato de trabalhar


se refere às possibilidades de estabilização de outras esferas da vida, indo além do
que Organista (2006) chamou em seu estudo de “pura estratégia de sobrevivência”.
O autor afirma que, como posição unânime entre seus entrevistados, o sentido do
trabalho não é restrito ao “manter-se vivo” sendo composto também por questões
valorativas como moral, direito e justiça. Para o autor

A atividade de camelô vai além de pura estratégia de


sobrevivência para aqueles que a executam (...) ser trabalhador
é construir sonhos, desejos e perspectivas de futuro que se
fundam no trabalho, mas que se remetem para além dele,
fatores que se esvaem quando se está sem trabalho algum.
(Organista, 2006, p. 24).

Foi relativamente pouco expressa a idéia de que estudar cria possibilidades


de aquisição de um futuro emprego. As poucas pessoas que o fizeram parecem
articular essa idéia a tentativas de se eximirem da culpa que acreditam ter por
permanecerem em situação de rua, reproduzindo o discurso de auto-culpabilização.
Como discutem Mattos e Ferreira (2004) há, entre as pessoas em situação de rua,
uma apropriação do “conteúdo ideológico da culpabilização”, o que em alguns
momentos parece mobilizar tentativas de articular explicações sobre as razões de
sua permanência na rua, mesmo não tendo sido solicitados a fazê-lo.

Foi comum que surgisse no decorrer dos relatos dos entrevistados, suas
impressões sobre a FTE e/ou sobre a AMRMC. Conclui-se que foram duas as idéias
mais freqüentes em relação ao programa e/ou às atividades de trabalho que o
compõe. A idéia de que a FTE auxilia seus beneficiários foi bastante freqüente,
contudo, essa ajuda, seja através do ganho de renda temporário e/ou da
possibilidade de aquisição de experiência/profissão (através do curso obrigatório
oferecido) é sempre vista como um “quebra-galho” ou uma “colher de chá” oferecida
pelo governo estadual. Essas considerações se relacionam fortemente ao valor da
bolsa oferecida (duzentos e dez reais em dinheiro e quarenta e seis reais e sessenta
centavos em vale-alimentação), o que, de acordo com os entrevistados, impede que
sejam executados planos de sair do albergue, por exemplo, e mudar-se para
equipamentos que requerem alguma contribuição financeira por parte dos usuários
como as moradias provisórias, ou ainda, a mudança para quartos de pensão ou
casas alugadas, já que o valor necessário para tal é, muitas vezes, inviável aos
frentistas. Nesse sentido, as idéias geralmente se caracterizam por expressões
como “melhor do que nada”, “é pouco, mas vai levando”, entre outras da mesma
natureza. Freqüentemente, o valor conferido à FTE é ponderado em relação ao
extremo vazio de opções existentes para quem está na situação de rua, sendo
possível aos entrevistados supor que ela tem o genérico objetivo de “melhorar a
vida” destes. Assim, aponta R. R.:

Eu acho que essa Frente de Trabalho é pra, pra melhorar a


pessoa pra sair da rua, né? (...) Tem que dar chance praqueles
que querem trabalhar, quebra um galho por isso (...) Acho que
essa Frente de Trabalho que arrumaram aí é pra pessoa
melhorar de vida, né? Pelo menos sair da dificuldade, porque já
tá ganhando um pouco. (R. R.).

A idéia de que o programa auxilia seus beneficiários foi apresentada com


muitas ressalvas, principalmente no sentido de que essa ajuda financeira é efetiva
somente para aqueles que possuem complementação de sua renda (ao estarem
inseridos também nos grupos de geração de renda) ou, daqueles que já resolveram,
ainda que provisoriamente, o problema de moradia, como no caso dos que moram
em ocupações de prédios públicos e não pagam aluguel.

Pra mim está bom, pra mim está ótimo, por enquanto está bom
porque eu não pago aluguel, o dinheirinho que eu ganho aqui
dá pra mim comprar as coisinha pra minha filha, as coisas pra
mim... Pra mim está dando pra viver. (M. C.).

É interessante notar que essas ressalvas em relação a FTE são apresentadas


pela maioria dos entrevistados, mesmo por aqueles que não estão nos grupos de
geração de renda, o que torna essa idéia quase uma unanimidade. Isto pode
acontecer porque, mesmo aqueles que não estão/estiveram nos grupos de geração
de renda e não têm/tiveram sua renda complementada, sabem que isto acontece e
muitas vezes sabem até os valores que seus colegas recebem a mais,
acompanhando a execução de seus planos.
Houve apenas um sujeito que, referindo-se ao programa, afirmou que este
não é somente responsável por auxiliar as pessoas em situação de rua, como
também confere dignidade e auto-estima a seus beneficiários. Isto parece acontecer
porque o sujeito, considerando sua história de vida 16, sente que o trabalho realizado
e o valor recebido são aspectos fundamentais na continuidade de seu vínculo
familiar, já que atualmente mora em albergue e, além de conseguir passar o mês
com o valor da bolsa, oferta cerca de R$ 150,00 (cento e cinqüenta reais) mensais
para sua irmã, conseguindo contribuir com suas despesas. Para J. L. e sua família 17
parece ser fundamental que ele, mesmo depois de tudo o que passou, possa estar
presente deste modo na vida da família.

Desse modo, é possível afirmar que os entrevistados, em sua maioria, fizeram


referências críticas a FTE quanto a sua eficiência. Essas críticas foram estruturadas
em torno de duas considerações principais: a bolsa mensal tem valor menor do que
o salário mínimo – sendo muito pouco o dinheiro efetivamente recebido, e deveria
haver contratação pelo governo estadual, com conseqüente aquisição de direitos na
condição de funcionário público. Essas considerações são apresentadas no sentido
de afirmar que o programa não realiza ajuda efetiva a seus beneficiários partindo de
que, além de pouca, a relativa ajuda é temporária, ou seja, a pessoa pode até
melhorar um pouco seu modo de vida enquanto estiver participando da FTE, mas
quando esta acabar retornará às suas condições anteriores. Sobre esse ponto F. M.
é claro:

Eu sou contra a Frente de Trabalho mesmo. Eu sempre fui, fui


claro, sou contra... Frente de Trabalho, nesse sistema eu sou
[contra]. E mais, quando a pessoa faz a Frente de Trabalho o
ano todinho e não consegue nada, vai direto, pula de novo pro
albergue, de novo, certo? (...) Mas não é aquela coisa de...
Dinheiro... Deixa ele vir tentar pagar um aluguel com duzentos
e dez... Duzentos e dez não tem aluguel não, vai ter que pagar
cento e cinqüenta e vai ficar com sessenta conto ... e vai fazer
o que com sessenta conto? A outra, outra coisa que eu sempre
disse é que era muito pouco e eles, ó, eles tem o poder, não

16
Foi despedido de seu último emprego formal em 1995 e foi para a condição de rua em 2004, porém nunca perdeu contato
com sua família.

17
Neste trecho relativo à ajuda financeira, J. L. considera como família apenas sua irmã e sobrinhos, mesmo tendo sido
casado e ter filhos que, de acordo com o mesmo, já estão casados e possuem suas vidas organizadas.
adianta dizer que tem quando não tem (...) Todo ano a pessoa
é obrigada a estar na Frente de Trabalho porque não tem
recursos mais, não tem recursos, muita gente que precisa da
Frente de Trabalho não pode entrar porque a vaga está cheia,
né? (F. M.).

Embora com outros argumentos, parece que a percepção dos bolsistas sobre
a ineficácia da FTE confirma as considerações de Inojosa (2002), Borin (2003) e
Abílio (2005). Em suas análises, estes autores atribuem a ineficácia de programas
governamentais voltados aos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora
como, por exemplo, a população em situação de rua, à desarticulação entre os
diversos programas sociais existentes; à desarticulação entre as esferas municipais,
estaduais e federal; e, fundamentalmente, à desresponsabilização do Estado em
executar e gerir as políticas públicas, transferindo para o âmbito das ONGs essas
tarefas e transformando, dessa maneira, direitos em benefícios.

Em relação à discussão dos planos e/ou expectativas do futuro sobre


emprego, atividade de trabalho e renda as idéias apresentadas foram,
sobremaneira, influenciadas pelo momento no qual foram realizadas grande parte
das entrevistas, ou seja, o período de transição entre a 2ª e a 3ª edição da Frente de
Trabalho Especial. Desde que foi implantado, o programa apresenta intervalos que
duram pelo menos 3 (três) meses entre o término de uma edição e o início de outra.
Nesse período nunca existe certeza se o programa terá ou não continuidade, o que
se reflete claramente nas falas dos bolsistas entrevistados, através das quais se
observa um forte sentimento de insegurança, pois também não sabem, em caso de
haver manutenção do programa, quais serão os selecionados. É notável que as
idéias permeadas por insegurança tenham estado presentes mesmo em entrevistas
que não se localizaram no período de transição, mas no período de vigência da
bolsa. Desse modo, muitos planos para o futuro apareceram condicionados à
existência de novas vagas na FTE e nunca a novas possibilidades de trabalho. Face
à possibilidade de não renovação da bolsa, as idéias apresentadas foram diversas: a
de se sentir paralisado e não conseguir propor alternativas; a de procurar qualquer
emprego e trabalhar no que aparecer; e, a de desenvolver algum trabalho autônomo
(como confecção e venda de artesanatos ou venda de comidas nas ruas). Todas
elas, porém, não expressam propriamente planos, visto que representam, em
verdade, apenas o retorno à situação anterior de desemprego e desassistência:
Não sei, não sei o que que eu vou fazer quando terminar essa
Frente de Trabalho, viu? (...) Não sei o que que eu vou fazer...
Trabalhar por conta não, não dá, não dá pra mim não, não dá
pra mim não... É muita gente trabalhando (...) Estou definindo o
que eu vou fazer, estou definindo... (J. P.).

Em relação à insegurança sobre o programa, foi encontrada apenas uma


exceção: J. L. revela ter certeza de que estará na próxima edição, pois foi avisado
pela coordenadora da AMRMC e diz que não fará outros planos. É o único a dizer
que tem certeza dos critérios de seleção, dizendo que é necessário que o indivíduo
cumpra às seis horas diárias (trinta semanais) e não falte às aulas do curso de
profissionalização. Sendo este o mesmo entrevistado que se referiu positivamente à
FTE, referindo ganhos de dignidade e auto-estima, pode-se problematizar que suas
declarações são bastante peculiares.

Dos planos expostos pela maior parte dos entrevistados, restaram poucos
que não foram atravessados pelo sentimento de insegurança em relação à
renovação da FTE. Estes planos, porém, são restritos. Ou envolvem a procura por
qualquer emprego ou a vontade de voltar a exercer alguma atividade de trabalho
anteriormente realizada, muitas vezes com a suposta retomada de antigos contatos.
Planos de continuar no programa enquanto puder/conseguir ou de investir esforços
no trabalho do grupo de geração de renda e consolidação da cooperativa foram
manifestados apenas por aqueles que estando nos grupos de geração de renda,
possuem atividades de trabalho que podem ser consideradas mais estáveis.

Com base no exposto, parece correto afirmar que a realização de atividades


de trabalho realizadas no âmbito da FTE não permite projeções dos entrevistados
para além delas mesmas, e não promovem, também, a realização de trocas
materiais e/ou simbólicas com o ambiente externo à AMRMC, o que pode ser
considerado um obstáculo à produção de autonomia.

B) AS ATIVIDADES COTIDIANAS DOS BOLSISTAS DA FTE

No âmbito da terapia ocupacional, a esfera da vida cotidiana comporta


diferentes atividades. As denominadas atividades da vida diária são objeto de estudo
e intervenção da terapia ocupacional desde a origem da profissão, na década de
1920. Embora não seja consensual o uso de uma definição que descreva
inequivocamente as atividades e objetivações que compõem o cotidiano, grande
parte dos autores o definem levando em conta que todo homem realiza um conjunto
de atividades que, repetindo-se diariamente, dão suporte à reprodução da vida. A
cotidianidade consiste, dentro dessa perspectiva, no espaço de satisfação de
necessidades essenciais dos homens. Essas considerações guiaram o presente
estudo, definindo que, por conseqüência, essas atividades não fossem previamente
delimitadas.

Porém, produzir a exposição das atividades que compõem o cotidiano dos


entrevistados é tarefa difícil, tendo em vista que as referências dos sujeitos da
pesquisa às suas atividades fora do âmbito da AMRMC são escassas. Por um lado,
pode-se supor que tenha havido receio ou incômodo em expor particularidades cujo
conteúdo não se quer compartilhar por razões diversas. Por outro, a falta de
referências parece traduzir um certo esvaziamento do sentido produtivo desse
âmbito da vida. Freqüentemente, o repertório de ações e relações sociais cotidianas,
com exceção daquelas relacionadas ao trabalho, é pobre e constituído de poucos
elementos, sejam estes materiais ou humanos. A ausência de informações produz,
também, dificuldades de apreensão quanto aos modos de realização dessas
atividades e sua distribuição no tempo, entre outros aspectos.

Dessa forma, acredita-se ser relevante questionar se o esvaziamento do


cotidiano dos entrevistados se dá, sobretudo, por estarem inseridos em instituições
como os albergues que, possuindo normas rígidas de funcionamento, tendem a
objetivar seus usuários, por meio da diminuição de espaços individuais e na
restrição de sua autonomia.

Merece atenção, contudo, uma tênue diferenciação do cotidiano das pessoas


que, de algum modo, por morarem em outros equipamentos sociais (como moradia
provisória ou hotel social) ou terem moradia autônoma (como casa/quarto alugados
ou ocupações) possuem um repertório menos restrito, e possibilidades de um
cotidiano mais amplo, possibilitando a ampliação de repertórios de atividades e de
relações pessoais fora do âmbito do trabalho.

Essa pequena diferenciação é marcada pelas atividades que alguns sujeitos


da pesquisa desenvolvem “nas horas vagas”, ou seja, nos momentos em que não
estão trabalhando. Ao contrário da grande maioria de albergados, os sujeitos que
possuem outro tipo de moradia referem a realização de outras atividades quando
não estão na AMRMC, inclusive atividades de lazer - é comum recorrerem ao
circuito cultural oferecido pela cidade de São Paulo (cinemas, shows, biblioteca,
teatros, etc). Contudo, considera-se muito forte a marca institucional presente no
cotidiano da maioria das pessoas entrevistadas, à vista de que mesmo fora das
instituições de albergamento, o suas atividades cotidianas estão predominantemente
relacionadas à AMRMC. Ao que parece, os albergues não promovem, também,
qualquer ação de socialização.

Isto posto, pode-se afirmar que a maior parte das dificuldades, impedimentos,
limites ou barreiras referidos pelos sujeitos da pesquisa em relação a suas
atividades cotidianas acontecem no âmbito dos albergues. É constante o
questionamento das regras e da gestão deste equipamento e, por outro lado, para
quem está morando em outros lugares, é constante que as dificuldades se
relacionem com a obtenção de renda para não voltar a morar em albergues.

Muito ruim... pra mim é que nem se fosse uma cadeia, tem
horário pra tudo, é disciplina pra tudo, é muito ruim. Quero sair
de lá, num agüento mais ficar no albergue... gosto não. (R. R.).

A dificuldade em manter-se sóbrio aparece com uma freqüência um pouco


menor, mas chama a atenção o fato de que os entrevistados que se referem a isto
não são somente aqueles que tem sua trajetória de vida – muitas vezes, sua
trajetória de ida para as ruas – marcada pelo uso de álcool e outras drogas.

Em relação às dificuldades encontradas podem ser descritas apenas duas


exceções, ambas relacionadas com vivências de cotidiano diferenciadas das
pessoas albergadas. A primeira exceção diz respeito à dificuldade de relacionamento
que P. O. refere ter com as pessoas que são suas vizinhas na ocupação onde mora.
Ou seja, por possuir vivências e relações inter-pessoais fora da Associação Minha
Rua Minha Casa, adquire um cotidiano pautado também por outras dificuldades,
comuns à maior parte das pessoas.

A segunda exceção está relacionada à condição de M. C. que, por morar em


ocupação com a filha, apresenta dificuldades decorrentes de um cotidiano atribulado
devido à jornada dupla que realiza: trabalhando na AMRMC e cuidando da casa e da
filha.
Levanto de manhã, vou levar a menina pra uma colega minha
tomar conta (...) De lá eu venho pra cá, daqui eu vou pra casa,
daqui eu passo lá, pego ela e vou pra casa. Muito corrido,
minha filha. É a maior correria (...) amanhã volta a escolinha
dela, é... Aí vai ser da casa pra escola, (...) da escola venho pra
cá, daqui eu pego, eu passo na escola e pego ela e de lá eu
vou pra casa, é uma correria... (M. C.).

As soluções materiais, criações, estratégias comportamentais e/ou materiais


adotadas para superar as dificuldades e/ou favorecer a realização de atividades e/ou
inter-relações cotidianas são carregadas de propostas que implicam na poupança
financeira. Esta é vista como a principal estratégia para se prevenir de problemas
futuros. Assim, pelo menos cinco sujeitos da pesquisa afirmam ter alguma quantia
em dinheiro guardada, ou com a AMRMC ou conta bancária, sendo que os valores
citados variam até cerca de R$ 1.800,00 (um mil e oitocentos reais).

Em relação ao uso de álcool parece haver uma ambigüidade. Alguns sujeitos


dizem que bebem de vez em quando para se distrair ou “afogar as mágoas”, sempre
associando suas considerações às dificuldades inerentes à vivência na rua. Sobre
isso, M. N. diz

Eu gasto meu dinheiro com cigarro e às vezes eu fico três


meses (...) sem tomar uma bebida, aí quando eu vejo que a
turbulência está demais, que eu tenho muito pesadelo, eu
começo a tomar uns goles. (M. N.).

Por outro lado, outros sujeitos dizem ter táticas especiais para não beber no
tempo em que não estão trabalhando. As táticas citadas são sair sempre sozinhos,
sem os “amigos de bebida” ou, ainda, há quem diga que não sai para lugar algum
nos fins de semana. Expressões como “antes só do que mal acompanhados”
definem este comportamento. Sendo um pouco menos freqüente, referem também a
idéia de que freqüentar as demais atividades oferecidas pela Associação Minha Rua
Minha Casa18 é uma boa saída para evitar o uso de álcool e outras drogas. Há
apenas um sujeito que diz que sai de casa aos finais de semana somente com
amigos que não bebem e para locais que não ofereçam bebidas alcoólicas.

Propor a complementação de seu cotidiano com a realização de outras


atividades foram soluções propostas apenas por pessoas que não são albergadas e
18
A AMRMC oferece, principalmente aos sábados, atividades de lazer para os associados, como por exemplo, viagens e
passeios culturais.
sempre como sendo um modo “normal” de gerir seu cotidiano. As atividades citadas
foram exclusivamente culturais: ir ao cinema, teatro, aos shows que acontecem
gratuitamente no município e, também, ir à biblioteca. Existem apenas dois
indivíduos que dizem freqüentar a igreja (evangélica). E há apenas um indivíduo que
afirma jogar futebol por diversão quando não está trabalhando. Outro diz que
cozinha à noite ou aos finais de semana.

M. C. continua sendo exceção em relação às demais pessoas entrevistas,


pois apresenta seu cotidiano profundamente ligado a questões implicadas na função
materna.

As representações sobre si e sobre a vida cotidiana dos entrevistados tratam


quase que exclusivamente da condição de rua. Assim como descrevem Mattos e
Ferreira (2004) muito do que é encontrado no discurso da população em situação de
rua é reflexo da ideologia dominante que, impondo “tipificações” 19, fazem com que as
mesmas absorvam o discurso da classe dominante e, muitas vezes, o reproduzam
em sua própria fala e/ou estabelecem entre si mesmas relações que demonstram
essa reprodução. Os autores definem esse fenômeno como sendo a “violência
simbólica”. Nas representações encontradas nas entrevistas, pode-se afirmar que o
conteúdo ideológico predominante foi o que os autores definem como de
“culpabilização”. As idéias mais citadas foram as de que é necessário “correr atrás
das coisas”, “ter objetivo na vida” e querer “se levantar”. De acordo com Mattos e
Ferreira (2004) o conteúdo ideológico da culpabilização, ou seja atribui culpa à
própria pessoa em situação de rua por sua condição. Ao demonstrarem esse
fenômeno, os autores afirmam que é comum que ao explicar os motivos de sua
condição apresentem justificativas parciais,

Segundo as quais a pessoa está em situação de rua porque


não estudou, não soube abraçar oportunidades de emprego ou
não tenha pensado no futuro. (Mattos e Ferreira, 2004, p.52).

Mattos e Ferreira (2004) discutem, ainda, outro desdobramento do conteúdo


ideológico da culpabilização: o conteúdo religioso que afirma que o sofrimento
decorre dos desígnios traçados por Deus. Este conteúdo esteve presente nas falas
de cinco sujeitos deste estudo. São usadas expressões, além das mais comuns

19
Mattos e Ferreira (2004) definem cinco tipificações atribuídas às pessoas em situação de rua: pessoa em situação de rua
como vagabunda; como louca; como suja; como perigosa; e como coitada.
como “graças a Deus”, as como “Deus não quis” ou “muito sem Deus é pouco e
pouco com Deus é muito”. Sobre sua história de vida, A. N. diz

Depois desse sofrimento, né? Passado por isso, se eu não


tivesse passado por isso eu não ia saber dar valor a uma
esposa, aos filhos, família, né? E a gente às vezes tem que
sofrer, da maneira que Deus dá pra gente, porque a gente é
muito orgulhoso, entendeu? (...) da maneira que Deus deu a
minha esposa e meus filho, ele tirou (...) sem querer perdi (...)
Mas, independente de qualquer coisa, tudo tem a ver com
Deus, Deus é natureza, o que ela dá, ela tira, a natureza não
tem como controlar, é só a gente saber viver, né? (...) coisas de
Deus (...) Tudo o que a gente faz hoje, amanhã a gente colhe,
eu penso assim... (A. N.).

Nesse sentido, existe um grande esforço por parte dos sujeitos da pesquisa
de, conforme aponta Organista (2006), se diferenciarem das demais pessoas em
situação de rua, que seriam vagabundas e/ou marginais. As pessoas elaboram falas
preocupadas em se diferenciar das demais pessoas nessa condição a partir da
definição dessa população – pessoas “que querem” e as que “não querem sair
dessa vida” – e da definição dos tipos de amigos que possuem – amigos de
“bebida”, “zueira” versus os amigos “de ajudar”, “amigos de verdade” e outros tipos.

Em relação às representações citadas, aparece a exceção de um indivíduo


que, ao apresentar sua idéias, parece ter partido para uma postura que Mattos e
Ferreira (2004) definem como de crítica e/ou de denúncia. J.M. articula um discurso
crítico incluindo sua própria situação. Segundo relata, ingressou com pedido de
aposentadoria e um processo há três anos, após ter sofrido um acidente de trabalho
e ter perdido o emprego, mas não consegue resolver nem um nem outro processo.
Isto fez com que viesse a ficar em situação de rua e deixasse sua esposa morando
na casa de sua filha, onde não é bem-vindo por não possuir emprego e nem renda.
J. M. faz afirmações dizendo que “o mundo é movido por dinheiro” e que há pessoas
que lucram com a “indústria da fome” e com a “indústria da seca do nordeste”:

Hoje o problema do Brasil é um só: salário alto do político (...)


aí, em festa de rato não sobra queijo (...) É assim, todas as
pessoas que estão presas é porque roubou um botijão de gás,
uma roupa, um relógio, um celular, mas quem faz as coisas de
grande valores, esse não, não tem o privilégio de ser preso
porque a nossa lei é muito frágil. (J. M.).

Em relação aos planos e/ou expectativas sobre o futuro apenas seis sujeitos
revelaram ter expectativas. É importante salientar que, dos nove sujeitos da
pesquisa com faixa etária entre 27 (vinte e sete) e 41 (quarenta e um) anos, cinco
estão entre os sujeitos a expressarem expectativas sobre o futuro.

As falas encontradas referem-se a questões muito pontuais, relacionadas à


aquisição de uma moradia própria ou à melhora em relação ao equipamento social
em que está inserida. Outro conjunto de referências encontrado parece traduzir
vontades e desejos, mas não proposição de ações para que sejam alcançados.
Desse modo, essas falas são expressas no sentido de que os sujeitos possuem
“sonhos” de constituir família e ter uma moradia fixa, por exemplo.

De acordo com Organista (2006) o processo de industrialização conservadora


vivido no Brasil, faz com que a classe trabalhadora projete seus sonhos e desejos
sempre para o futuro, com base no que chama de “mito do progresso e do
desenvolvimento” que é o mecanismo utilizado atualmente pela burguesia como
adequado a “...sustentabilidade da astúcia, da mentira e da governabilidade”.
(Organista, 2006, p. 24). Desse modo, na tentativa de contrariar o senso comum que
imputa a falta de desejos e sonhos às pessoas inseridas em ocupações precárias e
exercidas no âmbito das ruas, o autor afirma que “...não se deixa de sonhar sem
emprego formal, mas se não tiver trabalho algum”. (Organista, 2006, p. 25).

Há, por fim, a exceção de L.F. que, citada durante toda análise, expõe planos
que se relacionam à sua condição de trabalho, ou seja, por estar inserido num
“grupo” que não possui atividades, seu único planejamento se dá no sentido de se
desligar da AMRMC, da FTE e, com isso, ir morar com sua família no interior,
alterando, por conseqüência, alterar seu cotidiano.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito ao trabalho é uma reivindicação necessária
não porque se preze e se cultue o trabalho assalariado,
heterodeterminado, estranhado e fetichizado (que deve
ser radicalmente eliminado com o fim do capital), mas
porque estar fora do trabalho, no universo do
capitalismo vigente, particularmente para uma massa de
trabalhadores e trabalhadoras (que totalizam mais de
dois terços da humanidade) que vivem no chamado
Terceiro Mundo, desprovidos completamente de
instrumentos verdadeiros de seguridade social, significa
uma desefetivação, des-realização e brutalização ainda
maiores do que aquelas já vivenciadas pela classe-que-
vive-do-trabalho.20 (Antunes, 2003, p. 178).

Tecer considerações acerca das possibilidades proporcionadas pelo


Programa Emergencial Auxílio-Desemprego, conhecido como Frente de Trabalho
Especial, aos quinze sujeitos desta pesquisa inseridos em atividades de trabalho na
Associação Minha Rua Minha Casa, entidade parceira da SERT e da SEADS é a
última tarefa a que se propõe esta pesquisa. Para tal, serão considerados os
conceitos de cotidiano e de autonomia utilizados no âmbito da terapia ocupacional
por entender que estes são de extrema relevância para este estudo que se configura
como um estudo terapêutico ocupacional.

No âmbito da terapia ocupacional, a esfera da vida cotidiana comporta


diferentes atividades. As denominadas atividades da vida diária são objeto de estudo
e intervenção da terapia ocupacional desde a origem da profissão, na década de
1920. Embora não seja consensual o uso de uma definição que descreva
inequivocamente as atividades e objetivações que compõem o cotidiano, grande
parte dos autores o definem levando em conta que todo homem realiza um conjunto
de atividades que, repetindo-se diariamente, dão suporte à reprodução da vida. A
cotidianidade consiste, dentro dessa perspectiva, no espaço de satisfação de
necessidades essenciais dos homens.

Em relação a autonomia tem-se, na terapia ocupacional, Kinoshita (1996)


como autor de referência. Ele propõe que não sejam confundidos os conceitos de
auto-suficiência ou independência com produção de autonomia, mas que se
20
Grifos do Autor.
considere a autonomia como a capacidade de um indivíduo que ao criar normas e
ordens e articular os diversos elementos que compõe sua vida, consiga geri-la
conforme as diversas situações que encontrar.

A partir disso, pode-se abordar as questões norte desta pesquisa: a inserção


em atividades de trabalho e renda temporários – através do Programa Emergencial
Auxílio-Desemprego, Frente de Trabalho Especial – é capaz de produzir mudanças
consideráveis na vida dos sujeitos beneficiários do programa? Em outras palavras, a
inserção em ocupação e renda temporários é capaz de produzir autonomia na vida
de pessoas em situação de rua?

Acredita-se, contudo, que não se trata de responder simplesmente sim ou não


a essas questões, tendo em vista que as possibilidades encontradas de respostas
são bastante complexas e dependem de várias articulações. Não se pode esquecer,
também, que este estudo abordou processos singulares de trabalho bem como as
construções histórico-culturais dos sujeitos, o que permite, de certo modo, a
relativização do programa e das atividades de trabalho desenvolvidas.

Não tendo, portanto, a pretensão de responder simploriamente às perguntas


levantadas, deve-se levar em consideração alguns questionamentos que foram
encontrados no decorrer da análise das informações obtidas e que foram postas à
luz das observações realizadas.

Considerando as reflexões feitas por Inojosa (2002) ao comparar o discurso


da SERT ao dos participantes da Frente de Trabalho, analisando os conteúdos de
diversas publicações da SERT, como leis e decretos, folhetos e cartilhas emitidos na
criação e vigência do PEAD, em 1999 e 2000, nota-se que o programa é visto como
de caráter assistencial. Para a autora, o governo não é capaz de controlar a zona de
vulnerabilidade na qual as pessoas que são alvo desse programa estão inseridas.
Pelo contrário, questionando o direcionamento e os objetivos dessa política, afirma
que a mesma não é capaz de ser uma “política social reparadora”, ou seja, ser uma
“política preventiva”.

Abílio (2005), ao estudar programas sociais implementados pela Secretaria


do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) do município de São Paulo,
compara o discurso e os objetivos da SDTS com as percepções e representações
dos bolsistas e das atividades de trabalho que executam. Apesar dos programas
estudados pela autora se desenvolverem em âmbito municipal e a FTE se
desenvolver em âmbito estadual, a relevância das considerações desta encontra-se
no fato de o segmento populacional alvo de ambos os programas são os segmentos
mais pauperizados da classe trabalhadora e, também, por poderem ser encontradas
considerações semelhantes às da autora a partir da análise das diversas falas dos
sujeitos desta pesquisa. Pode-se afirmar, assim, que os sujeitos do estudo
percebem a FTE como uma concessão e não um direito à semelhança dos achados
por Abílio (2005) que refere que os direitos proclamados pela SDTS foram, em sua
maioria, vividos como “a sorte de ser escolhido”, “a ajuda que vem de Deus”, como
“sorte ou azar de receber ou não o benefício”, ou ainda como prêmio. Para ela, isto
determina um deslocamento do campo dos direitos para o do assistencialismo, que
se reflete claramente nos discursos dos entrevistados em seu estudo quanto à
aleatoriedade do acesso aos programas. A autora afirma, ainda, que nos programas
municipais – assim como o que se encontra em relação à FTE – não há clareza
entre os critérios e a seleção de beneficiários, o que resulta em diversas dúvidas e
faz com que os beneficiários estabeleçam comparações entre si.

Questiona-se, assim, se é objetivo do governo do estado de São Paulo,


através do PEAD, proporcionar alterações na vida das pessoas em situação de rua
e, desse modo, se o programa, sem qualquer outra articulação ou parceria – seja
com outros órgãos públicos, seja com outros equipamentos sociais – poderia propor
alguma alteração substantiva na vida dessas pessoas. Em relação, especificamente
à Frente de Trabalho Especial, chama atenção que a coordenação da SERT e a
colaboração da SEADS não foram suficientes para tais proposições. De acordo com
a SEADS, os beneficiários deveriam receber acompanhamento sócio-educativo e
psicossocial, além de orientá-los e encaminhá-los para o mercado de trabalho com o
objetivo de reintegrá-los ao convívio social e familiar. Porém, são as entidades
sociais parceira que são incumbidas de oferecer e supervisionar as atividades de
trabalho do programa, questiona-se, então, se o acompanhamento dos frentistas
ficaria a cargo dessas ONGs e, se elas teriam algum tipo de obrigação de oferecê-lo,
havendo ou não fiscalização da SEADS.

Existem especificidades das relações de trabalho na Associação Minha Rua


Minha Casa que, existindo anteriormente à implantação do programa, trazem
também para este algumas outras questões. Essas questões, conforme já
abordadas, são refletidas negativamente, na maior parte das situações citadas, em
diversos âmbitos como o das relações estabelecidas entre as pessoas que compõe
as equipes, destas pessoas com seus supervisores e com os demais frentistas e/ou
associados e/ou cooperados e participantes. Refletem também negativamente na
maior parte das situações, no âmbito da organização das atividades de trabalho,
resultando em sentimentos de favorecimento de uns e prejuízo de outros.

Foi notável o sentimento de insegurança dos frentistas em relação às edições


da FTE no sentido de não saberem se viria outra edição e, se viesse, se eles seriam
selecionados. Essas inseguranças podem também ser atribuídas ao modo como são
geridas as atividades de trabalho na AMRMC que, sendo estabelecida antes da FTE
e pouco modificadas durante a vigência da mesma, coloca em conflitos os modos
diferentes de gestão para as mesmas atividades de trabalho e pessoas que as
executam, o que reflete considerações negativas na maioria das falas.

O que pode ser observado, inclusive porque ambos pesquisadores conheciam


os sujeitos desta pesquisa antes de seu início, é que não há como afirmar a
existência de consideráveis mudanças na vida das pessoas, que possam delimitar
claramente o período anterior e posterior à FTE. É muito provável, no entanto, que
exista algum tipo de modificação em relação à aquisição regular de renda por parte
de pessoas que, vivendo em situação de rua, não o faziam antes. Porém, isto não
apareceu de forma clara na análise das informações obtidas. Provavelmente, as
preocupações geradas pelo caráter temporário dessa renda podem ser responsáveis
por mais complicações que, de acordo com as falas, acabam se sobressaindo aos
possíveis benefícios. Os sujeitos desta pesquisa apresentaram/fizeram mais falas no
sentido de temerem o fim da FTE e da bolsa-auxílio do que propriamente planos e
expectativas positivas frente ao recebimento da mesma.

As dificuldades dos entrevistados de estabelecer projeções para o futuro,


podem ser também um sinal de que a FTE, realizada no âmbito da AMRMC, não
necessariamente se traduziu em articulações que fossem além do âmbito das
atividades de trabalho e oferecimento de renda temporários.

Desse modo, o estudo parece salientar um aspecto central na discussão:


devido ao caráter temporário e à baixa remuneração oferecida, são geradas poucas
mudanças ao nível das ações e relações sociais cotidianas de seus beneficiados. De
modo geral, não foi possível observar mudanças qualitativas que indicassem a
conquista de novos patamares na condição de existência dos bolsistas, sejam estas
objetivas, relacionais ou ao nível das produções simbólicas. Parece ser possível
afirmar, portanto, que programas sociais isolados, desarticulados de uma verdadeira
política voltada ao enfrentamento das várias dimensões dos problemas da
população que hoje vive nas e das ruas do município de São Paulo tenderão apenas
à manter a situação que está posta.
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ANEXO I

ARTIGO
A INSERÇÃO DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM PROGRAMA

DE TRABALHO E RENDA TEMPORÁRIOS NO MUNICÍPIO DE SÃO

PAULO: POSSIBILIDADES E LIMITES DOS PROCESSOS DE

AMPLIAÇÃO DE AUTONOMIA

Autores: Débora Lacerda Saes e Marta Carvalho de Almeida

RESUMO

Em estudos recentes as pessoas em situação de rua têm sua problemática analisada no

contexto dos processos de inclusão/exclusão social e, particularmente, sob a perspectiva das

mudanças contemporâneas no mundo do trabalho. Alguns trabalhos elegem essa população

como emblemática dos processos de inclusão/exclusão social brasileiros, considerando que

proposições neoliberais incidiram sobre uma realidade onde não houve consolidação de

mecanismos universais de proteção social. De acordo com esses autores, a falta de emprego

tem empurrado parcelas importantes de desempregados a viver ou extrair renda da rua,

“desnecessários” que são ao circuito econômico vigente. A vida na rua é caracterizada como o

limite extremo de uma trajetória de vulnerabilidades, fragilização e desvinculação em várias

dimensões da existência, entre as quais o trabalho tem lugar de destaque. A complexidade do

problema, portanto, tem colocado desafios importantes para a formulação de políticas

públicas, exigindo que estratégias de intervenção dialoguem com uma cultura complexa e

estruturada, típica desses grupos populacionais.

O estudo proposto busca analisar trajetórias de pessoas em situação de rua que são usuárias da

Associação Minha Rua Minha Casa (AMRMC) e têm inserção em ocupação remunerada em

caráter temporário, através do projeto "Frente de Trabalho Especial", uma pareceria entre a

Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho do Governo do Estado de São Paulo (SERT) e


a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (SEADS). Busca identificar,

nessas trajetórias, mudanças relacionadas a essa nova condição (reinserção no mundo do

trabalho) ao nível das ações e relações sociais cotidianas. A coleta de dados é pretendida

através de entrevistas abertas com quinze integrantes do projeto e composição de um Diário

de Campo produzido pelo pesquisador executante ao longo do período em que acompanhará

as atividades que os integrantes realizam na AMRMC. A identificação de processos de ganho

de autonomia, embasados nas concepções da Terapia Ocupacional, pretende contribuir para a

compreensão das repercussões do programa Frente de Trabalho Especial, bem como com o

campo de reflexões e elaborações acerca das intervenções sociais junto a esse segmento da

população.

INTRODUÇÃO

Estudos sobre o problema representado pelas populações em situação de rua têm se localizado

no universo das análises que envolvem os processos de exclusão social. Nesse contexto, o

próprio conceito de exclusão social tem adquirido grande relevância no debate acadêmico

recente, e os estudos sobre a população em situação de rua expressam as críticas atuais sobre

o uso do termo. Em concordância com outros autores tais como Sawaia (2002) e Nascimento

(1994), Juncá (2004) afirma que o uso indiscriminado do termo exclusão social pode levar ao

disfarce ou ocultamento da natureza do problema.

Embora a “exclusão social” como fenômeno não seja atual ou ocorra exclusivamente na

realidade brasileira, apontam-se características específicas dele em nosso país, revestindo-o de

peculiaridades. Nesse sentido, pessoas que sobrevivem ou moram nas ruas dos grandes

centros urbanos brasileiros têm sido discriminadas como novos personagens da exclusão

social, que por sua vez está associada a novas conformações da pobreza. Para Bursztyn

(2000), a lógica econômica que propicia um notável incremento da produção de forma

paralela a uma brutal redução do emprego do trabalho humano empurra populações


empobrecidas no rumo da exclusão. Impasses na relação campo-cidade agravam as

dificuldades de inserção na vida urbana e, na medida em que proposições neoliberais incidem

sobre uma realidade onde não houve consolidação de mecanismos universais de proteção

social, os desempregados são rapidamente envolvidos por processos de exclusão,

desnecessários que são ao circuito econômico. O problema surge, então, como corolário tanto

do agravamento das desigualdades sociais históricas como da incapacidade do poder público

em promover políticas de inserção. Para Tosta (2000), o morador de rua contemporâneo

transformou-se no sujeito emblemático da exclusão social, pois reúne uma série de

características significativas marcadas por ausências e afastamentos que, por serem

interligadas com o trabalho, enquanto fator de produção de identidade social e de uma rede de

relações sociais, produz um certo distanciamento social e uma imagem negativa. Essas

características, associadas ao fato de que a população em situação de rua torna públicos os

espaços privados e colocam a miséria em primeiro plano, causam medo e incômodo à

sociedade em geral. A vida na rua representa um desafio à capacidade humana de organizar a

vida em sociedade.

Em alguns estudos brasileiros, como os de Escorel (1999) e Machado (2000), compreende-se

a população em situação de rua como um grupo que sofreu uma série de rupturas de vínculos

sociais e afetivos envolvendo trajetórias de fragilização, vulnerabilidades e precariedades em

várias dimensões da existência humana, conforme as considerações de Castel (1995). Ao

mesmo tempo, tanto esses quanto outros estudos apontam o fato de que após as trajetórias de

desvinculação com a família, o trabalho, a moradia, o mercado, processam-se na rua

movimentos de reconstrução de vínculos sociais e afetivos e estratégias de sobrevivência

apoiados em uma rede de instituições e organizações que colaboram direta ou indiretamente

nesse processo (Bursztyn, 2000; Rosa, 1995). Assim, a vida na rua das grandes cidades,

embora envolva a exclusão da habitação, do trabalho regular, das formas usuais de


relacionamento sócio-familiar, implica também na integração a um mundo com regras

próprias, caracterizado pela relação com as sobras do excedente da produção social (Vieira;

Bezerra; Rosa, 1994). Ainda que sejam laços contraditórios, tanto por serem sempre

negociados (Montes, 1994) quanto por permitirem um acesso somente parcial e precário à

geração e distribuição das riquezas, bem como aos mecanismos públicos (Bursztyn, 2000),

sua existência coloca desafios importantes para o campo das políticas públicas. Tanto para a

gestão das cidades quanto para assistência diretamente prestada ao morador de rua, impõem-

se considerações em torno da inadequação do recolhimento, da retirada dessas pessoas do

lugar onde vivem suas experiências significativas, bem como a reflexão em torno de

estratégias de atenção a suas necessidades. Nas trajetórias pessoais aparecem não somente as

perdas de laços antigos, mas a constituição de novos vínculos e laços de solidariedade a partir

da vida na rua.

Grande parte dos autores que enfocam a relação entre as políticas públicas e a situação de rua

discutem e concluem que há falta ou ineficiência das políticas públicas dirigidas a esse

segmento da classe trabalhadora. Estudos como os de Carneiro Jr. e Silveira (2003), Carneiro

Jr. et al (2006) e Rosa et al (2005), abrangem especificamente a políticas de saúde e o acesso

aos seus serviços. Outros, como Varanda e Adorno (2004), articulam suas críticas em relação

aos programas sociais de modo geral, tendo em vista que tratam a população em situação de

rua como “população excedente”. Sendo assim, dizem esses autores, estes programas

apresentam uma forte marca institucional de práticas que objetivam somente a retirada dessas

pessoas da rua e dão poucas possibilidades para que consigam reestruturar suas vidas. Do

mesmo modo, Rosa et al (2005) consideram que as políticas públicas dirigidas à população

em situação de rua são basicamente compensatórias, assistencialistas e raras vezes visam um

projeto de inclusão social.


Questionando a formulação das políticas públicas, diversos autores como Inojosa (2002),

Santos (2004), Abílio (2005) e Itikawa (2006) promovem, também, uma discussão sobre a

organização e o papel do Estado nas atuais sociedades capitalistas. Para a Terapia

Ocupacional Social, essas características têm sido consideradas de importância fundamental

para a conformação das ações junto a esse grupo. A escuta e a intervenção que toma a

cidadania como eixo articulador das ações da terapia ocupacional, implica construí-la com o

outro, em seu contexto e história (Barros, 2002). Favorecer a criação e utilização das redes de

suporte material, social e afetivo, são objetivos do trabalho nessa área.

No âmbito da Terapia Ocupacional compreende-se, também, que a vida cotidiana, apesar de

se configurar como espaço de ações corriqueiras e repetitivas - como por exemplo as de auto-

cuidado, alimentação e vestuário - também comporta riquezas e possibilidades de resistência

e transformações, como discutem Heller (1985) e Certau (1994), entre outros. E, como tal,

pode se constituir em cenário no qual ganham materialidade, regularidade e permanência as

ações realizadas com autonomia e autodeterminação – ou ações que comportam a “condução

da vida” (Heller, 1985, p.40). Como consideram Almeida (1997), Takatori (2001) e Galheigo

(2003), estudos sobre a vida cotidiana no âmbito da terapia ocupacional têm possibilitado que

se conheçam, além dos aspectos pragmáticos que organizam uma dada maneira de fruição da

vida, o conjunto de valores e representações imbricados de maneira indissociável e complexa

a processos de subjetivação, nos quais se aumentam as possibilidades de realizar opções e

determinar o curso da própria vida. Assim, no sentido de ampliar a compreensão sobre as

relações entre as intervenções sociais e a população em situação de rua, realizou-se estudo que

buscou identificar alterações nas ações e interações sociais cotidianas de pessoas em situação

de rua, ocorridas a partir do ingresso em programa social que tem oferecido ocupação e renda

temporárias às pessoas em situação de rua do município de São Paulo.


Busco-se por mudanças objetivas no que diz respeito à quantidade (inclusão / exclusão de

atividades, freqüência e regularidade) e à qualidade (diversidade e grau de autonomia na

execução) das ações que estruturam a vida cotidiana (tais como as de auto-cuidado, de

alimentação, de vestuário, de deslocamento espacial, de socialização e de descanso ou lazer).

Da mesma forma, pretendeu-se identificar possíveis mudanças no que diz respeito aos

ambientes/locais/contextos nos quais essas ações se realizam cotidianamente, bem como no

conjunto de relações sociais nelas implicado.

MATERIAIS E MÉTODO

O estudo foi desenvolvido no contexto da Associação Minha Rua Minha Casa- AMRMC, que

é entidade social parceira da Secretaria de Relações do Trabalho, que promove o Programa

Emergencial Auxílio-Desemprego, também conhecido como Frentes de Trabalho Especial. A

entidade é responsável por fazer a indicação das pessoas que serão beneficiárias (bolsistas) do

PEAD e atribuir e supervisionar as atividades de trabalho que estas vierem a exercer.

O estudo se desenvolveu com base na participação em atividades da AMRMC e em

entrevistas com os bolsistas. A participação dos pesquisadores em atividades na AMRMC

possibilitou a coleta de dados oriundos da observação e do relacionamento direto com os

sujeitos da pesquisa e com o contexto de desenvolvimento das atividades de trabalho. Assim,

tornou possível a obtenção de informações sobre a dinâmica de funcionamento da entidade e

de suas relações internas, tanto no que se refere à equipe técnica, quanto aos associados e a

interação entre ambos. Possibilitou, ainda, que fosse observada a realização das atividades de

trabalho propostas aos bolsistas no contexto do programa Frentes de Trabalho Especial. Além

disso, permitiu que se coletasse um conjunto consistente de informações espontâneas emitidas

pelos sujeitos da pesquisa. Essas atividades, acompanhadas pelos pesquisadores, não eram

exclusivas dos bolsistas do programa, mas agregaram a todos eles.


As informações decorrentes da participação nas atividades da AMRMC foram registradas em

diário de campo e posteriormente organizadas, de acordo com os focos do estudo: as

atividades e relações sociais cotidianas e as atividades e relações de trabalho. Posteriormente

à análise das entrevistas, essas informações foram agregadas ao conjunto da análise, de modo

que por vezes confirmaram interpretações ou jogaram luz em aspectos pouco evidenciados

pelos entrevistados na ocasião das entrevistas. Assim, o texto produzido em decorrência da

análise das entrevistas foi acrescido de algumas possibilidades interpretativas derivadas do

material coletado durante as atividades de campo.

As entrevistas foram realizadas na AMRMC, com 15 beneficiários do programa Frentes de

Trabalho Especial - FTE. Todas as entrevistas receberam consentimento para serem gravadas

e duraram, em média, 30 minutos. Durante a entrevista, os sujeitos não apresentaram

restrições em discutir ou falar sobre assuntos que fossem relevantes, nenhuma delas pediu

para interromper a entrevista, e em momento algum foi demonstrado desconforto com o

diálogo. Apenas 3 (três) das pessoas sorteadas para participar da pesquisa não aceitaram.

A transcrição das entrevistas foi realizada de acordo com a ordem de obtenção das mesmas,

sendo que se aguardou a formação de grupos de três ou quatro gravações para que se

procedesse à transcrição. Isso aconteceu inicialmente de modo não intencional, mas percebeu-

se que auxiliou a criar um fluxo de trabalho, de modo que todas as entrevistas fossem

transcritas. Foi usado o software denominado F4, próprio para transcrição de áudios. Antes de

se iniciar a transcrição, adotou-se o procedimento de ouvir toda a gravação, a fim de

apreendê-la em seu conjunto. Os trechos inaudíveis foram demarcados e posteriormente

trabalhados, utilizando-se recursos do programa F4 e outros procedimentos com o objetivo de

melhorar a qualidade da interpretação. Devido ao barulho externo ao ambiente das entrevistas,

alguns poucos trechos não puderam ser transcritos. Sendo esses trechos de no máximo 05

(cinco) segundos, não comprometeram a análise das entrevistas.


Após terminada a transcrição das 15 entrevistas iniciais, realizou-se leitura com atenção

flutuante, de modo que foi possível identificar algumas ocorrências e realizar algumas

reflexões preliminares. Estas reflexões tratam, principalmente, de possíveis repercussões da

inserção dos entrevistados no projeto Frente de Trabalho e também sobre suas perspectivas de

vida. Nessa fase, foram levantadas algumas hipóteses interpretativas, bem como algumas

indagações.

Os dados obtidos através das entrevistas foram organizados de modo a considerar os temas

previamente identificados através da leitura pormenorizada de cada uma das entrevistas,

seguindo orientações de Bardin (1979). Optou-se por organizá-los a partir das seguintes

dimensões: trabalho, moradia, dinheiro, família, rua, amigos e outras relações sociais, rotina,

AMRMC e religião. Em seguida, foram grifados em cada uma das entrevistas, de acordo com

cada dimensão, os relatos verbais a elas relacionados. Foi aberta, também, a possibilidade de

agrupamento de outras informações consideradas relevantes e não pertencentes às dimensões

temáticas citadas. Obteve-se, assim, uma organização final com todas as informações

relevantes sobre todos os sujeitos da pesquisa, e de acordo com todas as dimensões.

A análise das entrevistas, que se deu individualmente e também em seu conjunto, possibilitou

a compreensão de algumas construções simbólicas e, nesse âmbito, as considerações de

Minayo (1996) foram essenciais.

Na etapa final, foram reunidas as análises e informações oriundas das diferentes fontes

pesquisadas, de modo a articulá-los criticamente em um todo coerente que visa atender ao

objetivo do estudo.

TRABALHO E COTIDIANO: UNIVERSOS CONECTADOS?

Os entrevistados relatam, em parte, o que são e como se organizam essas atividades na

AMRMC. Caracterizam-se, na parte da manhã, pela limpeza do pátio e das mesas e cadeiras

que estão lá dispostas, limpeza dos banheiros e algum serviço de manutenção hidráulica e/ou
elétrica que seja necessário. À tarde, as pessoas que exerceram as atividades de manutenção

pela manhã distribuem-se em atividades de recepção dos participantes, guarda de bolsas e

malas no bagageiro, distribuição das fichas de banho e lavação de roupas e controle desses

serviços, bem como na distribuição dos lanches. Essas atividades acontecem diariamente em

esquema de rodízio, tendo em vista que todos os dias, pela manhã, é realizada uma reunião

que tem a função de dividir as tarefas entre todas as pessoas presentes - sendo elas da Frente

de Trabalho, ou não. À tarde, as atividades também são rodiziadas.

Os bolsistas participam, também em grupos de atividades de geração de renda. Essas

atividades, assim como as atividades de manutenção da AMRMC, já existiam antes da

implementação do programa FTE, e após esta implementação sofreram algumas modificações

para que permitissem o cumprimento da carga horária daqueles que tinham se tornado

bolsistas. A especificidade destes grupos é que, além de remuneração extra recebida pela

venda de seus produtos e serviços ao mercado externo, as pessoas que os compõem, em sua

maioria, não realizam serviços de manutenção na Associação, tendo em vista que suas horas

são inteiramente executadas nas atividades de trabalho que geram renda. Durante o período do

estudo esses grupos atuavam no âmbito da culinária, artesanato, vigilância e zeladoria e

jardinagem.

A análise das informações coletadas, particularmente aquelas provenientes das entrevistas,

possibilitou que se apreendesse um conjunto de percepções dos sujeitos em relação às

atividades de trabalho que vêm realizando e como estas estão presentes em suas vidas. Os

entrevistados referem espontaneamente um conjunto de dificuldades, impedimentos, limites

ou barreiras encontrados tanto na realização objetiva das atividades de trabalho como nas

inter-relações pessoais que integram essas atividades. De um modo geral, os entrevistados

apontam problemas de relacionamento com outros associados e, em alguns casos, de

ingerência no trabalho. Percebeu-se que as pessoas que mais citam este tipo de problema são
aquelas que estão freqüentando a AMRMC há mais de três anos, o que pode significar que

possuem relações mais estruturadas, assim como conflitos mais difíceis de solucionar. Além

disso, nota-se que são mais críticos em relação às dinâmicas internas da AMRMC,

particularmente no que se refere à organização do trabalho. Assumem papéis e posições

diferenciadas frente aos demais.

J. S., que está na AMRMC há cerca de três anos, deixa claro suas críticas ao dizer

Tem hora que tem uns companheiro que atrapalha pra


caramba, viu? (...) hoje tem um bocado de queima arroz
aí, tudo experto (...) um não ajuda o outro (...) não explica
direito, eles explica mas quer fazer de qualquer jeito (...)
sempre tem aqueles um que são mandão, não manda nada
e quer ser o mandão, entendeu? (...) tem muita gente
mandando (J. S.).
Principalmente para os sujeitos responsáveis pelo atendimento na chegada dos participantes

(funções de cadastro e guarda da bagagem de quem chega) e para aqueles que exercem função

relacionada com controle dos demais associados e participantes (vigia e/ou zeladoria), os

desentendimentos relatados acontecem devido à responsabilidade e ao distanciamento próprio

das responsabilidades que têm com as tarefas que executam.

Verificou-se no estudo que a implantação da FTE gerou mudanças nas equipes e nos grupos

de geração de renda, acarretando mudanças não só nos tipos de atividades de trabalho, como

também na quantidade de horas de realização das mesmas. A sobreposição das atividades de

trabalho da FTE em relação às atividades próprias da AMRMC parece ter gerado dúvidas

importantes nos participantes, de modo que vários deles questionam a nova organização, com

base em referências vivenciadas em períodos anteriores na AMRMC.

Considerando as dificuldades relatadas, pode-se afirmar que a disposição por parte dos

sujeitos em propor soluções está, majoritariamente, no âmbito das estratégias

comportamentais (que devem ser) adotadas para superar essas dificuldades e/ou favorecer a

realização das atividades e/ou inter-relações pessoais no âmbito do trabalho. Chama a atenção
o fato de que a maioria dos relatos se refere a um comportamento que o próprio entrevistado

refere ter e que, ainda que não afirme explicitamente acreditar que seja um exemplo a ser

seguido, nota-se que a construção de seu argumento denota este objetivo. As estratégias

citadas são basicamente de dois tipos: aquelas em que as pessoas se esforçariam para executar

as regras – chegar no horário, não faltar sem justificativas, cumprir todas as horas, etc; e

aquelas nas quais as pessoas fariam coisas para além do que lhes é designado – trabalhar mais

do que deve, fazer várias atividades e ajudar em tudo o que for preciso. Não foi possível

particularizar os entrevistados que fazem referências a um ou outro tipo de estratégia, no que

diz respeito ao perfil levantado pelo estudo. Aparentemente, isso significa que esses

conteúdos estão ligados às histórias de vida e trabalho dessas pessoas. Porém, considerando as

peculiaridades da AMRMC, pode-se supor que essas estratégias estejam referidas a um

conjunto de valores permanentemente transmitidos pela mesma, por meio dos quais o trabalho

é moralmente valorizado.

Nos relatos dos entrevistados é praticamente unânime a presença de considerações acerca do

status de trabalhador daqueles que estão na FTE e/ou de que as atividades que realizam são

atividades de trabalho. É possível, assim, estabelecer um paralelo com Organista (2006) que

discute a representação que o trabalho tem na vida dos camelôs que entrevistou,

considerando-os como uma parcela da classe trabalhadora que realiza suas atividades de

trabalho no âmbito da economia informal, somadas a condições precárias de realização, como

as ruas. O autor afirma que os camelôs buscam se afirmar como trabalhadores e se diferenciar

das pessoas que estão na marginalidade e na ilegalidade. Nesse mesmo sentido, ao criticar a

falta de investimento público em pontos de venda de artesanatos, M. N. tenta promover essa

diferenciação:

Eu acho que o prefeito deveria ter, deveria dar valor nos


trabalhadores (...) ele deveria dar mais a valor à gente,
porque nós somos morador de rua, mas só que a gente
somos aqueles morador de rua que quer se levantar e quer
ser alguém na vida, entendeu? (M. N.).
Justificando essas falas, Organista (2006) explica que no Brasil há um forte “vínculo

simbólico” do trabalho como dever moral, já que não é qualquer trabalho que é visto como

portador de uma conduta moralmente aceita, assim, há uma “...necessidade imperativa de os

camelôs constituírem suas representações como trabalhadores em oposição aos malandros”.

(Organista, 2006, p. 19). Desse modo, trabalhadores como os camelôs promovem tentativas

de estabelecer uma oposição entre trabalho e vadiagem, o que parece acontecer também com

as pessoas em situação rua integradas na FTE.

Foram bastante freqüentes as idéias de que a importância do ato de trabalhar se refere às

possibilidades de estabilização de outras esferas da vida, indo além do que Organista (2006)

chamou em seu estudo de “pura estratégia de sobrevivência”. O autor afirma que, como

posição unânime entre seus entrevistados, o sentido do trabalho não é restrito ao “manter-se

vivo” sendo composto também por questões valorativas como moral, direito e justiça. Para o

autor

A atividade de camelô vai além de pura estratégia de


sobrevivência para aqueles que a executam (...) ser
trabalhador é construir sonhos, desejos e perspectivas de
futuro que se fundam no trabalho, mas que se remetem
para além dele, fatores que se esvaem quando se está sem
trabalho algum. (Organista, 2006, p. 24).
Entretanto, embora os bolsistas construam esse lugar simbólico ao trabalho, as atividades da

FTE parecem atingir apenas parcialmente essa posição. Foi comum que surgisse, no decorrer

dos relatos dos entrevistados, suas impressões sobre a FTE e/ou sobre a AMRMC. Foram

duas as idéias mais freqüentes em relação ao programa e/ou às atividades de trabalho que o

compõe. A idéia de que a FTE auxilia seus beneficiários foi bastante freqüente, contudo, essa

ajuda, seja através do ganho de renda temporário e/ou da possibilidade de aquisição de

experiência/profissão (através do curso obrigatório oferecido) é sempre vista como um


“quebra-galho” ou uma “colher de chá” oferecida pelo governo estadual. Essas considerações

se relacionam fortemente ao valor da bolsa oferecida (duzentos e dez reais em dinheiro e

quarenta e seis reais e sessenta centavos em vale-alimentação), o que, de acordo com os

entrevistados, impede que sejam executados planos de sair do albergue, por exemplo, e

mudar-se para equipamentos que requerem alguma contribuição financeira por parte dos

usuários como as moradias provisórias, ou ainda, a mudança para quartos de pensão ou casas

alugadas, já que o valor necessário para tal é, muitas vezes, inviável aos frentistas. Nesse

sentido, as idéias geralmente se caracterizam por expressões como “melhor do que nada”, “é

pouco, mas vai levando”, entre outras da mesma natureza. Freqüentemente, o valor conferido

à FTE é ponderado em relação ao extremo vazio de opções existentes para quem está na

situação de rua, sendo possível aos entrevistados supor que ela tem o genérico objetivo de

“melhorar a vida” destes. Assim, aponta R. R.:

Eu acho que essa Frente de Trabalho é pra, pra melhorar a


pessoa pra sair da rua, né? (...) Tem que dar chance
praqueles que querem trabalhar, quebra um galho por isso
(...) Acho que essa Frente de Trabalho que arrumaram aí é
pra pessoa melhorar de vida, né? Pelo menos sair da
dificuldade, porque já tá ganhando um pouco. (R. R.).
A idéia de que o programa auxilia seus beneficiários foi apresentada com muitas ressalvas,

principalmente no sentido de que essa ajuda financeira é efetiva somente para aqueles que

possuem complementação de sua renda (ao estarem inseridos também nos grupos de geração

de renda) ou, daqueles que já resolveram, ainda que provisoriamente, o problema de moradia,

como no caso dos que moram em ocupações de prédios públicos e não pagam aluguel.

Pra mim está bom, pra mim está ótimo, por enquanto está
bom porque eu não pago aluguel, o dinheirinho que eu
ganho aqui dá pra mim comprar as coisinha pra minha
filha, as coisas pra mim... Pra mim está dando pra viver.
(M. C.).
Desse modo, é possível afirmar que os entrevistados, em sua maioria, fizeram referências

críticas a FTE quanto a sua eficiência. Essas críticas foram estruturadas em torno de duas
considerações principais: a bolsa mensal tem valor menor do que o salário mínimo – sendo

muito pouco o dinheiro efetivamente recebido, e deveria haver contratação pelo governo

estadual, com conseqüente aquisição de direitos na condição de funcionário público. Essas

considerações são apresentadas no sentido de afirmar que o programa não realiza ajuda

efetiva a seus beneficiários partindo de que, além de pouca, a relativa ajuda é temporária, ou

seja, a pessoa pode até melhorar um pouco seu modo de vida enquanto estiver participando da

FTE, mas quando esta acabar retornará às suas condições anteriores. Sobre esse ponto F. M. é

claro:

Eu sou contra a Frente de Trabalho mesmo. Eu sempre fui,


fui claro, sou contra... Frente de Trabalho, nesse sistema
eu sou [contra]. E mais, quando a pessoa faz a Frente de
Trabalho o ano todinho e não consegue nada, vai direto,
pula de novo pro albergue, de novo, certo? (...) Mas não é
aquela coisa de... Dinheiro... Deixa ele vir tentar pagar um
aluguel com duzentos e dez... Duzentos e dez não tem
aluguel não, vai ter que pagar cento e cinqüenta e vai ficar
com sessenta conto ... e vai fazer o que com sessenta
conto? A outra, outra coisa que eu sempre disse é que era
muito pouco e eles, ó, eles tem o poder, não adianta dizer
que tem quando não tem (...) Todo ano a pessoa é obrigada
a estar na Frente de Trabalho porque não tem recursos
mais, não tem recursos, muita gente que precisa da Frente
de Trabalho não pode entrar porque a vaga está cheia, né?
(F. M.).
Embora com outros argumentos, parece que a percepção dos bolsistas sobre a ineficácia da

FTE confirma as considerações de Inojosa (2002), Borin (2003) e Abílio (2005). Em suas

análises, estes autores atribuem a ineficácia de programas governamentais voltados aos

segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora como, por exemplo, a população em

situação de rua, à desarticulação entre os diversos programas sociais existentes; à

desarticulação entre as esferas municipais, estaduais e federal; e, fundamentalmente, à

desresponsabilização do Estado em executar e gerir as políticas públicas, transferindo para o

âmbito das ONGs essas tarefas e transformando, dessa maneira, direitos em benefícios.
Em relação à discussão dos planos e/ou expectativas do futuro sobre emprego, atividade de

trabalho e renda as idéias apresentadas foram, sobremaneira, influenciadas pelo momento no

qual foram realizadas grande parte das entrevistas, ou seja, o período de transição entre a 2ª e

a 3ª edição da Frente de Trabalho Especial. Desde que foi implantado, o programa apresenta

intervalos que duram pelo menos 3 (três) meses entre o término de uma edição e o início de

outra. Nesse período não existe certeza se o programa terá ou não continuidade, o que se

reflete claramente nas falas dos bolsistas entrevistados, através das quais se observa um forte

sentimento de insegurança, pois também não sabem, em caso de haver manutenção do

programa, quais serão os selecionados. É notável que as idéias permeadas por insegurança

tenham estado presentes mesmo em entrevistas que não se localizaram no período de

transição, mas no período de vigência da bolsa. Desse modo, muitos planos para o futuro

apareceram condicionados à existência de novas vagas na FTE e nunca a novas possibilidades

de trabalho. Estes, porém, não expressam propriamente planos, visto que representam, em

verdade, apenas o retorno à situação anterior de desemprego e desassistência:

Não sei, não sei o que que eu vou fazer quando terminar
essa Frente de Trabalho, viu? (...) Não sei o que que eu
vou fazer... Trabalhar por conta não, não dá, não dá pra
mim não, não dá pra mim não... É muita gente trabalhando
(...) Estou definindo o que eu vou fazer, estou definindo...
(J. P.).
Com base no exposto, parece correto afirmar que a realização de atividades de trabalho

realizadas no âmbito da FTE não permite projeções dos entrevistados para além delas

mesmas, e não promovem, também, a realização de trocas materiais e/ou simbólicas com o

ambiente externo à AMRMC, o que pode ser considerado um obstáculo à produção de

autonomia.

Nesse sentido, é importante refletir sobre as atividades cotidianas dos entrevistados. Em

primeiro plano, é necessário afirmar as referências dos sujeitos da pesquisa às suas atividades

fora do âmbito da AMRMC foram escassas. Por um lado, pode-se supor que tenha havido
receio ou incômodo em expor particularidades cujo conteúdo não se quer compartilhar por

razões diversas. Por outro, a falta de referências parece traduzir um certo esvaziamento do

sentido produtivo desse âmbito da vida. Freqüentemente, o repertório de ações e relações

sociais cotidianas, com exceção daquelas relacionadas ao trabalho, é pobre e constituído de

poucos elementos, sejam estes materiais ou humanos. A ausência de informações produziu,

também, dificuldades de apreensão quanto aos modos de realização dessas atividades e sua

distribuição no tempo, entre outros aspectos.

Dessa forma, acredita-se ser relevante questionar se o esvaziamento do cotidiano dos

entrevistados se dá, sobretudo, por estarem inseridos em instituições como os albergues que,

possuindo normas rígidas de funcionamento, tendem a objetivar seus usuários, por meio da

diminuição de espaços individuais e na restrição de sua autonomia.

Essa interpretação é reforçada por meio da verificação de uma tênue diferenciação do

cotidiano das pessoas que, de algum modo, por morarem em outros equipamentos sociais

(como moradia provisória ou hotel social) ou terem moradia autônoma (como casa/quarto

alugados ou ocupações) possuem um repertório de atividades e relações sociais menos

restrito. Ao contrário da grande maioria de albergados, os sujeitos que possuem outro tipo de

moradia referem a realização de outras atividades quando não estão na AMRMC, inclusive

atividades de lazer. É comum, também, recorrerem ao circuito cultural oferecido pela cidade

de São Paulo (cinemas, shows, biblioteca, teatros, etc).

Isto posto, pode-se afirmar que a maior parte das dificuldades, impedimentos, limites ou

barreiras referidos pelos sujeitos da pesquisa em relação a suas atividades cotidianas

acontecem no âmbito dos albergues. É constante o questionamento das regras e da gestão

deste equipamento e, por outro lado, para quem está morando em outros lugares, é constante

que as dificuldades se relacionem com a obtenção de renda para não voltar a morar em

albergues.
Muito ruim... pra mim é que nem se fosse uma cadeia, tem
horário pra tudo, é disciplina pra tudo, é muito ruim.
Quero sair de lá, não agüento mais ficar no albergue...
gosto não. (R. R.).

As representações sobre si e sobre a vida cotidiana dos entrevistados tratam quase que

exclusivamente da condição de rua. Assim como descrevem Mattos e Ferreira (2004) muito

do que se encontra no discurso da população em situação de rua sobre sua vida cotidiana é

reflexo de uma ideologia que impõe “tipificações” 21. Os autores definem esse fenômeno como

uma “violência simbólica” a que estão expostos. Nas representações encontradas nas

entrevistas, pode-se afirmar que o conteúdo ideológico predominante foi o que os autores

definem como de “culpabilização”. As idéias mais citadas foram as de que é necessário

“correr atrás das coisas”, “ter objetivo na vida” e querer “se levantar”. De acordo com Mattos

e Ferreira (2004) o conteúdo ideológico da culpabilização atribui culpa à própria pessoa em

situação de rua por sua condição. Ao demonstrarem esse fenômeno, os autores afirmam ser

comum que, ao explicar os motivos de sua condição, essas pessoas apresentem justificativas

parciais,

Segundo as quais a pessoa está em situação de rua porque


não estudou, não soube abraçar oportunidades de emprego
ou não tenha pensado no futuro. (Mattos e Ferreira, 2004,
p.52).
Nesse sentido, parece existir um grande esforço por parte dos sujeitos da pesquisa de,

conforme aponta Organista (2006), se diferenciarem das demais pessoas em situação de rua,

que seriam vagabundas e/ou marginais. As pessoas elaboram falas preocupadas em se

diferenciar das demais pessoas nessa condição a partir da definição dessa população – pessoas

“que querem” e as que “não querem sair dessa vida” – e da definição dos tipos de amigos que

possuem – amigos de “bebida”, “zueira” versus os amigos “de ajudar”, “amigos de verdade” e

outros tipos. Mesmo considerando-se trabalhadores, os bolsistas não parecem encontrar na


21
Mattos e Ferreira (2004) definem cinco tipificações atribuídas às pessoas em situação de rua: pessoa em situação de rua
como vagabunda; como louca; como suja; como perigosa; e como coitada.
FTE uma oportunidade para produzirem novas subjetivações que reflitam positivamente em

sua auto-estima.

Desse modo, o estudo parece salientar um aspecto central na discussão: no que diz respeito às

possibilidades de ampliação da autonomia, os benefícios das atividades da FTE desenvolvida

no âmbito da entidade AMRMC só podem ser verificados quando algum nível de estruturação

de moradia já foi alcançado pelo frentista. Ao ser dependente dessa condição, e não promovê-

la – devido ao seu caráter temporário e à baixa remuneração oferecida, gera poucas mudanças

ao nível das ações e relações sociais cotidianas de seus beneficiados. De modo geral, não foi

possível observar mudanças qualitativas que indicassem a conquista de novos patamares na

condição de existência dos bolsistas, sejam estas objetivas, relacionais ou ao nível das

produções simbólicas. Parece ser possível afirmar, portanto, que programas sociais isolados,

desarticulados de uma verdadeira política voltada ao enfrentamento das várias dimensões dos

problemas da população que hoje vive nas e das ruas do município de São Paulo tenderão

apenas à manter a situação que está posta.


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