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A ADMINISTRAÇÃO FAZENDÁRIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVII:

ação estatal e relações de poder

Marcos Guimarães Sanches*

A tradição historiográfica originada do século XIX privilegiou no estudo do Estado


e da administração a sua estruturação formal. Nas últimas décadas a historiografia tem
considerado o problema da eficácia do funcionamento da máquina administrativa, o que
nos propomos a discutir em relação ao Estado colonial dentro dos quadros de uma estrutura
de Antigo Regime.
A abordagem proposta propõe avançar além do caráter reflexo, instrumental e
formalizante das instituições1, privilegiando aquilo que Antônio Manuel Hespanha chamou
de funcionamento social da administração, valorizando a interface entre sua organização, as
normas que orientam seu funcionamento, sua posição no conjunto do Estado, a eficácia de
seu funcionamento e o “embate” com os grupos da sociedade e seus interesses,
possibilitando compreender o efetivo funcionamento das instituições e sua capilaridade no
corpo social. Um dos aspectos que sobressai desta inflexão é o perfil e a posição social dos
indivíduos na administração, no caso presente aplicado ao provimento de ofícios da
Provedoria de Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro no período subseqüente a
Restauração.
A perspectiva pretendida é “estrutural” ou “sociológica do sistema do poder”,
porque concebendo os sistemas de poder encarnados no todo social 2 e os investigando nos
quadros de uma rede relacional3, procura apreender a aplicação da legislação e a evolução
institucional das agências estatais em face da sua recepção no corpo social.
Estudar os sistemas de governo e a administração geral significa colocar questões
acerca de como se efetua a distribuição do poder; quais eram os beneficiários desta
distribuição e o porquê; identificar os vários níveis de poder e os vários campos de
equilíbrio sociais; significa, enfim, avaliar os limites efetivos do poder do Estado e do rei4.
Tomando-se por base a organização e o funcionamento da administração fazendária
da capitania do Rio de Janeiro entre a Restauração e o final do século XVII, pretende-se a
identificação e a interpretação das diversas redes de relações que compõem a sociedade
colonial, os seus respectivos significados e sua interferência no funcionamento do Estado.

A CAPITANIA DO RIO DE JANEIRO

O Rio de Janeiro se projetou ao longo do seiscentos como um dos núcleos


ordenadores da colonização portuguesa na América. Ainda que com menor expressão
econômica que a Bahia e Pernambuco, principais centros produtores dos gêneros de maior
valor no comércio como açúcar e tabaco, conheceu a capitania em meio ao esforço de

*
Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor de História do Brasil Colonial das
Universidades Federal do Estado do Rio de Janeiro e Gama Filho.
1
HESPANHA, A . M., Vesperas del Leviatam. Madri: Tauros, 1989, p.13.
2
REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p.20.
3
MARAVAL, José A.. Teoria del saber historico, Madrid: Revista do Occidente, 1967, p.142.
4
HESPANHA, António Manuel, Por uma teoria institucional do Antigo Regime In Poder e Instituições na
Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1986, p.10.
desenvolver a produção açucareira no sul5, a consolidação de uma economia agrícola
escravista e a constituição de uma elite hegemônica na sociedade que se entrelaçava por
entre as atribuições de governo. Ao mesmo tempo, polarizava as ações de interiorização no
território e de estabelecimento lusitano na região platina, desempenhando ainda papel
central nas relações atlânticas (e não só entre as conquistas portuguesas).
Numa conjuntura econômica global negativa - “este foi um período no qual a
economia-mundo européia passou por um estacamento relativamente largo da produção
total do sistema em geral” 6-, na qual o crescimento das trocas entre a Europa e os mundos
além-mar apresentou ...no menor velocidade que na centúria anterior 7, o Rio de Janeiro
expressava a “viragem” ou “atlantização do Império” 8, desempenhando de forma cada vez
mais explícita o papel de pólo (Godinho) ou de um sub-centro (Mauro) de uma nova
expansão portuguesa no sul do atlântico.
No momento da Restauração, operava-se uma nova formatação no Império
português, apesar de preservada a solidez das suas estruturas tradicionais. Pioneiro, de certa
forma, da modernidade, a expansão marítima e o Império Colonial não foram suficientes
para alavancar mudanças na estrutura do Estado e da sociedade em Portugal, na época
moderna, que como assinala Carl Hanson, “permanecia firme nos seus moldes corporativos,
em que prevalecia uma ordem social baseada na propriedade da terra e nos privilégios"9.
A Restauração, apesar das continuidades estruturais agravadas pela guerra,
encontrou a montagem internacional da economia do Império português "alterada
profundamente desde os fins do século XVI", com uma mudança de eixo para a América 10.
O Império americano, apesar de centrar em si o novo eixo, representava um
"empreendimento continental", diferente da África e do Oriente, mas ainda, "pouco
profundo"11.
Os estudos sobre a economia das capitanias do sul exemplificam a tendência da
historiografia em enfatizar as produções voltadas ao grande comércio internacional,
sobretudo, com destino aos mercados europeus. Em decorrência, a produção de
abastecimento e mesmo àquelas vinculadas as trocas intercoloniais acabaram por merecer a
avaliação de secundárias, sendo mesmo omitidas, quando da análise do conjunto da
economia colonial. No Rio de Janeiro, apesar da produção crescente de açúcar, até como
alternativa ao controle da Cia das Índias Ocidentais sobre a maior parte da zona nordestina,
destacavam-se gêneros como farinha e aguardente destinadas ao abastecimento da própria
capitania e das que lhe eram mais próximas e alimentavam o tráfico atlântico.
No Rio de Janeiro, a economia de plantation teve origem quase coincidente à
fundação da cidade, mas sua produção só ganhou expressão nas duas últimas décadas do
quinhentos. Fernão Cardim na sua descrição priorizou ainda as “muitas e grandes
madeiras” e nos fala de uma terra “abundante de gado, porcos e outras criações; dão lhe
marmellos, figos, romeiros e também trigo12, informação semelhante a de Gabriel Soares de

5
MAURO, Frédéric, Portugal, o Brasil e o Atlântico 1570-1670, Lisboa, Estampa, l989, Vol. I, p. 316.
6
WALLERSTEIN, Immanuel, El Moderno Sistema Mundial II: El mercantilismo y la consolidación de la
economia- mundo europea 1600-1750, México, Siglo XXI, 1979, p. 341
7
CHAUNU, Pierre, Sevilha e a América nos Séculos XVI e XVII, SP, Difel, 1980, p. 334
8
FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1877, p. 380-400.
9
HANSON, Carl A. , Economia e Sociedade no Portugal Barroco, Lisboa, Dom Quixote, 1986, p. 33
10
GODINHO, Vitorino Magalhães, "Portugal y su Império (1640-1680) in Historia del Mundo Moderno
(The New Cambridge Modern History), Barcelona, Sopena, 1979,Vol. V, p. 288
11
MAURO,, Frédéric, Op. Cit.,p. 149
Souza que também relata de uma economia diversificada, sem nenhum destaque para o
açúcar.
A cidade e seu recôncavo foram beneficiados pelo apogeu da produção açucareira
situada por Frédéric Mauro entre 1570 e 1630, tendo o número de engenhos saltado de 3
(1583) para 60, em 162913. Nesta linha, Joaquim Serrão identificou um “surto econômico”
durante a União Ibérica, que agregou à economia açucareira os esforços sistemáticos na
procura das minas. A “Relação da Província do Brasil” do Padre Jácome Monteiro, em
1610, já considerava a cidade rica, com dois mil vizinhos, 14 engenhos, abundante de
mantimentos da terra e pólo de importante comércio com o Peru e Angola14.
Apesar da inquestionável expansão da produção de açúcar, a capitania continuava
produzindo, subordinados a lógica mercantil, outros gêneros destinados às trocas
intercoloniais. Frei Vicente do Salvador aponta a existência de 40 engenhos, mas nos
informa que “até aquele tempo se tratava mais de fazer farinha para Angola que açúcar... 15”.
O início do século XVII foi o momento de consolidação não só da produção de açúcar, mas
de uma economia escravista exportadora no entorno da cidade de São Sebastião, verificável
não só pela expansão numérica dos engenhos, mas também pelo estabelecimento de várias
freguesias no Recôncavo confirmando o avanço da fronteira agrícola: Piedade do Iguaçu
(1619), Pilar (1637), São Gonçalo (1645), Guia de Pacobaíba, São João de Meriti, Santo
Antônio de Sá (1647), Jacutinga (1657), Magé e Itaboraí (1616) tiveram origem comum,
criadas em patrimônio privado por iniciativa de seus proprietários, senhores de escravos e
produtores agrícolas.
João Luiz Fragoso estudando a expansão econômica do Rio de Janeiro, a partir do
conceito de “economia do bem comum”, concluiu que a acumulação de capital e a
constituição de uma elite foram “produto de práticas e instituições do Antigo Regime
português”, derivando de múltiplos mecanismos, não só econômicos 16. No estudo conclui
que das 197 famílias proprietárias de engenhos no século XVII, 60% constituíram-se na
cidade antes de 1620, portanto antes do boom do açúcar. Da explicação do autor ressaltam-
se dois aspectos: as múltiplas atividades e estratégias de constituição de fortunas e a
disponibilidade dos fatores de produção, terra e mão-de-obra.
Os conceitos de “economia do bem comum” e de “economia do dom” apontam para
as especificidades do processo de acumulação de capital em economias não capitalistas. No
caso do Rio de Janeiro são destacadas como elementos impulsionadores da produção a
participação na conquista e guerras subseqüentes, na administração real e no governo da
República e a constituição de redes de reciprocidade envolvendo e completando diferentes
interesses da sociedade colonial.
A dinâmica do entrelaçamento dos interesses econômicos, das práticas sociais e do
exercício do poder permitiu aos homens de maior qualidade da sociedade colonial,
apropriarem-se de forma mais intensa da terra e da mão-de-obra, explicando um processo
de acumulação endógena.
12
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e da Gente do Brasil. São Paulo: Nacional; Brasilia: INL, 1978, p.
209.
13
MAURO, Frédéric, Op. Cit., Vol. I, p. 254-265.
14
LEITE, Serafim, História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,
1949, Vol. VIII, p. 391-425.
15
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1975, p. 302.
16
FRAGOSO, João L, A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial
(século XVI e XVII) In FRAGOSO, João Luiz; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O
Antigo Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 42-44.
O estudo da estrutura fundiária, considerada dentro dos objetivos e do funcionamento
do sistema colonial como uma das estratégias para viabilizar uma produção de caráter
mercantil, permite perceber os mecanismos de apropriação dos fatores de produção e seu
aproveitamento. No início do seiscentos se constata uma tendência de redução das
concessões e de sesmarias e o aumento da extensão dos lotes parece indicar o crescente
fechamento da terra, conseqüente ao avanço da fronteira agrícola e a maior amplitude do
capital nela envolvido. A análise da documentação deixa claro ainda, duas outras
características: o afastamento progressivo do núcleo central da cidade e beneficiários de
maior qualidade na sociedade, ao contrário doa artesãos, soldados e oficiais que receberam
datas do fundador, em recompensa dos serviços.
Na segunda metade do século XVII, a economia da capitania sofreu os impactos
negativos da conjuntura como se deduz da recusa da Câmara do Rio de Janeiro
(15.11.1641) ao pedido do Governador Sá e Benevides de “meios de socorrer as despesas
da sua defesa"17. No entanto, o governo metropolitano “apoderado do purido de legislar”,
na expressão de Varnhagem18 fazia recair sobre a colônia o maior peso fiscal do esforço
para satisfação das suas necessidades crescentes e prementes, restrito no Reino pelas
limitações da capacidade tributária do Príncipe. O mapeamento dos documentos normativos
para o período indica pelo menos quatro grandes tendências de orientação da administração
fazendária: 1. Crescente preocupação com a eficácia dos órgãos da fazenda, acrescidos de novas
atribuições conseqüentes ao estabelecimento de novas contribuições; 2. Maior rigor no controle
dos contratos de arrematação dos dízimos com sucessivas intervenções da Mesa da Fazenda da
Bahia na arrecadação do Rio de Janeiro, supervisionando-se com maior rigor as ações dos oficiais
da Fazenda; 3. Reiteração das restrições monopolistas sobre o comércio e produtos estancados; 4.
Incentivo a exploração de novos produtos, com destaque para os recursos minerais.

A FAZENDA E O EXERCÍCIO DOS OFÍCIOS

A crescente centralização do poder e a maior complexidade da administração


características do processo de constituição do Estado moderno se reflete na administração
fazendária consolidada ao lado da justiça, como atribuição principal do soberano. Pere
Molas situa a fazenda como um dos “elementos do sistema político”, ao lado do rei e da
dinastia, dos ministros do rei e da administração territorial19 e Mousnier chega a afirmar que
o lançamento do imposto é a “chave do desdobramento político” 20. O mercantilismo,
expressão do interesse do Estado e da afirmação interna e externa do seu poder reduziu, de
certa forma, a economia a uma dependência administrativa, em face da relação entre a
ampliação do papel público/estatal e a necessidade de aumento das rendas nacionais.
A pressão fiscal imposta de forma crescente à sociedade se refletiu na ampliação
da estrutura burocrática que, no caso da fazenda , se revertia de grande importância,
levando Ruggiero Romano a afirmar que o maior triunfo da burocracia se deu “em um
17
Na resposta, os vereadores alegavam (16.11.1641) que "o povo já havia contribuído muito" e o "lançamento
de novos encargos prejudicava o comércio", já ressentido do refluxo das ligações com o Prata após a
Restauração - "a falta de dinheiro e comércio que todos os anos vinha do Rio da Prata". Ver Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU). Rio de Janeiro (RJ). Doc. 6086 e 6087.
18
VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1956, T. III,
p. 267.
19
MOLAS, Pere. El sistema político de la Europa Moderna In Manual de Historia Moderna. Barcelona:
Ariel, s/d, p. 86.
20
MOUSNIER, R. , O Século XVI. História Geral da Civilização, São Paulo, Difel, 1957, T. IV, p. 122.
ramo especial da administração que são as finanças”21. Válida no geral, a afirmativa deve
ser tomada com cuidado, por exemplo, no caso de Portugal e suas colônias, onde a gestão
da fazenda contava, em especial, nos graus hierárquicos mais baixos, com amplo
recrutamento patrimonial e vários dos seus mecanismos como a arrematação dos tributos,
estavam claramente monopolizados pelos estratos privilegiados da sociedade ou
“mediatizada” pelo embate entre “capacidade fiscal” e privilégio fiscal22.
O complexo monárquico-senhorial-absolutista, como define Maraval o Estado do
século XVII, resultara da aliança entre o rei “absoluto formalmente” com os interesses dois
grandes do reino, possibilitando a “generalização da administração real”, que penetrou
progressivamente no tecido social, impondo a autoridade pública, além da justiça, também
sobre a fazenda, sustentáculo indispensável aos novos objetivos e ações do Estado23.
Configuravam-se os primeiros passos da aplicação do que José Sutil chamou para
o século XVIII de “nova ciência administrativa” sustentada pela: organização social em
função dos objetivos definidos pelo rei; maior capacidade interventora do soberano;
alargamento das esferas sob controle central e legitimação da autoridade pela competência
técnica, além da lealdade política24.
Numa sociedade em que a terra continuava sendo a unidade vital de riqueza e um
amplo espectro de profissões era mal vista por vários extratos sociais, o serviço do rei e do
Estado se tornou poderosa estratégia de enobrecimento. Embora o rei “deixe de ser o
primus inter paris”, se apresentando como uma “realidade superior, mais ampla e abstrata”,
no “estado barroco”, típico da segunda metade do século XVII, seguia sendo muito tênue a
divisória entre o serviço pessoal do rei e o exercício da função pública”25.
Miguel Artola em sua síntese clássica afirma que a fazenda reflete organização da
sociedade e do Estado, ainda de fundo patrimonial em três pontos: desigualdade ante o
imposto; sitemas fiscais diferentes em cada território e fiscalidades paralelas, mais ou
menos independentes da monarquia. Porém, enquanto na metrópole a fazenda real sofria as
conhecidas limitações, nas colônias as rendas representavam uma transferência direta a
Coroa, o que justifica as sucessivas instituições de contribuições e donativos26.
No entanto, a fazenda real “não se reduz a fiscalidade” e não se apresenta como uma
“instituição na qual se reconhece a capacidade de exigir dos particulares e instituições
prestações sem contrapartida imediata para atender o gasto público” e, pelo menos dois
limites se colocam a sua atuação na colônia: a pluralidade de instituições fiscais
concorrentes como as Câmaras e o exercício patrimonial dos ofícios, mesmo que se admita
que a expansão atlântica correspondeu ao “alongamento da autoridade da coroa”27:

21
ROMANO, Ruggiero. e TENENTI, Alberto . Fundamentos del Mundo Moderno. Madrid: Siglo XXI,
1977, p. 272.
22
BERNARDO ARES, Rey-Reino: El Binômio estatal em la Corona de Catilha em el siglo XII In
CASTELLANO, Juan Luiz; DEDIEU, Jean Pierra; LOPEZ CORDON, Maria Victoria. La Pluma, La Mitra
y la Espada. Estudios de la Historia Institucional em Edad Moderna. Madrid: Marcial Pons, 2000, p.
352.
23
MARAVAL, J. Jose Estado Moderno y Mentalidade Social (Siglos XV e XVIII). Madrid: Alianza
Editorial, 1986, Vol. I, p. 300.
24
SUTIL, José. Os Poderes do Centro In MATTOSO, José. História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa:
Esta,pa, 1994, p. 160-162
25
MARAVAL, J. Op. Cit., Vol. I, p. 402.
26
ARTOLA, Miguel. La Hacienda de Antiguo Regimen. Madrid: Alianza Editorial, s/d, p. 11-12.
27
Idem, p. 15 e 21.
“A arriscada e dispendiosa empresa era uma instituição do Estado, criada por
ele e posta sob sua égide. Terras, mares e homens pertenciam à realeza. O
critério da monarquia era eminentemente patrimonial, confundindo-se, aqui
propriedade e soberania, função pública e gerência dos bens particulares do
príncipe com as terras descobertas. O poder de legislar do rei, no setor da
economia, procedia da conceituação do patrimônio, que era inalienável, e da
centralização do poder político que estava em suas mãos”28.
O exercício da função pública no Antigo Regime guardava grande distância do
modelo burocrático que só começou a se difundir ao longo do século XVIII. As funções do
Estado (justiça, fazenda e guerra) estavam depositadas na própria pessoa do soberano,
elemento de unidade do Estado moderno e pólo de força nas suas tensões com a sociedade
de ordens, com vínculos de tipo comunitário, caracterizados pela família extensa, pelo
compadrio e pelo clientelismo.
O exercício dos ofícios era uma delegação do Rei e sua designação se apresentava
como uma estratégia de prestígio e privilégio, constituindo-se em última instância, em via
de ascensão social. Arno e Maria José Wehling sumariaram as características dos ofícios no
mundo colonial: a patrimonialidade, manifesta na venalidade; o uso privado da função
pública; o predomínio da fidelidade pessoal; a multiplicidade das funções e a ausência de
especialização profissional29.
Para o Estado, a dinâmica do preenchimento dos ofícios era uma forma de atender
as crescentes demandas da sociedade e explorar novas fontes de renda, transformando a
função pública em uma agência social de nobilitação, o que colocava o funcionário em uma
rede relacional no interior do corpo social, que continha movimentos desde a interação até a
tensão30.
No processo de colonização, a distribuição de ofícios era também uma estratégia de
solidificação dos vínculos entre as partes do vasto império, buscando a “coroa fornecer
estabilidade institucional a diferentes regiões do Império” e “reforçar o sentido de
identidade nacional entre os súditos ... espalhados pelos diversos continentes do mundo”.
Para Russel Wood aí se encontravam a “vasta gama de formas de reconhecimento
real” a disposição do governo e a receptividade dos colonos “às mercês reais, à concessão
de privilégios e a outras manifestações de apreço real” 31. No geral, os ofícios com a sua
característica de venalidades, enquadram-se na estrutura econômica e social do Antigo
Regime, onde as “instituições” são situações de fato, com uma “personalização das
funções”32, podendo ser lembrada a afirmativa de Raymundo Faoro, que “interfere entre a
metrópole e a colônia oficial, larga parcela de arbítrio do setor privado”33.
No mundo colonial, a distribuição do poder através do sistema administrativo
expressou uma relação de complementaridade entre a estrutura do sistema de poder e o
aparelho de efetivação social34, daí derivando algumas dificuldades operacionais tais como
a multiplicidade de instâncias, a pluralidade de órgãos cuidando dos mesmos assuntos –
28
DIAS, Manuel Nunes, A Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão (1755-1788), Belém, UFPA,
1970, V. I, p. 89.
29
WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. O Funcionário Colonial entre a Sociedade e o Rei In PRIORE,
Mary Del, Revisão do Paraíso. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 144-145.
30
MARAVAL, José A.., Op. Cit , T. II, p. 498.
31
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Um Mundo em Movimento. Algés (Portugal): Difel, 1998, p. 14.
32
MOUSNIER, Roland, Op. Cit., p. 116-117.
33
FAORO, Raymundo, Os donos do Poder. Porto Alegre, 1976, V. 1, p. 182.
34
HESPANHA, Por uma teoria …, p. 69-70.
“diversos poderes concomitantes em distintivos níveis administrativos”35 - e o perfil
eminentemente patrimonial do funcionário colonial.
É possível observar a relação dinâmica entre a crescente ação estatal e a necessidade
de controlar e garantir a fidelidade dos colonos distantes no espaço e mediados por
interesses divergentes, constituindo-se a investidura em ofícios em “mecanismos locais de
cooptação, familiares e econômicos, certamente contribuíram para dar voz ativa aos
interessados locais, fossem ou não legítimos à luz dos valores e das leis então vigentes” 36.
Em suma, a presença na administração de um Estado crescentemente fortalecido se
transformou em mecanismo de mobilidade social.
A remuneração do exercício de ofícios é expressiva da dinâmica da administração
inserida na sociedade de ordens. Os ofícios constituíam fonte de renda do Estado
demonstrando os oficiais permanente preocupação em extrair sua remuneração do próprio
exercício, não se descuidando em “executar os contratadores pelo preço porque
arrematavam vos vão e onde pagar as propinas que sempre costumam pagar por tais
arrematações”37, ao mesmo tempo, em que era objeto de permanente atenção o “carregar”
na receita do Almoxarife a “propina do contrato dos dízimos”38.
Por outro lado, propinas e outros rendimentos dos cargos alimentavam interesses
privados e o exercício na administração garantia verdadeiros privilégios na realidade do
mundo colonial, como se “lavrar em moeda” os ordenados dos oficiais da Casa da Moeda e
do Superintendente das Minas, pagos pela Provedoria do Rio de Janeiro.
O constante envolvimento dos detentores de ofícios com os negócios coloniais se
fazia dentro de mecanismo bastante complexo, que envolvia desde a busca de um
complemento dos vencimentos até a prática de uma espécie de economia de mercês,
entrelaçando objetivos econômicos, sociais e até simbólicos, destacado a estreita relação
entre status, poder e grupo social, verdadeiros vasos comunicantes entre o individual e o
coletivo.
Os “quantos” administradores, tesoureiros, almoxarifes, escrivães e “ofícios de
nomes e jurisdições novas” de que falava o Padre Antonio Vieira no “Sermão da Primeira
Oitava da Páscoa”, datado de 1656, certamente não impressionaram o jesuíta só pela
quantidade, mas também pela recorrência de outras práticas como a sucessão de pai para
filho ou a concentração de ofícios em determinados grupos familiares, como no conhecido
caso do Rio de Janeiro, onde os Correia de Sá, seus parentes e dependentes (Correia,
Vasquez, Vasqueanes) monopolizaram cargos em todos os ramos do governo, desde a
fundação da cidade até o final do século XVII, um dos exemplos a seguir expostos em
demonstração da problemática levantada.
O apego ao ofício e ocupação nos quadros do Estado, a “prosperidade sem custo, de
títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis”, para citar a célebre afirmativa de Sérgio
Buarque de Holanda39 ganhou nova dimensão ao longo do século XVII, com a
generalização na venda de empregos e ofícios públicos. Apesar dos sucessivos Regimentos
dos Governadores Gerais manterem a reserva real para a criação de ofícios, cabendo aos

35
BERNARDO ARES, Op. Cit., p. 339.
36
WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Magistratura e rede social no Antigo Regime: os
Desembargadores do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro e suas relações na sociedade colonial. Anais da
XXII Reunião da SBPH - Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, 2002, p. 238.
37
Arquivo Nacional (A N). Códice 60, V. 14, 179.
38
Idem, Códice 60, V. 14, 184.
39
HOLANDA, Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, José Olympio, 1978, p. 15.
titulares da administração central da colônia apenas o provimento interino, só no século
seguinte, no contexto do apogeu da exploração mineral se adotou a restrição da venalidade
dos ofícios, com destaque para aqueles ligados a arrecadação, que teve como significativo
exemplo o Decreto de 18.5.1722 (Provisão de 23.9.1723) determinando que:
“os Ofícios do Brasil, que se tem criado, e se criarem se prôvam por donativo,
exceto os de recebimentos, e que, enquanto se não provassem as propriedades dos
ditos Ofícios, se nomeassem as serventias deles, contribuindo os serventuários no
fim do ano para a Real Fazenda com a terça parte de tudo o que rendessem, segundo
as avaliações em que fossem lotados, para o que dariam fiança idônea...”40.
O direito português vedava a venda dos ofícios, tanto pelos seus titulares
(Ordenações Filipinas (OF), I, 96), quanto pelos que tinham o poder de provê-los (OF, II,
46), embora a historiografia considere as renúncias nas “mãos dos reis”, uma estratégia de
efetiva-la. Apesar da vedação a concessão, delegação ou transferência de titularidade (OF, I,
97), em 1666, a Coroa permitiu o arrendamento dos ofícios, apenas restringindo-lhe o
rendimento. Arrendamentos e renúncias foram sem dúvida, instrumento de transferência de
titularidade e/ou garantia da sua permanência dentro de um mesmo grupo ou rede social.
No Rio de Janeiro Francisco da Costa Barros deteve o ofício de Escrivão da
Provedoria de Fazenda durante vinte e cinco anos, ofício que herdou de seu pai. Costa
Barros solicitou ao rei sua renuncia em benefício de Ignácio da Silveira Vilalobos, que
casou com sua filha Paula da Costa, pretensão atendida pela Provisão de 28 de novembro
de 1657:
“... tendo respeito a Francisco da Costa Barros, natural e cidadão da cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro haver mais de vinte e cinco annos que serve o Officio
de Escrivão da Provedoria de minha Fazenda da mesma cidade de que é
proprietário os primeiros dez annos em vida de seu Pae cujo havia sido o dito
Offcios e os quinze depois de sua morte, (...). Hei por bem e me praz de lhe fazer
mercê de Licença para renunciar o dito Offício na pessoa que casar com uma de
suas filhas (...)”41.
O mesmo genro ainda ocupava o ofício em 1688 quando lhe foi concedia a
faculdade de nomear serventuários42 e parece ter exercido cumulativamente atribuições no
governo da república, pois aparece como oficial da Câmara na Correição de 167843.
A Restauração desencadeou mudanças na sociedade e no Estado em Portugal, mas a
alteração dos critérios prebentários de preenchimento dos ofícios, só foi mais fortemente
alterada no século seguinte. Nuno Monteiro demonstrou que a consolidação dos Bragança
levou a “estabilização da elite titulada”, ampliando “a capacidade da monarquia para definir
as hierarquias sociais”. Cada vez mais, o emprego no serviço do Estado se tornou atrativo
para a elite aristocrática que aceitava as “regras definidas pela monarquia e delas
procuraram ativamente tirar maior proveito”44.

40
Regimento que trouxe Roque da Costa Barreto ... com várias observações feitas ...D. Fernando José
Portugal...”In MENDONÇA, Marcos Carneiro, Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de
Janeiro: IHGB/CFC, 1972Op. cit., T. II, p. 754”.
41
BIBLIOTECA NACIONAL. Documentos históricos. Rio de Janeiro. 1930, vol XIX. p. 464 – 467.
42
Provisão de 16.3.1688. A N. Códice 61 vol. 6, f. 383.
43
TOURINHO, Eduardo. Autos de Correições de Ouvidores do Rio de Janeiro: 1624-1699, Rio de Janeiro,
Diretoria de Estatística e Arquivo da Prefeitura do Districto Federal, 1929.
44
MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. O Crepúsculo dos Grandes (1750-1823). Lisboa: Imprensa
Nacional, 1996., p. 39, 552 e 551.
As tendências mais recentes da historiografia sobre o Antigo Regime, além de
valorizar a concepção patrimonial do Estado, conferem ao exercício de ofícios papel de
mecanismo de “mobilidade nitidamente ascensional”, inserida em “redes de solidariedade”
permeadas por múltiplos critérios como parentesco, vizinhança, amizade, etc45. Os
portugueses em sua “dispersão pelo mundo” não perderam o “sentido hierárquico da
sociedade”, que se não constituiu um “freio poderoso” como definiu Magalhães Godinho,
moldou o seu desenvolvimento econômico46.
No período estudado, após a Restauração, a tendência de centralização e
burocratização da administração não limitou necessariamente o caráter patrimonial da
direção do Estado, apesar de se reconhecer que a consolidação do absolutismo lentamente
impôs controles a patrimonialidade do Estado, mas não deve ser desprezada na análise a
advertência de Bernardo Ares de que a capacidade fiscal do Estado no Antigo Regime
estava “mediatizada” pelos critérios e privilégios estamentais e os ofícios representavam
importante fonte de recursos para a fazenda real.
Luiz Felipe de Alencastro localiza na segunda metade do século XVII “uma
repactuação política entre o centro e a periferia imperial”, conseqüente ao enfraquecimento
da metrópole e a projeção do Brasil no quadro de atlantização do Império, quando a
militância na guerra brasílica e até, mesmo, as ações contra índios e quilombolas ganharam
“novos foros de dignidade” e reconhecimento47. Neste contexto, cresceu a importância do
recrutamento dos oficiais da administração entre setores emergentes das colônias, como nos
casos conhecidos de João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, titulares de ofícios
no Brasil e na África. De qualquer forma, estudos recentes mostram que o exercício dos
ofícios régios se constituiu em mecanismo das conexões do império português48.
Se a maior importância atribuída aos ofícios exercidos no Estado do Brasil não
levou de todo a inversão da trajetória das “carreiras” (Brasil, África e Índia), consolidou a
importância da passagem pelo Brasil no exercício do real serviço, cujas seqüências
passaram a se alternar. Antonio Teles de Menezes (Conde de Vila Pouca de Aguiar) exerceu
o governo no Brasil (1647-1650) depois de haver servido na Índia (1639-1640). Ao
contrário, Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho foi “promovido” para a Índia
(1698-1701) após intervalo do seu longo exercício no Brasil (1680-1694). No século XVIII,
até o governo da recém criada Capitania de Minas Gerais passou a ser considerado como
nos mostra a trajetória de D. Pedro de Almeida (Conde de Assumar), designado para a Índia
a contragosto e de D. Lourenço de Almeida que, suspeito de encobrir descobertas de
diamantes no Brasil, na Índia “granjeou esposa e fortuna negociando com diamantes”49.
O nosso estudo ao optar por uma redução da escala da análise segue a sugestão de
Antonio Manuel Hespanha de considerar “na história os ‘rostos’ contavam na descrição do
que era poder”50, percebido de forma interpessoal.

45
SOUZA, Ivo Carneiro. História de Portugal moderno. Economia e sociedade. Lisboa: Universidade
Aberta, 1996, p. 206 e 268.
46
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1977, p.
60.
47
ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O Trato dos Viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.303-
306.
48
GOUVÊA, Maria de Fátima. Conexões imperais: ofícios régios no Brasil e Angola In BICALHO, Maria
Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia. Modos de Governar: idéias e práticas políticas no Império português.
Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
49
RUSSEL- WOOD, Op. Cit., p. 1
OS COLONOS E O SERVIÇO REAL

Efetivada a Restauração, o governo da cidade/capitania continuava monopolizado


pela família Correia de Sá e sua vasta rede de relações, com interesses enraizados desde a
conquista e então representada Salvador Correia de Sá e Benevides (1637-1642) que
voltaria ao governo em mais duas ocasiões (1648 e 1660-1662). Nomeado governador com
patente de General e já sendo detentor do título hereditário de Alcaide-mor 51, representou o
apogeu dos negócios da família na cidade, desfrutando, além do vasto patrimônio, de pelo
menos dois rendosos privilégios: o peso da balança e a administração das minas.
Em 18.12.1635 a Câmara sob alegação da “grande utilidade aver hum paço e pezo
publiquo onde se fazem as caixas de assucar que se embarcão” aforou a Benevides a casa
do açougue com privilégio de peso, por 19 anos com foro estipulado em 20 mil réis-ano 52.
O rendimento para caixa podia chegar a 6 vinténs (2 vinténs por etapa de pesagem,
armazenagem e embarque) e deve ter sido lucrativo pois poucos meses depois em 8.3.1636
foi outorgada nova concessão com foro de 20 mil réis ano, para ampliar a balança e o
trapiche no terreno da várzea da cidade 53. Além do direito de vender “o pezo e passo”, lhe
foi concedida a permissão para “construir uma varanda e nella vender os negros e fructos
da terra”.
Em paralelo, herdou do pai e avô, a administração das minas, cuja administração,
após a morte de Francisco de Souza e a conflituosa tentativa do filho de lhe suceder fora
outorgada ao patriarca Salvador Correia de Sá, jurisdição repassada sucessivamente a
Martim de Sá (Provisão de 20.7.1615) – cargo que exercia ainda em 9.2.1624 quando em
Santos instaurou devassa sobre a morte de índios54- e a seu irmão Gonçalo Correia de Sá.55.
Tal posição foi consolidada no Regimento de 1644 com a concessão da jurisdição sobre as
minas, com rendimento vitalício para si e seus sucessores, sendo o General substituído por
parentes como Duarte Correia Vasqueanes e Pedro de Souza Pereira, este por longo
período, Provedor de Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro.
No entanto, antes do Regimento de 1644, a posição prevalente dos Correia de Sá
nos negócios das minas estava consolidada pela Carta Patente de 6.7.1641, quando D. João
IV confirmou a Salvador Correia de Sá e Benevides os Alvarás e Provisões passados em

50
HESPANHA, António Manuel.Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento
renovado da história das elites In BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia. Modos de
Governar ..., p. 39-43.
51
RIO DE JANEIRO. O Rio de Janeiro no Século XVII. Acordãos e Veneranças copiadas no ano original
existente no Archivo do Distrito Federal e relativo aos annos de 1635 a 1650, Rio de Janeiro, Prefeitura do
Distrito Federal, 1935. Apresentou sua nomeação à Câmara em 4.9.1635, p.4.
52
Idem, p.8.
53
Idem, p.10. Ver também LAMEGO, Alberto. A Terra Goitacá. Rio de Janeito: Garnier, 1913, Vol. 1, p. 47-
48.
54
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Documentos Manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo
(1618-1823), AHU-QCL-CU-023-01, Cx.1,D.3.
55
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Informação sobre as minas de São Paulo. São Paulo:
Melhoramentos, s/d,p.81 sg.e LISBOA, Balthazar da Silva., Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Seignot-Plancher, 1835, V.II, p.28 e 40-44.
1608, a Francisco de Souza56 Finalmente novo Alvará em 1653 concedia “a Salvador
Correia de Sá e Benevides e seus descendentes rendimentos tirados do que produzirem as
minas de ouro e prata”, estipulados em 4 mil cruzados (calculados na base de 1% de um
rendimento de 400 mil cruzados mais o “senhorio e jurisdição” do primeiro lugar que
povoassem, podendo receber o título de conde deste lugar, se o rendimento chegasse a 500
mil cruzados.
A administração das minas nos parece expressiva para repensar a tradição
historiográfica que a considerou desde o início do século XVII até o apogeu minerador da
centúria seguinte, como exemplo do fiscalismo metropolitano, generalizaçlão que não nos
parece adequada para o seiscentos, quando o rigor fiscal instituído nos diferentes
documentos normativos estava contraposto e relativizado pelo caráter patrimonial da sua
direção e pela dinâmica das redes sociais existentes no mundo colonial57.
Paralelamente, Salvador de Sá manifestava, desde 1647, sua pretensão de obter uma
Capitania no sul - "entre a Capitania de São Vicente e o Rio da Prata", acolhida
favoravelmente, em 1658, pelo Conselho Ultramarino, sob a justificativa de que "estão
despovoadas "58 e concedida formalmente em 1676, certamente inserida no circuito
comercial que ligava o Brasil (Rio de Janeiro), Angola e Buenos Aires, tendo, ainda
diligenciado para a concessão da capitania de Paraíba do Sul (1674) ao Visconde de Asseca.
Salvador Correia de Sá e Benevides, descendente de conquistadores e antigos
administradores do Rio de Janeiro, mesclava duas faces na sua atuação, o fidalgo a serviço
do Rei na colônia e o colono empreendedor, com diversificados interesses privados. Suas
relações familiares favoreceram as ligações do governo com o mundo espanhol 59 e a
extensa e diversificada carreira (Governador do Rio de Janeiro, General das Frotas do
Brasil, libertador e Capitão-General de Angola, Capitão General do Sul, Administrador das
minas e, culminando, o exercício no Conselho Ultramarino) o transformam no sujeito
protótipo do que Russel-Wood, denominou de de circularidade das relações imperiais,
valorizando sua:
“... natureza global da expansão portuguesa e reforçar a noção de interdependência
existente não só entre componentes marítimos e terrestres mas, também, entre
diferentes esferas de atividade. A iniciativa portuguesa foi verdadeiramente
plurioceânica e pluricontinental”60.
No Rio de Janeiro, encontramos exemplos da fixação de certos ofícios em redes da
sociedade colonial e, tal como os já citados Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros,
expressavam a interelação com os domínios africanos. Vários detentores de ofícios eram
homens com múltiplas atividades (soldados, burocratas e até comerciantes) e foram
também homens de “quatro costados” (América, África, Índia e sudeste da Ásia), para
repetir a expressão de Russel-Wood61.
56
SILVA, José Justino de Andrade e. SILVA, José Justino de Andrade e. Coleção Cronológica da Legislação
Portuguesa compilada e anotada desde 1603. Lisboa: Imprensa J. J. Silva, 1854-1859,V. 6 (1641-
1647),p.102.
57
SANCHES, Marcos Guimarães. Exploração das Minas e Fiscalidade no contexto da Restauração In Anais
da XXV da Reunião Anual da SBPH (Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica), (no prelo).
58
HOLANDA, Sérgio Buarque, A Época Colonial, História Geral da Civilização Brasileira, SP, Difel,,1976,
Tomo I, Vol. 1, p. 323
59
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686, SP, Nacional,1973, p. 17 sg
e 116 sg.
60
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. Cit, p. 15.
61
Idem, p. 111.
Na conjuntura da Restauração, em meio à crise entre os colonos cariocas e a
Companhia de Jesus em torno da utilização da mão-de-obra indígena, Benevides substituiu
o Provedor da Fazenda, Domingos Correia, pelo marido de uma parenta, o capitão Pedro de
Souza Pereira Como resultado da mudança, houve uma forte oposição contra Benevides
que, em última instância, acabou por obrigá-lo a desistir do governo da cidade e Capitania
do Rio de Janeiro62. Apesar de todos os conflitos e denúncias, o governador, no dizer de
Baltazar da Silva Lisboa, nunca deixou de progressivamente ampliar seus poderes, a
exemplo da “superintendência em todas as matérias de guerra” no sul, outorgada pelo
Conde da Torre, em junho de 1639 e confirmada pelo Marques de Montalvão, após a
Restauração63.
Através de uma acusação formal, Domingos Correia fez chegar até o Conselho
Ultramarino as várias irregularidades cometidas por Benevides e envolvendo também o
novo provedor da fazenda, como conivente com as graves irregularidades existentes, junto
de outros parentes de Benevides como foi o caso de Artur de Sá, João de Avellos Benevides
e Manoel Correia Vasqueanos :
“Entre as muitas faltas que lhe eram imputadas contava-se o uso indevido dos
fundos da Coroa, preenchimento de cargos públicos por seus parentes e amigos,
criação não autorizada de impostos e taxas das quais era coletor e
administrador, construção de fortificação com material de qualidade inferior,
utilizando os seus próprios índios escravos e sobrecarregando a Coroa com
preços exorbitantes, e assim por diante...”64.
Além do conhecido conflito entre os interesses dos colonos e os padres da
Companhia, em torno do problema dos índios. O governador protagonizava outros conflitos
de jurisdição como o travado com os vereadores da vila de Santos 65, pretexto para mais uma
ação hostil do governador-geral do Brasil, Antônio Telles da Silva, requerendo o retorno
imediato de Benevides ao Rio de Janeiro, uma vez que a coroa havia rescindido a ampla
jurisdição administrativa concedida a ele pela Provisão de 9 de março de 1641 para
interferir nos negócios da guerra, fazenda e justiça das capitanias de baixo66. Antônio Telles
também possuía desconfianças da lealdade de Benevides e, em novembro de 1641, dava
ordens para ele deixar o governo do Rio com a finalidade de assumir um posto de
conselheiro na Bahia. Naturalmente, o governador do Rio de Janeiro não aceitou estas
ordens alegando que o governador-geral não tinha autoridade para tal ordens, uma vez que
havia recebido instruções e nomeação da própria coroa67.
Em consulta de 24 de outubro de 1643, o Conselho de Fazenda em Lisboa, discutia
sobre a devassa que se deveria fazer na sua administração68. A partir daí, vários juízes foram
sucessivamente indicados para o Rio de Janeiro com o intuito de promover o procedimento,
mas a soma de hesitações, morosidade administrativa e tráfico de influência protelaram o

62
BOXER Idem, p. 151-152 e LAMEGO, Alberto. A Terra Goytacá. Rio de Janeiro: Garnier, 1913, Vol. 1.,
p. 52-56. 152 e AN, Cód. 60, v. 1, 101v.
63
LISBOA, Balthazar da Silva. op. cit., V. II, p. 28 e 40-44.
64
LAMEGO, Alberto, A Terra Goitacá, RJ, Garnier, 1913, Vol. 1, p. 52-56.
65
Arquivo, Municipal de São Paulo, Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, SP, 1919, p. 207-208
66
NORTON, Luís, A Dinastia dos Sás no Brasil: Fundação do Rio de Janeiro e Restauração de Angola,
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1940, p. 185
67
LISBOA, Baltazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, T. II, p.
57-58.
68
AHU, RJ. Doc. 268 a 270.
início da investigação, até 2 de março de 1644, quando foi nomeado o licenciado Francisco
Pinto da Veiga para proceder com a devassa sobre a administração de Benevides69.
Quase ao mesmo tempo, a 25 de março, era o acusado nomeado General das Frotas
do Brasil, participou ativamente em 21 de outubro de 1643, no Conselho de Guerra
realizado em Évora, no qual emitiu importantes opiniões sobre as questões que envolviam o
conflito existente entre Portugal e Holanda, sendo ainda confirmado como Administrador
das Minas de São Paulo em 10 de junho do ano seguinte70.
O governador e seus contemporâneos situavam-se à margem de uma estrutura
burocrática, tal como a definiu Weber, baseada numa atividade racional das diversas
funções hierárquicas que, em princípio, seriam dadas aos funcionários mediante um critério
de especialização e competência obedecendo a uma determinada disciplina de
administração71. A administração colonial estava mais próxima da dominação tradicional,
de caráter patrimonial, preenchendo a maior parte dos seus postos por critérios
prebentários. Critérios pessoais na escolha dos funcionários, acúmulo de privilégios por
função exercida ou pleiteados por meio dela e falta de nitidez na distinção das instâncias
públicas e privadas, caracterizavam o governo colonial e o provimento dos seus cargos. O
caso de Benevides é exemplar pois, apesar das investigações a que foi submetido acabou
“promovido” para importantes funções no Reino, culminando com o exercício no Conselho
Ultramarino, parecendo confirmar a conclusão de Russel-Wood:
“Há numerosos casos que navegavam em águas turvas no respeitante à distinção
entre fundos públicos e privados e foram acusados de desvio fraudulento e de
apropriação individual de fundos no inquérito judicial efetuado no final de seu
mandato, mas que regressavam a Portugal e conseguiram limpar os nomes junto da
Corte”72.
O Provedor Pedro de Souza Pereira era casado com Ana Correia, filha de Manuel
Correia, meio irmão de Benevides e Maria Alvarenga, filha do conquistador Tomé de
Alvarenga73, sendo portanto um típico representante da primeira elite colonial. que teve no
exercício da administração um dos mecanismos de sua constituição. O nosso Provedor era
titular em vários negócios, foi beneficiado pelo Governador com uma sesmaria quando da
“composição” com os “Sete Capitães” nos Campos dos Goitacazes e acumulou por longos
anos a Provedoria com a administração das minas.
Provisoriamente afastado durante a investigação que se seguiu à denúncia contra
Benevides, foi severamente imputado por seu antecessor e pelo Escrivão da Fazenda Real e
Provedor em exercício, Francisco da Costa Barros, que atribuía os baixos rendimentos da
fazenda aos conluios entre os oficiais e os contratadores74.
Costa Barros, proprietário do seu ofício de Escrivão também pertencia a nobreza da
terra. Descendente do conquistador vicentino, João Pereira de Souza Botafogo, funcionou
em vários momentos como Procurador da Câmara junto a Coroa, tendo estado várias vezes
no reino, como em 1653, quando portava representação da municipalidade contra a

69
LAMEGO, Alberto, Op. Cit., p.57-58.
70
NORTON, Luís, Op. Cit., p. 191 sg.
71
GOULDNER, Alvim W., “Conflitos na teoria de Weber” in CAMPOS, Edmundo (Org.), Sociologia da
Burocracia, RJ, Zahar, 1971, p. 58-67
72
RUSSEL-WOOD, A. Op. Cit, p. 145.
73
REINGANTZ, Carlos, Op. cit., V. I, p. 149.
74
AHU, RJ, Doc. 42.
solicitação do Governador Luis de Almeida para que a Câmara adiantasse a moeda para
pagamento da tropa, já que não podiam os soldos ser honrados em açúcar75.
Típico representante da nobreza da terra, descendente de conquistadores, garantiu
como já citado a hereditariaedade de seu ofício ao genro em 1657.
A atuação de Francisco da Costa Barros serve ainda para apontar outro aspecto da
sociedade colonial: os recorrentes conflitos entre frações da sua elite que, disputavam entre
si, os favores e o reconhecimento do rei. No mesmo momento, o Governador Luis de
Almeida que se indispusera com a Câmara acabou substituído por Tomé Correia de
Alvarenga, filho de Tomé Alvarenga e cunhado do Provedor.
De qualquer forma, em 16 de julho de 1644, Benevides solicitava ao Conselho
Ultramarino, a suspensão da devassa, que considerava injusta e produto da intriga de
inimigos, alegando estar servindo a Portugal por mais de trinta anos com vários serviços de
grande relevância para a coroa nos cargos que exerceu, isto sem contar que a sua família
por quase cem anos, estava conduzindo os negócios portugueses nas terras do Brasil.
Requeria, finalmente que, em consideração aos seus inúmeros serviços prestados, fosse
expedida uma provisão na qual se declarasse ele ter bem servido nos seus ofícios e que não
se prosseguisse com a devassa que estava sofrendo, tendo a sua pretensão acolhida
favoravelmente pelo Conselho:
“que em vista de não terem sido deferidas as consultas anteriores contra o
acusado que pelo contrario, fora depois nomeado general da frota e
administrador das Minas de São Paulo, não devia ter mais cabimento a devassa,
mas que era conveniente ir ao Rio, letrado nomeado com ordem para devassa
geralmente – das materias de justiça e fazenda, das pessoas que por alguma via
a descaminharam e se resultasse da devassa culpa contra Salvador se avisasse a
S. Mage. sem contra ele proceder, nem contra seus bens pois sendo tão abonado,
estava sempre segura a Fazenda Real, afastando-se para longe os seus
inimigos”76.
A reafirmação da sua inocência veio em 14 de dezembro de 1644, na posse como
membro do Conselho Ultramarino, posição da mais alta honra entre os homens públicos
portugueses77. Premiado pela Coroa, retornou a colônia, em 1645, como General das Frotas,
sendo novamente alvo de reclamações das Câmaras municipais de Salvador 78 e Rio de
Janeiro79. Nesta última cidade aproveitou para vingar-se dos seus antigos detratores,
recrutando-os para a expedição a Angola:
“... Cheguei ao Rio de Janeiro, e porque V. M. me ordenava que não tratasse de
nenhuma coisa nem me saísse dele até não ( ... ) despachar o socorro, e enviar a
Francisco de Soto Maior; ordenando ao capitão Felipe da Fonseca, que comigo
ia, fizesse ( ... ) gente para levar em sua companhia, o que não podia conseguir,
porque, como a que havia de ser de que estava lá, todos efeitos do governador
debaixo de cuja jurisdição iam servir, não se pode conseguir, o que visto por
mim, mandei juntar o conselho, como V. M. dispôs em meu Regimento,
75
COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século dezessete. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 146-
148.
76
AHU, RJ, Doc. 311.
77
BOXER, Charles, Op. Cit., p. 176.
78
SALVADOR. Documentos Históricos do Arquivo Municipal. Atas da Câmara: 1625-1641, Vol. 1, p. 37-
38
79
LISBOA, Baltazar da Silva, Op. Cit., T. II, p. 174-175
acrescentando a ele o Governador da praça Simão Dias Delgado, e todos foram
de parecer que se escolhessem dois capitães, dos que fossem mais amigos do
governador, porque estes podiam levar atrás de si a gente; feito este assento,
foram eleitos o capitão Francisco Munhoz, casado naquela cidade, homem de
trinta e oito anos, e o capitão Antonio Correia, solteiro, de idade de trinta,
ambos particulares amigos de Francisco de Soto Maior, o governador da praça,
e Domingos Correia, Provedor da Fazenda, e ante todos lhes disse como
estavam eleitos para ir à jornada servir a V. M. ... Os ditos capitãis, indo contra
o que deviam a soldados, recusavam a jornada, pedindo-me lhes mostrasse as
ordens que tinha de V. M. para mandá-los, ao que lhes respondi que quando
fosse tempo lhes mostraria, mas que não faziam o que deviam, pois adonde ( .. )
os mandava era a parte donde ( ... ) podia haver mais perigo, que era o que os
soldados honrados deviam procurar, e que para isso os tinha V. M. naquele
presidio dando-lhes duzentos mil réis cada ano sem trabalho nenhum ..."80.
Novamente nomeado Governador do Rio de Janeiro e da capitanias do sul e
Capitão-general do Reino de Angola, em 1647, Salvador Correia de Sá e Benevides seguiu
a trajetória marcada pela dupla condição de administrador e colono, ampliando os seus
negócios e conflitando-se com os colonos, enquanto defensor dos interesses metropolitanos
e privados, como no conhecido caso da Revolta de 1660.
Por outro lado, Pedro de Souza Pereira reinstalado na Provedoria, provavelmente em
1644 coincidindo com a suspensão da devassa contra Benevides 81,foi novamente
denunciado na revolta de 1660 por haver se apropriado sistematicamente dos rendimentos
da fazenda, sendo-lhe imputado especificamente um lucro ilícito de cerca de 10 mil
cruzados no triênio 1645-1648, quando em conluio com o contratador Gaspar Dias de
Mesquita teria supervalorizado as fazendas fornecidas como parte do pagamento do
contrato82.
Mantido inicialmente no cargo, foi depois preso e remetido ao Reino junto com
Tomé Correa Alvarenga, mas a investigação deve ter chegado aos mesmos resultados da
procedida contra Benevides. Apesar de todas as peripécias, o poderoso Provedor continuou
no exercício até 1673, quando faleceu e ofício foi passado em serventia a José Barcelos
Machado83, embora já no ano seguinte (3.2.1674), fosse provido na titularidade seu filho ou
sobrinho Thomé de Souza Pereira84.
A instabilidade da titularidade do ofício neste momento pode estar relacionada com
os problemas decorrentes da arrematação dos dízimos no triênio 1671-1674,quando o
contratador João Alves Pereira recorreu a Mesa da Fazenda na Bahia reivindicando dentre
outros, o privilégio de usar navio próprio (portanto, fora da frota e à margem do
monopólio) para trazer do reino os gêneros necessários ao contrato.

80
LESSA, Clado Ribeiro de, Salvador Correia de Sá: vidas e feitos, principalmente no Brasil, Lisboa,
Agência Geral das Colônias, 1940, p. 33-34
81
AHU, RJ, Doc. 229, 231 e 295. O Provedor parece confirmado no cargo de Provedor da Fazenda e Juiz da
Alfândega em 1644, em cujo exercício fora investido pelo Governador pelo menos desde 1639.
82
AHU, RJ, Doc. 870.
83
AN, Códice. 61, 5, 1357.
84
AN, Códice. 60, 1, 41 v. A fonte citada fala em renúncia de Pedro de Souza Pereia em favor do filho.
Vivaldo Coaracy repete Felisbello Freire falando em sobrinho. No estágio atual da pesquisa cremos tratarem-
se de homônimos. O titular de 1674 é sobrinho e o filho faleceu em 1676.
O governo da colônia após a Restauração expressava um “modelo administrativo
concentrado”, marcado por “unidade de filosofia” e “diversidade da ação administrativa”,
que se mostrou “viável e funcional”, numa conjuntura marcada pelas carências da colônia e
pelas tensões do processo de consolidação de absolutismo 85, reproduzindo em todos os seus
aspectos a defasagem entre propósitos e resultados e, em meio a grave crise oscilaram entre
o fomento e a extração fiscal.
A impressão do Conde de Óbitos declarada em 23.10.1663 ao Governador Pedro de
Mello confirma as dificuldades da administração: “Achei as causas deste Estado tão
demasiadamente confusas, e a jurisdição deste Governo tão limite despedaçada” 86. O
pessimismo do governador certamente também derivava de situações como a de Bento de
Castro que serviu como Almoxarife da Fazenda Real de 1653 a 1664, quando lhe foi
passada Provisão com licença para prestar contas ao Provedor87. O Almoxarife era casado
com Angela Correia, sobrinha de um antigo titular do ofício Antonio Correia, nomeado em
1647, a quem provavelmente sucedeu.. No mesmo ano, o Almoxarife aparece como
arrendatário do contrato de aguardente88, situação que aparentemente usufruiu sendo
devedor da Fazenda como sugerem as Cartas Régias de 11.10.1668 e 29.12.1670, nas quais
se ordena ao Provedor a cobrança aos herdeiros e fiadores das dívidas do antigo
Almoxarife89.
A cobrança do dízimo, principal fonte cde arrecadação da Coroa, sofria forte
competição de outros impostos como a vintena, estabelecida desde 1631 para financiar o
exército e manter as fortificações, quando do conflito com os holandeses. A repartição,
decidida em 1660 para pagamento do dote da infanta D. Catarina futura rainha da
Inglaterra, sobrecarregou também pesadamente o açúcar. Para garantir o pagamento de
140.000 cruzados por ano que o Brasil tinha de fornecer, a capitania da Baía era taxada em
80.000 cruzados, enquanto o Rio e Pernambuco tinham de pagar, respectivamente 26 e
25.000 cruzados, e só 3000 a Paraíba.
São conhecidas as dificuldades de arrecadação da contribuição. Em 29.4.1662,
Francisco Barreto lembrava ao governador Pedro de Mello “que os que governam tem de
molestar os súditos”, a propósito dos 600 cruzados que faltavam para completar os 4
milhões do dote da rainha da Inglaterra e da paz com a Holanda, cabendo 26 mil ao Rio de
Janeiro.
O próprio Governador Geral em 2.11.1662 em correspondência ao Capitão Mor de
S. Vicente Cipriano Tavares reconhecia “a pobreza das Villas” e justificada a queixa das
autoridades atendendo-lhes o “ânimo” à autorizar os oficiais a repartir o 4 mil
cruzados/ano de acordo com a possibilidade de cada localidade90.
A cobrança do donativo enfrentava ainda a dificuldade de transformar em dinheiro
os gêneros recolhidos como tributo. O problema era grave e constante, pois em 14.11.1674
autorizava a junta da fazenda a emitir “letras” para sua prestação de contas no reino,
utilizando o “dinheiro em contado” para receber outros tributos uma vez que “os moradores
do Brasil não pagam o donativo em dinheiro de contado, senão em gênero de açúcar e

85
WEHLING, Arno, Administração Portuguesa no Brasil. De Pombal a D. João. Brasília: Funcep, 1986,
p. 27-28.
86
BIBLIOTECA NACIONAL. Documentos Históricos. Rio de Janeiro, 1928, T. V, p. 465.
87
Provisão de 19.1.1664. AN. Códice 61, v. 4, f. 328.
88
AHU, RJ, Doc. 6.100.
89
AN. Códice 61 vol. 5, f. 921 e 1286.
90
BIBLIOTECA NACIONAL. Documentos Históricos. Rio de Janeiro, 1928, T. V, p.149-151 e 177-179.
tabaco, nem há razão para se poder obrigar a que paguem em dinheiro e este é tão pouco no
Brasil, que para seu sustento e favorecimento o não tem”91.
Ainda durante a administração de Souza Freire, a mesa da fazenda tomou
interessante “Assento” sobre os contratos de dízimo do Rio de Janeiro. Em 13.1.1671, a
Mesa da Fazenda92 examinou os autos de arrematação para o período 1671-1674 contratado
por João Soares Pereira por 66 mil cruzados, comprometendo-se a pagar a metade em
fazendas e o restante em açúcar brancos e mascavos, além das propinas dos Ministros do
Estado e dos religiosos.
Dois recursos eram submetidos à Mesa: o primeiro do contratador que, invocando
arrematações anteriores, pleiteava o direito de mandar um navio por ano ao Reino com
açúcar e frutos da terra, retornando com os “gêneros necessários ao seu contrato”; o
segundo, do Administrador eclesiástico em nome de todos os religiosos, desejando receber
“dinheiro em contado” ou, na pior das hipóteses, em açúcares brancos e bons”, ao preço da
época da frota.
Quanto ao navio, foi reafirmado o monopólio, sob o argumento de que só o Rei
poderia autorizar navio fora da frota. O recurso dos religiosos também não obteve sucesso.
Alegavam seus direitos com base em Provisão de 1608 e o contratador contra argumentava
que a condição pleiteada não estava estipulada no contrato. A “Mesa” considerou que a
Provisão nunca fora posta em prática na capitania e “por seu direito particular não estava
incorporada na lei do Reino” e os religiosos deveriam “fazer a tempo o requerimento que
lhe tocava e não depois de tomado o lance”. Concluía com argumento semelhante ao
apresentado por governadores anteriores que a alteração das condições “se arriscava a que o
contratado presente desistisse”93.
Em fevereiro de 1675, o Rei aprovou consulta do Conselho Ultramarino mandando
tirar devassa dos conluios no contrato dos dízimos. Motivada pelo Desembargador Pedro da
Rocha Gouveia, Procurador da Fazenda do Estado do Brasil. Os dízimos do Rio de Janeiro
até 1655 rendiam em média 120 mil cruzados e naquele ano, haviam sido arrematados por
66 mil cruzados, tendo-se apresentados três lançadores. O vencedor Manuel Lopes de
Morais trespassou o contrato ao segundo candidato Antonio Antunes que, por sua vez,
apresentou fiança do terceiro concorrente Tomé da Silva.
Pesava ainda sob a contrato a suspeita de procrastinação, pois arrematado em
12.9.1673 só chegou para confirmação em 24.4.1674, “sendo passados sete meses depois
da arrematação só a fim de lograrem aquele lanço e por ficar já quase um ano decurso não
havia quem lançasse, que é notório que neste contrato havia conluios em dano e prejuízo da
Fazenda Real94.
Alves Pereira era parentedo antigo Provedor e sócio com o Provedor Barcelos
Machado dos Telles em vários negócios, o que não impediu que seu recurso fosse negado,
embora invocasse o precedente do seu antecessor Tomé da Silva, também aparentado aos
Souza Pereira. Thomé de Souza Pereira exerceu a Provedoria até 1677 95, quando foi
afastado em meio a diversas denúncias de irregularidades, transferindo-se a serventia 96 ao
primo Pedro de Souza Pereira (filho homônimo do primeiro), renovada até 1682, quando
91
Idem, 1950, T. LXXXVIII, p.27-29.
92
Governador Alexandre de Souza Freire, Procurador da Fazenda Lourenço de Brito de Figueiredo e Juiz dos
Feitos da Coroa Manuel da Costa Palma.
93
BIBLIOTECA NACIONAL. Documentos históricos. Rio de Janeiro, 1944, V. LXIV, p.115-125.
94
Idem, 1950, V. LXXXVIII, p. 19-20.
95
AN, Códice. 60, 1, 120.
lhe foi concedida a propriedade do ofício97 que exerceu até ser assassinado em 1687,
quando, tal qual o pai acumulava a Provedoria e a administração das minas98.
A centralização da arrecadação não significava necessariamente uma maior
eficiência e imparcialidade no processo. São conhecidas as denúncias contra oficiais em
conluio com os contratadores, a exemplo da acusação a Pedro de Souza Pereira na Revolta
de 1660. Trabalhos recentes como o de Helen Osório para o Rio Grande, destacam a
arrematação de contratos como importante instrumento de acumulação de capital, que
transcendia o nível local de cada capitania, e podia chegar a envolver homens de “grosso
trato” com atuação em vários locais da colônia e na própria metrópole99.
Sobre o funcionamento da fazenda pesavam ainda as tensões comuns da sociedade
colonial. O Governador Alexandre de Souza Freire esclarecia ao D. Pedro de Mascarenhas
(14/9/1668), que Cabo Frio não pertencia a jurisdição do Rio de Janeiro, estando ainda seus
habitantes livres da obrigação de para aí conduzirem toda produção de sal. 100. Além dos
clássicos conflitos de jurisdição, os interesses típicos do patrimonialismo que caracteriza o
exercício do poder na colônia como sugere a carta de D. João de Lencastro ao Provedor da
Fazenda Real da Capitania do Rio de Janeiro (10.2.1694): “Francisco de Andrade pretende
a preferencia do contracto dos dizimos dessa Capitania entre os oppositores de sua
rematação sem prejuizo da Fazenda real. Tenho entendido que é sujeito de verdade e que
tem bons fiadores. A minha tenção é, que o augmento da Fazenda Real não tenha mais
preferencia, que a de quem o fizer maior, e com mais seguras fianças. Nestes termos
estimarei eu muito seja Francisco de Andrade o preferido, porque creio delle que exceda a
todos”101.
O exercício do s ofícios também continuava subordinado a ima lógica patrimonial.
Embora João Fragoso tenha concluído que a maior parte da elite fluminense já estava
constituída em 1620, reconhece que “os herdeiros da primeira elite se cristalizaram no
governo da República, processo semelhante ao apontado por Nuno Monteiro ao estudar a
nobreza do Reino no mesmo período102.
Na virada para o setecentos, em paralelo aos esforços centrípetos da metrópole, a
elite fluminense ampliava seus interesses, num raio de influência desde as Minas Gerais até
o rio da Prata. Mais do que interesses, a “nobreza da terra” reciclava suas alianças, em
paralelo a conversão de uma economia agrícola enfraquecida pela crise geral dos preços e
pela descoberta das minas em um dinâmico pólo de atividades mercantis.
Até o final do seiscentos, os dízimos arrematados incidentes sobre produtos
agrícolas respondiam por mais de 50% dos rendimentos da Fazenda Real 103 mas, foram
superados, no início da centúria seguinte, pelos dízimos da alfândega, indicativo da
crescente importância da cidade como pólo mercantil. Da lista dos arrematantes dos
96
Idem, 60, 1, 93. Dentre outras irregularidades lhe eram imputados estava o arrendamento de contratos a
parentes e a criados.
97
Idem, 60, 1, 95v.
98
Idem, 61, 2, 217v.
99
OSÓRIO, Helen. As elites econômicas e a arrematação dos contratos reais: o exemplo do Rio Grande do
Sul In FRAGOSO, João Luiz et alli. Antigo Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001, p. 107-137.
100
BN. Manuscritos, 7,1,28,n.102.
101
Idem, 7, 1, 32, 202.
102
FRAGOSO, João Luiz. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio
de Janeiro (Séculos XVI e XVII). Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, p. 65.
103
AHU, RJ, doc. 1571.
dízimos da alfândega sobressaem sobrenomes conhecidos de longa data na história da
cidade como os Soutomaior, Correia de Sá e Oliveira Paes. Em paralelo, a elite carioca
redirecionava suas alianças como no caso do Alcaide-mór Tomé Correia Vasques, filho de
Martim Correia Vasques que se casou em São Paulo, em 1706 com a filha do Guarda-mór
das minas Garcia Rodrigues Paes104, no momento em que a família detinha, desde 1703,
através do seu irmão Manuel Correia Vasques o ofício de Juiz da Alfândega105.
Percurso semelhante, mas em outra direção, foi seguido pelos Cordovil de Siqueira
que monopolizaram a Provedoria nas primeiras décadas do setecentos. O pai, Bartolomeu
Cordovil de Siqueira, proprietário do ofício desde 1716106 era casado com Margarida
Pimenta de Melo107, descendente de Domingos Correia, o provedor espoliado por
Benevides e o filho, Francisco Cordovil de Siqueira e Melo que lhe sucedeu no cargo,
casou-se com Catarina Vaz Moreno108, filha de Manuel Vaz Moreno, Capitão da Colônia do
Sacramento e neta de Manuel Teles Barreto, família que dentre outras atividades
monopolizou por longo tempo, o Juizado de Órfãos da cidade.
As tensões entre o controle metropolitano e as dinâmicas colônias estã inseridas no que
Russel-Wood chamou de “trajetória crescente”, quando as posições da Coroa foram,
também de forma crescente, submetidas a “pressão colonial”109. Na denúncia do
Governador Sebastião de Castro Caldas, em 1697, sobre irregularidades na arrematação dos
dízimos sobre o contrato da baleia, o Provedor Francisco de Brito Meireles e seu Escrivão
Inácio da Silveira Vilalobos eram considerados como “poderosos para se ter com
inimigos”110, mas deles certamente a metrópole dependia para efetivar a exploração
colonial.

104
REINGANTZ, Carlos. Op. cit., V. I, p. 251.
105
AHU, RJ, doc. 2716.
106
Idem, doc. 3519.
107
REINGANTZ, Carlos. Op. cit., V. II, p. 151.
108
Idem, V. II, 7, 513 e 520
109
RUSSEL-WOOD, A. J.R.. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro 1500-1808. Revista Brasileira
de História, v.18, n.36, 1998, p.243.
110
AHU, RJ, doc. 2050.

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