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Resenhas

ações afirmativas no Brasil e permanecem em aulas, grandes conferências, muitos livros e


atuais, de tal forma que ainda se julga neces- artigos, na trajetória desse educador.
sária a desconstrução das dicotomias raça/ Oferecendo uma visão de conjunto das
classe e desigualdades raciais/desigualdades ideias pedagógicas na história da educação
sociais. Para além, persistem as reflexões so- brasileira ao longo de cinco séculos, o texto
bre o sistema de classificação racial, e, evi- discute suas implicações para a teoria e a prática
dentemente, ainda se faz sentir a cisão que o educativas.
tema provocou na intelectualidade brasileira. As ideias pedagógicas diferem substan-
Tais persistências poderiam representar uma cialmente da tradicional história do pensa-
dificuldade de superação das questões aborda- mento dos grandes pedagogos e, também,
das, mas esta seria uma afirmação ingênua. Na das educacionais, que se referem amplamente
verdade elas indicam que ainda há uma agenda à educação. As ideias pedagógicas decorrem
extensa com questões que não foram resol- da análise do fenômeno educativo, na busca
vidas, ou ao menos absorvidas, pelo debate de explicá-lo, ou derivam de certa concepção
público sobre ações afirmativas, e mostram de homem, mundo ou sociedade sob a qual é
que esse não alcançou o seu ápice e que, interpretado o fenômeno educativo. Segundo o
tampouco, as reflexões produzidas sejam as autor, elas são “as ideias educacionais, não em si
únicas e últimas elaboradas. mesmas, mas na forma como se encarnam no
movimento real da educação, orientando, mais
Andréa Lopes da Costa Vieira do que isso, constituindo a própria substância
Doutora em Sociologia, Coordenadora do da prática educativa” (p.6). Como exemplo,
Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas podem ser consideradas as ideias pedagógicas
Públicas e Desigualdades Sociais, da Escola de dos jesuítas no Brasil, especialmente no cha-
Serviço Social, da Universidade do Grande Rio mado Período Heroico; estas não se definem
andrea.lcosta@uol.com.br por simples derivação da concepção religiosa
(católica) do mundo, sociedade e educação.
HISTÓRIA DAS IDEiaS PEDAGÓGICAS Deram origem a práticas educativas que con-
NO BRASIL (Col. Memória da Educação) cretizaram o necessário ajuste entre as ideias
Dermeval Saviani educacionais e a realidade específica da colônia
Autores Associados: Campinas, 2007, brasileira. São, portanto, as ideias pedagógicas
492p. ao longo da educação brasileira, o fulcro do
estudo apresentado.
O livro, que recebeu o prêmio Jabuti O livro resultou de um acurado processo
em 2008, na categoria Educação, constitui de pesquisa conduzido pelo autor, com finan-
mais uma contribuição do professor Derme- ciamento do Conselho Nacional de Desenvol-
val Saviani ao exame crítico do pensamento vimento Científico e Tecnológico – CNPq –,
pedagógico brasileiro e é um fruto do amadu- cujo propósito foi compreender a “evolução
recimento intelectual do autor. Não se trata de do pensamento pedagógico brasileiro a partir
simples exposição ordenada de resultados de da identificação, classificação e periodização das
pesquisa. É, na verdade, resultante de uma vida principais concepções educacionais (p.1-2). A
de intensa elaboração da teoria da educação investigação tomou como materiais básicos
sob perspectiva crítica, de pesquisas e reflexões documentos escritos – livros, artigos e textos
geradoras de novos conhecimentos difundidos oficiais –, trabalhando com fontes primárias, no

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caso, documentos nos quais se encontravam as riodização proposta, esclarece ter partido das
ideias pedagógicas dos principais protagonistas principais concepções de educação, guiando-se
da educação brasileira, e fontes secundárias, pelo movimento real das ideias pedagógicas
como documentação bibliográfica. presentes no curso da história da educação.
Foi obtido assim um conjunto de infor- A Pedagogia Tradicional, nas vertentes
mações de grande vulto que, no livro propria- religiosa e leiga, a Pedagogia Nova, a Pedagogia
mente dito, se evidencia em cada um dos capí- Tecnicista e a concepção pedagógica produ-
tulos e é registrado em um total de 351 fontes tivista, estudadas em suas características nos
diretamente referidas e utilizadas na redação trabalhos anteriores do autor, são as categorias
do texto. Além das obras mais conhecidas de que delimitam quatro grandes períodos, dentro
história da educação brasileira, estão presentes, dos quais se identificam as diferentes ideias pe-
no decorrer dos capítulos, numerosas referên- dagógicas. Cada período é subdividido em duas
cias aos estudos feitos no Brasil nos últimos 20 ou três fases, de acordo com o movimento
anos por pesquisadores do campo histórico- dessas ideias no seu interior. O início e o fim de
educativo e publicados até 2006. São livros, cada período foram determinados por eventos
artigos e outros materiais, inclusive os divulga- fundamentais. Assim, por exemplo, o 2º perío-
dos como teses, dissertações e até monografias do, que vai de 1759 a 1932, e em que ocorre
de cursos de pós-graduação. Esses estudos de a “coexistência entre as vertentes religiosa e
corte analítico, que incidiram sobre temas ou leiga da Pedagogia Tradicional”, tem início com
momentos específicos da educação brasileira, a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pom-
foram trabalhados pelo autor, e, somados a bal, e o término marcado pela divulgação do
muitas outras leituras, possibilitaram reflexões Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
e interpretações substantivas e sínteses amplas, Para demonstrar que o movimento das
com densidade explicativa, relativas às ideias ideias pedagógicas foi o efetivo “divisor de
pedagógicas existentes em longos períodos da águas”, nada mais elucidativo que a afirmação
história da educação brasileira ou em algumas de que “o princípio da periodização tem por
de suas fases. Não foi relegado, contudo, o ob- base a hegemonia” (p. 20). Termos como con-
jetivo de oferecer aos leitores parte significativa figuração, desenvolvimento, predominância,
das ricas informações obtidas pela pesquisa, monopólio, equilíbrio, coexistência, crise e
que se referem a cada um dos momentos da articulação, com referência às pedagogias, pas-
educação brasileira; são apresentados assim, sam a ser utilizados nos títulos dos períodos e
cuidadosos detalhamentos, tais como biografias capítulos. Essas denominações indicam o modo
dos protagonistas e datas completas de eventos pelo qual as ideias pedagógicas se apresentam
marcantes, para melhor esclarecer o leitor. em determinado momento histórico, sob a
Como outro resultado do trabalho de forma de uma pedagogia, ou concepção, que
pesquisa, o autor construiu uma original perio- nasce, firma-se, predominando ou coexistindo
dização da evolução das ideias pedagógicas no ao lado de outra, entrando em crise e sendo
Brasil. Buscou superar tanto as divisões no tem- substituída ou não, pois pode ser reconfigurada
po, cuja base é a história político-administrativa, sob novas bases, num movimento constante.
quanto as que se cingiram principalmente ao São analisadas também as chamadas ideias e
critério da determinação econômica, no esfor- correntes não hegemônicas e as pedagogias
ço de compreender com maior rigor a história contra-hegemônicas, de “esquerda”, que, em
da educação brasileira. Assim, ao elaborar a pe- alguns períodos e fases da educação brasileira,

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buscaram influenciar e ainda influenciam, de propalada “desertificação” educacional após a


algum modo, a ação educativa, especialmente expulsão dos jesuítas é confrontada no cap. 5,
em anos recentes. Na estrutura geral do livro, seja no que se refere à melhor compreensão
a história das ideias pedagógicas no Brasil é dos novos propósitos político-educacionais em
apresentada com uma divisão em quatro perí- vista da “máquina mercante”, seja no que diz
odos, com suas respectivas fases, em um total respeito às reformas educacionais do despotis-
de 14 capítulos. mo esclarecido e às iniciativas como o Seminário
Na introdução, o professor-pesquisador, de Olinda, no Brasil. No cap. 6, um alentado
que coordena há algum tempo o, nacionalmen- estudo das ideias pedagógicas e circunstâncias
te reconhecido, Grupo de Estudos e Pesquisas em que se disseminaram no Império e início do
“História, Sociedade e Educação no Brasil” – período republicano é feito mediante análise das
Histedbr –, procura dar esclarecimentos sobre propostas contidas na reforma, dos métodos de
a perspectiva teórico-metodológica adotada, ensino utilizados para expandir a precária esco-
cujo princípio é o “caráter concreto do conhe- larização, bem como, da nova organização das
cimento histórico-educacional” (p.3), que, para escolas. As ideias pedagógicas republicanas são
sua efetivação, exige ser complementado por vistas em seus fundamentos positivistas e laicos.
outros. São ainda examinadas questões teóricas O 3º período (1932-1969) é aquele em
do campo da historiografia, entre elas, a tenta- que a Pedagogia Tradicional convive com a Pe-
ção relativista e a sedução pela micro-história. dagogia Nova e depois cede lugar a ela. Esta
Na análise de cada período há um capí- última predomina com ampla margem nesse
tulo introdutório que indica sinteticamente as intervalo de tempo. Já no final dos anos 60, a
linhas básicas do momento histórico determi- Pedagogia Tecnicista começa a articular-se. Esse
nante das ideias pedagógicas correspondentes movimento é descrito em quatro capítulos (7,
ao espaço de tempo analisado; a ele seguem-se 8, 10 e 14), com detalhamento de informações
os capítulos que correspondem às diferentes sobre as lutas político-educacionais então tra-
fases examinadas. Quanto ao conteúdo dos vadas e seus protagonistas e com o exame das
períodos e fases, dada a sua extensão e pro- questões pedagógicas que surgem. Pode ser
fundidade, somente uma leitura atenta de toda considerado o mais abrangente.
a obra poderá permitir a apreciação de sua No 4º período (1969-2001), configura-
qualidade e riqueza, inclusive da beleza e per- se a denominada concepção produtivista, mas
tinência das ilustrações. Alguns aspectos serão também são examinadas as concepções peda-
destacados aqui, mais como um estímulo, um gógicas, as contribuições e o papel histórico
convite ao leitor. de Paulo Freire “referência de uma pedagogia
No 1º período (1549-1759), em que progressista e de esquerda” (cap. 10) e, no
ocorre o monopólio da vertente religiosa da cap. 12, os estudos crítico-reprodutivistas em
Pedagogia Tradicional, são de se mencionar tan- seu papel de arma teórica nos anos 70 e no
to as explicações históricas, no cap 1, relativas seu aporte para a compreensão dos limites da
ao atraso do desenvolvimento capitalista em ação escolar. Também são mencionados expli-
Portugal, quanto, no cap. 3, a apresentação da citamente os trabalhos mais recentes e as lutas
Ratio Studiorum jesuítica em sua complexidade. de seus principais representantes, Bourdieu,
No 2º período (1759-1932), ainda sob Baudelot e Establet, contra a invasão neoliberal,
a Pedagogia Tradicional, mas incluindo a coe- na defesa da educação pública.
xistência de suas vertentes religiosa e leiga, a Para o autor, no entanto, a concepção

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pedagógica produtivista parece ser de fato a dos professores um recurso que lhes permita
hegemonia das ideias e práticas pedagógicas, abordar a educação brasileira em seu conjunto,
desde os 69 até os nossos dias, sendo que, desde as origens até nossos dias” (p.18).
nos impactantes anos 90, teria havido um surto Pelas razões apontadas e considerando
eficientista em que a racionalidade econômica de plena justiça o prêmio recebido pelo autor, é
prevaleceu sobre a pedagógica. Aqui se faz que se pode recomendar aos educadores a lei-
apenas um único comentário crítico. Enquanto tura de mais este livro do dr. Demerval Saviani,
as análises dos três primeiros períodos, mais professor e orientador de grande número de
distantes do movimento atual, permitem uma professores e pesquisadores brasileiros que
compreensão aprofundada dos movimentos estão hoje produzindo teórica e praticamente
“orgânicos e conjunturais”, o mesmo não pa- a educação no Brasil.
rece ocorrer em relação ao 4º período, es-
pecialmente nos cap. 13 e 14. Julga-se ainda Maria Dativa de Salles Gonçalves
necessário, no processo de análise da história Membro integrante do Núcleo de Políticas,
das ideias pedagógicas, aguardar um tanto mais Gestão e Financiamento da Educação,
a decantação pelo tempo das “impurezas” que no Setor de Educação da Universidade
impedem uma percepção mais nítida do real Federal do Paraná
movimento de explicitação e prevalência de dativa@onda.com.br
ideias. Quem sabe as ideias pedagógicas conti-
das nas pedagogias contra-hegemônicas possam EDUCATIONAL RESEARCH AND
ser mais reconhecidas, no seu alcance teórico EVIDENCE-BASED PRACTICE
e nas realizações práticas durante os anos 80 Martyn Hammersley (ed.)
e posteriores, e nas esperanças depositadas no London: Sage, The Open University,
início do séc. XXI. Para isso, não só o tempo, 2007, 295p.
mas também estudos, reflexões e pesquisas são
imprescindíveis. De modo semelhante torna-
Trata-se de obra coletiva organizada por
se uma exigência afinar a compreensão crítica
Martyn Hammersley1, a partir de uma polêmica
quanto aos fundamentos e influências na prática
provocada pela conferência de David Hargre-
pedagógica do chamado neoprodutivismo e
aves na abertura da reunião anual da Teacher
suas variantes: neo-escalonovismo, neocons-
Training Agency, em 1996. A conferência de-
trutivismo, neotecnicismo (cap.14).
sencadeou uma série de reações, em forma
Cabe destacar ainda, no livro, a reiterada
de artigos, sobretudo uma vasta discussão em
afirmativa do autor de que sua imensa tarefa de
torno da questão da pesquisa em educação, em
pesquisa e síntese das ideias pedagógicas no
sua função precípua de construção de conheci-
Brasil seria vã, caso os conhecimentos obtidos
mentos (poursuing knowledge for its own sake),
resultassem apenas em um relatório técnico,
bem como em suas relações com a política e
para especialistas, e não chegassem até as salas
a prática em educação. Ela também chamou
de aula pelos professores e diretores, e não
atenção sobre a ideia um tanto perturbadora
conseguissem integrar programas escolares.
Sendo assim, a obra persegue o propósito de
trazer mais coerência e consistência à ação 1. Professor de Educação e Pesquisa Social, da Fa-
educativa, como, no dizer do autor, “um pri- culdade de Educação e Estudos da Linguagem, na
meiro esforço no sentido de pôr ao alcance Open University (general-enquiries@open.ac.uk).

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