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Nelson Rodrigues

O GUARDA-CHUVA
NO MUNICIPAL
Cada época tem suas palavras encantadas. No tempo
de Dumas velho, era “cáspite”. Ninguém sabe, até hoje, o
que se esconde por trás de “cáspite”.
Anos atrás, o poeta Murilo Mendes foi ao Municipal.
Não me lembro se era ópera ou companhia francesa. No
primeiro intervalo, lá foi ele para o corredor, fumar o seu
cigarrinho. E, súbito, começa a ouvir uma série de vozes.
Não vozes das grã-finas que cacarejavam nas imediações.
Não. Era uma única voz, absurda, fantástica, que repetia,
junto ao seu ouvido, a mesma palavra: – “Cáspite!
Cáspite!”. Demais a mais, não parecia um som terreno.
Não era a primeira vez que um poeta tinha delírios
auditivos como uma Joana D’Arc. Aqui abro parêntese,
para referir um episódio que consta da história e lenda de
Murilo Mendes.
Não sei em que dia ou ano, nem importa a data. Era
o mesmo Municipal e estava levando uma peça francesa
(alguém diria, mais tarde, e textualmente, que era uma
peça “chatérrima”). Lá foi o nosso Murilo para uma das
primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna
impressionante de casacas e decotes. E cada decote ou
casaca humilhava e agredia o seu traje de passeio, surrado
e sebento. Muito bem: – e, no fim dos primeiros cinco
minutos, o poeta achava o texto irrespirável. Não teve
mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na platéia. Na frisa,
o embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais
nada. O elenco, no palco, esbugalhou-se. Por um momento,

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não se ouviu aquela pronúncia perfeita, irretocável dos
artistas de França. Era uma experiência inédita aquele
guarda-chuva solitário e sobrenatural. E não havia sequer
uma goteira que o justificasse. Por outro lado, nenhum
regulamento de teatro prevê a hipótese de um guarda-
chuva. Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e
alucinatório?
Houve uns dois ou três minutos de um suspense
geral e pânico. E, súbito, aquelas casacas e aqueles decotes
começaram a aplaudir. Primeiro, uma meia dúzia de
palmas ainda envergonhadas e pioneiras. Depois, explodiu
a unanimidade. Pela primeira vez, um guarda-chuva foi
longamente ovacionado, como um tenor italiano.
Naquele tempo, o intelectual era louco (hoje, o
próprio Murilo é apenas um funcionário corretíssimo, que
faz do livro de ponto a sua bíblia).
Volto ao “cáspite”. E, então, no corredor do
Municipal, Murilo Mendes começa a repetir: – “Cáspite!
Cáspite!”.
Houve um fluxo e refluxo de casacas e decotes. Não
satisfeito, ele cai, entorna-se no ladrilho, como um
fuzilado. No ar ficou aquela palavra em flor: – “cáspite,
cáspite”. A queda do poeta impressionou menos do que o
som apavorante. As senhoras perguntavam umas às
outras: – “Por que cáspite?”. Era a pergunta que todos
faziam sem lhe achar resposta. O fato é que a exumação
de uma gíria velhíssima deflagrou todo um processo de

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terror coletivo.
Mas “cáspite” é, repito, do tempo do Dumas velho.
Outra palavra que vem injetada de passado é
“biltre”. Se perguntarmos às novas gerações o que é
“biltre”, nem todos saberão responder. Mas reparem como
o som é fascinante. Ninguém chama mais ninguém de
“biltre”. Em nosso repertório de palavrões, falta este. E
alguém que, em nosso tempo, fosse chamado de “biltre”
não sentiria o ultraje fatal, a mácula indelével.
Todavia, há uma palavra que não passa, que não
envelhece, uma palavra que mantém, através dos tempos,
a sua eficácia mortífera. Ei-la: – “canalha”. Na minha
confissão de ontem ou anteontem (já não me lembro mais),
tratei do destino da inteligência. Sem nenhum dramatismo,
e apenas com a maior isenção e objetividade, observei um
fato patético do nosso tempo. Referi-me à “inteligência
degradada”. Outro dia passou por mim um pintor
estimadíssimo. Alguém cochichou: – “Olha um canalha
plástico!”. E, de repente, vi tudo. Sim, do cinema, do
teatro, da pintura, da poesia, do romance – sai todo um
elenco de canalhas.
O leitor, perplexo, há de perguntar: – “Mas como e
por quê?”.
É preciso explicar: – são os artistas que, por
motivos políticos, ideológicos, rolam de abjeção em abjeção.
E assim desponta, como uma nova classe, a dos “canalhas
da inteligência”. Fiz a pura constatação e citei dois

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exemplos: – o poeta Éluard, que se recusou a assinar um
pedido de clemência para um outro poeta, condenado à
morte. E o poeta foi enforcado. Outro exemplo: – de
Sartre, que, depois do extermínio de Pasternak, dizia: –
“Um escritor que não é lido em sua própria língua”. Não
era lido porque a polícia russa não deixava. E Sartre
achava corretíssimo o assassinato de um maravilhoso
artista.
Eu poderia ir buscar, na Cortina de Ferro, centenas
de exemplos. E é óbvio que a inteligência passa, em nossa
época, por um processo de desumanização. Ninguém era
mais humano do que o poeta, o romancista, o pintor, o
escultor. O artista era o seu povo. E, hoje, nós vemos o
nosso intelectual dando vivas a Cuba, outros que se
esgoelam pelo Vietnã. Populações inteiras do Brasil
apodrecem na fome. E, aqui, não damos um passo sem
tropeçar num vietcong da inteligência brasileira. Dane-se a
nossa mortalidade infantil! Artistas plásticos, poetas,
romancistas escrevem “muerte” em seus cartazes. Traem
sua língua. Traem seu povo. Sim, podemos falar numa
inteligência desumana, tão pouco brasileira e de uma
abjeta alienação.
Fiz toda a meditação acima pensando em Oduvaldo
Viana Filho. Se vocês não o conhecem, é pena. Eu disse
Oduvaldo Viana Filho e já retifico: – o Vianinha. Sua
estrutura doce exige o diminutivo. Dos nossos artistas, é o
menos sombrio, o menos neurótico, o menos ressentido. O

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nosso teatro está cheio de víboras. Pois o Vianinha é a
antivíbora.
Feito este lírico retrato de lambe-lambe, passo aos
fatos.
Ontem, eu o encontrei no gabinete de Beatriz Veiga,
diretora do Teatro Nacional de Comédia. O Vianinha ia
atrás de umas bambolinas para a estréia de Cordélia. E,
pela primeira vez, eu o vi sem a luminosidade do otimista.
Sim, o dramaturgo estava a meio-pau, exalando uma cava
depressão. Ao ver-me, chamou-me de “senhor”. (E, então,
senti que se cavara entre mim e ele o abismo de várias
gerações). Simplesmente, o Vianinha está numa torva
desilusão do teatro. Parece que suas últimas tentativas
teatrais não foram bem-sucedidas. E o Vianinha, em
conversa comigo, falou em largar o teatro. Quer ser outra
coisa. Deprimido, chegava ao patético, raiando pelo
sublime.
Quando falou em largar o teatro, tive ímpetos de
aplaudi-lo como na ópera: – “Bravos! Bravíssimo!”. Quase,
quase lhe disse: – “Seja vendedor de chicabon, de laranja,
de cachorro-quente ou de grapete. Mas não seja poeta, não
seja artista, não seja intelectual”. O que importa é não ser
nem Sartre, nem Éluard.
[24/4/1968]

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