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NPI-FMR

CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE NO NOVO MILÊNIO:


UM ENSAIO SOBRE ASPECTOS COMPLEXOS E TRANSDISCIPLINARES

Ivan Amaral Guerrini


Laboratório de Caos, Fractais e Complexidade
Departamento de Física e Biofísica - IB
UNESP, Botucatu – SP
guerrini@ibb.unesp.br

“A inteligência compartimentada, mecânica e reducionista, destrói o complexo do mundo em


fragmentos disjuntos, fraciona os problemas e unidimensionaliza o multidimensional. É uma
inteligência míope, daltônica e zarolha que acaba freqüentemente por tornar-se cega,
destruindo as possibilidades de compreensão e de reflexão na vida e de uma visão a longo
prazo. É, cada vez mais, inconsciente e irresponsável.” (Edgar Morin)

Há um certo consenso hoje de que desde o início da Era Cristã, muitas das relações
entre Ciência e Religião foram nocivas para a evolução do ser humano, o que, num outro
ângulo de visão, talvez tenha sido importante e até necessário para essa caminhada. Um dos
pontos marcantes dessa relação que traz grandes conseqüências para os nossos dias, refere-se
ao posicionamento de Renèe Descartes no século XVII. Seu modelo de universo mecânico e
fragmentado funcionando como um grande relógio veio acalmar a disputa entre religiosos e
cientistas na época. Ao separar os temas relacionados à matéria, à mente e a Deus, Descartes
estava afirmando que o universo era regido por leis matemáticas bem definidas que
precisavam ser descobertas, separando o que dizia respeito à ciência, ao homem e a Deus.
Esse Deus deveria estar num outro campo de ação, inacessível à ciência, já que havia criado o
universo e havia empreendido uma viagem para longe, só devendo voltar no fim dos tempos
para o juízo final. Esse foi o modelo instituído e muito bem aceito com pequenas variações
introduzidas por diferentes grupos. Assim, as leis do universo e da matéria nele contida se
constituíam num campo específico de estudo, sendo ordenadas e perfeitas como o seu criador,
o que instigava os cientistas a descobri-las, fato esse que acabou acalmando cientistas e

Revista Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar, São Manuel. 10/05/2006. http//www.fmr.edu.br/npi_2.php. 12p.


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religiosos.
Esse modelo de Descartes foi ótimo para o grande desenvolvimento científico e
tecnológico que sobreveio à sociedade nos tempos que se seguiram. Juntamente com as leis
de Bacon, Copérnico, Galileu, Newton, Kepler e outros, as idéias de Descartes prevaleceram
nos séculos XVII, XVIII, XIX e em boa parte do século XX. Ficaram conhecidas como o
“reducionismo” de Descartes, já que ele havia proposto a fragmentação ao se dividir o todo
em partes, reduzindo-o às suas funções particulares para depois entender o funcionamento do
todo juntando essas partes. Nesse sentido, diz-se também que seus adeptos usavam e usam o
caminho do cartesianismo. Essa linha de pensamento e atuação trazia como hipótese que os
sistemas naturais deveriam ser simples, ordenados e que seus movimentos futuros seriam
totalmente previsíveis através das suas equações de estado. Os matemáticos, aproveitando
todo o arcabouço epistemológico que sustentava o reducionismo, introduziram também a
necessidade dos sistemas naturais serem, sempre que possível, lineares e causais, ou seja, de
causa e efeito lineares e bem definidos, uma vez que somente dessa forma as equações que
modelavam os sistemas naturais poderiam apresentar soluções satisfatórias e as previsões
poderiam ser feitas. Tudo isso fez do universo um sistema determinístico a ser cada vez mais
descoberto, a ponto de Laplace no século XIX afirmar que tudo na natureza já estaria pré-
determinado, bastando que se estudasse o sistema uma só vez para compreendê-lo totalmente
para trás e para frente no tempo. Como conseqüência, Laplace, inquirido, ousou dizer que não
mais precisava da hipótese de Deus e foi assim que a ciência adentrou o século XX, quando as
idéias evolucionistas de Darwin enfatizavam que o modelo criacionista do cristianismo estava
ruindo. Portanto, para os evolucionistas radicais, um Deus pertencente ao modelo separatista e
fixo, exclusivo de Descartes, estaria morrendo ou, pelo menos, não sendo mais necessário.
Havia sido dada a largada para o grande debate entre criacionistas e evolucionistas, mas ainda
permanecia muito evidente a distinção dos caminhos trilhados pela Religião e pela Ciência.
Um estudo mais abrangente e profundo da história da Ciência mostra, ao mesmo
tempo, que o advento da Ciência Clássica ou Moderna, tendo Newton e Descartes como seus
arautos, acabou por afastar Filosofia e Ciência, ou ao menos, descartar posições filosóficas
que não fossem as hegemônicas. A verdadeira Física, por exemplo, antes conhecida como
Filosofia Natural, originária do grego Physis, se sentiu expurgada da redoma clássica da
chamada modernidade científica. Perdeu-se o sentido da Physis como um estudo da natureza
em sua essência, voltando-o a uma definição muito reduzida que dizia respeito ao
conhecimento de fórmulas matemáticas e cálculos apenas, o que em grande parte é
responsável pelo desprezo recebido de alunos nos mais variados graus de escolaridade, já que

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o verdadeiro encanto pela natureza estava na ignorância da Physis. Dessa forma, o modelo
científico que chegou até a segunda metade do século XX e que gera a dual e confusa crença
cientificista vigente, a conhecida por escola determinística dual que é uma mistura do
criacionismo dominical com o evolucionismo acadêmico, não deu e não dá maior atenção
para alguns filósofos menos convencionais, menos citados, por serem inquiridores do modelo
mecanicista. Spinoza e Bergson, por exemplo, bases de apoio dos laureados com o Nobel,
Albert Einstein e Ilya Prigogine, respectivamente, não estão entre os utilizados como modelos
de pensamento e de universo para a grande maioria dos cientistas clássicos que atuam hoje no
meio acadêmico. Suas bases filosóficas e epistemológicas não condizem com o modelo
clássico, antes o questionam (Prigogine, 1996). O modelo predominante utiliza ainda
Descartes e Newton em suas posições mais conhecidas, deixando de lado, o que é por muitos
ignorado, algumas de suas inquietações metafísicas, místicas e menos ortodoxas. Outros
pensadores e cientistas que apresentaram posições diferentes dos clássicos já mencionados
vieram bem antes de Spinoza e Bergson. Foi o caso de Blaise Pascal, um conterrâneo de
Renèe Descartes, que viveu na França também no século XVII. Ao contrário de Descartes que
se fixava em seu “Discurso do Método” para explicar toda a natureza pela razão, Pascal
defendia que para se conhecer a verdade, eram necessários razão e coração. Chegou a dizer
que a visão unidirecional de Descartes sobre a soberania da razão era míope, ainda que
apoiada num “bom senso”, este definido para Pascal como “uma bússola irrisória para quem
aborda as maravilhas do infinito”. O ponto sutil que talvez tenha feito muita diferença na vida
de Pascal, funcionando como um verdadeiro Efeito Borboleta, é que ele havia passado por um
grave acidente no final de sua vida, o que mudou sua maneira de ver o universo. Grande
estudioso desses dois cientistas franceses, Michel Serres afirmou: “comparado a Pascal,
Descartes não passa de um romancista” (Lebrun, 1983). No entanto, a grande maioria dos
modelos científicos que prevaleceram oficialmente foram os estruturados por Descartes, os
quais, sem dúvida, impulsionaram a ciência e a tecnologia, enquanto que Pascal, a menos da
linguagem computacional que leva seu nome, ficou quase esquecido. Com o advento da
Teoria do Caos e da Ciência da Complexidade nas últimas décadas do século XX, contudo,
Pascal começou a ser relembrado pelas suas divergências com Descartes e seus
posicionamentos lhe valeram o título de precursor da Ciência da Complexidade no século
XVII (Morin e Le Moigne, 2004).
É fácil reconhecer que com o apoio de toda a ciência oficial, a escola determinística
dual se fortaleceu muito, trazendo conseqüências marcantes que perduram até o presente
momento. Foi essa mesma escola determinística que marcou as posições de Albert Einstein,

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não obstante suas idéias revolucionárias sobre seu Deus cósmico e aquelas apresentadas na
sua Teoria da Relatividade. Apesar do “escândalo” trazido pelos conceitos relativos de tempo,
massa e comprimento, ainda não compreendidos pela grande maioria da humanidade, mesmo
na comunidade científica, essa teoria traz em seu bojo a certeza de uma natureza
determinística, cartesiana, sem margem para incertezas e probabilidades. Tanto assim que
Einstein não aceitava o Princípio da Incerteza de Heisenberg e muito menos os
emaranhamentos quânticos e colapsos de função de onda, alguns dos princípios inquietantes
que a Física Quântica começou a evidenciar na década de 1930, afirmando: “Não acredito em
um Deus que jogue dados com a natureza”.
Cabe questionar, então: como estava a ligação entre Ciência e Religião no início do
século XX? E de uma forma mais ampla: como estava a ligação entre Ciência e
Espiritualidade nessa época? Os cientistas clássicos que defendiam a existência de Deus ainda
o faziam na crença de um Deus longínquo, distante, não mais atuante nas leis da natureza e,
portanto, não atuante diretamente no ser humano, idéia original de Descartes. Einstein sofreu
essa influência ao desenvolver suas idéias sobre uma religião cósmica e uma de suas mais
famosas frases foi: “A Religião sem a Ciência é cega e a Ciência sem a Religião é manca”.
Em certo aspecto, Einstein concordava com Pascal, mas para ele as leis imutáveis da natureza
permaneciam inatingíveis e as certezas científicas nessas leis muito bem definidas eram
provas cabais da criação de um Deus que privilegiava a ordem e a determinação, expurgando
tanto quanto possível o acaso, o que o aproximava muito nesses aspectos de Descartes,
Newton e da Ciência clássica. Para Einstein, restavam as variáveis ocultas a serem
descobertas. De fato, para a Ciência Clássica, qualquer sinal de irregularidade ou
imprevisibilidade foi e ainda é devido a uma falta de conhecimento no assunto, uma
ignorância passageira. Foi a visão desse mundo clássico, cheio de certezas e de divisões muito
claras, que forçavam ao já mencionado posicionamento dual do ser humano que se tornou
comum até os dias de hoje em termos de Ciência e Religião: louva-se a Deus aos domingos e
à Ciência nos demais dias da semana. As idéias de Descartes sobre a separação entre Deus,
mente e matéria que foram tão importantes para o século XVII, com o passar do tempo foram
se ampliando na linha científica clássica, paradoxalmente auxiliada pela Teoria da Evolução,
levando a uma postura de extrema independência e até mesmo prepotência em relação à
Religião, a ponto de muitos cientistas prescindirem totalmente da idéia de Deus no século
XIX e em boa parte do XX, tornando o cartesianismo quase que exclusivamente materialista
e, assim, afastando-o das idéias originais do próprio Descartes. Como para os cientistas
conservadores Religião e Espiritualidade sempre foram aproximadamente a mesma coisa, a

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mesma separação ocorria entre Ciência e Espiritualidade.


Assim, durante o desenrolar do século XX, Ciência e Religião foram assumindo
perante a sociedade, posições radicais, e a separação entre elas ficou cada vez mais clara:
crentes ferrenhos de um lado e cientistas materialistas do outro, enquanto os cientistas crentes
faziam o jogo hipócrita, muitas vezes conveniente, da dualidade. Adeptos da espiritualidade,
por sua vez, sentiram-se discriminados por grupos extremistas dos dois lados. Cientificismo e
criacionismo exacerbados no decorrer desse século constituíram outra conseqüência desses
extremismos. Na segunda metade do século XX, conceitos provenientes de crenças orientais,
místicas e a expansão do Espiritismo ajudaram em alguns casos a atenuar a discrepância entre
os caminhos assumidos entre Ciência e Religião, incorporando a idéia de uma contínua
evolução do ser humano ao cristianismo, o que trazia em si um bom paralelo com a ciência
evolucionista. Os radicais de cada grupo, entretanto, se fecharam ainda mais a essa onda de
espiritualidade.
Na década de 1960, porém, sob os olhares incrédulos dos cartesianos e mecanicistas
que já execravam as descobertas revolucionárias da Física Quântica, da Psicanálise de Jung e
da grande quebra de paradigmas proposta pelos movimentos hippies (Ferguson, 1980),
ocorreu o nascimento da Teoria do Caos, a qual veio trazer para o mundo macroscópico as
instabilidades e incertezas da Física Quântica, em princípio aplicadas apenas ao mundo do
muito pequeno (Gell-Man, 1994). Já no cristianismo oficial, talvez para acompanhar os
avanços do Espiritismo e de incontestes manifestações espirituais corroboradas por filósofos e
humanistas espiritualistas como Rudolph Steiner, ocorria o nascimento da linha carismática
pentecostal em vários de seus segmentos, inclusive no catolicismo. Esses acontecimentos na
Ciência e na Religião oficiais, em princípio, apresentaram-se desconectados, mesmo porque,
de acordo com Descartes, eles não teriam nada em comum. Entretanto, a Ordem Implícita de
David Bohm, um físico quântico, o Ponto Ômega de Teilhard Chardin, um teólogo, e a
Ressonância Mórfica de Rupert Sheldrake, um biólogo, conceitos, entre tantos outros,
surgidos na segunda metade do século XX, diziam que esses movimentos pareciam conspirar
para a busca de uma nova direção de evolução para o ser humano. A espiritualidade e o
misticismo pareciam estar de volta, mesmo sob o repúdio de setores tradicionais de igrejas e
universidades. Constatou-se, por exemplo, que nas últimas décadas, para surpresa de muitos
estudiosos, houve um aumento significativo na busca do sagrado, do místico e do espiritual
em toda a humanidade (Cavalcanti, 2000), incluindo aí cientistas, religiosos, místicos e
mesmo a população em geral. Veja-se, por exemplo, o enorme sucesso do livro de Dan
Brown, “O Código Da Vinci” (Brown, 2004), o qual tem provocado inúmeras reações de

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menosprezo daqueles que, sem querer ao menos investigar as possíveis veracidades do tema
tratado, durante muito tempo fizeram prevalecer a visão clássica do caminho único e certo.
Sem entrar no mérito de ser esse um livro somente de ficção, a estória de “O Código Da
Vinci”, transformada em filme, é, com certeza, um sinal claro da mudança de rota que ocorre
em nossos tempos em termos do relacionamento entre Ciência, Religião e Espiritualidade.
Quem tem medo desse livro é convidado a pensar onde estão ancoradas as suas crenças de
hoje, se no século XVII ou em nossa época (Guerrini, 2006a). Essa relação nunca mais será a
mesma doravante, ficando, queiram os religiosos clássicos ou não, maculados a ética e os
objetivos mais profundos das religiões institucionalizadas, algo semelhante ao ocorrido com
os partidos políticos no Brasil depois da avalanche de denúncias em 2005, independentemente
do partido político.
Nesta mesma época, as igrejas cristãs têm registrado, via de regra, perdas no número
de fiéis e, particularmente, a Igreja Católica no número de padres, indicando que esta nova
tendência se caracteriza muito mais por uma busca do espiritual e muito menos do religioso
doutrinário. Mesmo com muitos religiosos querendo atribuir a essa onda crescente, a
permissividade instituída no Concílio Vaticano II nos idos de 1960, não se quer perceber que
um dos pontos essenciais nessa interpretação diz respeito ao vazio que o fiel encontra ao
buscar o verdadeiro sentido da vida, vazio esse que nem a Religião e nem a Ciência clássicas
conseguem mais preencher. Com efeito, aqueles cidadãos que sentiam necessidade do
espiritual e que não encontravam apoio de suas instituições de educação e pesquisa por um
lado e de suas igrejas de outro, fundaram ou se agregaram a grupos de estudo que acabaram se
enquadrando na categoria de grupos de auto-conhecimento e sociedades secretas e esotéricas,
os quais cresceram muito nos últimos anos. Assim, as energias emanadas dos pêndulos, das
pirâmides e dos cristais, assim como o estudo da Astrologia, da Quiromancia, do Eneagrama,
do Shamanismo, de vários oráculos, da telepatia e de outros fenômenos psi e de diferentes
rituais místicos, tendo sido barrados durante séculos tanto de um lado como de outro, abriram
espaço para uma “terceira via”, considerada anátema pelos críticos conservadores de ambos
os lados (Guerrini, 2004).
No entanto, mesmo com a obstinada oposição desses conservadores, nada conseguiu
deter o rápido desenvolvimento das aplicações da Teoria do Caos e Complexidade, da
Psicologia Transpessoal e da Física Quântica nesse período de grandes transições da segunda
metade do século passado e início do atual. Antes, surgiram cientistas de renome que
desafiaram a ortodoxia vigente com ligações profundas entre os princípios da Ciência e os da
Espiritualidade. Fora da linha da Psicologia, um dos primeiros e mais conhecidos a realizar

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essa proeza foi o físico Fritjof Capra ao fazer uma ponte entre as descobertas da Física
Quântica e a Espiritualidade Oriental em seu livro “O Tao da Física” (Capra, 2000), cuja
visão foi depois ampliada em “O Ponto de Mutação” (Capra, 2001) e, mais recentemente em
“A Teia da Vida” (Capra, 2001) e “Conexões Ocultas” (Capra, 2002). Surgiram,
simultaneamente, outros desbravadores cognominados pejorativamente de “gurus” pelo
cientificismo clássico, como David Bohm, Deepak Chopra, Amit Goswami, Danah Zohar,
Fred Allan Wolf, etc, todos físicos que ousaram aplicar Física Quântica na vida, nos
relacionamentos e na saúde. Hoje, depois de muita insistência, não se apresentam mais como
desconhecidos, mas ainda são tidos como místicos e quase sempre como não-científicos pela
comunidade acadêmica ortodoxa, enquanto que literalmente execrados pela hierarquia
dominante do cristianismo arcaico. Outros cientistas falam igualmente dessa nova maneira de
se olhar para o universo nesta virada de milênio, englobando áreas da ciência antes
desconectadas pelo ponto de vista cartesiano (Barrow, 1995; Johnson, 1995; Cavalcanti, 2000
e 2004).
O momento atual permite, pois, algumas reflexões. Por mais ortodoxo e cartesiano que
se queira ser, não se pode negar o avanço de uma corrente cada vez maior na direção de uma
profunda interação entre a Ciência e a Espiritualidade neste início de novo milênio, muito
embora não se possa dizer o mesmo das religiões institucionalizadas. O que transparece é que
o desejo interior do “religare” nunca esteve tão forte e tão visível na caminhada do ser
humano, ainda que sem parâmetros bem definidos, o que “per se” define uma característica
ímpar do momento. Nunca a liberdade e a responsabilidade do ser humano foram a ele
devolvidos para se constituírem caminhos próprios de cada um como nesta época, o que pode
ser olhado como um grande avanço evolutivo e, ao mesmo tempo, revolucionário (Zohar,
1990; Arntz et al., 2005).
Como é, então, essa ligação que ocorre hoje? Tudo indica que é algo novo, não tendo,
verdadeiramente, precedente em toda a história do ser humano, ainda que seja uma evolução
dos modelos antigos. A espiritualidade não surge mais como uma imposição para se alcançar
um prêmio tendo à sua sombra o castigo eterno, mas como, na linguagem da Teoria do Caos,
uma propriedade emergente de um sistema dinâmico complexo e adaptativo que é o ser
humano em sua integridade na busca de seu atrator através de uma complexidade crescente,
algo a ser comparado com o Ponto Ômega de Teilhard Chardin (Heller, 1995; Betto, 1997).
Céu e inferno passam a ser, nessa nova ótica, atratores dinâmicos do ser humano que
deliberadamente os escolhe (Guerrini, 2006b). E como atratores dinâmicos, nenhum deles é
visto como definitivo, mas passivos de mudança através de novas escolhas pela evolução que

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não cessa. O ponto final, que nunca é final na verdade, é o Ponto Ômega de Chardin, o que
faz a chegada ser a própria caminhada. A ligação dessas idéias com a visão espiritualista é
clara, muito embora não mais se definam conceitos imutáveis, dogmas e caminhos únicos
(Guerrini, 2005).
Essa nova ligação entre Ciência e Espiritualidade neste início de milênio, envolve
razão e, principalmente, intuição, bem na linha de Pascal, evocando também idéias já
elaboradas por Heráclito e Platão na antiga Grécia. Tem raízes, sim, na aurora do
desenvolvimento científico da humanidade, quando se usavam oráculos de adivinhação para
se conhecer a natureza e seu curso. Segundo Carl G. Jung, esses oráculos muitas vezes
trabalhavam com sistemas caóticos simples, onde o mago, o feiticeiro ou o sensitivo usavam
seus inconscientes conhecedores de todas as informações tanto em tempos futuros como em
tempos passados para descobrir os padrões ali escondidos. Para o elaborador da Psicanálise,
nada de sobrenatural, já que esses fatos podiam ser explicados pelo contacto do inconsciente
pessoal com o coletivo. Pode-se perceber aqui que eles buscavam a ordem no caos, ou seja, o
que esses padrões escondidos na natureza (definidos como fractais) estariam revelando sobre
certa pessoa ou sobre certa situação. Segundo M. L. Von Franz, colaboradora de Jung, ao
padrão caótico ligado aos oráculos, estaria o verdadeiro começo da ciência muitos séculos
antes da era cristã. Lá, ao contrário da ciência clássica, o acaso não era descartado e o instável
e irracional eram valorizados na busca da verdade. O evento único não repetível, onde não
atua a Estatística Clássica, era, muitas vezes, essencial nessa busca (Von Franz, 1995).
Entretanto, a oficial e formal ciência moderna desenvolvida estruturalmente no século
XVII veio não somente abolir essa maneira “primitiva” de se fazer ciência, como também
condenar à fogueira quem dela ainda ousasse fazer uso, com o pretexto da blasfêmia contra o
Deus criador que se mantinha distante, porém vingador e punitivo, em que pesem as
metáforas bíblicas como a do Filho Pródigo onde a imagem de Deus Pai era radicalmente
diferente. O grande desenvolvimento científico e tecnológico que se seguiu à elaboração da
Ciência Clássica deu um suporte mais que necessário ao reducionismo e mecanicismo,
permitindo uma grande segregação de quem não seguisse as diretrizes da ciência do século
XVII.
Somente agora, nas últimas décadas do século XX, é que por linhas não esperadas e
não-convencionais foram surgindo evidências da necessidade de um retorno ao sagrado
(Cavalcanti, 2000) no meio da comunidade científica, ainda que de forma não totalmente
oficial, já que menos reconhecida, e menos acadêmica. Nasceu a abordagem científica
transdisciplinar que engloba as dimensões artísticas, intuitivas e até a religiosa e a espiritual

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na tentativa de compreender a natureza (Nicolescu, 1999), tendo ocorrido em setembro de


2005 o “II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade” em Vitória-ES, Brasil. Um bom
modelo para o surgimento da necessidade dessa abordagem transdisciplinar, quase que
imperativa em nossos tempos, pode ser fornecido pela analogia da “pilha de areia” no
contexto da Teoria do Caos: era a avalanche necessária! De fato, descobertas da Física
Quântica, da Teoria do Caos, Fractais e Complexidade e de vários efeitos paranormais dentro
da Psicologia vieram trazer um forte vínculo com os oráculos primitivos, intuições e esforços
de auto-conhecimento e, junto com eles, um grande desafio: ou se expurgam essas tentativas
de se voltar ao natural, ao irregular, ao instável, ao incerto com uma inquisição muito mais
forte do que aquela promovida pela Igreja Católica na Idade Média, ou se aceita o até então
inaceitável, imponderável, não quantificavel, não passível de prova científica clássica. O que
se observa, na prática, é a “opção da desconsideração” feita pela grande maioria dos cientistas
oficiais: faz-se de conta que as descobertas acima relatadas ocorridas no século XX
simplesmente não aconteceram ou, ao menos, não tem influência em suas áreas de atuação.
Isso vale tanto para os estranhos fenômenos da Física Quântica e das inquietantes descobertas
da Teoria do Caos, como para as fortes evidências da ligação da Ciência com a
Espiritualidade que têm sido divulgadas em todos os cantos. Acontece com a Homeopatia, por
exemplo, ainda considerada como ramo não científico da medicina, já que não pode ser
provada por métodos clássicos (Guerrini, 2006c). Na verdade, a Homeopatia precisa da
hipótese do imaterial, ou seja, do espiritual para ser compreendida, o que não é contemplada
pelo mecanicismo clássico e acaba criando uma grande celeuma em toda a população que a
utiliza e a defende. Um dos pontos principais é que, mesmo de forma inconsciente, os
cientistas clássicos que se dizem religiosos, acreditam num modelo de religião separatista,
dual, fragmentada, separada do quotidiano, própria de um Deus que está somente nos templos
ou muito distante, o que reflete claramente as idéias clássicas de Descartes plantadas no
século XVII, e que formam hoje um arquétipo coletivo dominante. Há de outro lado, mas
seguindo o mesmo arquétipo, os ateus e os agnósticos. Todos esses, crentes ou não crentes,
são, geralmente, incrédulos da nova ligação entre Ciência e Espiritualidade que se construiu a
partir do século XX, tentando ignorar que os avanços vieram em grande parte da própria
Ciência, primeiro com a Física Quântica e depois com a Teoria do Caos e Complexidade. A
maioria desses crentes, agnósticos e ateus prefere continuar a seguir o chamado da Ciência
Clássica, defendendo-se como podem através de um corporativismo manco, como diria
Einstein, na busca de índices de produtividade baseados em trabalhos rigorosamente
quantitativos e cartesianos.

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O caminhar da humanidade neste momento histórico, no entanto, não mais permite


que esses ortodoxos sejam portadores da única voz a se fazer ouvir, ainda que permaneçam
como a maioria dominante nas academias e nos púlpitos. Há, hoje, a possibilidade de escolha
pela abordagem transdisciplinar, um caminho mais abrangente que não exclui a visão clássica.
A verdade é que não há como ficar inerte, não influir ou não ser influenciado pelas mudanças
de paradigmas que estão ocorrendo nas últimas décadas da evolução humana. A própria Física
Quântica mostra o papel essencial do observador, sem o qual não existe o observado e a
tremenda influência daquele neste último. A Psicologia de Jung mostrou a mesma coisa de
outro ponto de vista. Fingir, portanto, que a Física Quântica não descobriu o que descobriu, é
promover uma ciência de faz-de-conta, o que, infelizmente ocorre com a maioria dos
cientistas reducionistas que se aproveitam do sistema vigente para criar uma zona de conforto
muito próxima ao equilíbrio. É como se num sistema de “n” janelas disponíveis para se olhar
o universo, haja uma teimosia de se afirmar que só se pode olhar por uma delas, aquela que o
padrão arquetípico dos cartesianos diz que é segura. Além disso, esqueceu-se da proposta de
Henri Poincaré no século XIX de que a ciência deveria procurar a verdade a qualquer custo e
que os extremos devem ser evitados (Poincaré, 1998).
O que se vê, então, no ensino oferecido oficialmente nas universidades neste início de
terceiro milênio? Como conciliar as descobertas “estranhas” da Física Quântica e da Teoria
do Caos, Fractais, Complexidade, Psicologia com as áreas de atuação de cada um e a busca
individual da Espiritualidade? Qual a ligação entre essas descobertas e a antiga maneira de se
fazer ciência com oráculos e adivinhações? Como essas “ridículas e primitivas” ferramentas e
a grande consideração dos antigos pelo acaso e pelos eventos únicos podem estar tão
intimamente ligados ao conceito definido como Efeito Borboleta na Teoria do Caos (Gleick,
1990)? E quanto aos conhecimentos considerados esotéricos, intuitivos e espirituais, mas que
inúmeras vezes funcionam, o que se fazer com eles dentro de uma ciência menos ortodoxa
(Von Franz, 1995)?
Na busca dessas respostas, este ensaio tem a intenção de, tão somente, propor alguns
questionamentos que, se bem trabalhados, poderão levar a respostas importantes no plano
individual e, quem sabe também, ao nível de uma comunidade de destino como eram
definidos os antigos grupos que tinham objetivos verdadeiramente em comum.
A maneira como se vê hoje a ligação entre Ciência e Espiritualidade está ligada à
maneira como se aceita ou não a nova face da Ciência construída no século XX. Se cada linha
é separada da outra precisando de métodos próprios de análise e não comportando uma
transdisciplinaridade e, por conseguinte, não aceitando a “metadisciplina”, o enfoque ainda é

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o clássico, o cartesiano do século XVII. Se, por outro lado, se leva em conta os avanços do
século XX, novas definições se fazem necessárias com aberturas para o enfoque sistêmico e
transdisciplinar, não simplesmente à justaposição de disciplinas. Nessa ótica não há mais uma
janela única para se olhar o universo. Um parâmetro indicativo interessante é o modelo de
átomo que temos em mente. Uma oscilação entre o modelo clássico e didático de Bohr e o
estranho modelo quântico probabilístico de imenso vazio significativo e de interconexão
definido pelo observador, indica onde estão os nossos padrões. Se no século XVII ou nas
recentes descobertas, e, por conseqüência, em qual tipo de modelos de Ciência, Religião e
Espiritualidade estamos inseridos.

LITERATURA CITADA

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- Betto, F. Sinfonia Universal: A Cosmovisão de Teilhard de Chardin. Ed. Ática, São Paulo,
1997;
- Brown, D. O Código Da Vinci. Ed. Sextante, São Paulo, 2004;
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- Capra, F. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, São Paulo, 2001;
- Capra, F. Conexões Ocultas. Ed. Cultrix, São Paulo, 2001;
- Cavalcanti, R. O Retorno do Sagrado. Ed. Cultrix, São Paulo, 2000;
- Cavalcanti, R. O Caminho Sagrado. Ed. Rosari, São Paulo, 2004;
- Ferguson, M. A Conspiração Aquariana. Transformações Pessoais e Sociais nos Anos 80.
Ed. Record, São Paulo, 1980;
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2005;
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