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COLEÇÃO PSICOPEDAGOGIA E PSICANÁLISE

Coordenação: Leny Magalhães Mrech Beatriz Scoz (org.)


Nádia Aparecida Bossa
- De Piaget a Freud - Para repensar as aprendizagens
Aglael Luz Borges
Leandro de Lajonquiere Eda M. Canepa
- De ler o desejo ao desejo de ler
Leda Maria Codeço Barone
Roberto Gambini
- Psicopedagogia e realidade escolar
Beatriz Scoz (org.)
- A psicanálise no Brasil
Elisabete Mokrejs
- Avaliação psicopedagógica da criança de O a 6 anos
Vera Barros de Oliveira e Nádia A. Bossa (orgs.)
- Avaliação psicopedagógica da criança de 7 a 11 anos
Nádia A. Bossa e Vera Barros de Oliveira (orgs.)
- Avaliação psicopedagógica do adolescente
Vera Barros de Oliveira e Nádia A. Bossa (orgs .)
(POR) UMA EDUCAÇÃO
- Aprender: A aventura de suportar o equívoco
Clemencia Baraldi COM ALMA
- Essas crianças que não aprendem
Jean-Marie Dolle e Denis Bellano A objetividade e a subjetividade nos
- O brincar e a criança do nascimento aos seis anos processos de ensino/ aprendizagem
Vera Barros de Oliveira (org.)
- (Por) uma educação com alma
Beatriz Scoz (org.)
2ª Edição
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Borges. Aglael Luz
(Por) uma educação com alma: a objetividade e a
subjetividade nos processos de ensino/aprendizagem/
Aglael Luz Borges, Eda M. Canepa, Roberto Gambini; Beatriz
Scoz (org.). - Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.
ISBN 85.326.2367-0
1. Educação - Finalidades e objetivos 2. Objetividade
3. Psicologia educacional 4. Subjetividade I. Canepa,
Eda M. II. Gambini, Roberto. III. Scoz, Beatriz. N. Título.
00-2094 CDD-370.15
"'EDITORA
Índices para catálogo sistemático: Y VOZES
1. Psicopedagogia 3 70. 15
Petrópolis
2001
© 2000, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Internet: http:/ /www.vozes.com.br
Brasil
SUMÁRIO
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obra poderá ser reproduzida ou transmitida por
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mecânico, incluindo fotocópia e gravaçâo) ou (Luís Carlos de Menezes)
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados
sem permissão escrita da Editora. 1. Histórias de aprendizagem: A objetividade e a
subjetividade naformação de educadores e
psicopedagogos, 11
Editoração e org. literária: Enio P. Giachini (Beatriz J.L. Scoz)
Layout de capa: Ana Elena Salvi
2. A travessia no desenvolvimento e aprendizado:
A constante relação entre subjetividade e
EXPLICAÇÃO DA CAPA objetividade, 49
Foto de Regina Stella (Aglael Luz Borges)
A foto da capa inspira-se em um sonho: uma 3. O caminho da arte, do corpo e dos sonhos
imagem refletida no espelho gera um conflito. De na educação, 75
um lado: realidade, conhecimento, lógica, espaço, (Eda Maria Canepa)
tempo, intelecto - objetividade. De outro: fantasia,
desejo, retórica, representação, afeto - subjetivida- 4. Sonhos na escola, 103
de. Como diz Sara Pain, talvez a saída seja o movi- (Roberto Gambini)
mento. Nós existimos e adquirimos existência pelo
fato de nos refletirmos. Esse reflexo de um outro é Sobre os autores, 159
comunhão, integração - os dois fazem o único.
B.S.
ISBN 85.326.2367-0
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltcla.
Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900
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CARTA AOS AUTORES E LEITORES
Luís Carlos de Menezes*
Partilhando o privilégio de uma leitura em primeira
mão, e já afirmando minha insuficiência como prefaci-
ador de um livro de psicopedagogia, aos autores deixo
registrado como seu trabalho é percebido por um pro-
fessor, que se inicia na delicada arte de uma educação
com alma e, aos leitores, esboço um prelúdio.
Sujeito e objeto, na educação e na vida, não se ex-
cluem, nem se alternam, mas permanentemente convi-
vem, interagindo ou se confundindo; corpo e mente,
sentidos e desejos, relações e sonhos, contingências e
projetos. No entanto, a importância da subjetividade na
educação, por mais ostensiva e ine-gável que seja, não
tem recebido a atenção que merece. Por isso, só agora
começa a surgir um conjunto de propostas nos fazeres
pedagógicos que, não se confundindo com o trabalho
terapêutico, tira das sombras o sujeito que aprende.
No processo do aprendizado, corpo, percepção, mis-
tério, medo, desejo, encontro, prazer, busca, descober-
ta, diferença, tensão, insuficiência, dor, sonho, dúvi-
i da, jogo, confiança, afeto, amor, destino, vida, morte,
*Físico e educador. Atualmente é professor do Instituto de Física e do Pro-
grama de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP).
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identidade, sujeito, não são menos importantes que mação, com seus estágios supervisionados e suas mo-
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matéria, espaço, tempo, relação, regularidade, ciclo, nografias, na prática pedagógica e em sua teoria.
permanência, transformação, conservação, estrutura, Eda Canepa, pelas linguagens do corpo, gesto e olhar,
objeto, para a construção de operações, linguagens, trajetos concretos à subjetividade na aprendizagem,
categorias, informações, representações, comunica- inicia um caminho pela arte, que nos vai levar a uma
ções, conhecimentos, lógicas, valores, sabedoria, soli- vereda mítica, na companhia do Er de Platão, com visi-
dariedade, felicidade ... ta à deusa Ananque, a Necessidade. Eda trata de mos-
Contudo, por mais que saibamos disso, temos que trar que, mais do que contingência ou obstáculo, esta é
redescobrir os caminhos para o subjetivo, ainda que sobretudo uma segura, objetiva, indicadora de cami-
isto, hoje, pareça ser uma opção por obscuros e com- nhos. Me fez lembrar, por vias súrpreendentes e no
plicados atalhos, ao invés da via expressa da educa- âmbito da educação, a máxima filosófica tantas vezes
ção coisificada, pavimentada pela sociedade indus- redescoberta no pensamento alemão (de Fichte a
trial. Mas é necessário, sim, experimentar veredas in- Engels, se não me engano) de que liberdade é a cons-
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certas, por onde titubeamos vagarosos, quando des- ciência da necessidade.
confiamos que o firme pavimento da via principal tal- Roberto Gambini, como ele mesmo comenta sobre
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vez nos esteja levando, a alta velocidade, para lugar outra autora, permitiu-se observar a educação a partir
nenhum. Podemos acompanhar algumas dessas ve- "de um outro lugar". Essa perspectiva diferente, sua vi-
redas, conduzidos por Beatriz Scoz, Aglael Borges, vência psicoanalítica, lhe permite intuir que, para se
Eda Canepa e Roberto Gambini. encontrar um novo caminho, talvez uma utopia para o
Beatriz Scoz nos leva inicialmente a um passeio pre- novo século, seja preciso transpor ou transgredir barrei-
paratório, "costurando" objetivo e subjetivo, na formação ras disciplinares. Assim como Beatriz nos levou à caixa
psicopedagógica, em busca da recomposição da integri- de areia, a vereda de Roberto nos conduz aos relatos de
dade do educador, na boa trilha aberta por Alicia Fernán- sonhos de Carol, de Felipe ... e aos desenhos de sonhos
dez, Sara Pain e Antônio Nóvoa. Mas isso é só a entrada de de André, de Flávia ... A reflexão que esse trajeto propi-
sua vereda, que nos conduz à caixa de areia, onde vere- cia, quem sabe, menos que uma teoria da infância, seja
mos as histórias de Selma, de Alice .. ., e é ai que começa- a infância de uma teoria. Rascunhos da utopia?
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mos de fato a ver um exercício de re-humanização do ato Quatro veredas, enfim, ainda que a de Beatriz se
pedagógico, em que a identidade, do educando ou do edu- chame histórias, a de Aglael se chame travessia, a de
cador, não é traço estatístico mas construção, que parte Eda se chame caminho e a de Roberto se chame so-
da história de cada um e se realiza em atividades, que não nhos.Trilhá-las não se pode neutramente, pois a cada
é acúmulo, mas sim metamorfose e aprendizado. novo trecho é preciso tomar partido, rever juízos, vali-
dar conclusões, ou não. Independentemente de todo
Aglael Borges nos convida a travessias, na história e um acervo psicopedagógico já acumulado, ou doam-
no desenvolvimento humano, no aprendizado e na edu- plo reconhecimento dos precursores dessa arte-ciên-
cação. É bom afivelar cintos de segurança, que serão cia, são trilhas novas, frescas, com poucas pegadas,
vários saltos, da fissura cartesiana deus-homem-mun- para serem percorridas com todos os nossos sentidos
do aos princípios freudianos do prazer e da realidade ou acesos e nossas intuições ligadas, não para ouvir ver-
à noção marxista de alienação, passando por etapas de dades, mas para descobri-las. A alegria estará nisso.
desenvolvimento humano, desde uma perspectiva psi-
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copedagógica. Isso, como provimento de jornada ou ar- Maio de 2000.
senal de campanha, desemboca em um curso de for-
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! 8 9
'
~
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1. HISTÓRIAS DE
'
APRENDIZAGEM:
A OBJETIVIDADE E A
SUBJETIVIDADE NA
FORMAÇÃO DE EDUCADORES
E PSICOPEDAGOGOS
Beatriz J.L. Scoz*
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• Psicopedagoga, mestre em psicologia da educação (PUC-SP) . Coordenado-
ra e docente de cursos de formação de psicopedagogos - pós-gradua-
ção lato sensu. Coordenadora de grupos de formação psicopedagógica
na relação ensino/aprendizagem.
O trabalho com a objetividade e a subjetividade na
formação dos psicopedagogos deve ser compreendido
dentro de um contexto amplo de transformações sociais
e culturais, que afetam não só o que temos que saber
para enfrentar o mundo, mas também o que temos que
saber para compreender a nós mesmos e aos demais.
Entre os movimentos que expressam essas trans-
formações, encontra-se o fenômeno da globalização
que mudou os limites e as fronteiras de humanidade,
não só no que se refere à organização da economia em
escala planetária, mas também porque considera no-
vas concepções dos fenômenos físicos e naturais.
Estudos recentes da física moderna comprovam tal
fato quando apontam a dicotomia existente entre glo-
balização/universalidade e visão polarizada da reali-
dade. As investigações no mundo do muito pequeno
demonstram, por exemplo, que as partículas atômi-
cas, que se acreditava confinadas em um volume mui-
to restrito, por vezes, transformam-se em ondas que se
espalham por várias regiões do espaço. Ou seja, não li-
damos apenas com "coisas", mas com uma complexa
rede de conexões.
Entretanto, tanto nossa percepção sensorial, quanto
os processos de pensamento que utilizamos para organi-
zar o mundo à nossa volta, estão restritos a uma visão ba-
seada em opostos: rico/pobre; frio/quente; preto/branco,
etc., polarização que deixa sem resposta questões cuja
complexidade transcende a essas distinções.
Esse fato é comentado com muita propriedade por
Leonardo Boff em seu livro A águia e a galinha Para
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ele, a globalização implica em um exercício de "romper deve ser utilizada como um pretexto para contribuir
com os limites apertados do nosso arranjo existencial". com o enriquecimento da formação profissional, que
A meu ver essa idéia de globalização deve ser conside- deve ter como horizonte o outro que está diante de si.
rada na implantação de um trabalho com a formação dos A Comissão Internacional sobre a Educação para o
1: psicopedagogos, considerando-se a objetividade/subjeti- Século XXI, criada pela UNESCO, sugere os seguintes
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vidade nos processos de ensino/ aprendizagem. princípios para a educação no alvorecer do novo sécu-
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Essas duas instâncias interpenetram-se nos pro- lo: - aprender a conhecer, aprender afazer, aprender a
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cessos de aprender e como diz Sara Pain (1996): conviver, aprender a ser. Estes princípios constituem
"Precisamos nos dar conta de que estamos situa- as bases para as duas propostas mais recentes da edu-
dos na encruzilhada entre duas formas de cons- cação no Brasil, como os temas transversais e os proje-
trução de pensamento. Há um sujeito que deve tos pedagógicos.
aprender e, pela aprendizagem, constituir-se O compromisso com a cidadania, tônica dessas pro-
como sujeito. Ele conta com um aparelho para
elaborar pensamentos sobre a realidade e com postas, exige que os educadores se desenvolvam como
um aparelho para fabricar fantasias, que, embo- sujeitos críticos da realidade em que se situam, e que a
ra cindidos, interpenetram-se". escola não apenas reproduza as relaçôes de trabalho,
mas possibilite o autoconhecimento e a construção de
A objetividade instaura a realidade, aquilo que con- relaçôes de autonomia, de criação e de recriação do
sideramos real, que está fora de nós. A subjetividade próprio trabalho.
instala-se na irregularidade, constitui a esfera do de-
sejo e é o que nos diferencia como pessoas singulares. Ambas enfatizam, em igual medida, tanto as áreas
convencionais, ou seja, o domínio das disciplinas, co-
Na transmissão do conhecimento, essas duas ins- mo os valores e atitudes que comportam uma dimen-
tâncias estão, necessariamente, presentes, porque a são social e uma dimensão pessoal. Envolvem, ao mes-
transmissão do conhecimento é também a transmis- mo tempo, a cognição - conhecimento e crenças - e os
são de nossas formas de ser e de crer, as estruturas afetos - sentimentos e preferências. Enfatizam ainda
simbólicas transmitem-se ao mesmo tempo que o co- que, para desenvolver atitudes de solidariedade e a ca-
nhecimento cientifico.
pacidade de conviver com as diferenças tão necessá-
É importante assinalar que essas idéias são a ex- rias no mundo de hoje, o grande desafio é conseguir co-
pressão de um movimento muito maior, que extrapola locar-se no lugar do outro, compreender os seus pon-
a intenção de um grupo de psicopedagogos. tos de vista e motivações.
No último congresso promovido pela Associação Bra- Essa interpenetração das questões da ordem da ob-
sileira de Psicopedagogia em São Paulo, 1996, o profes- jetividade e da subjetividade na formação dos educado-
sor Walter Garcia, então membro da UNESCO, já ex- res, também apareceu na maioria dos trabalhos apre-
pressava de certa forma o pensamento dessa entidade, sentados no último Encontro do Grupo das Escolas Par-
corroborando as idéias de Sara Pain. Em sua participa- ticulares, realizado em São Paulo em maio de 1998.
ção em uma mesa-redonda, defendeu a tese de que a
educação opera em função de um ser humano, refém de Nesse evento promovido por um grupo de escolas
suas experiências, êxitos e fracassos, portanto, de sua preocupadas com um salto qualitativo em educação e
maneira de ser, sedimentada ao longo de sua trajetória com propostas inovadoras, estiveram presentes, entre
pessoal e profissional. Nesse contexto, a informação outros, a Professora Guiomar Namo de Mello, membro
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do Conselho Federal de Educação e presidente da Fun- Nóvoa aponta, como essencial, um trabalho que cla-
dação Vítor Cívita, o Professor Antônio Nóvoa, da Uni- reie que cada um de nós faz com o saber que vem do ex-
versidade de Lisboa, e o Professor Fernando Hernandez, terior e do interior de nós mesmos.
que junto com uma equipe de professores da Universida-
de de Barcelona tem aprofundado estudos na proposta 2. O esquecimento da pessoa do professor pela ilusão
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educacional embasada nos projetos pedagógicos. do idealismo pedagógico
1 A tônica do encontro foi "A hora e a vez da educação", A preocupação com os "ideais pedagógicos" faz da
no momento de maior avanço tecnológico e da maior re- escola um lugar onde os professores ensinam e não um
volução em termos do conhecimento que a humanidade lugar onde os professores aprendem.
já conheceu. As concepções de conhecimento como algo Para Nóvoa, é preciso haver um trabalho que consi-
estanque e fragmentado e das disciplinas como santuá- dere a aprendizagem dos educadores.
rios e barreiras rígidas foram apontadas como algo que
não condiz com a visão atual de educação.
3. O esquecimento da pessoa do professor e de sua prá-
Nesse contexto, apresentaram-se com expressivo tica pela ilusão do saber teórico
destaque propostas sobre uma nova concepção da ca- O esquecimento da prática dos professores em no-
pacidade de aprender a aprender, como condição até me de propostas teóricas inovadoras excluem-nos de
mesmo de sobrevivência cognitiva e social no futuro. seus saberes.
Para concretizar essa proposta, ressaltou-se a necessi-
dade da presença de educadores capazes de aprender Nóvoa propõe um espaço de reflexão sobre a práti-
ca e sobre as mais variadas experiências dos educa-
a aprender e de lidar com seus processos de aprendiza- dores. Nos cursos de formação de educadores a práti-
gem. Falou-se também na abertura de espaços para ca não deve ser vista com caráter instrumental, ape-
reflexão, de um tempo de maturação, de um "perder nas com propostas de estágios supervisionados. Are-
i
tempo para ganhar tempo", para que não se instale a flexão deve estar presente nesse espaço pela implan-
dicotomia entre o que se prega e a falta de condições tação de instrumentos e rotinas que permitam aos
que se oferece no dia-a-dia das escolas. professores a construção de seus próprios conheci-
O Professor Antônio Nóvoa corroborou essas idéias mentos, já que a prática é o único lugar possível para a
ao ressaltar a formação dos educadores como a chave formação dos educadores.
da renovação pedagógica. Para concretizá-la propôs Diante desse quadro, a psicopedagogia, área que
um projeto educativo que trouxesse à luz alguns pon- estuda e lida com os processos de aprendizagem, ofe-
tos esquecidos pelas escolas: rece importantes contribuições para que ocorra uma
ação efetiva junto aos educadores. Não só em relação
1. O esquecimento da pessoa do professor pela ilusão ao vinculo que se estabelece entre professor/ aluno e
da racionalidade técnica sua incidência na própria construção subjetiva de am-
bos, mas também no que se refere à trama que se esta-
A preocupação com a apropriação das técnicas de tra- belece entre as questões da ordem da objetividade e da
balho é tão grande nas escolas, que extrapola a existência subjetividade nos processos de aprender.
da pessoa em sua subjetividade e esquece que os projetos
pessoais e profissionais cruzam-se inexoravelmente. A psicopedagogia ocupa um espaço privilegiado por-
que nasce e trabalha em um lugar constituído pelas
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i
fendas existentes entre sujeito e objeto; aí está a sua guma situação escolar importante. Eles relembram não
força. O espaço não é dentro nem fora, mas na intersec- dos conteúdos ensinados, mas de algum professor ou
ção dos dois. Não se trata então de juntar duas coisas de alguma cena, na qual o professor reconhecia o alu-
para formar uma só; trata-se de integrar para poder tra- no como sujeito pensante ou, ao contrário, desqualifi-
balhar com as diferenças. Como se pode perceber, um cava-o colocando-o em um lugar de onde era incapaz
movimento muito condizente com as perspectivas glo- de aprender.
balizadoras atuais, anteriormente abordadas. É importante lembrar que não se trata de pensar
Alícia Fernandez (1994) coloca a psicopedagogia na por exclusão. Claro que os conteúdos das disciplinas
perspectiva de um vir a ser, e o objeto da intervenção devem ser ministrados com competência pelos profes-
psicopedagógica, a abertura de espaços subjetivos e sores, porque embasam toda e qualquer atividade do
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objetivos, onde autoria de pensamento seja possível e o indivíduo na sociedade e porque possibilitam condi-
sujeito que aprende possa surgir. ções de acesso à cidadania.
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Para enfatizar a importância da abertura desses Entretanto, na mesma medida é importante, se o
espaços, Alícia Fernandez (revista E.PSI.BA, n. 3, s.d.) professor dá ou não ao aluno o direito de mostrar seu
diz que, nessa sociedade onde nos roubaram e nos pensamento, se faz com que ele se envergonhe ou não
roubam tempo, a Psicopedagogia é uma produção de por ter cometido falhas, porque isso permanecerá co-
tempo, para que o sujeito possa inventar-se pensante, mo parte constitutiva do aluno como sujeito aprenden-
assim como a psicanálise é uma invenção de tempo te pelo resto da vida. Em síntese, os professores tam-
para que o sujeito possa escutar-se. bém são agentes subjetivantes que precisam de um es-
paço p_ara trabalhar e ressignificar suas próprias
O posicionamento do sujeito diante de si mesmo como aprendizagens; um espaço onde possam conectar-se
autor de seus próprios pensamentos desvela uma manei- com seus próprios sintomas e inibições quando apren-
ra de descobrir e de produzir o novo. Do lugar de sujeito dem, posicionando-se melhor frente ao seu fazer pro-
pensante, investe-se então, como sujeito aprendente. fissional. Só podemos trabalhar com o outro e conse-
Essa maneira pessoal de aproximar-se do conhe- guir que nossa tarefa seja eficaz, se pudermos simboli-
cimento, de aprender, configura uma modalidade de zar nossas próprias dificuldades.
aprendizagem particular que o sujeito constrói, desde . Esse espa~~- n~cessit~ de um acionar psicopedagó-
o nascimento, em reciprocidade às modalidades de gico q~e se dinJa a ~elaçao sujeito/aprendente, sujei-
ensino de seus ensinantes. É como se fosse uma ma- to/ensmante, considerações que nos remetem a al-
triz, um molde, um esquema de operar que utilizamos guns desafios em relação aos cursos de formação de
em diferentes situações de aprendizagem. Tal fato psicopedagogos.
evidencia que ensino/ aprendizagem são duas instân- Na maioria dos cursos de psicopedagogia, assim
cias inseparáveis. coi:n~ nas esc_?las de ensino regular, as perspectivas
No processo de ensino/aprendizagem, tão impor- objetivantes sao mais enfatizadas e estão presentes em
tante quanto os conteúdos ensinados é o molde rela- u?I elenc? de disciplinas que constam das programa-
cional que se imprime sobre a subjetividade do sujei- çoes curnculares. Nas instituições que promovem cur-
to. Alicia Fernandez (1998) exemplifica isso mencio- sos de pós-graduação lato sensu em psicopedagogia,
nando suas conversas com professores, quando pede as perspectivas subjetivantes têm sido freqüentemen-
que relembrem suas experiências como alunos ou al- te apontadas como uma necessidade que deve ser aten-
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<lida na forma de um trabalho de análise pessoal reali- o pensamento por dualidade e de pensar por integra-
zado fora da instituição, que sem dúvida é desejável e ção, como requer o movimento atual com vistas a um
poderá ser muito proveitoso. Entretanto, esse trabalho novo milênio.
nem sempre ocorre e seu enfoque não está direcionado
para as modalidades de aprendizagem. Alternativas de atuação - Uma experiência
Como o psicopedagogo poderá desenvolver um tra- vivida
balho psicopedagógico com os educadores na institui-
ção escolar que leve em conta questões da ordem da Partindo dessas considerações e de um trabalho
subjetividade e da objetividade presen_tes nos proces- com grupos de tratamento psicopedagógico didático de
sos de aprender, se nesses cursos ha pouco ou ne- Alícia Fernandez, do qual tive a oportunidade de parti-
nhum espaço para que se olhem a si mesmos apren- cipar, fui gestando algumas perspectivas de trabalho
dendo e ensinando e percebam o valor positivo do erro com a objetividade/subjetividade nos cursos de for-
e da ignorância? mação de psicopedagogos.
A ressignificação dos processos de apr_ender s~ se Nos grupos coordenados por Alícia, pude perceber
dará a partir de um trabalho que leve tambem os ps1co- a diferença entre um trabalho dessa natureza e uma
pedagogos a conectar-se com a angústia _de :onh.ec:r _e análise psicológica e abrir um espaço para trabalhar
de desconhecer, ressignificando suas propnas h1ston- com minhas modalidades de aprendizagem, enfrentan-
as de aprendentes. Sem isso, nós, psicope~agogos, ire- do minhas travas em um espaço vivencial de cenas
mos nos privar da possibilidade que nos da i:os~a ~r~­ dramáticas e de jogo/aprendizagem.
fissão, de podermos nos liberar de nossas propnas ini- Em 1996 fui convidada para coordenar um curso
bições, realizando um trabalho criativo e saneante pa- de formação de psicopedagogos em Aracaju (capital do
ra os outros e para nós mesmos. estado de Sergipe). Ao elaborar o programa do curso,
Essa questão é preocupante, em primeiro lugar, por- resolvi tornar meu "discurso psicopedagógico" coeren-
que nossa atuação enquanto psicopedagogos, seja no te com a prática. Para contemplar questões objetivan-
campo clinico ou institucional, seja como coordenadores tes, foi incluída a modalidade de grupos de estudos em
ou docentes de cursos de psicopedagogia, tem que ser horários semanais, com o objetivo de aprofundar os
coerente com nosso discurso: "o objetivo de toda inter- conteúdos ministrados no decorrer do curso e de pro-
venção psicopedagógica é abrir espaços subjetivos e ob- mover intercâmbios de conhecimentos, elaboração de
jetivos, onde a autoria de pensamento seja possível". Em seminários e pesquisas. Para contemplar as questões
segundo lugar, como já foi dito anteriormente, o qu~ U:Uª subjetivantes, incluiu-se um trabalho com as modali-
pessoa pretende fazer com a outra tem qu: pratica-lo dades de aprendizagem dos alunos.
consigo mesma- conectar-se com a aprendizagem pes-
soal, com os personagens ensinantes e aprendentes nele Para a realização desse trabalho, senti que os alu-
nos teriam necessidade de um referencial teórico inici-
mesmo e perceber como segue atuando. al. Por essa razão, foi incluída a disciplina de modali-
Entretanto, não se pode incorrer nos mesmos erros dades de aprendizagem no módulo básico do curso.
passados, ou seja, na tentativa de juntar aquisição de Essa disciplina, embasada nos estudos de Alícia Fer-
conhecimento com formação, correr o risco da exclu- nandez (1994), parte das estruturas objetivantes e
são, enfatizando ou o trabalho com a subjetividade ou subjetivantes do aprender e tem por objetivo: definir o
as questões objetivantes. Trata-se, sim, de ultrapassar que é modalidade de aprendizagem; identificar diferen-
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t· de atuação do ensinante e as relações com ciedade e da mulher/educadora, abrindo possibilida-
1
~~~s :~delos de aprendente; discutir ~ lugar da mu~ des para mudar o modo de inserir-se nas situações de
lher na sociedade atual e as reperc~ssoes que p~dera ensino/aprendizagem - com mais autonomia. Reco-
.dades de aprendizagem. Relac10na- nheciam que "a saída para o problema não está naqui-
ter em suas mo dall · d lo que os outros fizeram comigo, mas no que eu faço
' ltllll·0 1·tem focalizei o papel da queixa e o
d. os-
a esse u ' - .
'tico· a agressividade e a agressao, a au onorma
t · com o que os outros fizeram comigo".
Juizo cn , ·ta· a autona · d e pensamento · Ao vivenciarem o papel de aluno, percebiam que, di-
de pensamento e a escn ' .
As vivências sobre as modalidades d~ _a prendiza- ante da queixa, o outro se aborrece e que pela circulari-
. . . lmente a partir de cenas dramaticas, foram dade que esse comportamento provoca, o aborrecimen-
gem, imc1a -d 1 li · to seria inevitável frente ao processo de ensino/apren-
incluídas no módulo instituci?r:al e no ~o . u o c mc_o
concomitantemente à supervisao de estag!º-. E~ pn- dizagem, com o risco do abandono do movimento de
meiro lugar, porque concordando c~.111 Ant~~o N?~ºª· aprender ou do aparecimento de inibições cognitivas.
acredito que a formação deve estar colada ~pratica. Nas cenas apareciam também atos agressivos nas
Em segundo lugar, porque nesse momento tena a opor- escolas. Quando era solicitado que se colocassem no
tunidade de estar com grupos menores de alunos, lugar do professor, surgiam impulsos de revanche
como requer um trabalho dessa natureza. em um movimento de "olho por olho , dente por den-
Os alunos vivenciavam, na maio~a das vezes, rela- te" ou, ao contrário, condescendência exagerada, am-
- d e ensm . o/aprendizagem ocomdas nas escolas. bos provocando sentimentos de desânimo e de culpa
çoes . diante da situação .
Quando se colocavam no lugar do profes~or, ~pareciam
comportamentos de passividade e. ace1taçao, que se Também afloravam sentimentos vividos no decorrer
manifestavam pelo excesso de queixa~, deslocan~o a de suas histórias de aprendizagem. Agressões a que ha-
.dade pelo processo de ensmo/aprendiza- viam sido submetidos: castigos, silêncio, renúncia à
responsabil1 . .
gem para outros profiss10na1s. criatividade e à própria liberdade. Muitos reconheciam
Nessas cenas, os alunos percebiam os sentimentos que, embora houvessem superado seus "agressores",
de autodesvalorização dos professo:es_e, ao se_ coloca- acomodavam-se às normas, valores e mandatos.
eciam seus propnos sentimentos Essas cenas abriam um espaço de reflexão sobre as
rem nesse 1u gar, apar d
de autodesvalorização frente aos seus pr~c~ssos ~ en- relações entre agressividade/agressão e sobre os pro-
sino/aprendizagem durante suas traJetoi:as de ~da. cessos de ensino/aprendizagem, diferenciando-se a agres-
A abertura de um espaço para vivenciar, a~alisar, sividade necessária e sadia da agressão patogênica. Os
reco nhecer e ~alar i.
sobre esses sentimentos
lunos ate- os mais .
fazia com
ca1a d os, co-
alunos percebiam que a agressividade não é um impul-
que, pouco a Pouco , Os a '. _ so a ser evitado nem uma doença a ser curada, mas um
meçassem a refletir sobre sua s1tuaçao. _ Os alunos pas- componente constitutivo do desejo de aprender. Apare-
os vazios momentaneos, por vezes cia cada vez mais a figura de um ensinante capaz de ofe-
savam a suPortar . .
. ediatas sem cair, como antenormen- recer um terreno fértil para que a sua própria agressivi-
sem respos tas lffi licações ' rap1das
- . . · d
1.Illphca ·
te, emsupo Stas exp _ as na cir- dade e a de seus alunos pudessem aparecer canaliza-
cularidade da queixa. Começavam tambem a aparecer das para algo criativo, para o desafio de conhecer.
soluções alternativas para lidar com os processos de Assim, pouco a pouco, ressignificavam seus sentimen-
aprendizagem e o reconhecimento de atravessamentos tos de revolta, desânimo e culpa, anulando a auto-
ideológicos como, por exemplo, o papel da mulher na so- agressão diante da agressividade dos alunos.
22 23
1
1
Quero assinalar a riqueza e a criatividade das ce- sarnento. E é através desse jogo/brinquedo que o sa-
nas. Os alunos utilizavam-se dos mais variados mate- ber se constrói.
1
riais para compor o cenário e caracterizar os persona- Ao falar em jogo, não estou me referindo a um ato, a
gens. Era uma profusão de cores e formas que me en- um produto, mas a um processo, a um lugar que Win-
tusiasmava. nicott (Gonlick, 1993) chama de "espaço transicional,
Fui me dando conta de como a criatividade do grupo espaço de confiança, de criatividade entre o crer e o
potencializava a minha própria criatividade e como esses não crer, entre dentro e fora". Como diz Alícia Fernan-
espaços de participação grupal, onde eu também me in- dez (1994), "o espaço de aprendizagem não pode estar
cluía, significavam a abertura de uma dinâmica de hu- situado na realidade psíquica interior do indivíduo por-
morização da dor, um movimento para abrir o pensar. que não é apenas um sonho pessoal (e além disso é
parte de uma realidade compartilhada). Tampouco se
1
O trabalho tornava-me cada vez mais livre, criativo. pode pensá-lo unicamente em função das relações ex-
Ia deixando de lado as amarras da academia e me per- teriores (área das experiências culturais), porque acha-
mitia a abertura para o descobrimento do que Alicia se dominado pelo sonho. E é aí que entram o jogo e o
Fernandez ( 1994) chama de cenas paradigmáticas do sentido do humor".
1 aprender: aquelas cenas em que cada um de nós blo-
queamos e, ao mesmo tempo, possibilitamos nosso Quanto mais me permitia jogar com os alunos e refle-
aprender e ensinar, tornando possível a construção de tir sobre essas questões, mais ficava claro que só seria
nossa identidade enquanto psicopedagogos. possível gerar nos alunos espaços de jogos/aprendiza-
gem, quando podíamos construí-los para nós mesmos.
Trabalhávamos a desconstrução e a construção,
desafio que só é possível em um espaço lúdico, onde as
dúvidas possam jogar com as certezas, onde nossos er- A introduç ão de novas alternativas:
1
ros e os dos outros sirvam de escalas para o nosso cres- Atendendo à realidade encontrada
1 cimento. Ao ampliar minha participação na coordenação e
1
Essa permissão para entrar na wna de jogar possibili- docência de vários cursos de formação de psicopeda-
1
ta a construção de um espaço de alegria que, para Maud gogos (Universidade Católica de Recife, Universidade
Manonni (Coelho, RevistaE.PISI.BA, n. 2, s.d.), "é não es- Federal de Natal, Universidade Paranaense- nesta úl-
tar aprisionado a si mesmo, é ter empatia com o outro ofe- tima só na docência), senti necessidade de criar outras
recendo e oferecendo-se a possibilidade e a abertura para possibilidades para que o jogo/aprendizagem aconte-
i
reinventar a si mesmo e a própria infãncia". cesse, oferecendo novas perspectivas para o trabalho
Por essa razão, o espaço de jogar ia modificando a com as modalidades de aprendizagem.
rigidez e as estereotipias das modalidades de aprendi- No contato com diferentes grupos de alunos, perce-
zagem sintomáticas, ajudando a recuperar o prazer de bi que nem sempre há disponibilidade corporal para
1 aprender e a autonomia no exercício do pensamento. um trabalho com cenas dramáticas, talvez pelas pró-
Para mim, ficava cada vez mais claro que não basta prias diferenças regionais, talvez por tratar-se de uma
oferecer jogos didáticos. Eles, por si só, não garantem proposta muito nova.
que o brincar aconteça e às vezes servem apenas como Ao buscar novas possibilidades de trabalho, depa-
disfarce para a impossibilidade do verdadeiro brincar. rei-me com uma técnica utilizada pelos analistas jun-
É preciso haver uma disponibilidade interna para brin- guianos - o "Sand-Play"
car, uma capacidade de brincar com o interior do pen-
24 25
1
Movida pela riqueza de recursos dessa técnica e por humano e não permanece exclusivo ao domínio infan-
minha identificação com as idéias de Jung*, resolvi in- til, mas atua como ponte entre o mundo externo e in-
vestigar suas reais possibilidades para o trabalho com terno - os opostos psíquicos.
as modalidades de aprendizagem.
Na abordagem psicológica de Jung ~ercebe-se ~ O "Sand-Play"
modernidade de seu pensamento ao segmr os concei- Essa técnica existe há mais de 65 anos e sua inspi-
tos de polaridade e simetria divulgados hoje em larga ração surge em 1911, com a publicação de dois livros
escala pelos estudos da física, sobretudo por ~ua~ con- do autor inglês H.G. Wells -A máquma do tempo e A
cepções sobre a união dos opostos que leva a umdade guerra dos mundos-, onde aparecia um pai brincando
I', do sujeito. Para ele, os pólos opostos d~ ser ?umano com os filhos, algo inédito na Inglaterra no começo do
1
devem coexistir e o encontro de um cammho mterme- século. Mas, na verdade, pode-se dizer que foram as
diário entre eles é o que traz o sentido de realização e a tribos primitivas as precursoras desse trabalho, ao de-
1
1
possibilidade de nos tornarmos mais inteiros. senhar na terra círculos mágicos protetores.
Outro ponto que me chamou a aten~ão ao. entr3:r Wells já acreditava que o brincar estruturava as
em contato com a vida e a obra de Jung foi sua dispom- idéias dos indivíduos na fase adulta, mas não estava
bilidade, como poucos psicoterapeutas, para jogar e brin- interessado no seu significado psicológico.
car. Em sua autobiografia, publicada em 1961, conta Posteriormente, Margareth Lowenfeld, que também
que, frente ao estado de desorientação em que se en- não era psicóloga, mas médica psiquiatra, funda uma
contrava após a ruptura com Freud**, para recuperar clínica infantil de atendimento e de pesquisa e, a partir
1
sua vida criativa, voltava à sua infância, encontrando do contato com os livros de Wells, coloca as miniaturas
soluções através do brincar. Em muitas outras épocas, como recurso terapêutico.
i quando se sentia num beco sem saída, f~zia o mesn_io:
pintava, esculpia, desenhava. Es~e engajamento ativo
Nessa época, Londres era um campo fértil para as
idéias emergentes sobre terapia infantil. Melanie Klein,
com a brincadeira e com as fantasias consteladas colo- Anna Freud, Donald Woods Winnicott desenvolviam
i
1
cou em movimento todo um processo de desenvolvi- trabalhos paralelos.
1
1
mento psicológico, mostrando, aos poucos, o papel si~­ O trabalho com as míniaturas começou a atrair te-
nificativo da brincadeira e da fantasia, ponte necessa- rapeutas de diferentes orientações teóricas. A própria
1
ria para a parte que permanece não desenvolvid~ ~ in- Margareth Lowenfeld acreditava que sua técnica era
consciente no individuo- a fantasia como uma ativida- independente de qualquer viés teórico: Um psicanalis-
de específica e autônoma da psique, como qualquer ta enfatizaria as teorias sexuais, um adleriano*, o com-
outro processo vital do organismo. plexo de poder, etc.
Tanto para Jung, como para Winnicott, o brincar A mais importante ramificação do trabalho de Lo-
'
tem um lugar fundamental no desenvolvimento do ser wenfeld foi desenvolvida por Dora Kalff- com formação
em psicologia analítica pelo Instituto C.G. Jung em
Zurique na Suíça.
•Carl Gustav Jung (1875/ 1961). médico psiquiatra. analista e nascido na
Suíça.
1
•• Sigmund Freud (1856/ 1939). médico neurologista. psicanalista. nasceu • Alfred Adler (1870/ 1937). médico psiquiatra, nasceu em Viena na Áustria.
1 em Viena na Austrta.
26 27
Em 1954, Kalff, incentivada por Jung, entrou em A riqueza de possibilidades oferecidas por essa técnica
contato com o trabalho de Lowenfeld e começou a criar de trabalho levou-me a introduzi-la nos cursos de forma-
1
sua própria abordagem, integrando-a à sua formação ção de psicopedagogos como mais uma alternativa para
junguiana. Começou com a hipótese básica, p~stulada lidar com as modalidades de aprendizagem dos alunos. O
1 por Jung, de que há, na psique humana, um rmpulso espaço de jogo que a caixa oferece permite aos alunos
1
fundamental em direção à cura. Para que a cura pu- contatar e ressignificar suas histórias de aprendizagem;
desse ocorrer, decidiu utilizar um espaço livre, mas resgatar a possibilidade de criar, o prazer de aprender, o
contido em uma caixa de areia pintada com fundo azul direito de conhecer e ter a autoria de pensamento.
imitando água, inicialmente oferecido às crianças e, pos-
Quero assinalar que não se trata de uma transposi-
teriormente, aos adultos.
ção mecânica da técnica do "Sand-Play" para as salas
Kalff considerava a areia um material extremamente de aula, até porque o trabalho psicopedagógico não
terapêutico, por conter, como a terra, elemento~ nat:rr~s tem por objetivo realizar terapia psicológica- o seu ob-
primordiais que possibilitam inúmeras sensaçoes táte1s. jeto é o indivíduo que aprende. No entanto, sinto-me à von-
1
1 Além disso, o espaço circunscrito à caixa de areia é tade para utilizar essa técnica, com as devidas adapta-
um espaço livre e ao mesmo tempo protegido, porq':1e, ções, porque ela não é de propriedade exclusiva de
1
embora o número de miniaturas possa ser grande em- uma única área de atuação profissional, uma vez que
finita a fantasia, tudo é mantido dentro dos limites se- foi inicialmente utilizada por uma médica psiquiatra e
i
1
guros e contenedores da dimensão física da caixa. como diz a própria Dora Kalff (Weinrie, 1993):
As miniaturas (símbolos) não são apenas analogias "A leitura que se possa fazer depende do referencial
1
correspondentes a outras coisas: têm vida real, têm teórico que se tem".
1 força dinâmica de valor emocional e conceitual. Os
1
adultos recapturam o espirita imaginativo do brincar
O referencial teórico
livre com o objetivo subjacente de expressar-se, pois
i na caixa de areia as imagens são construídas passo a O referencial teórico utilizado para o trabalho com
passo, deixando cair muitas defesas. as modalidades de aprendizagem em uma perspectiva
As defesas também são liberadas pelo sentimento objetivante/subjetivante é o de Alicia Fernandez (1994),
de domínio suscitado pela facilidade física de construir que delineia um dispositivo de interpretação psicope-
I' 1 cenas na caixa de areia: a pessoa toca, levanta, põe, dagógica, cujo eixo são os movimentos do aprendente
1 move, retira e enterra objetos variados, criando ima- em relação ao conhecimento mediatizado, obturado ou
1
gens concretas e imediatas. alterado pelos movimentos do ensinante.
1 Esse trabalho, semelhante ao das técnicas psico- Para ela, são figuras que podem coincidir com os
dramáticas, oferece ainda a oportunidade de a pessoa lugares de professor e de aluno, mas que na aprendiza-
colocar-se em cena, diferentemente do trabalho ver- gem sadia alternam-se, superpõem-se ou movem-se.
bal, em que só pode falar sobre a cena. Outra seme- Assim, um professor só poderá ensinar se aprende e
lhança com as técnicas psicodramáticas é que ambas um aluno só poderá aprender se ensina.
não são catárticas, desencadeadoras de algo devasta- O dispositivo de Alícia pode ser utilizado para ana-
dor, mas possibilitam a descoberta de algo a partir do lisar a relação entre aprendente e ensinante como indi-
1
que se constrói. víduos, para interpretar o grau de saúde ou de enfer-
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1
1
1
midade de um sujeito em relação à aprendizagem e Segundo momento: Módulo Institucional do Curso de
1
para analisar a circulação do conhecimento em um Formação de Psicopedagogos.
1 grupo social.
Partindo de um modelo de análise das situações de Disciplina: Modalidades de Apren-
aprendizagem que delimita os diferentes vínculos ensi- dizagem - vivências com as minia-
nante/aprendente e da imagem do aprendente como turas na caixa de areia (48h/ aula -
alguém que "olha-conhece", Alicia propõe uma linha distribuídas em 4 encontros men-
em cujos extremos estão o exibir e o esconder, no cen- sais, após o horário da supervisão
tro, o mostrar/guardar de estágio).
O exibir do ensinante leva o aprendente a evitar o Duração do trabalho em cada en-
olhar. Se o ensinante "se exibe" sendo a "luz" do conhe- contro mensal: 12 horas, distribuí-
cimento, o aprendente, para evitar cegar-se, poderá das por sessões de 2h cada, com
construir uma inibição cognitiva. grupos de 6 alunos.
O esconder do ensinante leva o aprendente a espi-
ar. Se o ensinante, em vez de mostrar o conhecimento, 1º encontro - Representar uma ce-
obscurece-o pelo não dito, ou esconde-o, retirando-o na com alguém ensinando e alguém
da vista do aprendente, este precisará significar seu aprendendo.
olhar como um espiar enclausurando o aprender, cons-
truindo um sintoma na aprendizagem. - Representar cenas de suas pró-
Só frente ao mostrar/ guardar existe um espaço prias aprendizagens.
que permite o aprender/ olhar, a conexão com o desejo
de conhecer, elegendo, selecionando, de acordo com 2º encontro - Representar uma
sua história, os conhecimentos que poderiam articu- cena da primeira entrada na escola
lar-se com seu saber. como estagiária do curso de forma-
ção de psicopedagogos.
Quero assinalar que nas concepções teóricas de
Alícia Fernandez também está subjacente uma con- - Representar uma cena da pri-
cepção da união de pólos opostos - o exibir e o escon- meira entrada na escola quan-
der- e o encontro de um caminho intermediário - mos- do criança.
trar/ guardar. Repetindo as palavras de Jung, a possi-
bilidade de nos tornarmos mais inteiros. 3 ° encontro - Representar a cena
1 mais marcante que presenciou na
1
Desenvolvimento do trabalho escola.
Primeiro momento: Módulo Básico do Curso de For- - Representar a cena mais mar-
1
1
mação de Psicopedagogos. cante de sua vida escolar.
Disciplina: Modalidades de Apren-
'
1
dizagem: Fundamentação teórica
(20h/aula).
4° encontro - Representar uma
cena de intervenção psicopedagó-
gica na escola.
1
30 31
1
- Representar uma cena colocan- - cenas com irmãos bem-sucedidos na aprendiza-
do-se no lugar do professor, do alu- gem - demonstrando o lugar que o aluno ocupa como
no, do psicopedagogo, estabelecen- aprendente;
do um solilóquio*. - cenas de aprendizagem em grupo - demonstrando
a necessidade de interação no processo de aprender;
Questões observadas: - cenas de aprendizagem a partir de vivências - de-
1. A possibilidade de que a própria experiência com monstrando a necessidade de vivenciar situações de
a caixa de areia seja, para o aluno, uma situação de aprendizagem;
aprendizagem. - cenas de brigas, agressão, repressão - demons-
2. A possibilidade de perguntar-se, a partir do soli- trando a relação com as dificuldades de aprendizagem.
lóquio, sobre as próprias modalidades de aprendiza-
gem. Miniaturas que apareceram com mais freqüência
3. A percepção de imagens e lembranças que as ce- nas cenas:
nas suscitam: cenas de aprendizagem familiar, cenas • Ponte - representando uma passagem para uma
de aprendizagem na escola, etc. nova fase de aprendizagem;
4. A significação da escola como facilitadora ou per- •Anjo/Passarinho- como uma situação de apren-
turbadora do lugar profissional. dizagem idealizada;
5. A possibilidade de articular a perspectiva indivi- • Relógio - representando a pressa de aprender ou
dual com a grupal. atitudes controladoras na aprendizagem;
6. A interpretação da produção e do próprio aluno • Animais e flores - representando possibilidades
como autor de sua produção. de descontração na aprendizagem;
7. O reconhecimento pelo aluno de algo novo nele • Banco - representando uma situação de espera,
mesmo. uma necessidade de descontração, de descontinuida-
8. A observação de cenas que se repetem. de durante o processo de aprender;
9. A observação dos significantes utilizados mais fre- •Soldados - representando imagens de agressão,
qüentemente para representar cenas de aprendizagem. repressão;
• Lâmpada - representando as possibilidades de
Cenas que apareceram com maior freqüência: aprender - a "luz da aprendizagem".
- cenas de bebê com a mãe- demonstrando as pri-
meiras experiências de aprendizagem; Material utilizado:
- Caixa de madeira com fundo azul: 0,72 cm de
comprimento; 0,52 cm de largura e O, 13 cm de profun-
didade;
-Areia;
•A segunda etapa de trabalho de cada encontro só era vivenciada pelas alu-
nas , quando a primeira etapa oferecia possibilidades para que elas es- - Miniaturas variadas - casas, bonecos (homens,
tabelecessem algum tipo de relação com suas próprias histórias de mulheres, bebês, crianças, velhos), soldados, anjos, ani-
aprendizagem.
32 33
mais, plantas (árvores, flores, arbustos), mesas, cadei- As medidas sugeridas pelo "Sand-Play" oferecem
ras, sofás, bancos, estantes, livros, lâmpadas, relógios, maior conforto para a manipulação das miniaturas.
utensílios domésticos, pontes, cercas, etc.
- O primeiro contato de uma aluna com a caixa de areia
Cenas vividas na caixa de areia - teoria e prática [Cf. figuras n. 10 e 11, no final do capítulo]
- A apresentação do local, do material e a seqüência do A participação de todos os alunos
trabalho
[Cf. figura n. 12, no final do capítulo]
[Cf. figura n. 1, no final do capítulo]
A aluna que fez a primeira cena fala sobre a mesma. Os
As alunas se reúnem para discutir a relação entre a outros alunos se incluem na cena, perguntando, retirando
teoria que embasa o trabalho com as modalidades de ou acrescentando outras miniaturas, deslocando-as para
aprendizagem (disciplina do primeiro módulo do cur- um outro lugar, colocando-as em outra posição.
so) e a prática.
- A caixa de areia Instruções para as vivências na caixa de areia
[Cf. figura n. 2, no final do capítulo]
Primeiro encontro:
Explicitação das perspectivas que a caixa de areia
- Representar uma cena com alguém ensinando e al-
oferece para o trabalho com as modalidades de apren-
dizagem. guém aprendendo.
- Representar cenas de suas próprias aprendiza-
Essa caixa foi elaborada pela coordenadora local de
gens.
um dos cursos de psicopedagogia. A profundidade da cai-
xa é um pouco maior do que a proposta pelo "Sand-Play".
Cenas que apareceram com maior freqüência:
- O local de trabalho [Cf. figuras n. 13, 14 e 15, no final do capítulo]
[Cf. figuras n. 3 e 4, no final do capítulo] - relação interativa na aprendizagem - expressa
com pessoas colocadas em círculo;
- As miniaturas
- aprendizagem vivenciada, descontraída, lúdica -
[Cf. figuras n. 5, 6 e 7, no final do capítulo] expressa com animais, flores, etc.
No início, o número de miniaturas era menor. No Obs.: Estas primeiras cenas - alguém ensinando e
decorrer do trabalho, a partir das cenas que as alunas alguém aprendendo - desencadearam um trabalho
apresentavam, fui acrescentando outras miniaturas, muito rico, no qual as alunas representavam cenas de
de objetos e pessoas que elas queriam representar ensino/ aprendizagem ocorridas no decorrer de suas
(bola, bengala, trono, etc.). vidas, resgatando suas próprias modalidades de
aprendizagem.
- A outra caixa de areia
- Representação de cenas das experiências de
[Cf. figuras n. 8 e 9, no final do capítulo] aprendizagem das alunas.
[Cf. figura n. 16, no final do capítulo]
34
35
Cenas que apareceram com maior freqüência: nas ou pelo relato de alguém, enquanto o saber nos
- as primeiras aprendizagens - as aprendizagens permite incorporar conhecimentos. Para que a apren-
maternas, desde a fase de bebê; dizagem ocorra é necessária a presença dessas duas
- as primeiras aprendizagens na escola; instâncias: conhecimento e saber.
- o rito de passagem entre as aprendizagens informa- O grupo de alunas concluiu que no caso do pai de
is (na família) e formais (na escola), demonstrando a im- Selma o aprender estava presente porque permitiu
portância desse momento - expresso com uma ponte. uma incorporação de conhecimentos e, conseqüente-
mente, uma transformação: os obstáculos foram trans-
formados em oportunidades.
As histórias de aprendizagem Surgiu uma nova questão para reflexão: em que
medida as modalidades de aprendizagem que cons-
A história de Selma truímos ao longo de nossa história brecam ou reforçam
nossas possibilidades de seguir aprendendo?
[Cf. figura n. 17, no final do capítulo]
Para exemplificar essa questão, as alunas ressal-
É importante observar, nessa cena, a mobilidade tam a postura de passividade da professora diante do
que a areia oferece. comportamento destrutivo do aluno e a omissão, o se-
- A aluna expressa o poder, fazendo um monte de gredo, frente ao conhecimento.
areia e colocando, no alto, a figura de um guerreiro. Se a passividade é sintoma que implica na renún-
- A aluna inicia a cena, expressando uma relação cia do sujeito de situar-se como sujeito pensante, co-
de ensino/aprendizagem, na qual ressalta a luta de mo esse modelo poderia estar interferindo nas possibi-
lidades de aprender dos alunos, uma vez que o apren-
classes. A partir daí, começa a relatar sua experiência dente recebe o conhecimento atravessado pelo desejo
como educadora em uma escola de alto poder aquisiti- de conhecer do ensinante?
vo, de consumismo exagerado e expressa sua vontade
O segredo, o "escondido'', também impossibilita o
de passar outros valores para as crianças. aprender, porque gera a impossibilidade de espaço
- Fala da postura de alguns professores que fingem para que o aprendente se permita olhar/ conhecer e
não ver comportamentos destrutivos das crianças em não apenas espiar o conhecimento.
relação aos objetos da escola.
- Relata episódios de sua própria história de vida. A história de Alice
Seu pai, um vendedor ambulante de cocada, na porta [Cf. figuras n. 18 e 19, no final do capítulo]
da escola, lutou muito para ocupar o lugar em que hoje
É importante observar, novamente, nessa cena, a
se encontra de alto funcionário do Ministério do Traba-
mobilidade que a areia oferece. A partir de uma cena
lho, deixando um exemplo muito forte de valorização sobre uma relação ensino/aprendizagem na escola,
do conhecimento. elaborada por outra aluna, Alice resgata sua própria
A partir desses relatos, o grupo de alunas refletiu história, afundando-se na areia (a menina de vermelho
sobre a diferença entre conhecer e saber. O conheci- colocada atrás).
mento como algo objetivável que nos permite uma su- - Relata que era uma aluna destemida, corajosa,
posição e que pode ser transmitido por livros, máqui- que gostava de criar coisas novas e de mostrar o que
sabia. Com esse seu jeito expansivo, disse um dia à pro-
36 37
fessora que já sabia a lição que ela havia passado. A - Representar uma cena de sua primeira entrada na
professora entendeu seu comportamento como um de- escola quando criança.
safio à sua autoridade. Durante uma aula de leitura, - Representar a cena mais marcante que presenciou
Alice leu uma palavra errada. Para se vingar, a profes- na escola.
sora estimulou o grupo a criticá-la.
- Representar a cena mais marcante de sua vida es-
O grupo refletiu sobre o comportamento da profes- colar.
sora, que não autorizava a aluna a ser livre e criativa; a
sentir-se autora de seus próprios pensamentos. A par-
tir daí, Alice expôs sua dificuldade para falar em voz Cenas que apareceram com maior freqüência:
alta e em público. [Cf. figuras n. 21-23, no final do capítulo]
Como vimos anteriormente, o ensinante onipoten- -A instituição como algo muito complexo, grandio-
te, que exibe o conhecimento, não dá espaço para que so e ameaçador, provocando sentimentos de expectati-
surja o desejo de conhecer, inibindo, no aluno, as pos- va e insegurança.
sibilidades de conhecer por si mesmo.
- A escola relacionada à aprendizagem formal, com
Outra questão importante que surgiu a partir da aulas expositivas, provocando incômodo e o desejo de
cena vivenciada por Alice são as repercussões das mo- que a escola proporcionasse situações de ensino/apren-
dalidades de aprendizagem a que fomos submetidos, dizagem mais lúdicas e vivenciais.
em nosso papel de ensinante. Modelos que, se não fo-
rem ressignificados, tendem a se repetir.
Uma das alunas, quando é convidada a incluir-se As histórias de aprendizagem
na cena e a interagir com Alice em uma situação de en-
sino/ aprendizagem, manifesta seu desagrado, sua frus- A história de Kátia
tração ao sentir-se "podada" por ela. Outras alunas ma-
nifestam o mesmo sentimento com relação à Alice. [Cf. figuras n. 24-26, no final do capítulo]
Diante disso, Alice reflete sobre a interferência do - Na primeira entrada na escola, Kátia deparou-se
modelo de sua professora e de aprendizagem a que foi com uma aula de educação física.
submetida, no seu modelo de ensinante. - O professor era muito diretivo e gritava com os
alunos. A aula estava sendo assistida por outros alu-
Instruções para as vivências na caixa de areia nos de outras classes que cabulavam aulas.
Segundo e terceiro encontros* - O professor também gritava com os alunos que ca-
bulavam aula, porque, segundo o professor, eles "debo-
- Representar uma cena da primeira entrada na es-
cola como estagiária do curso de formação de psicope- chavam" dele. A diretora da escola chegou gritando.
dagogos. Nesse momento solicitei à Kátia que se colocasse
no lugar dos alunos e expressasse seus sentimentos.
Kátia expressa seu sentimento de incômodo por
•O segundo e o terceiro encontros foram documentados com outro grupo de não conseguir perceber muito bem o que fazia ali, e
alunos. Foram documentados conjuntamente porque as cenas presen- com os gritos do professor que se irritava com as con-
ciadas pelos alunos nas primeiras entradas na escola coincidiam, fre- versas dos alunos que cabulavam aula. Imaginava o
qüentemente, com as cenas consideradas mais marcantes.
38 39
desconforto causado pelo barulho repercutindo nas cando um sintoma na aprendizagem: o olhar é signifi-
salas de aula. cado como espiar.
[Cf. figuras n. 27 e 28, no final do capítulo] No caso dessa escola, percebe-se que tanto alunos ,
como educadores, estão com as possibilidades de olhar
- A partir dessas cenas, Kátia fala da gritaria dos
o conhecimento prejudicadas, aprisionando suas pos-
professores e das condições físicas da escola: salas de
aula mal iluminadas, com janelas muito pequenas, si- sibilidades de aprender.
tuadas entre corredores compridos e escuros. Consi-
dera esta a cena mais marcante que presenciou e refe- A história de Giselda
re-se à escola como uma prisão. [Cf. figura n. 31, no final do capítulo]
Ao refletir sobre os modelos de aprendizagem dessa - Na primeira entrada na escola, Giselda deparou-
escola, percebe-se que o espaço físico representa uma se com pessoas ágeis e rápidas que ela representa pe-
significação inconsciente. O mesmo que ocorre com a
las miniaturas de cavalos.
representação dos objetos materiais pode estar ocor-
rendo com os processos de aprender. - A partir daí, começa a relatar sua própria história
de aprendizagem: quando entrou na escola, também
As condições físicas da escola, as janelas peque- deparou-se com pessoas ágeis e rápidas.
nas, a falta de luz tanto nas salas de aula como nos
corredores demonstram que os objetos ficam na obs- - Nesse momento, coloca-se na cena utilizando a
curidade - o objeto do conhecimento fica obscurecido. miniatura de um burro. Diz que era muito quieta. Ti-
nha tanto medo que se sentava na última carteira. Um
Para apre~der, temos que nos conectar com o obje- dia, nas raras vezes que conversava com uma colega, a
to ~o conhecimento. Se a luz está acesa, esse objeto
professora chamou duramente sua atenção e bateu
esta presente, do contrário, podemos ter um movimen-
to de "esconder" o conhecimento. em sua cabeça.
O grito, o barulho, também podem atuar como um - Expressa seu sentimento de inadequação que per-
disfarce, uma maneira de esconder o conhecimento - o siste até hoje, reforçado pela história de seu nascimen-
que se fala, não se pode escutar. to. Sua mãe a rejeitou desde a gravidez porque vivia
uma relação conjugal muito tumultuada com seu pai.
Os educadores e os alunos da escola também en-
contram-se atravessados por esse modelo, são pro- - Giselda coloca-se em cima de um armário, repre-
dutos dessa "escola prisão": os professores sen- sentando seu lugar de professora na escola onde tra-
tem-se incomodados pelas críticas dos alunos que balha, então, percebe que utiliza um modelo de onipo-
cabulam aula, e expressam o incômodo com gritos tência frente aos alunos, para disfarçar o sentimento
porque os alunos, ao expressarem suas críticas, co- de insegurança e de inadequação.
locam uma "luz" na situação. Se o professor tivesse O grupo de alunas reflete sobre as relações familia-
enxergado os alunos antes deles o terem enxergado, res desde a fase de bebê que poderão ser reforçadas
talve~ não tivesse agido assim. Os alunos, por sua vez, por episódios vivenciados nas relações escolares, de-
tambem colocam-se no lugar de "escondidos", porque sencadeando sintomas na aprendizagem. O grupo re-
escaparam das aulas. flete sobre o modelo que Giselda adota de "exibir" o co-
Como vimos anteriormente, o objeto do conhecimen- nhecimento. Nesse momento Giselda diz que agora en-
to escondido pode levar à culpa por conhecer, provo- tende por que a maioria de seus alunos demonstra
40 41
comportamentos de extrema passividade que pode ser É importante considerar que os educadores não
um sintoma de inibição cognitiva. partem do zero, possuem uma história que pressupõe
formação e experiências anteriores, a partir das quais
Instruções para as vivências na caixa de areia optaram por teorias pedagógicas e psicológicas, adqui-
riram crenças e esquemas de trabalho , criaram mode-
Quarto encontro
los de aprender e ensinar que nem sempre são satisfa-
- Representar uma cena de intervenção psicopeda- tórios para que a aprendizagem ocorra.
gógica na escola
Desse modo, para que as propostas educacionais
- Representar uma cena colocando-se no lugar do possam transformar-se em realidade, não basta inves-
professor, do aluno, do psicopedagogo, estabelecendo tir na competência técnica dos educadores e no apro-
um solilóquio.
fundamento de estudos sobre temas atuais de educa-
ção. É necessário que os profissionais que atuam com
Cenas que apareceram com maior freqüência: os processos de aprender tenham um espaço parares-
- Escola semelhante a uma prisão. significar suas próprias histórias.
- Evasão de alunos e professores. Vale a pena relatar dois dados significativos: o pri-
meiro, é que essa nova dimensão do trabalho com os
A história de Kátía (continuação da segunda e terceira processos de aprender tem suscitado muito interesse
etapas) nos grupos de educadores de diferentes segmentos so-
ciais e das mais variadas regiões do Brasil. Através de
[Cf. figuras n . 29 e 30, no final do capítulo] contatos com esses grupos, percebe-se nitidamente a
- Diante da "escola prisão" com "objetos escondi- expectativa de um trabalho onde os processos cogniti~
dos" os alunos representam uma cena com alunos e vos e os processos vitais se encontrem; o segundo, e
professores evadindo-se da escola.
que, após a realização do trabalho, os alunos têm reve-
- Quando são convidados a se colocarem na cena, lado grande mobilização. Em Aracaju, houve a solicita-
representando uma intervenção psicopedagógica, di- ção da continuidade do trabalho após o encerramento
zem que já estão colocados no grupo de evadidos. do curso de formação de psicopedagogos. Esse traba-
A partir daí, refletem sobre a seguinte questão: será lho continua com a denominação de Grupos de Forma-
que não estariam usando um disfarce, como o grito dos ção Psicopedagógica na Relação Ensino/ Aprendiza-
educadores dessa escola, para não enfrentar a situa- gem. Para a realização desse trabalho foram introduzi-
ção? Será que, assim como os educadores e alunos, não
estariam atravessados pelos modelos da instituição? dos novos referenciais teóricos e vivenciais atendendo
às necessidades de um grupo de pessoas que já vem
Diante de tal fato, o que poderiam fazer para que atuando profissionalmente.
também não aprisionassem suas possibilidades de olhar
e de intervir? Encontrei novos referenciais teóricos na psicologia
social, a partir dos estudos de Ciampa (1998). sobre a
Considerações finais construção da identidade dos indivíduos a partir de
As propostas atuais de educação não podem pres- suas histórias de vida. Destaquei os seguintes pontos
cindir de um trabalho que considere as perspectivas para dar continuidade ao meu trabalho:
objetivantes e subjetivantes dos processos de aprender.
42 43
Identidade é atividade social
Identidade é metamorfose
Num primeiro momento temos a tendência de ver a Como já vimos, identidade é história. Isto nos p~r­
identidade como um traço estatístico que define o ser. mite afirmar que não há personagens fora de uma h~s­
Como algo que aparece isoladamente, imutável, estáti- tória, assim como não há histórias (tratando-se da his-
co. Talvez por essa razão nossas modalidades de apren- tória humana) sem personagens.
dizagem são por vezes percebidas como algo que não
pode ser modificado. Os atores que encarnam os personagens se trans-
formam na medida em que os vivenciam. Evitar a tran:-
1

Por outro lado, interiorizamos o que os outros nos formação é impossível. Para compreender essa questao
atribuem de tal forma que acaba se tornando algo nos-
basta acompanharmos o movimento da natureza: as
so. Na verdade, a tendência é a de nos predicarmos coi-
mudanças de clima, a deterioração dos alimentos, etc.
sas que os outros nos atribuem. Por isso representa-
mos a identidade usando com freqüência substantivos Assim, como afirma Ciampa (1998). id_ent~dade é
e adjetivos - fulano é lavrador- em vez de fulano lavra a metamorfose, é movimento, é transformaçao, t:: n~ssa
terra. Algumas histórias de aprendizagem exemplifi- eterna busca de novo mundo de significados. E vida!
cam essa questão quando, por exemplo, o indivíduo se Nesse sentido, a identidade do psicopedagogo é
investe do papel esperado pelos outros. também metamorfose que se concretiza a cada m~m~r:­
Entretanto, é importante lembrar que o indivíduo to de uma forma especifica, dadas as condições histon-
não é apenas algo que lhe atribuem, mas também o cas e sociais. Seus modelos de ensinante/ aprendente
que faz. Um personagem se constitui pela atividade, também vão ressignificando, se transformando ...
111
compreendendo-se a identidade como a possibilidade
li
de pensar e ser, ou seja, de fazer. Sendo assim, a auto- Identidade é uma questão política e integradora
ria de pensamento se constrói também a partir da ati-
vidade no mundo. Nas condições dadas o que merece ser vivido? Que
E se o indivíduo não é apenas algo, mas o que faz, possibilidades reais devem ser favor:cidas? Que c~n­
o fazer é sempre atividade no mundo em relação aos dições necessárias devem ser produzidas? Que desejos
outros, o indivíduo não deve então ser visto isolada- desejar? Que trabalhos trabalha~? Que trabalhos de-
mente mas como um em relação. No caso das modali- sejar? Que desejos trabalhar? (Ciampa, 1998). _
dades de aprendizagem, trata-se da construção das Para Ciampa, só uma ampla discussão e reflexao
modalidades do aprendente em reciprocidade às mo- sobre 0 que merece ser vivido, acompanhad~ de conhe-
dalidades do ensinante. cimentos teórico/práticos, e no caso do psicopedago-
É nas e pelas novas relações sociais em que o indi- go, eu acrescentaria: e das possibili_d~des de resga~ar­
víduo está envolvido que a identidade se concretiza e mos e ressignificarmos nossas histonas_de a~rend12a­
1
vai se concretizando. gem, nos levará a formular projetos de identidad~.
Sob esse ponto de vista, a questão da identidade em Além disso, é preciso considerar que es~es projetos
geral e a do psicopedagogo em particular devem estar não seguem apenas a linha ?e d~senvolvrn:e~t~ ~o~
ancoradas nas questões científicas, mas devem ser processos sociais, mas tambem tem uma histona i:?
construídas a partir de uma ação contextualizada terna, a história de cada um. Essas várias fac~tas s_a_o
indissociáveis e se integram nos processos de identifi-
li
1 44 45
cação. Assim, a construção da identidade do psicope- Aprende-se a vida inteira e por todas as formas de
dagogo depende da história interna de cada um e do viver. E como diz Frei Leonardo Boff prefaciando o livro
contexto onde se produz. de Assmann (1998):
"... Processos cognitivos e processos vitais se en-
Identidade é uma questão de aprendizagem contram. São expressões da auto-organização,
da complexidade e da permanente conectivida-
Precisamos sempre nos perguntar quem queremos de de todos com todos em todos os momentos e
ser e, a partir da possibilidade de perguntar, faz-se pre- em todas as etapas do processo evolucionário.
sente a possibilidade de aprender. Assim, a construção Conhecer é um processo biológico. Cada ser,
da identidade também implica em aprendizagem. principalmente o vivo, para existir e para viver
Quando perguntamos quem queremos ser, essa per- tem que se flexibilizar, se adaptar, se reestrutu-
gunta sem uma resposta prévia pode nos assustar. rar, interagir, criar e co-evoluir. Tem que fazer-
se um ser aprendente. Caso contrário morre.
Entretanto, como profissionais psicopedagogos, não Assim ocorre também com o ser humano".
podemos nos esquecer que a força da psicopedagogia é
justamente poder perguntar sobre seu próprio objeto,
porque a psicopedagogia trata do aprender, e aprender Bibliografia
implica em perguntar e perguntar-se. ASSMANN, H. Reencantara educação. 2ª ed., Petrópo-
Parece então necessário e saudável que a psicope- lis: Vozes, 1998.
dagogia mais do que outra área de conhecimento este- BOFF, L. A águia e a galinha: Uma metáfora da condi-
ja sempre aberta para perguntar sobre sua identidade, ção humana. 22ª ed., Petrópolis: Vozes, 1997.
considerando os conhecimentos já construídos, o pre-
1 sente e o futuro, enfim, o desejo de se transformar, de CIAMPA, A. da C. A estória do Severino e a história da
continuar crescendo. Severina: Um ensaio de psicologia social. 6ª ed., São
Paulo: Ed. Brasiliense, 1998.
E também, porque acima de qualquer coisa, como
diz Ciampa (1998), essa é a tarefa que nos cabe como COELHO, C. Conversando com Maud Mannoni. Re-
humanos: a autoprodução do homem. A busca de sig- vista E.PSI.BA. Buenos Aires: n. 2, s.d.
nificados, a invenção de sentido, enfim a própria vida ... FERNÁNDEZ, A. A inteligência aprisionada: Aborda-
A partir do contato com esses novos conhecimen- gem psicopedagógica clínica da criança e suafamília.
tos, sinto-me mais encorajada a prosseguir. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1990.
O trabalho com os Grupos de Formação de Psicope- -. A mulher escondida na professora: Uma leitura psico-
dagogos na Relação Ensino/Aprendizagem continua, pedagógica do ser mulher, da corporalidade e da apren-
11
11
vai se construindo. A partir desse trabalho, das cenas dizagem Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1994.
vivenciadas pelas alunas, abre-se um espaço de resga- -. La Psicopedagogia y Las Psicopedagogas. Revista
te de minhas próprias histórias de aprendizagem, de- psicopedagogia - ABPp. n. 33, 1996.
sencadeando todo um processo de ressignificação de -. Os professores devem buscar a ressignificação de
meu processo de aprendente/ensinante. Um processo sua aprendizagem. Revista Fatio. Porto Alegre: n. 4,
de construir-me psicopedagoga, de poder perguntar e fev./abr. 1998.
1
perguntar-me - é a lei da complementaridade, o jogo
das interdependências. -. Tratamiento psicopedagógico didáctico: Um pilar
fundamental en la formación del psicopedagogo.
46 47
1
Introdução
Final de século! ... quantos desenvolvimentos e apren-
dizados! ... Quantos acertos, erros, tensões, ilusões,
conquistas e descobertas. Sem dúvida, ao lado de tan-
tas experiências vividas, crescem as expectativas fren-
te ao novo milênio. E o que é esse novo, pelo qual aspi-
ramos? Uma mudança que realize os nossos ideais?
Umjulgamento severo de tudo que não corresponde a
nossas lógicas, verdades, desejos? Ou o contrário,
uma fronteira que desconheça interdições?
A história da humanidade mostra que essa sempre
1 foi a forma como vivenciamos as oscilações dos mo-
mentos de mudança. São verdadeiras travessias entre
realidade interna e externa. Na impossibilidade de ana-
lisarmos os diferentes aspectos da totalidade, este tex-
11 to irá limitar-se a apontar alguns movimentos do sujei-
to frente ao mundo.
Nas questões teóricas e práticas, o pensamento, a
ação, o sentimento, as vivências do homem estão simul-
taneamente ligados ao que é real e diz respeito ao obje-
to, mas também ao que é ideal, e diz respeito ao sujeito.
j O desafio constante do conhecimento que, desde
épocas longínquas, vem mobilizando o pensamento hu-
mano das mais variadas maneiras é a grande tríade
Deus/homem/mundo.
Por isso a impossibilidade de abordar o desenvolvi-
mento e o aprendizado sem valorizar a complexidade
do homem e de suas relações de conhecimento em seu
contato com a natureza e com outros homens. O movi-
1 mento que favorece o pensamento e privilegia a liber-
51
dade de especulação também nos faz deparar com a in- reconhecimento de que o sujeito tem uma história pes-
certeza e a imprecisão, o que torna o ato de conhecer soal construída através das relações que estabelece com
inevitavelmente conflituoso. as outras pessoas ao longo da vida, de seus esquemas
Embora as questões pareçam isoladas, inte- de assimilação e acomodação, alicerçados em normas
gram-se a um todo, que dividiremos em três partes. e valores pertinentes ao meio social.
. ~ª.primeira, será abordada a travessia no tempo - A triade sujeito que ensina, sujeito que aprende e o
h1stona da humanidade-, as implicações das relações conhecimento expressa o princípio norteador do para-
passado/presente/futuro nas questões objetivas e digma, que tem sido utilizado como subsídio para a re-
subjetivas (ser ..,.saber). visão de ementas, programas, procedimentos de ensino
Na segunda parte, será abordada a travessia no de- e avaliação em cursos de psicopedagogia e educação.
senvolvimento e aprendizado do homem - história do Esse paradigma também foi utilizado para fundamen-
sujeito frente ao novo conhecer-, a função das infor- tar pesquisas em educação resultando, por exemplo,
mações como mobilizadoras do aprendizado, em rela- em uma dissertação de mestrado defendida na Univer-
ção às questões do limite e possibilidades nas relações sidade Estácio de Sá, por Martha Isaura Taboada.
objetivas e subjetivas.
Na terceira parte, abordaremos a travessia na edu- 1. Desenvolvimento das partes
cação - a história de uma equipe transdisciplinar e de
s_u~s relações com as questões de objetividade e subje- 1 ªParte: Travessia no tempo - História da humanidade
11
tividade na produção do conhecimento. A unidade se-
rá trabalhada com a referência do paradigma Luz Bor- Se unirmos as expectativas sobre o novo milênio à
li ges ( 1994) de minha autoria. compreensão do passado da humanidade, ainda tão
influente, o resultado será um confronto entre teoria e
Vale registrar e clarificar que o termo paradigma, prática, natureza humana e ideologia, sujeito (único) e
empregado ao longo do texto, foi usado no sentido de mundo (todos os seres). Perceberemos que a dimensão
modelo, padrão ou exemplo.
da totalidade não elimina a perspectiva de limitação,
Nos cursos onde utilizo o paradigma viso colocar uma vez que jamais será possível apreender todos os
em discussão uma nova maneira de viver as relações progressos nas diferentes áreas de conhecimento.
de ensino/ aprendizagem no cotidiano, nas quais emer- Na verdade, quanto mais presenciamos a evolução
ge o caráter trans-formativo e projetado, a elaboração das ciências e tecnologias, mais urgente se torna a ne-
do currículo e as diferentes formas de avaliação. O pro- cessidade de buscarmos formas de encontrar unidade
cesso de construção e produção do conhecimento pres- na grande complexidade da diferença.
supõe um movimento dialético, envolvendo uma rede
de relações e trocas entre a realidade interna e a reali- Terá esse desejo tão subjetivo algo a ver com as ne-
dade externa dos sujeitos ensinantes e aprendentes. cessidades da nossa época? Será tão facilmente en-
Desse modo, estão em destaque o sujeito (seja ele pro- contrado na objetividade? De certa forma, a volta de
fessor ou aluno) diante do objeto do conhecimento, com questões filosóficas, trazidas direta ou indiretamente
suas possibilidades e dificuldades; e o conteúdo, com o nas questões éticas tão necessárias para maior com-
propósito i;.ão só de informar o patrimônio cultural, preensão da Lei 9.394, em vigor, exige que mudemos o
mas tambem de possibilitar novas leituras sobre o meio de adquirir as informações cientificas e tecnológi-
mundo que se amplia cada vez mais. A ênfase está no cas e, especialmente, que mudemos a matriz de pensa-
52 53
menta na nossa formação, cujo predomínio cartesiano O progresso da realidade reproduzida em sua apa-
favoreceu a especialização e não a globalização. Esse rência por meios puramente mecânicos, por exemplo,
movimento lógico, formal, deve dar lugar a um outro, desafiou os pintores a procurarem, em si mesmos, as
dialético, capaz não apenas de criar uma síntese, mas leis que doravante regeriam seu trabalho. Não estavam
de transcender os opostos, única forma de apreender a mais aprisionados ao que os olhos ditavam.
realidade enquanto totalidade. Aliás, essa questão está longe de ser anacrônica. Se
Somente um pensamento flexível percebe que nem a hoje o cérebro humano não pode competir com a~ tecno-
objetivação de dados e fatos nem a subjetividade desliga- logias avançadas no que diz respeito à repr_oduçao e_ar-
da deles estabelece as correlações para apreender uma mazenamento das rápidas mudanças das informaçoes,
determinada época, ou circunstãncia e que a realidade cabe afirmar que se trata de uma mudança de valores.
deve ser valorizada, porque traz a possibilidade de se ter Para os cientistas, o advento da modernidade
sonhos, o que significa possibilidade de esperança. não se traduziu apenas por uma mutação radical da
A seguir, passarei a refletir, com alguns autores, imagem do mundo, mas também por um novo ques-
questões ligadas aos movimentos de objetividade e sub- tionamento sobre o fundamento das ciências e so-
jetividade, tanto no eixo horizontal (humanidade), bre a constituição de disciplinas centradas na aná-
como no eixo vertical (homem). lise das representações.
Farei, com Delacampagne (1997), algumas reflexões Se a idéia de representação ainda é fundamental,
no eixo humanidade. Segundo ele, no nascimento da podemos dizer que, nesta virada do século XX para o
modernidade, período entre 1880 e 1914, os progres- XXI, com todos os progressos alcançados, a cris~ da
sos da tecnologia, medicina e educação levavam a ~ mudança de valores não está terminada, e a maturida-
li acreditar que as luzes triunfariam. No entanto, prece- de depende ainda de muita reflexão, análise, pesquisa
li dida pela vanguarda dos seus pensadores e criadores, sobre a relação ensinante/aprendente no processo de
a Europa, apesar de dominar militar e economicamen- educação e saúde.
te o resto do mundo, foi obrigada a entrar em uma nova Vejamos, por exemplo, o artigo 2° da LDB (9.394/96):
li era, "a modernidade".
"A educação, dever da família e do Estado, inspi-
li Do Renascimento até o fim do séc. XIX, as produ- rada nos princípios de liberdade e nos ideais de
ções da arte e do saber não eram consideradas como solidariedade humana, tem por finalidade o ple-
simples construções mentais, mas como representa- no desenvolvimento do educando, seu preparo
ções fiéis de uma realidade que lhes preexistia. Embo- para o exercício da cidadania e sua qualificação
ra muitos contestassem o caráter "natural" desses sig- para o trabalho".
nos, para a maioria, eles eram confiáveis, o que signifi-
É possível avaliar as necessidades individuais _(pro-
cava que nossas linguagens eram verídicas e nosso es-
pírito estava em pleno acordo com o mundo. cesso dos educandos) sem assumir os compronnssos
da formação de um cidadão? Os conteúdos escolares
Se a lógica da representação, no sentido clássico do pretendem ser mobilizadores dos eixos sujeito-soci~­
termo, era apenas uma construção do espírito e não a dade-cultura para atender às expectativas dos conteu-
expressão de uma estrutura "natural" e imutável, ou- dos na reforma de ensino, designados como: "conjunto
tros tipos de construção deviam ser possíveis, outros de conhecimentos ou formas culturais cuja assimila-
usos dos signos podiam ser imaginados, outras regras ção e apropriação pelos alunos são consi~er.ada~ :s-
do jogo, elaboradas. senciais para o seu desenvolvimento e soc1ahzaçao ·
54 55
No entanto, cabe afirmar que há, hoje, uma ligação Damásio inicia seu livro com as seguintes palavras:
entre esta idéia e a aprovação automática. Esta confli- "Comecei a escrever este livro com o intuito de propor
tuosa questão da inclusão necessitará, como opção que a razão não pode ser tão pura quanto a maioria de
responsável, maiores questionamentos de como for- nós pensa que é ou desejaria que fosse, e que as emo-
mar educandos para o atendimento da lei em questão. ções e os sentimentos podem não ser de todo uns intru-
Existe, de fato, uma liberdade para escolhas de cur- sos no bastião da razão, podendo encontrar-se, pelo
rículos no sistema educacional atual, assim como contrário, enredados nas suas teias para melhor ou
existem informações substanciais para clarear teori- pior". Por ser o autor neurologista, a relação que faz en-
camente a exigência nacional traduzida pela lei. Da tre emoção e razão explicita que a educação não deve
mesma forma, os parâmetros curriculares sâo ricos mais supervalorizar ou negar a importância das ques-
em relação às questões da objetividade e da subjetivi- tões orgânicas no desenvolvimento e aprendizado.
dade. No entanto, com que matriz de pensamento ope- Realmente, enquanto as primeiras séries do ensino
ramos? Como vivenciamos a mudança? valorizam atividades escolares que levam ao cresci-
Vejamos, por exemplo, a distinção feita para a apren- mento, as informações sistematizadas pelas ciências
dizagem de fatos, dados e conceitos. Enquanto fatos e vão requisitando a lógica da razão, sem se preocupar
dados são apreendidos por memorização, ou seja, a com as relações do corpo nas produções. Torna-se, por-
partir de uma atitude passiva, os conceitos requerem tanto, difícil relacionar o movimento (travessia) do
uma atitude ou orientação mais ativa, uma vez que, mundo interno com o mundo externo.
para construir sua aprendizagem, o aluno deve ter au- Por mais que se forje um discurso de valorização dos
tonomia na definição de seus objetos. ~ sistemas e, portanto, da complexidade do ato de racioci-
As ideologias de um passado histórico ainda muito nar, continua difícil a operacionalização efetiva para ven-
recente não criaram um profissional com perfil para cer conceitos e preconceitos em relação aos trabalhos
atender às exigências das novas profissões e circuns- mais motores, psicomotores, afetivos e intuitivos.
tâncias no trabalho. Pede-se aos ensinantes com for- É importante verificar como estabelecer relações
mação predominantemente reprodutora que sejam cria- entre a objetividade e subjetividade nos gestos que
tivos, que atendam a um novo modelo de aluno, antes, constituem verdadeiras travessias. São desafios, ritos
de serem atendidos na necessidade de reformular sua de passagem - a entrada na escola, na 5ª série, no 2º
formação. O resultado desse descompasso são muitas grau, na Universidade-, até a finalização do processo
acusações e avaliações rigorosas para poucas alterna- oficial de aprendizagem. A vitória nessa travessia sig-
tivas de mudança. nifica o início de uma vida profissional e a entrada defi-
Esses vícios da nossa matriz de pensamento foram nitiva para o mundo adulto.
captados por Damásio (1996), que frisa a necessidade Todos esses ritos são fundamentais, principalmen-
de operacionalizarmos mais trabalhos que mobilizem te se, através deles, alcançamos um aluno cada vez
a construção do ser, do saber, do desejar, para se al- mais ativo ~ capaz, com seus esquemas internos, de
cançar a cidadania. A complexidade do ato de apren- intercambiar com as experiências externas; livre ~
der, que une dimensões tão distintas (orgânicas, cog- para ser e expressar-se dentro da sua maior verdade,
nitivas, afetivas, inconscientes, sócio-culturais) preci- sem alienar-se dos sistemas de leis e regras que deli-
sa ser reconhecida e mobilizada como facilitadora de mitam seu poder; autor, por não vivenciar o limite alie-
um aprendizado mais comprometido com o homem nante, mas estruturante, que lhe dá autonomia e cria-
56 57
1
tividade para ressignificar o passado, o presente e o fu- - em relação ao cérebro, o corpo, em sentido estri-
turo com um sistema de valores que o faça passar da to, não se limita a fornecer sustento e modulações.
onipotência para a produtividade. Fornece também um tema básico para as representa-
É o perder-se para se encontrar. Será a transfor- ções cerebrais.
mação, a mudança, podendo ser único no mundo No capítulo Uma paixão pela razão, Damásio co-
sem ser alienado. menta a famosa frase de Descartes: "Penso, logo exis-
Ao lermos o livro O eTTo de Descartes, de Damásio to", e diz "que o mesmo sugere que pensar e ter cons-
(1996), encontramos uma citação que poderá clarear ciência de pensar são os verdadeiros substratos da
muitas das nossas questões nesta rede das diferentes existência, e que, como sabemos que Descartes via o
dimensões no ato de aprender: ato de pensar como uma atividade separada do corpo,
1
"A perspectiva de que o corpo, tal como é repre- esta afirmação celebra a separação da mente, a coisa
sentado no cérebro, pode constituir o quadro de do pensamento, do corpo não pensante, o qual tem ex-
referência indispensável para os processos neu- tensão e partes mecânicas. Portanto, a separação das
rais que experenciamos como sendo a mente. operações mais refinadas da mente para seu lado, e da
estrutura e funcionamento do corpo para outro".
As interpretações que fazemos do mundo; os pen-
samentos que construímos com a subjetividade, Em relação às questões de objetividade e subjetivi-
parte essencial de nossas experiências, não ad- dade na relação Deus-homem-mundo, temos que tra-
vêm apenas de uma realidade externa absoluta, balhar muito ainda para mobilizarmos nossas matri-
mas do nosso próprio organismo". ' zes de pensamento.
Nesta virada do século, o maior desafio parece ser a
Colocam-se alguns desafios: como integrar as leis da mudança na forma de pensar, pois a complexidade de
natureza humana e as leis da própria natureza e coorde- sistemas só poderá ser apreendida na busca da unida-
ná-las com os saberes das diferentes ciências? Como in- de pela diferença.
tegrar as leis em vigor e as leis que transcendem nossa
lógica, a fim de encontrar sentido para nossos questiona- Mesmo já tendo dado saltos bem maiores em rela-
mentos nas relações ensinante/aprendente? ção aos objetivos, continuamos usando o modelo car-
tesiano nas nossas avaliações. Essa diferença pode ser
Algumas afirmações da complexidade destes siste- uma das razões da impossibilidade de harmonizarmos
li mas diferenciados podem nos auxiliar nos novos temas nossos discursos aos nossos sentimentos e ações.
li em relação ao desenvolvimento e aprendizado. Vejamos:
Se nossos sentimentos dependem de um delicado sis-
- o cérebro humano e o resto do corpo constituem tema, cujos múltiplos componentes estão indissociá-
um organismo indissociável; veis da regulação biológica e se a razão depende de sis-
- o organismo interage em conjunto com o ambiente; temas cerebrais específicos, alguns dos quais proces-
11
- as operações fisiológicas (que denominamos de sam sentimentos, pode-se concluir a existência de um
mente) derivam desse conjunto estrutural e funcional elo anatômico e funcional entre razão e sentimento,
e não apenas do cérebro; entre sentimento e corpo. Isso equivale dizer que um
- os fenômenos mentais só podem ser compreendi- impulso pode originar-se no cérebro, atravessar ou-
dos no contexto de um organismo em interação com o tros níveis do sistema nervoso e, finalmente, emergir
ambiente que o rodeia; como sentimento ou uma predisposição inconsciente
que orienta tomadas de decisão. ·
58 59
'-----~...1' 1
O caminho percorrido, pela razão, da prática à teo- para o diferenciado. Na verdade, é um movimento es-
ria, baseia-se, provavelmente, nesse impulso natural, truturado, pois a organização da ação se dá do modo
que teria a ver com o domínio das técnicas unido ao mais simples para o mais complexo.
verdadeiro movimento de arte. Entre os 2 e 8 anos, o domínio da representação
Essas hipóteses, cada vez mais estudadas no nosso simbólica, unido à inteligência representativa, possi-
momento histórico, correm perigo de ainda serem do- bilita as noções de conservação. Os vínculos com o ou-
minadas por uma matriz de pensamento que dicotomi- tro e com o mundo começam a ser estabelecidos em um
za, já que achamos impossível valorizar questões livres movimento organizado: a experimentação inicial enca-
da dimensão orgânica. Ao contrário. As questões da minha-se para outra, mais evoluída e o que é diferenci-
objetividade e subjetividade são fundamentais nas re- ado passa a ser integrado na construção do real. Para
lações de desenvolvimento e aprendizado do sujeito isso, é necessário um período de separaçâo.
frente ao mundo. Por isso, a necessidade de oferecer, Nesse período, que compreende o final da infância e
nas nossas intervenções, espaço criativo para que se o início da pré-adolescência, inicia-se o raciocinio abs-
estabeleçam melhores trocas nas fontes de qualquer trato, o que permite trocas e relações com o outro e
i conhecimento - seja ele conteúdo escolar ou do cotidi- com o meio. Mais descentrado, o sujeito busca a inte-
ano, uma trama para maior harmonia entre o sujeito gração. Para relacionar-se com o mundo, ele estabele-
cognoscente e o sujeito desejante. Isso é fundamental ce diferenças, faz escolhas, cria, se assume como autor
tanto para a saúde como para a educação. de seus pensamentos e realizações.
No final da pré-adolescência e na adolescência, a
2ª Parte: Travessia no desenvolvimento e aprendizado lógica formal vai-se constituindo no pensamento hipo-
do homem tético-dedutivo, que torna possível a capacidade de
Construção e ressignificação do ser-sujeito frente abstrair. Escolher já não é suficiente. E necessário
ao conhecimento doar, sair de si, interagir com o outro e com o mundo
para retornar modificado.
A aprendizagem e a ação no mundo só são alcan-
çadas por um sujeito cujas variáveis orgânicas - cog-
nitivas, afetivas, sócio-culturais, transcendentais - Uma proposta de uma psicopedagogia do
estejam integradas. Constituído por essas variáveis e desenvolvimento e aprendizado
pelos princípios de atividade, liberdade, autonomia e
criatividade, o sujeito promove o processo de constru-
ção da cidadania. Neste período, é fundamental a hierarquia de
saberes. Menos conflituado, com regras mais
O sujeito integral age, reage e interage com o co- internalizadas, o sujeito poderá fazer escolhas ,
18 a 24anos
nhecimento, sistemático e/ou assistemático; apreen- levando em conta ganhos e perdas. Dominando
dendo seu significado e/ ou ressignificando-o ao longo o pensamento formal dialético, poderá integrar
do processo de desenvolvimento. melhor os riscos nas opções (constituição de
+Doação nova família, escolha profissional ou religiosa)
No início desse desenvolvimento, a apreensão do que ficarão presentes nos projetos de vida. Nes-
+Cultura sas grandes opções, será necessário também
mundo se dá a partir dos sentidos, da percepção, da fi-
xação, enfim, dos contatos com o meio externo. Atra- haver prazer na doação. Sair de si mesmo para
buscar a criatividade.
vés da ação imitativa, o sujeito sai do indiferenciado
60 61
Período bastante conílituado entre eu - outro - Ao longo do processo de desenvolvimento e apren-
meio social - realidade - jantasia. Pode sair do dizado, o indivíduo evolui gradativamente em comple-
12al7anos mundo pessoal e encontrar mais a realidade xidade, chegando à lógica dialética. Em cada etapa de
fora dele. Afetivamente, porém, precisa estabe- crescimento, vivencia, de maneira mais ressaltada, os
lecer relações, nem sempre por semelhanças,
mas , muitas vezes, por diferenças. Precisa optar diferentes processos naturais de indiferenciação, dife-
+Relações e nem sempre tem tranqüilidade no jogo da ra- renciação, separação e integração.
zão e da emoção. Como integrar família, escola, É, portanto, acompanhando a construção, signifi-
+Sociais
amigos, grupos sociais nesse processo de auto-
nomia? Para levantar hipóteses é preciso com- cação e ressignificação do sujeito, que podemos com-
prová-las. É difícil integrar mundo interno e ex- preendê-lo melhor no seu constante vir-a-ser.
terno. Precisa saber perder, para ganhar. Penso que o paradigma que elaborei (cf. acima, p. 52)
Período predominantemente objetivo, pelas exi- pode favorecer as delimitações entre o papel da família,
1
gências do meio. É mais cobrado pelo limite e de- da escola e da empresa em uma visão mais preventiva.
07a11 anos ver; o que gera importantes conflitos entre <lese-
jo e dever. Precisa contatar mais livremente com Cabe decidir com que didática trabalharemos es-
as características do objeto; não só pela aparên- sas questões, ou seja, definir a abordagem fundamen-
eia ou pela fantasia , mas pelos elementos que o tal para buscar os esquemas de assimilação frente ao
+Trocas formam. Precisa do conceito para satisfazer suas
' + Cognitivas interrogações, precisa ir separando quem é ele, conteúdo. É preciso sair do indiferenciado para o dife-
o outro, a escola, a família, o mundo. Precisa renciado do outro.
compreender-se e compreender os outros. Tarefa do ensino: ensinar conteúdos e ensinar a pen-
I! As leis determinam limites que proporcionam a sar (Bruner e Piaget). O conteúdo deve estar contextuali-
saída do egocentrismo para o prazer de descobrir
mais coisas no mundo, embora muito ainda pe-
zado e relacionado com o sujeito - aqui e agora - pois é
03a06anos
las fantasias e o fazer-de-conta. Um exercício essa a possibilidade de valorizar o que é o sócio-cultu-
que transita entre momentos agradáveis e desa- ral, o que é do sujeito e a mediação (Vygotsky). É impor-
gradáveis. Continua armazenando experiências, tante também o estudo de certas variáveis: cognitivas,
+Vínculos sensações, vínculos positivos e negativos no seu
psiquismo. Vai da aparência do objeto para a afetivas, orgãnicas, sócio-culturais, inconscientes. É tam-
+Afetivos bém indispensável a avaliação. Emerge o ECRO (Esque-
fantasia e vice-versa, diferenciando melhor o que
é dele do que é do outro. Abandona os simples ma Conceituai Referencial Operativo de Pichon Riviêre)
atos reflexos por mais atividade nos desejos.
Torna-se menos dependente, mais determinado.
individual, sem a preocupação com o acerto, mas com o
saber do sujeito. É a valorização do assistemáiico.
Período predominantemente indiferenciado fren-
O a 02 anos te ao mundo: o contato do sujeito com o mundo No Momento de diferenciação, para apropriar-sedes-
1 se dá de acordo com o desenvolvimento do seu se conteúdo fora dele, o sujeito se depara não só com
sistema nervoso. Abandona os atos reflexos que
o protegem. Suas ações ainda são muito deter-
regras e limites do próprio conteúdo, como com as pró-
+Contactos minadas pelas necessidades do próprio orga- prias expectativas e as do meio sócio-cultural. É im-
+Orgânicos
nismo, processo muito dependente do que lhe portante valorizar a ciência, o progresso, o saber siste-
proporciona prazer imediato. Passivo em dife- matizado, que também estão sujeitos à mudança. É a
rentes formas de comunicação, mais confundi-
do, mais simbiótico. valorização do sistematizado.
Como lidar com o conteúdo? A técnica de grupos
operativos no ensino pode ser uma forma de entrar em
contato com os ECROS individuais (Pichon e Vygotsky),
62 63
1
1
uma ótima maneira para que outro desenvolva melhor No contexto desse movimento dialético, sera im-
a zona de desenvolvimento proximal presente nos portante trabalhar em corresponsabilidade - sujeito -
processos de aprender, facilitando o aparecimento de família - escola - comunidade - terapeuta. Para acom-
suas potencialidades. panhar o novo, é preciso que possamos também ser ca-
1
1 Se o conteúdo for dado de forma pronta, somente pazes de mudar. Estarão a escola e a família prepara-
1 com aula expositiva, sem mais comentários, não pode- das para isso? Ou todos os sintomas deverão ser entre-
mos saber como o outro está aprendendo, como está se gues aos especialistas? Raciocínios como esses osci-
dando a passagem do princípio do prazer para o princí- lam sempre entre tudo ou nada , embora a lógica for-
pio da realidade (Freud). Diferenciar o que é meu e o maljá tenha dado espaço, há muito tempo, para a lógi-
que é do outro; um processo de separação- acomoda- ca dialética.
ção - saída do narcisismo. Saindo das simples regras Parece, porém, que, frente a essas questões, mais
externas para a internalização de regras (Piaget), po-
der ser livre. É um processo de avaliação. do que as crianças, mais do que os próprios professo-
res, todos os educadores são convidados, por motivos
No Momento de separação, o conteúdo deve ser financeiros e pela desvalorização do país, a repetir difi-
analisado, separado, ressignificado. É um período pa- culdades. Que pelo menos a psicopedagogia não venha
ra ir encontrando respostas mais adaptativas. O erro trazer mais um profissional para negar outros, mas
sinaliza como está o processo do aluno para o saber. um especialista que creia na força do conhecimento,
Na avaliação, identifico melhor as variáveis que estão
trazendo dificuldades. na formação do ser humano.
Não se trata de testar para encontrar erros, mas
para acompanhar e compreender erros. Aqui fariam 3 ª Parte: A prática docente no curso de psicopedagogia
sentido as aulas de recuperação ou reflexões para per- A preocupação que dominou a prática de coordena-
ceber como lidar com os repetentes. Não é só o aluno dores* e professores do Curso de Especialização em
que repete, às vezes, pode-se estar simplesmente re- Psicopedagogia na Educação, oferecido na Universida-
petindo os conteúdos. É um período de estudar, apro- de Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, foi provocar um
fundando o conteúdo, de acordo com a complexidade movimento interno de reconstrução do conhecimento,
do assunto. É um período de criar, pesquisar nas fon- instrumentado com a especificidade de cada área de
tes, buscar autoridade, autonomia. estudo, o repensar do aluno sobre a sua prática.
O sujeito produzindo na e para a cidadania, inte- Desde o irúcio do curso, a disciplina de psicologia so-
grando desejo e dever (prazer/regras), vive o momento cial - teoria do vínculo, a busca da reflexão de cada um
1 de integração/produção. sobre seu eu pessoal e seu eu profissional - que caracte-
11
rizam o ECRO - levava os participantes a olharem suas
Mais importante do que o saber ser legalizado, é
expectativas, possibilidades, habilidades e limitações.
autorizar-se a saber. Marx fala de conscientização e
não alienação; relaciona trabalho e produção. Era o primeiro movimento, tocando a intra-subjeti-
vidade, que cada um empreendia para clarear o porquê
Dentro desse contexto, a nota não é uma produção
alienada, mas uma produção ressignificada com o po-
der-ser-autor. Poder criar.
Portanto, avaliar, dar notn, valorizar o processo e produ-
• Profas . Aglael Luz Borges e Magda Anachoreta Alves .
to do sujeito passa a ser um grande desafio para a escola.
64 65
de estar ali, quem era e o que esperava alcançar. Vimos Apesar das diferentes situações que as estagiárias
o esmiuçar de fazeres pretéritos, a assunção de compe- criavam para apresentar e trabalhar este ou aquele en-
tências e o reconhecimento da falta, verdadeiras leitu- foque teórico e , até mesmo, para aplicar os estudos so-
ras de histórias e vivências em um diálogo entre essên- bre o paradigma que eu vinha desenvolvendo , as mu-
cia e existência. danças não se tornavam visíveis nas atitudes e postu-
Conforme nos aprofundávamos nas idéias de Pi- ras dos professores regentes das turmas do NAALF
chon Riviêre (1991) da teoria de campo e de outros teó- (Núcleo de Apoio à Alfabetização). Isso significava que
ricos implicados na estrutura da teoria do vinc1:1lo, o "novo" que levávamos para as crianças pouco mobili-
quer em atividades de grupo operativo, quer nas leitu- zava, em essência, mudanças internas nos professo-
ras e debates, subjetividade e objetividade se entrela- res regentes. Nada indicava uma escuta mais sensível
çavam no jogo dialético da construção dos sujeitos. 1
às questões do ensinar e aprender.
Ao longo dos meses, o conteúdo das disciplinas A supervisão realizada com as alunas no curso de
funcionou como instrumento, e os professores, como psicopedagogia na educação constituiu um marco ava-
mediadores desse processo. liativo que sinalizava a conveniência ou não de o está-
Na grade curricular, os estágios supe_rvisionad_os gio permanecer dentro do modelo até então instituído
em psicopedagogia 1 e II e a disciplina de meto~os e te~­ e, ao mesmo tempo, apontava para as perdas por elas
nicas de pesquisa em psicopedagogia, sob a onentaçao sentidas quando intentavam instrumentalizar a práti-
da Profa. Lina Cardoso Nunes, eram oferecidos no últi- ca do professor regente daquele núcleo.
mo módulo do curso. Esse momento significava, para o Trabalhávamos as idéias que desejávamos que che-
aluno, entrar em contato com a realidade objetiva, gassem ao professor sem, no entanto, encontrar eco no
senti-la nas suas competências e necessidades, pen- desejo do regente das turmas do NAALF. As estratégias
sar sobre ela e propor estratégias de ação. Sentir, pen-
implementadas se perdiam no "que fazer" do cotidiano
sar e agir psicopedagogicamente, desvelar-se em for-
de sala de aula, funcionando mais como "supostas au-
ma de prática pedagógica, no tecido monográfico cons-
las de demonstração" (comentário de uma estagiária) -
truído pela pesquisa. Essas foram as experiências a
visão alienante que não produzia um retorno significa-
que submetemos nossos alunos.
tivo pelos sujeitos/professores, alvo de nossas trocas.
De 1989 a 1993, o estágio supervisionado em psi-
copedagogia na educação, do curso de psicope?agogia Cabia, então, uma pergunta: "as dificuldades esta-
da UNESA, vinha se realizando no espaço do Nucleo de vam instaladas só no pólo do professor regente ou tam-
Apoio à Alfabetização, que funcionava no campus d.a bém os pós-graduandos estariam vivenciando dificul-
universidade e atendia crianças que apresentavam di- dades na produção de seus textos? Deslocar para o ou-
ficuldade de aprendizagem nas séries iniciais do 1º tro a inadequação da nossa prática, às vezes, encobre
grau. Vinham de escolas da comunidade, eram organi- um olhar sobre nós mesmos.
zadas em turma por séries, cada uma tendo uma pro- Esses alunos pós-graduandos levantavam ques-
fessora-regente. tões interessantes, oportunas, vindas das observações
As alunas que se especializavam em psicopedagogia na que realizavam e produziam, grupalmente. A produção
educação viviam momentos em que as questões teóri- grupal marcava um nível muito bom de reflexão e de
co-práticas eram alvo de estudos e de aplicação continuada. pesquisa em várias fontes . Porém, quando esperáva-
66 67
mos que, individualmente, cada pós-graduando pro- rentes às variáveis presentes no processo de produção
duzisse seus textos, sua busca mais compromissada do conhecimento, relacionadas aos conteúdos curri-
com a científicidade, poucas monografias se registra- culares, aos valores e à cidadania.
vam na universidade, comprometendo até mesmo a A partir desses estudos e das reflexões que a práti-
obtenção do certificado de conclusão do curso. ca do estágio supervisionado desencadearam, vários
Talvez esses fatos denunciem que o movimento in- caminhos foram pensados para redefinir o estágio,
dividual de ressignificação, tanto na prática como na atender~ ~orma~ã_o de professores do 1ºgrau, abrir ja-
alquimia de produzir um trabalho monográfico, ultra- nelas teonco-praticas que atendessem à competência
passa a simples reescrita, pois "escrever é uma atitude do professor, às questões da socialização do conheci-
totalmente pessoal, um processo complexo que articu- , mento p~icopedagógico na escola e à formação do sujei-
la os aspectos eminentemente pessoais, que são are- to pesqmsador e autor de seus próprios textos.
presentação, a memória, a afetividade, o imaginário Como inaugurarmos uma forma de trabalho que
etc." (Jolibert, 1992, p. 44). impunha ao estagiário escrever seus achados, esperá-
Talvez o trabalho em grupo tornasse essa busca de vamos que as produções monográficas fossem favore-
compor o próprio texto carregada de censura e medos, cidas por esse exercício de pesquisa.
embora reconheçamos que as trocas intragrupais, os Nesse sentido, entendíamos que, se transformás-
confrontos, a heterogeneidade de experiências têm uma semos a aprendizagem dos estagiários em um ato cria-
dimensão social e educativa muito grande. Onde esta- tivo, crítico, participativo, estaríamos convergindo esse
ria o ponto de equilíbrio? Que entraves impediam es- ato para a pesquisa, uma vez oue todo fazer era sub-
ses alunos de produzir seus textos? metido à análise da realidade e ~onfrontado com teori-
Ali poderia estar a chave para a solução de um pro- as de aprendizagem, resgatando o saber acumulado,
blema que não era só nosso, mas envolvia uma ques- desfazendo tendências reprodutoras de ensino.
tão mais ampla de formação do professor. Foi de gran- "Aprender, além do necessário sobretudo com ex-
de valor o encontro que realizamos ao final de uma ses- pediente de acumulação de informação, tem seu
lado digno de atitudes construtivas e produti-
são de estágio com os pós-graduandos e professores, vas, sempre que expressar descobertas e cria-
quando esses parceiros puderam relatar suas obser- ção de conhecimento( ... )" (Demo, 1996, p. 44).
vações e, ao mesmo tempo, proporem suas idéias.
"Cabia trazer as vozes desses tantos sujeitos. Na verdade, o que realmente as alunas tinham
Deixá-los falar com vistas a trazer as vozes de como pano de fundo girava em torno de três grandes
cada um, não como instrumento vazio, mas, questões: 1) pensar sobre o cotidiano do todo investi-
passando a entendê-los como expressão de suas gado e de cada um, individualmente; 2) trazê-los para
experiências vivas, presente no diálogo vivo" a reflexão de seus ECROS; 3) propor reflexões sobre o
(Meireles, 1996, p. 83). papel do professor.
Nessa época, eu apresentei "rascunhos" de Uma di- Essas metas maiores clarearam os posicionamen-
dática psicopedagógica e de Uma visão cunicular psico- tos dos estagiários, pois destacaram que, nas ativida-
pedagógica - Vivência transdisciplinarrelativos não so- des planejadas, haveria pontos significativos que deve-
mente ao sujeito que aprende, mas às questões refe- riam ser levados em consideração: "não é só o saber
que se constrói, mas há o ser que constrói o saber. No
68 69
momento do trabalho têm-se que trabalhar o ser hu- Os estágios que se seguiram a esses momentos ca-
mano" (aluna S.). "Queremos trabalhar com aquele racterizam-se por espaços interdisciplinares, benefici-
que não tem voz" (aluna M.G.). ados pela multiplicidade de linguagens dos pós-gradu-
Já naquele momento, o olhar do observador e parti- andos, enriquecidas pela aproximação realizada com
cipante da montagem do planejamento começava a per- outros sujeitos (pais, professores, crianças) durante 0
ceber que, no grupo, o processo de articulação de sabe- programa do estágio.
res em uns não estaria tão evidente quanto em outros - Todos seriam protagonistas na autenticação desse
era a pesquisa que se manifestava com um olhar mais fazer educativo, marcado pela riqueza da heterogenei-
fundo- "as pessoas não estarão na mesma sintonia e o dade da história de cada um, que não divide, mas com-
1 curso poderá não atingir de imediato o que queremos plementa.
fazer, entre o acadêmico e o não-formal" (aluna R.). Estava lançado o desafio de trabalhar a produção
A contribuição do paradigma (ver acima, p. 52) foi da monografia dos alunos da pós-graduação, na inter,
fundamental para diminuir a ansiedade vivida pelas tra~s?isciplinaridade, vivida na parceria, pois "a par-
estagiárias. Assumindo o ponto focal das intenções do cena e a perda do poder único para a assunção do po-
grupo, eu apontava a necessidade de delimitar o tema, der a dois" (pesquisadora M.A.). Se o outro entra nessa
mesmo que, para isso, vivenciassem perdas. parceria, entra como alguém que deseja viver e contri-
"Conversamos, mas achamos que as dificulda- buir para esse momento, favorecendo o processo de
des são normais de quem está vivenciando o pro- autoria do conhecimento, a formação continuada do
cesso. Vem a primeira imagem que chega no limiar professor e o resgate do diálogo na educação, através
das sensações (se a luz for forte demais não se vê do olhar e de uma atitude crítica investigativa.
e se for de menos, também não). Mesmo que se
saiba muito, tem-se que criar parâmetros inter- O trabalho realizado nos cursos de pós-graduação
nos como se eu fosse seu foco de luz. Se você não em psicopedagogia prosseguiu com uma pesquisa so-
tiver a medida terá a sensação que falta mais, b:~. "a p:áxis ~n~erdisciplinar no curso de psicopedago-
mais e mais e vive a sensação da perda por não g1a , CUJOS sujeitos pesquisados foram os próprios pro-
aproveitar o que tem" (Borges, 1994). fessores da equipe de pós-graduação da universidade.
Nas produções monográficas das alunas, os traba- A pesquisa foi subsidiada pelo princípio de que a teo-
lhos do estágio supervisionado faziam elos com suas ria cientifica é uma atividade organizadora da mente, que
produções artísticas. ocorre a partir das observações e do diálogo com o mundo
dos fenômenos, e que é preciso concebê-la com um pro-
Dessa forma, fomos reelaborando o estágio super- cesso em construção e como uma rede de relações.
visionado de psicopedagogia na educação, ancorando
a metodologia da pesquisa ao estágio, bem como apro- Na produção da teoria científica é relevante estru-
ximando escola/comunidade/ensino/pesquisa/for- turar as representações mentais, organizar o discurso,
mação, teoria/prática. Dessa forma, emergiria o co- argumentar coerentemente, de forma que o texto pos-
!I
nhecimento, construído, em parceria, por múltiplos sa configurar com clareza o que se deseja transmitir. É
1
sujeitos, permitindo resgatar um ensino e uma apren- uma verdadeira dialética da objetividade, representa-
dizagem mais comprometidos com o processo de cida- da por normas e regras acadêmicas. A subjetividade
dania.Efetivava-se o movimento dialético entre objeti- esta presente e configurada pelas produções livres, ati-
vidade e subjetividade. vas e criativas dos autores.
70 71
Finalizando, acreditamos ser relevante
MEIRE~ES, A.C: das C. Afinando a orquestra: Con-
"Provocar o salto qualitativo, mobilizando os pós- cepçoes de lmguagem e diálogo na escola. ln:
graduandos ao compromisso com o seu próprio
~RAMER, S. & JOBIM E SOUZA, S. (orgs.). Histó-
desenvolvimento (... ), experienciando momen-
tos onde a verticalidade de cada um possa se ar- nas de professores - Leitura, escrita e pesquisa em
ticular no espaço e no tempo com a horizontali- educação. São Paulo: Ática , 1996.
dade das interações com o real" (Anachoreta PICHON RIVIERE, E. Teoria do vínculo. São Paulo·
Alves, 1995, p. 4). Martins Fontes, 1991. ·
Ao respeitarmos o movimento de cada aluno, ao TRIVI~\>S, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências
acompanhá-lo no processo dialético de trabalhar suas sociais - A pesquisa qualitativa em educação. São
Paulo: Atlas, 1995.
realidades internas e externas, trabalhávamos a falta,
o jogo do saber ser, saber fazer, conforme a subjetivida-
de de cada um, sem ferir os limites da ética e favore-
cendo o movimento em espiral de seus ECROS. A ação
operativa se fazia, sobremaneira, através de um olhar e
de uma escuta sensíveis. A conduta de cada um se ali-
cerçava no vínculo construído com o outro, sem deixar,
contudo, de trabalhar o objeto das disciplinas que com-
punham o conteúdo do curso.
Bibliografia
ANACHORETA ALVES, Magda. A psicopedagogia -
Construindo uma nova práxis. Psicopedagogia. Re-
vista da ABPp v. 13, n. 33, São Paulo: 1995.
BORGES, Aglael Luz. Entraves e desafios na produção
do conhecimento. Rio de Janeiro: UNESA, 1993/
1996 (mimeo.).
DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes. São Paulo:
Ed. Companhia das Letras, 1996.
DEMO, Pedro. Pesquisa-Princípio cientifico e educati-
vo. São Paulo: Cortez, 1996.
JOLIBERT, J. et al. Formando crianças produtoras de
textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
KRAMER, S. & JOBIM E SOUZA, S . (orgs.). Histórias
de professores - Leitura, escrita e pesquisa em edu-
cação. São Paulo: Ática, 1996.
72
73
3. O CAMINHO DA ARTE, DO
CORPO E DOS SONHOS NA
EDUCAÇÃO*
Eda M a ria Canepa **
•Este trabalho foi apresentado no 8° Congresso de Educação para o Desen-
volvimento, São Paulo, 2000.
•• Psicóloga clinica de orientação junguiana e educadora na Escola Nova
Lourenço Castanho.
Introdução
Este texto representa um esforço de reflexão sobre
minha percepção do percurso de implantação e conso-
lidação, no segmento de Educação Infantil da Escola
Lourenço Castanho*, de três propostas pedagógicas
experimentais transformadoras. Tais propostas carac-
terizam-se, fundamentalmente, por introduzir no coti-
diano escolar:
- a consciência e a expressividade corporal;
- as manifestações do inconsciente através do rela-
to compartilhado dos sonhos dos alunos;
- a apreciação da arte como fonte de prazer, trans-
formação e referência para avaliar estímulos visuais e
auditivos.
A implantação dessas novas propostas só foi possí-
vel graças a um intenso trabalho em equipe que conta
com a participação e o apoio entusiasmado de Jean-
nette Alicke De Vivo, diretora e companheira no dia-a-dia
escolar; com a parceria competente de André Trinda-
de, Isa Seppi e Roberto Gambini; com o compromisso e
dedicação das coordenadoras e professoras envolvidas
com o crescimento de seus alunos.
É um privilégio trabalhar como educadora na Esco-
la Lourenço Castanho, que sempre abriu espaço e in-
centivou investidas pedagógicas inovadoras.
• Escola Nova Lourenço Castanho. escola particular de educação infantil ,
ensino fundamental e ensino médio com 2.000 alunos situada em São
Paulo no Bairro da Vila Nova Conceição.
77
Ao encontro do mito* Contarei para vocês um mito que me possibilitou
Como educadores, estamos constantemente nos de- um novo olhar sobre o significado que os "problemas"
frontando com questões que nos intrigam, nos ocu- podem ter em nossas vidas. É o mito de Er, com o qual
pam e nos preocupam. Problemas a serem resolvidos Platão termina o décimo e último livro de A república,
não faltam no nosso dia-a-dia escolar e sempre busca- onde desenvolve a idéia de um cuidadoso sistema edu-
mos caminhos para solucioná-los, vislumbrando um cativo como base para a organização da cidade ideal3 .
futuro melhor, mais feliz para nossos alunos, seus pais Nessa parte do texto de Platão, Sócrates está con-
e para nós mesmos. tando que Er, um homem de muito valor, morreu em
Inquietações, dúvidas, problemas permeiam nosso uma batalha e, passados alguns dias, seu cadáver foi
cotidiano, revolvem nossos pensamentos, impulsionam recolhido para o sepultamento. Quando estava na pira
nossa imaginação na incessante procura de novas lu-
1
a fim de ser cremado, ressuscitou. Como é de se imagi-
zes que nos esclareçam, que nos apontem soluções. É nar, esse fato provocou um grande tumulto. Er acal-
inerente à nossa condição de humanos enfrentar difi- mou os cidadãos, dizendo que, tendo passado algum
culdades, mas parece que não queremos acreditar nis- tempo no além, havia sido incumbido de relatar tudo o
so e sonhamos com o momento em que tudo estará fi- que lá havia presenciado.
nalmente e definitivamente resolvido. Imediatamente, a agitação cessou. Todos que alies-
Essa é uma questão existencial básica. Para enten- tavam presentes, muito atentos, aguardavam com gran-
dê-la, podemos, como muitos já o fizeram, entre eles de curiosidade as noticias do mundo das almas, que Er,
Jung 1 , recorrer aos mitos: histórias que têm origem um cidadão de Atenas como eles, tinha para dar.
num substrato da psique comum a toda a humanida- Contou que, quando sua alma deixou o seu corpo,
de. Todas as culturas têm seus mitos. São grandes nar- chegou a um lugar divino, onde havia um intenso trân-
rativas que "têm a ver com os profundos problemas in- sito de almas: aí chegavam e dali partiam. Havia, no
teriores e são pistas para as potencialidades espiritu- chão, duas aberturas e, após determinação de entida-
ais da vida" 2 . Com suas sábias informações, nos aju- des celestes, algumas almas se encaminhavam para
dam a compreendê-la. Eles nos envolvem com sua lin- uma das aberturas e lá desapareciam a caminho do
guagem simbólica e velada. Atingem-nos pela força mundo dos mortos onde passariam um bom tempo
das suas imagens, contando o que está por trás das aprendendo o que deveriam ter aprendido enquanto
aparências. Revelam segredos, desvendam mistérios. estavam no mundo dos vivos; outras subiam das pro-
fundezas da terra, cobertas de sujeira e pó, chegavam
ao local divino saindo pela outra abertura. O mesmo
acontecia no céu, onde também havia duas aberturas:
* Fui orientada na elaboração deste texto por Maria Lúcia Zoega de Souza por uma delas, chegavam sem cessar almas puras e,
que está me iniciando no caminho da escrita.
1. Jung, a partir de suas vivências e das experiências com seus pacientes,
por outra, iam as almas depois de julgadas, para usu-
descobriu que no inconsciente havia algo além de memórias pessoais. fruir de deliciosos prazeres. Essa grande quantidade
Aos poucos, foi percebendo que muitos temas e imagens de sonhos de almas que desembocava no sítio onde Er se encon-
eram semelhantes aos temas e às imagens que apareciam em mitos
das mais diversas culturas. Aprofundou-se no estudo da mitologia de trava -vindas do céu e do interior da terra - ali acam-
vários povos e confirmou sua hipótese de que há um substrato da psi-
que comum a toda a humanidade onde está armazenada a sabedoria
que foi sendo acumulada e que ele denominou inconsciente coletivo.
2. Campbell, Joseph. O poder do mito. São Paulo, Palas Athena, 1990. 3. Ver Platão . A república de Platão. São Paulo: Nova Cultura, 1999.
78 79
pava como num dia de festa. "As que se conheciam de- Depois de feita a escolha, em seu percurso para a
sejavam-se as boas-vindas, e as que vinham do seio da Terra, dirigiram-se para a planície do Lete. Ao anoitecer
terra informavam-se do que se passava no céu. As de- acamparam nas margens do rio Ameles cuja água ne-
mais, que vinham do céu, informavam-se do que se nhum vaso pode conter. Cada alma é obrigada a beber
passava debaixo da terra. As primeiras contavam as uma certa quantidade dessa água, mas as que não
suas aventuras gemendo e chorando, à lembrança dos usam de prudência bebem mais do que deviam. Ao be-
inúmeros males e de tudo que tinham sofrido ou visto berem, perdem a memória de tudo. Então, quando to-
sofrer, durante a sua estada subterrânea, que tem mil das adormeceram e a noite chegou à metade, as almas,
anos de duração, ao passo que as outras, que vinham cada uma por via diferente, lançadas de repente nos es-
do céu, falavam de prazeres deliciosos e de visões de paços superiores para o lugar de seu nascimento, fais-
extraordinário esplendor" 4 . Depois de confraternizarem, caram como estrelas.6
encaminhavam-se "para um lugar de onde se via uma A alma, ao nascer como um novo ser, não se lembra
luz direita como uma coluna estendendo-se desde o alto, mais da sua opção. Todavia, há uma missão que, em-
através de todo o céu e de toda a terra muito semelhante bora esquecida, deve ser cumprida por ela. 7
ao arco-íris, mas ainda mais brilhante e mais pura" 5 • Lá Como resolver essa questão, se o esquecimento apa-
estava uma deusa imponente sentada em seu trono gi- gou da memória exatamente o mais importante: tudo o
rando um fuso, circundada por suas três filhas e coadju- que o novo ser deve realizar para cumprir o desígnio
vantes: as Moiras que cantam, uma o passado; outra, o dos deuses? Ele pode contar com a ajuda da deusa Ne-
presente e a última, o futuro. E que deusa era essa? cessidade que, sentada em seu trono, gira o fuso ao
Era a deusa Arranque - ou Necessidade. qual está preso o fio da vida. A deusa vai se manifestar
e o ser humano terá, na necessidade e no desejo de su-
As almas, ali presentes, haviam passado longos anos perá-la, umguía para, nesta vida, cumprir a tarefa que
no céu ou no seio da terra, dependendo de como haviam lhe coube, antes de sua alma beber a água do esqueci-
agido ao viver anteriormente neste mundo. Estavam, mento.8 Esse mito nos surpreende. Mostra uma outra
agora, se preparando para renascer como mortais. face da Necessidade. Vira de ponta cabeça a idéia que
Arranque - ou Necessidade - presidia a sessão que tantas vezes temos das nossas necessidades ao consi-
teve início quando Láquesis, uma das Moiras, lançou derá-las unicamente nefastos empecilhos a serem eli-
destinos e convocou solenemente as almas para apa- minados. Diz-nos, ao invés do que tantas vezes supo-
nharem um, antes de voltarem a viver mais uma vida mos, que cada uma nos traz, velada em seu âmago,
aqui na Terra. Uma vez com o destino em mãos, a alma uma mensagem que nos ajuda a prosseguir ou reen-
a ele estava vinculada. contrar o nosso caminho.
Os deuses determinam que sua missão - a da alma -
durante a vida terrestre é enfrentar o desafio de realizar o A necessidade se faz presente
destino escolhido e ao qual fica ligada pela Necessidade.
Assim, a Necessidade se impõe: é necessário a cada alma Emergindo do mito, ainda imbuídos pelo magnetis-
1
realizar, na vida terrena, o que foi por ela selecionado. mo e encantamento de suas imagens, vamos rastrear
6. Platão. Idem, ibidem. p. 352.
' 4. Idem, p. 346. 7. Ver Platão. A república de Platão. São Paulo Nova Cultura. 1999.
1: 5. Idem. ibidem. p. 347. 8. Ver Hillman, James. O código do ser. Rio de Janeiro: Objetiva. 1997.
li 80 81
1
as pistas deixadas pela Necessidade no cotidiano da ação e passamos a investir com maior intensidade na
escola onde trabalho. profilaxia. Este passo, do meu ponto de vista, signifi-
Ela se fazia presente em algumas ocasiões, quan- cou um avanço. Antes do recreio, rodas de conversa
do, junto com nossas crianças, despertava em nós uma sobre o tema. Depois, uma avaliação, também em gru-
sensação de descontentamento, de insatisfação. Não po, para que houvesse cada vez mais consciência das
era bem aquilo que observávamos o que gostariamos atitudes tomadas. Além disso, mobilização geral para
que estivesse acontecendo. Nenhum dado objetivo nos desenvolver um relacionamento amistoso. Criamos
apontava que as coisas deveriam ser diferentes, a não também espaços alternativos para que, durante o re-
ser essa insatisfação que persistia. A Necessidade foi creio, as crianças tivessem um leque maior de opções
fiel, não nos abandonou. Assim, essa convivência aca- de brincadeiras. Nessas tentativas, não queriamas eli-
bou comprovando a sabedoria expressa no mito, ao criar, minar a agressividade a qualquer preço, transforman-
para satisfazê-la, um espaço na escola, para transfor- do nossos alunos em crianças simplesmente boazi-
mações pedagógicas. nhas e bem comportadas. Todo esse potencial vital que
se manifestava pela agressividade teria que encontrar
Vejamos algumas dessas ocasiões em que a Neces- um canal de expressão; caso contrário, estariamas eli-
sidade se fez presente com sua sabedoria. minando, junto com a agressividade, a vitalidade a ela
Observando os recreios, presenciávamos brincadei- correspondente. O desafio que se apresentava não era,
ras violentas, agitadas e lutas que tumultuavam os portanto, eliminá-la e, sim, transformá-la para que as
alunos, dando-lhes muitas vezes um ar de certo des- crianças continuassem se posicionando frente aos co-
controle. As crianças brigavam para resolver seus de- legas, com eles se relacionando com a mesma intensi-
sentendimentos e muitas vezes voavam tapas e socos. dade. Queríamos, entretanto, que, ao invés de irrita-
Crianças brigam (é natural). Brigar faz parte da infân- ção, briga, bate-boca, houvesse empenho na busca de
cia, pensávamos. Mas pressentíamos que era tudo soluções criativas e cooperativas para organizar brin-
"um pouco demais" ... A sensação de desconforto que cadeiras e resolver conflitos. As providências que ha-
tínhamos quando estávamos no recreio parecia estar víamos tomado não tinham sido suficientes para su-
querendo nos dizer que algo não estava bem ou, pelo prir essa necessidade de criar um novo padrão de rela-
menos, não tão bem quanto poderia. As professoras ção entre as crianças.
apartavam brigas, orientavam e repreendiam os res- A necessidade de haver uma transformação se ma-
ponsáveis. Os resultados, pouco significativos. Medi- nifestava também quando observávamos. nas classes,
das disciplinares em geral e até algumas mais drásti- a reduzida capacidade de concentração de alguns alu-
cas, como , por exemplo, em casos extremos chamar nos, além de certa intranqüilidade e inquietação de al-
os pais para retirarem seu filho da escola naquele dia, guns outros. Nem sempre as atividades transcorriam
eram soluções cujo efeito era pouco duradouro. As num clima calmo e sossegado. O que estaria por trás
professoras pediam e recebiam orientação de como dessa agitação? O que ela estaria denunciando?
proceder; os pais, idem. Os resultados obtidos, po-
rém, eram insatisfatórios. Essas questões nos preocupavam e passaram a nos
preocupar mais ainda quando tivemos conhecimento que
A necessidade de resolver esse desconforto nos le- pesquisas atuais comprovavam haver, entre os usuários
vou, já há algum tempo, a abordá-lo também sob um de drogas, um número significativo de individuas que ha-
outro prisma. Lado a lado com as medidas disciplina- viam apresentado, durante a vida escolar, distúrbio de
res e pontuais, começamos a deslocar nosso foco de atenção. Os dados obtidos nessas pesquisas evidencia-
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vam haver uma relação direta entre dificuldade de con- Caiu a ficha! Que sentido tinha para essa criança
centração e posterior consumo de drogas. 9 recortar esse círculo? Era um simples treino de coor -
Não era a falta de estímulos, o nosso pecado: as ati- denação motora manual descontextualizado e sem qual-
vidades pareciam interessantes, os professores esta- quer aplicação imediata. E o mais grave: um treino me-
vam sempre criando novas propostas cujos conteúdos, cânico feito sem emoção, desprovido de sentido. Tería-
acreditávamos, eram adequados à faixa etária de nos- mos que encontrar um modo de fazer com que esse tre-
sos alunos. Algumas propostas, talvez, fossem muito ino passasse a ter um significado para aquela criança e
longas e sua duração exigisse um tempo de concentra- para seus colegas.
ção que ia além das possibilidades das crianças. Fize- A professora havia contado que seus alunos adora-
mos algumas adequações. Vimos também que o espa- vam a história da Chapeuzinho Vermelho. Ao ouvi-la,
ço da ação dentro da sala de aula telia de, cada vez 1 seus olhos brilhavam evidenciando a emoção que sen-
mais, ser ocupado pelo aluno desenvolvendo sua auto- tiam. Combinamos que ela farta um grande painel: se-
nomia e descentralizando a figura do professor. Um ria o bosque por onde Chapeuzinho Vermelho caminha-
importante canal de aprendizado é o "fazer", principal- va para ír visitar a vovozinha. No bosque, haveria al-
mente na faixa etária pré-escolar, quando a autonomia guns canteiros de flores que seriam, a partír de então,
para as ações do cotidiano tem um significado de cres- formados pelas formas geométricas que recortariam
cimento, de conquista do espaço. para treinar as "habilidades" perceptivo-motoras: can-
O trabalho interdisciplinar, gradativamente intro- teíros de flores círculares, quadradas, triangulares. O
duzido a partir de 1992, foi um passo importante. Sur- painel permaneceria exposto e selia gradativamente
giu na supervisão do trabalho de uma professora, como sendo completado. Estava dada a partida para um tra-
tentativa de encontrar recursos que favorecessem a balho interdisciplinar. O resultado do trabalho de Gra-
concentração de uma criança. ça e de seus colegas passou a integrar significativamen-
te o ambiente escolar. A noção matemática de conjunto
Ela dizia que uma aluna - graça - era muito disper- ajudava os alunos a entenderem e classificarem os ele-
siva. Segurava horas a tesoura e uma folha de papel mentos do mundo ao seu redor. O diagrama de um con-
onde havia um círculo desenhado. Dava algumas te- junto era também o contorno de um canteiro de flores.
souradas recortando o círculo e passeava seu olhar ao A inierdiscplinalidade favorece a concentração, pois,
redor, observando os amigos, procurando algo que a quando há interligação entre as várias atividades, não
interessasse mais do que recortar aquele círculo. Cena precisamos mudar constantemente de foco, pular de
nada insólita nas salas de aula. galho em galho. O enfoque interdisciplinar propicia co-
Conversando com a professora, vimos que aquele cír- nexões entre as atividades. Essas conexões são como
culo depois de recortado e pintado seria guardado numa fios condutores que dão um sentido de continuidade e
pasta junto com seus outros trabalhos. No final do bi- de simultaneidade. Há, entre uma atividade e outra, um
mestre, ela levaria essa pasta para guardá-la em casa. elo que facilita a manutenção da atenção que transita
entre os diferentes pontos de intersecção. Forma-se
uma rede na qual não há quebra na continuidade do
processo. Isso é muito diferente de as áreas do conheci-
mento serem abordadas separadamente como se fos-
9. Essas informações foram dadas pelo psiquiatra Dr. Dartiu Xavier da Sil-
veira Filho em palestra sobre prevenção ao uso de drogas, proferida sem baldes estanques a serem preenchidos de conheci-
para os professores da ENLC em 1998. mento, e acriança, a cada "balde" que se apresente, pre-
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cisar reiniciar um novo processo ao retomar a atenção. O caminho da arte
É o despertar do prazer de descobrir, na especificidade
de cada área do conhecimento, a interface de significa- Há uma desproporção entre a grande quantidade
dos que nos ajudam a entender as coisas da vida. de estímulos ambientais e a oportunidade de as crian-
Essa experiência, realizada por uma professora, mo- ças se conectarem com seu mundo interno e nele bus-
bilizou suas colegas que gradativamente foram aderin- carem significados para o que estão vendo e ouvindo 10 .
do à nova maneira de organizar as atividades. Essa desproporção poderia ser uma das causas da difi-
culdade de os alunos se concentrarem.
Relembrando o percurso, posso agora ver o quanto
esse passo já estava nos preparando para percebermos Desejávamos criar maior intimidade entre obras de
a validade das propostas que hoje estamos desenvol- arte e as crianças. Estas estariam, pelo contato diário com
vendo. O trabalho teria que ser direcionado no sentido 1 a produção artística de inegável qualidade, desenvolven-
de encontrar soluções para que, cada vez mais, as ativi- do um padrão estético. Estariam, também, ampliando seu
dades escolares deixassem de ser treino mecânico de repertório e seu horizonte de expectativas para lidar com o
habilidades. Teriam que se transformar em canais ex- impacto das imagens com as quais se defrontam. Foi, en-
pressivos da interioridade das crianças, assim como os tão, que o toque da necessidade fez tomar forma a idéia de
conteúdos não poderiam ser despejados aleatoriamen- introduzirmos reproduções de quadros selecionados
te, ditados apenas pelo planejamento ou pela vontade como material pedagógico para ilustrar os temas que es-
do professor. Precisavam fazer sentido para a criança tavam sendo desenvolvidos em sala de aula.
encontrar um eco em seu mundo interno, ajudá-la a se Outra vertente desse movimento começou, há al-
compreender e compreender as coisas da vida. /
guns anos, quando levamos, pela primeira vez, nossos
Nesses mais de trinta anos de trabalho com crian- alunos da escola infanW à exposição das pinturas do
ças de pré-escola, fui tendo cada vez mais certeza de artista plástico Paulo Von Poser. A galeria era perto da
que as medidas de caráter disciplinar podem até ser escola; fomos a pé. O encantamento dos alunos duran-
eficientes a curto prazo, mas são perigosas. Devem ser te a visita já nos fez suspeitar que algo muito importan-
adotadas com muito critério, pois, como quando toma- te estava acontecendo, além de um mero enriqueci-
mos um antibiótico antes de termos um diagnóstico, mento cultural 11 . Essa foi a primeira semente do pro-
podem mascarar o mal que vai se alastrando às escon-
didas. Essas medidas disciplinares também lidam uni- cesso que vem, desde então, se desenrolando.
lateralmente com a dificuldade, tentando eliminá-la A visita a uma boa exposição é, para mim, um ali-
sem que se aproveite o potencial criativo que a sabedo- mento para a alma, pois a arte tem o poder de transfor-
ria do mito de Er nos apresenta. mar a nossa percepção, tanto da realidade externa quan-
to da interna. Essa vivência me fez pensar que, tam-
bém para as crianças, a arte deveria ser um alimento
As pistas deixadas pela necessidade
A nossa preocupação com a agressividade e falta de
concentração das crianças permeava nosso dia-a-dia.
Essas necessidades estavam constantemente presen- 10. Ver Brissac. Nelson. O olhar estrangeiro. ln: Novais, Adalton (org.J. O
olhar. São Paulo: Companhia das letras. 1988.
tes. O que mais poderíamos fazer? 11. O artista comenta a visita dos alunos à sua exposição "Mar de Rosas":
Foi então que se esboçaram os três caminhos: o dos "Foi a parte mais gratificante da mostra, porque me permitiu uma lei-
tura muito mais solta do meu próprio trabalho. As crianças davam
sonhos, o do corpo e o da arte. atenção às coisas que nem eu e nem o público adulto havíamos nota-
do" (Revista JOY. ano 1, n. 11, Time Out Comunicações. 1996).
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para suas almas. Sempre nos encanta - surpreende ca, geralmente direcionadas para a prática esportiva e
até-ver a reação das crianças diante das obras. Suas para o treinamento de habilidades. Sua atuação carac-
expressões e seus comentários deixam transparecer teriza-se pela ênfase no autoconhecimento, para que o
que foram tocadas de modo muito especial, parecendo corpo seja um autêntico veículo de passagem da ex-
haver uma comunicação direta e imediata entre elas e pressão pessoal. Esse trabalho nos ajuda a "ficarmos
de bem" com o nosso corpo: com ele aprendemos, faze-
a imagem que estão vendo. Teríamos que, de alguma mos trocas afetivas e nos conhecemos. Nas aulas, so-
maneira, possibilitar que usufruíssem desse poder mos tocados pela alegria e pela harmonia que emanam
transformador. Aos poucos, com a orientação de Isa das rodas de dança: giros, pés que se cruzam na frente,
Seppi, nossa assessora da área de arte, fomos muda~­ pés que se cruzam atrás, deslocamentos para a es-
do o enfoque dado às visitas a exposições, museus e bi- querda, para a direita, todos de mãos dadas compondo
enais. Não queríamos mais que essas visitas e seus o grande círculo que vai rodando ao som da música. A
efeitos se esgotassem rapidamente, nem que atingis- experiência é compartilhada: cada um dos participan-
sem somente os alunos. Queríamos também que atin- tes traz para o grupo, de acordo com sua capacidade, a
gissem os professores e os pais 12 , permeando e trans- sua esmerada contribuição. Nem todos têm a mesma
formando o ambiente escolar. Foi ficando cada vez habilidade, mas não importa, pois naturalmente todos
mais evidente que essa mudança implicaria uma trans- se ajudam e uns aprendem com os outros.
formação da relação dos professores com o significado Esse tipo de percepção e de vivência corporal não
que a arte tem na história de vida de cada um. Não b~s­ costuma fazer parte dos currículos escolares. Assim,
taria organizarmos um treinamento pontual. Tena- apesar de conhecermos e reconhecermos o valor desse
mos que envolver a todos neste prazer que nos invade enfoque, ainda não havíamos cogitado trazê-lo para
ao nos darmos conta de que a arte enriquece a percep- dentro da escola. A necessidade novamente se fez pre-
ção que temos de nós mesmos e do mundo. sente: queríamos muito encontrar um caminho para
Esse processo de descoberta teria que ser vivido, ao ajudar nossas crianças a lidar melhor com a agressivi-
mesmo tempo, pelos professores e pelos alunos. dade, a desenvolverem a auto-estima e a se tranqüili-
zarem. Seria esse um caminho? Talvez fosse. Ao dan-
O caminho do corpo çar em roda, as crianças estariam compartilhando a
alegria daquele momento, tendo que, com atenção, co-
Conhecíamos o trabalho corporal que vem sendo ordenar seus movimentos ao som da melodia e do rit-
desenvolvido por André Trindade não só em seu con- mo das músicas étnicas, cuja origem está nas raízes de
sultório como psícomotricista, terapeuta corporal, mas diferentes culturas. Estaríamos também trazendo pa-
também o trabalho que realiza como professor de dan- ra a escola atividades perceptivas de toques e de reco-
ças étnicas em seu estúdio. Enfoca o corpo p_?r ':11? nhecimento corporal, visando a construção do movi-
prisma diferente do usual nas aulas de educaçao fls1-
mento carregado de sentido como alternativa para o
gesto mecânico. É uma maneira bem diferente de apren-
der e de desenvolver habilidades.
12. Comentário da avó de um de nossos alunos: "Meu neto disse ontem que Fizemos parceria com André e iniciamos, em agosto
já conhece Franz Waissman e Lygia Clark, mas prefer_e Raoul Dufy de 1997, esse processo que continua em andamento.
porque este último é apaixonado pelas cores e flores. Alem disso , per- Estamos tendo que criar uma metodologia para im-
guntou se eu gostaria de ouvir a música da primavera e cantarolou as
Quatro Estações de Vivaldi" (Informativo Lourenço Castanho, oul./ plantar essa nova modalidade de trabalho corporal,
nov. 1999, ano 5, n. 9). uma vez que a capacitação do professor, para liderar
88 89
esse tipo de atividade, implica necessartamente uma O cammho dos sonhos
transformação da sua relação com o próprio corpo.
Os sonhos, que, como diz Jung, são um fenômeno
Para promover essa transformação tivemos, durante
esses quase três anos, vários encontros de toda a equipe natural, uma via de acesso ao manancial de sabedolia
de professoras com o parceiro especialista. Nessas oca- que está no inconsciente, foram aprisionados nos con-
siões, junto com algumas informações teórtcas, foram sultórtos e vistos como matertal psíquico a ser inter-
feitas atividades de conscientização, sensibilização e ex- pretado. Estão excluídos não só das escolas como tam-
pressão corporal, assim como rodas de dança étnica. bém do contexto social mais amplo.
Três professoras interessadas pela proposta come- Em agosto de 1997, entraram escola adentro. O
çaram a participar, por iniciativa pessoal, dos cursos Doutor Roberto Gambini, analista junguiano, muitas
regulares oferecidos pelo estúdio. Foram convidadas a vezes já havia me falado que a escola precisalia se ablir
difundir o trabalho corporal na escola, sendo um elo de para ouvir as clianças falar de suas percepções pro-
ligação entre o especialista e as outras professoras aju- fundas - as que elas captam diretamente do inconsci-
dando-as na implantação das novas atividades com ente com o qual ainda estão intimamente ligadas. Em
seus alunos. Inicialmente, conduziam a atividade e as junho desse ano, uma entrevista sua - Sonhos, o lado
outras professoras, aos poucos, começaram a partici- desconhecido da alma - saiu publicada na revista Mais
par também. Depois de algum tempo, a titular passou, Vida. 13 Nessa entrevista, ele assim se refere a essa inti-
alternadamente, a organizar os encontros. As profes- midade da criança com seu inconsciente: "E a cliança
soras difusoras, nessas ocasiões, supervisionavam a tem essa conexão direta, essas imagens passam por
atividade. Fizeram importantes interligações entre o elas mais facilmente porque ainda não foram à escola,
trabalho pedagógico das válias áreas e o trabalho cor- não receberam a educação convencional que aos pou-
poral. Semanalmente, antes das reuniões pedagógi- cos vai entupindo, pode até fechar, essa comunicação
cas, lideram rodas de dança, das quais participam to- com a sabedoria profunda". A revista circulou pela es-
dos os professores, vivenciando momentos de alegrta, cola, as professoras leram a entrevista. A idéia estava
confraternização e solidartedade. rondando, mas era tão inusitada que não imagináva-
mos como viabilizá-la. Foi então que convidamos o au-
André, desde o início, desenvolveu, uma vez por mês,
tor para expor suas idéias 14 . A proposta básica serta,
atividades com as clianças. Especialmente quando se
em caráter experimental, cliarmos um espaço sema-
trata de trabalho corporal, o modelo é muito importan-
nal para as crianças contarem seus sonhos na sala de
te. Em reuniões peiiódicas da "equipe do corpo" avalia-
aula, assistidas pela professora, que escreveria os re-
mos o andamento do processo, fazemos algumas cor-
latos. Depois, seliam desenhados pelas próplias crt-
reções e discutimos novos rumos.
anças. Não seliam interpretados, mas, simplesmente,
Sabíamos que cada professora teria que ir transfor- ouvidos, registrados e desenhados.
mando, junto com seus alunos, sua relação com o
Lançada a idéia de os alunos relatarem seus so-
próplio corpo. Para algumas, selia mais fácil; para
nhos, que foi ouvida com muito interesse por toda a
outras, mais difícil. Essas características individuais
teriam que ser respeitadas. Nós teríamos que dar o
tempo necessálio e viabilizar recursos para que as
mudanças acontecessem. 13. Editora Três.
14. Seu referencial teórico é a psicologia analítica formulada por Jung.
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equipe pedagógica, algumas professoras se dispuse- ra até quer registrá-lo! É um reforço para a sua au-
ram a iniciar o trabalho com seus alunos. Umas tive- to-estima 15 •
ram receio, outras não se interessaram e outras ainda Para resolver e esclarecer as questões que foram se
achavam que seria inadequado. Todos os posiciona- apresentando fizemos com o analista junguiano, nosso
mentos foram aceitos e respeitados. parceiro, alguns encontros dos quais participaram ora
As que iniciaram o trabalho foram criando, cada as professoras que já estavam trabalhando com seus
uma a seu modo, diferentes estratégias para conduzir alunos, ora todas as professoras. As que já estavam de-
a atividade: ouv...r uma música bem tranqüila ou fazer senvolvendo o trabalho relatavam suas experiências
um relaxamento (que haviam aprendido, ao participa- que eram comentadas. As dúvidas eram expostas edis-
rem das novas atividades corporais) antes de começar cutidas. As que ainda não tinham aderido à proposta
o relato de sonhos; fazer uma dramatização tendo co- podiam com ela se familiarizar. As professoras recorriam
mo tema a hora de ir dormir e depois a de despertar às coordenadoras, quando necessário, no dia-a-dia.
para, em seguida, relatar os sonhos; contar uma histó- Assim, os sonhos foram permeando o ambiente es-
ria cujo tema fosse sonho; deitar no chão da classe colar. Informalmente, as professoras passaram a con-
para brincar com alguns panos ... tar os seus sonhos, leram alguns livros sobre o assun-
to, trouxeram artigos e notícias para compartilhar com
Surgiram dúvidas e ansiedades em relação aos as colegas. A riqueza das experiências comentadas nos
relatos das crianças: "Teriam mesmo sonhado o que encontros sobre o trabalho com sonhos, ao desfazer
estavam relatando ou estavam imitando o colega? O medos e inseguranças, foram angariando novas adep-
que fazer quando uma criança não tem, ou não quer tas, atraídas pelo entusiasmo das que já estavam par-
contar um sonho? Como ouvir um pesadelo? O que fa- ticipando da proposta e pelo evidente significado que a
zer quando a criança pede para a professora contar experiência estava tendo para elas e para seus alunos.
seu sonho? Não estaria invadindo a privacidade da
criança ao propor que ela contasse seu sonho?" Essas
Caminhos que incluem e conectam polaridades
e outras questões mais iam aparecendo (e continuam
aparecendo na medida em que o trabalho prossegue). Sabemos todos que a tradição pedagógica escolar
Em relação à sistemática de registro e arquivo do tem privilegiado a consciência, a racionalidade, a obje-
tividade e o desenvolvimento de habilidades muitas ve-
material, fomos descobrindo, a partir da experiência,
zes desvinculadas de qualquer significado expressivo.
maneiras cada vez mais adequadas de fazê-la. Atual- Há uma supervalorização de estimules externos que "de-
mente, cada criança tem sua "pasta de sonhos" que
começa a ser feita quando entra na escola e passa
junto com ela de um ano para o outro, até o pré. A pro-
fessora coloca a data, o nome do aluno e escreve o "so-
15. A partir dessas constatações, estendemos o alcance dessa estratégia e a
nho" no verso da folha. A criança faz o desenho na professora passou a escrever outros relatos das crianças. Algumas li-
frente. Descobrimos que, ao anotar a fala do aluno, a ções de casa foram formuladas pedindo às crianças que conversassem
escuta da professora se transforma, assim como a cri- com seus pais contando suas impressões sobre algum passeio ou so-
bre alguma visita à exposição de arle. Os pais escrevem o que a criança
ança se sente acolhida e valorizada com essa inversão diz e ela traz esse material para compartilhar com os colegas e com a
de papéis: seu relato é tão importante que a professo- proiessora. É uma maneira de incentivar a comunicação entre pais e fi-
lhos. Estes levam para suas casas noticias do que fazem na escola. Os
pais fazem com muito prazer essas "lições de casa".
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vem" eficientemente ser absorvidos pelos alunos. O de- tões de relacionamento faz parte do crescimento pes-
safio seria, primeiramente, vencer a preconceituosa bar- soal e profissional. Atrás da aparência incômoda e amea-
reira construída entre estas duas realidades: a interna e çadora desses sentimentos podemos vislumbrar po-
a externa. A dissociação coloca em campos separados e, tenciais criativos. Quando acolhidos, impulsionam a
diria, até antagônicos, o consciente e o inconsciente, as- realização de anseios e talentos individuais, face ao
sim como outros pares de opostos. A pedagogia tem se amplo leque de opções que a educação abre.
ocupado sobremaneira do consciente e a psicologia pro- A diferenciação dos talentos é uma questão arque-
funda, do inconsciente: cada uma na sua. tipica: é inerente à natureza humana. A parábola dos
Para que os caminhos da arte, do corpo e dos so- talentos 16 , na Bíblia, conta como foram recompensa-
nhos pudessem ser percorridos, tivemos que abrir um dos os servos que fizeram render os dons recebidos e
espaço no cotidiano escolar para a subjetividade, a ex- como foi castigado o que deixou seu talento improduti-
pressividade, o imaginário e o inconsciente. Essas três vo. Relendo essa parábola, achei muito interessante o
propostas pretendem ir além da inclusão dessas pola- comentário explicativo desse episódio: enfatiza ser pre-
ridades. A simples inclusão não significa que estaría- ciso arriscar-se e lançar-se à ação para que os dons re-
mos construindo a conexão entre elas. O desenvolvi- cebidos frutifiquem. A comunidade é responsável por
mento poderia se dar de maneira dissociada sem que favorecer o desabrochar dos talentos individuais cujos
se usufruíssem os benefícios que só a inter-relação frutos devem ser compartilhados.
pode trazer, fortalecendo os canais de comunicação Quando os talentos podem ser abertamente assu-
entre externo/interno, subjetivo/objetivo, real/imagi- midos e reconhecidos, despontam lideranças legíti-
nário, consciente/inconsciente. mas. Cria-se um ambiente de trabalho estimulante,
que favorece a cada professor se conectar com o seu
O despertar dos talentos dom, com o seu interesse pessoal e especial. Como diz
Domenico De Masi 17 , o segredo é descobrirmos o que
Uma vez lançadas as propostas, a resposta dos para nós faz sentido, o que gostamos de fazer, pois, certa-
professores não é uniforme e não se pode esperar uma mente, o faremos bem. Poderíamos acrescentar: além
implantação em massa, pois cada professor vai reagir a de fazermos bem, estaremos contagiando de maneira
seu modo, sendo livre a adesão à "novidade". Farão a positiva os que estão ao nosso redor.
experiência os que empatizarem com ela, dependendo
do sentido que tem para cada um deles nesse momento
específico de suas vidas. Começam a se explicitarem as A descoberta de novas soluções
diferenças de personalidade, de interesses e de atuação Esses caminhos surgiram a partir de necessidades
existentes. Ao abrirmos espaço para as diferenças, os que vinham sendo sentidas e do desejo de atendê-las.
talentos individuais começam a se manifestar. O ambi- Quando a necessidade é tida como um transtorno na
ente escolar torna-se, então, um campo aberto para o
desenvolvimento, para a interação das individualidades
conectadas com a instituição e a comunidade.
Algumas dificuldades interpessoais podem se evi-
16. BibliaSagrada. Novo Testamento, Edição Pastoral, Evangelho Segundo
denciar explicitando inseguranças, invejas e naturais São Mateus 25 , 14-30, São Paulo: Paulinas, 1976.
sentimentos de ciúmes. É importante encarar com na- 17. Sociólogo italiano que foi entrevistado no programa Roda Viva da 1V
turalidade essas manifestações, pois lidar com ques- Cultura em janeiro de 1998.
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nossa vida, como algo a ser eliminado a qualquer pre- brando novamente o mito de Er, são elas as mensagens
ço, corremos o risco de nos precipitarmos, elencando cifradas da deusa Ananque que podem nos trazer de
possíveis soluções que já conhecemos, que fazem parte volta à memória tudo o que dela se foi ao bebermos a
dos recursos usuais. São soluções já prontas que vêm água do esquecimento.
de fora para eliminar o problema. Podemos, assim, en- Soluções como essas revelam o potencial criativo
contrar a solução para muitas dificuldades. A soluções dos entraves. São tentativas de encontrar novas solu-
conhecidas, porém, geralmente correspondem resul- ções e podem ir sendo postas em prática gradativa-
tados previsíveis. mente sem haver necessidade de quebra no processo
O mito de Er nos revela haver outra maneira de pedagógico que está em curso. Isso dá tranqüilidade
abordarmos as dificuldades e que em cada uma delas se para que as experiências sejam feitas e avaliadas sem
esconde a semente de uma descoberta. Essa maneira não haver pressão para obtenção de resultados pontuais, o
é sintônica com os valores vigentes e habituais que exi- que é muito importante, pois propicia um terreno fértil
gem resultados rápidos a qualquer preço: é poder convi- para a criatividade. Trazem nova vitalidade para o pro-
ver com a dificuldade, com ela ter intimidade, conhecer cesso pedagógico. O prazer das descobertas se irradia
bem a sua natureza. Ao longo do tempo, essa convivência pelo ambiente escolar e instiga os professores e coorde-
prepara o terreno para que brotem soluções autênticas - nadores a criar, a estudar. Enfim, a se transformarem.
comprometidas com a essência da necessidade. Tais so-
luções podem nos afastar do que é comum. O momento O desafio de viver o processo
da descoberta é o momento da tomada de consciência:
quando revemos o processo que nos fez chegar a elas, re- Teríamos que observar a evolução tendo em mente
conhecemos, aqui e ali, pequenos indícios de que essas nossos objetivos, para balizar o processo com o nosso
soluções têm suas raízes no passado. Embora não tivés- bom senso e a nossa experiência, com o nosso referen-
semos consciência, já as estávamos gestando. cial teórico e com o referencial teórico dos nossos par-
Ortega Y Gasset, em um de seus textos , discorre so- ceiros. Estava fora de cogitação contratar professores
bre o surgimento de novas idéias: "Todo o verdadeiro especialistas para desenvolverem as atividades com as
esforço intelectual nos afasta solitários do que é co- crianças. Pretendíamos que nossos professores apren-
mum e por caminhos recônditos, que o nosso esforço dessem junto com seus alunos, podendo usufruir os
descobre, nos conduz a lugares escondidos, a pensa- benefícios e prazeres que vislumbrávamos advirem des-
mentos insólitos" 18 . É semelhante ao que acontece quan- sas novas e transformadoras práticas.
do nos esforçamos para acatar as dificuldades, com Para a realização dessas propostas, fizemos, então,
elas convivendo em estado de alerta, para irmos apa- a parceria com os dois profissionais que não são da
nhando, no võo, as idéias que podem surgir, impulsio- área de educação. Estavam dispostos a ampliar seu
nadas por essas "bem amadas" necessidades. Relem- campo de atuação, a envolver-se com a educação esco-
lar. A fim de trazermos seus conhecimentos especííicos
para a escola, tivemos que, juntos, criar uma sistemá-
tica de trabalho que foi tendo, com cada um deles , ca-
18. Gasset. Ortega Y. Que es filosofia? Madrid: Alianza Editorial, 1994, p. racterísticas próprias, determinadas tanto por suas
11. "lodo esfuerzo intelectual que lo sea en rigor nos aleja solitários de
la costa común. y por n1tas recônditas que precisamente descubre nu-
personalidades e pela especificidade da proposta quan-
estro esforzo nos conduce a lugares repuestos. nos sitúa sobre pensa- to pelos recursos que poderíamos disponibilizar em
mientos insólitos." termos de tempo no horário semanal, tempo para reu-
96 97
niões, para supervisão e formação dos professores. Os prometem expondo as descobertas que fizeram, as difi-
processos foram se construindo, passo a passo, ali- culdades que encontraram, os resultados que estão
mentados pelo significado, pela importância que ti- obtendo. Dão, assim, subsídios para que os demais co-
nham para cada um deles e, para nós, da escola, a im- legas revejam suas posições e para que despontem no-
plantação das novidades. vas adesões. Os professores envolvidos geralmente
Ambos tiveram um contato inicial com toda a equipe gostam de falar sobre o trabalho que estão desenvol-
pedagógica, incluindo professoras, diretoras e co~r~~na­ vendo, gostam de contar o que estão fazendo. Esse é
doras. Fizeram uma palestra apresentando suas ideias e um dos indícios da validade da proposta.
seus planos sobre o trabalho que poderia ser realizado; Na ocasião em que tivemos o primeiro contato for-
deram informações teóricas, apontaram os possíveis be- mal com nossos parceiros (agosto de 1997) foi estabele-
nefícios, ouviram os professores, responderam suas ques- cido pela direção o prazo de um ano e meio de investi-
tões, promoveram vivências. Enfim, houve uma mobili- mento para, então, avaliarmos o percurso e os resulta-
zação geral que resultou em algumas adesões. dos obtidos. Essa determinação foi fundamental para
O professor que adere a propostas dessa natureza - que essas idéias virlgassem: explicitou a credibilidade
sem um caminho previamente determinado e sem pre- nas propostas dos profissionais, assim como o firme
visibilidade de resultados - está ousando, se arriscando propósito da direção de levá-las adiante. Quantas ve-
para aprender junto com seus alunos. O professor abre zes, nestes anos de atuação como educadora, ouvi, lado
mão de sua posição de detentor do saber. Estabelece-se a lado com os professores, palestras propondo coisas
uma relação de proximidade e cumplicidade entre ele e muito interessantes e valiosas para a educação, cujos
seus alunos pois em um certo sentido estão todos no efeitos acabaram ficando pulverizados por falta de paci-
"mesmo barco": lançando-se às conquistas. Um profes- ente e persistente dedicação na sua consecução.
sor que se dispõe a aprender junto com seus alunos c~~­
tamente terá um diferencial para compreender as difi- O caminho da arte foi diferente, pois havia, na pró-
culdades que esses possam ter assim como para avaliar pria escola, uma sistemática de assessoria e um pro-
o significado de cada vitória alcançada. As crianças pe- cesso já em andamento, orientado por Isa Seppi. As
quenas aprendem, sobretudo, pelo exemplo. E conviver professoras especialistas foram as difusoras que, ao
com um professor que também aprende, certamente, as transpor as paredes dos ateliers, levaram para suas
encorajará a se lançarem na aventura de aprender. colegas a riqueza de seus conhecimentos.
Cada professor vai criando seu caminho interagin-
do com seus alunos, abrigado pelas paredes da classe. Alguns resultados se evidenciam
Essas experiências, porém, precisam ser compartilha-
Contando com referenciais teóricos consistentes e
das em dois fóruns. Um seria o fórum dos que estão
trabalhando na mesma proposta (para se apoiarem e com a nossa experiência, é importante, sem idéias pre-
se ajudarem). Outro, o fórum do grupo composto por concebidas, deixar fluir o processo compatibilizando
todos os professores (para que as experiências sejam os recursos disponíveis e as necessidades que forem se
relatadas e comentadas). Nesses encontros de toda a apresentando. O percurso é colorido de imprevisibili-
equipe pedagógica, os professores que ainda não ade- dade e surpresas. Estamos percebendo transforma-
riram têm a oportunidade de se familiarizar com a nova ções no comportamento dos pais e das crianças da es-
idéia. Os professores que contam sua experiência as- cola infantil, assim como no das professoras que inte-
sumem a autoria de seus processos, com eles se com- gram nossa equipe pedagógica.
98 99
Vemos que os recreios estão bem mais tranqüilos e BRISSAC, Nelson. O olhar estrangeiro. ln: NOVAIS ,
as brigas entre alunos acontecem apenas eventualmen- Adalton (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das
te: as brincadeiras estão mais organizadas e harmoni- letras, 1988.
osas. Durante as atividades, as crianças têm respeita- CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas
do com mais naturalidade as normas, sem haver ne- Athena, 1990.
cessidade de tantas intervenções de caráter discipli-
nar. Os alunos, no final do pré, último ano antes de in- FRANZ, Marie-Louise von. O caminho dos sonhos. São
gressarem no ensino fundamental, estão obtendo me- Paulo: Cultrix, 1997.
lhores resultados na alfabetização. GASSET, Ortega Y. Que es filosofia? Madrid: Alianza
Muitos pais têm demonstrado interesse pelas no- Editorial, 1994.
vas propostas: alguns conversam com os filhos sobre GRINBERG, Luiz Paulo. Jung: O homem criativo. São
seus sonhos e até os registram; outros vão às mesmas Paulo: FTD, 1997.
exposições que seus filhos foram com a escola e são HILLMAN, James. O código do ser. Rio de Janeiro:
por esses monitorados. Há ainda aqueles que adoram Objetiva, 1997.
receber de seus filhos as "massagens" que estes apren-
deram na escola. As novas atividades estão começan- PLATÃO. A república de Platão. São Paulo: Nova Cul-
do a permear, de maneira significativa, o ambiente fa- tura, 1999.
miliar de nossos alunos intensificando a desejável par-
ceria familia -escola.
O entusiasmo das professoras que começaram a
percorrer com seus alunos esses novos caminhos foi
angariando cada vez mais adesões e podemos dizer que
a etapa de implantação foi superada. Estamos, atual-
mente , consolidando essas conquistas que já estão re-
velando novas necessidades. Uma delas, o aprimora-
mento teórico: formaram-se alguns grupos de estudos
(entre eles, os de psicologia analítica, arte-educação e
inclusão) dos quais participam as professoras interes-
sadas. Entre as professoras, está havendo uma mobili-
zação para a troca de informações sobre cursos, pales-
tras, eventos culturais.
Essas imprevisíveis, surpreendentes e ricas trans-
formações estão confirmando a validade dos caminhos
que a Necessidade nos revelou. Atentas às suas pistas,
pretendemos prosseguir percorrendo-os.
Bibliografia
ANfÚNEZ, Serafin & GAIRÍN, Joaquín. La organización
escolar. Prácticayjimdamentos. Barcelona: Graó, 1999.
100 101
4. SONHOS NA ESCOLA
Roberto Gambini*
• Analista junguiano e mestre em ciências sociais.
A ciência se expande a partir de debates, pontos de
vista alternativos, descobertas, novos métodos de in-
vestigação e caminhos ainda não percorridos. Infeliz-
mente, isso tudo no campo da psicologia profunda é
raro, porque todos nós freudianos e junguianos ainda
carregamos o luto decorrente da ruptura amarga entre
Freud e Jung há mais de noventa anos. A desavença
ainda não terminou, assim como não se completou
ainda a elaboração desse luto. É portanto necessário
haver intercâmbio e esforços conjuntos quando uns e
outros estão separados. Até parece que pertencemos a
religiões diferentes, quando, na verdade, estamos to-
dos procurando caminhos para chegar ao mesmo lu-
gar: o mistério da psique e de seu funcionamento, o
mistério da cura.
As áreas de convergência sempre me interessaram.
Estamos chegando a um momento de fim de ciclo, em
que as disciplinas isoladas mais ou menos esgotaram o
que isoladamente tinham para pesquisar e explicar. O
conhecimento novo resultará da superação de barrei-
ras convencionais e da transdisciplinaridade. Quer di-
zer, é necessário que ocorram trocas de pontos de vista,
aproveitamento de descobertas mútuas e de olhares apa-
rentemente incongruentes até agora mantidos à distân-
cia. Já não há mais razão para se proceder assim.
Nosso tema é educação e sonho. Ora, sonho e edu-
cação sempre estiveram separados, porque inconsci-
ente e aprendizado sempre foram províncias estrangei-
ras. Se tomarmos o dicionário de psicanálise de La
Planche e Pontalis, constataremos que lá não consta a
palavra inteligência. E se consultarmos a obra de Pia-
105
get não encontraremos mencionada com muita freqüên- Trata-se sem dúvida de uma utopia pedagógica para o
cia a palavra inconsciente, como se não houvesse uma século XXI, mas nada nos impede de pensarmos hipo-
relação fundamental entre inteligência e inconsciente. teticamente e de imaginarmos os possíveis efeitos que
Acredito que se vier a ocorrer algum salto quântico no dessa prática adviriam. Nesse caso, a educação deixa-
campo da educação, ele advirá não da elaboração de ria de ser meramente um canal de transmissão de in-
mais uma teoria racionalizante, mas da capacidade de formaçôes, passando a ser muito mais um processo
abrirmos as portas da percepção para as experiências que favoreceria a individuação do ser humano, atuan-
acumuladas em cem anos de psicoterapia e começar- do positivamente sobre a formação da sensibilidade,
mos a refletir sobre uma possível articulação entre a do imaginário, da dimensão poética e da criatividade.
educação e os processos que ocorrem no inconsciente. Segundo as iluminadas palavras de Gaston Bache-
O ponto básico desta idéia é que o inconsciente cria lard, o possível é uma tentação à qual o real acaba sem-
a predisposição para aprender. Não só para aprender; pre por se entregar. De uma perspectiva utópica e futu-
na verdade, o inconsciente abre ou fecha o próprio aces- rista, que leve em conta precisamente o que a cultura e
so à experiência da vida. Qualquer aspecto da vida que a ciência insistem em renegar, uma educação primor-
se tome em consideração estará sempre determinado dialmente voltada para formar cidadãos adaptados é
por uma constelação inconsciente favorável ou desfa- uma fórmula que já se esgotou. O que estamos buscan-
vorável, de modo que o aprendizado, tomado como um do são instituições e práticas que formem, além de ci-
dos aspectos da experiência humana, depende de uma dadãos, indivíduos capazes de estabelecer uma cone-
porta aberta no inconsciente para que possa ocorrer. E xão mais profunda do que aquela até hoje prevalecente
outra idéia - as utopias me atraem - é que deveríamos entre a dimensão racional e a não racional, entre pen-
questionar se realmente não aprendemos só e quando samento e sentimento, que se lance uma ponte reunin-
aquilo que é novo e desconhecido corresponde a um do dois mundos cindidos pela ininterrupta evolução da
conteúdo ativado no inconsciente. No trabalho analíti- racionalidade a partir do século XV. Nossa cultura e
co esse fenômeno pode ser claramente percebido: o nossa humanidade, no decorrer da história moderna,
símbolo ou o tema trazidos por um sonho imediata- acabaram polarizadas: razão e desrazão, consciente e
mente iluminam e motivam uma conversa entre tera- inconsciente, corpo e espírito, normal e anormal. .. a lis-
peuta e paciente. Uma conversa irrigada pela qualida- ta é longa. Há uma cisão porque ainda vivemos esses
de do conteúdo inconsciente que veio à tona sempre pólos como entidades antitéticas e portanto separadas.
faz sentido e é genuína. Será que não caberia à educação, no que lhe compete,
A observação desse fato, portanto, permite-nos pen- trabalhar esses opostos com vistas à sua integração
sar que a matriz do conhecimento está localizada no tanto na cultura como no indivíduo? Vislumbro por-
inconsciente. E que seria um grande desafio para a tanto uma educação que ouça o não racional, que ova-
educação do século XXI refletir sobre possibilidades do lorize e estimule tanto quanto ouve e valoriza o racio-
seguinte tipo: além dos conteúdos curriculares deter- nal, o técnico, o lógico e o pragmático.
minados pelo Ministério da Educação, que flexibilida- Não sou educador em senso estrito. Muito embora
de poderia haver nas escolas para que cada professor, tenha começado minha carreira profissional como pes-
sintonizado com aquilo que está constelado no incons- quisador e professor universitário, hoje só trabalho
ciente grupal, transmitisse exatamente o tipo de co- como analista. Tampouco sou terapeuta infantil, ape-
nhecimento demandado por aquela situação subjetiva sar do enorme amor e fascínio que sinto pelas crian-
inconsciente? Algo assim nunca foi sequer pensado. ças. Apresentarei portanto um trabalho não como quem
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lida com crianças no consultório ou na sala de aula. mana cheia de cacos de cerâmica espalhados pelo chão.
Minha perspectiva é a de alguém que se preocupa pro- Nesse local ele vê um alçapão no solo com uma argola,
fundamente com a questão de uma educação que leve levanta esse alçapão, depara-se com uma escada cava-
em conta o inconsciente, especialmente num país da na terra e, com uma lanterna, desce por seus degraus
como o nosso, impregnado de imaginário e de criativi- irregulares e encontra dois esqueletos.
dade reprimida. E antes de entrar no material em si, Este sonho é a pedra do escândalo da ruptura entre
gostaria de relembrar que a psicologia junguiana é Freud e Jung, porque Freud interpretou sua parte fi-
apaixonada por sonhos. Jung chegava a dizer - e aí é nal como um desejo de morte por parte de Jung. Este
que caberia um bom debate - que o inconsciente tam- não aceitou a interpretação freudiana e, no decorrer
bém ensina, já que em sua concepção a consciência é de alguns anos, apresenta a sua visão da psique como
filha do inconsciente. Na visão de Jung, o inconsciente sendo uma superposição de camadas, como se ob-
é uma matriz antiqüíssima da qual emerge, no lento serva na geologia ou neste sonho, que para Jung re-
curso de um tempo medido em milênios, um produto presentou gráfica e simbolicamente uma estrutura
revolucionariamente novo chamado consciência. E se- ainda não conhecida. A consciência do ego corres-
gundo essa mesma concepção, além de pessoal, o in- ponderia à sala convencionalmente mobiliada, en-
consciente também se configura num substrato coleti- quanto os aspectos menos apresentáveis da cons-
vo, anterior e subjacente às diferenças culturais. Quer ciência, a que denominou sombra, corresponderiam
dizer, essa camada primordial da psique contém estru- em parte à cozinha ou ao porão. O inconsciente pes-
turas, formas e predisposições que atravessam as épo- soal, e aí não há discrepâncias com a visão freudia -
cas e as culturas. Para nomear estas formas Jung cu- na, abrigaria os componentes inaceitáveis pela cons-
nhou o termo arquétipo, que significa forma arcaica. ciência devido a sua incompatibilidade. Mais "abai-
Ora, dizia ele, sendo o inconsciente tão mais antigo do xo", porém, haveria outro e depois outro e ainda outro
que a consciência, não poderia ser ele o depositário de nível inexplorado, sem se saber jamais onde se localiza
alguma sabedoria que eventualmente emergisse atra- o fundo de tudo, além do qual talvez não haveria mais
vés da linguagem que lhe é peculiar, ou seja, os símbo- psique enquanto fenômeno isolado.
los, as fantasias, a arte, os sonhos?
Inconsciente, lembremo-nos, significa o não conhe-
Em sua autobiografia Jung relata, e resumidamen- cido. Na verdade, nesta época em que vivemos, quanto
te repetirei aqui, um sonho do qual decorre seu apren- mais sabemos, mais reconhecemos que estamos mer-
dizado da estrutura da psique, segundo seu entender, gulhados no desconhecido. E para mim é um sinal de
em flagrante discordância com Freud - um dos moti- positivo ato de conhecimento reconhecer o enorme po-
vos, aliás, da separação de caminhos dos dois grandes der que o não conhecido, o não classificado, o não ma-
pioneiros. Jung sonha com uma casa burguesa, com peado exerce no nosso corpo, na nossa psique, na at-
uma sala convencionalmente mobiliada no primeiro mosfera, na cidade, na política, na cultura, na educa-
andar. No térreo localizava-se a cozinha. Ele percorre ção, nas idéias. O não conhecido é o inconsciente, e as-
esta casa e na cozinha encontra uma escada que desce sim como a sexualidade foi o tabu do século XIX, eu di-
a um porão, uma espécie de adega, na qual encontra ria que o tabu do século XX é o desconhecido, porque a
outra escada, desta vez mais tosca, que conduzia a um arrogância da tecnologia e da ciência consistiu exata-
nível ainda mais profundo, uma zona escura e som- mente na desenfreada pretensão de lançar luz, conheci-
bria, com o ar rarefeito, recoberta de abóbadas de tijolo mento, explicação e domínio ilimitado sobre a realidade
que lembravam uma antiga construção etrusca ou ro- tomada como um todo abarcável. E, no entanto, che-
108 109
gamos ao fim deste século reconhecendo que o que virá dade, e qual foi? As professoras sentiram que além de
de novo dependerá da adoção de novas categorias que tudo o que se exige delas, que estudem novas teoria pe-
nos permitam enfocar aquilo que nunca foi concebido. dagógicas, que se atualizem, que freqüentem congres-
E não nascido é que se chama inconsciente.
0
sos, que apliquem a metodologia tal, etc. , ainda por
cima se estivesse esperando delas que funcionassem
*** como psicoterapeutas. E no início elas ficaram com
Em 1997 recebi um convite da Escola Nova Louren- medo de não dar conta do recado. A primeira ansieda-
ço Castanho, em São Paulo, através de duas de suas de que portanto se instala na professora é que ela vai
diretoras, as educadoras e psicólogas Eda Canepa e Je- ter que trabalhar com o sonho da mesma maneira como
annette De Vivo, que me pediram para fazer uma confe- o faz um terapeuta especialmente treinado para tanto.
rência na escola abordando o tema da relação entre edu- Entendo muito bem essa ansiedade, porque este sécu-
cação e inconsciente, com uma vaga idéia no ar de que lo transformou o sonho em monopólio das terapias.
se poderia pôr em prática uma experiência. Propus en- Mas o sonho não é monopólio de nada e de ninguém.
tão que a escola abrisse espaço para que uma vez por As terapias usam os sonhos como instrumento de tra-
semana, na sala de aula, as crianças de três a seis anos tamento e freqüentemente o fazem muito bem. Mas o
relatassem seus sonhos em grupo e diante da professo- sonho não é posse exclusiva da terapia. Os artistas e os
ra. A orientação era a seguinte: o sonho deve ser anota- poetas sempre os usaram como bem entenderam e não
do ipsis litteris pela professora numa folha de papel, que há por que se pensar que um educador também não
depois ela entrega para a criança, solicitando-lhe que possa usá-los para seus próprios fins. Mas fica a per-
desenhe o sonho relatado. Só isso. Com regularidade, gunta: como será esse possível uso?
toda semana. Porém a proposta era livre, nenhuma pro- Como será que um educador lidará com o sonho? E
fessora foi obrigada a fazê-lo ou a seguir um manual a outra questão era: mas não será perigoso? Será que
previamente elaborado. Minha posição era de que se isso não vai estimular algum surto psicótico latente
tratava claramente de uma experiência, que enquanto numa criança? Será que estas não vão virar cobaias?
tal deve obedecer às regras da metodologia de pesquisa, Será que os pais não poderiam sentir-se ameaçados?
ou seja, observa-se, anota-se, repete-se a observação, Bem, como definítivamente eu não acreditava que nada
elabora-se hipóteses, reformulam-se as mesmas con- disso viesse a ocorrer - como de fato não se deu - dei
forme requerem os dados coligidos, colhe-se e classifi- como garantia minha palavra para a escola e disse: sus-
ca-se o material e só depois é que se pode começar a ten- pendemos o experimento se algo perturbador aconte-
tar teorizar a respeito do ocorrido. Há dois anos e meio cer. Eventualmente, com a vinda dos sonhos, se perce-
isso vem sendo regularmente praticado e sinto-me pro- bêssemos que alguma criança estaria precisando de
fundamente agradecido às professoras que acredita- tratamento psicoterapêutico, contaríamos com ainda
ram nessa idéia e resolveram pô-la em prática com mais elementos para um eventual encaminhamento.
enorme dedicação a partir de agosto de 1997. Então, primeiro manifestava-se a ansiedade das
A idéia também era de que cada uma agisse segun- professoras, depois a da diretoria geral da escola e a
do lhe parecesse mais indicado. Não há manuais, não terceira novidade, assim que se começou a experiência
há livros sobre este assunto, portanto não teria cabi- em 1997, foi um enorme susto ao se perceber que as
mento orientar passo a passo o processo, até porque crianças sonham com monstros, tubarões, facas, san-
tal atitude poderia criar ansiedade, um certo medo de gue, abrir barrigas, cortar cabeças, cair em buracos. O
desempenho inadequado. Mas surgiu sim uma ansie- que me fez de imediato pensar: será possível que essas
110 111
professoras não conheçam o mundo onírico das crian- Então eu diria que o primeiro resultado dessa expe-
ças? Mas os próprios pais, por acaso, conhecem eles o riência é que ela capacita a professora a sair de um lu-
mundo de fantásticas imagens no qual mergulham gar que lhe foi patriarcalmente outorgado por idéias
seus filhos todas as noites? Por acaso conhece nossa muito antigas a respeito do que deve ser a educação; a
cultura o mundo onírico de uma criança de três, quatro educadora abandona esta e passa para outra posição
ou cinco anos de idade? Quem é que está de fato inte- não patriarcal, uma posição na verdade mercurial, que
ressado em perguntar, em prestar atenção ou registrar, lhe permite jogar com o visível e com o não visível, com
a não ser os terapeutas? Não é à toa que os sonhos se o que a criança aparenta e com aquilo que ela pode in-
tornaram monopólio de uma disciplina, se nenhum ou- tuir que está por traz daquela aparência. Creio, por-
tro setor se interessou por eles! Quer dizer, é como se tanto, que só aí já temos um ganho significativo para a
este mundo onírico do imaginário infantil não existisse capacidade de educação dessa professora.
para fins outros que não os de tratamento. E a primeira Ao lado disso, criaram-se novos vínculos afetivos.
reação foi de susto, porque aquelas figuras, de repente Estou aqui reproduzindo depoimentos que ouvi das
manifestas com palavra e forma, realmente nos desas- próprias professoras envolvidas, não estou absoluta-
sossegaram um pouco. Porém, muito rapidamente cri- mente teorizando em cima de dados primários. A vin-
ou-se uma familiaridade e as educadoras começaram, culação, por parte das crianças, o que acarretou? Pri-
cada uma a seu modo, a perceber ou intuir o que pode- meiro, elas ficaram mais íntimas da professora, já que
riam fazer com aquilo e o que estava na prática aconte- estavam elas próprias abrindo sua intimidade. Algu-
cendo na sala de aula a partir dessa nova rotina de se mas crianças chamam seus sonhos de segredo e ao re-
propor aos alunos que narrassem seus sonhos. velarem-no para a professora criou-se naturalmente
um acréscimo de intimidade. Segunda observação:
Ouvi de uma colega, arte-educadora lacaniana, uma
uma criança de três, quatro, cinco ou seis anos tomar
expressão que não faz parte de meu vocabulário mas
a palavra e ver a professora anotar o que ela está dizen-
que imediatamente adotei. Comentou ela, diante de
do é o reverso da moeda que todos nós que fizemos di-
uma descrição sumária da experiência: "essa situação
permite à professora observar a criança a partir de um tado na escola vivenciamos, porque quem está ditando
é a criança e quem está escrevendo o ditado é a profes-
outro lugar". Creio eu que para Lacan a palavra lugar
sora. Ora, isso não desestabiliza nada, sendo apenas
nesse contexto seja uma palavra específica. Para mim
uma reversão de papéis na qual a criança se sente ex-
é uma palavra como outra qualquer, mas captei a suti-
tremamente valorizada porque passa a perceber que
leza. A professora como que está acostumada a ver o
aquela pessoa portadora de tantas projeções inconsci-
aluno sob uma certa configuração - ou gestalt- e de re-
entes para o aluno (autoridade, saber absoluto, repro-
pente ela está olhando o aluno sob outro prisma, ou,
dução dos pais, superior, etc.) pode dar tanta importân-
talvez se possa dizer, ela mesma passa a olhar de lá
para cá. Portanto, há um enorme ganho de capacidade cia para a narrativa de seu sonho que a registra respei-
tando os próprios termos em que foi enunciada, mera-
educadora na medida em que ela está conhecendo
mente porque a professora escreveu o que ela ditou.
mais uma dimensão daquele ser que está à sua frente.
E não se trata só de ouvir um sonho, já que junto com Mas não foi só isso: a criança se sentiu ouvida. Pres-
ele vem a história, ela acaba sabendo que morreu a tou-se atenção a um discurso seu que raramente ela é
avó, que nasceu um irmão, que os pais se separaram, convidada a enunciar, a não ser talvez em raríssimas
que a mãe foi assaltada, que a familia mudou de casa, familias onde haja um pai ou uma mãe terapeuta, ou
porque no fim um assunto acaba puxando o outro. artista ou poeta ou louco. Ou então uma criança que
112 113
-- ------- - - ~~'""-'-.ua.i.u 1....uu1u uu1 nnne ae aventuras em
do urna criança começa a contar um sonho, preferin?o
que logo mude de assunto, já que não sabem mmto capítulos. O garoto começou a desenhar, e há uma coe-
bem como reagir ou o que fazer com o exposto .. Qu_e rência inegável nas imagens que produziu. Ele não se
fantasias inquietantes povoarão a mente ?os pais_ di- contentava com uma folha de papel sulfite, era preciso
colar duas com fita adesiva, mais tarde colar quatro e
ante de uma situação como essa? Que o filho ou filha
está com problemas, que alguma coisa não vai berr: e no fim ele queria uma folha inteira de papel kraft para
que a culpa pode ser deles? Melhor realmente nao desenhar à vontade e poder ocupar um enorme espa-
prestar muita atenção ... ço. Esse garoto estava com o desenvolvimento preso.
Mas, a partir do momento em que começou a relatar
Ora, em nossa experiência a criança era convidada seus sonhos, surge toda uma história que retrata o
a falar uma língua nova, que é aquela que melhor des- nascimento do comportamento heróico em sua psique.
creve seu mundo imaginário - e nesse exato momento Sua postura na classe e sua imagem perante os cole-
ela percebe a atenção que esse relato desperta na pro- gas se alteraram por completo.
fessora e nos colegas. Tem lugar então outro importante
fenômeno, que é a interação intersubjeti~a. O relato de Quando observamos o efeito da experiência sobre
sonhos promove o aprendizado d~ respeit? pela fala do as próprias crianças, acontece um fato muito interes-
colega narrado~, porque depois vai ser a mmha vez e de- sante, que é um começar a entrar e participar do ima-
pois a sua vez. E como se fosse uma fala _solene, pode-se ginário do outro. Aqueles muito novinhos têm dificul-
até imaginar a emoção daquele que esta com a p~lavra dade, evidentemente, de diferenciar o que é sonho e o
precisamente porque a professora e os colega~ estao _ou- que é inventar uma história e minha orientação para
vindo. Além disto, a sociabilidade passa a ser mcentiva- as professoras foi que tudo valia, quer dizer, se a crian-
da pela própria energia que emana d_os son_hos em sua ça tem algo para contar, que ela possa fazê-lo livremen-
capacidade de expandir a imaginaçao conjunta. te, misturando sonho, fantasia, invenção ou até mes-
Em terceiro lugar, a experiência permitiu c~rto~ pro- mo contaminação pela história de outro colega. Mais
tagonismos. Crianças introvertidas têm ma~s dificul- importante do que tudo, nessa fase, é poder ter a expe-
dade de falar em público do que as extrovertida~, mas riência do narrador que merece a atenção silenciosa
ouvi relatos das professoras de que ce~as cn~~ç~s dos ouvintes. Com cinco, seis anos já dá para perceber
sempre muito silenciosas um dia anunciarai:n: hoJ_e melhor (tanto a professora quanto o aluno) o que é so-
vou contar meu sonho". E nesta hora essa cnança ti- nho e o que é história inventada e nesse caso o pedido
mida e introvertida se transforma na protagonista da explícito era que o sonho fosse relatado exatamente
classe. Essa experiência lhe permite entrar em contato conforme a memória o registrou, mas para uma crian-
consciente com outro lado de sua personalidade_ que ça de três ou quatro anos tudo vem da mesma fonte,
talvez não havia podido vivenciar antes, porque_ ~o na- seja sonho, história, fantasia ou invenção. A esse res-
quele momento ela se apoderou da palavra legitima~ peito, algo muito curioso aconteceu: um deles talvez
Há um caso interessantíssimo de um menino de tres sonhou com uma tartaruga, lembra da tartaruga do
anos e meio, cuja impressionante série de sonhos ve~e­ sonho e diz que a tartaruga foi e mordeu seu dedo. Daí
mos adiante, que se encontrava num estado regressivo vem outro que sonhou que a tartaruga foi não sei aon-
e demasiadamente infantilizado devido ao modo pelo de. Em seguida outro se manifesta e diz que sonhou
qual era tratado pela familia. Quando começou a con- com a mesma tartaruga, com outra variação. Percebe-se
114
115
claramente que eles se contaminam uns com os so- tratas, porque os números um, dois, três e quatro tam-
nhos dos outros, porque ainda estão na mesma fase bém devem de algum modo ser imaginados de alguma
psíquica e mental onde os mundos interno e externo se maneira, já que são emanações de antiqüíssimos ar-
confundem, os limites do que pertence ou não ao ego quétipos que fazem parte do longo processo de estru-
em formação ainda são indistintos. Estas crianças turação da consciência humana.
têm uma antena tão sensível e de espectro tão largo Portanto uma bem orientada ativação do imaginá-
que as imagens passam direto da tela mental de um rio, creio eu, auxiliará todo e qualquer processo de apren-
para os demais, como se dissessem: "Ah, você so- dizado que se alimente da imaginação e da fantasia
nhou? Eu também sonhei! O teu sonho é também o para gradualmente se transformar em pensamento.
meu sonho. Vou entrar nele e brincar junto!" Eles es- Vejo assim distintamente um caminho evolutivo que
tão todos mergulhados e congregados num grande so- parte da conscientização do sonho e de seu relato valo-
nho que acaba sendo um importante fator de identifi- rizado em direção ao enriquecimento da fantasia e do
cação, reconhecimento mútuo e sociabilização. Uma imaginário e ao nascimento do pensamento organiza-
reflexão posterior contribuiu para que percebêsse- do. E um caminho que percorre um trajeto dialético em
mos que trabalhar com os sonhos é o melhor alimento ziguezague. E idealmente os dois pólos, que nossa cul-
para o imaginário, é o instrumento por excelência para tura considera opostos, nunca mais deveriam se sepa-
se reconhecer e validar o imaginário. rar: o pensamento e a imaginação, que nasceram jun-
E então pergunto: até que ponto a educação precisa tos, deveriam continuar caminhando juntos para o
do imaginário? Até que ponto aprender é um ato racio- resto da vida, que é exatamente o que a escola separa
nal de memorização ou é preciso também imaginar? porque sua missão conscientemente assumida será
Como uma criança pode entender a cena do descobri- precisamente desvalorizar o imaginário e dissociá-lo
mento do Brasil em 1500 se ela não tiver a capacidade do pensamento, como se a este fosse nocivo, partindo
de criar uma cena mental correspondente, em que pos- a unidade original entre o racional e o não racional e
sa ver com o olhar interior as caravelas, o oceano, as removendo qualquer resquício de inconsciente de
praias da costa de Porto Seguro, o Monte Pascoal à dis- egos que passarão a ser condicionados e treinados
tância, o encontro fabuloso entre índios curiosos e por- para funcionarem apenas no seu registro racional.
tugueses ávidos e fazer uma representação viva, subje- Essas são, em linhas gerais, algumas observações bá-
tiva e pessoal dessa cena? Nós sabemos que há muitas sicas a respeito da experiência de implantação do rela-
crianças que sofrem de privação do imaginário porque to de sonhos na pré-escola.
não foram estimuladas pelos pais, pelos educadores O custo dessa experiência é zero. Não é preciso in-
ou pelo ambiente estéril e brutal em que vivem, e o ima- vestir nada, porque as professoras e os alunos estão lá,
ginário murcha como se fosse uma função ou um apên- o papel sulfite está lá, os ouvidos estão lá, as bocas es-
dice dispensável. Porém, mais e mais reconhecemos tão lá, não é preciso nada mais. O treinamento das
que nossa capacidade de imaginar é um dos traços professoras é simplíssimo e nós, na Escola Nova Lou-
mais preciosos que nos diferencia enquanto seres hu- renço Castanho, estamos com uma experiência de três
manos. E assim como é imperativo ter a capacidade de anos anotando as observações para aprimorar o méto-
imaginar a cena do descobrimento do Brasil e todas as do de trabalho e a reflexão teórica e crítica. Talvez um
que se seguem para poder penetrar no sentido de nos- dia se consiga implantar um projeto similar na rede
sa história, o desenvolvimento completo da mente pública. Essa escola recebe alunos da alta classe mé-
igualmente requer que se possam imaginar coisas abs- dia e da classe A e eu queria ver isso chegar nas escolas
116 117
da periferia de São Paulo, nas creches municipais. Eu - Você gostaria que seus pais conhecessem osso-
queria ver essa prática se espalhar pelo Brasil, porque nhos que você conta?
isso não custa nada e traz valiosos benefícios psíqui- Gostaria.
cos e pedagógicos. E qualquer pessoa pode entender
do que se trata e como se faz.
3º Depoimento
Solicitei às professoras que fizessem algumas per-
guntas aos alunos sobre sonhos e gravassem as res- - Yan, por que a gente sonha?
postas. Creio que vale a pena reproduzir algumas de- Porque a gente dorme.
las, nas quais a experiência onírica subjetiva é posta
em palavras pelas próprias crianças: 4º Depoimento
- Laurinha, por que a gente sonha?
1ºDepoimento
Porque ... porque tem uma coisa dentro da nossa
- Carol, por que a gente sonha? cabecinha que sai.
É o pensamento que a gente tem quando a gente
está dormindo. 5º Depoimento
-Sonhar é a mesma coisa que inventar uma história? - Lu, por que a gente sonha?
Não. sonhar é bem melhor. Porque a gente dorme muito gostoso.
- De onde vem o sonho?
Da imaginação. 6º Depoimento
- Você gostaria que seus pais conhecessem os so- - Beta, por que a gente sonha?
nhos que você conta? Porque é muito legal sonhar por causa que a gente
Não. tem emoção por causa de sonhar.
-Sonhar é a mesma coisa que inventar uma história?
2º Depoimento Não, mas pode ser porque é tão legal inventar histó-
- Felipe, por que a gente sonha? ria quanto ter sonho.
Porque quando a gente está dormindo a gente pode - De onde vem o sonho, Beta?
pensar muito tempo numa coisa e a gente pode sonhar Da nossa cabecinha.
nisso.
- E é bom quando a gente desenha nosso sonho?
-Sonhar é a mesma coisa que inventar uma história?
É bom porque a gente vai assistir outro igual e pode
Não, é muito diferente. ser de emoção.
- De onde vem o sonho? - E para que serve contar os sonhos para a professo-
Da cabeça. ra e para os colegas?
- É bom desenhar o sonho? Porque eles podem ter um sonho igual e podem ter
Legal. o mesmo sonho e falar, "pô, Beto, como você não con-
tou esse sonho tão legal e eu sonhei com esse sonho?"
118 119
- E você gostaria que o papai e a mamãe conheces- - E você conta os sonhos para os seus pais?
sem os sonhos que você conta? Eu ainda não contei, mas outro dia eu vou conta r.
Queria porque aí eles podem conhecer o sonho que - E você acha que eles vão gostar de saber o seu sonho?
fala assim que gostava do filho, que coisa assim ... que Acho.
nasceu um filhinho ...
- Você acha legal contar para o papai e para a ma- 8 º Depoimento
mãe o seu sonho?
- Por que a g ente sonha, Camüa?
Acho.
Porque a gente .. . para a gente ficar mais feliz.
7º Depoimento
9 º Depoimento
1
- Caio, por que a gente sonha?
- Dikran, por que a gente sonha?
Quando a gente dorme acontece isso mesmo, né?
Porque assim ... às vezes a gente pode pegar a idéia
-O quê?
do sonho para desenhar.
Sonhar.
- Sonhar é a mesma coisa que inventar uma história?
- Você dorme e o sonho aparece?
Não.
1 É, fica aqui na cabeça.
1 - É bom desenhar um sonho?
- E me diz uma coisa, sonhar é a mesma coisa que
'
inventar uma história? É.
I'
É um pouquinho. Só que você tem que pensar bastan- - Para que serve contar um sonho para a tia e para
te para lembrar do sonho, né? Não sei o que ... também so- os colegas?
nhar só aparece à noite, quando você está dormindo. Porque assim eles também podem ter idéias na ca-
- E você acha bom desenhar o sonho? beça.
'I Ah, eu adoro isso! - Você gostaria que seus pais conhecessem os so-
- E para que serve contar o sonho para mim e para nhos que você conta?
os colegas? Gostaria.
É um segredo.
' li
- E você acha isso legal? 1Oº Depoimento
Ah , muito! - Isadora, por que a gente sonha?
- E você gostaria que seus pais conhecessem os so- Ixi! Porque a gente está dormindo e se não tiver
nhos que você conta? nada para pensar, a gente pensa isso. Essa é a minha
opinião.
Sim.
- Sonhar é a mesma coisa que inventar uma história?
-Porquê?
Não, porque se você inventa uma história ela está
Eles são muito grandes, mas é que eu adoro eles inventada, se você faz um sonho é porque você sonhou.
mesmo , né?
!
120 121
., l
- De onde vêm os sonhos? - E você acha bom desenhar o sonho?
Bom. eu não acho nada. Eu acho que quando a Eu acho bom.
gente produz na nossa cabeça, daí a gente sonha. - Você gosta de contar e depois desenhar?
- É bom desenhar o sonho? Gosto de contar e de desenhar.
Eu não acho. Desenhar eu não acho, mas contar é - E para que você acha que serve contar os seus so-
melhor. nhos para a tia Fê e para os seus amiguinhos?
- Você gosta mais de contar. Por quê? Para escutar.
Porque desenhar dá muito trabalho e contar é mais - E você gostaria que o papai e a mamãe conheces-
fácil porque é só você falar. sem os sonhos que você conta aqui na escola?
- Para que serve contar os sonhos para a tia e para Eu queira.
os colegas? O que você acha?
As crianças tomaram a palavra e não me parece ne-
Para mim serve quando você não tem nada para cessário acrescentar nada. Ficam claros a importância
contar, você vai lá e conta e daí já conta e já vem outro e o sentido que o relato dos próprios sonhos têm para
na cabeça para gravar o velho. elas, assim como suas explicações sobre o fenômeno.
- Desgravar o velho? Algumas dessas crianças têm apenas três anos, mas
É. Gravar o velho. elas já fazem uma idéia do que seja um sonho. Elas não
têm medo de seus sonhos, convivem com eles, apenas
- Você gostaria que seus pais conhecessem osso-
não sabem, a não ser que sejam incentivadas, o que
nhos que você conta?
podem fazer com eles. Esse é um material precioso
Não, porque eles têm o próprio da cabeça deles e eu para estudo e pesquisa. Aí temos a pré-formação do
tenho o meu na minha cabeça. conceito de vida psíquica. estas crianças já estão co-
meçando a elaborar o que é psiquismo usando essa
12º Depoimento terminologia própria de sua idade e de sua condição
- Antônio, me diz uma coisa, por que a gente sonha? social. Estou convencido de que nessa tenra idade
Você sabe? pode formar-se um vinculo com a dimensão subjetiva
que mais tarde produzirá frutos inestimáveis para o
Sei. Porque toda noite eu durmo. vou dormir. crescimento interior.
- E daí a hora que você dorme você sonha? Retomando agora o fio da apresentação do mate-
Sonho. rial, desde agosto de 1997 cerca de trinta professoras
- E você sabe por quê? trabalharam nesta linha com dezenas de crianças e
nós temos hoje mais ou menos dois mil sonhos coleta-
Sei. É porque está de noite.
dos. Tentei fazer uma classificação provisória, impres-
- E você acha que sonhar é a mesma coisa que inven- sionista, arbitrária, mas útil para esta fase inicial, ba-
tar uma história? seada em temas. Examinando uma amostra desse
É. material com a colaboração de algumas professoras
- E de onde você acha que vem o sonho? foram criadas doze categorias, passíveis de alteração a
qualquer momento conforme vá se diferenciando o
Da nossa cabeça. material empírico.
122 123
O primeiro conjunto compõe-se de sonhos que tra- organizado e lógico, que brota do inconsciente para ser
tam da farrúlia e da casa, e há muitos desse tipo. No se- assimilado conscientemente. O importante neste
gundo conjunto o tema é a escola; o terceiro agrega te- caso é a possibilidade de colocar a questão diante da
mas que se referem ao crescimento da criança: de re- professora e dos colegas, legitimando-se dessa forma
pente ela fica corajosa, ousa fazer alguma coisa sozi- o tema, que passa a fazer parte de uma pauta de dis-
nha, separa-se dos pais. No quarto conjunto foram agru- cussões. Começamos assim nossa série com este sim-
pados sonhos em que aparecem as imagens do ladrão e ples sonho, que faz sentido para qualquer criança,
da bruxa; o quinto se refere aos animais e aos mons- porque remete à pergunta antiqüíssima sobre quem
tros; no sexto conjunto estão os heróis; depois vêm os somos e de onde provimos.
fantasmas e esqueletos; e há alguns sonhos estatisti- Agora temos uma menina de quatro anos que so-
camente não muito freqüentes, mas qualitativamente nhou que era uma flor. O pai era um girassol e a mãe
muito importantes, e para agrupá-los criamos uma ca- uma margarida. Estavam no mesmo jardim, mas cor-
tegoria chamada morte e renascimento, porque esse taram o cabo de seus pais (cf. figura n. 2 no final do
tema de fato aparece. Devido ao impressionante mate- capítulo). Se quisermos seguir um rumo preocupan-
rial produzido por um menino de três anos, menciona- te, poderíamos nos perguntar o que são esses pais de
do no início, que de uma posição regressiva passou a cabo cortado. Ou então podemos seguir outro cami-
ocupar a de protagonista, criamos uma categoria se- nho: esta menina fez um desenho cheio de vitalidade,
parada para a figura do robô. As três últimas categori- em que registra um fato psíquico: seu inconsciente di-
as foram denominadas emoções (ou estados de alma), minuiu a importância do pai e da mãe e aumentou a
anjos e Deus, embora estas duas últimas apresentem sua, enfatizando seu crescimento em curso. Isso faz
apenas um sonho cada uma, que no entanto, especial- parte do processo de estruturação do ego sem o im-
mente o apresentado ao final, se destaca por sua enor- pacto poderoso demais da imagem parental.
me importância temática. Juntei agora dois sonhos da mesma menina de três
anos. O desenho superior con-esponde ao seguinte re-
lato: "estava chovendo e aí veio uma água e levou todas
1. Família e casa as plantinhas da minha casa e daí elas murcharam"
Este é o primeiro sonho e o que a criança disse foi o (cf. figura n. 3 no final do capítulo). E no de baixo, seis
seguinte: "o verde à direita é o meu cachorro, a outra é meses depois: "eu sonhei que estava passeando com a
minha mãe e na barriga dela sou eu pequenininho. Ela minha mãe e daí eu achei um monstro no meio do ca-
estava tomando suco e sol. Eu sonhei que eu estava na minho". Para essa menina a chuva aparece no seu as-
barriga da mamãe quando eu era nenê" (cf. figura n. 1 pecto destrutivo, não é uma chuva que está irrigando,
no final do capítulo). Pode-se perceber que neste sonho fazendo crescer, mas é uma chuva que levou as flores
este menino está começando a pensar de onde veio, a embora. E quando ela está passeando com a mãe ela
investigar sua origem e ele declara, porque isso já está encontra um monstro. Se a professora quiser, e não
na sua consciência, que já esteve na barriga da mãe. precisa ser terapeuta para isso, ela pode prestar um
Não sabemos se ele sabe como saiu de lá ou como en- pouco de atenção nesta menina. Prestar atenção nos
trou. Aí temos um belo exemplo do processo de forma- sonhos seguintes, porque alguma coisa preocupa. Ou
ção da consciência, a busca de uma resposta para o pode ser apenas uma projeção nossa. Em todo caso,
mistério do começo da vida. Essa elaboração é natural esses dois sonhos intrigam, chamam a atenção para
nas crianças, corresponde ao princípio do pensamento um cuidado. As professoras instintivamente começa-
124 125
rama prestar atenção em algumas crianças por causa alfabetizando se sentem muito estimuladas a escre-
de sonhos desse tipo e acabaram se inteirando de situ- vê-los. Relatá-los estimula portanto a prática da cali-
ações difíceis que os alunos viviam e às quais ordinari- grafia. É um fato novo, sobre o qual nunca se fez a me-
amente não tinham acesso. Fatos desse tipo é que alte- nor conjectura, mas trata-se de um dado empírico que
raram o "lugar" ocupado pelas professoras. vem sendo repetidamente observado. Na parte inferior
Outro sonho: "eu sonhei que estava no mar e tinha vê-se o mar e quatro patinhos. E o sonho é assim: "eu
uma baleia que ficou minha amiga - é o desenho de sonhei que estava num navio, o navio virou e eu caí no
baixo - só que ela levou um tiro. Eu estava com meu mar com a minha familia". O interessante é que houve o
pai e a amiga dele" (cf. figura n. 4 no final do capítulo). naufrágio de um navio, mas não o afogamento das pes-
Os pais estão se separando e o pai já tem uma namora- soas da familia, que aparecem como patos que flutuam.
da. Podemos ver a baleia, depois uma figurinha, um Isso tanto pode se referir a um problema concreto, emo-
casal junto e uma outra figura, de chapéu como a do cional da familia ("o barco virou"), como não. Um sonho
lado esquerdo, de cuja mão emanam projéteis - seria o não prova que há um problema familiar; o que este in-
pai atirando na baleia? Mas há corações, há céu ... dica é que a criança, diante de um naufrágio, encontra
pode-se até pensar: será que esta baleia que levou um uma forma transformada de sobrevivência.
tiro não é uma maneira de o inconsciente aludir à Mais um, o último da série familia: "eu sonhei que
mãe? Pode ser que sim, pode ser que não. Não estou in- minha mãe estava no prédio e jogou uma aranha mi-
terpretando e não foi isso o que as professoras fizeram. nha pela janela" (cf. figura n. 6 no final do capítulo). No
Meu problema é que não resisto a fazer conjecturas e desenho correspondente aparece o prédio e a aranha
comentários diante de um sonho assim, acompanhado que a mãe está jogando pela janela. Para mim, isto su-
pelo desenho. Segundo meu modo de ver, parece que o gere a hipótese, se eu tomar a aranha como um símbo-
sonho, mas especialmente o desenho, cheio de cores, lo de fantasia negativa promotora de medo ou de terror
indicam que a menina, ao invés de ter caído numa de- noturno, de que essa mãe, que aparece em sua dimen-
pressão, de alguma forma integrou o trauma da sepa- são positiva, ajuda esse garoto a se livrar de alguns
ração dos pais. No outro sonho (acima) ela disse assim: medos. Mas pode não ser exatamente isso. Não impor-
"eu sonhei que tinha uma galinha que estava botando ta! O que importa é que ele contou, desenhou, parti-
muitos ovos e que eu estava nadando numa piscina". lhou, e dessa forma se livra da aranha, o que não deixa
Ela desenha a piscina e um monte de ovos. Esses dese- de ser um avanço em seu crescimento.
nhos são muito coloridos. Os pais se separaram, mas o
inconsciente cria sonhos para essa menina e ela os re-
presenta cheios de cores. A galinha talvez se refira à 2. Escola
mãe, ou, em outra leitura, talvez esses ovos sejam um Passemos agora ao outro conjunto, composto de
símbolo de fertilidade, como que dizendo: houve uma sonhos que se referem à escola. O relato é de uma cri-
separação dos pais, isso dói, mas continua havendo ança pequena que está saindo da primeira infância:
vida e novas possibilidades. Alguém poderia pôr essa "eu sonhei que estava na escola e tinha na prateleira
criança no colo, levá-la para um passeio, dar-lhe um da sala da tia um bebê de verdade. Aí a Luíza gritou co-
presente - mas quem de fato está cuidando de seu migo falando que eu não podia levar o bebê porque o
equilíbrio psíquico é seu próprio inconsciente. bebê era dela. Aí eu deixei o bebê na prateleira e não le-
Aqui a própria criança escreveu seu sonho (cf. figu- vei para casa. Aí eu acordei" (cf. figura n. 7 no final do
ra n. 5 no final do capítulo). As crianças que já estão se capítulo). Temos então as duas colegas e o bebê na pra-
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teleira e ela vai embora, deixando o bebê onde estava. ao lado poderíamos ver uma série de mãos plantadas
Tudo nos leva a crer que o convívio escolar promove o no chão. Cortar os dedos é uma imagem clássica de
crescimento da menina, pois ela deixa para trás o bebê, contos de fada. João e Maria tinham que mostrar o
sua primeirissima infância. Um sonho como este, a meu dedo para a bruxa e disso dependia sua sobrevivência.
ver, serve perfeitamente de parâmetro para uma avalia- A Bela Adormecida feriu o dedo com a ponta do fuso e
ção escolar sobre o desempenho da garota, ao lado de in- caiu num estado crônico de sono. Na simbologia com-
dicadores de outra ordem. A novidade é que, nesse caso, parada encontramos muitas histórias de cortar o dedo,
estaremos levando em conta um indicador interno. além de ser este um simbolo de diminuição de força, de
Outro sonho: "sonhei com um alienígena e aí eu es- castração da força ativa, da força de vontade, da capa-
tava na escola e apareceu um disco voador e eu lutei cidade de fazer e agir. Os dedos são fundamentais para
com eles. Eu era o único esperto o bastante para lutar a caligrafia e demais tarefas manuais. Levantei esta
com eles. Daí acordei" (cf. figura n. 8 no final do questão para as diretoras e professoras, ponderando
capítulo). Então esse menino já está se vendo como um que quando o lado negativo, ou, como diria Jung, a
herói na escola porque sabe lutar contra o inimigo, sombra da escola aparece representada em sonhos, é
além de ser o único esperto o bastante. Além disso, tem preciso que se procure detectar que situação específica
a chance de usar a intrigante palavra "alienígena", que poderia estar sendo representada dessa forma, para
já consta de seu vocabulário e ele parece ter prazer de que se promova as necessárias correções. O interes-
poder exibi-la. Fica sugerida a constituição em anda- sante neste caso é que a autocrítica da escola não de-
mento de um ego já bastante autoconfiante e de uma correria de sua avaliação a partir de um modelo ideal
presença afirmativa do garoto em meio a seus colegas. teórico de funcionamento, mas a partir das críticas
Pode-se, querendo, ver na cena uma pequena ponta de que o inconsciente das próprias crianças está fazendo.
superioridade ou inflação, que no entanto não deve ser E há vários sonhos desse tipo. Conheço um, de um
encarada isoladamente. Seria difícil imaginar o sonha- adolescente em época de prova, em que ele se via dian-
dor como um menino tímido agarrado à saia da mãe ou te de duas portas: numa estava escrito "português" e,
da professora com um sonho desse tipo. na outra, "matemática". Ele entrava numa, mas então
Agora o sonho de uma menina, que aponta para se defrontava com outras três: "português", "geografia"
algo inesperado numa escola: "eu sonhei que cortei o e "história". Após escolher uma delas, via-se no centro
dedo aqui na escola com gilete. Eu gosto dos sonhos de um círculo de professores, onde devia ficar nu. Quer
que eu tenho, mas não de pavor. Trocaram o tanque de dizer, este sonho está mostrando como o aluno se sen-
areia e ao invés de ser retângulo, era oval. E a gente te numa prova, o que não deve agradar nada aos psico-
não sabia que tinha furinhos no tanque. E a Vivi e a pedagogos de vanguarda. Os sonhos, portanto, podem
Juli cortaram os dedos no furinho e eu não vi o sangue" apontar o lado sombrio da escola, que muitas vezes as
(cf. figura n. 9 no final do capítulo). Acho esse sonho palavras edificantes e as boas intenções ocultam.
importantíssimo, porque se a escola souber aprovei-
tá-lo bem ele está dizendo que a criança percebe a
sombra da instituição. A menina em seu sonho se dá 3. Crescimento
conta de que algo oculto no ambiente escolar lhe causa Consideremos agora alguns sonhos que abordam o
um ferimento no dedo, assim como às suas duas cole- tema do crescimento, embora já o tenhamos encontra-
gas. Uma das meninas no desenho está sem braços, e do anteriormente sob outra rubrica (que na verdade é
secundária). A criança tem quatro anos: "um dia desci
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sozinho do apartamento e chamei meu amigo e aí eu da assim precisa de ajuda para sair. O sonho provavel-
nadei sozinho porque meu amigo não quis ir" (cf. figura mente denuncia uma situação que merece cuidado e
n. 10 no final do capítulo). O amigo não tem coragem de que não foi expressa verbalmente.
nadar e o sonhador percebe suas aptidões aparecendo. O desenho da parte superior corresponde ao se-
Imagine-se que ele conta isso para a professora e os co- guinte texto: "eu sonhei que tinha um monstro no ter-
legas - naturalmente o garoto se sente bem, sua au- raço, mas só que ele estava fantasiado. Ele não era um
to-estima sobe. Lembremo-nos neste instante do que as fantasma de verdade, era uma pessoa. Eu fui ver no
próprias crianças dizem a respeito de contar seus so- terraço e era uma pessoa com máscara" (cf. figura n.
nhos na sala de aula. O crescimento está constelado no 12 no final do capítulo). Aqui temos outro aspecto da
inconsciente, portanto o aluno poderá responder positi- problemática do crescimento. Esse menino está lidan-
vamente aos estímulos da escola para que se desenvol- do com a questão do verdadeiro e do aparente: é fan-
va, adote novos hábitos e abandone apegos infantis. tasma ou apenas uma máscara? É ou não é? Aí temos,
Durante uma atividade de matemática, uma pro- numa imagem, toda a dinâmica do processo de lidar
fessora anotou que uma aluna espontaneamente se com o medo, quer dizer, perder o medo é descobrir que
aproximou e comunicou-lhe o desejo de contar um so- se teme algo que na verdade é uma máscara, uma apa-
nho naquele exato momento. A menina então disse: rência, um fantasma. O sonho intriga o sonhador com
"eu sonhei que estava dentro de uma mochila, daí colo- a ambigüidade do ser ou não ser, parece que é, parece
quei a cabeça para fora, pedi socorro, mas não adian- que não é - o que indica que o garoto já tem condições
tou porque minha mãe estava dormindo" (cf. figura n. de compreender o problema do medo. Dele mesmo, de-
11 no final do capítulo). A mãe não percebeu o que ela senhado abaixo: "um dia eu sonhei que tinha um
quis dizer presa dentro de uma mochila. A filha presa monstro no meu terraço - começa igual - e ele não es-
na mochila e a mãe adormecida, presa dentro de um tava fantasiado, era um monstro de verdade. Estava de
quadrado duas vezes cruzado. Se essa menina estiver noite, eu não estava sonhando e fui para o quarto da
em terapia, o terapeuta trabalhará devidamente esse minha mãe". Agora podemos ver conjuntamente o
sonho com ela. A professora não é terapeuta e não vai medo e o não medo. Nesta segunda situação o medo é
interpretar nada, mas é impossível não sentir uma cer- real e absoluto, o monstro é de verdade e o garoto vai é
ta preocupação diante dessa cena. Alguma coisa se sen- para a cama de sua mãe. No outro, porém, há uma dia-
te. Passa-se a observar com mais cuidado como está lética: pode ser verdade, pode não ser. Discriminar e
essa menina. Tenho orientado as professoras para que crescer não são tarefas simples, e o inconsciente desse
reflitam muito sempre que aparece em sonho uma fi- garoto formula em imagens algo que estaria muito
gura de mãe que não atende, que não cuida, que não vê além de sua verbalização.
o que ocorre com a criança. Naturalmente, até por car- Outra situação interessante: o menino sonhou que
regar uma projeção materna e ser até certo ponto uma brigou com a família, daí abriu a porta do armário e re-
substituta ou continuadora da mãe, a professora pen- solveu que ia dormir lá dentro, mas estava nesse lugar
sará que talvez lhe caiba prover algo que essa c~an_ça e ele resolveu ir para a sala. Mas em seguida ele desceu
não esteja recebendo da própria mãe, porque esta dito e foi dormir na guarita do prédio e quando acordou deu
no sonho que há um pedido de socorro. Estar_ p~esa urn grito, mudou para a sala do prédio e lá montou uma
dentro de uma mochila é estar se sentindo opnnuda, cabana com todas as suas malas." Viva! Viva!", excla-
sem movimento, talvez com dificuldade para fazer _os rnou, acabando porém no hospital porque sua cabeça
deveres de casa. Ela tenta pôr a cabeça de fora, mas am- estava sangrando por ter dormido na madeira, sobre
130 131
um parafuso. Como estava sozinho, foi pegar dinhei~o Neste caso, o desenho é a caligrafia. E o sonho é: "eu
no banco, US$ 93. E aí ele foi para a casa de seu avo, sonhei que estava dirigindo e daí eu não sabia brecar.
que lhe perguntou: "cadê_ seu_s pais?" E ele :esp?nde1! Então eu bati o carro e morri" (cf. figura n. 17 no final do
para o avô: "em casa eu fiquei de mal deles. Dai o avo capítulo). Portanto, qual é o problema desse menino?
disse: "você não devia ter feito isso." Esse é o sonho (cf. Limites, breques, saiba guiar, mas saiba brecar, os dois
figura n. 13 no final do capítulo). O garoto brigou COJ:? ?s movimentos conjugados é que levam ao crescimento.
pais, já quer ser auto-suficiente, vai_ ~ormir 1:º ~rmano,
na sala, na guarita e então constrm sua propna casa, 4. Ladrão e bruxa
desprezando a casa dos pais, só que sua cas_a tem um
parafuso no chão que lhe fere a cabeça, esse e o probh::- Uma menina sonhou que estava com um amigo
ma e ele tem que ir para o hospital. Depois aparece o avo, chamado Vítor e os dois estavam procurando um la-
o grande pai, que vai ~conselhá-1? a r:_ão_ bri~ar assim drão para matá-lo. Conseguiram matá-lo e cada um
com os pais. O sonho da conta da situaçao mterra. Talvez voltou para sua casa (cf. figura n. 18 no final do capítu-
ao contá-lo ele tenha podido perceber que exagerou, que lo). Fica-se sabendo que a mãe tinha sido assaltada na
ainda é cedo para uma ousadia tão grande e nem precisa semana anterior. Então, uma semana depois de a mãe
ser repreendido, já que a voz paterna enunciada pelo in- ser assaltada em São Paulo, cena da nossa vida cotidia-
consciente cumpre esse papel. O sonho o convoca a um na, essa criança sonha que com um companheiro e com
auto-exame e aí é que se encontra o crescimento, não esse tamanho de revólver ambos vencem o mal e salvam
na independência precoce e insustentável. ou resgatam alguma coisa da mãe. O sonho compensa
Outro episódio: "eu sonhei que eu estava na casa uma situação de medo e fragilidade, estimulando a ga-
da minha avó, na piscina, sozinha, mas eu estava de rota, transformada em heroína, a não se deixar abater
bóia" (cf. figura n. 14 no final do capítulo). Aí temos diante da proximidade da violência. O relato perante os
uma independência auto-sustentada, adequada, na colegas certamente reforça essa posição.
medida certa. Mais uma imagem: "eu sonhei que chu- Sonho de uma menina: "um dia fui dormir e apare-
pava chupeta e eu só contei para o meu pri_mo Pedr~ ceu uma bruxa e ela cortou a mínha mãozinha" (cf. fi-
que chupa chupeta e daí ele falou que sonho e verdad~ gura n. 19 no final do capítulo). No desenho aparece
(cf. figura n. 15 no final do capítulo). Então o inconsci- por três vezes o estrariho ínstrumento que decepa mãos.
ente também trabalha a questão da chupeta, analoga- Vimos anteriormente o dedinho cortado por uma gilete
mente ao que vimos com respeito ao medo: está ch~­ oculta na areia (figura n. 9); aqui nós temos uma bruxa
pando, não está, está dizendo que chupa, ?1ªs -?~º que corta a mão. Abordei com as professoras o duro
chupa, etc. Evidentemente na classe des~a faix~ etana fato de reconhecermos que todos nós temos uma som-
discutir chupetas e fraldas e ir ao banheiro e nao fazer bra. A sombra da boa mãe é a bruxa, como o é igual-
nas calças é um tema de transcendental importância! mente a sombra da boa professora. Com a melhor das
Reparemos nesse sorriso, nessas mãos e pés e no intenções, pode-se involuntariamente atuar sobre a
sonho que provocou um desenho como esse (cf. figura criança com base em nosso lado negativo. E aí vai apa-
n. 16 no final do capítulo). O sonho é curtíssimo: "eu ia recer em algum lugar a bruxa. Não sei o que aconteceu,
sozinha para a loja de brinquedos sem meu pai nem~­ não conheço essa criança, mas a imagem da bruxa
nha mãe". Esta menina, sem pais internos que a proi- está cortando sua mão. E cortar mão, de novo, é impe-
bam, goza de sua dose de autonomia para fazerº. que dir a ação, a livre expressão, o movimento espontâneo,
lhe dá prazer sem incorrer em nenhuma desmedida. é uma castração, uma punição por um ato proibido e
132 133
por aí podemos nós e a professora irmos conjeturando se sobre o próprio desenho e depois a decisão foi tomada
alguém não abusou do poder- sem, é claro, excluir a hipó- de que não deve em caso algum haver a menor interfe-
tese de tratar-se da própria mãe, ou da mãe negativa inter- rência sobre o desenho. Sonho: "Eu sonhei com um tu-
barão, eu estava fugindo e ele me mordeu, mas eu dei
nalizada que se manifesta como autopunição. um chute nele". Aí temos os primórdios da coragem, do
Retomemos aquele sonho que discutia se era fan- arquétipo do herói, constelando-se na psique desse ga-
tasma ou não, se era ou não era monstro de verdade (fi- roto tão novo. Outro menino de três anos: "Eu sonhei
gura n. 12). Consideremos agora o seguinte: "eu sonhei que eu estava preso enrolado na minhoca e daí ela me
que eu assistia 1V e tinha um filme de bruxa e aí tinha prendeu" (cf. figura n. 23 no final do capítulo). Quando
um cara com a cabeça torta. E aí ele e a bruxa saíram da tomei conhecimento deste sonho ocorreu-me a idéia de
parede e eu tomei um susto" (cf. figura n. 20 no final do sugerir uma ponte entre o trabalho com sonhos e o tra-
capítulo). Como no caso anterior, esse sonho parece es- balho de arte na escola. Imaginei que a professora de
tar lidando com aquelas situações em que a criança vê arte poderia pegar essa imagem, propor que o menino
filmes de terror e configura-se um estado mental que ou a classe toda fizessem uma cobra de pano cheia de
confunde os planos de fantasia e realidade- até que pon- areia ou de qualquer outro material e sugerir ao garoto
to as cenas aterrorizadoras estão dentro da televisão ou que se enrolasse na cobra, desenrolasse, desenhasse ou-
será que em algum momento elas irão pular para fora e tras cenas, as reproduzisse em argila, enfim, que drama-
virar tridimensionais? Um adulto não precisa sonhar tizasse e exorcizasse a cobra. Assim como aludi no início,
isso (em princípio, ao menos), mas a criança, numa certa temos que fazer uma ponte entre o consciente e o in-
idade, está elaborando exatamente essa questão. O so- consciente e quando o trabalho artístico brota de uma
nho indica portanto a temática de suas elaborações in- imagem constelada, certamente ele é muito mais ge-
ternas e as facilidades ou dificuldades encontradas para nuíno do que se a professora aleatoriamente propuser
que o processo siga um curso progressivo. que o aluno desenhe a primavera, ou qualquer outro
Outro sonho: "eu estava dormindo na minha cama e tema que não o mobilize naquele instante. A idéia é que
daí veio uma bruxa e me amarrou na cadeira e ia me co- cada vez mais o trabalho artístico leve em conta as
zinhar no caldeirão e aí o meu pai veio me salvar e ele me imagens que aparecem nos sonhos das crianças para
levou para casa e aí eu acordei" (cf. figura n. 21 no final futuras elaborações com colagens, com argila e até
do capítulo). Interessante notar que em todo o material com expressão corporal e dança, já que a escola tam-
coletado a figura do pai não é tão freqüente quanto se bém conta com um especialista em dança que está tra-
poderia supor. Neste caso entra em cena um paí salva- balhando movimento expressivo e espontâneo com as
dor que resgata a criança amarrada pela bruxa. O so- crianças. Minha grande utopia é que um dia seja pos-
nho tanto pode referir-se a uma situação familiar espe- sível dançar os sonhos na escola. Não sei se isso será
cifica, em que supostamente haveria uma diferenciação possível, mas creio que vale a pena defender a idéia.
acentuada entre as duas figuras parentaís, ou permite Este sonho certamente pode ser dançado: "Eu sonhei
que especulemos sobre a necessidade de um princípio que tinha uma joaninha e ela tinha uma minhoca e ela
de lei e regras para contrabalançar a força sombria do disse que tinha perdido a casa dela. Daí começou a chu-
princípio materno exageradamente controlador. va e ela tinha muito medo de chuva e voltou para casa
correndo" (cf. figura n. 24 no final do capítulo). Aí temos o
5. Animais medo de perder a casa, de se aventurar longe demais e
encontrar-se a perigo. Novamente, vemos a atividade in-
A escrita é da professora (cf. figura n. 22 no final do consciente criando breques, contenções e limites.
capítulo). Na fase inicial do experimento elas escreviam
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134
----11111111111n 1
Criança de quatro anos, a mesma que sonhou estar
presa na mochila (figura n. 11). Agora sua cena interna um monstro que foi meu amigo, mas agora ele é do
é a seguinte: "eu sonhei que caí num buraco che_io de mal. Ele queria comer as pessoas, mas só comeu algu-
morcegos e minha mãe estava voando como um passa- mas. Depois eu cortei a cabeça dele com uma espada e
m e eu não consegui sair do buraco e daí eu acordei" (cf. ele morreu. Eu consegui ver o sangue dele, era roxo"
figura n. 25 no final do capítulo). Se juntarmos esse so- (cf. figura n. 29 no final do capítulo). Então aqui deve
nho e o da mochila, no primeiro a mãe está dormindo e estar a cena da decapitação do monstro. Aqui reencon-
não ouviu o pedido de socorro; neste a mãe está voando tramos o tema do heroísmo, acrescido da questão do
como um pássaro. E, em ambos, a mãe está cruzada. bem e do mal ou de quem pertence a qual lado - tema
Par~ce ser indicado, neste caso, que alguém da escola que, como veremos, povoa o imaginário infantil. Uma
chame esta mãe, mostre esses desenhos e sonhos e per- interpretação rápida desse aspecto poderia vinculá-lo
gunte: minha senhora, o que está acontecendo? aos veículos de comunicação de massa, onde essa te-
mática é explorada ad nauseam, mas retenho a noção
É uma menina. Ela sonhou que a mãe estava grávi- junguiana de que se trata de arquétipos do inconscien-
da, mas o filho que ia nascer era um hipopótamo. Boa te coletivo e as crianças, já bem cedo, debatem-se com
maneira de se livrar daquele que vai destronar: não é essa questão, que em última análise, com o amadure-
gente, é um hipopótamo. Mas vejamos a continuação do cimento, as levará aos terrenos mais complexos da éti-
sonho: "daí, ao colocar uma saia, do lado de dentro es- ca e da ontologia e gênese do mal.
tava cheio de formigas" (cf. figura n. 26 no final do capí-
1 tulo). Ela diz que a mãe vai parir um hipopótamo, mas Aqui temos um tubarão: "ele estava dentro do meu
ela própria tem que ficar se coçando com as formigas. O quarto e daí eu fui para a cama da minha mãe" (cf. figu-
li
li
1
nascimento do irmão dá coceira e mesmo que ela o ra n. 30 no final do capítulo). Este menino não enfren-
transforme em hipopótamo ela vai ter que se coçar. tou o tubarão, não deu chute, foi para a cama da mãe -
a negação do herói. Numa classe, pode ser que um não
' 11
Esta menina sonhou com dois macacos grandes e ela
e a mãe foram para debaixo da cama e escutaram o choro
de um bebê macaco enquanto o pai estava dormindo (cf. fi-
vai mais para a cama da mãe e o outro vai. O relato par-
tilhado de sonhos desse tipo, assim como do anterior,
pode revestir-se de um caráter emulativo: o que ainda
gura n. 27 no final do capítulo). Aqui, de nov?, é ela,_ a_mãe, tem dificuldades de mudar de patamar psicológico se
I~: dois macacos e um bebê macaco. Essa mernna está lidan- apercebe de que o colega enfrenta, luta e vence o mons-
[i do com a história se vai ter ou não um irmãozinho, com to- tro, como se um estivesse ajudando o outro a se educar
~
dos os conflitos internos que tal evento desencadeia. através dos sonhos.
1
Agora temos um sonho longuíssimo, com uma par- Num certo dia algo curioso ocorreu, uma menina
te inventada e outra sonhada. Não vou reproduzi-lo levantou a mão e disse: "vou contar o sonho da minha
por completo, embora se trate de uma grande peripéc~a. babá. Ela contou que um bebê estava chorando, mas
O menino entra na floresta e encontra o lagarto. Dai o era minha irmã. Aí quando ela abriu a porta, continua-
lagarto vira uma cobra e a cobra vira um leopardo e daí va chorando e era uma galinha assada". Em seguida
o leopardo o ataca e desce da árvore. Quer dizer, é uma ela relata seu próprio sonho, mas o desenho deve ter
grande aventura na selva em que ele misturou sonho e sintetizado algo de cada um: "eu sonhei com um mons-
1 fantasia e fez esse desenho lindo com guache, uma tro estranho que era do bem. Aí depois os monstros es-
11 li obra e tanto (cf. figura n. 28 no final do capítulo). Um tavam num trem. Era eu, minha tia, minha irmã e meu
sonho, uma história, um relato e uma obra. Cheio de Primo fora do trem. A minha irmã era pequena e o brin-
bichos, monstros ... então ele sonhou: "eu sonhei com quedo dela quebrou porque os monstros passaram por
11
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' l
cima do brinquedo da minha irmã com o trem. Quando o ir:ventado h~ uma linha demarcatória nem sempre
você ouviu o choro era da minha irmã. O Hércules es- mmto perceptivel, o que indicaria que um pouco de
tava quebrado" (cf. figura n. 31 no final do capítulo). atenção poderia revelar algum componente imitativo
Este é o relato. Aí temos uma história tecida a partir do na personalidade desta criança.
aparente ciúme da irmã menor, em que aparece o de- .. _ Aqui é uma criança de três anos que diz o seguinte:
sejo de quebrar o brinquedo desta, embora paradoxal- ~um lobo que comeu a minha mãe" (cf. figura n. 35 no
mente o feito fosse atribuído a monstros do bem. Não fmal do capitulo). E a mãe está grávida! O desenho de
poderíamos ver aí a negação e a ambivalência do pró- fato sugere um ventre de gestante e nesse caso o lobo
prio impulso maldoso voltado contra a irmã rival? se presta bem ao papel de carregar o desejo sombrio da
Mais uma cena de combate: "eu sonhei com o Pin- criança atingida pelo ciúme. Na sala de aula, quer se
güim, ele estava dormindo comigo e aí eu peguei uma queira ou não, a questão se manifestará de uma forma
faca e cortei a cabeça dele" (cf. figura n. 32, parte inferior, ou outra, mas a professora sensível, atenta ao sonho,
no final do capítulo). Um ano depois, isso porque as estará munida de uma informação que muito útil lhe
professoras estão anotando, esse mesmo menino rela- será, caso essa criança venha a atuar a emoção cons-
tou: "eu sonhei que eu fui à casa do Pingüim e do Bat- telada em seu inconsciente.
man. Eu lutei com ele e quase que ele me atirou com o
guarda-chuva dele. O Batman me ajudou a lutar com 6. Heróis
ele e daí eu não morri porque eu subi na minha casa e
peguei uma espada e furei a barriga dele. Aí eu me es- Sonho: "a minhoca e_stava perto da árvore, perto da
condi dentro do meu armário e me tranquei e daí ele minha casa, comeu a traça que passou pelo meu corpo
furou o armário e eu lutei de novo e ganhei" (cf. figura todo e morreu" (cf. figura n. 36 no final do capítulo). A
n. 32, parte superior, no final do capítulo). A identifica- garatuja indica a pouca idade da criança, que não obs-
ção com o herói Batman inspira a postura combativa e tante já enfrenta em sonho situações que desafiam sua
destemida diante de figuras monstruosas, que cum- coragem. Outro: "Eu sonhei que eu era o Super-Homem
prem o papel de realçar a coragem do protagonista. e ataquei todos os monstros. Daí o Ricardo era o chefe
dos monstros maus. E daí ele mandou os maus me ata-
Esta menina tem três anos, o que se percebe pelo carem, mas eu dei um soco nele, no monstro. Eu tinha
desenho ainda em garatujas: "uma minhoca queria pe- uma coisa no braço que eu joguei e cortou a cabeça do
gar o menino que eu vi na 1V' (cf. figura n. 33 no final monstro. Tinha um disco no meu bolso que estava escri-
do capítulo). Não se trata de um monstro, apenas de to: monstros viram do bem. Quando o Ricardo viu o
uma minhoca, mas o que importa é o medo que sua
monstro ele começou a virar do bem e ele falou que eu
aparição causa, o grande perigo da constrição, como
sou um homem de aço" (cf. figura n. 37 no final do capí-
vimos na figura n. 23. Agora comparemos com este:
tulo). Novamente os elementos de coragem um tanto in-
"sonhei com um monstro e enfiei a faca nele e aí eu ga- flada e de luta contra os poderes do mal, com a caracte-
nhei" (cf. figura n. 34 no final do capítulo). Eu acho que
rística transformação instantânea em seu oposto.
este é uma contaminação daquele do Pingüim (da figu-
ra n. 32). Os dois alunos estão na mesma classe e dá a Continuamos com os sonhos do mesmo menino,
impressão que este também quis sonhar algo heróico, percebe-se claramente a uniformidade de estilo: "So-
mas a resolução está fácil demais, tem-se a impressão nhei que ganhei uma fantasia do Homem-Aranha e
que o problema simbolizado pelo combate ou não exis- quando eu coloquei ela, virei o Homem-Aranha e daí eu
te, ou não está resolvido. Entre o copiado, o sonhado e tinha uma corda e uma teia de aranha de verdade e eu
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subi nas paredes dos prédios, daí eu matei os mons- ma, muito pelo contrário: a criança regride e retrocede,
tros assim: bum, bum, bum! E aí eu enforquei o Barre- embora o simbolismo da queda do dente indique cres-
to que era monstro e eu peguei uma faca e enfiei na bar- cimento e mudança de atitude. No sonho a presença
riga dele e saiu um nenê monstrinho" (cf. figura n. 38 no do fantasma não desperta curiosidade investigativa,
final do capítulo). Investido das qualidades heróicas, o mas no desenho sua figura é marcante, como uma en-
garoto não só se supera a si mesmo como aproveita e tidade em tudo oposta à menina.
mata o colega que o devia estar perturbando. Esta é bem novinha: "Um dia eu sonhei que eu via
Ainda do mesmo autor: "Eu sonhei que eu virei um esqueleto do lado da minha janela. Daí eu acordei e
Mike e ele era bom de basquete. Tinha cem monstros e fui para a cama da minha mãe" (cf. figura n. 41 no final
eu chamei todos os desenhos da turma do Pernalonga do capítulo). Com tão pouca idade, a figura do esquele-
e o Space. O Mike passou a bola para o Perna e elejo- to, que oculta o tema da morte, só poderia mesmo pro-
gou a bola na cabeça do monstro e foi parar na cesta. Ai vocar a busca de uma proteção segura, capaz de reme-
o Mike jogou na cabeça do Perna, daí o Perna jogou a ter tal conteúdo de volta para o fundo do inconsciente.
bola na cabeça do monstro e daí os monstros morreram Ainda não é hora de mexer nisso.
e eles ganharam" (cf. figura n. 39 no final do capítulo). O Outro sonho: "os fantasmas queriam me pegar para
interessante nesta seqüência é que a facilidade em li- pôr num caldeirão e me engolir" (cf. figura n. 42 no fi-
quidar monstros acaba adquirindo a característica de nal do capítulo). O desenho avança mais do que o so-
um jogo de basquete, portanto, o sonhador, além de nho, já que nele os fantasmas recebem ao menos uma
herói, vê-se como um campeão dos esportes. Como caracterização peculiar, embora permaneçam um
será ele na aula de ginástica? enigma a qualquer tentativa de elaboração simbólica.
Essa criança deve ter três anos: "Era uma caverna
7. Fantasmas e esqueletos que tinha uma caveira, um homem muito mau e uma
flor envenenada" (cf. figura n. 43 no final do capítulo).
Esses dois temas, embora possam aparecer em en- Não deixa de ser impressionante que essa temática
redos curtos e prosaicos, evocam, em última instância, dark povoe o sonho de uma menina tão novinha, o que
uma inquietação não resolvida referente à possibilida- no entanto apenas indica que em seu inconsciente ela
de de vida após a morte e da morte em si, o esqueleto já participa de toda uma dimensão que não costuma
assustador como remanescente concreto de uma vida decorar as paredes dos berçários e quartos de brinque-
que se foi. As crianças sentem-se atraídas por ambas dos. A flor envenenada, em especial, indica enorme
as figuras e de certa forma desfrutam do ligeiro medo sensibilidade para um imaginário autônomo. Será ela
que lhes causam. A simplicidade dos enredos que se- no futuro leitora de Baudelaire?
guem poderia indicar que esses temas não têm sido,
nesse grupo de crianças, objeto de maiores elabora-
ções, permanecendo, por assim dizer, em estado ger- 8. Morte e renascimento
minal. Vejamos o seguinte sonho: "Fui beber água e São dignos de nota a singeleza do sonho e do desenho
não saía. Abri a torneira e saiu um fantasma. Fui para desta menina: "Eu sonhei que meu coração partiu. Aí eu
a cama da minha mãe e aí caiu meu dente e ficou um acordei" (cf. figura n. 44 no final do capítulo). Essa meni-
buraco" (cf. figura n. 40 no final do capítulo). A surpre- na já passou por duas ou três professoras que juntaram
sa e o medo causados pela aparição inesperada do fan- todos os seus sonhos num painel enorme, onde aparece
tasma não provocam, neste caso, atitude heróica algu- tudo o que se desenvolveu depois do coração partido.
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O desenho de cima é: "Sonhei que estava no mar, aí seu corpo, alma e espírito. E entre si, sem interferência
eu me perdi, afundei e morri. Daí eu ressuscitei e fui de ninguém, elas ficam discutindo e elaborando essa
morrendo e ressuscitando, morrendo e ressuscitando questâo de vida pós-morte, vida e morte, etc., o que
morrendo e ressuscitando. Daí teve uma hora que e~ não é exatamente um tema livremente ventilado nas
morri, mas meu pai veio perto de mim, ele me ressusci- escolas em geral, mas que emerge espontaneamente
tou e depois me matou com uma faca" (cf. figura n. 45 na mente infantil por corresponder a um arquétipo da
no final do capítulo). Aqui nós estamos num outro ní- consciência. Ao ter sido dada permissão para uma cri-
vel de profundidade. Parece inaçreditável que uma cri- ança contar um sonho como este, imediatamente o as-
ança da pré-escola possa estar elaborando no incons- sunto adquiriu legitimidade na escola.
ciente tanto a questão da continuação da vida após a
morte, tema arquetípico dogmatizado pela maioria das
9 . Robôs
religiões que conhecemos, como o fenômeno, este de
natureza mais estritamente psicológica, de que o cres- Vejamos agora a série de sonhos de um menino de
cimento implica uma série de "mortes" do ego infantil três anos, mencionado no início por suas característi-
para sua transformação em consciência em processo cas infantilizadas, tendo já sido assinalado que, a par-
de amadurecimento. Sendo "o pai" o causador dessa tir do momento em que começou a relatar seus sonhos,
seqüência, poderíamos ver aí uma indicação de que é o tornou-se protagonista e centro das atenções, o que foi
princípio paterno, ou seja, o reconhecimento da lei, acompanhado por uma rápida mudança de atitude em
das regras, do modo pelo qual o mundo funciona, que direção ao crescimento, com maior participação sua
rege essa dinâmica. Por uma questão de método, não nas atividades da classe. Seu primeiro sonho é o se-
excluiríamos a possibilidade de estar o sonho se refe- guinte: "Eu estava num lugar onde tinha muitas por-
rindo a uma problemática pessoal entre pai e filha; tas. Apareceu um fantasma e eu fiquei com muito
mas o propósito do experimento era justamente não medo, acordei e fui chamar minha mãe" (cf. figura n.
atribuir à professora qualquer tentativa nessa direção, 46 no final do capítulo). Esse é o começo de uma narra-
que foge à sua formação, mas sim identificar uma área tiva que revelar-se-á longa, congruente e detalhada-
na qual ela pudesse relacionar-se com o sonho sob o mente desenhada. Em seguida: "Sonhei que eu era o
prisma do processo educativo e de melhor conheci- Batman e estava num lugar onde tinha muitas portas e
mento do mundo subjetivo das crianças. Fatos posteri- fantasmas e eu lembrei que tinha uma arma, mas não
ores indicaram o enorme talento dessa menina para adiantou. Depois apareceram mais portas e quando
produzir sonhos carregados de simbolismo, tendo os achei que não tinha mais fantasmas, na última porta
mesmos merecido um grande painel para que pudes- apareceram mais, daí eu peguei a arma, cortei tudo e a
sem ser apreciados em conjunto. arma adiantou. Daí eu acordei" (cf. figura n. 47 no final
Há em São Paulo, no município de Carapicuíba, do capítulo). Percebe-se que a vitória sobre os fantas-
uma escola concebida e dirigida pela educadora Peo que mas do medo limpa o terreno para que algo se desen-
procura caminhos pouco percorridos pelas institui- volva. Nesse dia, a professora anotou: "Foi muito legal
ções oficiais de ensino para educar e promover o de- esse dia, o clima da classe ficou ótimo, senti que está-
senvolvimento da sensibilidade de crianças dessa mes- vamos mais íntimos. O aluno pareceu muito feliz por
ma faixa etária. Dela ouvi o relato de que quando morre ter conseguido contar o sonho diante dos colegas. No-
um passarinho, as crianças têm altas discussões so- tei que expressou-se bem melhor, com vocabulário
bre a reencarnação da ave e o que vai acontecer com mais rico que o normal, nem parece o mesmo que no
142 143
juntar todos os desenhos e respectivos sonhos juntos e eu acordei" (cf. figura n. 59 no final do capítulo). Um
num painel, e aí se vê, graficamente representada, a menino de quatro anos que sonha com um anjo está
história psíquica da transformação interior desse me- muito perto de uma reflexão sobre espiritualidade.
nino no decorrer de um ano (cf. figura n. 55 no final do Hoje, superadas certas projeções que diminuíam a
capítulo). Esse tipo de material é absolutamente inova- profundidade da percepção e da sensibilidade infantis,
dor e indica as possibilidades que se abrem quando a já se conhecem vários depoimentos impressionantes
educação passa a se interessar pelo inconsciente. de crianças sobre a natureza da alma, sua origem, sua
Como estou quase terminando, gostaria de ponde- relação com Deus e com a criação. Interessante notar
rar o seguinte: lá pelo ano 2030 essas crianças vão ter que, nesse sonho, o menino pode vivenciar sua dimen-
uma coisa que nunca ninguém teve até então: uma co- são de anjo, mas a vida na Terra, com a cabeça voltada
leção de sonhos e desenhos de quando tinham entre para ela, o chama. O equilíbrio é obra do próprio in-
três e seis anos de idade. Se uma delas no futuro for fa- consciente do qual esse sonho emana.
zer análise, disporá de um material que documenta os
primórdios de sua vida psíquica num grau de detalhe
até hoje inexistente. Nunca, até o presente, se pôde pres- 12. Deus
tar tanta atenção ao psiquismo e à subjetividade de cri- A abertura desta categoria justifica-se não pela
anças em idade pré-escolar como se pode fazer agora. quantidade de sonhos que engloba, mas por sua rele-
No fim do ano, os pais recebem as redações, os traba- vância. Na verdade, compõe-se de um único sonho,
lhos manuais, as figurinhas de argila e uma coleção de narrado por um menino de seis anos, que começou di-
sonhos de seus filhos, retratos das fases da alma ainda zendo que havia tido um sonho bom e outro ruim. O
mais eloqüentes que o difundido álbum de fotografias. sonho bom: "sonhei com uma luz e fui seguindo. Che-
guei num tipo de tenda e lá encontrei Deus. Imagina
10. Emoções que Deus me deu a mão, mas eu não pude ver o rosto
dele. Podia ser que não fosse ele" (cf. figura n. 60 no fi-
Certos sonhos caracterizam-se muito mais por evo- nal do capítulo). A representação gráfica dessa cena foi
car um certo estado de alma do que propriamente por feita por meio de dois corações metade verdes, metade
um enredo dramático. Isso em nada lhe tira a impor-
tância, antes, pelo contrário, já que são os formadores azuis, e de uma forma abstrata em vermelho com urna
da capacidade de discriminar sentimentos e emoções. espécie de mão. A escola não segue nenhuma orienta-
Relato de um garoto de três anos: "Esse é um desenho ção religiosa, mas esta criança está sonhando com a
de um sonho que está guardado. Esse desenho tinha questão fundamental da teologia ocidental: é possível
três cores" (cf. figura n. 56 no final do capítulo). Outro: ver o rosto de Deus ou tudo não passa de uma suges-
"Eu sonhei que eu sou uma fada" (cf. figura n. 57 no fi- tão? Na dimensão inconsciente, ou seja, naquela não
nal do capítulo). ou então: "Sonhei que estava no show controlada pelas intenções do ego, esse menino viveu
da Angélica e o sonho se realizou, porque eu fui mes- um fato impressionante, um encontro com o sagrado
mo!" (cf. figura n. 58 no final do capítulo). porque seguiu uma luz. A dúvida quanto à veracidade
da experiência evidentemente se instala, porque ela é
parte constitutiva de nossa cultura atual. Ora, o im-
11. Anjos portante disso tudo é que esse evento psíquico foi do-
"Eu sonhei que eu era um anjo que estava no céu. cumentado. O garoto falou, alguém ouviu, a memória
Depois coloquei a cabeça para baixo e acabou o sonho reteve. A experiência do sagrado e a dimensão trans-
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cendente daquilo que costumamos chamar de "reali- Reuni-me recentemente com a m aioria dessa s pro-
dade" são o grande conteúdo bloqueado pela era tecno- fessoras e pude convencer -me de que hoje ela s n ão têm
lógica e materialista. Mas isso não impede que um sim- mais medo do inconsciente dos alunos, pois aprende-
ples sonho rompa a barreira e coloque a questão diante ram que podem lidar com esses r elatos, imagens e
da apreciação da consciência, ou, em nosso experi- emoções, reconhecendo que os mesmos constituem
mento, diante da atenção dos colegas e da professora. uma parte vital dos alunos e que estão plenamente ca-
A alquimia, como demonstrou Jung, é um grande re- pacitadas a organizarem o relato grupal, a valorizar
positório de imagens do inconsciente coletivo, muitas essa experiência, a registrar observações com critério e
delas consideradas heréticas pela Igreja Católica desde auxiliar-me nesta fascinante pesquisa que n ão sabe-
a Idade Média até hoje. E num compêndio de alquimia mos até onde vai nos levar e que possíveis conseqüên -
encontrei esses dois corações (cf. figura n . 61 no final do cias pode gerar. Quando a oportunidade s e apresen -
capítulo). que representam dois tipos diversos de ema- tar, solicitarei sua cooperação para que possamos im-
nações espirttuais da Terra. O tema dos dois corações plantar esse experimento numa escola pública ou
está presente nos mais variados sistemas esotéricos. numa creche da prefeitura, para que possamos com-
Como é muito pouco provável que o garoto conhecesse parar sonhos segundo a influência ambiental e o nível
esse tipo de material, aí temos uma pequena confirma- socieconômico das crianças.
ção da hipótese junguiana sobre o inconsciente coletivo Para finalizar, gostaria de mencionar o fato de algu-
enquanto depositário de imagens que espontaneamen- mas professoras terem prestado especial atenção a sé-
te surgem e que podem ser amplificadas, isto é, compa- ries de sonhos em que um mesmo tema reaparecia - no
radas com equivalentes em outras configurações cultu- caso, a figura paterna. Isso permitiu que se observasse
rais, para que melhor se apreenda seu sentido. o aspecto premonitório de alguns sonhos quando, atra-
Eu ainda teria muito material para apresentar, mas vés de sua percepção inconsciente, as crianças captam
por ora basta. Na verdade, material novo não cessa de um problema sério no ambiente familiar que afeta e
aparecer, desafiando-nos continuamente a compreen- virá a afetar ainda mais suas vidas. Um menino, por
dê-lo e classificá-lo. Cada vez mais configuram-se séries exemplo, relatou o seguinte: "Sonhei que meu pai esta-
de sonhos. E merece especial menção o fato de que as va nadando, aí tinha um tubarão com controle remoto
educadoras, como se supôs desde o início, acabaram e eu fui desligar o tubarão para ele não morder a bunda
achando sua maneira própria de trabalhar com os so- do meu pai". Algum tempo depois: "Sonhei que meu
nhos. Elas perceberam que cada sonho, cada desenho pai morreu e daí eu e minha mãe salvamos ele". Outro:
tem um estilo. Quando se acompanha uma série, é pos- "Sonhei que minha mãe não conseguia enxergar
sível perceber o ponto em que surge um problema. Des- nada". Em seguida: "Sonhei que meu pai ficou doente".
sas observações resultou a inovadora idéia de repassar A professora começou a prestar mais e mais atenção.
a pasta individual dos sonhos de cada aluno pela pro- Os sonhos prosseguiam: "Encontrei um fantasma
fessora do pré para a da primeira série. Então ao lado de que era feio. Ele queria enfiar uma faca na testa" . A
um relato referente ao aprendizado a professora que professora notou que esses sonhos começaram em
termina seu trabalho com uma turma tem uma conver- abril de 1998 e prosseguem nessa linha até abril de
sa com a colega da série subseqüente a respeito das ca- 1999. Nesse momento foi comunicado à escola que o
racterísticas dos sonhos de cada aluno, material esse pai do menino teve um enfarto. Não há como ignorar
que passa a incorporar-se aos tradicionais aponta- ou negar o fato de que um ano antes do pai ter o aci-
mentos e avaliações pedagógicas. dente vascular seu filho já sonhava com imagens que
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sugeriam um grave risco ameaçando o pai, a falta de Roberto Gambini: - Nossos índios dizem que osso-
percepção da mãe e sua impotência para deter um pro- nhos vêm do coração. Talvez essa expressão das crian-
cesso patogênico em curso. ças seja um condicionamento. A cabeça simboliza uma
Há outro caso semelhante: os sonhos começam a dimensão tão exagerada na nossa cultura, que para
ser coletados em março de 1998 e continuam até o se- nós tudo está na cabeça. De fato, o sonho ocorre no
gundo semestre de 1999 e também giram em torno da cérebro. São certas ondas cerebrais específicas que
figura do pai ameaçado. Um aluno sonha que está num geram o sonho. Ao sugerir essa pergunta, imaginei que
planeta todo vermelho cheio de robôs do mal, onde ha- respondessem que vem do céu, vem de não sei onde.
via um gato ferido. Em seguida: "Um vampiro queria pe- Mas é verdade, houve muitas respostas de que o sonho
gar meu pai". E outro: "O Drácula queria chupar o san- vem da cabeça.
gue do meu pai e transformou minha mãe num zumbi". Mãe de aluno da Escola Nova Lourenço Castanho: -
Na seqüência: "Sonhei que estava vendo filme de terror Eu gostaria de cumprimentá-lo por essa idéia maravi-
e apareceu um monstro e eu chamei meu pai. Ele ma- lhosa e à Escola Lourenço Castanho por tê-la acatado e
tou o monstro, mas nasceram mais cinco cabeças no dizer que os maiores beneficiados são meus filhos que
mesmo monstro". Outro: "Eu sonhei que estava pes- estudam lá. Meu filho menor tem seis anos e está no
cando e ao invés de pescar um peixe pesquei um polvo. pré. Uma noite ele estava dormindo, de repente acor-
O polvo enforcou meu pai e eu". E o último: "Eu sonhei dou e foi para a sala de jantar, sentou na mesa e come-
que estava com meu pai e o gorila quase comeu a gente. çou a desenhar. Vi quando ele passou, mas não imagi-
Chegou o sol e ele foi para a água". A professora acom- nei o que era. Vi ele desenhando e disse: olha que lindo!
panha e finalmente fica sabendo que este pai está de- Você está aí desenhando! Você perdeu o sono? E ele
sempregado há um ano. O filho sonhava que estão chu- respondeu: "mãe, sabe que o Vivaldi estava numa igre-
pando o sangue de seu pai. A angústia de um pai de fa- ja assistindo à missa e, de repente, veio um momento
rrúlia desempregado, que contamina e afeta a família e o criativo e ele saiu fora da igreja e foi compor". Aí eu per-
filho, é representada nos sonhos muito antes que o as- cebi a associação entre Vivaldi saindo da igreja e ele sa-
sunto pudesse ser tratado de modo objetivo e conscien- indo da cama para representar o seu sonho. Foi um
te. E esse pai desempregado, meses depois, também momento de extrema recompensa e de acreditar que o
acabou tendo um enfarto. que importa é mover a criatividade, mover todo esse
mundo que está aí "desconhecido". Ele nos dá a opor-
Comentários e intervenções* tunidade de tornar-se conhecido.
Pessoa da platéia: - Qual o sentido desse depoi- Roberto Gambini: - É um belíssimo exemplo. A cri-
mento das crianças de que o sonho vem da cabeça? ança que aprendeu que o sonho deve ser desenhado e
retido ... Seu filho pegou uma pérola, o que indica que
ele será capaz de fazer muitas outras coisas.
Mãe de aluno da Escola Nova Lourenço Castanho: -
•Extraídos de uma palestra realizada na PUC/SP na mesa-redonda: Osso-
Mas se não fosse essa oportunidade, ele poderia levar
nhos e a educação, em 27 de maio de 1999. Estavam presentes no au- muito tempo ...
ditório, além da mãe de um aluno. educadores da Escola Nova Louren-
ço Castanho, educadores de outras escolas e profissionais de diferen- Roberto Gambint - Quantos sonhos se perdem!
tes áreas de atuação. Mas seu filho ouviu Vivaldi na escola, sabe o que é com-
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posição, portanto consegue estabelecer uma conexão ele não tinha. Eu penso que se essa pesquisa puder se
consciente com a imagem do sonho e agir a partir dela. estender para a rede pública, onde as crianças têm po -
O bonito é perceber que o sonho desperta e ativa o ele- der aquisitivo mais baixo, elas terão acesso a outro tipo
mento criativo que há nele. O ideal seria que ele não de expressão que talvez substitua a droga, porque para
perdesse jamais essa ligação com suas imagens inter- sonharem elas hoje estão fazendo este uso, já que seu
nas e bem sabemos que, nessa idade, isso depende em universo social não permite sonho nenhum. É preciso
parte da postura de valorização ou não da subjetivida- ter alguma coisa que as ajude a sair desta realidade.
de assumida pela escola e pela familia. Quero fazer ainda outro comentário. Ontem, numa
Pessoa da platéia; - Você achou uma interface de mesa-redonda sobre neurociência, discutia-se se no
gênero, ou seja, será que alguns temas são mais recor- futuro haverá uma evolução tecnológica que permita o
rentes para meninas do que para meninos? registro direto das imagens cerebrais. Mas se forem in-
conscientes, como a pessoa irá reconhecer que são suas?
Roberto Gambint - Quer participar da pesquisa? A Vendo esses desenhos e ouvindo essas vozes infantis,
gente vai ter que pesquisar isso. A bruxa aparece mais convenço-me de que a única maneira de garantir a
para as meninas . O ladrão aparece mais para os meni- subjetividade é esta que vimos aqui.
nos, porque creio que representam o lado negativo da
mãe ou do pai, mas não é improvável a ocorrência con- Roberto Gambini: - Muito obrigado pelo seu co-
trária. Essa é uma pesquisa a ser feita. Eu queria no mentário.
futuro ir vendo se há uma variação temática significa- Pessoa da platéia: - Eu estou encantada com a pes-
tiva correlacionada às faixas etárias - não estou pen- quisa. Quando você disse para o rapaz- quer entrar na
sando em nenhuma teoria psicológica, não estou pen- pesquisa? - Eu pensei, meu Deus, já estou dentro.
sando no ego com cinco ou seis anos. Estou deixando Como é que nós vamos fazer para expandir isso, que
tudo de lado por enquanto e propondo uma observação tipo de contribuição poderemos dar?
empírica direta desses fenômenos segundo o sexo, a Roberto Gambint - O que não sabemos ainda é se a
idade, a classe social. As crianças de que falamos aqui escola vai expandir essa prática para atingir o primeiro
são de uma certa escola. O que será que sonham as cri- e o segundo graus. A escola já demonstrou uma inten-
anças da Zona Norte? Será que elas sonham com as- ção, mas até o momento não foi tomada nenhuma de-
sassinato, com metralhadora, com maconha, com po- cisão. Se isso ocorrer, os formatos terão que mudar.
lícia, abandono, sexualidade adulta? Todo esse campo Creio que os adolescentes não devem contar os sonhos
está por pesquisar. dentro da sala de aula, talvez isso deva ocorrer no con-
Pessoa da platéia: - Você mencionou duas vezes texto das aulas de teatro ou de dança. Quando come-
que gostaria de registrar sonhos de crianças de escola çam a aparecer os sonhos com sexualidade surge a
pública. Como eu trabalho com saúde pública, lido, questão da vergonha e da privacidade, do sigilo, do cons-
por exemplo, com a questão das crianças que fazem trangimento. É preciso descobrir formas adequadas
uso de drogas e com crianças de rua. Um dos craquei- que levem tudo isso em conta. Talvez a participação
ros que a gente entrevistou dizia que preferia comprar deva ser voluntária, ao invés de grupal, diversamente
uma pedra de crack, que custa um real, porque aí ele do que ocorre com as crianças, onde não foi verificado
iria sonhar com o que ele queria ter, ao invés de roubar nenhum caso de recusa em participar.
e assaltar. A droga lhe permitia imaginar um tênis que
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_u.a platéia: - A minha experiência é que até quei fascinada com tudo aquilo e comecei a procurar
~dS, sete anos eles contam bem. Aos oito anos eles
os meus sonhos, porque eu quase nunca me lembrava
bloqueiam, não querem contar. Então eu acho que a deles. E a partir dessa experiência com as crianças eu
gente vai ter que encontrar um jeito diferente porque, comecei a prestar mais atenção em mim mesma e em
quando estão no grupinho deles, principalmente os meus filhos. Eu tenho uma filha pequena que sempre
meninos, fica mais difícil. Vamos ter que pensar um jei- contou seus sonhos, mas aquilo não fazia tanto senti-
to diferente de coletar. do para mim. Depois eu comecei a perceber um senti-
Roberto Gambini: -Tudo isso está para ser criado. do ... realmente mudou a fanúlia inteira. E no meu tra-
Pessoa da platéia: - Talvez pela dramatização. Eu balho, é mais um canal que você tem de relacionamen-
acho que eles participam bastante. Para o adolescente to com os alunos, dá mais cumplicidade mesmo, a gen-
é muita transformação ao mesmo tempo e a dramati- te fica mais junto. Todo mundo sentado ali, todo mun-
zação não compromete tanto. do contando seu segredo, como eles disseram. Então
Roberto Gambini: - Eu também achei que seria
eu acho que tem sido muito significativo. É um traba-
mais viável associar o relato dos sonhos ao teatro e de lho difícil, tem que ter paciência, às vezes vira bagunça
alguma maneira dramatizá-los, no caso dos adoles- na hora de anotar, às vezes está na metade do sonho e
chega a professora de ginástica ... então a gente ainda
centes.
está no processo de organização do trabalho, mas eu
Pessoa da platéia: - Eu queria saber um pouquinho sinto que está crescendo muito, está contagiando a es-
sobre o outro lado. Quando você abre o grupo para as cola inteira. Todo mundo está gostando muito disso e
crianças contarem os sonhos, esses sonhos devem pondo em prática. Este ano eu já fiz uma pasta para
mobilizar as professoras e deve haver um diálogo in- cada aluno. Antes a gente olhava de vez em quando e
consciente. Então qual é a experiência das professo- agora eu tenho olhado semanalmente a pasta para ir
ras, será que elas sonham com as crianças? acompanhando o que vai aparecendo.
Roberto Gambini: - Alguma professora presente gos- Roberto Gambint - Eu acho que é essa a descoberta
taria de comentar como essa experiência mobiliza vocês? da educadora, esse contato com o material como uma
Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: - Eu fonte adicional de informação e de inspiração. Foram
posso dizer que mudou o enfoque do meu trabalho. Tra- vocês que descobriram isso.
balhar com sonhos dentro da sala de aula ampliou to- Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: -
talmente minha atuação e eu passei a sonhar, a cuidar Com a orientação do Gambini a gente está começando
dos meus próprios sonhos, a explicitá-los mais. Minha a prestar atenção mesmo, o que está dizendo aquele
expressão mudou, hoje eu falo mais ... mudou tudo. sonho - estar presa na mochila - o que quer dizer isso?
Roberto Gambini: -Alguma outra colega gostaria de Não para ficar julgando, mas para realmente ajudar
dizer como se sentiu atingida por este trabalho? aquela criança a se soltar, a ser mais feliz, a se conhe-
Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: - cer melhor e saber o que gosta e o que não gosta. Aque-
Olha, foi uma coisa muito forte. Logo no primeiro ano las crianças que nunca sonham, aquelas que dizem
eu estava com essa classe, onde estava o menino que "não quero contar". E aquela criança você começa a
teve aquela série longa de sonhos. Então eu própria fi- olhar, ela nunca quer contar nada. Então a gente está
começando a aprimorar mais essa observação: o que
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Pessoa da platéia: - A minha experiência é que até quei fascinada com tudo aquilo e comecei a procurar
os seis, sete anos eles contam bem. Aos oito anos eles os meus sonhos, porque eu quase nunca me lembrava
bloqueiam, não querem contar. Então eu acho que a deles. E a partir dessa experiência com as crianças eu
gente vai ter que encontrar um jeito diferente porque, comecei a prestar mais atenção em mim mesma e em
quando estão no grupinho deles, principalmente os meus filhos. Eu tenho uma filha pequena que sempre
meninos, fica mais difícil. Vamos ter que pensar um jei- contou seus sonhos, mas aquilo não fazia tanto senti-
to diferente de coletar. do para mim. Depois eu comecei a perceber um senti-
Roberto Gambint -Tudo isso está para ser criado. do ... realmente mudou a familia inteira. E no meu tra-
Pessoa da platéia: - Talvez pela dramatização. Eu balho, é mais um canal que você tem de relacionamen-
acho que eles participam bastante. Para o adolescente to com os alunos, dá mais cumplicidade mesmo, a gen-
é muita transformação ao mesmo tempo e a dramati- te fica mais junto. Todo mundo sentado ali, todo mun-
zação não compromete tanto. do contando seu segredo, como eles disseram. Então
eu acho que tem sido muito significativo. É um traba-
Roberto Gambint - Eu também achei que seria
lho difícil, tem que ter paciência, às vezes vira bagunça
mais viável associar o relato dos sonhos ao teatro e de
na hora de anotar, às vezes está na metade do sonho e
alguma maneira dramatizá-los, no caso dos adoles-
chega a professora de ginástica ... então a gente ainda
centes.
está no processo de organização do trabalho, mas eu
Pessoa da platéia: - Eu queria saber um pouquinho sinto que está crescendo muito, está contagiando a es-
sobre o outro lado. Quando você abre o grupo para as cola inteira. Todo mundo está gostando muito disso e
crianças contarem os sonhos, esses sonhos devem pondo em prática. Este ano eu já fiz uma pasta para
mobilizar as professoras e deve haver um diálogo in- cada aluno. Antes a gente olhava de vez em quando e
consciente. Então qual é a experiência das professo- agora eu tenho olhado semanalmente a pasta para ir
ras, será que elas sonham com as crianças? acompanhando o que vai aparecendo.
Roberto Gambint - Alguma professora presente gos- Roberto Gambint - Eu acho que é essa a descoberta
taria de comentar como essa experiência mobiliza vocês? da educadora, esse contato com o material como uma
Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: - Eu fonte adicional de informação e de inspiração. Foram
posso dizer que mudou o enfoque do meu trabalho. Tra- vocês que descobriram isso.
balhar com sonhos dentro da sala de aula ampliou to- Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: -
talmente minha atuação e eu passei a sonhar, a cuidar Com a orientação do Gambini a gente está começando
dos meus próprios sonhos, a explicitá-los mais. Minha a prestar atenção mesmo, o que está dizendo aquele
expressão mudou, hoje eu falo mais ... mudou tudo. sonho - estar presa na mochila - o que quer dizer isso?
Roberto Gambini: -Alguma outra colega gostaria de Não para ficar julgando, mas para realmente ajudar
dizer como se sentiu atingida por este trabalho? aquela criança a se soltar, a ser mais feliz, a se conhe-
Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: - cer melhor e saber o que gosta e o que não gosta. Aque-
Olha, foi uma coisa muito forte. Logo no primeiro ano las crianças que nunca sonham, aquelas que dizem
eu estava com essa classe, onde estava o menino que "não quero contar". E aquela criança você começa a
teve aquela série longa de sonhos. Então eu própria fi- olhar, ela nunca quer contar nada. Então a gente está
começando a aprimorar mais essa observação: o que
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nunca sonha, o que sempre sonha, e isto está ajudan- para outro, do aluno para o professor, abrindo ou-
do. Obrigada, Gambini. tras possibilidades do indivíduo e do coletivo. Seu
trabalho acaba reforçando essa idéia de que o sonho
Roberto Gambint - Obrigado a vocês que fizeram a
não é propriedade de nenhuma escola e que, talvez, as
experiência. nossas teorias às vezes podem nos aprisionar.
Professora da Escola Nova Lourenço Castanho: - Mi- Roberto Gambint - Muito obrigado por esse e por
nha colega mencionou o outro lado. Essa semana eu es- todos os demais comentários.
tava lendo os sonhos e as crianças me perguntaram:
"Você sempre pergunta o nosso sonho. E o seu sonho?"
Eles voltaram a perguntar, eu contei um sonho que foi
muito significativo para mim e isso criou uma interação
muito grande, eram todos iguais ali, eram todos aber-
tos, é uma sensação muito diferente. É um momento
de muita intimidade, é um momento muito especial.
Eles vão se abrindo com a gente, é cada dia melhor.
Terapeuta presente na platéia: - Hoje você mos-
trou que as professoras começam a descobrir novas
potencialidades e movimentos pessoais a partir do
contato com os sonhos dos alunos. Há uma riqueza
pedagógica que advém desse contato com o inconsci-
ente, uma vez que se supere o preconceito ou o medo.
E com isso você apontou a possibilidade de se detec-
tar a sombra da instituição, que é uma coisa riquíssi-
ma. Obviamente ninguém aqui contaria um sonho
tranqüilamente, ou com essa espontaneidade das cri-
anças. A gente já está forjado numa postura precon-
cebida de que o sonho quer dizer isso ou aquilo. Ou
seja, se nós resgatamos no trabalho de Freud e Jung a
possibilidade de acessar esse tesouro, por outro lado
precisamos despertar para o fato de que também es-
tamos presos num modelo interpretativo e que isso
nos tira a possibilidade de trabalharmos com sonhos
em outras dimensões que não simplesmente aquela
do consultório, conosco mesmos ou com nosso ana-
lista. O sonho é uma matéria -prima, não só para a in-
fância, mas para a vida inteira. Se nos livrarmos um
pouco desses modelos rigidamente interpretativos que
reduzem o símbolo, teremos à disposição toda uma
enorme energia que vai se transmitir de um sonho
156 157
Sobre os autores
Beatriz J.L. Scoz é pedagoga, psicopedagoga, mes-
tre em psicologia da educação-PUC/SP. Atualmente
trabalha como psicopedagoga clínica e institucional,
coordenadora e docente de cursos de psicopedagogia -
pós-graduação lato sensu - e coordenadora de grupos
de formação de psicopedagogos na relação ensino/
aprendizagem. É ex-presidente e membro do conselho
nato da Associação Brasileira de Psicopedagogia e
membro do conselho editorial da revista Psicopedago-
gia. Autora do livro Psicopedagogia e realidade escolar,
7ª edição, Petrópolis: Vozes, 1992, e de vários artigos
publicados em livros e revistas da área de psicopeda-
gogia. É organizadora e autora dos livros Psicopedago-
gia: O caráter interdisciplinar na formação e atuação
profissional, Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1987, e
Psicopedagogia: Contextualização, formação e atuação
profissional, Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1992. Foi
orientadora educacional em escola particular e educa-
dora da Rede Municipal de Ensino em São Paulo.
Aglael Luz Borges é filósofa , psicanalista, psicope-
dagoga, mestre em educação pela UFRJ. Atualmente
trabalha como psicanalista, coordenadora e docente de
cursos de psicopedagogia-pós-graduação lato sensu-
e coordenadora de grupos de formação de psicopeda-
gogos na relação ensino/aprendizagem. É ex-presi-
dente da Associação Brasileira de Psicopedagogia - se-
ção Rio de Janeiro.
Eda Maria Canepa é psicóloga de orientação junguia-
na. Atualmente trabalha como psicóloga clínica e educa-
dora na Escola Nova Lourenço Castanho em São Paulo.
159
Roberto Gambinié analista pelo Instituto C.G. Jung
em Zurique, na Suíça, e cientista social pela USP com
mestrado na Universidade de Chicago. Atualmente tra -
balha como analista e tem ministrado palestras no
Brasil e em vários países. É membro da Sociedade Suí-
ça e da Sociedade Internacional de Psicologia Analíti-
ca. É autor dos livros: Outros 500: Uma conversa sobre
a alma brasileira, em co-autoria com a jornalista Lucy
Dias, São Paulo: Ed. Senac, 1999, e O espelho índio: A Beatriz J.L. Scoz
formação da identidade brasileira, São Paulo: Ed. Ter-
ceiro Nome e Axis Mundi, 2000. Foi professor na Uni-
versidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Esco-
la de Administração Getúlio Vargas.
A~lael Luz Bor~es
Eda Maria Canepa
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Roberto Gambini

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