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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

(PUC-SP)

Ailton Pinheiro Junior

A INFLUÊNCIA DO CINEMA NOVO NOS CINEASTAS NEGROS:

O CINEMA DE ZÓZIMO BULBUL.

São Paulo – 2009


PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
(PUC-SP)

Ailton Pinheiro Junior

A INFLUÊNCIA DO CINEMA NOVO NOS CINEASTAS NEGROS:

O CINEMA DE ZÓZIMO BULBUL.

Pesquisa apresentada a banca examinadora


como exigência parcial para obtenção do
título de bacharel em Comunicação em
Multimeios pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.

Orientador: Prof. Marcelo Prioste

São Paulo – 2009


BANCA EXAMINADORA

____________________________

Professor Orientador

____________________________

____________________________
Dedicatória

Dedico este trabalho a todos os meus ancestrais negros e negras guerreiros (as) que
lutaram contra a sociedade racista e os males causados por ela, buscando sempre um outro
modelo de sociedade, a toda minha família, em especial minha mãe Maria Antonia da Silva,
minha irmã Pamera Aparecida da Silva Pinheiro e minha avó Joaquina Cristina da Silva, estas
três mulheres negras foram sempre meu porto seguro e inspiração para superar as dificuldades
impostas pelo racismo da sociedade brasileira e da universidade, me fortalecendo e ajudando.
Gostaria também dedicar este trabalho ao MNU (Movimento Negro Unificado), organização que
me fortalece cada dia na luta contra o racismo e que me ensinou a me defender dele reagindo a
violência que nós negros estamos submetidos, é importante agradecer e dedicar a alguns
companheiros de luta, que sem eles não teria chegado até aqui, Tom meu amigo e pessoa que me
ajudou muito no processo de construção dessa tese, debatendo idéias, foi uma da principais
pessoas que me incentivou a estar na universidade, Hamilton Borges Walê, parceiro com que
tenho respeito e admiração é uma pessoa referência em minha vida, com quem aprendi e aprendo
muito todos os dias que passo ao seu lado, superando as barreiras impostas na vida, não poderia
esquecer de meus amigos e parceiros Honêre Oadq, Adilson, Ed, Ketu Rihab e Akan Oadq,
parceiros militantes que sempre me apoiaram e me ajudaram nessa luta cotidiana.

O Cinema é uma arma. E nós, negros


no Brasil, já temos uma AR 15 e com
certeza sabemos atirar.
Zózimo Bulbul

Estamos por nossa própria conta.

Steve Biko
Agradecimentos

É importante agradecer aos meus irmãos de luta que sempre estiveram comigo no dia a dia, a
jovem antropóloga Jackeline lima, por sua presença grandiosa em momentos difíceis. Ao grande
comunicólogo Ricardo Andrade por sua amizade e coragem me fortalecendo em momentos
difíceis de minha vida. A Lio Nzumbi, amigo com quem dividi momentos gigantescos de
aprendizado. A jovem cineasta Viviane Ferreira com quem aprendi muito e aprendo a cada dia
enfrentar os problemas da vida. A Jovem Lajara Janaina que me encorajou em diversos
momentos. Ao militante Reginaldo Bispo ao qual respeito bastante e a diversas pessoas que
somaram forças comigo nos momentos de dificuldades dentro da universidade. Gostaria de
agradecer também ao cineasta Zózimo Bulbul, pessoa que me inspirou a escrever este trabalho.
A Hamilton Borges e Andréia Beatriz que entraram em minha vida em um momento importante
contribuindo para meu crescimento enquanto pessoa e minha formação. Ao Claudio Thomas que
me acompanhou desde o início da pesquisa na intensa batalha para escreve-lá, dialogando e me
encorajando em diversos momentos, ao GT. Pan-africanista, que me solidifica e fortalece todos
os dias em minha caminhada na vida, aos meus amigos de Minas Gerais que mesmo distante
torcem por minha vitória e sucesso na vida. A meu primo Rogério Costa que sempre me
incentivou nessa cidade a prosseguir nos estudos. A senhora Edna que me ajudou muito nesses
dois anos, com palavras amigas e em relação a minha moradia. Em especial a todos aqueles
guerreiros e guerreiras que lutaram pelos direitos dos negros e negras no Brasil, como Zeferina,
Aqualtune, Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Zumbi dos Palmares e muitos outros, que
enfrentaram as dificuldades e as barreiras impostas pelo racismo na sociedade brasileira, sempre
buscando dar um salto na luta contra a opressão e violência lançada aos negros no Brasil e na
Diáspora.
RESUMO

Este trabalho se propõe a discutir a influência do Cinema Novo nos atores negros que se
tornaram diretores na década de 70, com foco especial em Zózimo Bulbul. Portanto,
abordaremos o papel que o negro teve no Cinema Novo e qual foi seu significado, identificando
os principais filmes e diretores que contribuíram para uma nova representação do negro no
cenário cinematográfico. Buscamos ainda, verificar o papel do negro nos filmes produzidos pela
Chanchada e pelos estúdios da Vera Cruz, que traziam uma imagem estereotipada do negro. A
partir da análise da obra de Zózimo Bulbul, examinaremos as características cinemanovista em
sua filmografia e as influências do pensamento de esquerda e do movimento negro em seu
trabalho. A partir desta avaliação, buscamos verificar o tipo de cinema desenvolvido por este
diretor e suas principais características, que apontam para a construção de um Cinema Negro no
Brasil.

PALAVRAS CHAVE

Cinema, Negro, identidade, Cinema Novo.


ABSTRACT

The objective of this work is to discuss the influence of the Cinema Novo on the black actors
that became film directors in the 70's, with a special focus on Zózimo Bulbul. Thus, we approach
the role that blacks played in the Cinema Novo and what was its meaning, identifying the key
films and directors that have contributed to a new representation of blacks in the film industry.
We further seek to verify the role of blacks in films produced by Chanchada and by the studios
of Vera Cruz, who brought a stereotypical image of blacks. From an analysis of the work of
Zózimo Bulbul, we examine the cinemanovista characteristics in his filmography and the
influences of leftist thinking and the black movement in his work. From this assessment, we seek
to verify the type of film developed by the director and its main characteristics, pointing to the
construction of a Cinema Negro in Brazil.

KEY WORDS

Cinema, Black, Identity, Cinema Novo.


Lista de figuras

Capítulo I

Figura 1: Fabiano e Sinhá Vitória em Vidas Secas. ...................................................................... 16

Figura 2: Cena do filme Deus e o diabo na terra do Sol. .............................................................. 16

Figura 3: Antonio Pitanga e Hugo Carvana em filme O Cancêr. .................................................. 23

Figura 4: Pescadores Negros em filme Barravento ....................................................................... 24

Capítulo II

Figura 5: Atores Negros no filme Gangazumba............................................................................ 25

Figura 6: Haroldo Costa e Cineasta............................................................................................... 31

Figura 7: Antônio Pitanga, ator e cineasta. ................................................................................... 31

Figura 8: Cineasta Zózimo Bulbul. ............................................................................................... 39

Capítulo III

Figura 9: Zózimo Bulbul em Alma no Olho. ................................................................................ 43

Figura 10: Cena do filme Dia de Alforria... (?). ............................................................................ 46

Figura 11: Cena do filme Abolição. .............................................................................................. 50

Figura 12: Zózimo Bulbul em cena de Samba no trem. ................................................................ 53

Figura 13: Cenas do filme Pequena África. .................................................................................. 56

Figura 14: Sebastiana Arruda da Irmandade de São Benedito. ..................................................... 59

Figura 15: Cena do filme Republica Tiradentes............................................................................ 59


Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 9

Capítulo I - Cinema Novo: Presença do popular ................................................................ 12


1.1 - Características do Cinema Novo. ................................................................................. 12

1.2. - O negro no Cinema Novo. .......................................................................................... 17

Capítulo II - Um panorama sobre os Cineastas Negros de 70. .......................................... 26


2.1 - Cineastas negros e o cinema brasileiro. ....................................................................... 26

2.2 - Zózimo Bulbul e o Cinema Novo. ............................................................................... 32

Capítulo III – Do outro lado das câmeras ............................................................................ 40


3.1 - Alma no Olho (1973) ................................................................................................... 40

3.2 - Dia de Alforria... (?) (1981) ......................................................................................... 44

3.3 - Abolição (1988) ........................................................................................................... 47

3.4 - Samba no Trem (1999/2000) ....................................................................................... 51

3.5 - Pequena África (2002) ................................................................................................. 54

3.6 - Republica Tiradentes (2004) ........................................................................................ 57

Conclusão ................................................................................................................................ 60

Bibliografia ............................................................................................................................. 64

Filmografia de Zózimo Bulbul .............................................................................................. 66


Introdução

Este trabalho se propõe a pesquisar a influência do Cinema Novo nos filmes realizados
por cineastas negros, a partir do estudo inicial dos trabalhos dos atores negros que atuaram nos
filmes do cinema novo e que nos anos 70 passaram para direção cinematográfica; com foco
especial nos filmes produzidos pelo cineasta Zózimo Bulbul. Pretende também entender o espaço
que estes cineastas ocupam dentro do cenário cinematográfico brasileiro, uma vez que os poucos
cineastas negros conseguiram projeção no cinema comercial.

Inicialmente, o Cinema Novo expressou sua relação direta com o momento político,
tornando possível sentir a forma com que a política se relacionava com os aspectos sociais
brasileiros, pois os filmes manifestavam-se fortemente como textos de denúncia seja da pobreza,
seja da miséria, seja do contraste entre estas e a riqueza de poucos. Após o Golpe Militar de
1964, o movimento adquire um caráter de contestação aos regimes totalitários e ao poder
governamental que exerce um forte domínio sobre os indivíduos. Como afirma Prudente: “O
Cinema Novo tentou uma interpretação da realidade social Brasileira, Nesta Perspectiva teve
como opção a imagem popular, com isso a presença do negro tornou-se central e inegável”.
(Prudente, 1995).

Neste sentido, muitos dos filmes abordaram a questão racial, principalmente na primeira
fase do Cinema Novo, onde o negro e aspectos de sua cultura aparecem representados na maioria
dos filmes. Esses filmes foram caracterizados por Glauber Rocha, como um novo gênero
cinematográfico o “filme negro”, um filme de assunto negro, com atores negros e que traz
aspectos da cultura negra em seu interior.

Com efeito, após os anos 70, surgem os primeiros filmes produzidos por cineastas negros,
herdeiros diretos do Cinema Novo. Analisaremos aqui quais características deste importante
movimento se encontram nas obras destes cineastas negros com foco principal em Zózimo
Bulbul.

Desta forma, o objetivo principal deste trabalho consiste em verificar as características do


Cinema Novo nos filmes de Zózimo e na construção de um Cinema Negro no Brasil. A esse
objetivo podem-se acrescentar outros mais específicos, quais sejam: esboçar um pequeno quadro

9
histórico sobre o Brasil no período que demarca o início da carreira de Bulbul como diretor
cinematográfico; apontar os fatores que influenciaram o surgimento do Cinema Negro,
principalmente a influência das ideologias de esquerda e do movimento negro.

Para esta análise, se justifica a escolha de Zózimo Bulbul, primeiramente por ser o diretor
negro oriundo do cinema novo com mais filmes realizados, também por seus filmes refletirem a
influência direta deste movimento. Os filmes de Zózimo Bulbul, mesmo não sendo realizado no
período de ouro do Cinema Novo, retomam os seus princípios sob novos parâmetros. As
discussões concernentes à relação do filme com o movimento do Cinema Novo ocupam algumas
análises contidas neste trabalho, não apenas com respeito aos aspectos relacionados com a arte
cinematográfica propriamente dita, mas principalmente aos que dizem respeito a aspectos
ideológicos que, impregnados nos filme, percebem-se com facilidade em sua realização.
Abordaremos também, a influência direta do movimento negro na concepção de seu trabalho,
principalmente o resgate das referências históricas do povo negro no Brasil e a tentativa de
reconstruir uma identidade negra.

Os filmes de Zózimo Bulbul abordam esse universo, insistentemente ignorado e


profundamente arraigado na historia do Brasil, são obras de profundo enraizamento humanístico,
que reconstroem a memória coletiva do negro brasileiro e podem ser considerados contribuições
do diretor para uma reflexão sobre nossa sociedade e sobre nós mesmos. Neste sentido,
procuraremos analisar seus principais filmes e apontar as principais características herdadas do
Cinema Novo e o reflexo do pensamento do movimento negro em sua obra.

O primeiro capítulo é dividido em dois pontos, onde primeiro relataremos as principais


características do Cinema Novo, suas influências, sua importância histórica e seu papel na
difusão de um novo modo de fazer cinema, que não dispunha de grandes verbas e que não
possuía tanta preocupação com a distribuição comercial. Veremos como este movimento
traduzia, no plano cinematográfico, a luta política e ideológica e de que forma se dava
contribuição dos cineastas cinemanovistas para a construção de um cinema brasileiro forte.
Também analisaremos a oposição do Cinema novo ao cinema industrial e ao modelo
hollywoodiano, identificado como o espaço da dominação imperialista e da alienação nacional.

Em um segundo momento, abordaremos o negro no cinema novo, onde procuraremos


entender o significado de sua presença em diversos filmes e o caráter anti-racista destes obras.

10
Para isso faremos uma comparação com os filmes da chanchada e da Vera Cruz e sua abordagem
estereotipada, que reafirmavam sua inferioridade. Trataremos do contexto do movimento negro e
da sua repercussão na existência de um cinema de assunto negro. Ao final falaremos das
condições que possibilitaram o surgimento de diretores negros.

No segundo capítulo analisaremos as influências que as produções culturais sofrem das


lutas políticas que marcaram o período ditatorial. Falaremos dos diretores negros da década de
70, traçaremos um panorama sobre os cineastas negros que, no período, tiveram alguma projeção
no cenário cinematográfico comercial brasileiro. Faremos também, uma breve análise de seus
históricos e de suas obras, com foco no trabalho de Zózimo Bulbul. A segunda etapa deste
capítulo é concernente a trajetória pessoal e profissional de Zózimo Bulbul e a sua relação com o
movimento do Cinema Novo, onde veremos sua participação como ator e sua passagem para a
direção. Analisaremos ainda as principais influências em seu trabalho, sua relação ideológica
com o cinema novo e com o movimento negro. O movimento do Cinema Negro, do qual o
próprio diretor é considerado um dos inauguradores, senão o inaugurador, também será
abordado.

O terceiro capítulo é dedicado a análise dos seguintes filmes de Zózimo: Alma no olho,
Dia de Alforria... (?), Abolição, Samba no Trem, Pequena África, Republica Tiradentes.
Trataremos das ideologias implícitas nestas obras, uma vez que, como sabemos, o seu trabalho se
caracteriza, em virtude de sua prática política, de sua experiência de vida, por apresentar uma
ideologia alinhada com o movimento negro e o Cinema Novo. Para destacar os aspectos mais
relevantes da relação entre estes movimentos e os filmes procuraremos levantar, na concepção e
realização do filme, aspectos que foram influenciados pelo Cinema Novo e pelo pensamento do
movimento negro.

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Capítulo I - Cinema Novo: Presença do popular

1.1 - Características do Cinema Novo.

A década de 50 foi marcada por um momento onde a chanchada 1 teria chegado ao seu
auge. Era também o momento de enterro precoce de um incipiente “cinema industrial” brasileiro,
em um contexto em que havia uma afirmação crescente de um projeto nacional popular,
alimentado pela esquerda (XAVIER, 2001).

No contexto social, este período, denominado pelo sociólogo Octavio Ianni (1986) como
“democracia populista” caracterizou um movimento político marcado por transformações
econômicas e políticas, advindas de um contexto de intenso crescimento econômico, êxodo rural
e acelerada urbanização. O populismo desta época se relaciona com o consumo em massa e com
o aparecimento da cultura de massa. Durante esse período, o Brasil sofreu um intenso processo de
industrialização, porém com resultados sociais contraditórios, o país era caracterizado como
subdesenvolvido e culturalmente colonizado. Com efeito, se desenvolveu um forte sentimento
nacionalista que se opunha aos interesses internacionais e que colocava os interesses da nação
como prioritários. Expressões como “cultura nacional” e “consciência nacional” eram
constantemente repetidas (CARVALHO, 2005).

“O papel que a produção cultural teria que desempenhar nesse


processo de afirmação nacional era fundamental. A burguesia e
as camadas urbanas guiavam seu comportamento por aquilo
que era ditado pela produção cultural estrangeira,
principalmente pelo cinema de Hollywood. Diante disso, a
necessidade de se criarem condições para que o artista
brasileiro pudesse enfrentar as produções estrangeiras era uma
das frentes de atuação dos nacionalistas. A luta pela afirmação
de uma cultura nacional tinha como um dos seus principais
objetivos buscar fazer com que o cinema brasileiro, por ser uma

1
O termo chanchada surgiu, para designar os filmes brasileiros nos anos 30. Etimologicamente, o termo
“chanchada” vem do italiano cianciata, que significa um discurso falso, sem sentido, um arremedo vulgar. Já no
espanhol platino o termo remete a chancha que quer dizer “porco”,” sujo “(Cunha,1982). O dicionário Houaiss dá
quatro acepções para a palavra: 1) espetáculo popularesco de baixa qualidade conceitual; 2) espetáculo ou filme em
que predomina um humor ingênuo, burlesco, de caráter popular; 3) filme cinematográfico ou programa televisivo de
baixa ou má qualidade; e 4) comportamento ou providência carente de seriedade. (CARVALHO, 2005, p.50)

12
arte e um veículo de comunicação de massa, ocupasse os
espaços do cinema estrangeiro ou que, ao menos, conseguisse
dele tomar uma fatia do mercado brasileiro”. (Simonard, 2006;
27).

O Cinema Novo surge neste contexto e tem sua ascensão no momento em que a
chanchada entra em crise, a partir daí se inaugura um novo momento no cenário cinematográfico
brasileiro. O Cinema Novo é fortemente influenciado pela Nouvelle Vague 2 (França), pelo Neo-
realismo 3 (Italiano). Por um lado, rompe com os grandes estúdios e conseqüentemente com o
cinema de indústria, por outro valoriza a perspectiva da realidade e da conscientização política.
Os filmes e os primeiros longas-metragens do Cinema Novo definiram um inventário das
questões sociais e promoveram uma verdadeira descoberta do Brasil (SIMONARD, 2006).

O Cinema Novo é marcado por três fases, a primeira é caracterizada por filmes que
abordavam temas ligados ao nordeste e aos problemas desta região; a segunda fase tem como
foco os equívocos da política desenvolvimentista, da ditadura militar, além de refletir sobre os
rumos da história nacional; a terceira e ultima fase é influenciada pelo tropicalismo.

Diversos cineastas contribuíram para Cinema Novo, dentre os principais nomes podemos
destacar: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Paulo César Saraceni,
Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Rui Guerra, Roberto Faria, Roberto Pires, Alex
Viany, Leon Hirzsman, Arnaldo Jabor, Walter Lima Júnior, Domingos de Oliveira, Júlio
Bressane, Paulo Gil Soares, Mário Fiorani, Antonio Carlos Fontoura, Gustavo Dahl, Fernando
Coni Campos, Maurício Gomes Leite, Sílvio Back, David Neves, Iberê Cavalcanti, Roberto
Sganzerla, Eduardo Coutinho, Miguel Borges, Marcos Faria. Entre os principais filmes que
tiveram projeção e ocasionaram impacto no cenário cinematográfico brasileiro estão:
Barravento, O câncer, Terra em Transe, O pátio, Rio 40 Graus, Rio Zona Norte, Vidas Secas,
Integração Racial, Porto de Caxias, Caminhos, Capitu, Cinco Vezes Favela, Ganga Zumba, Os
Fuzis, Sol sobre Lama, Falecida, Opinião publica, O circo, Dança Macabra, Em Busca do
Ouro, Memórias de Helena, Mauro Humberto; entre outros (SARACENI,1993). Uma das

2
Nouvelle Vague é um movimento artístico contestatório do cinema francês, onde os filmes eram caracterizados por
uma vontade comum de transgredir os padrões do cinema comercial (ROCHA, 1981).
3
O Neo-realismo italiano surge como um reflexo cultural da situação em que a Itália se encontrava no final da
ocupação nazista. Os diretores da época acreditavam que a poética do cinema estava na realidade do cotidiano, que
os filmes produzidos deveriam apresentar a realidade sem interferências (ROCHA, 1981).

13
principais características que encontramos em todas estas obras é a abordagem critica da
realidade social brasileira.

O Cinema Novo era um cinema de caráter mais político, que utilizava de uma outra
concepção de se fazer cinema; onde os filmes são de baixo orçamento, sempre apontando para
uma representação nacional popular, onde a estética é experimental e de colagem. Era um
cinema que buscava um projeto político que carregasse uma cultura audiovisual crítica e
conscientizadora, voltado para as questões sociais, renovando sua linguagem e quebrando
padrões tradicionais. O Cinema Novo utilizava o marginalizado como representação do povo.
Como afirma Paulo Cesar Saraceni, o Cinema Novo propunha uma tônica de ruptura, era um
cinema de autor, um cinema que tinha forte comprometimento nacional e com a luta
antiimperialista, um cinema revolucionário. (SARECENI. APUD SIMONARD, 2006).

Noel do Santos Carvalho em sua tese de doutoramento: Cinema e Representação Racial -


O Cinema Negro de Zózimo Bulbul, afirma que “a luta política e ideológica encontrava uma
simbolização no plano estético em que a figura do autor sobrepunha-se à do diretor profissional
de Cinema” (Carvalho, 2005; 109). Assim podemos perceber, como nos afirma Saraceni, que no
Cinema Novo a figura do autor da obra era a que se colocava como central na realização de
qualquer filme.

O que caracterizava o realizador do Cinema Novo era a oposição frontal ao cinema


industrial, identificado como o espaço da dominação imperialista e da alienação nacional. O
engajamento do cineasta dava-se a partir de um cinema de autor e de uma linguagem
revolucionária (CARVALHO, 2005). Com efeito, os cinemanovistas teciam criticas e se
contrapunham as produções realizadas pelos estúdios da Vera Cruz 4 em São Paulo e pela
chanchada no rio, caracterizadas pela modelo hollywoodiano de se fazer cinema. (XAVIER,
2005).

O Cinema Novo marca uma geração preocupada em constituir um cinema brasileiro forte.
Ainda no início da década de 50, essa geração articula diversas criticas sobre o cinema brasileiro,
questionando a dependência do mercado brasileiro aos filmes importados, a submissão do

4
Inaugurado em 1949 é considerado o primeiro estúdio cinematográfico em moldes profissionais do país, realizou
22 filmes de longa metragem. Com o lema “Produção Brasileira de Padrão Internacional”. A Vera Cruz se propunha
a realizar um cinema brasileiro em bases industriais.

14
cineasta no Brasil à linguagem do cinema produzido em Hollywood e outros centros mais
desenvolvidos, dando inicio a luta para que o cinema nacional se tornasse, verdadeiramente, uma
das expressões da cultura brasileira (SIMONARD, 2006).

“O Cinema Novo se caracterizou por sua atitude de


anticolonialismo cultural, condição que o indicou a resgatar
valores significativos do homem e da cultura tipicamente
brasileiro. O que aponta para uma axiologia afro-americana
num tratamento sociológico de nuances sociológicas que
indicavam para uma estética que Glauber Rocha definiu de
“estética da fome” (PRUDENTE, 1995).

É importante destacar que o Cinema Novo reformulou grandemente o cinema brasileiro:


os filmes produzidos no Cinema Novo, por carregarem a herança citada acima, tinham como
características a produção filmes reflexivos, com o intuito de questionar a realidade brasileira,
trazendo a tona os males causados pelo imperialismo e as mazelas causadas pelo capital,
reafirmando e mostrando um outro Brasil, diferente do que era até então apresentado.

“No início dos anos 60, o Cinema Novo expressou sua direta
relação com o momento político em filmes onde falou a voz
do intelectual militante, sobreposta à do profissional de
cinema. Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema
industrial - terreno do colonizador, espaço de censura
ideológica e estética - o Cinema Novo foi a versão brasileira
de uma política de autor que procurou destruir o mito da
técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da
atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade
brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era
buscar uma linguagem adequada às condições precárias e
capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da
experiência social. Tal busca se traduziu na “estética da
fome”, na qual escassez de recursos técnicos se transformou
em força expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em
sintonia com os seus temas”. (XAVIER, 2001 p. 62 e 63).

O Cinema Novo abusava das idéias de experimentação com o intuito mostrar o


marginalizado como representação popular, tentando retratar a realidade brasileira e combater o
alienante cinema de indústria produzido na época pela chanchada e pela Vera Cruz. Desta forma,
podemos notar que muitos filmes do Cinema Novo enfatizam a cultura negra, indígena e a
cultura popular em geral, como forma de mostrar a cara do país.

15
Figura 1: Fabiano e Sinhá Vitória em Vidas Secas.
Fonte: Filme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Produzido em 1963.

Figura 2: Cena do filme Deus e o diabo na terra do Sol.


Fonte: Filme Deus e o diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964).

16
1.2. - O negro no Cinema Novo.

A quase totalidade das produções cinematográficas brasileiras aborda a figura do negro a


partir de personagens estereotipados e caricatos ou simplesmente ignora a presença do negro na
sociedade ao deixar de representá-lo. As chanchadas retratam de forma inequívoca este quadro:
apesar da aparente “cordialidade democrática” nas duplas que Grande Otelo fez nas chanchadas
com parceiros brancos (Oscarito e Ankito), nos anos 1950, volta e meia surge uma piada étnica
comparando o negro ao urubu ou ao macaco (RODRIGUES, 2001).

“O cinema é um meio de comunicação de massa e meio de


produção. A localização social do negro no cinema é um
problema que se dá no campo sócio-econômico, na medida
em que o negro é marginalizado socialmente.” (Prudente,
1995; 17)

Assim podemos perceber que o cinema, por ser um meio de comunicação de massa a
comando de uma elite burguesa, como nos aponta acima Prudente, consiste na produção de
imagens reafirmando o modelo social estabelecido. Podemos notar que na década de 50 o cinema
feito pela chanchada somente representava a figura do negro de forma estereotipada. Ainda
segundo Prudente: “A presença do negro na chanchada é rarefeita, com o objetivo de afirmar o
estereótipo da inferioridade do negro e como forma de justificar sua marginalização sócio-
econômica”. (Prudente, 1995; 17).

No movimento da chanchada os estereótipos raciais que se mostram mais comuns são o


do malandro e do sambista cômico, isto se verifica principalmente nos filmes de Grande Otelo e
Oscarito, onde os personagens representados por Otelo sempre seguem esta configuração.
Também podemos perceber que, com relação a personagens masculinos, em todo o período da
chanchada sempre teremos estes estereótipos facilmente identificados. Já em relação aos
personagens femininos, estes são comumente representados pela figura estereotipada da
empregadinha voluptuosa e intrometida, como representado no filme De Vento em Popa (1957) e
Garotas e Samba (1957). (DE, 2005).

Ainda sobre a representação do negro no cinema brasileiro, João Carlos Rodrigues, em


seu estudo O Negro brasileiro e o cinema (2001) afirma que estes não são representados como
personagens individualizados e profundos, mas apenas como arquétipos, estereótipos ou
caricaturas. O autor enumera alguns destes principais arquétipos:

17
“Os mais importantes são o Preto Velho (que transmite a
tradição ancestral africana), o Mártir da escravidão, o Nobre
Selvagem, o Negro Revoltado, o Negro da Alma Branca
(trágico elo entre oprimidos e opressores), o Crioulo Doido
(equivalente assexuado e cômico do Arlequim da Commedia
dell’Arte), a Musa Negra. Há dois com uma nítida conotação
sexual exacerbada : o ameaçador Macho Negro (Negão) que
povoa os sonhos racistas com estupros e violências; e a
Mulata Sedutora (Mulata Boa), uma espécie de mulher-objeto
cor de chocolate, desejada por todas as raças. Todos os
personagens negros e mulatos da ficção brasileira se
enquadram em uma dessas categorias, quando não em mais
de uma”. (Rodrigues, 2001:30)

Apenas em um momento posterior à chanchada, com a chegada de um cinema


revolucionário, proposto pelo Cinema Novo, é que temos o negro como objeto de preocupação
do cinema (PRUDENTE, 1995). A partir daí a presença do negro no cenário cinematográfico
brasileiro começa a tomar nova forma, onde o negro deixa de ser retratado de forma
estereotipada e passa a configurar sua presença em um novo patamar, o de protagonista.
Notamos que, ainda na chanchada, tínhamos um início deste protagonismo com a presença de
atores negros como Grande Otelo, que teve importante participação nos filmes, porém esta
representação ocorria de forma isolada e não foi suficiente para uma ruptura das representações
estereotipadas em que o negro estava submetido naquele momento do cinema (DE, 2005).

A partir do Cinema Novo ocorreu uma mudança de sentido dentro do cinema brasileiro.
O Cinema Novo foi divisor de águas, reivindicou para sí mudanças na crítica, estética e no modo
de realização que redefiniram a produção posterior, trazendo a tona um outro modo de se fazer
cinema, fugiu dos padrões seguidos pela Vera Cruz e Chanchada e renovou a linguagem
cinematográfica (CARVALHO, 2005). Quando falamos dessa renovação, abordamos não apenas
a técnica ou a concepção artística, mas principalmente fatores que influenciam diretamente no
roteiro e no enredo do filme, na relação com a sociedade, na escolha dos personagens, do cenário
e dos atores. Neste contexto de revisão critica do cinema brasileiro, a questão racial ganha uma
nova roupagem, onde o negro e os aspectos de sua cultura aparecem significadamente
representados. Assim é valido ressaltar que o Cinema Novo inaugura uma nova fase para o negro
no cenário cinematográfico brasileiro, fase esta influenciada pelo realismo critico, como afirma
Glauber Rocha:

18
“O avanço representado pela consciência de um realista como
Graciliano Ramos fez com que, somente agora, através de
Paulo César Saraceni (Porto das Caxias) e Nelson Pereira
dos Santos (Vidas Secas) o realismo crítico começasse a
definir um estilo do cinema brasileiro” (Rocha, 2003:46-7).

Com efeito, podemos perceber, neste contexto, a questão racial foi levada em conta, nota-
se que na primeira fase do Cinema Novo, o negro e aspectos de sua cultura aparecem
representados na maioria dos filmes, cuja temática trata basicamente sobre o Nordeste seco e
distante, o Litoral e a favela. Podemos constatar isso em filmes como: Rio 40 graus (1955) e
Rio Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos; Aruanda (1959-1960) de Linduarte
Noronha; Barravento (1962) de Glauber Rocha; Cinco vezes favela (1962) de Carlos Diegues,
Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e Joaquim Pedro Andrade; Bahia de Todos os
Santos (1961) de Trigueirinho Neto; A Grande Feira (1961), de Roberto Pires; e Ganga
Zumba (1964) de Carlos Diegues (CARVALHO, 2005).

Os cineastas do Cinema Novo, nos filmes apontados acima tentam mostrar e trazer à tona
a realidade social brasileira. São influênciados principalmente por movimentos como o Neo-
realismo Italiano e Nouvelle Vague francesa. Ainda nos anos 50, vemos filmes em que a
temática negra aparece representada de forma explicita, isenta de estereótipos.

Rio 40 graus, realizado em 1955 por Nelson Pereira dos Santos é um filme que corrobora
esta afirmação, ao tratar do cotidiano dos moradores de uma favela carioca e das contradições
entre a cidade e o morro, marca o cinema brasileiro, primeiramente por se tornar uma
referencia cultural e importante para os cineastas da época, e em um segundo momento por
tratar o cinema como um instrumento de reflexão sobre os problemas do povo. É importante
destacar também, nesta fase, a presença de Glauber Rocha, sem dúvida um dos cineastas mais
polêmicos e um dos percussores do movimento. No cinema feito por Glauber Rocha, a
problemática da marginalização do negro torna-se nuclear, ou seja, elemento protagonista dos
filmes. (PRUDENTE, 1995). Glauber Rocha, a partir do filme Barravento (1961) inaugura
um novo gênero cinematográfico o “filme negro”, podemos observar isso nas características
do filme e em sua afirmação:

19
“Em Barravento encontramos o início de um gênero, o “filme
negro”: como Trigueirinho Netto, em Bahia de Todos os
Santos, desejei um filme de ruptura formal com o objeto de
um discurso de crítica sobre a miséria dos pescadores negros
e sua passividade mística” (Rocha, 2003; 131).

Esta afirmação de Glauber Rocha denota uma nova abordagem em relação à presença do
negro no cinema, é um momento onde o cinema deseja retratar o Povo. Na década de 50 havia
uma polarização do cenário cinematográfico, de um lado aqueles que defendiam um cinema
comercial, com filmes realizados em estúdios e voltados para o mercado externo, que
estivessem a serviço da indústria do capitalismo e fossem baseados em modelos
hollywoodianos, onde seus principais membros eram originários principalmente de estúdios
como a Vera Cruz. No outro pólo, estavam aqueles que eram adeptos do que entendiam por
cinema popular. Estes em sua maior parte muitos jovens, eram filiados ou simpatizantes do
partido Comunista Brasileiro (PCB) e levavam consigo a crença que, para cooptar o público
para seus filmes, deveriam realizar um cinema que se aproximasse do povo, um cinema que
trouxesse o Brasil à tona, foram estes cineastas que queriam trazer uma perspectiva popular
em seus filmes, que contribuíram para outro tipo de representação do negro dentro do cinema
(DE, 2005).

Podemos reafirmar a presença do negro dentro do Cinema Novo a partir da frase dita pelo
sociólogo negro Guerreiro Ramos:

“O negro é o povo no Brasil” (Ramos, 1995).

A partir desta concepção defendida por Ramos e da visão de cineastas como Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos que acreditavam que o cinema deveria ter uma perspectiva
de representação popular é que o Cinema Novo procurava representar a sociedade em seus
filmes. Neste contexto as temáticas que envolviam o negro apareceram como elemento
essencial em diversas produções, confirmando assim as palavras de Glauber Rocha, e sua
afirmação de que o Cinema Novo inaugurou um novo gênero cinematográfico, o “filme
negro”.

Sobre este assunto, o cineasta e critico David Neves tece algumas considerações
importantes: 1) o Cinema Novo Fundou uma forma de abordar o negro como tema ou assunto
sem os preconceitos anteriores (indiferença, exotismo, exploração comercial, racismo). A cor

20
passa a ser indiferente, embora não seja negligenciada, tanto que os filmes promovem a
identificação entre o realizador (branco) e os personagens negros; 2) os termos cinema de
assunto negro, cinema negro e filme negro são utilizados indistintamente para referir-se aos
filmes cujas histórias abordam aspectos ligados à vida da população negra, como a
religiosidade (Barravento), a história (Ganga Zumba, Aruanda), o preconceito racial
(Integração racial, Esse Mundo é meu), entre outros; 3) a argumentação está alinhada com as
investidas mais gerais do grupo Cinema Novo nas suas estratégias de diferenciação em relação
aos filmes da Vera Cruz (racistas) e aos filmes da chanchada (comerciais, exploradores do
exotismo) (Neves. APUD. CARVALHO, 2005; p.116).

O autor aponta que os filmes do Cinema Novo são anti-racistas, a partir do que foi
exposto nas linhas anteriores notamos que, dentro das perspectivas centrais apresentadas pelos
cineastas do Cinema Novo, a presença do negro seria inegável como protagonista a ser
apresentado.

Barravento e Ganga Zumba são apontadas pelo cineasta cinemanovista Orlando Senna
como as duas principais abordagens do negro feitas pelo Cinema Novo: “Pelo próprio assunto
e pelo tratamento que lhe é dado, pela imagem propositiva do negro em sua luta libertária,
Ganga Zumba compõe com Barravento a indicação ideológica básica do Cinema Novo no que
diz respeito ao Negro Brasileiro" (Senna. APUD CARVALHO, 2005; p.119).

É importante ressaltar que a representação racial no Cinema Novo não está deslocada da
política geral dos artistas do movimento, trata de um cinema de esquerda, em que as
representações do negro estão submetidas às lutas políticas que marcaram o período. No
contexto do movimento negro, intelectuais como Guerreiro Ramos, Edison Carneiro e Abdias do
Nascimento desenvolviam criticas em relação a noção da democracia racial 5, que passou a ser
entendida como forma de ocultar a realidade do racismo brasileiro, também era recorrente, no
interior do movimento negro, o debate sobre a afirmação política da identidade negra.

5
Expressão sob a qual se aninha a falsa idéia da inexistência de racismo na sociedade brasileira. (Lopes, 2004:232)

21
“Suas demandas por integração passavam pela negação do
estereótipo e da caricatura expressas no uso do blackface,
figuração inequívoca do racismo e da negação de auto-
representação. Tal integração foi buscada pelos filmes do
movimento na sua luta por uma teleologia revolucionária em
que cabia ao negro o papel de vanguarda pela libertação dos
deserdados da terra.” (Carvalho, 2008; p. 228)

Mesmo com filmes que abordavam a questão racial, Senna aponta a este tipo produção
como sutil, diante da gigantesca produção de filmes do Cinema Novo. “Uma proposta
ficante (como a questão
essencialmente política onde qualquer preocupação diversi racial)
poderia obscurecer o verdadeiro ponto a ser discutido - as classes sociais e a dependência"
(Senna. APUD CARVALHO, 2008; p 119).

Ainda acerca da relação entre o negro e o Cinema Novo e da afirmação que as realizações
deste último esta intimamente ligada ao contexto político da época, destaca-se que, após o Golpe
de 64, os negros quase desaparecem dos filmes, que se voltaram para a crítica à classe média.
Pescadores, moradores do morro, cangaceiros e camponeses foram substituídos por intelectuais
histéricos e amargurados (XAVIER. APUD CARVALHO, 2008; p. 121). É importante lembrar
que o tratamento dado aos personagens negros, as formulações nos textos e depoimentos dos
cinemanovistas devem ser vistos da perspectiva de aproximação com a cultura popular que
caracterizou a atuação dos artistas vinculados à esquerda nacionalista. A radicalização do
processo político e o desfecho trágico do golpe militar dado em 1° de abril de 1964
interromperam esse processo.

É perceptível a existência de um cinema de assunto negro, porém ao mesmo tempo,


verificamos a ausência de filmes realizados por autores negros.filme
“O de autor negro é
fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico brasileiro, o que não acontece
absolutamente com o filme de assunto negro que, na verdade é quase sempre uma constante
(NEVES. APUD CARVALHO, 2008; p.112). De fato, o Cinema Novo foi fundamental para a
construção de uma nova simbolização do negro, consequentemente pavimentou o caminho para
o ingresso de uma nova geração de atores afro-brasileiros no cinema sem reproduzir as velhas
caricaturas, podemos citar entre os principais Milton Gonçalves, Waldyr Onofre, Antonio
Pitanga, Lea Garcia, Jorge Coutinho, Haroldo de Oliveira, Luiza Maranhão, Zózimo Bulbul e
Eliezer Gomes. (DE, 2005). Mesmo sem produzir autores negros, alguns dos atores que fizeram
parte do Cinema Novo enveredaram para a direção poucos anos mais tarde, tais como Zózimo

22
Bulbul, Antonio Pitanga e Waldir Onofre, alguns dos quais transmitiram em seus filmes a
concepção e a herança política do Cinema Novo.

Figura 3: Antonio Pitanga e Hugo Carvana em filme O Câncer.


Fonte: Filme O câncer, de Glauber Rocha (1968-1972).

23
Figura 4: Pescadores Negros em filme Barravento
Fonte: Filme Barravento, realizado por Glauber Rocha em 1962.

24
Figura 5: Atores Negros no filme Ganga Zumba.
Fonte: Filme Ganga Zumba de Caca Diegues.

25
Capítulo II - Um panorama sobre os Cineastas Negros de 70.

2.1 - Cineastas negros e o cinema brasileiro.

O Golpe de 64 estabeleceu a preocupação em manter o controle social, o que levou os


militares a organizarem um complexo aparato repressivo por meio da atuação do Serviço
Nacional de Informação, das Seções das Forças Armadas, dos COI/CODI (Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) e dos DOPS (Departamento
Estadual de Ordem Política e Social) que integravam a comunidade de informações e segurança.
Desta forma iniciou-se a repressão sobre as organizações da sociedade civil, desarticulando,
sindicatos, partidos, agremiações estudantis e movimentos organizados, com reflexos nas artes e
produções culturais, principalmente após o Ato institucional cinco (AI-5), quando as pressões
políticas se intensificaram (KÖSSLING, 2007).

O golpe atinge o cinema no momento de sua plena ascensão, que sofre as pressões
advindas de um regime político conservador, censura policial e perseguição política o que impôs
um clima encorajador de auto-censura. Neste contexto são filmados filmes como Deus e o Diabo
na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), onde estão presentes as discussões das
questões políticas e sociais nacionais, contrapondo-se à imagem fantasiosa criada pelo aparelho
de propaganda da ditadura que mascarava a exclusão social e a violência do regime. Já
enfrentando a censura e interdição de vários de seus filmes, em 1971 o Cinema Novo é atingido
de forma direta, Glauber Rocha é caracterizado como elemento subversivo pelo regime e vai
para o exílio. Muitos dos mais importantes nomes do Cinema Novo também vão ao exterior.
Neste período, crescem os filmes comerciais ligados a pornochanchada 6. O movimento
cinematográfico conhecido como Cinema Marginal 7 também toma corpo. Alguns diretores são
obrigados a recorrer a metáforas como forma de levantar alguma reflexão, esta estratégia é
definida por Carlos Diegues como “estética do silêncio” (BERNARDET, 1978).

6
Conjunto de filmes com temáticas diversas identificado com comedias eróticas, sua demoninação se deve por
trazer alguns elementos dos filmes da Chanchada e pela dose alta de erotismo. (RAMOS & MIRANDA, 1997).
7
Cinema Marginal pode ser caracterizado como um tipo de produção que reivindica abertamente seu caráter de
marginalidade, em conseqüência da perda de função social do cinema, em dois sentidos: Como ação política, em
virtude do esquema de repressão no pais; Como veiculação de uma idéia que, partindo de um autor, deveria atingir
(e modificar) o publico. (FABRIS & FABRIS, 2003)

26
A partir da década de 1970, os órgãos de repressão passam a dispensar uma maior
vigilância aos movimentos negros, historicamente alinhados a esquerda. Durante os anos do
governo Geisel (1974-1978), a repressão voltou-se para os grupos de oposição, reais ou
imaginados. A repressão não alcançou somente a luta armada e aos que almejavam lutar pelas
revoluções nacional e social, mas também atingiu a todos os que articulavam reivindicações
sociais ou que apenas faziam oposição política, como os diversos movimentos anti-racistas no
Brasil. As reivindicações próprias do discurso do movimento negro referente as demandas e
mazelas sociais que a população afro-descendente enfrentava apresentava-se como subversão aos
olhos da polícia política. Não obstante, os aparatos repressivos consideravam qualquer crítica
contra as autoridades constituídas como um crime contra a segurança do Estado, o que
justificava a repressão (KÖSSLING, 2007).

Haroldo Costa, ator cinemanovista e jornalista relata este período:

“cada vez que há um endurecimento, um fechamento político,


o negro é atingido diretamente porque todas as suas
reivindicações particulares, a exposição de suas ânsias, a
valorização de sua história, desde que não sejam feitas
segundo os ditames oficiais, cheiram à contestação
subversiva” (Costa, 1982, s/n.).

No cinema de 70, as discussões sobre a questão racial ganhariam nova roupagem nos
filmes dirigidos por autores negros. Vimos até agora como o cinema brasileiro evoluiu no
tratamento ficcional dos personagens negros, desde as sátiras raciais das chanchadas dos anos 50
até os filmes politicamente engajados do Cinema Novo. Em seguida, analisaremos o cinema
realizado por diretores negros, passando para o outro lado das câmeras, com foco no trabalho de
Zózimo Bulbul que se destaca dos demais pela densidade de seus filmes, que abordam as
relações raciais de forma enfática.

Os filmes realizados por autores negros na década de 70 foram produzidos


principalmente pelas mãos de diretores herdeiros do Cinema Novo, neste trabalho trataremos
de alguns deles: Waldir Onofre, Antonio Pitanga, Odilon Lopes e Zózimo Bulbul. Também
abordaremos a trajetória de um diretor negro anterior ao Cinema Novo, Haroldo Costa, com o
objetivo de tentar traçar as contradições entre o pré e o pós Cinema Novo.

27
Haroldo Costa iniciou sua trajetória no Teatro Experimental do Negro (TEN) 8, onde
trabalhou como contra-regra e ator. No TEN trabalha nas peças: O filho pródigo (1948),
Aruanda (1948), e Calígula (1949). Em 1949, retira-se do TEN e funda, juntamente com
outros artistas o Grupo dos Novos. Já com o Grupo dos Novos, depois renomeado para
Brasilianas, produz o Rapsódia de Ébano, espetáculo que conta a historia do negro no Brasil,
com o sucesso do espetáculo se apresenta na Argentina, Uruguai, Venezuela, Chile e outros.
Apresentam-se também na Europa, ao final, permanecem um total de quatro anos em turnê e
se apresentam em 25 países.

De volta ao Brasil, Haroldo protagoniza a peça teatral Orfeu da Conceição (1956),


escrita por ele com musicas de Tom Jobim e cenários de Oscar Niemeyer. Passou também a
dirigir musicais e programas de televisão. Em 1957 é convidado para trabalhar no projeto do
filme Pista de Grama, onde, em um primeiro momento, fica responsável pelo roteiro e
argumento e após assume a direção. Pista de Grama é lançado em 1958, trata-se de uma
comédia, que conta com apenas poucos personagens negros coadjuvantes. Em São Paulo foi
lançada com o nome de Um desconhecido bate a porta. O filme obteve reconhecimento da
critica e ganhou os prêmios de melhor fotografia e melhor argumento no VI Festival de
Cinema do Distrito Federal. Mesmo sendo dirigido por um ativista negro, o filme reproduz o
estereotipo da empregadinha negra silenciosa, o que, infelizmente, era a norma na época.
Retomamos aqui as diferenças conceituais que o Cinema Novo trouxe para a filmografia
nacional, na medida em que, mesmo um cineasta negro, com passagem pelo Teatro
Experimental do Negro, reproduz os estereótipos sociais decorrentes da escravidão, que
associam a mulher negra a papeis sociais de servidão. Nas palavras do pesquisador
cinematográfico Noel dos Santos Carvalho:

“Ao reproduzir o estereotipo do negro, o cineasta naturalizou


um tipo de representação que era tido como norma pelo meio
cinematográfico naquele contexto. As explicações de
“normal” ou “o formato de cinema que se fazia na época”,
mostram como ele acabou internalizando a experiência social
de um campo cuja presença do negro e reflexão racial eram
mínimas.” (Carvalho. APUD DE, 2005; p. 67)

8
Entidade do Movimento Negro brasileiro, fundada em 1944 sob liderança de Abdias do Nascimento (LOPES,
2004)

28
Diferente de Haroldo se dá a atuação dos diretores negros do que surgem nos anos 70,
onde a produção cinematográfica se dá principalmente a partir da percepção a respeito da
necessidade de uma nova representação do negro, oriunda do Cinema Novo, onde os estereótipos
foram condenados. A herança da busca pela realidade do país e do papel do cinema de trazer a
reflexão também marcou o trabalho destes cineastas.

Waldir Onofre iniciou sua carreira cursando radio-teatro, estudou dramaturgia,


interpretação e direção no Conservatório Nacional de Teatro. Na década de 60 ingressou no
Centro Popular de Cultura (CPC), onde fez teatro de agitação política. Atuou no filme Cinco
Vezes Favela e em outros do inicio do Cinema Novo. Em sua carreira de diretor, produz um
único filme: As aventuras amorosas de um padeiro (1976), o filme trata-se de uma sátira à
população carioca que conta com a produção de Nelson Pereira dos Santos. Mesmo tratando-se
de uma comédia, o filme carrega alguns traços do Cinema Novo, principalmente nas criticas ao
cotidiano urbano carioca. Após este filme Waldyr continua atuando no cinema, porém apenas
como diretor de elenco.

Outro diretor deste período é Antonio Pitanga. Pitanga iniciou a carreira no estado da
Bahia, de onde é natural. Trabalhou longa metragem Bahia de Todos os Santos, o primeiro
dirigido naquele estado. Atuou diversos filmes, entre os principais estão Chico Rei (1985),
Quilombo (1984), Na Boca do Mundo (1978), A Deusa Negra (1978), Ladrões de Cinema
(1977), Crueldade Mortal (1976), Joanna Francesa (1975), Mestiça, a Escrava Indomável
(1973), Uma Negra Chamada Tereza (1973), Quando o Carnaval Chegar (1972), Vozes do
Medo (1972), República da Traição (1970), Golias Contra o Homem das Bolinhas (1969), Em
Compasso de Espera (1969), Cangaceiros de Lampião (1967), Samba (1965), Menino de
Engenho (1965), Lampião, o Rei do Cangaço (1964), Ganga Zumba (1963), O Pagador de
Promessas (1962), Barravento (1962), entre outros. Antônio Pitanga atuou nos filmes dos
principais realizadores do Cinema Novo. Em 1978 dirige o filme Na Boca do Mundo, seu
primeiro e único filme, que conta com o argumento de Carlos Diegues. O Filme conta a estória
de um triangulo amoroso, onde o protagonista negro acaba perdendo a vida ao envolver-se com
uma branca rica e uma mulata ambiciosa.

Odilon Lopes é outro diretor negro da época. Natural do Rio Grande do Sul dirigiu em
1970 a comédia Um é pouco, dois é bom. Dividida em dois episódios, descreve estórias

29
engraçadas, porém com um fundo dramático. Odilon iniciou sua carreira ainda na fase da
chanchada como ator e assistente dos principais diretores do gênero. Ainda na década de 60
ingressou na TV Piratini como cineasta e ator, e após 64, como diretor de TV.

Vale destacar a dificuldade que estes diretores negros da década de 70 sofreram para
realizar seus filmes, uma vez que fazer cinema no Brasil nunca foi uma tarefa tranquila: havia o
problema dos recursos técnicos e financeiros, o fantasma da censura, aliado a sempre presente
discriminação racial, que inequivocadamente representou um peso na trajetória destes autores.
Os diretores Odilon Lopez, Antonio Pitanga e Waldir Onofre realizaram filmes interessantes,
mas, de fato, nenhum chegou a conquistar o público. O caso de Zózimo Bulbul é um pouco
diferente, pois optou pelo gênero documentário, com certa continuidade e uma evidente
militância política.

30
Figura 6: Haroldo Costa e Cineasta.
Fonte: http://www.bercodosamba.com.br

Figura 7: Antônio Pitanga, ator e cineasta.


Fonte: http://www.orondoniense.com.br/section.asp?cod=noticias&cd=12299&goto=Geral

31
2.2 - Zózimo Bulbul e o Cinema Novo.

Jorge da Silva nasceu em 21 de setembro de 1937 em Botafogo, Rio de janeiro. Filho de


Sebastião Alves Brito e Rita Maria da Silva, tornou-se conhecido nacionalmente como Zózimo
Bulbul. Sua trajetória como ator é marcada por passagens no Cinema, na televisão e no teatro.
Bulbul foi o primeiro protagonista negro de uma novela brasileira, também está entre os
principais atores negros que atuaram nos filmes do Cinema Novo nas décadas de 50 e 60, onde
trabalhou com os principais diretores.

Sua trajetória na dramaturgia se inicia em 1961 no Centro Popular de Cultura (CPC) onde
se aproximou de jovens diretores do Cinema Novo. Seu primeiro trabalho como ator profissional
se deu no curta metragem Pedreira de São Diogo (1662) de Leon Hirshman, que compunha, com
outros quatro outros curtas, o filme Cinco Vezes Favela dos diretores Miguel Borges; Joaquim
Pedro de Andrade; Marcos Farias e o já citado Leon Hirszman. Em 1963 atua no filme de
temática negra, Ganga Zumba de Carlos Diegues, onde fazia o papel de um escravo fugido do
engenho que se recusava a seguir os quilombolas até Palmares. Em 1965 Zózimo participa do
filme O Grande Sertão, onde atua ao lado de Milton Gonçalves, filme dirigido por Geraldo e
Renato Santos Pereira. Entre 1965 e 1967 participa de importantes filmes como Proezas de
Satanás na Vila do Leva-e-Traz, de Paulo Gil Soares; El justicero de Nelson Pereira dos Santos;
Garota de Ipanema de Leon Hirshman; O Engano de Mário Fiorani e Terra em Transe de
Glauber Rocha. Em 1969 atua ao lado da atriz Regina Duarte na grande produção A
compadecida, filmada em Pernambuco e dirigida por George Jonas. Neste filme, Zózimo fazia o
papel de um Cristo negro. Neste período, Zózimo atuou também em Le Graubuge, uma produção
francesa Dirigida por Eduardo Luntz.

Além dos trabalhos como ator de cinema, Zózimo teve uma intensa trajetória no teatro,
seu primeiro trabalho como ator de teatro foi na peça Bonitinha, de Nelson Rodrigues,
encenada na Maison de France em 1962, onde recebeu o prêmio de ator revelação. Obtendo
grande reconhecimento do publico, trabalhou em peças importantes como Orfeu Negro (1964)
sob a direção de Haroldo Oliveira; Um gosto de Mel (1965) dirigido por Luiz C. Sanze;
Memórias de um Sargento de Milícias (1966), dirigido por Geraldo Queiróz, essa ultima
montada pelo Grupo de Teatro Ação, um grupo formado majoritariamente por atores negros.

32
Já em 1967, escreveu, dirigiu e produziu a peça A canção do Negro Amor, encenada nos
teatros Casa Grande e Opinião (CARVALHO, 2005).

Entre os anos de 1961 e 1964, Zózimo passa por um intenso período de estudos onde é
beneficiado por bolsas de estudo, neste mesmo período, devido a uma divergência com um
professor, desiste do curso na Faculdade Belas Artes, dedicando-se a cursos de teatro e cinema
com importantes figuras da época.

A passagem de Bulbul pelo CPC e sua trajetória de atuação no Cinema Novo foram
marcadas também pelo engajamento nas organizações culturais e pela adoção do pensamento
de esquerda. A questão racial também foi insistentemente demarcada por Zózimo, a iniciar
pela própria adoção de seu nome, de origem africana.

O golpe de 64 e o momento crítico gerado a partir da política de repressão do regime


atingiram de forma frontal os intelectuais identificados com o projeto nacional populista. O
golpe fez com que o otimismo reformista cedesse lugar ao estado de perplexidade e
autocrítica. No cinema, a ideologia militar que orientou as novas condições de produção de
filmes reorganizou o campo cinematográfico em um sentido diferente do desejado pelos
cinemanovistas (XAVIER, 1985).

“Os militares criaram em 1966 o Instituto Nacional do


Cinema (INC), subordinado ao Ministério da Educação e
Cultura (MEC), para administrar de forma centralizada a
produção cinematográfica. O projeto de criação do INC - de
seu envio ao congresso à decisão autoritária – passa a ser,
então, um novo marco de referência em torno do qual se
colocarão os grupos do campo cinematográfico que desde os
anos 50, lutavam por uma política de cinema’’ (Ramos,
1983:51).

Nesse momento há uma excessiva intervenção do Estado no campo da cultura, com


órgãos estatais sendo criados visando centralizar e regular as atividades culturais, adequando-as
aos interesses políticos e ideológicos dos militares e freando o crescimento de um projeto
cinematográfico crítico e conscientizador. A censura representou uma ruptura na liberdade
política: os filmes, as peças e livros e demais manifestações eram fiscalizados e sofriam um
intenso policiamento, foi um momento de terror na sociedade brasileira.

33
Em 1968, com a decretação do Ato Institucional numero cinco (AI-5), a repressão chegou
ao paroxismo, levando à suspensão dos direitos políticos e a proibição de todas as manifestações
publicas que, segundo os militares no poder, pusessem em risco a ‘‘ordem institucional” do país”
(RIDENTI, 2000).

O Cinema Novo neste período se encontrava em plena ascensão, porém seu caráter
reflexivo e contestador da realidade social fez com que vários de seus filmes fossem proibidos,
como afirma o crítico e cineasta Jairo Ferreira: “Entre 1968 e 1971, em torno de 50 filmes
brasileiros sofreram interdição da ditadura militar, enquanto outros 15, não se pode confirmar
pois não consta nos manuais e sequer foram enviados para exame” (Ferreira, 2000).

Nesse contexto, Zózimo Bulbul não se diferenciava dos precursores do Cinema Novo,
exceto pela proximidade ideológica com os pensamentos do Movimento Negro, que defendia
que as questões relacionadas à diferenciação racial eram estruturais dos problemas da sociedade
brasileira e refletiam as desigualdades sociais, enquanto que para esquerda, no geral, a questão
central das desigualdades se dava a partir da questão de classe. Zózimo faz um relato sobre a
época:

“O pior mesmo foi em 68, quando houve a Marcha dos Cem


Mil. Eu dava um curso numa favela do Rio de Janeiro, de
teatro e também discutíamos muito cinema, que era no
Leblon (...) e que era a favela da Praia do Pinto. Era
totalmente ligada ao Partido Comunista e Dom Helder
Câmara era uma pessoa que estava sempre com a gente
naquele momento. Na passeata fizemos a burrice de fazer
uma faixa enorme: “A Favela da Praia do Pinto...” (...) Foi
fotografada e queimada a favela. Muita gente foi morta. Foi
aí que eu tomei o baque meia oito (...) Houve uma
perseguição das pessoas dentro da favela (...) a favela foi
entregue para os militares (...) e eu fugi para São Paulo”. 9

Embora Bulbul carregasse o discurso racial, o posicionamento mais político sobre esta
questão é fortalecido após sua experiência política junto a esquerda. O trabalho com os
moradores da favela da Praia do Pinto evidencia essa questão, embora no seio do Partido
Comunista ao qual estava intimamente ligado, houvesse a relativização do tema. Para as
organizações de esquerda, a desigualdade e o preconceito raciais eram decorrentes da exploração

9
BULBUL, Zózimo. Entrevista Concedida a Noel dos Santos Carvalho. São Paulo, 25 out. In CARVALHO, 2005.

34
da classe dominante no sistema capitalista. Dessa forma, só a revolução socialista poderia
aniquilar toda e qualquer desigualdade, por isso não fazia sentido uma luta específica contra o
racismo. No pensamento da maioria das organizações de esquerda, ao eliminar a desigualdade
social, automaticamente se eliminaria a desigualdade racial.

Antonio Sergio Alfredo Guimarães. Ao tratar deste período, afirma:

“O socialismo marxista, que muitos militantes negros


abraçaram nos anos 1960, tinha, entretanto, a grande
desvantagem de acentuar demasiadamente a luta de classes
como motor da história em detrimento da consciência racial,
tida como particularismo ou alienação. Ainda que os
marxistas reconhecessem a discriminação racial existente na
sociedade brasileira, tal racismo era atribuído a determinantes
socioeconômicos que desapareceram com a suplementação
da sociedade burguesa” (Guimarães, 2002:97).

Mesmo advindo do CPC e convivendo no seio do Partido Comunista, o pensamento de


Bulbul acerca das relações raciais, se aproximava das discussões do movimento negro, que por
sua vez sofria forte influência da conjuntura em que viviam os negros norte-americanos e
africanos. Nos Estados Unidos, eclodiam os movimentos dos direitos civis e o Black Power, as
idéias de Ângela Davis, Malcolm X e Martin Luther King em defesa de direitos e oportunidades
iguais para os negros norte-americanos repercutiram entre militantes e intelectuais negros em
todo Brasil. Os movimentos de libertação nacional em países da África, principalmente as
guerras contra o colonialismo português que levaram à independência de Angola e Moçambique
em meados dos anos setenta tiveram grande repercussão no Brasil. Os negros brasileiros
perceberam que tanto nas Américas como na África os negros enfrentavam a opressão racial.
Também era acompanhado com grande interesse no Brasil o movimento dos negros da África do
Sul contra o apartheid, uma das formas de racismo mais cruéis, barbaramente instalado no
próprio continente africano. Essas lutas africanas produziram lideranças que se tornaram
referências ideológicas e políticas para a militância negra brasileira, nomes como Agostinho
Neto (Angola), Nelson Mandela (África do Sul) e Samora Machel (Moçambique). A vitória dos
movimentos liderados por eles estimulava os negros brasileiros na sua própria luta contra o
racismo. Foi também na década de 1970 que os militantes negros passaram a conceber uma
melhor articulação de suas ações com a articulação de uma entidade nacional. Com tal fim,
surgiu em 7 de julho de 1978 o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial

35
(MNUCDR). Lançado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, a manifestação popular
teve grande impacto nos rumos da política negra. O Brasil ainda vivia o regime militar, e em
nome da segurança nacional a reunião de manifestantes em praça pública era, em geral,
duramente reprimida pela polícia. Assim, aquela manifestação de negros e simpatizantes da
causa anti-racista representava um desafio à ditadura. Sobre o ato que lançou publicamente o
MNUCDR, o militante Hamilton Cardoso relatou:

“Havia medo, ironias e preocupações, nas entidades, nas


redações de jornais brancos. E a repressão? Se a polícia
atuasse seria um golpe mortal para o movimento negro, um
golpe mortal para a democracia racial. Reprimir uma
manifestação antiracista não seria aconselhável para um país
mestiço; por outro lado o medo poderia ser instalado na
Comunidade Negra. Uma faca de dois gumes. (...) o negro,
hoje, pode sair para as ruas e ali discutir junto à massa negra
desempregada; as lutas negras internacionais, a crise do
capitalismo, o futuro que a África representa para o Brasil,
aliado ao próprio racismo a necessidade de mostrar aos
Africanos que aqui existem negros livres (...)” 10

Utilizando se de ironia, Hamilton ressaltava o receio de que a repressão impedisse a


atuação do MNUCDR e ao mesmo tempo, analisava as interpretações do regime militar sobre as
relações raciais no Brasil que eram sustentadas inclusive na política externa brasileira. A
formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que depois passou a
se intitular apenas Movimento Negro Unificado (MNU), contestava publicamente a idéia de que
se vivia uma democracia racial brasileira, idéia que os militares adotaram na década de 1970. O
surgimento do MNU redimensionou a militância política naqueles anos de ditadura militar.
Coube ao MNU contribuir para uma maior organização da militância e convencer os grupos de
esquerda da importância e especificidade da questão racial na sociedade brasileira.
(ALBUQUERQUE & FILHO, 2006).

Refletindo toda esta conjuntura, Zózimo, atuando em novelas produzidas em São Paulo e
desfrutando de sucesso, questiona a comparação de “Sidney Portier brasileiro” e recusa o “negro
mais bonito do Brasil” oferecido pela Rede Globo. Declara na época: “Este negocio de negro
11
mais bonito do Brasil não passa de uma grandíssima besteira” . Também recusa o papel de

10
Versus, n. 23, de julho-agosto de 1978, p. 33. Dossiê 50-K-6- 280. DEOPS/SP, DAESP. In KÖSSLING, 2007.
11
BULBUL, Zózimo. Entrevista concedida a Angela Ness e Maria Beatriz Nascimento. Rio de Janeiro, 20 abr.
1988. In CARVALHO, 2005. p. 183.

36
protagonista na novela A cabana do pai Tomás por discordar do conteúdo que, em sua opinião,
transmitia uma visão deturpada do escravismo e das relações raciais. A novela acabou sendo
protagonizada pelo ator Sérgio Cardoso. Branco, Cardoso teve de pintar o corpo, usar peruca e
rolhas no nariz, o que gerou controvérsia na época.

O cineasta e pesquisador Joel Zito Araujo, comenta a novela:

“É possível também deduzir que aí está, simbolicamente, a


confirmação de uma visão sobre a dupla inferioridade do
negro. Por um lado, o roteiro escolhido é um clássico não só
da literatura, mas também do cinema industrial norte-
americano, por ser considerado a mais importante peça de
promoção de um estereótipo básico, o Tom. Aquele que
encama com mais perfeição a visão pretensamente positiva
que os brancos poderiam ter dos negros, o preto velho
serviçal, fiel, resignado e ao mesmo tempo bondoso, sábio e
digno, o negro de alma branca. Na realidade, um contraponto
ao negro ruim, ao quilombola, ao negro militante assumido e
questionador da ordem social” (Araujo, 2006: p.93)

Após recusar o papel na novela Global, Zózimo realiza diversos outros trabalhos no
cinema, teatro e na TV. Ainda em São Paulo, trabalha em dois filmes que marcam sua trajetória,
no primeiro, Republica da Traição entra como co-produtor e ator, o filme fica pronto em 1969,
mas é proibido pela censura. Já o enredo do filme Compasso de Espera (1970) de Antunes filho,
coincide com um episodio da vida de Zózimo, onde ao visitar sua namorada hospedada em um
hotel, foi barrado na portaria pelos funcionários. O filme, que também teve problemas com a
censura, explora o tema racial, porém sem encenar os estereótipos tradicionais atribuídos ao
negro, também retrata o universo de uma classe média negra até então ausente na representação
do cinema brasileiro. Segundo Bulbul, compasso de espera: “é um filme que discute o
preconceito racial no Brasil de uma forma moderna. Não aquela do pai Tomás, do século
passado” 12.

Compasso de Espera é um filme que trata do preconceito explicito. Conta o drama de


Jorge, um intelectual negro alienado. Sustentado por uma amante rica, se apaixona por uma
jovem estudante branca e é correspondido. Ao deparar-se com o preconceito racial começa a
adquirir consciência. Distante da família pobre, dos amigos e dos proletários, Jorge fica no

12
BULBUL, Zózimo. Entrevista concedida a Angela Ness e Maria Beatriz Nascimento. Rio de Janeiro, 20 abr.
1988. In CARVALHO, 2005. p. 185.

37
limbo. Apenas quando ele vai visitar a mãe e a Irma é que percebe que já pertence a um outro
mundo.

O filme, lançado apenas em 1973, causou um grande impacto em sua estréia ao retratar o
negro como um agente social de classe média, marcando a presença do negro no cinema e
iniciando uma tomada de postura e quebras os estereótipos que tendiam a somente incorporar o
negro urbano como personagens subalternos. A partir de compasso de espera temos um outro
tipo de representação do negro.

Toda polêmica em torno do filme, influenciou fortemente o trabalho de Zózimo e sua


trajetória dali em diante. Ainda em 1973, Zózimo Bulbul decide gravar seu primeiro Filme, Alma
no Olho, o filme é escrito, produzido e dirigido pelo próprio autor. O filme marca a passagem de
Bulbul para o outro lado das câmeras, marca também o inicio do cinema de autor negro no
Brasil.

38
Figura 8: Cineasta Zózimo Bulbul.
Fonte: Coleção O cinema de Zózimo Bulbul. Palmares, 2006.

39
Capítulo III – Do outro lado das câmeras

Analisaremos, neste capítulo, os principais filmes de Zózimo Bulbul. Estas obras são
construções socialmente determinadas onde questões de identidade política e étnica se
entrecruzam. Nestes filmes encontramos proposições semelhantes às dos formadores do Cinema
Novo e ao pensamento de esquerda, verifica-se também nestes filmes, a presença da influência
das reivindicações das organizações do movimento negro e do pensamento de seus intelectuais.

Analisaremos os seguintes filmes: Alma no Olho (1973); A procura da raiz: Dia de


Alforria... (?) (1981); Abolição (1988), Samba no trem (1999/2000); Pequena África (2002); e
Republica Tiradentes (2004). Procuraremos levantar, na concepção e realização do filme,
aspectos que foram influênciados pelo Cinema Novo e pelo pensamento do movimento negro.

3.1 - Alma no Olho (1973)

Em alma no olho percebemos uma nova atitude cinematográfica, o filme fala da história
do negro na África e nas Américas, de forma poética. Através da expressão corporal Zózimo
aborda a tomada de consciência e a conquista da identidade. Trata-se de um filme que utiliza de
um corpo negro experimental para uma investigação do movimento negro dentro de um cinema
que pensa o ser negro dentro do Brasil (Carvalho, 2005:218). Em Alma no Olho percebemos uma
postura de alertar o Brasil sobre a posição do negro na sociedade e sua contribuição para o país,
percebemos também uma nova forma de interpretar dentro de cinema. O filme marca o inicio de
um Cinema Negro 13. O Filme alma no olho é atemporal, transcende e consegue retratar a história
do negro africano escravizado e trazido para as Américas.

Logo no início do filme, percebemos uma marca forte: o olhar de um negro, logo após
temos foco em um sorriso, a partir daí ele mostra, de forma simbólica, a história do negro trazida
à tona. Revela, através de planos fechados, partes do corpo, como boca, orelha, costas, rosto,
mãos, sorriso e o suor que nos traz muitas reflexões sobre as marcas contidas nesse corpo negro.
13
Cinema Negro é o movimento cinematográfico que assume o papel de reconstituir um imaginário positivo para a
imagem do negro, na África e na diáspora (PRUDENTE, 1995).

40
Zózimo, ao fazer um passeio pelas expressões do corpo negro, retrata a transição do
africano livre, que passa a negro escravizado e após, o negro oficialmente liberto, mas não
totalmente livre, chegando finalmente a figura de um negro que retoma suas raízes e se liberta
totalmente. Suas expressões corporais refletem momentos da vida e cotidiano das pessoas negras
trazidas ao Brasil e as Américas. No primeiro quadro busca transmitir a felicidade do negro
africano livre; é nítida a relação com áfrica nas cenas do filme, isso se mostra presente nas
vestimentas típicas e nos colares, que buscam reproduzir aspectos da cultura africana, trazendo à
tona a identidade do negro.

Alma no olho transmite também a escravização e o processo de servidão pelos quais os


negros passaram, ilustrando as mazelas causadas pelo colonialismo: o acorrentamento do
personagem e as expressões evidenciam o cotidiano dos escravos sem a necessidade de
ambientação do espaço físico.

Revela que, mesmo após a suposta libertação, a herança escravista e o racismo ainda
pesam sobre a sociedade, pois mesmo os negros libertos, nos mais diferentes espaços e com os
mais variados perfis, continuam atados as correntes da intolerância e da discriminação racial,
independente do fato ser trabalhador, jogador de futebol, lutador de boxe, intelectual ou
empresário. Mesmo sendo dócil e gentil, continua acorrentado, continua escravizado, continua
atado aos elos da intolerância, do preconceito e da discriminação. O filme mostra o processo de
resistência do negro, que tenta a todo o tempo escapar das mazelas causadas pelo escravismo,
pelo racismo e pela intolerância. Apenas quando reassume suas origens e sua identidade é ele
que se liberta destas correntes, é que se vê novamente pleno.

Alma no olho representou uma critica direta a sociedade da época, principalmente ao


Regime, que pregava uma suposta democracia racial, onde se propagava igualdade e a presença
de um Brasil mulato, onde não existia desigualdade. O filme Alma no Olho foi inspirado no livro
Alma no exílio, do militante do Partido dos Panteras Negras, Eldridge Cleaver. Ao analisar a
trajetória histórica do negro, e as relações raciais no Brasil, reflete as discussões presentes nas
discussões do movimento negro.

As repercussões de Alma no Olho foram inúmeras, em seu primeiro filme, apesar do


baixo orçamento, Zózimo se consolidou como diretor. O filme foi bem recebido pelos cineastas
cinemanovistas, pela esquerda e pelo movimento negro. O filme também chamou atenção da

41
censura e Bulbul foi chamado a dar explicações na policia federal, onde foi interrogado e depois
liberado, porém passou a ser vigiado pelo regime e acabou engrossando a leva dos que deixaram
o país.

Já neste primeiro filme dirigido e produzido por Bulbul vemos a influência direta do
Cinema Novo, principalmente no que diz respeito ao forte apelo político e no caráter crítico e
conscientizador a que o filme se propõe. Do ponto de vista da produção é um filme
extremamente simples, com 11 minutos de duração, podemos identificar ainda outras
características do Cinema Novo nessa produção, trata-se de um filme de autor, realizado com
baixos recursos, onde o próprio Zózimo produz, dirige e monta o filme, contando somente com a
participação na fotografia de José Ventura e a música de Julian Lewis em off.

A realização de Alma no Olho condensa a experiência que Bulbul adquiriu em sua


trajetória pelo interior do meio cinematográfico, em especial no Cinema Novo, onde trabalhou
com os principais diretores de sua geração. São nítidas as influências de um cinema realista e
revolucionário, que reflete a luta política e ideológica, tal como propunha Glauber Rocha e
outros cineastas cinemanovistas.

Alma no olho, como o próprio nome sugere, procura atrair o olhar do espectador no
sentido de cooptá-lo para a narrativa, envolvendo-o em sua representação no mundo histórico. A
estética experimental utilizada em Alma no Olho se dá através da performance, Zózimo traz um
elemento teatral para dentro do cinema no qual os movimentos falam por si só e nos trazem
muitas reflexões, visando romper com padrões pré-estabelecidos pelo cinema de indústria, onde
novamente se verifica a herança do Cinema Novo.

Notamos que Zózimo ultrapassa a concepção de filme negro de Glauber, onde existia a
temática e atores negros. O Cinema Negro de Zózimo Bulbul inaugura um cinema de autor
negro, que trabalha a questão do negro em sua essência, valorizando toda a sua dimensão
simbólica, sua cultura, sua luta, sua história despida de arquétipos e estereótipos, que mesmo o
Cinema Novo não conseguiu superar.

42
Figura 9: Zózimo Bulbul em Alma no Olho.
Fonte: Filme Alma no Olho, 1973.

43
3.2 - Dia de Alforria... (?) (1981)

Dia de Alforria... (?) é um documentário de 11 minutos de duração sobre a vida do


compositor e sambista Aniceto de Menezes e Silva Junior (Aniceto do Império), frequentador da
agremiação Prazer da Serrinha, fundador da Escola de Samba Império Serrano (1947), membro
do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo. Aniceto foi também militante
do Partido Comunista e ativista do Sindicato de trabalhadores do Cais do Porto do Rio de
Janeiro. Muito além de sambista consagrado, a figura de partideiro Aniceto condensa ativismo
político, historia e identidade cultural negra.

O filme retrata o local onde foi fundado a Escola Samba de Império Serrano e a trajetória
política e artística de Aniceto. Zózimo reforça no filme a história política de Aniceto, que,
através de depoimentos e das letras de suas musicas expõe a importância do samba enquanto
cultura popular originalmente negra e a da luta política como meio de transformação social.

Sobre este documentário, Zózimo revela:

“(...) Eu não queria fazer um filme musical com ele. Eu


queria o lado político dele. (...) O cara é político, liderou
varias greves, foi cassado, perdeu o emprego, ficou anos
desempregado porque os ‘milicos’ cassaram ele (...) 14

Ao celebrar o samba, o filme aborda um tema extremamente brasileiro e carrega um


caráter reflexivo, tal como proposto no Cinema Novo. Privilegia o realismo e a simplicidade nas
alocações onde são realizadas as cenas, revela as favelas e comunidades de maneira intensa,
mostrando a vida cotidiana de Aniceto, que no filme representa o povo. Ao retratar um
personagem que carrega características populares e ampla trajetória cultural e política, retoma
aspectos fundamentais do movimento cinemanovista, retrata a realidade brasileira e revela o
marginalizado como representação popular.

Dia de Alforria busca também uma relação com a cultura africana: além de fundador de
escolas de samba e compositor, Aniceto cantava sambas misturados a dialetos africanos, o que
interessava ao movimento negro recuperar. Dessa forma, representa o ideário de uma cultura
popular originalmente negra e africanizada, defendida amplamente pelos ativistas negros. O

14
BULBUL, Zózimo. Entrevista Concedida a Noel dos Santos Carvalho. São Paulo, 25 out. In CARVALHO, 2005.

44
filme traz ainda outros elementos do discurso do movimento negro: dedicado a “Zumbi dos
Palmares e a todos os quilombolas mortos e vivos” traduz uma postura militante que procura
estabelecer vínculos históricos e fortalecer uma identidade legitimamente negra. A trilha sonora,
compostas por musicas do próprio Aniceto, também relacionam referenciais negros e refletem a
própria historia do sambista.

Em Dia de Alforria... (?), Zózimo retoma um cinema essencialmente negro. A


contestação histórica e a consonância deste filme com a conotação racial verificada em Alma no
Olho evidencia-se, principalmente no relato de Aniceto sobre o trabalho dos carregadores no
Cais do Porto que, na maioria negros, recebiam valores insignificantes para descarregar os
navios:

“(...) Nós não possuíamos carrinho, não possuíamos zorra, em


razão disso, nosso sindicato era chamado Sindicato da
Resistência (...) Nosso sacrifício era demasiado para os
parcos tostões que recebíamos, transportávamos sacos sobre a
cabeça pela insignificância de 200 réis (...) 15

A partir daí, surge a crítica à ‘democracia racial’ e a marginalização do negro no mercado


de trabalho. Nesse sentido, a trajetória de Aniceto, ao liderar a negociação pela melhoria do
salário e das condições de trabalho, vai de encontro com o processo de quebra das correntes
exibido em Alma no Olho. Novamente neste filme se tem a continuidade da afirmação da
negritude, presente no filme anterior. O próprio título do filme, Dia de Alforria... (?), composto
por reticências e um ponto de interrogação, indica a dúvida sobre a condição de liberdade do
negro, tema que será retomado em outro filme dirigido por Zózimo, Abolição (1988).

15
Dia de Alforria... (?) (filme) Zózimo Bulbul. 11 min. son. color. 35 mm (Coleção O cinema de Zózimo Bulbul)

45
Figura 10: Cena do filme Dia de Alforria... (?).
Fonte: Filme Dia de Alforria... (?), 1981.

46
3.3 - Abolição (1988)

O filme “Abolição”, realizado por Zózimo Bulbul em 1988, possui 150 minutos e é seu
único longa-metragem. O filme tem como mote a data de 13 de maio de 1998, que marca o
centenário da abolição e busca retratar a trajetória do negro desde a época da escravatura até os
100 anos da Abolição. Nas palavras de Bulbul, o filme retrata:

“(...) a trajetória do ex-escravo num documento único sobre a


vida do negro no Brasil da atualidade. Desmistificando,
polemizando e surpreendendo a história oficial na ótica do
movimento negro, à luz da política, da religiosidade, da
sociologia e da própria história contada pelo marginalizado
(...)” 16

Com efeito, Abolição possui o mérito de resgatar o peso e a projeção histórica do negro
na formação do país através da critica nada sutil ao processo de abolição da escravatura. O filme
denuncia a natureza da abolição da escravatura no Brasil como componente essencial para
determinar a natureza circular da cadeia de fatores interligados que causam e caracterizam a
exclusão histórica dos negros brasileiros. (SANTOS, 1994).

Dedicado ao Movimento Negro Unificado e aos cineastas do Cinema Novo, Glauber


Rocha, Leon Hirshaman e ao cineasta negro Hermínio de Oliveira, o filme retoma a retórica do
Cinema Negro de Zózimo Bulbul. Neste filme a identidade militante do Cinema Negro de Bulbul
se sobrepõe, Abolição ilustra a concepção do movimento negro sobre a data de 13 de maio de
1888. Trata-se de um documentário fundamentalmente político, entre os filmes do cineasta, este
é o que manifesta de forma mais contundente as posições defendidas pelo movimento negro das
décadas de 70 e 80, que articulava reivindicações raciais e de classe. (Carvalho, 2005). O filme
afirma de forma explicita que: a) a abolição da escravatura não conseguiu reparar os danos
advindos do escravismo; b) existe uma situação de opressão racial à qual os negros estão
submetidos; c) existe uma resistência negra contra essa opressão.

Essa tese é reafirmada durante o filme, onde são recolhidos depoimentos de intelectuais,
militantes históricos do movimento negro, ativistas de esquerda, artistas e pessoas anônimas,

16
SINOPSE de Abolição (dir. Zózimo Bulbul). In: Cinematográfica Equipe Ltda. 1988. Biblioteca Funarte, Rio de
Janeiro, pasta F 2198.

47
representantes de grupos que articulam questões sociais, tais como mulheres contra o machismo,
causa indígena, reforma agrária, etc. Entre os entrevistados podemos destacar personalidades
como Abdias do Nascimento, Lélia González; Beatriz Nascimento, Grande Otelo, Joel Rufino,
Dom Elder Câmara , D. João de Orleans e Bragança e Gilberto Freire.

Os depoimentos estão diretamente vinculados a construção de uma memória do povo


negro brasileiro, neste sentido, se tornam complementares na medida em que revelam uma
versão da história até então ignorada pela historiografia nacional. Neste sentido é importante
destacar alguns destes depoimentos, cuja função é explicar, analisar, interpretar e construir essa
memória. Com base nessa perspectiva, o filme procede a seleção de partes de depoimentos que
se referem principalmente a análise da libertação dos escravos e da resistência negra; articulação
da consciência da negritude e da luta política contra a discriminação; denúncia do estado
brasileiro e das condições de vida do negro, além da maior participação política. Um contraponto
interessante é o depoimento de Dom Pedro Gastão de Orleans de Bragança, descendente direto
da família real brasileira, que reproduz a versão de que a abolição foi um ato incompreendido por
muitos, mas levado a cabo pela nobreza e determinação da princesa Isabel.

Por tudo que traz e que procura reconstruir, não se trata apenas de um filme sobre uma
data histórica, Abolição é um manifesto, um documento pelo qual o movimento negro fala à
sociedade. É um arquivo vivo da história do Brasil. Uma realização que remonta o inicio do
Cinema Novo e revela a alma de nosso país.

Como nos outros filmes de Bulbul, Abolição carrega elementos típicos do Cinema Novo,
o filme transita entre a ficção e documentário, isso é facilmente notado nos depoimentos, onde
fica nítido que algumas pessoas estão lendo um discurso. Isso reafirma a perspectiva do cinema
autoral, onde tudo o que se passa no filme sofre interferência direta do autor.

O filme também utiliza elementos ficcionais para retratar personalidades já falecidas, os


depoimentos do marinheiro João Candido, o Atleta João do Pulo e a Princesa Isabel são três
exemplos, neles, Zózimo utiliza atores que encenam o texto, reafirmando o discurso que Zózimo
procura transmitir. Estas cenas são intercaladas com outros depoimentos e acabam fazendo com
que o espectador não saiba se esta assistindo a uma ficção ou um documentário. Trata-se de uma
linguagem inovadora que foge dos padrões tradicionais e reafirma as heranças cinemanovistas da
experimentação e da colagem.

48
Outro elemento que se destaca no filme é a presença de uma equipe de cinema formada
por negros que aparece diversas vezes. Se trata, obviamente, de um recurso ficcional que
funciona como elemento performático que introduz a voz política e identitária do filme,
representando que a história que se assiste é fruto de um ponto de vista do negro sobre sua
própria história.

Diferentemente dos anteriores, este filme contou com apoio estatal para a sua realização.
Zózimo obteve uma ajuda direta na liberação de capital para realização filme, contudo, é
importante ressaltar que mesmo com essa ajuda financeira o filme não perde a perspectiva
autoral, Zózimo conta a história de um modo como nunca foi contada, a partir da perspectiva do
olhar negro sobre sua própria história.

O filme é fruto de uma intensa pesquisa, o que se verifica na densidade e riqueza da obra.
Abolição ganhou o premio de melhor pesquisa histórica e melhor fotografia no Festival
Brasileiro de Cinema de Brasília, além de diversos outros prêmios internacionais, porém sua
circulação comercial foi pequena.

49
Figura 11: Cena do filme Abolição.
Fonte: Filme Abolição, 1988.

50
3.4 - Samba no Trem (1999/2000)

O filme, de 18 minutos, trata da um tradicional evento que ocorre no Rio de Janeiro todo
dia 02 dezembro, dia Nacional do Samba. O evento foi criado em 1992, em homenagem a Paulo
da Portela. Figura histórica nas década de 20, 30 e 40, fundador da Escola de Samba Oswaldo
Cruz, uma das primeiras da historia do samba, participou de diversas agremiações carnavalescas
e se destacou pela defesa do samba e contra a imagem estereotipada e preconceituosa que existia
em relação à figura do sambista, visto até então como malandro e vagabundo. O Trem sai da
Central do Brasil e vai até Oswaldo Cruz. No seu percurso, faz uma parada na Estação 1º de
Mangueira e depois em Madureira, até chegar a Oswaldo Cruz, locais onde Paulo da Portela
viveu e atuou como artista e militante do samba.

O evento remonta a década de 1920, quando Paulo da Portela cria o Pagode do Trem
como uma estratégia para que os sambistas se esquivassem da perseguição à qual eram
submetidos. Naquela época, o samba, assim como diversos outros seguimentos da cultura
popular, era considerados profano. Dessa forma sambistas cariocas se encontravam diariamente
na Central do Brasil, de onde partiam para os subúrbios da cidade, sempre fazendo seu samba.
Estes vagões funcionavam também como sede provisória da Escola de Samba Portela, que,
aquela época, não tinha sede.

Dedicado a todos os sambistas criadores da mais genuína expressão cultural popular


carioca, o filme exibe diversos momentos da comemoração. A partir da homenagem a Paulo da
Portela e da comemoração do dia do samba, o filme privilegia o foco nas pessoas da
comunidades por onde o trem percorre, capturando imagens e depoimentos que traduzem a
essência do samba carioca. O discurso de Marquinhos Oswaldo Cruz um dos organizadores do
Samba no Trem revela o caráter democrático da comemoração:

“Eu queria dizer que esta festa é uma festa popular e festa
popular não tem direção” 17

É importante destacar, neste filme, que tem como objetivo documentar uma manifestação
artística popular, o caráter político dos depoimentos. As entrevistas com pessoas importantes no

17
Samba no Trem (filme) Zózimo Bulbul, 1999/2000. 18 min. son. color. 35 mm (Coleção O cinema de Zózimo
Bulbul).

51
mundo do samba carioca revelam um discurso que denota a resistência histórica e o caráter
simbólico do samba carioca. Nota-se também, nos depoimentos, a intenção de se destacar a
importância política que aquela atividade tem para o samba, no Rio de Janeiro e no Brasil.
Walter Alfaiate traduz o discurso do sambista carioca:

“Eu sou um soldado defendendo essa tese de nosso samba


brasileiro” 18

Samba no trem revela a intenção de reforçar as características populares da festa deixa


explicita o objetivo de Zózimo em resgatar este discurso político, que remonta a história do
samba e a trajetória de Paulo da Portela. A escolha da trilha sonora, que homenageia Paulo da
Portela, vai de encontro com essa intenção. Através deste filme o autor reafirma a importância do
Dia do samba e do Samba do Trem e provoca uma reflexão nas pessoas sobre a importância
dessa atividade para fortalecimento das comunidades, demonstrando a importância do espírito
coletivo.

Em Samba no Trem como em seus filmes anteriores, os temas memória e identidade se


destacam. Ao escolher o samba como tema e explorar suas raízes históricas, indiscutivelmente
negras, reafirma novamente as características de seus filmes anteriores, classificadas por ele
mesmo como Cinema Negro.

Como sempre, Zózimo utiliza de elementos do cinema novo, faz uma crítica sutil e
certeira ao tipo de sociedade em que vivemos, situa uma oposição ao de samba ‘de indústria’
tocado nas rádios. O autor aproxima-se da cultura popular, valorizando, sobretudo o caráter
simbólico da comemoração do dia do samba.

Neste filme, Zózimo aparece diversas vezes, seja entrevistando uma personalidade ou
circulando na festa. Percebe-se ai, uma tentativa de mostrar que se trata de um filme autoral onde
a equipe é pequena e os recursos escassos. Isso é comprovado nos créditos do filme, onde
verificamos os participantes da produção.

18
Samba no Trem (filme) Zózimo Bulbul,1999/2000 . 18 min. son. color. 35 mm (Coleção O cinema de Zózimo
Bulbul).

52
Figura 12: Zózimo Bulbul em cena de Samba no trem.
Fonte: Filme Samba no Trem, (1999/2000).

53
3.5 - Pequena África (2002)

Pequena África é um curta metragem de 14 minutos sobre a região ocupada pela


população majoritariamente negra entre o final do século XIX e inicio do XX e que compreende
os arredores da antiga Praça Onze de Julho (hoje monumento a Zumbi dos Palmares), os bairros
Santana, Santo Cristo, Saúde e Gamboa. Ali se desenvolveu uma rica cultura negra e de
resistência aos influxos modernizadores por que passava a cidade do Rio de Janeiro no começo
do século XX.

Devido a seu valor histórico, a região de Pequena África tornou-se um símbolo da cultura
negra no século XX. Essa região abriga também um dos primeiros morros habitados pelos
africanos no Rio de Janeiro. Em Pequena África, Zózimo utiliza depoimentos de Tia Jurema,
Mercedes e outros personagens que relatam a história do local.

Jurema fala ao menino representado por Douglas Silva, sobre aspectos relacionados aos
costumes dos ex-escravos, sobre sua organização, suas comidas e conta algumas estórias. Em um
segundo momento, uma menina descreve um pouco da história da Pedra do Sal, um local onde
os africanos se encontravam para realizar suas atividades culturais, principalmente samba e
chorinho. A personagem relata que foi a partir desses encontros que surgiram as primeiras
grandes festas do Rio de Janeiro. O filme segue apresentando características históricas do local,
os personagens descrevem um local chamado casa da engorda, para onde eram levados os
africanos doentes para se recuperar. Relatam ainda, que os escravos que se recuperavam eram
transferidos para o Valongo, antigo mercado de escravos.

Para retratar a história do local, Bulbul utiliza como mote a descoberta de um cemitério
Pretos Novos, lugar destinado ao enterramento de escravos que morriam logo após o
desembarque dos navios negreiros. Utilizando-se de depoimentos, o documentário remonta o
significado e origens do cemitério. Também mostra o bem conservado cemitério dos ingleses e
questiona a diferença de conservação entre eles, relatando que tanto os ingleses quanto os
africanos não podiam ser enterrados no cemitério dos católicos. Conclui registrando relatos,
imagens e espaços simbólicos na intenção de recuperar a memória da região: a Pedra do Sal, o
Largo João da Baiana, o Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos.

54
Pequena África ao desnudar a história do Cemitério dos Pretos Novos, se contrapõe a
idéia de que, graças a um escravismo brando que teria sido praticado pelos portugueses, as
relações entre brancos e negros, no Brasil, seriam em regra cordiais. (LOPES, 2004). Neste filme
a perspectiva de Cinema Negro que Zózimo inaugura em Alma no Olho é mantida. Pequena
África resgata um importante capítulo da história do negro no Brasil e reitera a reflexão sobre
memória e identidade negra. O próprio nome revela o filme, que dialoga com as reivindicações
da militância negra na medida em que busca resgatar, através da obra, uma região de enorme
valor simbólico.

Pequena África retoma o tom critico dos filmes anteriormente produzidos por Bulbul.
Remonta a historia do local, berço da cultura carioca, denunciando as condições precárias em
que se encontra. O filme traz uma visão desalienadora da realidade sobre a preservação do
patrimônio histórico referente ao negro no Brasil. O autor instiga o expectador a uma importante
reflexão sob a forma de conceber a construção de uma historia e cultura negras.

Tratar de temas como questão racial e patrimônio histórico é valorizar a perspectiva da


realidade e da conscientização política. Nesse aspecto, Pequena África retoma importantes
questões sociais e promove uma verdadeira descoberta do Rio de Janeiro. Todos estes aspectos
reafirmam a herança cinemanovista de Bulbul, principalmente por tratar-se de um filme de autor
e que, apesar da escassez de recursos, reafirma a construção de um Cinema Negro.

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Figura 13: Cenas do filme Pequena África.
Fonte: Filme Pequena África, 2002.

56
3.6 - Republica Tiradentes (2004)

Republica Tiradentes é um documentário de 36 minutos que reconstrói a historia da Praça


Tiradentes, no Rio de Janeiro. A Praça e seus arredores reúnem alguns dos locais históricos mais
importantes do Brasil. O local ficou marcado para sempre pela execução de Joaquim José da
Silva Xavier, em 1792 e anos mais tarde recebeu a Família Imperial, assim, com o tempo, a
praça e seu entorno, além de construções senhoriais, ganharam teatros, academias de belas artes,
cafés e outros pontos de encontro. A agitação cultural atingiu maior intensidade no decorrer do
século 19, enquanto a praça se tornava um lugar procurado por intelectuais e artistas. Após a
proclamação da Republica, o local passa a ser freqüentado pela comunidade negra e torna-se um
importante pólo cultural e de resistência. O filme de Bulbul remonta tudo isso e resgata a história
das irmandades negras, das gafieiras 19 e do Teatro de Revista, com depoimentos de antigos
freqüentadores, atuais moradores, prostitutas e artistas.

Republica Tiradentes traz, logo no seu inicio, um grupo de jongo 20, o que demarca o
caráter identitário do documentário. Segue resgatando a importância histórica do local e das
irmandades, igrejas e manifestações culturais negras muitas que ocorreram ou se iniciaram na
praça e em seu entorno. O filme ilustra a presença de bares e da sinuca, local de encontros de
pessoas da velha-guarda. Ilustra também as comunidades religiosas, os bailes de gafieira e grupo
das prostitutas que ali trabalham.

Segue recuperando a história da gafieira da estudantina que se localiza ao redor da praça.


Sempre dialogando com a história da praça, fala também do Teatro de Revista e de sua
importância. A presença de companhias de teatro se destaca durante o filme, uma vez que seus
atores auxiliam na narrativa e na reconstrução da historia da Praça Tiradentes.

O filme conta também com depoimentos de pessoas que freqüentam a praça, no geral os
depoimentos servem para levantar elementos históricos e culturais da praça, mas também
apontam criticas em relação a aspectos como valorização do local. Surge também, o

19
Espécie de clube recreativo aberto, dedicado essencialmente a promoção de bailes populares. Um dos principais
símbolos do recreativismo afro-carioca até os anos de 1960 (LOPES, 2004).
20
Dança afro-brasileira de motivação religiosa e caráter iniciático, dançada em roda por par solto ou por homem e
mulheres indistintamente, ao som de tambores e chocalhos. (LOPES, 2004: p. 365)

57
questionamento sobre o fato da existência da estatua de D. Pedro I onde deveria estar a de
Tiradentes.

Como seus outros filmes, Zózimo enfatiza a importância dos focos de resistência negra
que ocorreu ao redor da praça através das irmandades negras e do museu do negro. A gafieira é
retomada como um espaço de resistência de escravizados. O filme procura focar também a
diversidade de grupos que freqüentam a Praça Tiradentes, ciganos, pobres, prostitutas,
companhias de teatro, mendigos, boêmios se configuram em personagens do cotidiano.

Em Republica Tiradentes Zózimo segue novamente a formula de seus filmes, busca


resgatar a memória e fortalecer a identidade negra, utilizando de depoimentos e de elementos do
realismo critico e do Cinema Novo. Com todos estes elementos, o autor reafirma o Cinema
Negro como seu estilo cinematográfico.

A crítica é uma outra característica que marca seus filmes, e que reaparece também nesta
obra, que condena o abandono de espaços históricos e a especulação imobiliária. O filme faz
uma critica nada sutil a privatização de espaços públicos, que elimina áreas que deveriam servir
como espaços de sociabilidade. Republica Tiradentes traz ainda a critica ao modelo de sociedade
que vivemos no país.

Em vários momentos se nota características do Cinema Novo, estas características se


revelam na utilização de elementos do teatro, linguagem inovadora e de caráter experimental.
Porém revelam-se, sobretudo, na presença constante do popular e na busca de um cinema de
caráter político, crítico e conscientizador, voltado para as questões sociais.

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Figura 14: Sebastiana Arruda da Irmandade de São Benedito.
Fonte: Filme Republica Tiradentes, 2004

Figura 15: Cena do filme Republica Tiradentes.


Fonte: Filme Republica Tiradentes, 2004.

59
Conclusão

Desde sua introdução no Brasil, em 1898, pelo italiano Affonso Segretto, o cinema tratou
os negros e sua história de forma estigmatizada ou simplesmente o ignorou, de forma que são
poucos os registros sobre esta primeira fase. Porém, um destes poucos registros chama a atenção,
o primeiro filme proibido no Brasil por motivo político foi A vida de João Cândido, o
marinheiro, realizado em 1912, que trata da revolta dos marinheiros negros da Marinha de
Guerra contra os castigos corporais (Revolta da Chibata), dois anos antes (RODRIGUES, 2001).

Na década de 50, os filmes da chanchada, reafirmando o modelo social estabelecido,


retratam o negro através de personagens caricatos, reafirmando o estereótipo. Os filmes da Vera
Cruz, que retratam o negro como escravos e empregados boçais, vão pelo mesmo caminho.
Embora a democracia racial tenha sido a representação dominante, em alguns filmes a tensão
racial aparece em segundo plano, invariavelmente sendo resolvida de forma harmoniosa. Apesar
da presença de atores negros neste período, simplesmente ignorava-se a agenda política colocada
pelo movimento negro. A modernidade negra, representada então pelo Teatro Experimental do
Negro (TEN) era distanciada pelo cinema da década de 50.

Este quadro se transforma apenas após o inicio do Cinema Novo, que, ao valorizar a
perspectiva da realidade e da conscientização política, redefine o cinema brasileiro e inaugura
uma nova forma de representação do negro no cenário cinematográfico, onde o negro deixa de
ser retratado de forma estereotipada. O Cinema Novo, ao buscar um cinema que se aproxime do
povo e traga o Brasil a tona, propõe uma revisão critica do cinema brasileiro e empresta uma
nova roupagem a questão racial, onde o negro e os aspectos de sua cultura aparecem
significadamente representados.

Com efeito, Glauber Rocha, aponta a inauguração de um novo gênero cinematográfico, o


filme negro, de caráter anti-racista e que traz em seu enredo questões ligadas diretamente a
população negra brasileira. A fala de Glauber dialoga com o pensamento de setores da esquerda,
que analisavam a representação do negro nas lutas políticas que marcaram o período, as criticas
em relação à democracia racial e o debate sobre a afirmação política da identidade negra.

60
De fato, no Cinema Novo, o negro adquire centralidade em diversos filmes, o que
contribui com outro olhar sobre as questões raciais e cria processos de identificação do publico
com os personagens negros. A consolidação desta experiência cinematográfica tem reflexo direto
no trabalho dos diretores negros e na inauguração do Cinema Negro.

É importante observar o reflexo da conjuntura social no cinema, de um lado havia a


ditadura e a forte repressão e controle da censura, de outro lado, o movimento negro se voltava
contra o ideário da democracia racial, articulava a construção de uma identidade negra e a luta
contra o racismo. Durante muito tempo, acreditou-se na inferioridade dos negros aos brancos,
com relação a sua estética, comportamento, cultura, economia e política. Essa imagem
estereotipada possibilitou, a esse grupo étnico, o desenvolvimento da baixa estima. Sem
referência positiva da sua imagem, o negro, começou abdicar de sua raça, sua cultura, seus
valores, iniciando um processo de branqueamento cultural, estético e comportamental. O
movimento negro compreendeu esta conjuntura, movido por uma pedagogia étnica que defendia
o resgate da historia e tradição do negro brasileiro, articula uma ampla agenda política e
simbólica, o que reflete no trabalho de diversos cineastas cinemanovistas, porém tem significado
especial nos trabalhos de cineastas negros.

É notável a contribuição do Cinema Novo para a sociedade brasileira e seu significado na


representação da população negra. Porém, mesmo com suas aspirações revolucionárias, o
Cinema Novo não conseguiu sobrepor às diversas barreiras colocadas pelo racismo e pela
herança escravista. A escassez ou a quase ausência de diretores negros neste movimento, traduz
este quadro. Dessa forma percebe-se que o movimento cinemanovista, apesar de deixar marcas
na filmografia brasileira, efetivamente não superou as barreiras raciais.

Neste sentido, a introdução do cinema de assunto negro, quebrou diversos paradigmas e


causou repercussão em toda a sociedade, trouxe um novo conceito da imagem do negro e, com
ele a existência de uma comunidade negra. A investigação histórica foi fundamental para a
construção deste novo conceito, uma vez que possibilitou a efetivação de uma nova forma de
enxergar o negro, uma nova perspectiva em relação a sua história e a sua participação na
sociedade.

Entre os poucos cineastas negros, Zózimo Bulbul é que mais chama a atenção, seus
filmes refletem várias características do Cinema Novo, mas sobretudo, traduzem a visão do

61
Movimento Negro. Seu próprio nome reflete uma postura de identidade pessoal e étnica, o
Cinema Novo e o Movimento Negro deixaram fortes marcas na sua formação artística. O
cineasta Zózimo Bulbul reflete em vários sentidos, o encontro entre o protesto negro e as
aspirações cinemanovistas.

Uma das diretrizes do Cinema Novo, mas que é também diretriz de todo grande
movimento cultural, foi a valorização da temática humanística que, no caso específico do Brasil,
significou um olhar profundo e crítico sobre a realidade nacional. Bulbul mantém esta diretriz: a
abordagem das relações sociais, inseridas no âmbito político, é explicitada sob a forma de
denúncias sobre a situação em que estão inseridos os negros no Brasil. Em segundo lugar, reside
o fato de que os filmes oferecem uma temática voltada para a realidade brasileira, apresentam
inspiração ideológica e possui uma narrativa semelhante a das produções cinemanovistas,
impregnadas de realismo e humanismo.

Os filmes de Bulbul carregam um significado que remonta a história do Negro no Brasil.


A trajetória histórica descrita em Alma no Olho; o ativismo político e a contestação de Dia de
Alforria... (?); o trabalho de resgate de Abolição; a identidade cultural negra de Pagode do Trem;
o mergulho na memória de Pequena África; a resistência e o dinamismo cultural e religioso de
Republica Tiradentes, traduzem o significado do Cinema Negro.

O Cinema Negro de Zózimo Bulbul ressalta os aspectos socioculturais do negro, a


influência dos cultos afro-brasileiros, caracterizando traços dos conhecimentos essenciais da
africanidade. Em relação ao significado de seus filmes, observa-se a constante luta pela
preservação da memória, pela inclusão social e pela cidadania. A preocupação com a autonomia,
visibilidade, militância, discriminação e direitos são também evidentes em seu trabalho.

Apesar de contar com reconhecimento internacional e de parte dos cineastas e críticos


brasileiros, os filmes produzidos por Zózimo Bulbul não tiveram grande sucesso no cenário
cinematográfico comercial brasileiro. Isso ocorre da mesma forma com outros cineastas negros
que, apesar de conseguirem determinada projeção no cinema, ainda assim estão distantes dos
lugares ocupados pelos cineastas brancos. Podemos perceber, a princípio, que uma das inúmeras
justificativas da marginalização destes cineastas, ocorre pelo fato dos mesmos tomarem o cinema
como instrumento político e revolucionário, levando, para seu interior, elementos estéticos
essencialmente negros.

62
Além disso, é necessário entender que a produção cinematográfica, assim como outras
manifestações artísticas refletem os valores da sociedade. Desta forma, uma vez que vivemos em
um país onde as diferenças raciais são determinantes nas relações sociais, o cinema no Brasil,
principalmente por seu caráter elitista, carrega heranças escravocratas, não conseguindo se
diferenciar da forma com que a sociedade brasileira atua frente a população negra.

Os filmes de Bulbul, essencialmente autorais, trazem construções socialmente


determinadas onde as questões relacionadas à identidade política e étnica se entrecruzam. O que
podemos notar de inovador entre o Cinema Novo e o Cinema de Zózimo é que o cinema que
Zózimo propõe, desde sua primeira obra, é um cinema essencialmente negro. Não somente um
cinema de assunto negro que tenta evitar estereótipos como no Cinema Novo, mas sobretudo, um
cinema que tem a presença de um assunto negro, um autor negro e que ressalte a cultura negra
sempre trazendo a áfrica até o Brasil. É importante ressaltar que Zózimo, muito além de apenas
inaugurar o Cinema Negro, revive a construção da identidade negra e quebra de vez a mística da
suposta democracia racial, seus filmes são um tapa na cara da burguesia e de uma elite branca
racista que insiste em manter os valores neocoloniais tentando excluir a população negra de
todos os espaços importantes, inclusive mantendo-a fora do mundo cinematográfico ou, em
outros casos, marginalizando-a dentro desse meio. O Cinema Negro proposto por Zózimo
Bulbul, de fato consegue encarar a revolução tão falada no Cinema Novo como algo mais
próximo e palpável.

63
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Filmografia de Zózimo Bulbul

ABOLIÇÃO... (filme) Zózimo Bulbul, 1988. 150 min. son. color. 16 mm.

ALMA NO OLHO (filme) Zózimo Bulbul, 1973. 11 min. son. color. 35 mm (Coleção O cinema
de Zózimo Bulbul).

DIA DE ALFORRIA... (?) (filme) Zózimo Bulbul, 1981. 11 min. son. color. 35 mm (Coleção O
cinema de Zózimo Bulbul).

PEQUENA ÁFRICA (filme) Zózimo Bulbul, 2004. 14 min. son. color. 16 mm (Coleção O
cinema de Zózimo Bulbul).

REPUBLICA TIRADENTES (filme) Zózimo Bulbul, 2004. 36 min. son. color. 35 mm (Coleção
O cinema de Zózimo Bulbul).

SAMBA NO TREM (filme) Zózimo Bulbul, 1999/2000. 18 min. son. color. 35 mm (Coleção O
cinema de Zózimo Bulbul).

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