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Dicionário

daEducação
Profissional
em
Saúde
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Presidente
Paulo Ernani Gadelha Vieira

ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO

Diretor
André Malhão

Vice-diretor de Desenvolvimento Institucional


Sergio Munck

Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico


Isabel Brasil

Coordenadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde


Monica Vieira
Dicionário
daEducação
Profissional
em
Saúde
Isabel Brasil Pereira
Júlio César França Lima
Organizadores

2.ed.rev.ampl.
Todos os direitos desta edição reservados à Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz

A primeira edição do Dicionário de Educação Profissional em Saúde foi financiada com


recursos do Ministério da Saúde, no âmbito do Plano Diretor para o biênio2004-2006 da
Rede Observatório deRecursos Humanos em Saúde, com tiragem de 1.500 exemplares.

Revisão e copidesque
Maria Cecília G. B. Moreira (1ª edição)
Itamar José de Oliveira (2ª edição)
Revisão Técnica:
Isabel Brasil Pereira
Júlio César França Lima
Projeto Gráfico, Capa
Carlota Rios
Editoração
Marcelo Paixão

Catalogação na fonte
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Biblioteca Emília Bustamante
P436d Pereira, Isabel Brasil
Dicionário da educação profissional em saúde / Isabel Brasil Pereira
e Júlio César França Lima. – 2.ed. rev. ampl. - Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.

478 p.

ISBN: 978-85-987-36-6

1. Educação. 2. Dicionário. 3. Educação Profissionalizante. 4. Saúde.


I. Título. II. Lima, Júlio César França.

CDD 370.3
AUTORES

Alcindo Antônio Ferla – Médico, doutor André Silva Martins – Doutor em Edu-
em Educação pela Universidade Fede- cação pela Universidade Federal
ral do Rio Grande do Sul (UFRS), Fluminense (UFF), professor adjunto
Consultor da Hospital Nossa Senhora da Universidade Federal de Juiz de Fora
da Conceição S/A, professor visitan- (UFJF), professor do Programa de
te/colaborador da Universidade do Pós-Graduação em Educação da UFJF,
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pro- pesquisador do Coletivo de Estudos
fessor adjunto da Universidade de sobre Política Educacional da Escola
Caxias do Sul. Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/
Ana Margarida de Mello Barreto Campello
Fiocruz) e do Núcleo Educação, Tra-
– Pedagoga, doutora em Educação pela
balho e Tecnologia da UFJF.
Universidade Federal Fluminense (UFF)
e pesquisadora do Laboratório de Tra- Angélica Ferreira Fonseca – Psicóloga-sa-
balho e Educação Profissional em Saú- nitarista, mestre em Saúde Pública pela
de da Escola Politécnica de Saúde Joa- Escola Nacional de Saúde Pública Sér-
quim Venâncio da Fundação Oswaldo gio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz
Cruz (EPSJV/Fiocruz) (Ensp/Fiocruz), professora e pesquisa-
dora da Escola Politécnica de Saúde Jo-
André Mota – Historiador, doutor em
aquim Venâncio da Fundação Oswaldo
História pela Universidade de São Pau-
Cruz (EPSJV/Fiocruz)
lo (USP) e pós-doutorando bolsista
Fapesp em História da Medicina e Saú- Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos
de Pública paulistas junto ao Depto de – Pedagoga, doutora em Educação pela
Medicina Preventiva da Faculdade de Universidade Federal do Rio de Janei-
Medicina da USP. ro (UFRJ), professora e pesquisadora
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
(EPSJV/Fiocruz).
Arlinda Moreno – Psicóloga, doutora em Denise Elvira Pires – Enfermeira-sanita-
Saúde Coletiva pelo Instituto de Me- rista, pós-doutorado em Ciências Soci-
dicina Social da Universidade do ais pela University of Amsterdam, pro-
Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), fessora do Departamento de Enferma-
professora e pesquisadora do Labora- gem e do Programa de Pós-Graduação
tório de Educação Profissional em In- em Enfermagem, do Centro de Ciênci-
formações e Registros em Saúde da as da Saúde (CCS) da Universidade Fe-
Escola Politécnica de Saúde Joaquim deral de Santa Catarina (UFSC).
Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
Domingos Leite Lima Filho – Engenhei-
(EPSJV/Fiocruz).
ro elétrico, doutor em Educação pela
Carlos Batistella – Odontólogo, especia- Universidade Federal de Santa Catarina
lista em Educação Profissional em Saú- (UFSC) e professor do Programa de
de pela Fundação Oswaldo Cruz e pro- Pós-Graduação da Universidade
fessor-pesquisador do Laboratório de Tecnológica Federal do Paraná
Educação Profissional em Vigilância em (UTFPR).
Saúde da Escola Politécnica de Saúde
Eduardo Henrique Passos Pereira – Psicó-
Joaquim Venâncio da Fundação
logo, doutor em Psicologia pela Universi-
Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz)
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
Carmen Sylvia Vidigal Moraes – Psicólo- professor da Universidade Federal
ga, pós-doutorado pela Laboratoire Fluminense (UFF).
Travail et Mobilités e professora da Fa-
Eduardo Navarro Stotz – Sociólogo, dou-
culdade de Educação da Universidade de
tor em Saúde Pública, pesquisador e
São Paulo (USP).
professor da Escola Nacional de Saú-
Claudia Medina Coeli – Médica, doutora de Pública Sérgio Arouca da Funda-
em Saúde Coletiva pelo Instituto de ção Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).
Medicina Social da Universidade do
Emerson Elias Merhy – Médico-sanitarista,
Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj),
doutor em Saúde Coletiva pela Universi-
docente do Departamento de Medici-
dade Estadual de Campinas (Unicamp) e
na Preventiva da Faculdade de Medi-
professor do Curso de Pós-Graduação
cina e do Instituto de Estudos em Saú-
em Clínica Médica da linha: Micropolítica
de Coletiva da Universidade Federal do
do Trabalho e Cuidado em Saúde.
Rio de Janeiro (Iesc/UFRJ).
Francisco Javier Uribe Rivera – Médico- Gustavo Corrêa Matta – Psicólogo, dou-
sanitarista, doutor em Saúde Pública, tor em Medicina Social pela Universi-
pesquisador titular do Departamento dade do Estado do Rio de Janeiro
de Administração e Planejamento de (Uerj), pesquisador do Laboratório de
Saúde da Escola Nacional de Saúde Educação Profissional em Atenção à
Pública Sérgio Arouca da Fundação Saúde da Escola Politécnica de Saúde
Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Joaquim Venâncio da Fundação
Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz)
Gastão Wagner de Sousa Campos – Médi-
co, doutor em Saúde Coletiva pela Hillegonda Maria Dutilh Novaes – Médi-
Universidade Estadual de Campinas ca pediatra, doutora em Medicina Pre-
(Unicamp), professor titular da Univer- ventiva pela Universidade de São Paulo
sidade Estadual de Campinas, membro (USP), professora do Departamento de
de corpo editorial da Trabalho, Edu- Medicina Preventiva da Faculdade de
cação e Saúde e da Revista Ciência & Medicina da USP, coordenadora do Nú-
Saúde Coletiva. cleo de Informações em Saúde/NIS do
Hospital das Clínicas da FM-USP.
Gaudêncio Frigotto – Filósofo e educador,
doutor em Ciências Humanas (Educa- Inesita Soares de Araújo – Comunicóloga,
ção) pela Pontifícia Universidade Cató- doutora em Comunicação e Cultura
lica de São Paulo, professor titular do pela Escola de Comunicação da Uni-
Programa Interdisciplinar de Pós-Gra- versidade Federal do Rio de Janeiro
duação em Políticas Públicas e Forma- (UFRJ), pesquisadora do Laboratório
ção Humana na Faculdade de Educação de Pesquisa em Comunicação e Saúde
da Universidade do Estado do Rio de do Instituto de Comunicação e Infor-
Janeiro (Uerj) e membro do Comitê mação Científica e Tecnológica em
Diretivo do Conselho Latino-America- Saúde da Fundação Oswaldo Cruz
no de Ciências Sociais (Clacso). (Icict/Fiocruz).
Grácia Maria Gondin – Arquiteta e Ur- Isabel Brasil Pereira (Coordenadora) –
banista, mestre em Saneamento Bióloga, doutora em Educação pela
Ambiental e doutoranda em Saúde Pú- Pontifícia Universidade Católica de São
blica pela Escola Nacional de Saúde Paulo (PUC-SP), vice-diretora de Pes-
Pública Sérgio Arouca da Fundação quisa e Desenvolvimento Tecnológico
Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), e pes- da Escola Politécnica de Saúde Joa-
quisadora do Laboratório de Vigilância quim Venâncio da Fundação Oswaldo
em Saúde da Escola Politécnica de Saú- Cruz (EPSJV/Fiocruz) e professora
de Joaquim Venâncio da Fundação adjunta da Universidade Estadual do
Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). Rio de Janeiro (FEBF/Uerj).
Janine Miranda Cardoso – Cientista soci- Jussara Cruz de Brito – Engenheira, pós-
al, doutoranda em Comunicação e doutorado em Ergologia pela Université
Cultura pela Escola de Comunicação de Provence Aix Marseille I e coorde-
da Universidade Federal do Rio de Ja- nadora do Grupo de Pesquisas e Inter-
neiro (UFRJ), tecnologista do Labora- venção em Atividade de Trabalho, Saú-
tório de Pesquisa em Comunicação e de e Relações de Gênero (Pistas) do
Saúde do Instituto de Comunicação e Centro de Estudos da Saúde do Traba-
Informação Científica e Tecnológica lhador e Ecologia Humana (CESTEH/
em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz Ensp/Fiocruz).
(Icict/Fiocruz).
Justino de Souza Junior – Professor, dou-
José Rodrigues – Professor, doutor em tor em Educação pela Universidade
Educação pela Universidade Esta- Federal de Minas Gerais (UFMG), pro-
dual de Campinas (Unicamp), pro- fessor da Faculdade de Educação da
fessor adjunto da Universidade Fe- Universidade Federal de Minas Gerais
deral Fluminense (UFF), vice-coor- (FaE/UFMG).
denador do Núcleo de Estudos, Do-
Ligia Bahia – Médica-sanitarista, dou-
cumentação e Dados sobre Traba-
tora em Saúde Pública pela Fundação
lho e Educação (NEDDATE-UFF),
Oswaldo Cruz (Fiocruz), professora
membro de Conselho Editorial das
adjunta da Faculdade de Medicina e
revistas Trabalho, Educação e Saúde (da
do Núcleo de Estudos de Saúde Co-
Fundação Oswaldo Cruz) e Traba-
letiva da Universidade Federal do Rio
lho Necessário (NEDDATE-UFF) e
de Janeiro (UFRJ).
assessor da Faperj.
Lilia Blima Schraiber – Médica-sanitaris-
Júlio César França Lima (Coordenador)
ta, doutora em Medicina Preventiva
– Enfermeiro-sanitarista, mestre em
pela Universidade de São Paulo (USP)
Educação pelo Instituto de Estudos
e professora do Departamento de
Avançados em Educação da Fundação
Medicina Preventiva da Faculdade de
Getúlio Vargas (FGV), doutorando do
Medicina da USP.
Programa de Pós-Graduação em Políti-
cas Públicas e Formação Humana da Lílian de Aragão Bastos do Valle –
Universidade do Estado do Rio de Ja- Pedagoga, pós-doutorado em Educação
neiro (Uerj), pesquisador do Laborató- pela École des Hautes Etudes en
rio de Trabalho e Educação Profissional Sciences Sociales (EHESS) e coordena-
em Saúde da Escola Politécnica de Saú- dora do Programa de Pós-Graduação
de Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). em Políticas Públicas e Formação Hu-
mana (PPFH) da Faculdade de Educa-
ção da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj).
Lúcia Maria Wanderley Neves – Educa- Márcia Valéria Guimarães Morosini – Psi-
dora, doutora em Educação pela Univer- cóloga, especialista em Saúde Pública
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pela Escola Nacional de Saúde Pública e
professora (aposentada) da Universida- pesquisadora do Laboratório de Educa-
de Federal de Pernambuco (UFPE), pro- ção Profissional em Atenção à Saúde da
fessora participante do Programa de Pós- Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Graduação em Educação da Universida- Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
de Federal Fluminense (UFF) e pesqui- (EPSJV/Fiocruz).
sadora da Escola Politécnica de Saúde
Maria Ciavatta – Filósofa, doutora em
Joaquim Venâncio da Fundação
Educação pela Pontifícia Universida-
Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
de Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Madel Therezinha Luz – Filósofa, pós- RJ), professora associada ao Progra-
doutorado em Saúde Coletiva pelo ma de Pós-graduação em Educação -
Institut National des Recherches Mestrado e Doutorado da Universida-
Médicales (Inserm), professora titular da de Federal Fluminense (UFF), e pro-
Universidade do Estado do Rio de Ja- fessora visitante na Faculdade de Ser-
neiro (Uerj), assessora do Conselho Na- viço Social da Universidade do Estado
cional de Desenvolvimento Científico e do Rio de Janeiro (Uerj).
Tecnológico (CNPq), vice-presidente da
Maria Helena Machado – Socióloga,
Associação Brasileira de Pós-Graduação
doutora em Sociologia pela Universi-
em Saúde Coletiva (Abrasco).
dade Federal de Minas Gerais
Marcela Alejandra Pronko – Professora, (UFMG), pesquisadora titular da Es-
doutora em História pela Universida- cola Nacional de Saúde Pública Sér-
de Federal Fluminense (UFF), profes- gio Arouca da Fundação Oswaldo
sora colaboradora da Universidad Na- Cruz (Ensp/Fiocruz) e diretora do
cional de Luján (Argentina), professo- Departamento de Gestão e da
ra-pesquisadora da Faculdade Latino- Regulação do Trabalho em Saúde do
Americana de Ciências Sociais Ministério da Saúde (SGTES/MS).
(FLACSO) sede acadêmica Brasil e
Maria Lúcia Frizon Rizzotto – Enfer-
bolsista da Escola Politécnica de Saú-
meira, doutora em Saúde Coletiva
de Joaquim Venâncio da Fundação
pela Universidade Estadual de Cam-
Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
pinas (Unicamp) e professora da
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (Unioeste).
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Maria Valéria Costa Correia – Assistente Saúde, do Laboratório de Trabalho e


Social, doutora em Serviço Social pela Educação Profissional em Saúde e do
Universidade Federal de Pernambuco Programa de Pós-Graduação da da Es-
(UFPE) e professora da Faculdade de cola Politécnica de Saúde Joaquim
Serviço Social da Universidade Federal Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
de Alagoas (Ufal). (EPSJV/Fiocruz).
Marina Peduzzi – Enfermeira, doutora Nadya Araújo Guimarães – Socióloga,
em Saúde Coletiva pela Universidade pós-doutorado pela Massachusetts
Estadual de Campinas (Unicamp) e pro- Institute of Technology (MIT), profes-
fessora do Departamento de Orientação sora da Universidade de São Paulo (USP)
Profissional da Escola de Enfermagem e pesquisadora do Centro Brasileiro de
da Universidade de São Paulo. Análise e Planejamento (Cebrap).
Marise Nogueira Ramos – Professora, dou- Naira Lisboa Franzoi – Professora, dou-
tora em Educação pela Universidade tora em Educação pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), coordenado- Estadual de Campinas (Unicamp) e pro-
ra do Programa de Pós-Graduação da fessora da Universidade Federal do Rio
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Grande do Sul (UFRGS).
Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
Nayla Cristine Ferreira Ribeiro – Peda-
(EPSJV/Fiocruz) e professora adjunta da
goga, mestranda em Educação Profis-
Faculdade de Educação da Universidade
sional em Saúde pela Escola Politécni-
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
ca de Saúde Joaquim Venâncio
Maurício Monken – Professor, doutor em (EPSJV/Fiocruz) e bolsista pró-gestão
Saúde Pública pela Escola Nacional de da Biblioteca Virtual em Saúde - Edu-
Saúde Pública Sergio Arouca da Funda- cação Profissional em Saúde (BVS-
ção Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e EPS) da EPSJV/Fiocruz.
pesquisador do Laboratório de Educa-
Ramon de Oliveira – Professor, doutor
ção Profissional em Vigilância em Saú-
em Educação pela Universidade Fede-
de da Escola Politécnica de Saúde Joa-
ral Fluminense (UFF) e professor do
quim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Programa de Pós-Graduação em Edu-
Monica Vieira – Socióloga, doutora em cação da Universidade Federal de
Saúde Coletiva pelo Instituto de Me- Pernambuco (UFPE).
dicina Social (IMS/Uerj) e coordena-
dora do Observatório dos Técnicos em

10
A

Ramon Peña Castro – Economista, pós- Sarah Escorel – Médica-sanitarista, dou- C


doutorado em Economia pela tora em Sociologia pela Universidade
Universidad Autonoma de Madrid e de Brasília (UnB), pesquisadora titular D
professor colaborador (aposentado) do da Escola Nacional de Saúde Pública
PPGCSo da Universidade Federal de Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), inte- E
São Carlos, pesquisador visitante e pro- grante do Núcleo de Estudos Políti-
fessor colaborador do Programa de co-Sociais em Saúde do Departamen-
F
Pós-Graduação da Escola Politécnica to de Administração e Planejamento
de Saúde Joaquim Venâncio da Fun- em Saúde (Nupes/Daps/Ensp/
dação Oswaldo Cruz (EPSJV/ Fiocruz), coordenadora do Observa- G
Fiocruz). tório da Conjuntura de Políticas de
Saúde da Ensp. H
Regina Duarte Benevides de Barros – Psicó-
loga, pós-doutorado em Saúde Coletiva Sérgio Lessa - Doutor em Ciências Hu-
pela Universidade Estadual de Campinas manas pela Unicamp, professor do
I
(Unicamp) e professora da Universidade Departamento de Filosofia da Uni-
Federal Fluminense (UFF). versidade Federal de Alag oas N
(UFAL), membro da Editoria da Re-
Ricardo Burg Ceccim – Enfermeiro-Sani-
vista Crítica Marxista. O
tarista, doutor em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Sergio Munck - Estatístico, mestre em
Paulo (PUC-SP), professor do Progra- Tecnologia Educacional nas Ciências P
ma de Pós-Graduação em Educação da da Saúde pelo Núcleo de Tecnologia
Universidade Federal do Rio Grande do Educacional em Saúde da Universida- Q
Sul (UFRS). de Federal do Rio de Janeiro (Nutes/
Rosana Teresa Onocko Campos – Médica,
UFRJ), vice-diretor de Gestão e De- R
senvolvimento Institucional da Esco-
doutora em Saúde Coletiva pela Uni-
versidade Estadual de Campinas
la Politécnica de Saúde Joaquim S
Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
(Unicamp) e professora RDIDP da
(EPSJV/Fiocruz).
Universidade Estadual de Campinas T
(Unicamp). Sônia Regina de Mendonça – Historiado-
Roseni Pinheiro – Enfermeira, doutora em
ra, doutora em História Econômica U
pela Universidade de São Paulo (USP),
Saúde Coletiva pela Universidade Esta-
dual do Rio de Janeiro (Uerj) e profes-
professora do Programa da Pós-Gra- V
duação em História da Universidade
sora adjunta do Instituto de Medicina
Federal Fluminense (UFF) e pesquisa-
Social (IMS/Uerj).
dora do CNPq.
A

11
Suzana Lanna Burnier Coelho – Pedagoga, Zulmira Maria de Araújo Hartz – Pes-
doutora em Educação pela Pontifícia quisadora titular do Departamento de
Universidade Católica do Rio de Janeiro Epidemiologia da Escola Nacional de
(PUC-RJ), professora adjunta e diretora Saúde Pública Sérgio Arouca da Fun-
de Ensino da Graduação do Centro Fe- dação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz)
deral de Educação Tecnológica de Mi- (aposentada), pesquisadora visitante
nas Gerais (Cefet-MG) do Grupo de Gestão e Avaliação em
Saúde (GEAS) do Instituto de Medi-
Túlio Batista Franco – Psicólogo, doutor em
cina Integral Professor Fernando Fi-
Saúde Coletiva pela Universidade Estadu-
gueira da Fundação Oswaldo Cruz
al de Campinas (Unicamp) e professor da
(IMIP/Fiocruz), consultora do Minis-
Universidade Federal Fluminense (UFF).
tério da Saúde.
SUMÁRIO 1

TRABALHO, EDUCAÇÃO E SAÚDE: REFERÊNCIAS E CONCEITOS 17

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO 31


APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO 33

A
Atenção à Saúde 39
Atenção Primária à Saúde 44
Avaliação em Saúde 50
Avaliação por Competências 55
C
Capital Cultural 61
Capital Humano 66
Capital Intelectual 72
Capital Social 78
Certificação de Competências 83
Certificação Profissional 87
Comunicação em Saúde 94
Controle Social 104
Cuidado em Saúde 110
Currículo Integrado 114
Currículo por Competências 119
D
Divisão Social do Trabalho 125
Divisão Técnica do Trabalho em Saúde 130
Dualidade Educacional 136
E
Educação 143
Educação Corporativa 151
Educação em Saúde 155
Educação Permanente em Saúde 162
Educação Politécnica 168
Educação Profissional 175
Educação Profissional em Saúde 182
Educação Tecnológica 190
Empregabilidade 197
Eqüidade em Saúde 202
Exclusão Social 211
F
Focalização em Saúde 221
G
Gestão do Trabalho em Saúde 227
Gestão em Saúde 231
Globalização 236
H
Humanização 243
I
Informação em Saúde 249
Integralidade em Saúde 255
Interdisciplinaridade 263
Itinerários Formativos 269
N
Neoliberalismo e Saúde 275
O
Ocupação 281
Omnilateralidade 284
P
Participação Social 293
Pedagogia das Competências 299
Pedagogia de Problemas 305
Planejamento de Saúde 312
Precarização do Trabalho em Saúde 317
Processo de Trabalho em Saúde 320
Profissão 328
Q
Qualificação como Relação Social 335
R
Recursos Humanos em Saúde 343
Reestruturação Produtiva em Saúde 348
S
Saúde 353
Sistema Único de Saúde 357
Sociabilidade Neoliberal 364
Sociedade Civil 370
T
Tecnologia 377
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Tecnologias em Saúde 382


Territorialização em Saúde 392
Trabalho 399
Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto 404
Trabalho como Princípio Educativo 408
Trabalho Complexo 415
Trabalho Concreto 419
Trabalho em Equipe 419
Trabalho em Saúde 427
Trabalho Imaterial 433
Trabalho Prescrito 440
Trabalho Produtivo e Improdutivo 445
Trabalho Real 453
Trabalho Simples 460
U
Universalidade 465
V
Vigilância em Saúde 471

16
A

C
TRABALHO, EDUCAÇÃO E SAÚDE:
referências e conceitos D

H
O ano de 2008 é particularmente significativo para o lançamento
da segunda edição do Dicionário da Educação Profissional em Saúde, I
pois neste momento se completam vinte anos da inscrição do Sistema
Único de Saúde (SUS) no texto constitucional. Uma conquista demo- N
crática capitaneada por um amplo movimento social organizado em tor-
no da Reforma Sanitária brasileira, marco do desenvolvimento de uma O
nova forma de pensar e fazer saúde no país, assim como da formação
profissional dos trabalhadores técnicos de saúde. P

O projeto da Reforma Sanitária brasileira tal qual concebido na 8a Q


Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi construído ao mesmo tem-
po como uma bandeira específica do setor saúde e como parte de uma R
totalidade de mudanças. Isso é, diz respeito num primeiro plano ao re-
conhecimento da dinâmica do fenômeno saúde-doença em toda a sua S
extensão por meio dos indicadores de saúde, da organização das insti-
tuições que atuam no setor, da produção de medicamentos e equipa- T
mentos, e da formação dos trabalhadores de saúde. No segundo plano,
além da dimensão ideológica, na qual se disputam concepções, valores e U
práticas, incorpora a dimensão das relações existentes entre a saúde e
economia, trabalho, educação, salário, habitação, saneamento, transpor-
V
te, terra, meio ambiente, lazer, liberdade e paz. Originalmente, portanto,
A
o projeto da Reforma Sanitária está imbricado com a perspectiva de
reforma social, com a construção de um Estado democrático, para além
A
de uma reforma setorial, ao mesmo tempo que, ao ampliar o referencial

17
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

teórico e o campo de análise das relações entre saúde e condições de


vida e trabalho, recoloca-a como prática social e não apenas como fenô-
meno biológico.

É com base nesse arcabouço conceitual que a formação profissio-


nal dos trabalhadores técnicos de saúde passa a ser entendida como
uma condição necessária, mas não suficiente, para a transformação das
relações de trabalho, da prestação de serviços à população e para a pró-
pria participação do trabalhador no planejamento e avaliação dos servi-
ços de saúde. Com vistas a superar o caráter alienado da escola e do
trabalho em saúde no que diz respeito aos determinantes sociais do
processo saúde-doença e do intenso processo de privatização no interi-
or do setor saúde, bem como do histórico movimento pendular do an-
tigo segundo grau - atual ensino médio - entre formação acadêmica e
formação profissional, propõe-se a articulação deste nível de ensino com
a formação profissional. Mais especificamente, a articulação da educa-
ção com o processo de trabalho em saúde ou o aprofundamento da
estratégia ensino-serviço, aliando a dimensão técnica e a dimensão polí-
tica no processo de formação, e a construção de um novo compromisso
ético-político dos trabalhadores de saúde pautado na questão democrá-
tica, na relação solidária com a população, na defesa do serviço público
e da dignidade humana.

Esse debate no setor saúde, particularmente no interior da Funda-


ção Oswaldo Cruz, cujo marco é a realização do Seminário Choque
Teórico, em 1987, é contemporâneo e se alimenta das discussões então
travadas no interior do setor educacional, por meio do GT Trabalho-
Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação (Anped), desde o início dos anos 1980, acerca da formação
profissional dos trabalhadores técnicos e da natureza do antigo ensino
de segundo grau em nossa sociedade. A perspectiva era superar a
dualidade entre cultura geral e cultura técnica com o projeto de escola
unitária, “que expressa o princípio da educação como direito de todos”
e que “pressupõe que todos tenham acesso aos conhecimentos, à cultu-

18
A

ra e às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência C


e a riqueza social” (Ramos, 2007, p. 2). Esse debate introduz na histó-
ria da educação brasileira o conceito de politecnia (Saviani, 1989), D
não como o domínio de uma multiplicidade de técnicas fragmentá-
rias, mas como o domínio dos fundamentos científicos das diferen-
E
tes técnicas que presidem o processo de trabalho moderno, o que
F
recoloca as discussões acerca da relação trabalho-educação em novo
patamar, buscando sobretudo resgatar a dimensão contraditória do
G
fenômeno educativo, seu caráter mediador e sua especificidade no
processo de transformação da realidade. H
Trabalho, Educação e Saúde articulam-se, assim, no bojo dessa in- I
tensa discussão que ocorre nos marcos do processo de redemocratização
da sociedade brasileira e do processo constituinte nos anos 1980. Para N
uma parcela das forças políticas que então se reúne em torno do projeto
da Reforma Sanitária, profundamente imbricada com a perspectiva de O
uma reforma social na sua totalidade, novos desafios são colocados no
que diz respeito ao perfil do trabalhador necessário para viabilizar a P
premissa estabelecida constitucionalmente de que a saúde é um direito
de todos e dever do Estado, baseada nos princípios de universalidade, Q
eqüidade e integralidade, o que exigia, entre outros, repensar a formação
profissional dos trabalhadores da saúde. R

Em recente seminário de trabalho organizado pela Escola Politéc- S


nica de Saúde Joaquim Venâncio sobre a Reforma Sanitária brasileira e
os vinte anos do ‘SUS constitucional’ (Matta e Lima, 2008), fez-se um T
balanço desse período do qual podemos destacar dois aspectos centrais:
que a reforma sanitária no seu processo de operacionalização se reduziu U
a uma reforma administrativa da saúde e que, já no final dos anos 1980
e principalmente nos anos 1990, teve de se confrontar com outro
V
projeto em disputa na sociedade, o projeto mercantilista, para o qual a
A
saúde é uma mercadoria como outra qualquer, que pode ser comprada
no mercado para a satisfação das demandas e necessidades individuais
A
(Paim, 2008). Ele reúne em torno de si empresários da saúde, corporações

19
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

profissionais, o capital industrial investido nas indústrias farmacêuticas


e de equipamentos, o capital financeiro e grandes organismos internaci-
onais, que impõem o livre comércio - Organização Mundial do Comér-
cio (OMC) e definem políticas sociais subsidiárias e compensatórias -
Banco Mundial (BM).

Parece consensual entre os interlocutores que, na década de 1990 e


início dos anos 2000, a temática da Reforma Sanitária esteve ausente da
agenda dos principais fóruns e movimentos sociais que a alavancaram, e
que na luta ideológica ocorre um retrocesso importante em relação ao
setor saúde nesse período, na medida em que de um valor público, a
saúde passa a ser vista como um bem de consumo modulado pelo po-
der de compra. Também no setor educacional ocorrem retrocessos, pois
desde a década passada verifica-se um estreitamento da relação entre
educação e trabalho alienado tornando a escola mais imediatamente in-
teressada ou mais pragmática e, embora integre um contingente expres-
sivo da classe trabalhadora, o faz de modo a inviabilizar a construção de
uma crítica às relações sociais capitalistas.

À grande mobilização e às esperanças da década de 1980 seguiu-se,


nos anos 1990, uma reversão das expectativas marcada pela radicalização da
modernização conservadora e por políticas de reformas do Estado, com o
fim de ajustar a economia ao processo de desregulamentação, flexibilização
e privatização. Nesse cenário, verifica-se um refluxo dos movimentos soci-
ais de cunho democrático e popular, a ‘conversão mercantil-filantrópica da
militância’ em torno das organizações não-governamentais (ONGs), a
emergência do sindicalismo de resultados, novas formas de privatização na
área de saúde, a escassez de recursos, a precarização dos vínculos e de re-
muneração dos trabalhadores de saúde, e a crescente precarização das con-
dições de trabalho (Fontes, 2008; Santos, 2008).

No contexto neoliberal que se instaura na década de 1990 com o


governo Collor e se aprofunda no governo FHC, tanto na área da saúde
como na educação combina-se um discurso que reconhece a importân-

20
A

cia destas áreas com a redução dos investimentos nas mesmas e apelos à C
iniciativa privada e ONGs. O discurso neoliberal atribuiu de forma sis-
temática que uma das principais causas das desigualdades sociais era a D
incompetência e a ineficácia governamentais, buscando com isto for-
mar um consenso sobre a qualidade da iniciativa privada, com a finalida-
E
de de promover mudanças de comportamento no indivíduo e na socie-
F
dade a favor da privatização e seu corolário, o financiamento pelo Esta-
do de ações que seriam executadas pelo setor privado. Nessas condi-
G
ções, o próprio gestor público passa a agir sob a lógica da gerência pri-
vada, mudando assim a relação entre a instituição e o usuário. Ele deixa H
de ser um cidadão investido de direitos e passa a ser um cliente da insti-
tuição, o que traduz uma visão privatista da relação do cidadão com o I
Estado, ao mesmo tempo em que desqualifica a noção de serviço públi-
co coletivo e solidário. N
No outro lado do espectro político, o funcionamento da aparelhagem O
sindical também foi remodelado para adequação e conformação ao
neoliberalismo: procedimentos de ‘reengenharia’ interna; demissão de fun- P
cionários; busca de eficiência e eficácia econômica (rentabilidade);
agenciamento de serviços, como a venda de seguros diversos – contribuin- Q
do para desmantelar a luta pelos direitos universais; a oferta de cursos pa-
gos; preparação e adequação de mão-de-obra para a ‘empregabilidade’. É R
um processo que formata uma nova modalidade de subalternização dos
trabalhadores no Brasil, empreendida pelos grandes empresários com a S
difusão e apoio do ‘sindicalismo de resultados’, atado a uma dinâmica estri-
tamente corporativa e de cunho imediatista, tornando os sindicatos parcei- T
ros dos patrões na ‘gerência dos conflitos’.
U
Nesse contexto, segundo Fontes (2008), o próprio sentido do ter-
mo ‘democracia’, revestido de conteúdos socializantes na década de 1980,
V
foi ressignificado como ‘capacidade gerencial’. Isso é, toda e qualquer
A
tentativa de organização dos trabalhadores como classe social deveria
ser desmembrada e abordada de maneira segmentada: admitia-se o con-
A
flito, mas este deveria limitar-se ao razoável e ao gerenciável, devendo

21
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

seus protagonistas admitir a fragmentação de suas pautas em parcelas


‘administráveis’. Mais que isso, para a autora, o que ocorre nos anos
1990 é uma mudança do perfil da classe trabalhadora em decorrência da
intensificação do desemprego, da rotatividade de mão-de-obra e conse-
qüentemente o aumento da concorrência entre os trabalhadores; pelo
desmantelamento dos direitos associados às relações contratuais de tra-
balho; pela corrosão das organizações sindicais e pelas profundas altera-
ções no setor público, iniciadas com as demissões e privatizações.

O discurso da incompetência do setor público, ao mesmo tempo


que atendeu aos interesses privados ao propor um fictício terceiro setor
sob a designação ‘privado porém público’ composto por associações
empresariais que concorrem entre elas pelos fundos públicos, permitiu
a delegação de responsabilidades do Estado a entes privados em situa-
ções casuísticas, como Fundações Privadas de Apoio, Organizações
Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
(Oscip) e outras, imbricando a esfera pública com a esfera mercantil.

Na área da saúde especificamente, além da delegação de responsa-


bilidades do Estado para cooperativas, ONGs e outras entidades priva-
das, a solução negociada do art. 199 da Constituição1 gerou efeitos con-
traditórios nos anos 1990, pois, de um lado, a oferta e a produção de
serviços públicos e filantrópicos se ampliaram, e a dos hospitais contra-
tados reduziram. Por outro lado, a inviabilização da mudança da nature-
za dos contratos reatualizou o padrão de compra de serviços e procedi-
mentos que se pretendia superar, reconfigurando as relações público-
privadas no âmbito do SUS por meio de políticas públicas que apoia-
ram e ainda apóiam a privatização da assistência à saúde. Para Bahia
(2008), as mudanças definidas por normas governamentais que
redefiniram a participação do setor privado no SUS, junto com a criação
de fundações privadas pelo setor público e a contratação de consultores,

1
O art. 199 da Constituição define que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, podendo participar de
forma complementar do SUS, segundo diretrizes deste e mediante contrato de direito público ou convênio,
tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

22
A

nutriram uma disseminada adesão às várias versões do C


empreendedorismo no sistema público de saúde. Na mesma direção, a
ampliação do mercado privado de planos e seguros de saúde, que já D
vinha ocorrendo desde os anos 1980, se intensifica nos anos 1990,
viabilizada por políticas públicas de subsídios indiretos de apoio à ex-
E
pansão da clientela.
F
No âmbito educacional, entre os anos 1980 e 1990, como aponta
G
Frigotto (2006, p. 265), “há uma travessia da ditadura civil-militar para
uma ditadura do mercado no ideário pedagógico”. A sociedade civil or- H
ganizada em torno do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública
sucessivamente vai perdendo o apoio parlamentar para a aprovação do I
primeiro projeto de LDB, de autoria do Deputado Federal Otávio Elísio
que, no que diz respeito à formação profissional sinalizava para sua N
integração à formação geral nos seus múltiplos aspectos humanísticos e
científico-tecnológicos. “Foram sendo tomadas, pelo alto e autoritaria- O
mente, diferentes medidas legais, numa reforma a conta-gotas, até apa-
recer o projeto do Senador Darcy Ribeiro que, como lembrava Florestan P
Fernandes, deu ao governo o projeto que esse não tinha” (Frigotto,
Ciavatta e Ramos, 2005, p. 13). Para os autores, com a LDB n° 9.394/ Q
96, a regressão mais profunda ocorre nos ensinos médio e técnico a
partir da aprovação do Decreto n° 2.208/97, que restabelece, em outros R
termos, o dualismo educacional neste nível de ensino, ao proibir a
integração do ensino médio com a formação profissional, além de regu- S
lamentar formas fragmentadas e aligeiradas de profissionalização em
função das necessidades do mercado, como assume o ideário pedagógi- T
co do próprio mercado com a pedagogia das competências para a
empregabilidade. U
As noções de sociedade do conhecimento e de competência pas-
sam a assumir na atualidade o mesmo protagonismo que a noção de
V
capital humano teve entre as décadas de 1950 e 1980, constituindo-se
A
no aparato ideológico justificador das desigualdades econômicas e soci-
ais entre os indivíduos e/ou das relações assimétricas de poder dentro
A
dos países e entre eles. Na área da saúde, os programas de formação

23
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

profissional vêm sendo executados, na maioria das vezes, por meio de


parcerias público-privadas, aumentando a possibilidade de adesão ao
ideário da mercantilização da saúde, da elegia do gerenciamento das ações
de saúde e da redução de conteúdos voltados para uma formação huma-
na de cunho civilizatório (Pereira, 2008).
Para Frigotto (2006), as razões para a dificuldade estrutural do avanço
da educação escolar unitária e politécnica devem ser buscadas, em pri-
meiro lugar, na opção das elites brasileiras por um capitalismo depen-
dente e subordinado que barra a generalização da necessidade da incor-
poração das tecnologias avançadas de natureza digital-molecular. Em
segundo lugar, pela conjuntura mundial na qual se verifica nesse perío-
do um aumento da expropriação do trabalho pelo capital e o crescente
monopólio da ciência e tecnologia nos centros hegemônicos do capital,
relegando aos países periféricos dominantemente o trabalho simples.

Entretanto, se essa conjuntura encontrou terreno propício para a


difusão das orientações normativas dos organismos internacionais com
a adesão das elites nacionais às teses neoliberais, ela também foi plena
de tensões e resistências ao desmonte do SUS. O balanço realizado apon-
ta, entre outros, para o aumento de cobertura pelas equipes de ‘Saúde da
Família’, principal estratégia de atenção básica do Ministério da Saúde; a
incorporação de novos modelos tecnológicos em municípios brasilei-
ros, tais como a oferta organizada, a vigilância em saúde, o trabalho
programático e o acolhimento; a integração da atenção básica com a
vigilância em saúde; a redução dos leitos psiquiátricos vis-à-vis ao au-
mento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e das residências
terapêuticas como resposta aos princípios de desospitalização e reinserção
social na área de saúde mental; o aumento da capacidade instalada e
crescimento da assistência ambulatorial do setor público, que é uma
tendência anterior ao advento do SUS, mas que se mantém nos anos
1990; a ampliação e diversificação dos postos de trabalho na área de
saúde, decorrentes do progressivo processo de descentralização e
municipalização das ações de saúde; o aumento do acesso a medica-
mentos essenciais; a ampliação do número de transplantes; a criação

24
A

do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu); a quebra de C


patentes de medicamentos; e a universalidade do atendimento aos
casos de AIDS. D

Na área de educação, mais recentemente, buscou-se restabelecer o


E
“empate” entre os princípios defendidos em 1988 pelo primeiro projeto
F
de LDB e o Decreto n° 2.208/97, com a aprovação do Decreto n° 5.154/
2004, que permite a integração do ensino médio com o ensino técnico,
G
entendido como uma condição social e historicamente necessária para a
construção do ensino médio unitário e politécnico (Frigotto, Ciavatta e H
Ramos, 2005).
I
Esses avanços em ambas as áreas são resultados de processos con-
traditórios, que expressam as lutas em torno de concepções de socieda- N
de e dessas práticas sociais, e que exigem a permanente análise do pro-
cesso histórico-social do qual emergem. A direção que a reforma sani- O
tária e a perspectiva unitária e politécnica dos ensinos médio e técnico
irão tomar vai depender das forças em disputa e da clareza do que está P
em jogo. Principalmente, no contexto atual em que se explicita cada vez
mais a continuidade e consolidação da política econômica de corte Q
neoliberal do governo Lula centrada no ajuste fiscal; de manutenção das
políticas compensatórias e focalizadas na área social, na saúde e educa- R
ção; na política de ‘fazer um pouco mais do mesmo’ no âmbito do SUS,
reproduzindo o modelo médico hegemônico centrado no hospital (Paim, S
2008); e a difusão de uma nova ‘pedagogia da hegemonia’, complementada
pela implementação de um projeto educacional de massificação da edu- T
cação, viabilizado pela implantação de sistemas diferenciados e
hieraquizados de organização educacional e pedagógica (Neves, 2008). U

Esperamos que a publicação desta segunda edição do Dicionário


V
da Educação Profissional em Saúde continue contribuindo para essa
A
análise. Ele mantém o mesmo objetivo da primeira edição, em 2006, ou
seja, de construir e explicitar conceitos e termos organizados em torno
A
de três eixos centrais: ‘trabalho’, ‘educação’ e ‘saúde’, que foram escolhi-

25
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dos em função de dois critérios. O primeiro em razão de serem concei-


tos-chave de importância inconteste no âmbito dessas práticas sociais,
como trabalho produtivo e trabalho improdutivo, trabalho complexo e
trabalho simples, divisão social e técnica do trabalho, e tecnologia. O
segundo por serem conceitos que expressam fenômenos contemporâ-
neos, que surgiram para definir práticas atuais do mundo do trabalho
em geral e o de saúde e educação, em particular, tais como,
empregabilidade, competência, educação politécnica, humanização, uni-
versalidade e integralidade.

Para esta nova edição foi realizada uma revisão de alguns con-
ceitos e agregados 23 (vinte e três) novos. São eles: Avaliação em
Saúde, Capital Intelectual, Comunicação e Saúde, Dualidade Educa-
cional, Educação Corporativa, Educação em Saúde, Eqüidade, Ex-
clusão Social, Gestão do Trabalho em Saúde, Gestão em Saúde,
Globalização, Infor mação em Saúde, Interdisciplinaridade,
Omnilateralidade, Participação Social, Planejamento em Saúde, So-
ciabilidade Neoliberal, Sociedade Civil, Territorialização em Saúde,
Trabalho como Princípio Educativo, Trabalho Imaterial, Trabalho
Produtivo e Trabalho Improdutivo, e Universalidade.

O nosso entendimento ao elaborar esta obra é que o universo de


termos de interesse serão sempre passíveis de reatualizações, seja incor-
porando novas dimensões aos conceitos descritos, seja agregando no-
vos conceitos que emergem dos processos sociais em curso e que am-
pliem a nossa capacidade de análise desta mesma realidade. Sendo as-
sim, é um tipo de obra que deve ser considerada sempre inacabada.
Inspirado em produções científicas comprometidas com o pensamen-
to crítico que nega a adaptação ao existente e com a construção de uma
sociedade justa, democrática e igualitária, o Observatório dos Técnicos
em Saúde, vinculado ao Laboratório do Trabalho e da Educação Pro-
fissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV), tomou a si a iniciativa de organizar a segunda edição do Dicio-
nário da Educação Profissional em Saúde.

26
A

Como na edição anterior, contamos com a participação de profes- C


sores e pesquisadores da EPSJV, assim como de diversos especialistas
convidados para sua elaboração. Estão reunidos aqui um conjunto hete- D
rogêneo de profissionais que aceitaram o desafio de compartilhar conosco
as suas idéias, tais como, arquitetos, assistente social, biólogos,
E
comunicólogos, economistas, educadores, enfermeiros, engenheiros,
F
estatísticos, filósofos, historiadores, médicos, odontólogos, pedagogos,
psicólogos e sociólogos.
G
Para a elaboração dos verbetes, partimos da premissa de que a pro- H
dução, a circulação e a recepção dos textos e dos discursos se dão em
contextos específicos que não podem ser ignorados. Se os textos e os I
discursos se nos apresentam como neutros e naturais, objetivos e trans-
parentes, a tradição da ‘crítica da ideologia’ nos lembra que não há texto N
ou discurso que seja desinteressado, transparente e neutro. O trabalho
educativo e a construção de sentidos aqui adotados consistem em des- O
montar as ilusões ideológicas, apontando para a construção de um co-
nhecimento crítico e qualificado. Trata-se, assim, de uma compreensão P
pautada na idéia de que o pensamento crítico na Educação Profissional
em Saúde, quer realizado na escola e/ou nos serviços de saúde, é atra- Q
vessado por redes contraditórias, mensagens, textos, discursos, sinais
interessados, conflitos e lutas por visões de mundo diferenciadas. R

Nessa discussão também é central a noção de que o sentido é S


construído socialmente na vida social e histórica. Desde Marx, passan-
do por todos os ramos e abordagens da teoria crítica, sabemos que o T
mundo dos sentidos e representações sociais nunca é neutro, transpa-
rente e diretamente acessível à consciência do sujeito. Ou seja, toda re- U
presentação ou sentido social passa necessariamente pela ideologia e
pelo imaginário social, o que requer perceber que a crítica do senso
V
comum e das representações não deva caminhar, de forma exclusiva,
A
para uma teoria que se queira apenas científica, como no viés cientificista,
excluindo da experiência humana a cultura, a ética, a estética, enfim, a
A
variedade da vida social.

27
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A partir dessas idéias convidamos os autores que compõem esta


edição – privilegiando fundamentalmente uma abordagem crítica e qua-
lificada e não uma padronização teórico-metodológica – aos quais fo-
ram feitas as seguintes orientações para a elaboração dos verbetes: a)
‘linguagem crítica’, sem o mito da neutralidade, problematizando sem-
pre que possível os contextos e articulando do particular ao geral na
relação trabalho, educação e saúde, escapando das generalidades vazias
ou discursos herméticos e desnecessariamente confusos; b) ‘historicidade
dos conceitos’, tendo como princípio que os conceitos são históricos,
portanto construções humanas e não uma verdade natural e imutável; c)
‘relações entre os ideários da sociedade e suas inflexões nas políticas de
formação dos trabalhadores técnicos de saúde’, na medida do possível;
d) ‘processo de trabalho e o cotidiano dos serviços de saúde’, relacio-
nando, sempre que possível, a formação com o cotidiano dos serviços
de modo a não levar a um conformismo com as condições existentes.

Finalmente, pensamos que a escrita e a leitura são atos ativos e


produtivos, e neste sentido esperamos que o leitor seja levado a questi-
onar e a buscar os significados oferecidos pelos verbetes, e que a divul-
gação desta nova edição continue contribuindo para a criação de cir-
cunstâncias a favor de uma formação dos trabalhadores da saúde que
tenham como horizonte a sua emancipação e o compromisso com o
pensamento crítico a favor da saúde e da educação públicas.

Isabel Brasil Pereira


Júlio César França Lima

28
A

Bibliografia: C

BAHIA, L. A Démarche do privado e público no Sistema de Atenção à Saúde no D


Brasil em tempos de democracia e ajuste fiscal, 1988-2008. In: MATTA, G. C.; LIMA,
J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 E
anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 123-185.
FONTES, V. A Democracia Retórica: expropriação, convencimento e coerção. In: F
MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde:
contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 189- G
226.
FRIGOTTO, G. Fundamentos científicos e técnicos da relação trabalho e educação H
no Brasil de hoje. In: LIMA, J. C. F.; NEVES, L. M. W. (Orgs.). Fundamentos da educação
escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006, p. 241-288.
I
FRIGOTTO, G; CIAVATTA, M; RAMOS, M. (Orgs.). Ensino médio integrado: concepção
e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.
N
MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde:
contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008. O
NEVES, L. M. W. A Política Educacional Brasileira na ‘Sociedade do Conhecimento’.
In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em P
saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p.
355-391.
Q
PAIM, J. S. Reforma Sanitária Brasileira: avanços, limites e perspectivas. In: MATTA,
G. C.; LIMA, J. C .F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições
e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 91-122. R
PEREIRA, I. B. A Educação dos Trabalhadores da Saúde sob a égide da produtividade.
In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em
S
saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p.
393-420. T
RAMOS, M. Concepção do ensino médio integrado à educação profissional. Natal, 2007 [mimeo].
U
SANTOS, N. R. dos. Democracia e Participação da Sociedade em Saúde. In: MATTA,
G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições
e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 227-246. V
SAVIANI, D. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 1989.
A

29
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

30
A

C
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
D

H
O Brasil possui um sistema de saúde ‘robusto’, apesar de ter pro-
blemas, como por exemplo, a questão estrutural do financiamento, o I
valor da remuneração dos serviços e procedimentos, bem como os de-
safios colocados pela responsabilidade sanitária nos diversos níveis da N
gestão. Seus profissionais necessitam de uma formação qualificada para
que possam exercer atividades a que são chamados a responder no pro- O
cesso de trabalho que desenvolvem nos serviços, principalmente a par-
tir da reorientação do modelo assistencial brasileiro. Assim, as iniciati- P
vas de cunho educacional, como este Dicionário, que contribuem para a
realização e aperfeiçoamento das ações desenvolvidas no processo de
Q
trabalho em saúde, têm contribuições imediatas e estratégicas para a
R
consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Esta publicação, organizada pela Escola Politécnica de Saúde Joa- S


quim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), apresen-
ta verbetes que descrevem e problematizam concepções acerca de edu-
T
cação profissional em saúde, da organização do sistema de saúde brasi-
U
leiro, do processo histórico do trabalho em saúde, entre outras. Esse
conjunto de temas perfaz um documento inédito e de relevância indis-
V
cutível para gestores, docentes, pesquisadores, estudantes e trabalhado-
res do SUS que se dedicam à construção de um sistema de saúde mais A
justo, solidário e de qualidade para todos os brasileiros.
A

31
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Dicionário da Educação Profissional em Saúde representa uma experiên-


cia acumulada pela EPSJV em seus mais de vinte anos de história. Não
é fácil selecionar os verbetes em área tão complexa, nem alcançar a pre-
cisão adequada; contudo, o resultado final é muito estimulante e certa-
mente contribuirá para o aperfeiçoamento desta área vital dos recursos
humanos em saúde no Brasil.

Paulo M. Buss
Presidente da Fundação Oswaldo Cruz

32
A

C
APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
D

H
O trabalho industrial na nossa sociedade tem experimentado mu-
danças importantes configurando socialmente o fenômeno denomina- I
do de ‘crise do trabalho assalariado’, resultado da incorporação cada vez
maior de tecnologias materiais e de novas formas de organização do N
trabalho que, ao mesmo tempo, aumenta a produtividade, exige cada
vez menos trabalhadores e, conseqüentemente, vem acompanhada do O
crescente desemprego. Desde a década de 1990, muitos estudos e pes-
quisas são unânimes em apontar que esse fenômeno está intimamente P
associado ao processo de globalização ou de mundialização do capital, o
qual se assenta, principalmente, na difusão da doutrina neoliberal e na Q
emergência de um novo paradigma produtivo denominado produção
flexível, que surge com o esgotamento do fordismo e com as novas R
formas de gestão dos processos de trabalho.
S
O trabalho em serviços também tem enfrentado mudanças, decor-
rentes da necessidade do capital financeiro em controlar e colocar os T
grandes excedentes de capital nas áreas que antes estavam nas mãos dos
Estados nacionais, e que, na área de saúde, em particular, propugnam U
pela organização de um sistema de saúde baseado em seguros médicos.
Essa ofensiva neoliberal que busca sedimentar a crença nas virtudes do V
mercado cujas ‘graças’ são alcançadas pela interferência mínima do Es-
tado, pelo controle dos gastos estatais e da inflação, pela privatização
A
das empresas estatais e pela abertura completa da economia, trata o
suposto gigantismo do Estado com sua intervenção na economia, bem
A

33
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

como os privilégios que esse tipo de atuação tinha conferido aos traba-
lhadores ao longo dos ‘trinta anos gloriosos’ (1945-1975), nos países
capitalistas centrais, como as causas maiores da crise que se observa a
partir da segunda metade dos anos 1970. Sendo assim, ao mesmo tem-
po que vai impondo derrotas às conquistas do Welfare State construído
nesses países como uma resposta histórica ao processo de vulnerabilidade
social, a ofensiva neoliberal busca recuperar os serviços sociais para as
empresas privadas, propondo a remercantilização de tais serviços. Isso
constitui um dos móveis principais da crítica que atualmente se faz ao
Estado do Bem-estar Social em todo o mundo, motivado pelo interesse
em controlar o fundo público destinado ao setor saúde.

O Brasil, assim como os países latino-americanos, apesar de não ter


experimentado as conquistas sociais verificadas nesses países, não esca-
pa dessa ofensiva neoliberal. Exemplo disso, é o recente Programa Na-
cional de Desprecarização do Trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS)
deflagrado pelo Ministério da Saúde com o objetivo de reverter o qua-
dro de precarização do trabalho no setor. Outro exemplo é a expansão
do mercado privado de planos e seguros de saúde no país, que é conse-
qüência direta do subfinanciamento do SUS observado ao longo da dé-
cada de 1990. Apesar da garantia constitucional de que a saúde é direito
de todos e dever do Estado, a sua implementação foi marcada pelo
enfrentamento de uma série de constrangimentos impostos pelo mode-
lo econômico adotado no nosso país nesse período, fortemente influ-
enciado pelo receituário neoliberal. Do ponto de vista educacional, o
processo de globalização também vem acompanhado da difusão de uma
série de noções ou conceitos, tais como, sociedade do conhecimento,
empregabilidade e competência, que atualmente definem as políticas
educacionais e se constituem no aparato ideológico justificador das de-
sigualdades sociais.

Portanto, a elaboração desse dicionário, visa à explicitação de con-


ceitos e termos organizados em torno de três eixos centrais: ‘trabalho’,
‘educação’ e ‘saúde’. Foram escolhidos em razão da sua importância

34
A

inconteste e mesmo sendo recorrentes no âmbito da Educação Profis- C


sional em Saúde são de conhecimento restrito entre os educadores, pes-
quisadores, estudantes jovens e adultos e gestores que têm interesse na
D
formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Ao contrário, outros ter-
E
mos e conceitos foram escolhidos por terem surgido recentemente para
definir práticas e fenômenos originais do mundo do trabalho em geral e F
o de saúde, em particular.
G
Sem a pretensão de esgotar o universo de termos de interesse para
esse tema e com o entendimento de que qualquer escrito sobre a forma- H
ção humana, nas suas diversas áreas e perspectivas, deve ser sempre
considerado um projeto inacabado, o Observatório dos Técnicos em I
Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), uni-
dade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), inspirado N
em obras científicas comprometidas com o pensamento crítico que nega
a adaptação ao existente e com a construção de uma sociedade justa, O
democrática e igualitária, tomou para si a iniciativa de organizar o pro-
cesso de construção coletiva que agora culmina com a publicação deste P
Dicionário da Educação Profissional em Saúde.
Q
Nesse processo de construção coletiva contamos com a participa-
ção de professores-pesquisadores representantes dos diversos grupos R
de trabalho da EPSJV, que conosco discutiram e indicaram os verbetes
prioritários para compor a coletânea, bem como os possíveis autores. S
Infelizmente, nem todos foram incorporados à presente edição e certa-
mente com a divulgação do dicionário muitos outros serão lembrados e
T
indicados para compor uma próxima edição.
U
Para a elaboração dos verbetes, partimos da premissa de que a pro-
dução, a circulação e a recepção dos textos e dos discursos se dão em
V
contextos específicos que não podem ser ignorados. Se os textos e os
A
discursos se nos apresentam como neutros e naturais, objetivos e trans-
parentes, a tradição da ´crítica da ideologia’ nos lembra que não há texto A
ou discurso que seja desinteressado, transparente e neutro. O trabalho

35
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

educativo e a construção de sentidos aqui adotados consistem em


desmontar as ilusões ideológicas, apontando para a construção de
um conhecimento crítico e qualificado. Trata-se assim de uma com-
preensão pautada na idéia de que o pensamento crítico na Educação
Profissional em Saúde, quer realizado na escola e/ou nos serviços
de saúde, é atravessado por redes contraditórias, mensagens, textos,
discursos, sinais interessados, conflitos e lutas por visões de mundo
diferenciadas. Nessa discussão também é central a noção de que o
sentido é construído socialmente na vida social e histórica. Desde
Marx, passando por todos os ramos e abordagens da teoria crítica,
sabemos que o mundo dos sentidos e representações sociais nunca é
neutro, transparente e diretamente acessível à consciência do sujeito.
Ou seja, toda representação ou sentido social passa necessariamente
pela ideologia e pelo imaginário social, o que requer perceber que a
crítica do senso comum e das representações não deva caminhar, de
forma exclusiva, para uma teoria que se queira apenas científica, como
no viés cientificista, excluindo da experiência humana a cultura, a
ética, a estética, enfim, a variedade da vida social.

A partir dessas idéias convidamos os autores que compõem essa


coletânea –privilegiando fundamentalmente uma abordagem crítica e
qualificada e não uma padronização teórico-metodológica – aos quais
foram feitas as seguintes orientações para a escrita dos verbetes: a)
‘linguagem crítica’, sem o mito da neutralidade, problematizando sem-
pre que possível os contextos e articulando do particular ao geral na
relação trabalho, educação e saúde, escapando das generalidades vazi-
as ou discursos herméticos e desnecessariamente confusos; b)
‘historicidade dos conceitos e termos’, tendo como princípio que os
conceitos são históricos, portanto construções humanas e não uma
verdade natural e imutável; c) ‘relações entre os ideários da sociedade
e suas inflexões nas políticas de formação dos trabalhadores técnicos
de saúde’, na medida do possível; d) ‘processo de trabalho e o cotidia-

36
A

no dos serviços da saúde’, relacionando, na medida do possível, a C


formação com o cotidiano dos serviços de modo a não levar a um
conformismo com as condições existentes.
D

Finalmente, pensamos que a escrita e a leitura são atos ativos e


E
produtivos, e nesse sentido esperamos que o leitor seja levado a questi-
F
onar e a buscar os significados oferecidos pelos verbetes, e que a divul-
gação desse dicionário contribua para a criação de circunstâncias a favor G
de uma formação dos trabalhadores da saúde que tenha como meta a
sua emancipação e o compromisso com o pensamento crítico a favor da H
saúde e da educação públicas.
I
Os Organizadores
N

37
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

38
A

C
A D

E
ATENÇÃO À SAÚDE
F

Gustavo Corrêa Matta G


Márcia Valéria Guimarães Morosini
H
Atenção à saúde designa a orga- que durante muitos anos caracterizou
nização estratégica do sistema e das as políticas de saúde no Brasil. Dessa
I
práticas de saúde em resposta às ne- forma, remete-se à histórica cisão en-
cessidades da população. É expressa tre as iniciativas de caráter individual e
N
em políticas, programas e serviços de curativo, que caracterizam a assistên-
saúde consoante os princípios e as di- cia médica, e as iniciativas de caráter O
retrizes que estruturam o Sistema Úni- coletivo e massivo, com fins preventi-
co de Saúde (SUS). vos, típicas da saúde pública. Essas P
A compreensão do termo ‘aten- duas formas de conceber e de organi-
ção à saúde’ remete-se tanto a proces- zar as ações e os serviços de saúde con- Q
sos históricos, políticos e culturais que figuraram dois modelos distintos – o
expressam disputas por projetos no modelo biomédico e o modelo R
campo da saúde quanto à própria con- campanhista/preventivista – que mar-
cepção de saúde sobre o objeto e os caram, respectivamente, a assistência S
objetivos de suas ações e serviços, isto médica e a saúde pública, faces do se-
é, o que e como devem ser as ações e tor saúde brasileiro cuja separação, há T
os serviços de saúde, assim como a muito instituída, ainda representa um
quem se dirigem, sobre o que incidem desafio para a constituição da saúde em U
e como se organizam para atingir seus um sistema integrado.
objetivos. O modelo biomédico, estru- V
Numa perspectiva histórica, a no- turado durante o século XIX, associa
ção de atenção pretende superar a clás- doença à lesão, reduzindo o processo A
sica oposição entre assistência e pre- saúde-doença à sua dimensão anato-
venção, entre indivíduo e coletividade, mofisiológica, excluindo as dimensões
A

39
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

histórico-sociais, como a cultura, a 1920 sob a influência da medicina li-


política e a economia e, conseqüente- beral e tinha o objetivo de oferecer as-
mente, localizando suas principais es- sistência médico-hospitalar a trabalha-
tratégias de intervenção no corpo dores urbanos e industriais, na forma
doente. Por outro lado, desde o final de seguro-saúde/previdência. Sua or-
do século XIX, o modelo preventivista ganização é marcada pela lógica da as-
expandiu o paradigma microbiológico sistência e da previdência social, inici-
da doença para as populações, consti- almente, restringindo-se a algumas
tuindo-se como um saber corporações de trabalhadores e, pos-
epidemiológico e sanitário, visando à teriormente, unificando-se no Institu-
organização e à higienização dos espa- to Nacional de Assistência e Previdên-
ços humanos. cia Social (INPS), em 1966, e amplian-
No Brasil, os modelos de atenção do-se progressivamente ao conjunto de
podem ser compreendidos em relação trabalhadores formalmente inseridos
às condições socioeconômicas e polí- na economia (Baptista, 2005). Esse
ticas produzidas nos diversos períodos modelo é conhecido também por seu
históricos de organização da socieda- aspecto hospitalocêntrico, uma vez
de brasileira. que, a partir da década de 1940, a rede
O modelo campanhista – influen- hospitalar passou a receber um volu-
ciado por interesses agroexpor-tadores me crescente de investimentos, e a
no início do século XX – baseou-se em ‘atenção à saúde’ foi-se tornando si-
campanhas sanitárias para combater as nônimo de assistência hospitalar. Tra-
epidemias de febre amarela, peste bubô- ta-se da maior expressão na história do
nica e varíola, implementando progra- setor saúde brasileiro da concepção
mas de vacinação obrigatória, desinfec- médico-curativa, fundada no
ção dos espaços públicos e domiciliares paradigma flexneriano, caracterizado
e outras ações de medicalização do es- por uma concepção mecanicista do
paço urbano, que atingiram, em sua mai- processo saúde-doença, pelo redu-
oria, as camadas menos favorecidas da cionismo da causalidade aos fatores
população. Esse modelo predominou no biológicos e pelo foco da atenção so-
cenário das políticas de saúde brasileiras bre a doença e o indivíduo. Tal para-
até o início da década de 1960. digma que organizou o ensino e o
O modelo previdenciário- trabalho médico foi um dos responsá-
privatista teve seu início na década de veis pela fragmentação e hierar-

40
Atenção à Saúde A

quização do processo de trabalho em nitária: “Saúde é a resultante das con- C


saúde e pela proliferação das especiali- dições de habitação, alimentação,
dades médicas. educação, renda, meio ambiente, tra- D
Nesse mesmo processo, o mode- balho, transporte, emprego, lazer, li-
lo campanhista da saúde pública, pau- berdade, acesso e posse da terra e
E
tado pelas intervenções na coletivida- acesso a serviços de saúde”.
F
de e nos espaços sociais, perde terre- A partir dessa concepção amplia-
no e prestígio no cenário político e no da do processo saúde-doença, a ‘aten-
G
orçamento público do setor saúde, que ção à saúde’ intenta conceber e orga-
passa a privilegiar a assistência médi- nizar as políticas e as ações de saúde H
co-curativa, a ponto de comprometer numa perspectiva interdisciplinar, par-
a prevenção e o controle das endemias tindo da crítica em relação aos mode- I
no território nacional. los excludentes, seja o biomédico cu-
Ao final da década de 1970, diver- rativo ou o preventivista. N
sos segmentos da sociedade civil – en- No âmbito do SUS, há três prin-
tre eles, usuários e profissionais de saú- cípios fundamentais a serem conside- O
de pública – insatisfeitos com o siste- rados em relação à organização da
ma de saúde brasileiro iniciaram um ‘atenção à saúde’. São eles: o princípio P
movimento que lutou pela ‘atenção à da universalidade, pelo qual o SUS deve
saúde’ como um direito de todos e um garantir o atendimento de toda a po- Q
dever do Estado. Este movimento fi- pulação brasileira; o princípio da
cou conhecido como Reforma Sanitá- integralidade, pelo qual a assistência é R
ria Brasileira e culminou na instituição “entendida como um conjunto articu-
do SUS por meio da Constituição de lado e contínuo das ações e serviços S
1988 e posteriormente regulamentado preventivos e curativos, individuais e
pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, chama- coletivos (...)” (Brasil, 1990); e o princí- T
das Leis Orgânicas da Saúde. pio da eqüidade, pelo qual esse atendi-
Em meio ao movimento de mento deve ser garantido de forma igua- U
consolidação do SUS, a noção de litária, porém, contemplando a
atenção afirma-se na tentativa de multiplicidade e a desigualdade das con-
V
produzir uma síntese que expresse a dições sócio-sanitárias da população.
A
complexidade e a extensão da con- Em relação à universalidade, o
cepção ampliada de saúde que mar- desafio posto à organização da ‘aten-
A
cou o movimento pela Reforma Sa- ção à saúde’ é o de constituir um con-

41
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

junto de ações e práticas que permi- associada a essa hierarquização é a de


tam incorporar ou reincorporar parce- uma pirâmide, em cuja base se encon-
las da população historicamente aparta- tram os serviços de menor complexi-
das dos serviços de saúde. Da mesma dade e maior freqüência, que funcio-
forma, ao pautar-se pelo princípio da nariam como a porta de entrada para
integralidade, a organização da ‘atenção o sistema. No meio da pirâmide, es-
à saúde’ implica a produção de servi- tão os serviços de complexidade mé-
ços, ações e práticas de saúde que pos- dia e alta, aos quais o acesso se dá por
sam garantir a toda a população o aten- encaminhamento e, finalmente, no
dimento mais abrangente de suas ne- topo, estão os serviços de alta com-
cessidades. Já em relação à eqüidade, a plexidade, fortemente especializados.
‘atenção à saúde’ precisa orientar os ser- Essa tentativa de organizar e
viços e as ações de saúde segundo o res- racionalizar o SUS, se, por um lado,
peito ao direito da população brasileira proporcionou um desenho e um
em geral de ter as suas necessidades de fluxo para o sistema, por outro, refor-
saúde atendidas, considerando, entretan- çou a sua fragmentação e subva-
to, as diferenças historicamente institu- lorizou a atenção primária como um
ídas e que se expressam em situações lócus de tecnologias simples, de bai-
desiguais de saúde segundo as regiões xa complexidade.
do país, os estratos sociais, etários, de Em contraposição, o modelo de
gênero entre outros. atenção pode constituir-se na resposta
Premido, de um lado, pelas ten- dos gestores, serviços e profissionais de
sões geradas por essa pauta de princí- saúde para o desenvolvimento de políti-
pios e, de outro, pela convivência com cas e a organização dos serviços, das
os paradigmas do modelo assisten- ações e do próprio trabalho em saúde,
cialista, o SUS organizou a ‘atenção à de forma a atenderem as necessidades
saúde’ de forma hierarquizada, em de saúde dos indivíduos, nas suas singu-
níveis crescentes de complexidade. laridades, e dos grupos sociais, na sua
Segundo essa lógica, os serviços de relação com suas formas de vida, suas
saúde são classificados nos níveis pri- especificidades culturais e políticas. O
mário, secundário e terciário de aten- modelo de atenção pode, enfim, buscar
ção, conforme o grau de complexida- garantir a continuidade do atendimento
de tecnológica requerida aos procedi- nos diversos momentos e contextos em
mentos realizados. A imagem que se objetiva a ‘atenção à saúde’.

42
Atenção à Saúde A

Nesse sentido, existem também de responsabilização entre os tra- C


propostas de atenção dirigidas a gru- balhadores e a população, reforçan-
pos específicos que podem ser des-
do a centralidade do trabalho da D
equipe multiprofissional. (EPSJV,
critas como políticas voltadas para 2005, p. 75)
‘atenção à saúde’ por ciclo de vida – E
‘atenção à saúde’ do idoso, à criança e Numa dimensão ético-política,
ao adolescente, ‘atenção à saúde’ do isto significa afirmar que a ‘atenção à F
adulto; a portadores de doenças es- saúde’ se constrói a partir de uma pers-
pecíficas – atenção à hipertensão ar- pectiva múltipla, interdisciplinar e, tam- G
terial, diabetes, hanseníase, DST/ bém, participativa, na qual a interven-
Aids, entre outras; e também relati- ção sobre o processo saúde-doença é H
vas a questões de gênero – saúde da resultado da interação e do prota-
gonismo dos sujeitos envolvidos: tra- I
mulher e, mais recentemente, saúde
do homem. balhadores e usuários que produzem e
conduzem as ações de saúde.
N
Essas propostas podem vir asso-
ciadas a estratégias de centralização
O
política e especialização técnica, histo-
Para saber mais:
ricamente concebidas como programas
P
de saúde que antagonizam com a lógi-
BAPTISTA, T. W. F. O direito à saúde
ca da integralidade, uma vez que favo- no Brasil: sobre como chegamos ao Q
recem a fragmentação das políticas e Sistema Único de Saúde e o que
das ações de saúde e buscam unifor- esperamos dele. In: EPSJV (Org.) Textos
de Apoio em Políticas de Saúde. Rio de
R
mizar a intervenção por meio de pro-
Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
tocolos técnico-científicos pouco per-
BRASIL. Constituição da República.
S
meáveis às especificidades políticas,
Artigos 194, 196. Brasília: Senado
sociais e culturais.
Federal, 1988. Disponível em: < http:/ T
Ao contrário, argumenta-se que: /www.senado.gov.br/sf/legislacao/
A complexidade dos problemas de const/ > Acesso em: 29 nov. 2005. U
saúde requer para o seu enfrenta- BRASIL. Lei 8.080, de 19 de setembro
mento a utilização de múltiplos sa- de 1990. Disponível em: <http:// V
beres e práticas. O sentido da mu- www6.senado.g ov.br/legislacao/
dança do foco dos serviços e ações ListaPublicacoes.action?id=134238>
de saúde para as necessidades indi- A
Acesso em: 29 nov. 2005.
viduais e coletivas, portanto para o
cuidado, implica a produção de re- BRASIL. Lei 8.142, de 28 de dezembro A
lações de acolhimento, de vínculo e de 1990. Disponível em: <http://

43
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

www6.senado.g ov.br/le gislacao/ MENDES, E. V. Distrito Sanitário: o


ListaPublicacoes.action?id=134561> processo social de mudança das práticas
Acesso em: 29 nov. 2005. sanitárias do Sistema Único de Saúde. São
CAMARGO JR., K. R. Biomedicina, Saber Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/
e Ciência: uma abordagem crítica. São Paulo: Abrasco, 1993.
Hucitec, 2003. ROSEN, G. Uma História da Saúde
CORBO, A. M. & MOROSINI, M. V. G. Pública. São Paulo: Hucitec/Editora
Saúde da família: história recente da da Universidade Estadual Paulista,
reorganização da atenção à saúde. In: 1994.
EPSJV (Org.) Textos de Apoio em Políticas de SILVA JUNIOR, A. G. Modelos
Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
Tecnoassistenciais em Saúde: o debate no
EPSJV (Org.) Projeto Político Pedagógico. campo da saúde coletiva. São Paulo:
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. Hucitec, 1998.


ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Gustavo Corrêa Matta


Márcia Valéria Guimarães Morosini

Internacionalmente tem-se apre- No Brasil, a APS incorpora os


sentado ‘Atenção Primária à Saúde’ princípios da Reforma Sanitária, levan-
(APS) como uma estratégia de organi- do o Sistema Único de Saúde (SUS)
zação da atenção à saúde voltada para a adotar a designação Atenção Básica
responder de forma regionalizada, con- à Saúde (ABS) para enfatizar a
tínua e sistematizada à maior parte das reorientação do modelo assistencial,
necessidades de saúde de uma popula- a partir de um sistema universal e inte-
ção, integrando ações preventivas e cu- grado de atenção à saúde.
rativas, bem como a atenção a indiví-
duos e comunidades. Esse enunciado Historicamente, a idéia de atenção
procura sintetizar as diversas concep- primária foi utilizada como forma de
ções e denominações das propostas e organização dos sistemas de saúde pela
experiências que se convencionaram primeira vez no chamado Relatório
chamar internacionalmente de APS. Dawnson, em 1920. Esse documento

44
Atenção Primária à Saúde A

do governo inglês procurou, de um Os serviços domiciliares de um dado C


lado, contrapor-se ao modelo distrito devem estar baseados num
flexineriano americano de cunho cu-
Centro de Saúde Primária – uma ins- D
tituição equipada para serviços de
rativo, fundado no reducionismo bio- medicina curativa e preventiva para
lógico e na atenção individual, e por ser conduzida por clínicos gerais E
outro, constituir-se numa referência daquele distrito, em conjunto com
um serviço de enfermagem eficien- F
para a organização do modelo de aten- te e com o apoio de consultores e
ção inglês, que começava a preocupar especialistas visitantes. Os Centros G
as autoridades daquele país, devido ao de Saúde Primários variam em seu
elevado custo, à crescente complexida- tamanho e complexidade de acordo
com as necessidades locais, e com H
de da atenção médica e à baixa sua localização na cidade ou no país.
resolutividade. Mas, a maior parte deles são forma- I
dos por clínicos gerais dos seus dis-
tritos, bem como os pacientes per-
O referido relatório organizava o
tencem aos serviços chefiados por
N
modelo de atenção em centros de saú-
médicos de sua própria região. (Mi-
de primários e secundários, serviços nistry of Health, 1920) O
domiciliares, serviços suplementares e
Esta concepção elaborada pelo
hospitais de ensino. Os centros de saú- P
de primários e os serviços domicilia- governo inglês influenciou a organiza-
res deveriam estar organizados de for- ção dos sistemas de saúde de todo o Q
ma regionalizada, onde a maior parte mundo, definindo duas características
dos problemas de saúde deveriam ser básicas da APS. A primeira seria a R
resolvidos por médicos com formação regionalização, ou seja, os serviços de
em clínica geral. Os casos que o médico saúde devem estar organizados de for- S
não tivesse condições de solucionar com ma a atender as diversas regiões nacio-
os recursos disponíveis nesse âmbito da nais, através da sua distribuição a par- T
atenção deveriam ser encaminhados para tir de bases populacionais, bem como
os centros de atenção secundária, onde devem identificar as necessidades de U
haveria especialistas das mais diversas saúde de cada região. A segunda carac-
áreas, ou então, para os hospitais, quan- terística é a integralidade, que fortale- V
do existisse indicação de internação ou ce a indissociabilidade entre ações cu-
rativas e preventivas. A
cirurgia. Essa organização caracteriza-se
pela hierarquização dos níveis de aten- Os elevados custos dos sistemas
A
ção à saúde. de saúde, o uso indiscriminado de

45
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tecnologia médica e a baixa reso- mentadas e socialmente aceitáveis,


lutividade preocupavam a sustentação colocadas ao alcance universal de
indivíduos e famílias da comunida-
econômica da saúde nos países desen- de, mediante sua plena participação
volvidos, fazendo-os pesquisar novas e a um custo que a comunidade e o
formas de organização da atenção com país possam manter em cada fase
custos menores e maior eficiência. Em de seu desenvolvimento, no espíri-
to de autoconfiança e autodetermi-
contrapartida, os países pobres e em
nação. Fazem parte integrante tan-
desenvolvimento sofriam com a iniqüi- to do sistema de saúde do país, do
dade dos seus sistemas de saúde, com qual constituem a função central e o
a falta de acesso a cuidados básicos, foco principal, quanto do desenvol-
com a mortalidade infantil e com as vimento social e econômico global
da comunidade. Representam o
precárias condições sociais, econômi-
primeiro nível de contato dos indi-
cas e sanitárias. víduos, da família e da comunidade
Em 1978 a Organização Mundial com o sistema nacional de saúde,
pelo qual os cuidados de saúde são
da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações
levados o mais proximamente pos-
Unidas para a Infância (Unicef) realiza- sível aos lugares onde pessoas vi-
ram a I Conferência Internacional sobre vem e trabalham, e constituem o
Cuidados Primários de Saúde em Alma- primeiro elemento de um continu-
ado processo de assistência à saú-
Ata, no Cazaquistão, antiga União Sovi-
de. (Opas/OMS, 1978)
ética, e propuseram um acordo e uma
meta entre seus países membros para No que diz respeito à organiza-
atingir o maior nível de saúde possível ção da APS, a declaração de Alma-Ata
até o ano 2000, através da APS. Essa propõe a instituição de serviços locais
política internacional ficou conhecida de saúde centrados nas necessidades
como “Saúde para Todos no Ano de saúde da população e fundados
2000”. A Declaração de Alma-Ata, numa perspectiva interdisciplinar en-
como foi chamado o pacto assinado volvendo médicos, enfermeiros, partei-
entre 134 países, defendia a seguinte ras, auxiliares e agentes comuni-tários,
definição de APS, aqui denominada bem como a participação social na ges-
cuidados primários de saúde: tão e controle de suas atividades. O
documento descreve as seguintes ações
Os cuidados primários de saúde são mínimas, necessárias para o desenvol-
cuidados essenciais de saúde base-
vimento da APS nos diversos países:
ados em métodos e tecnologias prá-
ticas, cientificamente bem funda- educação em saúde voltada para a pre-

46
Atenção Primária à Saúde A

venção e proteção; distribuição de ali- mente, a APS tornou-se uma referên- C


mentos e nutrição apropriada; tratamen- cia fundamental para as reformas sa-
to da água e saneamento; saúde mater- nitárias ocorridas em diversos países D
no-infantil; planejamento familiar; imu- nos anos 80 e 90 do último século.
nização; prevenção e controle de doen- Entretanto, muitos países e organismos
E
ças endêmicas; tratamento de doenças internacionais, como o Banco Mundial,
F
e lesões comuns; fornecimento de me- adotaram a APS numa perspectiva fo-
dicamentos essenciais. calizada, entendendo a atenção primá-
G
A Declaração de Alma-Ata repre- ria como um conjunto de ações de saú-
senta uma proposta num contexto de de baixa complexidade, dedicada a H
muito maior que um pacote seletivo de populações de baixa renda, no sentin-
cuidados básicos em saúde. Nesse sen- do de minimizar a exclusão social e I
tido, aponta para a necessidade de sis- econômica decorrentes da expansão do
temas de saúde universais, isto é, con- capitalismo global, distanciando-se do N
cebe a saúde como um direito huma- caráter universalista da Declaração de
no; a redução de gastos com armamen- Alma-Ata e da idéia de defesa da saú- O
tos e conflitos bélicos e o aumento de de como um direito (Mattos, 2000).
investimentos em políticas sociais para No Brasil, algumas experiências de P
o desenvolvimento das populações APS foram instituídas de for ma
excluídas; o fornecimento e até mes- incipiente desde o início do século XX, Q
mo a produção de medicamentos es- como os centros de saúde em 1924 que,
senciais para distribuição à população apesar de manterem a divisão entre R
de acordo com a suas necessidades; a ações curativas e preventivas, organi-
compreensão de que a saúde é o resul- zavam-se a partir de uma base S
tado das condições econômicas e so- populacional e trabalhavam com edu-
ciais, e das desigualdades entre os di- cação sanitária. A partir da década de T
versos países; e também estipula que 1940, foi criado o Serviço Especial de
os governos nacionais devem Saúde Pública (Sesp) que realizou ações U
protagonizar a gestão dos sistemas de curativas e preventivas, ainda que res-
saúde, estimulando o intercâmbio e o tritas às doenças infecciosas e
V
apoio tecnológico, econômico e polí- carenciais. Essa experiência inicialmen-
A
tico internacional (Matta, 2005). te limitada às áreas de relevância eco-
Apesar de as metas de Alma-Ata nômica, como as de extração de bor-
A
jamais terem sido alcançadas plena- racha, foi ampliada durante os anos 50

47
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

e 60 para outras regiões do país, mas tre estados e municípios, custeadas por
represada de um lado pela expansão recursos transferidos diretamente da
do modelo médico-privatista, e de ou- previdência social, visando à atenção in-
tro, pelas dificuldades de capilarização tegral e universal dos cidadãos.
local de um órgão do governo federal, Essas experiências somadas à
como é o caso do Sesp (Mendes, 2002). constituição do SUS (Brasil, 1988) e sua
Nos anos 70, surge o Programa regulamentação (Brasil, 1990) possibi-
de Interiorização das Ações de Saú- litaram a construção de uma política
de e Saneamento do Nordeste (Piass) de ABS que visasse à reorientação do
cujo objetivo era fazer chegar à po- modelo assistencial, tornando-se o
pulação historicamente excluída de contato prioritário da população com
qualquer acesso à saúde um conjun- o sistema de saúde. Assim, a concep-
to de ações médicas simplificadas, ca- ção da ABS desenvolveu-se a partir dos
racterizando-se como uma política princípios do SUS, principalmente a
focalizada e de baixa resolutividade, universalidade, a descentralização, a
sem capacidade para fornecer uma integralidade e a participação popular,
atenção integral à população. como pode ser visto na portaria que
institui a Política Nacional de Atenção
Com o movimento sanitário, as
Básica, definindo a ABS como:
concepções da APS foram incorpora-
das ao ideário reformista, compreen- um conjunto de ações de saúde no
dendo a necessidade de reorientação do âmbito individual e coletivo que
abrangem a promoção e proteção
modelo assistencial, rompendo com o da saúde, prevenção de agravos, di-
modelo médico-privatista vigente até o agnóstico, tratamento, reabilitação
início dos anos 80. Nesse período, du- e manutenção da saúde. É desen-
rante a crise do modelo médico- volvida através do exercício de prá-
ticas gerenciais e sanitárias demo-
previdenciário representado pela cráticas e participativas, sob forma
centralidade do Instituto Nacional de de trabalho em equipe, dirigidas a
Assistência Médica da Previdência populações de territórios bem deli-
Social (Inamps), surgiram as Ações mitados, pelas quais assume a
responsabilidade sanitária, conside-
Integradas de Saúde (AIS), que visavam
rando a dinamicidade existente no
ao fortalecimento de um sistema uni- território em que vivem essas
ficado e descentralizado de saúde vol- populações. Utiliza tecnologias de
tado para as ações integrais. Nesse sen- elevada complexidade e baixa den-
sidade, que devem resolver os
tido, as AIS surgiram de convênios en-

48
Atenção Primária à Saúde A

problemas de saúde de maior fre- de da população e à superação das ini- C


qüência e relevância em seu territó- qüidades entre as regiões do país.
rio. É o contato preferencial dos
Ressalta-se também na ABS a im- D
usuários com os sistemas de saúde.
Orienta-se pelos princípios da uni- portante participação de profissionais
versalidade, acessibilidade e coorde- de nível básico e médio em saúde, como
E
nação do cuidado, vínculo e conti- os agentes comunitários de saúde, os
nuidade, integralidade, responsabi- F
lização, humanização, equidade, e auxiliares e técnicos de enfermagem,
entre outros responsáveis por ações de
participação social. (Brasil, 2006) G
educação e vigilância em saúde.
Atualmente, a principal estratégia
de configuração da ABS no Brasil é a H
saúde da família que tem recebido im-
Para saber mais: I
portantes incentivos financeiros visan-
do à ampliação da cobertura
populacional e à reorganização da aten-
BRASIL. Constituição da República. N
Artigos 194, 196. Brasília: Senado
ção. A saúde da família aprofunda os Federal, 1988. Disponível em: < http:/
/www.senado.gov.br/sf/legislacao/ O
processos de territorialização e respon-
const/ > Acesso em: 29 nov. 2005.
sabilidade sanitária das equipes de saú-
BRASIL. Lei 8.080, de 19 de setembro
P
de, compostas basicamente por médi-
de 1990. Disponível em: <http://
co generalista, enfermeiro, auxiliares de
www6.senado.g ov.br/le gislacao/ Q
enfermagem e agentes comunitários de ListaPublicacoes.action?id=134238>
saúde, cujo trabalho é referência de Acesso em: 29 nov. 2005. R
cuidados para a população adscrita, BRASIL. Portaria n. 648, de 28 de março
com um número definido de domicíli- de 2006. Brasília: Ministério da Saúde, S
os e famílias assistidos por equipe. 2006. Disponível em: <http//
d t r 2 0 0 1 . s a u d e . g o v. b r / s a s /
Entretanto, os desafios persistem e PORTARIAS/Port2006/GM/GM- T
indicam a necessidade de articulação de 648.htm> Acesso em: 4 set. 2006.
estratégias de acesso aos demais níveis FAUSTO, M. C. R. Dos Programas de
U
de atenção à saúde (ver verbete Atenção Medicina Comunitária ao Sistema Único de
à Saúde), de forma a garantir o princípio Saúde: uma análise histórica da atenção V
primária na política de saúde brasileira, 2005.
da integralidade, assim como a necessi- Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: A
dade permanente de ajuste das ações e IMS/Uerj.
serviços locais de saúde, visando à apre- MATTA, G. C. A organização mundial A
ensão ampliada das necessidades de saú- de saúde: do controle de epidemias à luta

49
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

pela hegemonia. Trabalho Educação e 1920. Disponível em: <http://


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e tecnologia. Brasília: Unesco Brasil/
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Ministério da Saúde, 2004.
medical and allied services. London,


AVALIAÇÃO EM SAÚDE

Zulmira Maria de Araújo Hartz

Apesar de se reconhecer que exis- paz de ser traduzido em ação. Este julga-
tem inúmeras definições de Avaliação, mento pode ser o resultado da aplicação de
seus contornos no campo da saúde se critérios e normas - avaliação normativa - ou,
delimitam no âmbito das políticas e ser elaborado a partir de um procedimento
programas sociais, consistindo funda- científico - pesquisa avaliativa
mentalmente em aplicar um julgamento de (Contandriopoulos, 2006). Sendo uma
valor a uma intervenção, através de um dis- atividade formalmente utilizada na
positivo capaz de fornecer informações cienti- China há quatro mil anos para recru-
ficamente válidas e socialmente legítimas so- tar seus ‘funcionários’, no ocidente tem
bre ela ou qualquer um dos seus componen- apenas dois séculos e, do século XIX
tes, permitindo aos diferentes atores envolvi- até 1930 (1a geração), se limitava aos
dos, que podem ter campos de julgamento di- problemas de ‘medidas’ e às aplicações
ferentes, se posicionarem e construírem (indi- do método experimental (Dubois et al,
vidual ou coletivamente) um julgamento ca- 2008).

50
Avaliação em Saúde A

No domínio da saúde ela surge dessa sistematização histórica, anun- C


então, vinculada aos avanços da ciando o advento da ‘quarta geração
epidemiologia e da estatística, testan- de avaliadores’, que trataremos a seguir. D
do a utilidade de diversas intervenções, Nesse terceiro estágio predominam a
particularmente direcionadas ao con- função de ‘julgamento’, como compe-
E
trole das doenças infecciosas e ao de- tência fundamental do avaliador, a
F
senvolvimento dos primeiros sistemas institucionalização das práticas
de informação que orientassem as po- avaliativas e a emergência das iniciati-
G
líticas sanitárias nos países desenvol- vas de profissionalização, como cam-
vidos (Estados Unidos, Alemanha, In- po de conhecimento distinto, eviden- H
glaterra, França, Grã Bretanha, Suíça ciadas pelo número crescente das pu-
etc). O avaliador, nesse primeiro está- blicações específicas, a emergência das I
gio, é essencialmente um técnico que associações de avaliadores internacio-
precisa saber construir e usar os ins- nais e dos padrões de qualidade. A pas- N
trumentos para medir os fenômenos sagem da segunda à terceira geração se
estudados e, somente no estágio se- justificava, sobretudo, por duas lacu- O
guinte (até os anos cinqüenta), come- nas: apreciavam apenas os alcances dos
ça a identificar e descrever os progra- objetivos ex-post, sem questioná-los em P
mas, compreender sua estrutura, for- seu valor e relevância, não observan-
ças e fragilidades para ver se é possível do, portanto, as lacunas dos programas. Q
atingirem os resultados esperados e A quarta geração se coloca como
fazer as devidas recomendações para uma alternativa, não excludente, dos R
sua implementação. As ‘medidas’ pas- referenciais anteriores, mas a avaliação
sam a se colocar a serviço da ‘avalia- torna-se ela mesma inclusiva e S
ção’, mas conceitualmente distintas, e participativa, um processo de negoci-
os pesquisadores em ciências sociais ação entre os atores envolvidos na in- T
exercem um papel cada vez mais im- tervenção em que o pesquisador-ava-
portante na condução dos estudos liador também se coloca como parte e U
avaliatórios considerando o avanço não apenas juiz. Guba & Lincoln
metodológico de suas disciplinas. (1989), consideravam que pelo menos
V
O terceiro estágio se inicia nos três problemas comuns comprometi-
A
anos 1960 e vai até o final dos anos am as gerações precedentes, unificadas
1980, com o lançamento do livro de no paradigma positivista, no qual a pro-
A
Guba & Lincoln (1989), precursores dução de conhecimento é proprieda-

51
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de exclusiva dos especialistas nos mé- dos participantes graças ao processo


todos científicos: 1) apesar da ‘aparen- de avaliação. Essa abordagem, como
te’ objetividade por parte dos avalia- as demais, se compromete com a
dores, a avaliação era predominante- melhoria das políticas públicas, mas
mente uma simples ferramenta também a ajudar os grupos sociais a
gerencial nas estratégias políticas; 2) os ela relacionados a melhor compreen-
julgamentos não tinham em conta o der os próprios problemas e as possi-
pluralismo de atores envolvidos, com bilidades de modificá-los a seu favor.
diferentes valores e lógicas de regulação Os autores, apoiados em uma longa
(técnica, política, democrática) dos sis- experiência da avaliação de políticas
temas de ação social, nem a influência públicas em diversos países, fundamen-
deles decorrente no desenho e uso dos tam seus argumentos concluindo que
estudos; 3) privilégio de métodos quan- as chances de utilização dos estudos
titativos e das relações direta de causa- avaliativos decorrem dessa ‘co-produ-
lidade, com desconsideração do con- ção’ dos participantes, em que o avali-
texto e outros elementos ‘não científi- ador desempenha um papel pedagógi-
cos’ na busca de se conhecer ‘a verda- co de mediador e tradutor do proces-
de’, ocultando sua contingência e rela- so analítico e seus resultados.
tividade, a moral e a ética do avaliador
porque a ciência seria livre de valores.
Breve, as interpretações e Avanços e desafios atuais da
interações de atores desempenham um avaliação em saúde
papel não somente na produção de re-
sultados e julgamentos, mas também A quarta geração da avaliação, 20
no aprendizado como conseqüência da anos depois, ainda aparece ‘emergin-
avaliação inclusive para todo corpo do’ no campo da saúde. Se a
social nela interessado. Esses pressu- racionalidade positivista, do sujeito
postos apontam para a emergência da exterior ao objeto que estuda, foi par-
quinta geração de avaliação com parti- cialmente superada, até mesmo no dis-
cipação da sociedade civil em todas as curso dos defensores da tradição cien-
etapas (Baron & Monnier, 2003). A tífica, ela está de tal forma aculturada
quinta geração (‘emancipadora’) com- que a maioria de nossos pesquisado-
binaria as anteriores, mas ela implica a res e estudiosos continua assumindo
vontade explícita de aumentar o poder esta forma do ‘ser científico’ em seus

52
Avaliação em Saúde A

protocolos e atitudes. Pior, quando se com seu objeto de trabalho. No âm- C


adota a interação do sujeito com o bito da gestão pública, estruturada em
objeto, enquanto inexorável à programas governamentais e orienta- D
contextualização do próprio objeto, da por resultados, essa dualidade se tra-
como é o caso das políticas de saúde, duz como questões de natureza
E
tem-se de pagar um certo ‘pedágio’ metodológica e política. A exigência de
F
aos cânones ditos ‘acadêmicos’ para pluralidade de abordagens e atores de-
este reconhecimento. As tentativas na- manda a obrigatoriedade de dispositi-
G
cionais de institucionalização da avali- vos institucionais, igualmente
ação (Brasil, 2005 a, b e 2007), ainda participativos, que regulamentem os H
que defasadas em relação à sua emer- estudos de avaliação garantindo a qua-
gência nas políticas dos anos 1970- lidade e utilidade do produto final. I
1980 (terceiro estágio), foram formu- A pesquisa avaliativa requer, para
ladas com as bases teóricas mais avan- a qualificação dos programas em sua N
çadas da literatura especializada, mas complexidade, a contribuição de dife-
têm dificuldade de superar os limites rentes disciplinas, rompendo O
do monitoramento de objetivos e me- paralelismos epistemológicos que pre-
tas que caracterizaram a segunda gera- cisam ser complementares na avaliação, P
ção de avaliadores. tais como: a pesquisa biomédica e
Essa nossa multiplicidade organizacional; a atenção individual e Q
concomitante de estágios nas práticas coletiva. Nos níveis regionais e locais a
avaliativas científicas e institucionais descentralização da gestão de progra- R
torna a educação profissional para ava- mas força uma ampliação do conheci-
liação em saúde, e a democratização do mento sobre a totalidade dos serviços S
campo, como grandes desafios inter- implicados na obtenção dos efeitos
relacionados a serem enfrentados. A desejados. Nesse tipo de avaliação, em T
compreensão do avaliador como um que as parcerias legitimamente diferem
profissional que analisa e julga as polí- em seus pontos de vista, surgem pro- U
ticas sociais como um conjunto de fa- blemas específicos para a mensuração
tores de proteção inserido entre os de desempenho em ‘rede’ com a ne-
V
determinantes da saúde, exige que cessária contextualização e participa-
A
ampliemos os objetivos da formação ção nas pesquisas.
acadêmica para contemplar a dualidade O interesse em construir maior
A
do pesquisador-ator comprometido capacidade em avaliação nas estrutu-

53
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ras administrativas se coloca então Para saber mais:


como pré-requisito para uma maior
conscientização dos limites e benefíci- BARON, G. & MONNIER, E. Une
os da avaliação, nas instituições gover- approche pluraliste et participative:
coproduire l’évaluation avec la société
namentais ou não-governamentais, in-
civile. Informations Sociales, n.110:1-7,
tegrando o processo das reformas 2003.
sanitárias, e não como uma atividade
BRASIL. Ministério da Saúde.
isolada. A educação profissional em Secretaria de Atenção à Saúde.
avaliação deve ser, portanto, ‘politica- Departamento de Atenção Básica.
mente realista’, superando uma das Coordenação de Acompanhamento e
carências da formação de avaliadores: Avaliação. Avaliação da Atenção Básica em
Saúde: caminhos da institucionalização.
omitir os aspectos políticos das esco-
Brasília, DF., 2005a.
lhas teórico-metodológicas fazendo
BRASIL. Ministério da Saúde. Plano
crer, também, que a uma boa avaliação
Nacional de Avaliação. Brasília: Ministério
se seguem decisões imediatas, desco- da Saúde. Secretaria de Vigilância de
nhecendo que este é apenas um dos Saúde. Programa Nacional de DST/
elementos (nem sempre o mais impor- AIDS, 2005b.
tante) da agenda governamental, ape- BRASIL. Ministério da Saúde. Política
lando para a perseverança na argumen- Nacional de Avaliação de Desempenho do
tação dos avaliadores. A avaliação em Sistema Único de Saúde. Departamento
de Apoio à Descentralização, Secretaria
saúde, como processo que favorece
Executiva, 2007.
a participação e o debate, redistribui
seu ‘acesso’aos atores que, com os CONTANDRIOPOULOS, A. P.
Avaliando a Institucionalização da
próprios meios, não têm capacidade Avaliação. Ciência & Saude Coletiva,
de avaliar os serviços públicos ou vol.11(3)p. 705-712, 2006.
contrabalançar interesses hege-
DUBOIS, C.A.; CHAMPAGNE, F.;
mônicos. Nesse enfoque, a institu- BILODEAU, H. Histoire de
cionalização da avaliação reduz a l’évaluation: un processus soutenu de
assimetria entre o poder dos grupos reconstr uction des moyens de
constituídos da sociedade e os indi- production des connaissances.In:
BROUSSELLE, A.; CHAMPAGNE,
víduos que coletivamente a constitu-
F.; CONTANDRIOPOULOS, A,P.;
em, contribuindo para a democrati- HARTZ, Z. (Eds.). Concepts et méthodes
zação tanto da vida política como d’évaluation des interventions, 2008 (no
daquela interna às instituições. Prelo).

54
Avaliação por Competências A

FURTADO, J. P. Avaliação para Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, C


conhecimento e transformação. In: v. 15, n. 2, p. 258-259, 1999.
BOSI, M. L. M. & MERCADO, F. J.
MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G.; D
(Orgs.). Avaliação Qualitativa de programas
SOUZA, E. R.(Orgs.) Avaliação por
de Saúde. Enfoques Emergentes. Editora
Vozes, p.191 – 306, 2006.
triangulação de métodos. Rio de Janeiro: E
Editora Fiocruz, 2005.
GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Fourth
Generation Evaluation. Newbury Park;
V I E I R A DA S I LVA, L . M . F
Conceitos, Abordagens e Estratégias
CA; Sage Publications, Chapter 1: The p a r a a Avaliação em Saúde. I n :
Coming of Age of Evaluation, p.21- HARTZ, Z. M. A. & VIEIRA DA
G
49; Chapter 7: The Methodology of SILVA, L. M. (Orgs.). Avaliação em
Fourth Generation Evaluation, p.184- Saúde: dos modelos teóricos à prática na H
227, 1989. avaliação de pr ogramas e sistemas de
HARTZ, Z. M. A. Princípios e Padrões s a ú d e . R i o d e Ja n e i ro / S a l va d o r : I
em Meta-Avaliação: diretrizes para os Editora Fiocruz/Edufba, p. 15 –
programas de saúde. Ciência & Saúde 39, 2005.
Coletiva, vol. 11(3): p. 733-738, 2006.
N
WORTHEN, B. R.; SANDERS, J.R.;
FITZPATRICK, J. L. Avaliação de
HARTZ, Z. M. A. Evaluation in health:
Programas Sociais. 1ª ed. São Paulo:
O
regulation, research and culture in the
challenges of institutionalization. Instituto Fonte – Gente, 2004.
 P

Q
AVALIAÇÃO POR COMPETÊNCIAS
R

Marise Nogueira Ramos S

T
A ‘avaliação por competências’ é ma, normalmente, está associada a um
um processo pelo qual se compilam curso ou programa e costuma ocorrer U
evidências de desempenho e conheci- em etapas, cujos resultados compõem
mentos de um indivíduo em relação a um grau final. Neste caso, a aprovação V
competências profissionais requeridas. das pessoas ocorre com base em uma
É comum perguntar em que se escala de pontos que, por sua vez, pos- A
difere uma ‘avaliação por competên- sibilita comparações estatísticas. Quan-
cia’ da avaliação tradicional. Esta últi- to aos aspectos avaliados, normalmente
A

55
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

não se conhecem as perguntas que se- Currículos por Competências) e para a


rão feitas, e essas devem ser respondi- execução de ações de orientação
das em tempos previamente definidos. ocupacional aos trabalhadores.
Já a ‘avaliação por competências’ defi- Quando a ‘avaliação por compe-
ne-se como um processo com vários tências’ é realizada no âmbito de pro-
grandes passos, a saber: a) definição gramas de formação, existe a media-
de objetivos; b) levantamento de evi- ção pedagógica entre a norma e os pro-
dências; c) comparação das evidências cedimentos de avaliação. Nesse caso,
com os objetivos; d) julgamento (com- a avaliação visa também à regulação
petente ou não competente). Este tipo das aprendizagens. Por isto, pode ser
de avaliação centra-se nos resultados desenvolvida de forma processual e em
do desempenho profissional, realizan- paralelo ao processo de formação, de
do-se num tempo não previamente de- forma que a avaliação das aprendiza-
terminado. Os resultados individuais gens permita inferir sobre os objeti-
são comparáveis somente com os cri- vos de ensino e seus resultados (su-
térios de desempenho e não com os postamente, as competências desen-
outros avaliados. volvidas). Entretanto, quando desco-
A ‘avaliação por competências’ é lada do processo de formação, a avali-
orientada por normas, definidas como ação constitui-se numa medida da dis-
um conjunto de padrões válidos em di- tância que o indivíduo falta percorrer
ferentes ambientes produtivos, forne- ante a norma.
cendo parâmetros de referência e de Ainda que todas as formas de ava-
comparação para avaliar o que o traba- liação se refiram ao emprego de evi-
lhador é ou deve vir a ser capaz de fa- dências, cada forma pode ter um pro-
zer. Espera-se que a elaboração e a vali- pósito diferente. É o propósito que vai
dação dessas normas sejam pactuadas definir a natureza e o processo do sis-
entre os diversos sujeitos sociais inte- tema de avaliação. Assim, quando se
ressados nas competências dos traba- realiza a avaliação do trabalhador em
lhadores (governo, empregadores, processo de formação, pretende-se
gestores, trabalhadores, educadores, verificar as competências adquiridas
dentre outros). Além da avaliação, as durante o processo de aprendizagem,
normas de competências são utilizadas evidenciando a capacidade do indiví-
também para orientar a elaboração dos duo de mobilizar e articular, com au-
programas de formação (ver verbete tonomia, postura crítica e ética, seus

56
Avaliação por Competências A

recursos subjetivos, bem como os atri- objetos a serem estudados. Os instru- C


butos constituídos ao longo do pro- mentos utilizados nesse tipo de avali-
cesso de ensino-aprendizagem – co- ação, conjugados entre si ou não, po- D
nhecimentos, destrezas, qualidades dem ser: exercícios de simulação, rea-
pessoais e valores – a que se recorre lização de um microprojeto ou tarefa,
E
no enfrentamento de determinadas si- perguntas orais, exame escrito.
tuações concretas. F
A função formativa da avaliação
Para que a avaliação no processo permite identificar o nível de evolu-
G
de formação possa expressar concre- ção dos alunos no processo de ensi-
tamente as competências desenvolvi- no-aprendizagem. Para os professo- H
das pelos indivíduos, é preciso que a res, implica uma tarefa de ajuste cons-
formação e a ‘avaliação por competên- tante entre o processo de ensino e o I
cias’ sejam coerentemente planejadas de aprendizagem, para ir-se adequan-
em conjunto. Neste caso, a avaliação do à evolução dos alunos e para esta- N
cumpre com suas três funções básicas: belecer novas pautas de atuação em
diagnóstica, formativa e acreditativa relação às evidências sobre sua apren- O
(Hernández, 1998). dizagem. A análise dos trabalhos pode
A função diagnóstica inicial per- ser feita não sob a ótica de se estão P
mite detectar os atributos que os alu- bem ou mal realizados, mas levando-
nos já possuem, contribuindo para a se em conta a exigência cognitiva das Q
estruturação do processo de ensino- tarefas propostas, a detenção dos er-
aprendizagem a partir do conhecimen- ros conceituais observados e as rela- R
to de base dos mesmos. A avaliação ções não previstas, levantando-se sub-
diagnóstica inicial deve tentar recolher sídios para o professor e para o alu- S
evidências sobre as formas de apren- no, que os ajudem a progredir no pro-
der dos alunos, seus conhecimentos e cesso de apreensão dos conhecimen- T
experiências prévios, seus erros e tos, desenvolvimento e aprimoramen-
preconcepções. Caberá ao professor, to de destrezas, construção de valo- U
se possível em conjunto com o aluno, res e qualidades pessoais. Esse mo-
interpretar as evidências, percebendo mento de avaliação pode utilizar as
V
o ponto de vista do aluno, o significa- mesmas estratégias/instrumentos de
A
do de suas respostas, as possibilidades recolhimento de informação da avali-
de estabelecimentos de relações, os ní- ação diagnóstica inicial, combinados
A
veis de compreensão que possui dos ou não entre si.

57
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Por fim, a função acreditativa da local de trabalho. Os avaliadores, nes-


avaliação tem como objetivo reconhe- te caso, podem ser pessoas externas à
cer se os estudantes alcançaram os re- produção ou os próprios supervisores.
sultados esperados. Quando realizada Para realizar esse tipo de avaliação, o
como ápice de um processo formativo, avaliador deve ser hábil no uso de di-
sua legitimidade em relação às normas ferentes métodos.
de competências depende de o progra- De um modo geral, são identifi-
ma de formação ter sido planejado se- cados três princípios básicos da ‘avali-
gundo essas mesmas normas, permi- ação por competências’ (Hager,
tindo-se que se conclua a partir do re- Gonczi & Athanasou, 1994): O primei-
sultado das avaliações processuais so- ro refere-se à necessidade de selecio-
bre as condições de desempenho do nar os métodos diretamente relaciona-
indivíduo segundo as nor mas dos e mais relevantes para o tipo de
especificadas. desempenho a avaliar, dentre os quais
Esta dimensão é a que se destaca sugerem-se os seguintes: a) técnicas de
quando o processo de avaliação ocor- perguntas; b) simulações; c) provas de
re independentemente do processo de habilidades; d) observação direta; e)
formação. Quando avaliado em pro- evidências de aprendizagem prévia. O
cesso de formação, essas três dimen- segundo princípio afirma que, quanto
sões da avaliação estarão relacionadas mais estreita a base de evidência, me-
intrinsecamente, e os percursos realiza- nos generalizáveis serão os resultados
dos posteriormente pelo indivíduo para o desempenho de outras tarefas.
serão, de certa forma, conseqüências das Recomenda-se, então, utilizar uma
próprias evidências obtidas pelas avali- mescla de métodos que permitam a
ações, segundo uma orientação minima- inferência da competência. Por fim,
mente sistematizada pelo professor. Por considera-se conveniente a utilização
outro lado, se avaliado de forma inde- de integrados, visando a um maior grau
pendente à formação, o aproveitamen- de validez da avaliação. A integração
to de qualquer evidência para a cons- significa a combinação de conhecimen-
trução de percursos posteriores, seja de to, compreensão, resolução de proble-
trabalho, seja de formação, ficará a car- mas, habilidades técnicas, atitudes e
go do próprio indivíduo. ética na avaliação.
A ‘avaliação por competências’ Em todos os casos, a ‘avaliação
pode, ainda, ser realizada no próprio por competências’ baseia-se no desem-

58
Avaliação por Competências A

penho. Esta é a dimensão visível e dade, em tarefas, recaindo sobre uma C


objetivável da competência, uma vez concepção condutivista de ensino-apren-
que, na verdade, é a dimensão com- dizagem, pela qual o desempenho se con- D
plexa, subjetiva e implícita que estru- funde com a própria competência.
tura a ação. A competência, portanto,
E
ainda que estruture o desempenho, não
F
se limita a ele. Por isto, a avaliação es- Para saber mais:
tará sempre circunscrita aos elemen-
G
tos objetivos que estruturam a com- HAGER, P.; GONCZI, A. &
petência: conhecimentos e habilidades, ATHANASOU, J. General issues about
assessment of competence. Asses. Eval. H
posto que os elementos subjetivos são
High. Educ., 19(1): 3-15, 1994.
intrinsecamente relacionados às estru-
HERNÁNDEZ, F. Transgressão e
I
turas mentais e às capacidades de
Mudança na Educação: os projetos de trabalho.
enfrentamento de desafios, fortemen-
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. N
te condicionados pela mobilização de
LLUCH, E. Metodología de
conhecimentos por essas estruturas e
investig ación y nor malización de
O
pelos contextos em que se realizam. competencias. In: Seminario
Assim, concluir acerca da competên- Subregional Formación Basada en P
cia dos trabalhadores com base exclu- Competencias: situación actual y
sivamente nos desempenhos obser- perspectivas para los paises del Q
váveis implica abstrair o conjunto de Mercosur, 1996, Buenos Aires. Anais…
Buenos Aires, 1996.
mediações que instauram, de fato, a R
competência, as quais os instrumen- VARGAS, F. Conceptos basicos de
tos de avaliação normalmente utiliza-
competencias laborales. Montevideo. S
CINTERFOR/OIT, 1999. Disponível
dos não conseguem captar. Em razão em: <http//www.ilo.org/public/index/
desta contradição, a ‘avaliação por com- spanish/region/ampro/cinterfor/
T
petências’, muitas vezes baseia-se, na ver- temas/complab/xxxx/esp/indez/ht>.
U

59
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

60
A

C
C D
CAPITAL CULTURAL E

F
Lúcia Maria Wanderley Neves
Marcela Alejandra Pronko
Sônia Regina de Mendonça
G

H
S egundo o sociólogo francês são dele desprovidos. Ademais, ao ins-
Pierre Bourdieu, pioneiro na sistemati- taurar uma cesura entre alunos de gran- I
zação do conceito, a segunda mais im- des escolas e alunos das faculdades, a
portante expressão do capital, à qual instituição escolar, geradora do ‘capi- N
precede apenas o capital econômico tal cultural’, institui fronteiras sociais
portado pelos agentes sociais. Engloba análogas às que separam o que O
prioritariamente, a variável educacional, Bourdieu denomina “nobreza” e “sim-
embora não se limite apenas a ela. ples plebeus”. Essas separações mate- P
Para o autor, a educação/’capital rializam-se, dentre outras, em
cultural’ consiste num princípio de di- diferenças de natureza marcada pelo di- Q
ferenciação quase tão poderoso como reito de os alunos portarem um nome,
o do capital econômico, uma vez que um título, numa espécie de operação R
toda uma nova lógica da luta política mágica, gerada pelo sentido simbólico
só pode ser compreendida tendo-se em inerente a semelhantes atos de classi- S
mente suas formas de distribuição e ficação. Logo, o ‘capital cultural’/sis-
evolução. Isto porque, o sistema esco- tema escolar resulta de atos de T
lar realiza a operação de seleção man- ordenação que, por um lado, institu-
tendo a ordem social preexistente, isto em uma relação de ordem – onde os U
é, separando alunos dotados de quan- ‘eleitos’ são marcados por sua traje-
tidades desiguais – ou tipos distintos – tória de vida e sua pertinência escolar
V
de ‘capital cultural’. Mediante tais ope- – e uma relação de hierarquia – onde
A
rações de seleção, o sistema escolar se- esses mesmos ‘eleitos’ transmutam-se
para, por exemplo, os detentores de em ‘nobreza de escola’ ou ‘nobreza de
A
‘capital cultural’ herdado daqueles que Estado’.

61
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A entrega de diplomas que, medi- Entretanto, a ordem social que as-


ante cerimônias solenes comparáveis segura o modo de reprodução da com-
ao ato de sagrar ‘cavaleiros’, possui uma ponente escolar tem sofrido graus de
função técnica evidente – a de formar/ tensão consideráveis nas últimas déca-
transmitir uma competência e selecio- das do século XX com a superprodu-
nar os mais competentes tecnicamen- ção de diplomados e a conseqüente des-
te –, mascara uma função social clara: valorização dos diplomas e das própri-
a consagração dos detentores as posições universitárias, que se multi-
estatutários do direito (competência) plicaram sem a abertura de novas car-
de dirigir. Essa ‘nobreza de escola’ reiras em proporção equivalente.
comporta parte significativa dos her- O ‘capital cultural’ pode existir sob
deiros da antiga ‘nobreza de sangue’, três formas: incorporado, objetivado e
que reconverteram seus títulos institucionalizado. Na primeira moda-
nobiliários em títulos escolares, justi- lidade, o ‘capital cultural’ supõe um
ficados pela meritocracia. processo de interiorização nos marcos
A instituição escolar, assim, con- do processo de ensino e aprendizagem,
tribui para reproduzir tanto a distribui- que implica, pois, um investimento de
ção do ‘capital cultural’ quanto a do tempo. Desse modo, o ‘capital cultural
próprio espaço social. A reprodução incorporado’ constitui-se parte inte-
da estrutura da distribuição do ‘capital grante da pessoa, não podendo, justa-
cultural’ se opera na relação entre as mente por isso, ser trocado instanta-
estratégias das famílias e a lógica es- neamente, tendo em vista que está
pecífica da instituição escolar que vinculado à singularidade até mesmo
outorga, sob a forma de ‘credenciais’, biológica do indivíduo. Nesse sentido,
ao capital cultural detido pela família, está sujeito a uma transmissão heredi-
suas propriedades de posição. Do tária que se produz sempre de forma
mesmo modo, milhares de professo- quase imperceptível. Segundo Bourdieu
res aplicam a seus alunos categorias (1997, p. 86),
de percepção e de análise que serão
por eles introjetados e interferirão, fu- acumulação de capital cultural des-
turamente, em suas próprias ações de a mais tenra infância – pressu-
posto de uma apropriação rápida e
sociais. Dentre essas categorias, te- sem esforço de todo tipo de capa-
mos, por exemplo, o binômio ‘aluno cidades úteis – só ocorre sem de-
brilhante/aluno apagado’. mora ou perda de tempo, naquelas

62
Capital Cultural A

famílias possuidoras de um capital bitrárias sobre as quais se assenta se- C


cultural tão sólido que fazem com jam irreconhecíveis enquanto tais, é
que todo o período de socialização
possível afirmar que o autor fornece D
seja, ao mesmo tempo, acumulação.
Por conseqüência, a transmissão do instrumentos – articulando conceitos
capital cultural é, sem dúvida, a mais como o de ‘capital cultural’, dentre
E
dissimulada forma de transmissão outros – fundamentais para explicar a
hereditária de capital. F
especificidade e a força do poder sim-
Já o ‘capital cultural objetivado’, bólico, isto é, a capacidade que têm os
G
diversamente do anterior, é material- sistemas de sentido e significação
mente transferível a partir de um su- de proteger e reforçar as relações de H
porte físico, ficando claro tratar-se da opressão e de exploração, ocultando-
transferência de uma propriedade le- as sob o manto ora da natureza, ora da I
gal, posto estar diretamente relaciona- benevolência, ora da meritocracia. Se-
da com o capital cultural incorporado, gundo alguns autores, a sociologia de N
ou melhor, com as capacidades cultu- Bourdieu é uma “economia política da
rais que permitem o desfrute de bens violência simbólica”, desvendando os O
culturais. Logo, o ‘capital cultural’ mecanismos de imposição e inculcação
objetivado pode ser apropriado tanto dos instrumentos de conhecimento e P
materialmente (capital econômico) de construção da realidade que estão a
quanto simbolicamente (obra de arte, ela submetidos, sem assim serem per- Q
capital cultural). Por último, tem-se o cebidos.
‘capital cultural institucionalizado’ que Semelhantes categorias explica- R
alude à objetivação do ‘capital cultural tivas da vida social não possuem uma
incorporado’ sob a forma de títulos validade circunscrita apenas ao âmbi- S
que estão, simultaneamente, garantidos to dos espaços nacionais. Hoje, mais
e sancionados legalmente. Por meio do do que nunca, o imperialismo cultural T
título escolar ou acadêmico, outorga- se apóia no poder de universalizar
se reconhecimento institucio-nal ao particularismos ligados a uma tradição U
‘capital cultural’ possuído por uma de- histórica singular – estadunidense -,
terminada pessoa. sem serem assim reconhecidos. Ope-
V
Uma vez admitido, a partir de ra-se uma espécie de ‘neutralização’ da
A
Bourdieu, que nenhum tipo de domi- história, decorrente da própria circu-
nação se sustenta sem fazer-se reco- lação internacional de textos, bem
A
nhecer, conseguindo que as bases ar- como do esquecimento relativo das

63
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

conjunturas históricas nas quais eles Trata-se de importadores que produ-


mesmos foram produzidos. Essa zem, reproduzem e fazem circular uma
universalização aparente é ratificada série de falsos problemas, disso extra-
pelo trabalho de ‘teorização’, espécie indo benefícios simbólicos e mesmo
de axiomatização fictícia, destinada a materiais. Se é fato que essa tendência
criar a ilusão de uma ‘gênese pura’ e à des-historicização é um dos fatores
‘única’ mediante um receituário de de- que contribui para a desrea-lização e a
finições prévias. Assim, planetarizados falsa universalização, é também claro
no sentido estritamente geográfico e que somente uma efetiva história da
desparticularizados pelo efeito da fal- gênese das idéias sobre o mundo soci-
sa ruptura derivada da conceitua- al juntamente a uma análise dos meca-
lização, os lugares-comuns da atual nismos sociais da circulação interna-
vulgata globalitária – reforçados pela cional dessas mesmas idéias podem
mídia – chegam a fazer esquecer que equipar os cientistas sociais para
eles próprios se originaram em reali- combatê-las.
dades sociais complexas e controver- Do mesmo modo como ocorreu
sas, historicamente determinadas. com o conceito de capital social, no iní-
Por certo se está falando da cio dos anos 2000, os organismos in-
hegemonia que a produção norte-ame- ternacionais, notadamente a Organiza-
ricana exerce sobre o mercado intelec- ção das Nações Unidas para a Educa-
tual mundial e, quanto a isto, deve-se ção, a Ciência e a Cultura (Unesco),
considerar o papel daqueles que se co- ressignificaram o conceito de ‘capital
locam como ‘pontas de lança’ das es- cultural’, para incorporá-lo à sua estra-
tratégias de importação-exportação tégia de desenvolvimento social para o
conceitual, mistificações que transpor- século que se inicia. Como parte rele-
tam a parte oculta dos próprios bens vante do capital social (ver verbete Ca-
culturais que colocam em circulação. pital Social), o ‘capital cultural’ adquire
No pensamento de Bourdieu, são es- importância fundamental na redefinição
ses ‘transportadores’ que, no seio de do papel econômico e de legitimação
cada campo intelectual nacional, arvo- social do Estado contemporâneo. Na
ram-se em ‘especialistas’ supostamen- América Latina, perante a constatação
te capazes de reformular – em termos do aumento da miséria e dos conse-
alienados – questões as mais diversas, qüentes riscos à paz social na região, o
dentre elas, a dos sistemas de ensino. conceito foi introduzido pelos organis-

64
Capital Cultural A

mos internacionais e pelos governos tural’, segundo esta formulação, pode de- C
nacionais como elemento definidor das sempenhar uma função integradora, atra-
políticas sociais, com vistas a aliviar a ente e concreta para os jovens que se D
pobreza e fortalecer a coesão social. O encontram fora do mercado de trabalho
conceito de ‘capital cultural’, nessa nova e do sistema educacional.
E
versão, vem sendo difundido na região A noção de ‘capital cultural’ visa,
F
pelos trabalhos de Bernardo Kliksberg, portanto, conservar as relações sociais
assessor de diversos organismos inter- capitalistas, construindo uma nova so-
G
nacionais (ONU, OEA, BID, Unesco) ciabilidade a partir da redefinição da
e diretor do Projeto da Organização das relação entre Estado e sociedade civil, H
Nações Unidas para a América Latina apontando para uma ‘ação integrada’
de Modernização do Estado e Gerên- entre essas duas esferas. I
cia Social. Segundo seus formuladores, o ‘ca-
O ‘capital cultural’, conceito em pital cultural’ contribui, assim, para a N
construção, é o conjunto de elemen- formação da ética da responsabilidade
tos da cultura popular utilizados como coletiva, para o fortalecimento da sub- O
ingredientes da política social para for- jetividade, e consubstancia-se em uma
talecer a autoconfiança dos despos- estratégia de recomposição da cidada- P
suídos, desenvolver valores de uma nia perdida pelo aumento da desigual-
nova cultura cívica baseada na colabo- dade, a partir de práticas democráticas Q
ração de classes e na ética da respon- baseadas no voluntariado, na ajuda
sabilidade coletiva, contribuir para o mútua e na concertação social. R
desenvolvimento econômico e a coe- O desenvolvimento de políticas
são social. Desta perspectiva, a sociais na América Latina e no Brasil S
revalorização da cultura dos pobres nos anos 2000, inspiradas na utiliza-
passa a se constituir em importante ção combinada dos conceitos de capi- T
instrumento de construção de práticas tal social e de ‘capital cultural’ nessa
democráticas baseadas no associa- nova versão, vem-se configurando U
tivismo comunitário, potencializando como instrumento de apassivamento
energia social criativa. Assim, a despeito dos movimentos sociais, pela conver-
V
da pobreza material, os pobres latino- são da sociedade civil de espaço de con-
A
americanos se transmutariam em ricos fronto a espaço de colaboração. As po-
de espírito, constituindo-se em reserva- líticas sociais que têm nesses concei-
A
tório da cultura nacional. O ‘capital cul- tos sua diretriz teórica são executadas

65
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

pelos órgãos governamentais e tam- ENCREVÉ, P. & LAGRAVE, R.-M.


bém pelos variados aparelhos privados (Coords.) Trabalhar com Bourdieu. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
de hegemonia na sociedade civil,
notadamente, os empresários nacionais FONTES, V. A sociedade civil no Brasil
contemporâneo: lutas sociais e luta
e transnacionais, as igrejas e, até mes- teórica na década de 1980. In: LIMA, J.
mo, parcelas da classe trabalhadora. C. & NEVES, L. (Orgs.) Fundamentos da
Educação Escolar do Brasil Contemporâneo.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
Para saber mais: GARRISON, J. W. Do Confronto à
Colaboração: relações entre a sociedade civil, o
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o governo e o Banco Mundial no Brasil. Brasília:
Desenvolvimento Mundial, 1997: o Estado Banco Mundial, 2000.
num mundo em transformação. Washington, KLIKSBERG, B. Falácias e Mitos do
1997. Desenvolvimento Social. São Paulo/Brasília:
BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio Cortez/Unesco, 2001.
de Janeiro: Marco Zero, 1983. WACQUANT, L. (Coord.) El Mistério del
BOURDIEU, P. Capital Cultural, Escuela Ministerio: Pierre Bourdieu y la política
y Espacio Social. México: Siglo Veinteuno, democrática. Barcelona: Gedisa, 2005.


1997.

CAPITAL HUMANO

Gaudêncio Frigotto

A forma mediante a qual o ser apreendê-la e explicitá-la (Marx, 1983,


humano busca significar ou represen- p. 218-229; Kosik, 1986, p. 9-32).
tar a realidade da qual faz parte traduz- O grau de implicação do ser hu-
se pela mediação de conceitos, catego- mano é diverso quando busca explicar
rias, noções ou simplesmente vocábu- os fenômenos da natureza ou os fenô-
los. O pensamento não cria a realida- menos sociais ou humanos – respecti-
de como entendia Hegel, mas, pelo vamente, ‘sociedade das coisas’ e ‘so-
contrário, este é o modo mediante o ciedade dos homens’, como as deno-
qual os seres humanos buscam minou Gramsci (1978). Em ambos os

66
Capital Humano A

casos, trata-se de um conhecimento da desigualdade entre as nações e en- C


histórico e, portanto, sempre relativo. tre indivíduos ou grupos sociais, sem
Todavia, a implicação dos seres huma- desvendar os fundamentos reais que D
nos no segundo caso é de natureza di- produzem esta desigualdade: a propri-
ferente por duas razões fundamentais: edade privada dos meios e instrumen-
E
em primeiro lugar porque tratam da tos de produção pela burguesia ou clas-
F
realidade por eles produzida e apare- se capitalista e a compra, numa rela-
cem, portanto, ao mesmo tempo como ção desigual, da única mercadoria que
G
sujeito e objeto e, em segundo lugar, os trabalhadores possuem para prove-
porque até o presente as sociedades rem os meios de vida seus e de seus H
humanas vêm cindidas em classes so- filhos – a venda de sua força de traba-
ciais – vale dizer, portadoras de inte- lho (Frigotto, 2006). I
resses antagônicos. Por isso, como evi- A não explicitação dos fundamen-
dencia Marx (1977), os pensamentos tos reais da desigualdade social não de- N
dominantes historicamente foram os corre de uma atitude premeditada ou
das classes dominantes. Por esta con- maquiavélica dos intelectuais da bur- O
dição histórica, os processos de conhe- guesia, mas do caráter de classe, de sua
cimento, consciente ou inconsciente- forma de analisar a realidade social. Ou P
mente, carregam a origem de classe e, seja, presos às representações capita-
enquanto tais, não são neutros (Lowy, listas, como nos assinala Marx em di- Q
1978, p. 9-34). ferentes passagens de sua obra, os eco-
A noção de ‘capital humano’, que nomistas e intelectuais burgueses per- R
se afirma na literatura econômica na cebem como se produz dentro da re-
década de 1950, e, mais tarde, nas dé- lação capitalista, mas não como se pro- S
cadas de 1960 e 1970, no campo edu- duz esta própria relação. Por isso, as
cacional, a tal ponto de se criar um abordagens, como veremos a seguir, T
campo disciplinar – economia (políti- são de caráter funcionalista, fragmen-
ca) da educação –, explicita de forma tário, pragmático e circular. U
exemplar as duas razões anteriormen- Com efeito, como explica o eco-
te expostas sobre a especificidade do nomista Theodoro Schultz (1962), a
V
conhecimento nas ciências sociais e noção ou conceito de ‘capital huma-
A
humanas. Trata-se de uma noção que no’ por ele elaborado surgiu nos anos
os intelectuais da burguesia mundial de 1956-57 no Centro de Estudos
A
produziram para explicar o fenômeno Avançados das Ciências do Compor-

67
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tamento face à sua perplexidade ante Por essa via, Schultz pretendeu ti-
os fatos de que os conceitos por ele rar da economia neoclássica o enigma
utilizados para avaliar capital e traba- que não conseguia explicar o agrava-
lho estavam se revelando inadequados mento da desigualdade entre nações e
para explicar os acréscimos que vi- entre indivíduos e grupos sociais. Es-
nham ocorrendo na produção. Em tava oferecendo, pois, aos intelectuais
contrapartida, sinaliza Schultz, perce- pesquisadores e à classe burguesa no
bia que muitas pessoas nos Estados seu conjunto, um novo ‘fator’, que,
Unidos estavam investindo fortemen- somado aos demais representaria a
te em si mesmas, que estes investimen- solução do enigma do maior ou me-
tos tinham significativa influência so- nor desenvolvimento entre nações e
bre o crescimento econômico, que o maior ou menor mobilidade social en-
investimento básico em si mesmas era tre indivíduos. A concessão do prêmio
um ‘capital humano’ e que aquilo que Nobel de Economia em 1979 pela ela-
constituía basicamente este capital era boração deste conceito, a despeito das
o investimento na educação. O outro polêmicas internas dos economistas
elemento constitutivo do ‘capital hu- burgueses, é um claro reconhecimen-
mano’ é o investimento em saúde. to de que o mesmo expressa a visão
Foi a partir dessas observações legítima de classe para explicar a desi-
que Schultz se dedicou à elaboração gualdade econômica e social entre pa-
mais sistemática deste conceito ex- íses e entre indivíduos.
pondo-a na obra cujo título é Capital O fator H (capital humano) pas-
Humano (Schultz, 1973). Partindo do sou a compor a função de produção
pressuposto de que o componente da da teoria econômica marginalista para
produção que decorre da instrução explicar os diferenciais de desenvolvi-
é um investimento em habilidades e mento entre países e entre indivíduos.
conhecimentos que aumenta as ren- Assim, a variação de desenvolvimento
das futuras semelhante a qualquer maior ou menor entre países ou a mo-
outro investimento em bens de pro- bilidade social dos indivíduos que dan-
dução, Schultz define o ‘capital hu- tes eram explicados por A (nível de
mano’ como o montante de investi- tecnologia), K (insumos de capital) e
mento que uma nação ou indivíduos L (insumos de mão-de-obra) agora re-
fazem na expectativa de retornos cebia um novo fator H como
adicionais futuros. potenciador do fator L. Países que in-

68
Capital Humano A

vestissem mais no fator H teriam a mobilidade individual ou de grupos C


chave para sair de sua condição de sub- específicos são mensurados pelas ta-
desenvolvidos para desenvolvidos, e os xas de retorno das escolhas nos tipos D
indivíduos teriam maiores rendimen- e níveis de escolaridade (Becker, 1964;
tos futuros e ascensão social. Blaug, 1972).
E
A fórmula permitia, por outro lado, tra- Quais são os elementos que nos
F
balhar dentro de técnicas quantitativas, permitem sustentar que a noção ou
elemento cr ucial, na concepção conceito de ‘capital humano’ resulta de
G
positivista e funcionalista, para que o uma representação ou limite de classe
conhecimento possa ser considerado dos economistas e intelectuais burgue- H
neutro e científico. ses que os conduzem a perceber como
A teoria marginalista é assim de- se produzem, dentro da relação capi- I
nominada porque supõe que havendo talista, as disfunções, disparidades e, até
um incremento adicional (marginal) de mesmo as desigualdades, mas não N
um dos insumos haverá um rendimen- como se produz esta própria relação, e
to e um retorno adicional futuro. O que, como conseqüência, tornam sua O
fator H - composto por habilidades, análise circular e reducionista?
conhecimentos, atitudes, valores - O primeiro e principal elemento P
constitui, para Shultz, o insumo adi- que orienta e falseia os demais é o pres-
cional gerador de um diferencial no de- suposto da concepção liberal de natu- Q
senvolvimento entre os países. Como reza e comportamento humano que
método de análise comparativa entre fundamenta a ciência econômica, soci- R
países, Schultz tomou o PIB (Produto al e política burguesa. Para o pensamen-
Interno Bruto) como medida de de- to liberal, todos os indivíduos nascem S
senvolvimento econômico e a escola- com as mesmas predisposições naturais
ridade básica como medida do capital demarcadas pela busca racional do que T
humano. As críticas internas das análi- é agradável e útil. Todos, portanto, apa-
ses macroeconômicas devido não à recem no mercado em iguais condições U
discordância de concepção, mas às di- de escolha individual. Trata-se de um
ficuldades de dados e sua consistência homem econômico racional, “filho[s]
V
conduziram muitos economistas a pre- do iluminismo e, portanto um indivi-
A
ferirem as abordagens microeco- dualista em busca do proveito próprio”
nômicas. Nestas abordagens os retor- (Hollis & Nell, 1969, p. 39). Todavia,
A
nos do investimento que permitem como todos por natureza tendem ao

69
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

mesmo, “o ótimo de cada um, racional- cultura, ou a concepção do fator eco-


mente calculado a longo prazo, consti- nômico. Trata-se da concepção de que
tui para o ótimo de longo prazo para a sociedade se constitui por um con-
todos. O cálculo é a maximização da junto de fatores cuja soma nos dá a com-
utilidade” (Hollis & Nell, 1969, p. 8). preensão da totalidade. Ora um, ora
O que esta concepção de nature- outro fator (o econômico, o político, o
za humana com igualdade e liberdade cultural, o educacional etc) é utilizado,
individual de escolha não revela, ao ad hoc, para explicar o comportamento
contrário, mascara, é o processo his- social. Daí resulta que as explicações
tórico assimétrico que produziu pro- acabam sendo circulares. Com efeito, as
prietários privados de meios e instru- análises de correlação e de taxa de re-
mentos de produção – detentores de torno permitem concluir que existe re-
capital, classe capitalista – e trabalha- lação, mas não o que determina a rela-
dores cuja mercadoria que dispõem ção. Por isso que a teoria do ‘capital
para vender ou trocar no mercado é humano’ não consegue responder à
sua força de trabalho. Da mesma for- questão: os países subdesenvolvidos e
ma, esta concepção ignora o processo os indivíduos pobres e de baixa renda
histórico desigual na constituição das assim o são porque têm pouca escolari-
diferentes nações. Uma análise, portan- dade ou têm pouca escolaridade por-
to, que não reconhece as relações de que são subdesenvolvidos e pobres? So-
poder e de dominação e violência ao mente uma análise histórica da escravi-
longo da história e se afirma no pres- dão, do colonialismo e do imperialismo,
suposto falso de uma natureza huma- por um lado, nos evidenciaria que os
na abstrata na qual cada indivíduo, in- países que têm menos escolaridade são
dependentemente de origem e classe aqueles que foram submetidos a um ou
social, faz suas escolhas em ‘iguais con- a todos estes processos. Por outro lado,
dições’. Por essa via efetiva-se, ao mes- quando examinamos quem, no Brasil,
mo tempo, um reducionismo da con- por exemplo, é analfabeto ou não atin-
cepção de ser humano, trabalho, socie- giu mais que quatro anos de escolarida-
dade, educação e história, de sínteses de, vemos que é a grande massa de tra-
complexas de relações sociais a fatores. balhadores de baixa renda.
O pressuposto epistemológico que Daí que uma análise histórica nos
sustenta esta forma de análise é o que permite afirmar exatamente ao contrá-
Kosik (1986) denominou metafísica da rio da ‘teoria do capital humano’: a

70
Capital Humano A

baixa escolaridade nos países pobres víduos, no bom credo da liberdade C


deve-se a um reiterado processo his- de escolha individual, a responsabi-
tórico de colonização, relações impe- lidade por seu desempreg o ou D
rialistas e de dependência mantidas por subemprego: “Não sou empregável
uma aliança de classe entre os países porque não escolhi um curso que de-
E
centro-hegemônicos do capital e da senvolveu as competências reconhe-
F
periferia. E o acesso desigual e a um cidas e de ‘qualidade total’’!
conhecimento desigual para os filhos A conclusão a que podemos che-
G
da classe trabalhadora, igualmente, gar, como analisa Finkel (1977) é a de
deve-se a uma desigualdade estrutural que ‘capital humano’ é um conceito ou H
de renda e de condição de classe. noção ideológica construída para man-
Por fim, fica evidenciado o ca- ter intactos os interesses da classe de- I
ráter limitado da noção ou conceito tentora do capital e esconder a explo-
de ‘capital humano’ pela necessida- ração do trabalhador. Uma noção que N
de de redefini-lo em face do fato de não só não explica, mas sobretudo
que, paradoxalmente, inversamente à mascara as determinações da desigual- O
tendência universal do aumento da dade entre nações e entre indivíduos e
escolaridade, há um recrudescimen- grupos e classes sociais. Sua crítica, P
to no desempreg o estr utural, como o das noções de qualidade total,
precarização do trabalho com perda sociedade do conhecimento, pedago- Q
de direitos e, especialmente, em paí- gia das competências e emprega-
ses dependentes como o Brasil, ofer- bilidade, se coloca como tarefa teórica R
ta de empregos que exige trabalho e ético-política imprescindível para
simples e oferece uma baixíssima re- aqueles que estão empenhados na su- S
muneração. Com o agravamento da peração das relações sociais capitalistas.
desigualdade no capitalismo contem- T
porâneo, a noção de ‘capital huma-
no’ vem sendo redefinida e
Para saber mais: U
ressignificada pelas noções de socie- BECKER, G. S. Human Capital: a
dade do conhecimento, qualidade to- theoretical and empirical analysis, with special
V
tal, pedagogia das competências e reference to education. New York: Columbia
University Press, 1964. A
empregabilidade (Frig otto &
BLAUG, M. An Introduction to the
Frigotto, 2005; Ramos, 2006). Essas
Economics of Education. New York, s.n., A
noções acabam por atribuir aos indi- 1972.

71
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

BOWLES, S. & GINTIS, H. The HOLLIS, M. & NELL, R. J. O Homem


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a marxisme critique. American Economic Editores, 1969.
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Brasileira, 1978.


CAPITAL INTELECTUAL

Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos

S urgida no contexto da o conhecimento é o principal fator de


reestruturação produtiva e do produção da era contemporânea.
neoliberalismo, a Teoria do Capital Inte- “A informação e o conhecimento
lectual caracteriza-se pela afirmação de que são as armas nucleares da nossa era”

72
Capital Intelectual A

(Stewart, 1998, p. 13). A partir desse compartilhá-lo – tornou-se a tarefa C


argumento, considera-se que o esfor- econômica mais importante dos
ço das organizações deve voltar-se para
indivíduos, das empresas e dos paí- D
ses. (...) O capital intelectual consti-
a produção e gestão desse componen- tui a matéria intelectual – conheci-
te da cadeia de valor. Uma das conse- mento, informação, propriedade E
qüências seria a legitimação da intensi- intelectual, experiência – que pode
ser utilizada para gerar riqueza (...) F
ficação do controle do capital sobre a
formação dos trabalhadores. Uma vez que o descobrimos e ex- G
Com as atuais modalidades de ploramos, somos vitoriosos. (...) A
gestão do trabalho, nomeadas de modo gerência dos ativos intelectuais se
tornou a tarefa mais importante dos H
genérico como modelo japonês,
negócios porque o conhecimento
toyotismo ou modelo de acumulação tornou-se o fator mais importante I
flexível, habilidades como facilidade da produção. (...) O capital Intelec-
tual é a soma do conhecimento de
para o trabalho em equipe e
todos em uma empresa, o que lhe
N
polivalência seriam fundamentais para
proporciona vantagem competitiva.
que o conhecimento se constituísse (Stewart, p. 11-23). O
como parte da estrutura da organiza-
Segundo esse mesmo autor, o ca-
ção. Daí representarem requisito exi- P
gido da força de trabalho no discurso pital intelectual compõe-se de: Capi-
hegemônico. tal Humano; Capital Estrutural; e Ca- Q
Autores como Nonaka e pital de Marca (também chamado ca-
Takeuchi (1997), Sveiby (2001) e pital-cliente). R
Stewart (1998), destacam a importân- Capital humano diz respeito à di-
cia do conhecimento tácito como ele- mensão individual da parcela de conhe- S
mento estratégico na composição do cimento pertencente ao trabalhador;
capital intelectual, considerado em esta dimensão não mais é considerada T
seus trabalhos como o principal ativo suficiente para assegurar a reprodução
das organizações. do capital, além de representar risco U
de depreciação, visto que permanece
O conhecimento tornou-se o prin- sob a posse do trabalhador. Ainda na
V
cipal ingrediente do que produzi- Teoria do Capital Humano, seus auto-
mos, fazemos, compramos e ven- A
demos. Resultado: administrá-lo – res manifestavam preocupação quan-
encontrar e estimular o capital in- to ao risco de se manter, sob a proprie-
telectual, armazená-lo, vendê-lo e
A
dade individual do trabalhador, um fa-

73
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tor de produção estratégico como o lização no domínio do capital estrutu-


conhecimento. Alertavam, por isso, ral, em que o conhecimento portado
para a necessidade de se cuidar para pelo indivíduo, objeto da Teoria do
que se preservasse ao máximo a vida Capital Humano, passa a pertencer à
útil do trabalhador, diminuindo sua organização, sob a forma de conheci-
taxa de depreciação. mento da equipe. Técnicas como o
Já o capital estrutural designa a kaisen (soluções de melhorias contínu-
mudança de posse do conhecimento as oferecidas pelos próprios trabalha-
da esfera individual para a esfera dores por meio de métodos de gestão
organizacional. Quando o conheci- participativos oriundos do modelo ja-
mento deixa de pertencer à esfera in- ponês) favorecem a expropriação,
dividual (propriedade, portanto, do tra- objetivação, padronização e
balhador) e passa a pertencer à esfera reapropriação, pelo capital, do conhe-
organizacional, sob a forma de conhe- cimento tácito. É o momento da pas-
cimento coletivo, da equipe ou do sagem do conhecimento como atribu-
‘time’, passa a ser designado capital to individual do trabalhador a conhe-
estrutural. Esse salto é decisivo para cimento como atributo da equipe.
facilitar, ao capital, ofensivas em dire- Como a equipe se constitui como uma
ção à precarização do trabalho e de eli- instância da organização, compondo a
minação de medidas de proteção à dimensão do capital intelectual conhe-
durabilidade da vida útil individual do cida como capital estr utural,
trabalhador. Não mais portando indi- aprofunda-se o fenômeno da
vidualmente um ‘fator produtivo’ con- subsunção do trabalho ao capital.
siderado fundamental, o conhecimen- Quanto ao terceiro elemento, o
to, não há mais necessidade de preser- capital de marca ou capital-cliente, tra-
vação de sua vida e saúde. O controle ta-se da imagem da organização na
do capital sobre a formação dos traba- sociedade, no mercado. A rede de as-
lhadores encontra na Teoria do Capi- sociações positivas entre a marca e seus
tal Intelectual mais um argumento. significados ultrapassa os atributos da
Além do conhecimento explícito, mercadoria-produto e alcança a dimen-
faz parte da composição do capital in- são da mercadoria como valor social.
telectual o conhecimento tácito. A ex- Ações de ‘responsabilidade so-
propriação do conhecimento tácito do cial’, como parte das estratégias de
trabalhador encontra sua materia- marketing, constituem o terreno para

74
Capital Intelectual A

a acumulação do chamado ‘capital de suas múltiplas faces, como a econômi- C


marca’, representando elemento ca, a política e a técnica. A partir da
contábil não somente no que diz res- segunda metade da década de 1980, D
peito a possíveis isenções fiscais, como, ainda timidamente, sob o pretexto da
sobretudo, nos ganhos de imagem. crise do fordismo e da implantação de
E
Na Teoria do Capital Intelectual, novas bases técnicas do sistema pro-
F
difundida no contexto do chamado dutivo, o ‘capital intelectual’ (ou sua
Estado mínimo neoliberal, o capital insuficiência) passa a ser nomeado res-
G
assume para si a função de dirigente ponsável pelo sucesso ou fracasso no
de projetos educacionais formais e desenvolvimento das forças produti- H
não-formais, de modo diverso do con- vas. O apelo freqüente à relação
texto gerador da Teoria do Capital determinista entre empregabilidade, I
Humano, no qual o capital ainda se eficiência e competitividade denota,
propunha a utilizar-se do Estado para nessa formação discursiva, o esforço N
a execução de seu projeto de forma- pela ocultação das outras dimensões do
ção dos trabalhadores (Schultz, 1973). processo produtivo, como a lógica de O
O deslocamento do papel do Estado acumulação e produção de excedente.
para o empresariado na direção e exe- No novo modelo, divulgado como P
cução, e não apenas na formulação i- símbolo de ruptura com o fordismo e
deológica de projetos educacionais, se toda a sua carga de ‘desumanidade’, Q
apresenta com a justificativa da mudan- faz-se necessário um ‘novo trabalha-
ça de base técnica do trabalho – subs- dor’, mais comprometido afetivamente R
tituição do modelo fordista pelo mo- com a organização e com a produtivi-
delo de acumulação flexível –, geran- dade, segundo tal formulação, mais S
do, segundo o discurso hegemônico, humanizada no neofordismo. Não se
a necessidade de um ‘novo trabalha- indaga como será distribuído social- T
dor’, formado de acordo com o ethos mente o produto de toda a produtivi-
da empresa. dade almejada, entretanto, a campanha U
A compreensão da centralidade da pelo engajamento e pela adesão ética
questão educacional no discurso do do trabalhador aos interesses da em-
V
capital nas duas últimas décadas so- presa é justificada pelo determinismo
A
mente se torna possível quando situa- tecnológico: novas bases técnicas de
da no movimento de restauração produção exigem novo perfil profissio-
A
hegemônica do bloco dominante em nal e novo modelo de educação, prefe-

75
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

rencialmente protagonizado pelo agen- mulação marcada pelo Estado de Bem-


te mais qualificado para esta tarefa, por estar, a relação do capital com o Esta-
ser o principal beneficiário: a empresa. do permitia uma aliança com o apa-
Na década de 1960, na vigência do rente protagonismo do segundo na ela-
Estado de Bem-estar Social, desenvol- boração das políticas educacionais. Já
ve-se a Teoria do Capital Humano, for- a relação entre capital e Estado no
mulada por T. Schultz (1973) e poste- neoliberalismo ressalta a campanha de
riormente desenvolvida por Gary desmoralização e desmonte do Esta-
Becker, como tentativa de explicar o va- do, o que, em parte, justifica a extrema
lor econômico da educação e seus im- ênfase dada pelo capital e seus repre-
pactos sobre a produtividade. Essa teo- sentantes, os organismos internacio-
ria dizia respeito essencialmente aos cus- nais, ao papel de sua própria classe na
tos e às taxas de retorno dos investimen- formulação e implementação de polí-
tos na educação dos trabalhadores. ticas e práticas educacionais.
Na década de 1990, quando já en- Outro fator de distinção entre a
trava em vigor o modelo neoliberal, de- Teoria do Capital Humano e a Teoria
senvolve-se a Teoria do Capital Intelec- do Capital Intelectual diz respeito ao
tual. Alega que o conhecimento é fator antigo problema da inalienabilidade do
de produtividade decisivo e central nos Capital Humano que preocupava
novos modelos de produção e de gestão Schultz e seus contemporâneos,
do trabalho. Mais do que a simples reto- que é minimizada com as novas
mada de uma elaboração teórica gerada bases técnicas do sistema produti-
em uma fase da hegemonia do capital vo, como as novas tecnologias da
em que o Estado cumpria papel mais informação e da comunicação.
relevante na execução das políticas so- Note-se que a sutil mudança de
ciais (a Teoria do Capital Humano), os terminologia, de capital humano para
apelos educacionais da classe dominan- capital intelectual representa o avanço
te no modelo neoliberal dos últimos da classe hegemônica em seus propó-
anos, no espectro da Teoria do Capital sitos de objetivação, expropriação e
Intelectual, expressam as modificações controle do conhecimento. O huma-
do próprio papel do estado social no no pode ser inalienável, mas o intelec-
neoliberalismo. tual pertence à organização. “(...) o que
Na época do surgimento da Teo- há de novo? Simplesmente o fato da
ria do Capital Humano, na fase de acu- gerência de ativos intelectuais ter se

76
Capital Intelectual
A

tornado a tarefa mais importante dos Para saber mais: C


negócios, porque o conhecimento tor-
nou-se o fator mais importante da pro- NON AKA, I.; TAKEUCHI, H . D
dução” (Stewart,1998, p. 17). Criação de Conhecimento na Empresa:
De acordo com Nonaka e como as empr esas japonesas geram a E
dinâmica da inovação. Rio de Janeiro:
Takeuchi (1997), novas formas de Campus, 1997. F
gerenciamento, que eles associam ao
SANTOS, A. F. T. dos. Teoria do
modelo oriental, adotam a exploração
capital intelectual e teoria do capital G
do conhecimento tácito e não do ex- humano: Estado, capital e trabalho na
plícito, como no modelo ‘ocidental’. É política educacional em dois H
na apropriação do saber tácito que re- momentos do processo de
acumulação. In: Associação Nacional
side o ‘segredo’ da formação e preser-
de Pós-g raduação e Pesquisa em I
vação do capital intelectual. Na últi-
Educação. Anais eletrônicos da 27 a
ma década desenvolvem-se no cam- Reunião Anual . Caxambu: Minas N
po da Economia diversas linhas de Gerais, 2004. Disponível em: http://
pesquisa (como na FGV, por exem- www.anped.org.br/reunioes/27/ O
plo) voltadas para a mensuração das gt09/t095.pdf Acesso em: 12 de fev.
2007.
taxas de retorno e da quantificação P
do impacto do investimento em SCHULTZ, T. O Capital Humano. Rio
Capital Intelectual.
de Janeiro: Zahar Editores, 1973. Q
Considerar o conhecimento como STEWART, T. A. Capital Intelectual –
fator estratégico da produção e igno- A nova vantagem competiti va das R
empr esas. 10 a ed. Rio de Janeiro:
rar sua própria mercantilização e o con-
Campus, 1998.
trole de sua produção e distribuição de S
SVEIBY, C. É . A nova riqueza das
acordo com a divisão internacional do
organizações. Rio de Janeiro: Campus,
trabalho levaria a uma concepção T
2001.
acrítica da relação capital-trabalho-
conhecimento-poder. Além de obscu- U
recer o antagonismo de classes e o pro-
blema da propriedade privada dos mei-
V
os de produção.
A

77
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

CAPITAL SOCIAL

Lúcia Maria Wanderley Neves


Marcela Alejandra Pronko
Sônia Regina de Mendonça

O conceito de ‘capital social’ conta tis, por exemplo, sem que isso impli-
com diversas acepções, segundo que desconhecer as formas culturais
filiações teórico-metodológicas distin- (capital cultural) ou sociais (capital so-
tas. A difusão do termo no meio acadê- cial) de sua aplicação.
mico é algo recente, tendo adquirido Bourdieu (1998, p. 67 – grifos do
expressão a partir da década de 1980, autor) define o ‘capital social’ como
face à sua larga utilização por parte de
sociólogos, antropólogos, economistas, o conjunto dos recursos reais ou
cientistas políticos e planejadores. Seu potenciais que estão ligados à pos-
se de uma rede durável de relações mais
destaque provém tanto de sua ou menos institucionalizadas de in-
vinculação a conceitos derivados da te- terconhecimento e de inter-reco-
oria social quanto de sua associação a nhecimento mútuos, ou, em outros
disciplinas como a economia, que tem termos, à vinculação a um grupo, como
o conjunto de agentes que não so-
como cerne a idéia de capital. mente são dotados de propriedades
Tanto ‘capital social’ como capi- comuns (passíveis de serem perce-
tal cultural devem-se imbricar ao mar- bidas pelo observador, pelos outros
co geral proposto por Pierre Bourdieu, e por eles mesmos), mas também
que são unidos por ligações perma-
sociólogo francês pioneiro na sistema-
nentes e úteis.
tização do conceito. Dentro desse mar-
co, o conceito de capital, em todas a Como ele próprio assinala, essas li-
suas manifestações, constitui a chave gações não se reduzem às relações obje-
para dar conta da estrutura, funciona- tivas de proximidade no espaço geográ-
mento e classificação do mundo soci- fico ou mesmo no espaço econômico e
al. Assim, o capital pode ser conside- social, posto serem, inseparavelmente,
rado em sua forma econômica (‘capi- fundadas em trocas materiais e simbóli-
tal econômico’) – quando o campo de cas e cuja prática supõe o reconhecimen-
sua aplicação for o das trocas mercan- to dessa proximidade.

78
Capital Social A

Neste sentido, o quantum de ‘capi- genealogia –, mas sim produto de um C


tal social’ portado por um dado agen- trabalho permanente de instauração e
te depende da extensão da rede de re- manutenção, que produz e reproduz D
lações por ele mobilizada, assim como relações duráveis capazes de assegurar
do volume de capital – econômico, ganhos materiais ou simbólicos. O ‘ca-
E
cultural ou simbólico – que é exclusi- pital social’ está necessariamente asso-
F
vo de outro agente ou grupo de agen- ciado à noção de ‘estratégias’, já que
tes ao qual se encontra vinculado. são elas que constroem a rede de liga-
G
Logo, o ‘capital social’, apesar de ser ções como investimento – consciente
irredutível ao capital econômico e ao ou não – orientado para a reprodução H
capital cultural (ver verbete Capital de relações sociais imediatamente uti-
Cultural) portado por um dado agen- lizáveis. Ou seja, as estratégias destinam- I
te, não pode jamais ser visto como in- se a transformar relações contingentes –
dependente de ambos, já que as trocas como as de vizinhança, trabalho ou mes- N
geradoras do inter-reconhecimento mo parentesco – em relações necessári-
pressupõem o reconhecimento de um as e eletivas, incluindo-se desde sentimen- O
mínimo de realidade ‘objetiva’. Isto tos de reconhecimento ou respeito até a
quer dizer que o reconhecimento das noção de direitos. E na medida em que a P
diferentes manifestações do capital não troca torna os ‘objetos’ signos desse re-
deve deixar de lado nem a capacidade conhecimento mútuo e até mesmo da Q
de transformação de cada uma delas – inclusão no grupo, acaba produzindo o
‘a mútua conversibilidade’ entre os di- próprio grupo e seus limites. Para R
ferentes tipos de capital –, nem, sobre- Bourdieu, cada membro do grupo en-
tudo, a referência última de cada uma contra-se “instituído como guardião S
delas ao capital econômico. Afinal, são dos limites do grupo”, já que a defini-
essas propriedades que permitem expli- ção dos critérios de ingresso ao grupo T
car a reprodução do ‘capital social’ ao vê-se em jogo a cada nova inclusão de
longo do tempo e com ela dar conta, um novo membro. U
em termos globais, de uma economia Assim, a reprodução do ‘capital
geral das práticas sociais. social’ é tributária de dois fatores. Por
V
Por certo essa rede de relações não um lado, ela é tributária de todas as ‘ins-
A
é um dado natural ou “socialmente tituições’ que favorecem as trocas le-
constituído de uma vez por todas e para gítimas, gerando ocasiões (cruzeiros,
A
sempre” – como no caso da família/ caçadas, saraus etc.), lugares (bairros

79
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

chiques, escolas seletas etc.) ou práti- po. Os mecanismos de delegação/


cas (jogos de sociedade, esportes chi- representação impostos como
ques etc.) que reúnem os indivíduos precondição da concentração do ‘ca-
mais homogêneos do ponto de vista pital social’ contêm, assim, o que
da pertinência ao grupo. Por outro, ela Bourdieu chama de “princípio de des-
é tributária do trabalho de sociabilida- vio do capital que eles fazem existir”.
de, por meio do qual se reafirma, in- Por certo, este tipo de capital tan-
cessantemente, o reconhecimento, to pode ser utilizado com vistas à as-
pressupondo investimento de tempo, censão social quanto com vistas à ma-
esforços e mesmo do capital econô- nutenção de uma dada posição. No
mico. O resultado desse trabalho de entanto, o ‘capital social’ acumulado
acumulação do ‘capital social’ será por meio de determinadas estratégias
maior quanto mais importante for não pode ser facilmente reconvertido
esse capital, e seu limite é representa- por meio de estratégias distintas, já que
do pelos detentores de um ‘capital a mudança destas põe em questão o
social herdado’. próprio valor do ‘capital social’. Logo,
Na medida em que o ‘capital so- além de relacionalmente construído e
cial’ não conta com instituições que percebido, o ‘capital social’ é sempre
propiciem a concentração nas mãos de ‘potencial’, uma vez que, embora sugi-
um só agente da totalidade do ‘capital ra a possibilidade de ser investido, não
social’ que funda a existência do gru- oferece a certeza da obtenção dos be-
po – através da representatividade –, nefícios almejados.
cada agente participa do capital coleti- Importa sinalizar que um dado
vamente possuído, ainda que existam elemento não pode ser definido, a priori,
assimetrias entre eles, posto existir, como capital cultural ou ‘social’, só
sempre, uma concorrência interna ao podendo ser considerado enquanto tal
grupo pela apropriação do ‘capital so- na medida em que demonstre a obten-
cial’ produzido. Para circunscrever es- ção de benefícios. Nesse sentido é que
sas concorrências – leia-se conflitos – podemos considerar as estratégias
a limites que não comprometam a acu- educativas de determinados setores
mulação do ‘capital social’ fundante como apostas na acumulação potenci-
dos vários grupos, estes regulam entre al de ‘capital social’ e cultural.
seus participantes a distribuição do Na segunda metade dos anos de
direito de instituir-se delegado do gru- 1990, os organismos internacionais

80
Capital Social A

(Banco Mundial, BID, Unesco) redes de compromisso cívico, que C


ressignificaram o conceito para constitui um pré-requisito para o de-
incorporá-lo à sua estratégia de desen- senvolvimento econômico assim D
volvimento social para os anos iniciais como para um governo efetivo. São
do século XXI. O ‘capital social’ ad- elementos básicos do ‘capital social’ a
E
quire nesse contexto importância fun- autoconfiança que gera a confiança so-
F
damental na redefinição do papel eco- cial, as normas de reciprocidade
nômico e de legitimação social do Es- (associati-vismo) e as redes de com-
G
tado contemporâneo. Na América La- promisso cívico (responsabilidade so-
tina, perante a constatação do aumen- cial). Especificamente na América La- H
to da miséria e dos conseqüentes ris- tina, o conceito de ‘capital social’ é di-
cos à paz social na região, o conceito rigido às comunidades locais e às po- I
foi introduzido pelos organismos in- pulações pobres.
ternacionais e pelos governos nacio- A noção de ‘capital social’ visa, N
nais como elemento definidor das po- portanto, a conservar as relações soci-
líticas sociais, com vistas a aliviar a ais capitalistas, construindo uma nova O
pobreza e fortalecer a coesão social. sociabilidade a partir da redefinição da
Inicialmente o conceito de ‘capital so- relação entre Estado e sociedade civil, P
cial’ nessa nova versão foi formulado apontando para uma ‘ação integrada’,
nas universidades norte-americanas baseada na colaboração, entre essas Q
através dos estudos de James Coleman duas esferas.
e Robert Putnam que datam da primei- Segundo seus formuladores, o ‘ca- R
ra metade da década de 1990. Essa for- pital social’ é, assim, um instrumento
mulação foi retomada por Anthony para formação da ética da responsabili- S
Giddens na sua proposta da “nova so- dade coletiva, de fortalecimento da sub-
cial democracia” (a terceira via) e pos- jetividade e uma estratégia de recompo- T
teriormente sistematizada, para a Amé- sição da cidadania perdida pelo aumen-
rica Latina, por intelectuais orgânicos to da desigualdade, a partir de práticas U
dos organismos internacionais como democráticas baseadas no voluntariado
Bernardo Kliksberg e Norbert Lechner. e na concertação social. O ‘capital soci-
V
Segundo esta nova formulação, al’ é, ainda, um componente intangível
A
ainda em construção, o ‘capital social’ do desenvolvimento econômico.
é o conjunto de elementos da organi- O desenvolvimento de políticas
A
zação social, encarnados em normas e sociais na América Latina e no Brasil

81
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

nos anos 2000, inspiradas na utilização NOGUEIRA, M. A. (Orgs.) Escritos de


Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
deste conceito, vem-se constituindo em
instrumento de apassivamento dos mo- FONTES, V. A sociedade civil no Brasil
contemporâneo: lutas sociais e luta
vimentos sociais, pela conversão da so-
teórica na década de 1980. In: LIMA, J.
ciedade civil de espaço de confronto a C. & NEVES, L. (Orgs.) Fundamentos da
espaço de colaboração. Elas são execu- Educação Escolar do Brasil Contemporâneo.
tadas diretamente pelos órgãos gover- Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
namentais e indiretamente pelos varia- GARRISON, J. W. Do Confronto à
dos parceiros na sociedade civil, Colaboração: relações entre a sociedade civil, o
governo e o Banco Mundial no Brasil. Brasília:
notadamente, os empresários nacionais Banco Mundial, 2000.
e transnacionais, as igrejas e, até mes-
KLIKSBERG, B. Falácias e Mitos do
mo, parcelas da classe trabalhadora. Desenvolvimento Social. São Paulo/Brasília:
Cortez/Unesco, 2001.

Para saber mais: LAHIRE, B. (Dir.) El Trabajo Sociológico


de Pierre Bourdieu – deudas y críticas. Buenos
Aires: Siglo Veinteuno, 2005.
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o
Desenvolvimento Mundial, 1997: o Estado LECHNER, N. Desafíos de un
num mundo em transformação. Washington, desarrollo humano: individualización y
1997. capital social. In: KLIKSBERG, B. &
TOMASSINI, L. (Orgs.) Capital Social y
BOURDIEU, P. A Economia das Trocas
Cultura: claves estratégicas para el desarrollo.
Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
Argentina: BID e Fondo de Cultura
BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio Económica de Argentina, S. A., 2000, p.
de Janeiro: Marco Zero, 1983. 19-58.
BOURDIEU, P. O capital social – notas PINTO, L. Pierre Bourdieu e a Teoria do
provisórias. In: CATANI, A. & Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

82
A

C
CERTIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIAS
D
Marise Nogueira Ramos
E
A ‘certificação de competências’ com a chamada ‘empregabilidade’ pelo
é um aperfeiçoamento da certificação fato de se referir a competências de F
ocupacional, que surge como um pro- base ampla, normalizadas em sistemas
jeto do Centro Interamericano de In- que facilitem a transferibilidade dos tra-
G
vestigação e Documentação sobre For- balhadores entre diferentes contextos
mação Profissional da Organização In- ocupacionais. Admite-se, também, sob
H
ternacional do Trabalho (Cinterfor/ a égide da formação continuada e per-
I
OIT), seguido por diversas iniciativas manente, que o certificado tenha vali-
levadas a cabo em vários países, como dade limitada, de modo que o traba-
N
resultado do deslocamento do concei- lhador deva atualizá-lo permanente-
to de qualificação para a noção de com- mente em face do avanço científico- O
petência. A idéia central em ambos os tecnológico. O certificado de compe-
casos é distanciar a certificação da con- tência é expedido com base em nor- P
cepção acadêmica de creden-cial, ob- mas de competência (ver verbete Ava-
tida ao concluir estudos com êxito de- liação por Competências). Por se refe- Q
monstrado por meio de provas, e rirem a funções produtivas reais, os
aproximá-la da descrição de certificados podem abranger unidades R
capacidades profissionais reais do tra- de competências diferentes, de modo
balhador, independentemente da for- que o trabalhador acumule certificados S
ma como ele as tenha adquirido. As- de sucessivas unidades de competên-
sim, a ‘certificação de competências’ cia nas quais tenha demonstrado do- T
profissionais pode ser realizada pela mínio. Acredita-se que, assim, ele pode
instituição de formação profissional incrementar suas possibilidades de pro- U
em que se tenha cursado programas de moção e de mobilidade profissional.
formação profissional ou por um or- Dependendo da configuração do sis- V
ganismo criado especialmente para cer- tema, um conjunto de certificados que
tificar essas competências. corresponda à totalidade das unidades A
A ‘certificação de competências’ de competência, correspondente, por
passa a adquirir um valor relacionado sua vez, a uma função, pode receber A

83
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

equivalência à respectiva qualificação. das normas de competências


Um sistema de ‘certificação de estabelecidas e institucionalizadas. As
competências’ pressupõe a atuação em entidades certificadoras, por sua vez,
duas dimensões. De um lado, os com- encarregam-se de estabelecer que um
ponentes institucionais; de outro, os trabalhador aspirante à certificação é
componentes técnicos. Os primeiros ou não competente. Para isto, desen-
referem-se aos diferentes sujeitos so- volvem os instrumentos de avaliação.
ciais que cumprem papéis em diversos Nesse quadro, discute-se sobre a
níveis. Os segundos são as diferentes pertinência ou não de a instituição que
fases a se desenvolver no processo de forma também poder certificar. Algu-
certificação. mas visões entendem que isto confi-
Os componentes institucionais gura uma maior independência da ava-
dividem-se em três níveis: a direção do liação e confere à idéia de certificação
sistema, o nível executivo setorial e o uma identidade mais clara, separando-
nível operativo. O nível diretivo gera a da titulação que se pode obter ao fim
acordos necessários para estabelecer a de uma ação formativa. Por fim, seria
estrutura do sistema; isto é, é respon- coerente com o princípio segundo o
sável pela elaboração da base institu- qual a certificação pode ocorrer inde-
cional e do referencial legal. Conta com pendentemente de como e onde se
a representação dos trabalhadores e aprendeu. Outras visões, particularmen-
dos setores empresarial e governamen- te aquelas em que a competência, muito
tal. O nível setorial é de caráter execu- mais do que reconfigurar toda a base
tivo e é conformado pelos empresári- da formação profissional, atua como
os e trabalhadores de um setor uma nova linguagem entre os sujeitos
ocupacional específico. É nesse nível sociais, consideram que essa separação
que se processam a investigação das é inócua, quando não indesejável.
competências e as respectivas normas Os componentes técnicos do sis-
sobre as quais se certifica. No nível tema de certificação são os seguintes:
operativo, figuram as instituições as metodologias de investigação de
dedicadas à certificação e à formação competências (ver verbete Currículo
dos candidatos à certificação. por Competências), as normas de com-
Um sistema dessa natureza pres- petências (ver verbete Avaliação por
supõe que as instituições formadoras Competências), a formação por com-
desenvolvam seus currículos a partir petência (ver verbete Currículo por

84
Certificação de Competências A

Competências) e a avaliação das com- tação do ensino técnico quanto a equi- C


petências. Discute-se, ainda, sobre a valência entre o conjunto de certifica-
validade dos certificados e sua coerên- dos de competência e respectivas dis- D
cia com o quadro formalizado da divi- ciplinas e/ou módulos que integram
são técnica e social do trabalho, nor- uma habilitação, conferindo o diplo-
E
malmente explicitadas em termos de ma correspondente. Tal determinação
F
grades de classificação ou catálogos de teve como base o artigo 41 da Lei n.
ocupações. A implantação de um sis- 9.396/96 (LDB), que reconhece a pos-
G
tema desse tipo acaba exigindo que se sibilidade de avaliar, reconhecer e cer-
reformule e se atualize essa classifica- tificar, para prosseguimento ou conclu- H
ção. Este procedimento pode ser for- são de estudos, o conhecimento adqui-
mal e pouco perturbador ou compre- rido na educação profissional, inclusi- I
ender mudanças significativas, tanto no ve no trabalho. Sob esta ótica, a
plano operacional quanto conceitual. ‘certificação de competências’ torna- N
Neste último caso, pode vir a se mate- se-ia um instrumento a mais na estru-
rializar nos códigos das profissões e do tura da educação profissional, mas não O
exercício do trabalho. A noção de com- eliminaria ou substituiria os títulos re-
petência como ordenadora da gestão lativos às qualificações profissionais. P
do trabalho acaba se concretizando na Argumentos a favor da
medida em que consegue promover ‘certificação de competências’ são apre- Q
reconfigurações materiais também nos sentados em duas perspectivas. Sob a
processos formativos. primeira, destaca-se a importância de R
No Brasil, a instituição da valorizar a experiência profissional e o
‘certificação de competências’ foi autodidatismo dos trabalhadores, con- S
introduzida pelo Decreto n. 2.208/97, siderado como um potencial humano
com finalidades mais voltadas para o que tem permanecido oculto e que pre- T
sistema educacional do que para as re- cisa ser adequadamente identificado,
lações de trabalho. A determinação, avaliado, reconhecido, aproveitado e U
nesse sentido, exigia que os sistemas certificado (Parecer CEB/CNE, n. 17/
federal e estaduais de ensino imple- 97). Sob a segunda perspectiva, a
V
mentassem, por meio de exames, a ‘certificação de competências’ permi-
A
‘certificação de competências’, que tiria tanto um atendimento mais flexí-
possibilitaria tanto a dispensa de disci- vel e rápido das necessidades do mer-
A
plinas e módulos em cursos de habili- cado de trabalho quanto uma constante

85
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

atualização de perfis profissionais e res- este se constituir como um dispositivo


pectivas formas de avaliação de compe- não democrático, mas sim excludente
tências em face das constantes inovações para os trabalhadores. De fato, uma das
tecnológicas e organizacionais do mun- referências teórico-metodológicas de um
do do trabalho. Com base nesses argu- sistema desta natureza visa gerar novos
mentos, a ‘certificação de competências’ instrumentos técnicos com uma funci-
constituiria mais um instrumento para a onalidade voltada para resolver proble-
democratização da educação profissio- mas de competitividade, oportunidades e
nal, por abrir possibilidades de forma- hierarquias sociais, desvalorizando os tí-
ção inicial, continuada e técnica de tra- tulos profissionais em nome de compe-
balhadores, empregados ou não. A tências flexíveis e renováveis permanen-
certificação complementaria e, em deter- temente. Neste caso, a certificação não
minados casos, dispensaria, freqüência a proporcionaria o reconhecimento dos co-
cursos e programas de educação profis- nhecimentos dos trabalhadores, assegu-
sional. Por outro lado, o reconhecimen- rando-lhes o direito ao acesso ao sistema
to do saber tácito do trabalhador educacional e à negociação trabalhista a
corresponderia a um direito importante partir de seus saberes. Ao contrário, os
no âmbito da educação de jovens e adul- certificados corresponderiam a mecanis-
mos de classificação, seleção e exclusão
tos trabalhadores.
do mercado de trabalho.
A Resolução CNE/CEB n. 4, de
1999, em seu artigo 16, disciplinou que
o MEC, em conjunto aos demais órgãos
federais das áreas pertinentes, ouvido o Para saber mais:
Conselho Nacional de Educação, orga-
nizaria um sistema nacional de BRASIL. CNE/CEB. Resolução n. 04/
certificação profissional baseado em com- 99. Institui as diretrizes curriculares
nacionais para a educação profissional
petências. Previa, ainda, que desse siste-
de nível técnico. Brasília, 1999.
ma participariam representantes dos tra-
BRASIL. CNE/CEB. Parecer n. 17/97.
balhadores, dos empregadores e da co-
Dispõe sobre as diretrizes operacionais
munidade educacional. para a educação profissional de nível
técnico. Brasília, 1997.
A institucionalização de um siste- RAMOS, M. N. A Pedagogia das
ma de certificação profissional exige um Competências: autonomia ou adaptação? São
debate aprofundado sobre a ameaça de Paulo: Cortez, 2001.

86
A

C
CERTIFICAÇÃO PROFISSIONAL
D
Carmen Sylvia Vidigal Moraes
E
A reestruturação capitalista das marginalistas das teorias do ‘capital
últimas décadas introduziu mudanças humano’ passam a ser dominantes nas F
que atingiram o conjunto da vida soci- recomendações dos organismos inter-
al. As inovações tecnológicas, as nacionais e nas agendas governamen- G
novas formas de organização do tais, as quais difundem programas de
trabalho e a flexibilização levaram à formação que visam garantir
H
rede-finição das qualificações, das iden- ‘empregabilidade’, isto é, possibilitar,
I
tidades profissionais, individuais e co- a cada um, o acréscimo individual de
letivas. Ao mesmo tempo, o aumento capital humano para sua adaptação às
N
persistente do desemprego e do em- novas condições de trabalho e/ou para
prego informal, da precarização/ o sucesso da empresa. Nessas circuns-
O
informalização do trabalho aprofun- tâncias, a promoção do desenvolvi-
daram a exclusão social. mento das ‘competências’ no trabalho P
Nessa conjuntura, a educação e a e na formação, assim como sua
formação profissional constituem al- certificação, constituem elementos- Q
gumas das principais medidas destina- chave da ‘modernização’ econômica e
das, em um primeiro momento, a com- terão amplas implicações na definição R
bater as desigualdades entre empresas, e organização das políticas nacionais
produzidas pela competiti-vidade eco- de educação e formação, no reconhe- S
nômica, por meio da adaptação dos tra- cimento e certificação das atividades
balhadores às mudanças técnicas e às profissionais, na oferta dos serviços de T
condições de trabalho; e, em momen- formação.
to posterior, ao atendimento de cate- Como indicam documentos da U
gorias e grupos de trabalhadores ame- Organização Internacional do Traba-
açados pela desqualifi-cação profissio- lho (OIT), até os anos 70 do século V
nal e pelo desemprego. XX, a certificação de conhecimentos
Estratégias de ‘adequação forma- aparecia associada à formação, isto é, A
ção-emprego’, defendidas pelas abor- era expedida no final de um processo
dagens econômicas neoclássicas, de ensino sistemático, após o aluno ter A

87
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

superado com êxito as provas e exa- públicas de educação e qualificação


mes de avaliação, possuindo legitimi- profissional, e o fim dos acordos entre
dade em todo o país (Cinterfor/OIT, empregadores e empregados em ma-
2006; Pronko, 2005). Será no decorrer téria de aprendizagem. Na França, seg-
da década de 1990 que a temática da mento expressivo da representação dos
‘formação ao longo da vida’, substitu- trabalhadores deste país vem critican-
indo o conceito de ‘educação perma- do essa modalidade de validação por
nente’ (como direito de todos e obri- tentar destruir o conceito de qualifica-
gação do Estado), será introduzida no ção, reduzir os diplomas a um conglo-
debate público por algumas organiza- merado de conhecimentos elementa-
ções internacionais, como a Organiza- res, fazendo desaparecer a noção de
ção para a Cooperação e a Economia quadros de classificação construídos
(OCDE), o Banco Mundial e até a coletivamente a partir dos níveis de for-
Organização das Nações Unidas para mação profissional. Os trabalhadores
a Educação, a Ciência e a Cultura apontam o enfraquecimento dos pro-
(Unesco), abrindo espaço para a cessos de negociação, o afastamento
‘certificação de competências’. do Estado e o peso crescente dos em-
A noção de competência, que pregadores na apreciação e reconheci-
vem substituir a noção de qualifica- mento das aquisições, cuja única refe-
ção, afeita ao ‘antigo’ paradigma rência é a prática nos ramos profissio-
taylorista, apesar de imprecisa, con- nais. Enfim, condenam a ruptura da li-
verge em suas diferentes versões para gação tradicional entre validação e for-
o significado de performance, de desem- mação, assim como a quebra das re-
penho (verificável) em situação de tra- gras juridicamente definidas de corres-
balho, independente da forma de aqui- pondência entre o diploma escolar e o
sição dos conhecimentos pelo traba- título/certificado profissional, medidas
lhador. Em alguns países, como é o que, segundo eles, visam satisfazer exi-
caso da Inglaterra, sua adoção signi- gências da flexibilização econômica
ficou a passagem para um regime (Joubier, 1997; Boudet et al., 1998). Em
referenciado no mercado e a extinção resumo, esta política de certificação de
do modelo fundado sobre a ‘negocia- competências tenderia a produzir um
ção social’, isto é, de todas as instân- rompimento com o sentido
cias públicas de participação social universalista das políticas públicas de
destinadas à definição das políticas formação do trabalhador.

88
Certificação profissional A

Acompanhando os processos de pessoa (desempenho), e é omisso em C


reconversão produtiva, o discurso da relação à certificação de conhecimen-
‘competência’ foi introduzido no Bra- tos para fins de continuidade de es- D
sil e em alguns países da América Lati- tudos (Moraes et al., 2003). Tal do-
na pelos empresários e também pelos cumento foi retirado do Conselho
E
governos, estimulados pelos organis- Nacional de Educação no
F
mos multilaterais. O processo de começo do governo Lula, quando a
institucionalização da noção de com- temática, em novo encaminhamento,
G
petência em nosso país, que lhe confe- passou a ser debatida com represen-
re caráter oficial, realizou-se principal- tantes dos segmentos sociais. H
mente mediante as reformas educaci- É importante mencionar que, des-
onais promovidas pelo governo de a década de 1980, o Centro I
Fernando Henrique Cardoso na Edu- Interamericano de Investigación y
cação Básica, Profissional e Superior, Documentación sobre Formación N
e na Classificação Brasileira das Ocu- Profesional/Cinterfor/OIT realizou
pações (CBO). Coerente com a visão inúmeros estudos sobre certificação O
predominante naquele período, no fi- ocupacional visando delinear uma po-
nal de 2002, o MEC encaminhou para lítica para a América Latina a respeito P
discussão, no Conselho Nacional de da matéria. Na década de 1990, a de-
Educação (CNE), o documento “Or- nominação do tema direcionou-se para Q
ganização de um Sistema Nacional de as chamadas ‘competências laborais’
Certificação Profissional baseado em (Vargas Zúñiga, 2002). A difusão, no R
Competências”, propondo a criação de comércio internacional, das exigênci-
um Sistema Nacional de Certificação as de normas ISO, como a série ISO S
Profissional baseada em Competênci- 9000 (qualidade) e a ISO 14000
as. Apesar de originário do MEC, seu (ambiental), implicou o desenvolvi- T
propósito maior consistiu em dar co- mento de ações no sentido de vincular
bertura legal às atividades de o reconhecimento/ certificação de co- U
‘certificação profissional’ realizadas nhecimentos dos trabalhadores à
fora do âmbito do MEC. Com essa certificação de produtos e processos
V
perspectiva, propõe separar, e não ape- de trabalho. No Brasil, no âmbito das
A
nas distinguir, a certificação escolar (de políticas de qualidade e produtividade,
conhecimentos) da ‘certificação profis- a Lei Federal n. 9933, de 1999,
A
sional’, entendida como certificação da reformula as atribuições do Conselho

89
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Nacional de Metrologia Qualidade In- É possível notar, portanto, que


dustrial (Conmetro) e do Instituto Na- houve, na última década, uma ofensi-
cional de Metrologia, Normalização e va do empresariado no sentido de cri-
Qualidade Industrial (Inmetro), ar um sistema de certificação (de com-
autarquia vinculada ao Ministério do petências) que transferisse a responsa-
Desenvolvimento, Indústria e Comér- bilidade do Estado para o setor priva-
cio Exterior, criado em 1973, autorizan- do e excluísse a participação negocia-
do-os a conceder a marca de conformi- da com a representação dos trabalha-
dade a produtos, processos e serviços. dores. Como resultado, tais políticas de
De acordo com o decreto n. 4.630, certificação realizam-se hoje de forma
de 2003, que aprova a estrutura regi- isolada, desvinculadas das políticas de
mental do Inmetro como órgão exe- educação profissional e de certificação
cutivo do Sistema Nacional de de escolaridade.
Metrologia, Normalização e Qualida- Visando intervir nesse quadro
de Industrial/Sinmetro, é sua finalida- político e social complexo, em conso-
de “coordenar a certificação compul- nância com o Plano Plurianual 2004-
sória e voluntária de produtos, de pro- 2007 do Governo Lula, a “política pú-
cessos, de serviços e a certificação volun- blica de qualificação social e profissio-
tária de pessoas” (Anexo I, cap. I, inciso nal” do MTE propõe criar, no país, um
VIII). Este dispositivo delega ao marco nacional das qualificações com
Inmetro a atribuição de realizar o o objetivo de regulamentar o mercado
credenciamento de instituições para de formação e de ‘certi-ficação profis-
certificação (voluntária) de pessoal no sional’ existente. Define a ‘qualificação
âmbito das avaliações de qualidade/ profissional e social’ como direito dos
conformidade, tendo como base os trabalhadores brasileiros, cuja
critérios elaborados por organismo universalização pressupõe o atendi-
privado, a Associação Brasileira de mento dos segmentos considerados
Normas Técnicas (ABNT), o que deu mais vulneráveis econômica e social-
origem a interpretações tendenciosas mente, os que apresentam maior difi-
por parte dos defensores da organiza- culdade de inserção no mercado de tra-
ção de um sistema privado de balho, que têm sido alvo de processos
certificação profissional, os quais vi- de exclusão e discriminação sociais –
ram, no dispositivo, a oportunidade de como as de gênero e etnia, além das
constituição de tal sistema. geracionais e de pessoas portadoras de

90
Certificação profissional A

necessidades especiais (Plano Nacio- Interministerial sobre Qualificação e C


nal de Qualificação/PNQ/MTE, Educação Profissional, composta pe-
2003 -2004). los Ministérios da Educação, do Tra- D
O conceito de marco nacional das balho e Emprego, da Saúde, Ministé-
qualificações, introduzido pela Reco- rio do Desenvolvimento, Indústria e
E
mendação 195 da Conferência Inter- Comércio Exterior, do Ministério do
F
nacional do Trabalho da OIT, de 2004, Turismo e pelos Conselhos Nacionais
é de uso recente e sua adoção expressa de Educação e do Trabalho, sob a co-
G
o compromisso da realização de uma ordenação-geral, exercida alternada-
política nacional para promover o de- mente, do Ministério da Educação e do H
senvolvimento, a aplicação e o finan- Ministério do Trabalho e Emprego.
ciamento de um mecanismo transpa- A iniciativa nasce, sobretudo, se- I
rente de avaliação, certificação e re- gundo o Termo de Referência para ela-
conhecimento dos saberes profissi- boração de instrumento legal de cria- N
onais obtidos por uma pessoa via ção do Sistema Nacional de Certificação
educação f or mal ou infor mal Profissional (MTE/OIT, 2004), O
(Cinterfor/OIT, 2006).
Para suprir a ausência de uma po- da preocupação em criar um mar- P
co regulatório integrado que valide
lítica pública nacional de ‘certificação
os processos de certificação existen-
profissional’ de conhecimentos, que tes, realizados por instituições pú- Q
normatize e regule experiências, pro- blicas ou privadas, no âmbito das
postas, programas e projetos de relações de trabalho, na relação e R
equivalência com os diferentes ní-
‘certificação profissional’ vinculados veis de escolarização e das normas
aos diversos ministérios, órgãos fede- de conformidade, buscando dirimir S
rais, entidades e segmentos sociais, o sobreposições de competências e
MTE, desde 2003, vem desenvolven- dispersão de atribuições entre dife- T
rentes órgãos governamentais.
do esforços em conjunto com diver-
sos agentes governamentais e sociais, No âmbito do MTE, a qualifica- U
com vistas a organizar institucio- ção social e profissional é definida
nalmente a ‘certificação profissional’ como uma construção social e, portan- V
como atribuição do Sistema Público de to, histórica, ou seja, “como relação
social construída pela interação dos
A
Emprego e articulado aos Sistemas
Nacional de Educação. Para tanto, foi agentes sociais do trabalho em torno
A
instituída, em 2004, a Comissão da propriedade, significado e uso do

91
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

conhecimento” (Lima & Lopes, 2005). dos são exclusivamente profissionais,


Dessa maneira, o conceito ressalta a não existindo correspondência com
importância de outros contextos escolaridade, a certificação proposta
socioculturais para além dos espaços pelo MTE é considerada como par-
de trabalho, e a natureza individual e te do processo de orientação e for-
coletiva da qualificação profissional. mação profissional, e não pode “se
Trata-se de um processo de constru- opor, sobrepor ou substituir” a for-
ção/reconstrução contínua de aquisi- mação profissional.
ção de saberes, representações, proce- No campo da educação escolar,
dimentos necessários para fazer frente duas novas medidas do MEC conver-
às situações e condições de trabalho, em gem com os objetivos propostos pelo
geral suscetíveis de modificação ao lon- MTE. O decreto n. 5154, de 2004, que
go do tempo e de sociedade para socie- revogou o decreto n. 2208, de 1997,
dade. Existe, portanto, no processo de resgata as bases unitárias do ensino
construção da qualificação social e pro- médio, e, em consonância com reivin-
fissional, dimensões de ordem psico- dicações de entidades de educadores e
comportamental e sociocultural com do movimento popular, dispõe sobre
recortes de gênero, etnia, classe etc. Há a oferta da formação profissional ini-
dimensões de racionalidade e subjeti- cial e continuada (a antiga educação
vidade, elementos de construção de profissional básica) em todos os níveis
identidades (individuais e coletivas). de escolaridade, por meio de itinerári-
O Sistema Nacional de os formativos. Introduz, pela primeira
Certificação Profissional (SNCP) con- vez, a definição de itinerário formativo,
cebe a ‘certificação profissional’ como considerado como “o conjunto de eta-
“processo negociado pelas represen- pas que compõem a organização da
tações sociais e regulado pelo Estado”, educação profissional em uma deter-
por meio do qual se “identifica, avalia minada área, possibilitando o aprovei-
e valida conhecimentos, habilidades e tamento contínuo e articulado dos es-
aptidões profissionais do(a) traba- tudos” (art. 3.). Tais regulamentações
lhador(a) adquiridos na freqüência a legais foram complemen-tadas pelo
cursos ou atividades educacionais ou decreto 5.840, de 2006, que institui, no
na experiência de trabalho”. Ao con- âmbito federal, o Programa Nacional
trário do programa de certificação do de Integração da Educação Profissio-
Inmetro, em que os certificados emiti- nal com Educação Básica, na modali-

92
Certificação profissional A

dade de Educação de Jovens e Adul- Validation et de la Reconnaissance des C


tos/Proeja. Em seu artigo 7, estabele- Qualifications. Rapport Intermediaire.
ce que as instituições ofertantes pode-
Marseille: Ministère de l’Éducation D
Nationale, de l’Enseignement Supérieur et
rão “aferir, reconhecer, mediante ava- de la Recherche/Ministère des Affaires
liação individual, conhecimentos e ha- Sociales, 1998, p. 37-49.
E
bilidades obtidos em processos CINTERFOR/OIT. La Nueva F
formativos extra-escolares”. Recomendación 195 de OIT. Montevideo:
Embora esteja prevista no marco Cinterfor, 2006.
G
nacional de qualificações a elaboração INMETRO. (s. d.). Guia Prático de
negociada de uma normativa, de um Certifica-ção de Pessoas. Sistema Brasileiro
de Avaliação da Conformidade.
H
‘repertório nacional de qualificações’
Comissão Técnica de Pessoal.
como base da definição de perfis
JOUBIER, J.-M. For mation
I
ocupacionais e de construção de itine-
professionnelle: ouvrir largement le
rários formativos, isso ainda não foi
débat. Analyses & documents N
feito. A elaboração de novas Diretri- economiques. Cahiers du Centre Conféderal
zes Curriculares Nacionais para a Edu- d’Études Économiques et Sociales de la CGT, O
cação Básica e de uma nova CBO, bem 71: 4-10, mars, 1997.
como a construção do repertório na- LIMA, A. & LOPES, F. Diálogo Social e P
cional de qualificações, de acordo com Qualificação Profissional: experiências e
as atuais orientações políticas, consti- propostas. Brasília: TEM/SSPE/DEQ, Q
2005. (v.1. – Construindo diálogos
tuem as providências mais urgentes a sociais)
serem tomadas, respectivamente, pelo R
MORAES, C. S. V. & LOPES NETO,
MEC e MTE, para fazer avançar, no S. Educação, formação profissional e
país, a realização do ideal de uma polí- certificação de conhecimentos:
S
tica pública de formação e ‘certificação considerações sobre uma política pública
profissional’ democrática e de certificação profissional. In: Educação T
e Sociedade, 26(93): 1435-1469, set.-dez.,
emancipatória.
2005. U
MORAES, C. S. V. et al. Considerações
Para saber mais: sobre a organização de uma política V
nacional de certificação profissional. In:
BOUDET. A. et al. Rapport e Para discutir Certificação (Texto Subsídio
contextualisation : France. In: CEREQ ao Seminário de Educação Profissional
A
(Orgs.) Dispositif d’ Observation des Innovations MEC/Semtec/Proep, Brasília, 16 a 18
dans le Champ de la Certification, de la de junho de 2003) A

93
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

PRONKO, M. Recomendación 195 de OIT: profesional: ¿paralelismo o convergencia?


questiones históricas y actuales. Montevideo: (Documento de discussão no Seminário
Cinterfor/OIT, 2005. Internacional “Mercado de Trabalho e
Dinâmica Ocupacional”, organizado
RAINBIRD, H. La construction sociale
pelo Senai-DN em Belo Horizonte/MG,
de la qualification. In: JOBERT, A.;
junho de 2002). Disponível em: <http:/
MARRY, C. & TANGUY, L. (Orgs.)
/ w w w . c i n t e r f o r .
Éducation et Travail en Grande-Bretagne,
org.uy/public/spanish/region/ampro/
Allemagne et Italie. Paris: Armand Colin,
cinterfor/publ/sala/vargas/clasific/
1995.
index.htm>.
VARGAS ZÚÑIGA, F. Clasificaciones de
ocupaciones, competencias y formación

COMUNICAÇÃO E SAÚDE

Janine Miranda Cardoso


Inesita Soares de Araújo

Comunicação e Saúde é um ter- entre campos sociais, entendendo cam-


mo que indica uma forma específica po como um espaço estruturado de
de ver, entender, atuar e estabelecer relações, no qual forças de desigual
vínculos entre estes campos sociais. poder lutam para transformar ou man-
Distingue-se de outras designações si- ter suas posições (Bourdieu, 1989,
milares, como comunicação para a saú- 1996, 1997). Campos sociais são his-
de, comunicação em saúde e comuni- toricamente constituídos e atualizados
cação na saúde. Embora as diferenças em contextos e processos sociais es-
pareçam tão sutis que possam ser to- pecíficos que, ao mesmo tempo, en-
madas como equivalentes, tenhamos volvem e extrapolam suas fronteiras,
em mente que todo ato de nomeação mas sempre movidos por disputas por
é ideológico, implica posicionamentos, posições e capitais materiais e simbó-
expressa determinadas concepções, licos. Fronteiras porosas por onde tran-
privilegia temas e questões, propõe sitam agentes, discursos, políticas, te-
agendas e estratégias próprias. orias e expandem ou contraem rela-
Como ponto de partida, o ções, capitais, conflitos, enfim, interes-
conectivo quer acentuar a articulação ses de diferentes ordens.

94
Comunicação e Saúde A

O termo Comunicação e Saúde, a institucionalização das práticas de co- C


portanto, delimita um território de dis- municação, com a criação, em 1923, do
putas específicas, embora atravessado Serviço de Propaganda e Educação Sa- D
e composto por elementos caracterís- nitária, no interior do Departamento
ticos de um, de outro e da formação Nacional de Saúde Pública, ainda no
E
social mais ampla que os abriga. Trata- contexto do que se tornou conhecido
F
se de um campo ainda em formação, como Reforma Carlos Chagas. O ser-
mas como os demais constitui um uni- viço abriu espaço para as atividades que
G
verso multidimensional no qual agen- buscavam a adesão da população para
tes e instituições desenvolvem estraté- as medidas preconizadas pelas autori- H
gias, tecem alianças, antagonismos, dades sanitárias, voltadas principalmente
negociações. Essa concepção implica para a higiene pessoal e pública, saúde I
colocar em relevo a existência de dis- da criança e da mulher gestante. A as-
cursos concorrentes, constituídos por censão do modelo bacteriológico – com N
e constituintes de relações de saber e a descoberta de agentes patológicos es-
poder, dinâmica que inclui os diferen- pecíficos para cada doença e processos O
tes enfoques teóricos acerca da comu- de transmissão – contribuiu para a ên-
nicação, saúde e suas relações. Contra- fase crescente nas medidas individuais P
põe-se, assim, a perspectivas que redu- de higiene, enquanto as medidas mais
zem a comunicação a um conjunto de abrangentes sobre as condições socio- Q
técnicas e meios a serem utilizados de ambientais foram paulatinamente
acordo com os objetivos da área da saú- secundarizadas. À época, educar, R
de, notadamente para transmitir infor- higienizar e sanear eram as palavras de
mações de saúde para a população. ordem, profundamente articuladas ao S
intenso debate sobre o projeto nacio-
nal. Isso não significou, contudo, a eli- T
A formação do campo minação das medidas coercitivas, carac-
terísticas das campanhas sanitárias do U
O que hoje denominamos Comu- início do século XX, cujas grandes re-
sistências potencializaram vários movi-
V
nicação e Saúde resulta, então, da asso-
ciação de campos que, embora mentos, que culminaram na Revolta da
A
irredutíveis um ao outro, possuem um Vacina (Cardoso, 2001).
longo histórico comum de agencia- Desde então, atravessando dife-
A
mentos. Podemos tomar como marco rentes conjunturas sociais, políticas e

95
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

sanitárias e relacionando-se com dis- opiniões” (Lasswell apud Mattelart e


tintas formas de conceber o processo Mattelart, 1999, p. 37), foram criados
saúde-doença, a comunicação passou diferentes setores de comunicação e
a habitar as atividades de saúde, prin- educação nos ministérios, inclusive o
cipalmente relacionadas às ações de Serviço Nacional de Educação Sanitá-
prevenção, chamada a lutar contra a ‘ig- ria (SNES), em 1941, com o objetivo
norância’, espécie de vala comum que de padronizar metodologias e difun-
passou a receber toda e qualquer resis- dir maciçamente informações sobre
tência às medidas sanitárias. questões de saúde.
No entanto, as práticas de comu- Após a segunda guerra mundial,
nicação nunca representaram a utiliza- no contexto de interiorização do de-
ção de instrumentos supostamente senvolvimento econômico e de acele-
neutros, mas expressaram também a ração da urbanização, a comunicação
convergência entre determinados mo- foi chamada a desempenhar um papel
delos e concepções de ambos os cam- estratégico na arrancada desenvol-
pos. Assim, no sanitarismo vimentista: criar o ‘clima’ propício para
campanhista das primeiras décadas do a adoção dos ‘modernos’ padrões da
século XX predominaram as práticas sociedade industrial capitalista. Em ple-
de difusão de medidas de higiene, an- na guerra fria e sob os auspícios de ins-
coradas em teorias de comunicação de tituições internacionais, esse movimen-
fundo behaviorista, que estabeleciam to se deu nos países periféricos na ór-
uma relação causal e automática entre bita de influência dos EUA, privilegi-
estímulo e resposta: uma vez exposto ando as áreas da educação, saúde, agri-
a uma mensagem, o indivíduo – o ‘pú- cultura, extensão rural e serviço soci-
blico-alvo’ – reagiria de acordo com os al. No campo da saúde, duas institui-
objetivos do emissor. No período en- ções tiveram destacada atuação: o Ser-
tre guerras, com Vargas, o Brasil expe- viço Especial de Saúde Pública (SESP),
rimentou uma inédita política de co- criado em 1942, no âmbito do esforço
municação governamental, importan- aliado de guerra, e o Departamento
te na tessitura ideológica do novo regi- Nacional de Endemias Rurais
me, da nova nação e do novo homem (DNERu), criado em 1956, com o ob-
brasileiro. Estimulados pela visão mun- jetivo de estender o atendimento mé-
dial da propaganda como eficaz ferra- dico-sanitário de massa em áreas con-
menta na “gestão governamental das sideradas economicamente estraté-

96
Comunicação e Saúde A

gicas. Atuavam em regiões geográficas particularmente no quadro de uma C


distintas, com metodologias específi- concepção restrita e regulada de parti-
cas de trabalho e priorizavam diferen- cipação comunitária, potencializando D
tes grupos etários, mas ambas investi- os enfoques da saúde que privilegia-
ram na mobilização das comunidades vam os saberes biomédicos e atribuin-
E
e foram agentes da comunicação para do às instituições de saúde a exclusivi-
F
o desenvolvimento que preconizava dade da fala autorizada. Desde então,
uma relação causal e mecânica entre os várias iniciativas de mobilização comu-
G
dois termos. nitária para a agenda sanitária têm lan-
O campo da comunicação não fi- çado mão dos pressupostos desse H
cou imune, naquele momento, ao in- modelo, que fundamenta algumas ca-
tenso processo de produção científica racterísticas do perfil do agente comu- I
e tecnológica. Na saúde e em outras nitário de saúde e de seu trabalho.
áreas de intervenção social, repercutiu A década de 60 trouxe vigorosos N
amplamente o modelo comunicacional debates, tanto na saúde como na co-
inspirado na teoria dos dois fluxos de municação, em torno da mudança dos O
comunicação, que atribuía um papel modelos vigentes. Contribuíram bas-
fundamental às lideranças comunitári- tante para isso as críticas ao viés P
as, consideradas ‘elos-chave’ na busca extensionista, simultâneas à emergên-
de maior sintonia entre emissor (auto- cia das teses freireanas, que introduzi- Q
ridades) e receptor (população). Essa am uma perspectiva histórica, cultural,
foi uma inovação teórica e humanista e dialógica, tornando R
metodológica significativa na matriz irrecusável considerar relevantes os
transferencial, que conferiu relevância saberes e as percepções da população S
ao universo cultural e às relações soci- sobre sua própria realidade de saúde.
ais de uma dada comunidade, media- Mas, todo esse movimento, incluindo T
ções que tornaram o processo a forte crítica ao desenvolvimentismo,
comunicacional menos linear e auto- foi interrompido pelo golpe militar. U
mático. Não se rompeu, contudo, com Durante a ditadura, sob a égide da cen-
a unidirecionalidade e a comunicação sura, se dá o investimento concentra-
V
continuou a ser vista fundamentalmen- do na assistência médico-hospitalar,
A
te como a transmissão de informações configurando-se o modelo médico-
de um pólo emissor a um pólo recep- assistencial privatista. Nele, as ativida-
A
tor. Essa abordagem encontrou eco, des preventivas e de saúde pública –

97
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

incluindo as de educação e comunica- as coordenadorias de comunicação fi-


ção – foram relegadas a um remoto se- caram diretamente ligadas aos gestores,
gundo plano nas ações governamentais. passando a responder pela relação com
Nas telas da recém-nascida televisão, os órgãos de imprensa.
saúde passou a ser crescentemente as- O contexto de consolidação do
sociada à compra de bens e serviços modelo de saúde centrado no hospi-
oferecidos pelo mercado. Para tanto, o tal, na dimensão curativa e na
regime militar contou com a notável mercantilização da atenção é também
expansão dos meios de comunicação e o de sofisticação dos modelos da ma-
a constituição de um sistema complexo triz transferencial de comunicação e,
de informação e de cultura de massa, de forma mais abrangente, da escalada
em que a televisão passou a ser o prin- hegemônica da publicidade. De lá para
cipal meio de difusão. No contínuo e cá, em escala mundial, se deu a intensi-
progressivo investimento em propagan- ficação do desenvolvimento tecnoló-
da no Brasil, o Estado já despontava aí gico, marcadamente de informação e
como um dos maiores anunciantes. comunicação, com a penetração da te-
Nesse período, o mesmo movi- levisão e da mídia em todos os setores
mento que buscou silenciar qualquer das sociedades ocidentais, delineando
oposição ao regime militar favoreceu novos padrões de consumo. Tecnologia
a separação das práticas de comunica- aqui deve ser entendida em sentido
ção e educação nas instituições de saú- amplo e em suas diversificadas conexões
de, com a respectiva especialização de com a economia, cultura, formas de
atividades e perfis profissionais. Nos sociabilidade e temporalidades. Alguns
ministérios e instituições governamen- autores, considerando a magnitude das
tais foram criadas as coordenadorias mudanças sociais relacionadas à
de comunicação social e os serviços de informatização e expansão das redes
informação, estes últimos vinculados mundiais de comunicação, têm chama-
ao Serviço Nacional de Informações do esse processo de midiatização da socie-
(SNI). Na saúde, atendendo ao dade, que repercute cada vez mais nas
reordenamento da administração pú- instituições de saúde (Fausto Neto,
blica, segundo as normas de planeja- 2007; Sodré, 2006).
mento normativo, os setores de edu- É importante não perder de vis-
cação para a saúde ficaram vinculados ta, porém, que os modelos de comuni-
às áreas técnicas de cada programa e cação não se sucedem de forma cro-

98
Comunicação e Saúde A

nológica e linear, mas coexistem em tratégias de saúde. Amplas coordena- C


diferentes configurações, atravessados das, que estimulam a superação de vi-
por variáveis socioeconômicas e cul- sões e práticas descontextualizadas e D
turais, além daquelas mais afeitas à di- tecnicistas, de forma simultânea à cons-
nâmica do campo da saúde, como o trução de relações mais horizontais no
E
quadro epidemiológico, as concepções interior das equipes de saúde e destas
F
e estratégias de assistência, prevenção com a população.
e promoção. Por outro lado, embora a Um conceito de saúde que não
G
matriz transferencial nunca tenha sido mais se define por ausência de doen-
seriamente ameaçada no âmbito das ças, que estabelece vínculos indisso- H
instituições e programas de saúde, sem- lúveis com a democracia e com a qua-
pre esteve tensionada por disputas, lidade de vida da população, trouxe a I
oposições e propostas contra- dilatação de temas e segmentos envol-
hegemônicas, em geral inspiradas em vidos nas ações e políticas públicas. O N
Paulo Freire e nas teorias críticas de campo da comunicação e saúde não
comunicação (Fiocruz, 1998; 1999). ficou imune a esse processo. A partir O
de meados dos anos 80, a dinâmica e
as necessidades manifestas no cotidia- P
Comunicação e SUS no dos serviços, movimentos, conse-
lhos e conferências de saúde, muitas Q
O movimento de reforma sani- vezes extrapolaram os limites e possi-
tária brasileira e a construção do Siste- bilidades das tradicionais assessorias de R
ma Único de Saúde (SUS) envolveram imprensa. Ativistas e entidades envol-
e ainda envolvem a reflexão crítica so- vidos na construção do SUS passaram S
bre as multifacetadas relações entre a reivindicar, simultaneamente, acesso
saúde e sociedade. O conceito amplia- às informações oficiais, às tecnologias T
do de saúde e sua inscrição constitu- de comunicação e mais espaço na mídia
cional como direito de cidadania e de- para os temas da saúde e do SUS. Lu- U
ver do Estado estabeleceram nítida an- taram também pelo poder de fala, tra-
dicionalmente concentrado nas insti-
V
coragem do SUS em um projeto social
mais amplo e democrático, comprome- tuições e autoridades, recusando a imo-
A
tido com a superação das desigualda- bilidade de ‘públicos alvo’ ou a posi-
des sociais, com a eqüidade em saúde ção de elos privilegiados de uma cadeia
A
e participação social nas políticas e es- de transmissão unidirecional. Afirman-

99
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

do-se como detentores de uma pala- metodologicamente em relação à pers-


vra também autorizada, por um tipo pectiva desenvolvimentista, se distan-
específico de capital político que advém ciam da possibilidade de uma comuni-
da liderança e representatividade soci- cação que considere os princípios do
al, questionaram as idéias e as práticas SUS, ou mesmo as conquistas das te-
de uma participação comunitária res- ses freireanas, já remotas no tempo.
trita e regulada, própria dos discursos Assim, por essas abordagens – a do
desenvolvimentista e populista. Marketing Social na Saúde é um bom
Nesses vinte anos de SUS, com exemplo – o direito à comunicação,
muitos reveses e toda sorte de obstá- como correlato ao direito à saúde, é
culos, práticas mais democráticas de substituído pelo direito do consumi-
comunicação têm emergido, assim dor, o cidadão passa a ser tratado como
como têm sido fortalecidos o ensino e ‘cliente’ e os objetivos reeditam a ve-
a pesquisa. O enfrentamento da Aids lha fórmula persuasiva para a adoção
tem sido freqüentemente apontado de hábitos e medidas preconizados
como exemplo das potencialidades – pelas instituições de saúde.
inovadoras estratégias de mobilização Entre as diferentes concepções
e crítica, diversidade de atores e de ar- que movimentam o campo da comu-
ticulação em redes em escala planetá- nicação e saúde, destacamos aquelas
ria –, mas também dos desafios, quan- que entendem a comunicação como o
do se depara com a ‘indústria da Aids’ permanente e sempre disputado pro-
e se verifica a escalada da epidemia jun- cesso de conferir sentido aos eventos,
to aos segmentos mais vulneráveis so- fenômenos, experiências e discursos
cialmente e nas regiões do planeta com sobre o mundo e a sociedade. São
menor visibilidade e poder de pressão. muitos os desdobramentos desse pon-
Por outro lado, na maior parte das to de vista, entre os quais vale destacar
instituições governamentais e não go- a recusa de um significado pronto e
vernamentais, ganha espaço o modelo acabado em cada palavra, passível de
publicitário e suas variações, nos mol- ser transferido e compreendido pelos
des preconizados pelo neoliberalismo. ‘receptores’ tal e qual imaginado pelo
Discursos, sistemas de nomeação e ‘emissor’. Como propõe Bakthin
modelos de atuação se apresentam su- (1988, 1992), cada palavra comporta
cessivamente, propondo abordagens múltiplos sentidos, é habitada por di-
que, se avançam técnica ou ferentes vozes, configurando uma

100
Comunicação e Saúde A

polifonia ancorada na alteridade como tes naturezas, mas de igual magnitude, C


princípio ontológico, mas também na que demandam esforços teóricos po-
desigual estrutura social. Nesse enfoque, líticos e institucionais de caráter D
os diferentes contextos – histórico, eco- intersetorial, de diversos campos do
nômico, político, institucional, mas tam- saber – antropologia, sociologia, his-
E
bém o textual, intertextual, o existencial tória, semiologia, estudos culturais etc.
F
e o situacional (Araújo e Cardoso, 2007) – e de diferentes vertentes de estudos
desempenham papel decisivo nos pro- da comunicação, tais como a econo-
G
cessos comunicacionais. mia política da comunicação, estudos
Embora não se subestime as midiáticos e análise de discursos. En- H
assimetrias de toda ordem que caracteri- tre as prioridades, destacam-se: avan-
zam a desigual sociedade brasileira – na çar na produção do conhecimento so- I
saúde, na comunicação e de forma no- bre as complexas relações entre esses
tória na mídia –, isto não leva a dois campos sociais para compreender N
desconsiderar que cada indivíduo, gru- melhor, entre outros aspectos, a rela-
po ou instituição transita entre as posi- ção entre discurso e mudança social, O
ções de emissão e recepção, além de agir os processos de midiatização e os dis-
na circulação social dos discursos. Por positivos de biopoder; desenvolver, em P
essa razão, ao invés de cristalizar as po- profunda articulação com a pesquisa,
sições, tomamos os participantes de um esforços concentrados para a forma- Q
processo de comunicação como ção de profissionais com capacidade
interlocutores, conferindo destaque aos crítica e para a elaboração de estratégi- R
variados lugares que ocupam, nos dife- as e políticas públicas de comunicação
rentes contextos e relações de poder dos coerentes com os princípios do SUS; S
quais participam. Nessa perspectiva, co- estabelecer a articulação com o movi-
municação é pensada como espaço de mento pela democratização da comu- T
desigual concorrência material e simbó- nicação no Brasil, destacando a con-
lica, que compreende não só a instância quista do direito à comunicação, sem U
da produção discursiva, tão exacerbada o qual dificilmente se avançará no pro-
nas instituições de saúde, mas também jeto da reforma sanitária brasileira.
V
as suas condições sociais de circulação e Como se vê, são diferentes e mui-
A
apropriação. tas vezes antagônicos os modos de
A agenda da Comunicação e conjugar, na prática e na teoria, comu-
A
Saúde acolhe hoje desafios de diferen- nicação e saúde. Se por um lado per-

101
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cebemos aí a resistência dos modelos BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho


hegemônicos e os obstáculos a uma Nacional de Saúde. Coletânea de
comunicação e informação em saúde para o
real mudança nas práticas comunicati- exercício do controle social. Brasília: Ed.
vas, mesmo que desejada, por outro Ministério da Saúde, 2006. 156 p.
lado temos evidências da vitalidade da ______. Ministério da Saúde. Conselho
sociedade e seus diferentes modos de Nacional de Saúde. Seminário de
produzir a realidade. comunicação, informação e informática em
saúde. Relatório. Brasília: Ed. Ministério
da Saúde, 2005. 88 p

Para saber mais: _______. Relatório da VIII Conferência


Nacional de Saúde. Brasília, 1986.

ARAÚJO, I. Mercado simbólico: interlocução, _______. Ministério da Saúde. Relatório


luta, poder – um modelo de comunicação para da 12ª Conferência Nacional de Saúde.
políticas públicas. Tese de Doutorado, Rio Brasília, 2004.
de Janeiro: Universidade Federal do Rio CARDOSO, J. M. Comunicação, saúde e
de Janeiro, 2002. discurso preventivo: reflexões a partir de uma
ARAÚJO, I. S. et al. Promoção da Saúde e leitura das campanhas nacionais de Aids
Prevenção do HIV/Aids no Município do Rio veiculadas pela TV (1987-1999).
de Janeiro: uma metodologia de avaliação para Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro:
políticas e estratégias de comunicação. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: 2001.
Cict/Fiocruz, 2003. FAUSTO NETO, A. Saúde em uma
ARAÚJO, I. S.; CARDOSO, J. M. sociedade midiatizada. In: Revista Eco-
Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Pós, v. 10, n.1, jan-jul. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2007. E-Papers,198-205, 2007.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da _________. Comunicação e Mídia Impressa.


linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. Estudo sobre a Aids. São Paulo: Hacker,
1999.
___________. Os gêneros do discurso.
In: A estética da criação verbal. São Paulo: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ.
Martins Fontes, p. 277-326, 1992. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca. Cadernos de Saúde Pública.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Participação popular e controle de
Lisboa: Difel, 1989. endemias. v. 14, suplemento 2. Rio de
___________. A Economia das Trocas Janeiro: Ensp/Fiocruz, 1998.
Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ.
___________. Razões Práticas: sobre a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997. Arouca. Cadernos de Saúde Pública.

102
Comunicação e Saúde A

Educação em saúde: novas perspectivas. UNIVERSIDADE FEDERAL DO C


v. 15, suplemento 2. Rio de Janeiro: RIO DE JANEIRO. Escola de
Ensp/Fiocruz, 1999. Comunicação. Revista Eco-Pós. Dossiê D
Comunicação e Saúde, v. 10-1, 2007.
MATTELART, A.; MATTELART, M.
História das Teorias da Comunicação. São WOLF, M. Teorias da Comunicação. E
Paulo: Loyola, 1999. Lisboa: Presença, 1995.

NILO, A. et al. (Orgs.). Comunicaids: Links: F


políticas públicas e estratégias para o controle Conselho Nacional de Saúde (CNS) –
social. São Paulo: Ágil, 2005. <http://conselho.saude.gov.br/> –, G
onde se pode acessar textos e propostas
OLIVEIRA, V. C. Desafios e
sobre comunicação no controle social.
contradições comunicacionais nos H
Conselhos de Saúde. In: Comunicação e Grupo de Trabalho (GT) de Comu-
nicação e Saúde da Associação Brasileira
Informação em Saúde para o Exercício do
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva -
I
Controle Social. Brasília: Ministério da
Saúde/Conselho Nacional de Saúde, Abrasco <www.abrasco.org.br /grupos/
2006.
g7.php>. N
Inter vozes – Coletivo Brasil de
PITTA, A. M. da R. (Org.). Saúde e
Comunicação Social – http:// O
Comunicação: visibilidades e silêncios. Rio de
www.intervozes.org.br/
Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1995.
Observatório do Direito à Comunicação P
SPINK, M. J. (Org.). Práticas Discursivas – http://www.direitoacomunicacao.
e Produção de Sentido no Cotidiano:
aproximações teóricas e metodológicas. São
org.br/novo/ Q
Paulo: Cortez, 1999. Revista Interface: Comunicação, Saúde,
Educação, editada pela Universidade R
SODRÉ, M. Antropológica do espelho – uma Estadual Paulista (Unesp) e pela
teoria da comunicação linear e em rede. 2a ed. Fundação Uni/Botucatu www.interface.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, 268 p. org.br S

103
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

CONTROLE SOCIAL

Maria Valéria Costa Correia

A expressão ‘controle social’ tem Hobbes, Locke e Rousseau, jusnatura-


origem na sociologia. De forma geral listas cujos fundamentos estão guiados
é empregada para designar os meca- pela razão abstrata – o ponto em co-
nismos que estabelecem a ordem soci- mum é o conceito de sociedade civil
al disciplinando a sociedade e subme- como sinônimo de sociedade política
tendo os indivíduos a determinados contraposta ao estado de natureza, em
padrões sociais e princípios morais. que o Estado é a instância que preserva
Assim sendo, assegura a conformida- a organização da sociedade, a partir de
de de comportamento dos indivíduos um contrato social –, diferem quanto à
a um conjunto de regras e princípios concepção de ‘contrato social’ que fun-
prescritos e sancionados. Mannheim da o Estado.
(1971, p. 178) a define como o “con- Hobbes atribuiu ao Estado poder
junto de métodos pelos quais a socie- absoluto de controlar os membros da
dade influencia o comportamento sociedade, os quais lhe entregariam sua
humano, tendo em vista manter deter- liberdade e se tornariam voluntaria-
minada ordem”. mente seus ‘súditos’ para acabar com
Na teoria política, o significado de a guerra de todos contra todos e para
‘controle social’ é ambíguo, podendo garantir a segurança e a posse da pro-
ser concebido em sentidos diferentes priedade. Locke limitou o poder do
a partir de concepções de Estado e de Estado à garantia dos direitos naturais
sociedade civil distintas. Tanto é em- à vida, à liberdade e, principalmente, à
pregado para designar o controle do propriedade. O ‘povo’ – que, para
Estado sobre a sociedade quanto para Locke, era a sociedade dos proprietá-
designar o controle da sociedade (ou rios – mantém o controle sobre o po-
de setores organizados na sociedade) der supremo civil, que é o legislativo,
sobre as ações do Estado. no sentido de que este cumpra o dever
Nos clássicos da política, expoen- que lhe foi confiado: a defesa e a ga-
tes do contratualismo moderno, rantia da propriedade. Em toda a obra

104
Controle Social A

de Rousseau – O Contrato Social – per- A partir do referencial teórico do C


passa a idéia do poder pertencente ao marxista italiano, Gramsci, em que
povo e/ou sob seu controle. O autor não existe uma oposição entre Esta- D
defendeu o governo republicano com do e sociedade civil, mas uma relação
orgânica, pois a oposição real se dá
E
legitimidade e sob controle do povo;
considerava necessária uma grande vi- entre as classes sociais, pode-se infe-
F
gilância em relação ao executivo, por rir que o ‘controle social’ acontece na
sua tendência a agir contra a autorida- disputa entre essas classes pela
G
de soberana (povo, vontade geral). hegemonia na sociedade civil e no
Nesta perspectiva, o ‘controle social’ é Estado. Somente a devida análise da H
do povo sobre o Estado para a garan- correlação de forças entre as mesmas,
tia da soberania popular. em cada momento histórico, é que vai I
avaliar que classe obtém o ‘controle
Para algumas análises marxistas, “a social’ sobre o conjunto da socieda- N
burguesia tem no Estado, enquanto ór- de. Assim, o ‘controle social’ é con-
gão de dominação de classe por exce- traditório – ora é de uma classe, ora é O
lência, o aparato privilegiado no exercí- de outra – e está balizado pela referi-
cio do controle social” (Iamamoto & da correlação de forças. P
Carvalho, 1988, p. 108). Na economia Na perspectiva das classes subal-
capitalista, o Estado tem exercido o ‘con- ternas, o ‘controle social’ deve se dar Q
trole social’ sobre o conjunto da socie- no sentido de estas formarem cada vez
dade em favor dos interesses da classe mais consensos na sociedade civil em R
dominante para garantia do consenso em torno do seu projeto de classe, passan-
torno da aceitação da ordem do capital. do do momento ‘econômico- S
Esse controle é realizado através da in- corporativo’ ao ‘ético-político’, supe-
tervenção do Estado sobre os conflitos rando a racionalidade capitalista e tor- T
sociais imanentes da reprodução do ca- nando-se protagonista da história,
pital, implementando políticas sociais efetivando uma ‘reforma intelectual e U
para manter a atual ordem, difundindo a moral’ vinculada às transformações
econômicas. Esta classe deve ter como
V
ideologia dominante e interferindo no
“cotidiano da vida dos indivíduos, refor- estratégia o controle das ações do Es-
A
çando a internalização de normas e com- tado para que este incorpore seus in-
portamentos legitimados socialmente” teresses, na medida que tem represen-
A
(Iamamoto & Carvalho, 1988, p. 109). tado predominantemente os interesses

105
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

da classe dominante. Desta forma, o to do capitalismo na sua for ma


‘controle social’, na perspectiva das monopolista. Com o processo de de-
classes subalternas, visa à atuação de mocratização e efervescência política
setores organizados na sociedade civil e o ressurgimento dos movimentos so-
que as representam na gestão das polí- ciais contrários aos governos autoritá-
ticas públicas no sentido de controlá- rios, criou-se um contraponto entre um
las para que atendam, cada vez mais, Estado ditatorial e uma sociedade civil
às demandas e aos interesses dessas sedenta por mudanças. Este contexto
classes. Neste sentido, o ‘controle so- caracterizou uma pseudodicotomia en-
cial’ envolve a capacidade que as clas- tre Estado e sociedade civil e uma
ses subalternas, em luta na sociedade pseudo-homogeneização desta última
civil, têm para interferir na gestão pú- como se ela fosse composta unicamen-
blica, orientando as ações do Estado e te por setores progressistas, ou pelas
os gastos estatais na direção dos seus classes subalternas. A sociedade civil
interesses de classe, tendo em vista a era tratada como a condensação dos
construção de sua hegemonia. setores progressistas contra um Esta-
A expressão ‘controle social’ tem do autoritário e ditatorial, tornando-
sido alvo das discussões e práticas re- se comum falar da necessidade do con-
centes de diversos segmentos da soci- trole da sociedade civil sobre o Estado
edade como sinônimo de participação (Coutinho, 2002).
social nas políticas públicas. No período de democratização
Durante o período da ditadura do país, em uma conjuntura de
militar, o ‘controle social’ da classe do- mobilização política principalmente
minante foi exercido através do Esta- na segunda metade da década de
do autoritário sobre o conjunto da so- 1980, o debate sobre a participação
ciedade, por meio de decretos secre- social voltou à tona, com uma dimen-
tos, atos institucionais e repressão. são de controle de setores organiza-
Nesse período, a ausência de dos na sociedade civil sobre o Esta-
interlocução com os setores organiza- do. A participação social nas políti-
dos da sociedade, ou mesmo a proibi- cas públicas foi concebida na pers-
ção da organização ou expressão dos pectiva do ‘controle social’ no senti-
mesmos foi a forma que a classe do- do de os setores organizados da so-
minante encontrou para exercer o seu ciedade participarem desde as suas
domínio promovendo o fortalecimen- formulações – planos, programas e

106
Controle Social A

projetos –, acompanhamento de suas institucionalizada na Lei 8.142/90, atra- C


execuções até a definição da alocação vés das conferências que têm como
de recursos para que estas atendam objetivo avaliar e propor diretrizes para D
aos interesses da coletividade. a política de saúde nas três esferas de
A área da saúde foi pioneira neste governo e através dos conselhos – ins-
E
processo devido à efervescência polí- tâncias colegiadas de caráter perma-
F
tica que a caracterizou desde o final da nente e deliberativo, com composição
década de 1970 e à organização do paritária entre os representantes dos
G
Movimento da Reforma Sanitária que segmentos dos usuários, que congre-
congregou movimentos sociais, inte- gam setores organizados, na socieda- H
lectuais e partidos de esquerda na luta de civil e nos demais segmentos
contra a ditadura com vistas à mudan- (gestores públicos, filantrópicos e pri- I
ça do modelo ‘médico-assistencial vados e trabalhadores da saúde), e que
privatista’ (Mendes, 1994) para um sis- objetivam o ‘controle social’. N
tema nacional de saúde universal, pú- Vários autores brasileiros vêm tra-
blico, participativo, descentralizado e balhando a temática do ‘controle soci- O
de qualidade. al’ no eixo das políticas sociais. Para
A participação no Sistema Único Carvalho (1995, p. 8), “controle social P
de Saúde (SUS) na perspectiva do ‘con- é expressão de uso recente e
trole social’ foi um dos eixos dos de- corresponde a uma moderna compre- Q
bates da VIII Conferência Nacional de ensão de relação Estado-sociedade,
Saúde, realizada em 1986. Nessa con- onde a esta cabe estabelecer práticas R
ferência, a participação em saúde é de- de vigilância e controle sobre aquele”.
finida como “o conjunto de interven- Valla (1993) inscreveu o ‘controle so- S
ções que as diferentes forças sociais cial’ dos serviços de saúde em um Es-
realizam para influenciar a formulação, tado democrático que vem passando T
a execução e a avaliação das políticas por mudanças no modo de planejar e
públicas para o setor saúde” (Macha- gerenciar recursos. U
do, 1987, p. 299). O ‘controle social’ é Na mesma direção, Barros (1998)
apontado como um dos princípios trata o ‘controle social’ sobre a ação
V
alimentadores da reformulação do sis- estatal dentro da perspectiva da demo-
A
tema nacional de saúde e como via cratização dos processos decisórios
imprescindível para a sua democrati- com vistas à construção da cidadania.
A
zação. Esta participação foi Destaca que “ao longo de décadas, os

107
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

governos submeteram os objetivos de tendência neoconservadora da políti-


sua ação aos interesses particulares de ca que questiona a democracia
alguns grupos dominantes, sem qual- participativa, defendendo, apenas a
quer compromisso com o interesse da democracia representativa.
coletividade” (Barros, 1998, p. 31). Abreu (1999, p. 61) analisa, a partir
Neste sentido, é que houve a da categoria gramsciana de Estado am-
‘privatização do Estado’. Em pliado (relação orgânica entre sociedade
contraponto a esta realidade, o autor política e sociedade civil), a dimensão
afirma que a concepção de gestão pú- política dos ‘conselhos de direitos’, e tem
blica do SUS é essencialmente demo- como hipótese central que, com o for-
crática, devendo ser submetida ao con- mato atual, “se identificam muito mais
trole da sociedade. Cohn (2000) afir- com as estratégias do controle do capi-
ma que o termo ‘controle social’ vem tal do que com a luta da classe trabalha-
sendo utilizado para designar a parti- dora no sentido da transformação da
cipação da sociedade prevista na legis- correlação das forças, tendo em vista a
lação do SUS. sua emancipação econômica, política e
Bravo e Souza (2002) fazem uma social”. Correia (2002) também parte do
análise das quatro posições teóricas e conceito gramsciano de Estado e consi-
políticas que têm embasado o debate dera o campo das políticas sociais como
sobre os conselhos de saúde e o ‘con- contraditório, pois, através deste o Esta-
trole social’. A primeira, baseia-se no do controla a sociedade, ao mesmo tem-
aparato teórico de Gramsci, a segunda po em que apreende algumas de suas
na concepção de consenso de demandas. O ‘controle social’ envolve a
Habermas e dos neo-habermasianos capacidade que os movimentos sociais
que consideram os conselhos como organizados na sociedade civil têm de in-
espaço de formação de consensos, terferir na gestão pública, orientando as
através de pactuações. A terceira posi- ações do Estado e os gastos estatais na
ção teórica é influenciada pela visão direção dos interesses da maioria da po-
estruturalista althusseriana do marxis- pulação. Conseqüentemente, implica o
mo que nega a historicidade e a dimen- ‘controle social’ sobre o fundo público
são objetiva do real, analisando o Es- (Correia, 2003).
tado e as instituições como aparelhos Obser va-se que os autores
repressivos da dominação burguesa. A supracitados, apesar de utilizarem
quarta posição é a representada pela referenciais teóricos diferentes nas

108
Controle Social A

suas análises, têm em comum tratar o BARROS, M. E. D. O controle social e C


o processo de descentralização dos
‘controle social’ dentro da relação Es-
tado e sociedade civil, apresentando os
ser viços de saúde. In: Incentivo à D
Participação Popular e Controle Social no SUS:
conselhos ‘gestores’, ou ‘de gestão textos técnicos para conselheiros de saúde.
setorial’, ou ‘de direitos’, como instân- Brasília: IEC, 1998. E
cias participativas, resultado do pro- BRASIL. Lei n. 8.142 de 28 de dezembro
cesso de democratização do Estado de 1990. Dispõe sobre a participação da F
comunidade na gestão do Sistema Único
brasileiro. As três últimas autoras dei-
de Saúde - SUS e sobre as transferências G
xam clara a opção por uma análise des- interg overnamentais de recursos
ta temática a partir de uma perspecti- financeiros na área de saúde e outras
providências. Brasília: Ministério da H
va classista, problematizando o ‘con-
Saúde, 1990.
trole social’ dentro das contradições da
BRASIL. Relatório Final da XI I
sociedade de classes.
Conferência Nacional de Saúde. Brasília:
Além dos conselhos e conferênci- Ministério da Saúde, 2000. N
as de saúde, a população pode recorrer a
BRASIL. Relatório Final da XII
outros mecanismos de garantia dos di- Conferência Nacional de Saúde. Brasília: O
reitos sociais, em especial o direito à saú- Ministério da Saúde, 2003. Disponível
em: <http://conselho.saude.gov.br>.
de, por exemplo, o ministério público, a P
comissão de seguridade social e/ou da BRAVO, M. I. S. & SOUZA, R. de O.
saúde do Congresso Nacional, das as- Conselhos de saúde e serviço social: luta
política e trabalho profissional. Ser Social,
Q
sembléias legislativas e das câmaras de ve- 10: 15-27, 2002.
readores, a Promotoria dos Direitos do R
CARVALHO, A. I. de. Conselhos de Saúde
Consumidor (Procon), os conselhos pro- no Brasil: participação cidadã e controle social.
fissionais etc. A denúncia através dos mei- Rio de Janeiro: Fase/Ibam, 1995. S
os de comunicação – rádios, jornais, televi- CARVALHO, G. I. & SANTOS, L. dos.
são e internet – também é um forte instru- Das formas de controle social sobre T
mento de pressão na defesa dos direitos. ações e os serviços de saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, 1992. v. I. U
(Cadernos da Nona)
Para saber mais: COHN, A. Cidadania e formas de V
responsabilização do poder público e
ABREU, M. M. A relação entre o Estado do setor privado pelo acesso, eqüidade,
e a sociedade civil: a questão dos qualidade e humanização na atenção à A
conselhos de direitos e a participação do saúde. Cader nos da XI Conf erência
serviço social. Serviço Social & Movimento Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da A
Social, 1(1): 61-76, jul.-dez., 1999. Saúde, 2000.

109
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

CORREIA, M. V. C. Que controle social IAMAMOTO, M. V. & CARVALHO, R.


na política de assistência social? Serviço de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil:
Social & Sociedade, Ano XXIII, 72: 43-60, esboço de uma inter pretação histórico-
2002. metodológica. 6.ed. São Paulo: Cortez/
Celats, 1988.
CORREIA, M. V. C. Que Controle Social?
Os conselhos de saúde como instrumento. 1a. LACERDA, E. (Org.) O SUS e o Controle
reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Social: guia de referência para conselheiros
Fiocruz, 2003. municipais. Brasília: Ministério da Saúde,
CORREIA, M. V. C. A relação estado e 1997.
sociedade e o controle social: MACHADO, F. de A. Participação
fundamentos para o debate. Serviço Social social em saúde. Anais da VIII
& Sociedade, Ano XXIV, 77: 22-45, 2004. Conferência Nacional de Saúde. Brasília:
CORREIA, M. V. C. Desafios para o Ministério da Saúde, 1987.
Controle Social: subsídios para a capacitação MANNHEIM, K. Sociologia Sistemática:
de conselheiros. Rio de Janeiro: Editora
uma introdução ao estudo de sociologia. 2.ed.
Fiocruz, 2005.
São Paulo: Pioneira, 1971.
COUTINHO, C. N. Gramsci e a
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sociedade civil, 2002. Disponível em:
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<http//www.Gramsci.org/>. Acesso
em: 20 nov. 2003. sanitárias do Sistema Único de Saúde. 2.ed.
São Paulo: Hucitec, 1994.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere:
Maquiavel - notas sobre o Estado e a política. VALLA, V. V. (Org.) Participação Popular
Edição e Tradução de Carlos Nelson e os Serviços de Saúde: o controle social como
Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização exercício da cidadania. Rio de Janeiro: Pares,
Brasileira, 2000. V.3 1993.
                                         
CUIDADO EM SAÚDE

Roseni Pinheiro

Cuidado e a vida cotidiana gares e tempos distintos de sua realiza-


ção. A importância da vida cotidiana na
Cuidado é um ‘modo de fazer na produção do ‘cuidado’ está na oferta de
vida cotidiana’ que se caracteriza pela múltiplas questões específicas que cir-
‘atenção’, ‘responsabilidade’, ‘zelo’ e culam no espaço da vida social e nos
‘desvelo’ ‘com pessoas e coisas’ em lu- conteúdos históricos que carregam.

110
Cuidado em Saúde A

O cotidiano é produzido social e dade ou domínio próprio sobre um C


historicamente sob dois ângulos: pri- conjunto de conhecimentos voltados
meiro, porque se trata – como noção para o ‘outro’. D
geral e dimensão do conhecimento – O outro é o lugar do ‘cuidado’. O
do ‘vivido’, quer dizer, do repetitivo- outro tem no seu olhar o caminho para
E
singular, do conjuntural-estrutural: no construção do seu ‘cuidado’, cujo su-
F
cotidiano ‘as coisas acontecem sem- jeito que se responsabiliza por praticá-
pre’. Segundo, porque essa noção se lo tem a tarefa de garantir-lhe a auto-
G
constrói e se identifica com o dia- nomia acerca do modo de andar de sua
após-dia em que tudo é igual e tudo própria vida. H
muda – ‘nada como um dia após o
outro’ – ao menos em algumas socie- I
dades, não em todas. Prática do cuidar e os
O dia-após-dia assim concebido praticantes N
é uma dimensão da vida social singu-
lar-específica, o que significa dizer que Cuidar deriva do latim cogitare que O
ele delimita tempos, espaços, interações, significa ‘imaginar’ ‘pensar’, ‘meditar’,
ou seja, um modo de vida, cuja produ- ‘julgar’, ‘supor’, ‘tratar’, ‘aplicar’ a aten- P
ção de ‘cuidado’ se faz contextualizada ção, ‘refletir’, ‘prevenir’ e ‘ter-se’. Cui-
exercendo efeitos e repercussões na dar é o ‘cuidado’ em ato. A origem da Q
vida dos sujeitos e se transformando prática de cuidar teve seu início restri-
em ‘experiência humana’. to ao espaço doméstico, privado, par- R
O ‘cuidado’ consiste em um modo ticular. Desde a Grécia Antiga identi-
de agir que é produzido como ‘experi- fica-se que a prática do cuidar vem sen- S
ência de um modo de vida específico e do exercida no interior das famílias, e
delineado’ por aspectos políticos, so- sua realização demandava um saber T
ciais, culturais e históricos, que se tra- prático adquirido no fazer cotidiano,
duzem em ‘práticas’ de ‘espaço’ e na passando, assim, de geração a geração. U
‘ação’ de ‘cidadãos’ sobre os ‘outros’ Nesta época, a gestão do cuidado era uma
em uma dada sociedade. Daí o ‘cuida- tarefa feminina. Quem cuidava da casa
V
do como ato’ resulta na ‘prática do dos filhos, dos escravos dos doentes eram
A
cuidar’, que, ao ser exercida por um as mulheres. Aliás, uma responsabilida-
cidadão, um sujeito, reveste-se de no- de bastante repetida até os dias de hoje
A
vos sentidos imprimindo uma identi- em muito cotidianos familiares.

111
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Em um determinado momento, tudo com a contribuição do movimen-


boa parte desse saber foi concebido to feminista e sua produção de conhe-
como profissão de mulheres e para cimentos, têm contribuído de forma
mulheres, sobretudo na saúde foi a decisiva para modificá-lo. No mundo
enfermagem a profissão que mais in- contemporâneo, constata-se que a prá-
corporou a prática do cuidar como cam- tica de pesquisar é sinérgica à prática
po de domínio próprio. Não é à toa que do cuidar e vice-versa, na medida em
a prática de cuidar está histórica e cultu- que a vida cotidiana evidencia cada vez
ralmente conectada ao feminino, pois, ao mais a crescente demanda por ‘cuida-
longo dos anos, essa atividade esteve atre- do’. Mais que isso, constata-se que a
lada à trajetória desenvolvida pela mu- demanda por ‘cuidado’ vem, dia-após-
lher nas sociedades ocidentais modernas. dia, se complexificando, o que tem
Por outro lado, a prática de pesquisar, exigido cada vez mais a atuação de
ou seja, de criar novos conhecimentos, diferentes sujeitos-cidadãos-profissi-
historicamente, tem sido concebida onais, mulheres e homens, cujo ‘ou-
como prática masculina. tro’ demandante, cada vez mais re-
Vemos nesta concepção uma ex- quererá atenção, responsabilidade,
pressão da divisão social e sexual do zelo e desvelo com seus desejos, suas
trabalho, na qual a sociedade delimita aspirações e especificidades, de modo
com bastante precisão os campos em a incluí-lo na tomada de
que pode operar a mulher, da mesma decisão sobre sua vida, ou melhor di-
forma como escolhe os terrenos em zendo, sobre sua saúde.
que pode atuar o homem. Pierre
Bourdieu é um dos autores que desta-
ca que o mundo social produz nos su- Cuidado Integral de Saúde
jeitos um modo de ser e de estar no
mundo, e este é diferenciado para ho- ‘Cuidado em saúde’ não é apenas
mens e mulheres. Ou seja, a sociedade um nível de atenção do sistema de saú-
acaba por imprimir na mulher um con- de ou um procedimento técnico sim-
junto de valores que lhe confere uma plificado, mas uma ação integral que
performance específica. tem significados e sentidos voltados
Entretanto, vários movimentos para compreensão de saúde como o
reflexivos de crítica a esse modelo ‘direito de ser’. Pensar o direito de ser
societal de divisão do trabalho, sobre- na saúde é ter ‘cuidado’ com as dife-

112
Cuidado em Saúde A

renças dos sujeitos – respeitando as re- a falta de ‘cuidado’ – ou seja o descaso, C


lações de etnia, gênero e raça – que são o abandono, o desamparo – pode agra-
portadores não somente de deficiên- var o sofrimento dos pacientes e au- D
cias ou patologias, mas de necessida- mentar o isolamento social causado
des específicas. Pensar o direito de ser pelo adoecimento. O modelo
E
é garantir acesso às outras práticas biomédico que orienta o conjunto das
F
terapêuticas, permitindo ao usuário profissões em saúde, ao se apoiar nos
participar ativamente da decisão acer- meios diagnósticos para evidenciar le-
G
ca da melhor tecnologia médica a ser ões e doenças, afastou-se do sujeito
por ele utilizada. humano sofredor como totalidade viva H
‘Cuidado em saúde’ é o tratar, o e permitiu que o diagnóstico substitu-
respeitar, o acolher, o atender o ser ísse a atenção e o ‘cuidado’ integral à I
humano em seu sofrimento – em gran- saúde. Entretanto, mais do que o diag-
de medida fruto de sua fragilidade so- nóstico, os sujeitos desejam se sentir N
cial –, mas com qualidade e cuidados e acolhidos em suas deman-
resolutividade de seus problemas. O das e necessidades. O
‘cuidado em saúde’ é uma ação inte- O ‘cuidado em saúde’ é uma di-
gral fruto do ‘entre-relações’ de pes- mensão da integralidade em saúde que P
soas, ou seja, ação integral como efei- deve permear as práticas de saúde, não
tos e repercussões de interações posi- podendo se restringir apenas às com- Q
tivas entre usuários, profissionais e ins- petências e tarefas técnicas, pois o
tituições, que são traduzidas em atitu- acolhimento, os vínculos de intersub- R
des, tais como: tratamento digno e res- jetividade e a escuta dos sujeitos com-
peitoso, com qualidade, acolhimento e põem os elementos inerentes à sua S
vínculo. O cuidar em saúde é uma ati- constituição. O ‘cuidado’ é uma rela-
tude interativa que inclui o ção intersubjetiva que se desenvolve T
envolvimento e o relacionamento entre em um tempo contínuo, e que, além
as partes, compreendendo acolhimen- do saber profissional e das tecnologias U
to como escuta do sujeito, respeito pelo necessárias, abre espaço para negocia-
seu sofrimento e história de vida. ção e a inclusão do saber, dos desejos
V
Se, por um lado, o ‘cuidado em e das necessidades do outro.
A
saúde’, seja dos profissionais ou de O trabalho interdisciplinar e a
outros relacionamentos, pode diminuir ar ticulação dos pr ofissionais,
A
o impacto do adoecimento, por outro, gestores dos serviços de saúde e u-

113
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

suários em redes, de tal modo que Para saber mais:


todos participem ativamente, po-
dem ampliar o ‘cuidado’ e fortale- PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A.
Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed.
cer a rede de apoio social. Com isso,
Hucitec/IMS/Uerj-Abrasco. 2005.
a noção de ‘cuidado’ integral per-
ANDRADE, M. M. A Vida Comum:
mite inserir, no âmbito da saúde, as
espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica.
preocupações pelo bem- Rio de Janeiro: Eduff, 2002.
estar dos indivíduos – opondo-se a DAHER, D. V. et al. Cuidar e pesquisar:
uma visão meramente economicista práticas complementares ou
– e devolver a esses indivíduos o po- excludentes? Revista Latino-americana de
Enfermagem, 10(2): 145-150, mar.-abr.,
der de julgar quais são suas necessi-
2002.
dades de saúde, situando-os assim
AYRES, J. R. Sujeito, intersubjetividade
como outros sujeitos e não como e práticas de saúde. Ciência & Saúde
outros-objetos. Coletiva, 6(1): 63-72, 2001.












































CURRÍCULO INTEGRADO

Marise Nogueira Ramos

Santomé (1998) explica que a de- Bernstein (1996) sobre os processos de


nominação ‘currículo integrado’ tem compartimentação dos saberes, na qual
sido utilizada como tentativa de con- ele introduz os conceitos de classifica-
templar uma compreensão global do ção e enquadramento. A classificação
conhecimento e de promover maiores refere-se ao grau de manutenção de
parcelas de interdisciplinaridade na sua fronteiras entre os conteúdos, enquan-
construção. A integração ressaltaria a to o enquadramento, à força da frontei-
unidade que deve existir entre as dife- ra entre o que pode e o que não pode
rentes disciplinas e formas de conhe- ser transmitido numa relação pedagó-
cimento nas instituições escolares. gica. À organização do conhecimento
A idéia de integração em educação escolar que envolve alto grau de classi-
é também tributária da análise de ficação associa-se um currículo que o

114
Currículo Integrado A

autor denomina ‘código coleção’; à or- e busca definir as finalidades da edu- C


ganização que vise à redução do nível cação escolar por referência às neces-
de classificação associa-se um currículo sidades da formação humana. Com D
denominado ‘código integrado’. isto, defende que as aprendizagens
Segundo Bernstein, a integração escolares devem possibilitar à classe
E
coloca as disciplinas e cursos isolados trabalhadora a compreensão da reali-
F
numa perspectiva relacional, de tal dade para além de sua aparência e, as-
modo que o abrandamento dos sim, o desenvolvimento de condições
G
enquadramentos e das classificações do para transformá-la em benefício das
conhecimento escolar promove maior suas necessidades de classe. H
iniciativa de professores e alunos, mai- Esta proposta integra, ainda,
or integração dos saberes escolares formação geral, técnica e política, I
com os saberes cotidianos dos tendo o trabalho como princípio
alunos, combatendo, assim, a visão educativo. Desse princípio, que se N
hierárquica e dogmática do conheci- torna eixo epistemológico e ético-
mento. Em síntese, o autor aposta na político de organização curricular, O
possibilidade de os códigos integrados decorrem os outros dois eixos do
garantirem uma forma de socialização ‘currículo integrado’, a saber: a ciên- P
apropriada do conhecimento, capaz de cia e a cultura. O trabalho é o princí-
atender às mudanças em curso no pio educativo no sentido ontológico, Q
mundo do trabalho mediante o desen- pelo qual ele é compreendido como
volvimento de operações globais. Isso práxis humana e a forma pela qual o R
contribuiria para a construção de uma homem produz sua própria existên-
educação mais igualitária, visando à cia na relação com a natureza e com S
superação de problemas de so- os outros homens. Sob o princípio
cialização diante dos sistemas de do trabalho, o processo formativo T
valores próprios das sociedades indus- proporciona a compreensão da
triais avançadas. historicidade da produção científica U
Essas análises colocam a necessi- e tecnológica, como conhecimentos
dade de relacionar o âmbito escolar à desenvolvidos e apropriados social-
V
prática social concreta. A proposta de mente para a transformação das con-
A
‘currículo integrado’ na perspectiva da dições naturais da vida e a ampliação
formação politécnica e omnilateral dos das capacidades, das potencialidades
A
trabalhadores incorpora essas análises e dos sentidos humanos.

115
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

O sentido histórico do trabalho, construção de novos conhecimentos.


que no sistema capitalista se transfor- A formação profissional, por sua
ma em trabalho assalariado, também vez, é um meio pelo qual o conhecimen-
traz fundamentos e orienta finalidades to científico adquire, para o trabalhador,
da formação, na medida em que o sentido de força produtiva, traduzin-
expressa as exigências específicas para do-se em técnicas e procedimentos, a
o processo educativo, visando à par- partir da compreensão dos conceitos ci-
ticipação direta dos membros da entíficos e tecnológicos básicos.
sociedade no trabalho socialmente pro- Por fim, a concepção de cultura
dutivo. Com este sentido, conquanto que embasa a síntese entre formação
também organize a base unitária do geral e formação específica a compre-
currículo, fundamenta e justifica a for- ende como as diferentes formas de
mação específica para o exercício de criação da sociedade, de tal modo que
profissões, entendidas como uma for- o conhecimento característico de um
ma contratual socialmente reconheci- tempo histórico e de um grupo social
da do processo de compra e venda da traz a marca das razões, dos proble-
força de trabalho. Como razão da for- mas e das dúvidas que motivaram o
mação específica, o trabalho aqui se avanço do conhecimento numa socie-
configura também como um contexto dade. Esta é a base do historicismo
de formação. como método (Gramsci, 1991) que aju-
A essa concepção de trabalho as- da a superar o enciclopedismo – quan-
socia-se a concepção de ciência: conhe- do conceitos históricos são transfor-
cimentos produzidos e legitimados mados em dogmas – e o
socialmente ao longo da história como espontaneísmo – forma acrítica de
resultados de um processo empreen- apropriação dos fenômenos que não
dido pela humanidade na busca da ultrapassa o senso comum.
compreensão e transformação dos fe- No ‘currículo integrado’, conhe-
nômenos naturais e sociais. Nesse sen- cimentos de formação geral e especí-
tido, a ciência conforma conceitos e ficos para o exercício profissional tam-
métodos cuja objetividade permite a bém se integram. Um conceito especí-
transmissão para diferentes gerações, fico não é abordado de forma técnica
ao mesmo tempo em que podem ser e instr umental, mas visando a
questionados e superados historica- compreendê-lo como construção his-
mente no movimento permanente de tórico-cultural no processo de desen-

116
Currículo Integrado A

volvimento da ciência com finalidades assim como o sentido objetivo dos fa- C
produtivas. Em razão disto, no ‘currí- tos. Isto dá a direção para a definição
culo integrado’ nenhum conhecimen- de componentes curriculares. D
to é só geral, posto que estrutura O método histórico-dialético de-
objetivos de produção, nem somente fine que é a partir do conhecimento
E
específico, pois nenhum conceito apro- na sua forma mais contemporânea que
F
priado produtivamente pode ser for- se pode compreender a realidade e a
mulado ou compreendido desarticula- própria ciência na sua historicidade. Os
G
damente das ciências e das linguagens. processos de trabalho e as tecnologias
O currículo formal exige a sele- correspondem a momentos da evolu- H
ção e a organização desses conheci- ção das forças materiais de produção
mentos em componentes curriculares, e podem ser tomados como um pon- I
sejam eles em forma de disciplinas, to de partida histórico e dialético para
módulos, projetos etc., mas a o processo pedagógico. Histórico por- N
integração pressupõe o reestabeleci- que o trabalho pedagógico fecundo
mento da relação entre os conhecimen- ocupa-se em evidenciar, juntamente O
tos selecionados. Como o currículo não aos conceitos, as razões, os problemas,
pode compreender a totalidade, a sele- as necessidades e as dúvidas que cons- P
ção é orientada pela possibilidade de tituem o contexto de produção de um
proporcionar a maior aproximação do conhecimento. A apreensão de conhe- Q
real, por expressar as relações funda- cimentos na sua forma mais elaborada
mentais que definem a realidade. Se- permite compreender os fundamentos R
gundo Kosik (1978), cada fato ou con- prévios que levaram ao estágio atual de
junto de fatos, na sua essência, reflete compreensão do fenômeno estudado. S
toda a realidade com maior ou menor Dialético porque a razão de estudar um
riqueza ou completude. Por esta razão, processo de trabalho não está na sua T
é possível que um fato deponha mais estrutura formal e procedimental apa-
que um outro na explicação do real. rente, mas na tentativa de captar os U
Assim, a possibilidade de conhecer a conceitos que o fundamentam e as re-
totalidade a partir das partes é dada pela lações que o constituem. Estes podem
V
possibilidade de identificar os fatos ou estar em conflito ou ser questionados
A
conjunto de fatos que deponham mais por outros conceitos.
sobre a essência do real; e, ainda, de O ‘currículo integrado’ organiza o
A
distinguir o essencial do assessório, conhecimento e desenvolve o processo

117
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de ensino-aprendizagem de forma que ciências sociais. In: JANTSCH, A. P. &


os conceitos sejam apreendidos como BIANCHETTI, L. (Orgs.) A
sistema de relações de uma totalidade Interdisciplinaridade: para além da filosofia do
sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.
concreta que se pretende explicar/
compreender. No trabalho pedagógi- FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. &
co, o método de exposição deve resta- RAMOS, M. (Orgs.) Ensino Médio
belecer as relações dinâmicas e Integrado: concepção e contradições. São Paulo:
Cortez, 2005.
dialéticas entre os conceitos,
reconstituindo as relações que confi- GADOTTI, M. Concepção Dialética da
guram a totalidade concreta da qual se História. São Paulo: Cortez, 1995.
originaram, de modo que o objeto a GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a
ser conhecido revele-se grada- Organização da Cultura. Rio de Janeiro:
tivamente em suas peculiaridades Civilização Brasileira, 1991.
próprias (Gadotti, 1995). KOSIK, K. Dialética do Concr eto.
Petrópolis: Vozes, 1978.
A interdisciplinaridade, como
método, é a reconstituição da totali- MARX, K. Introdução. In: MARX,
dade pela relação entre os conceitos K. Crítica da Filosofia do Direito de
originados a partir de distintos re- Hegel. São Paulo: s.n., 1977. (Temas
de Ciências Humanas)
cortes da realidade; isto é, dos diver-
sos campos da ciência representados MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação.
em disciplinas. Isto tem como obje- Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
tivo possibilitar a compreensão do RAMOS, M. N. A Pedagogia das
significado dos conceitos, das razões Competências: autonomia ou adaptação? São
e dos métodos pelos quais se pode Paulo: Cortez Editora, 2001.
conhecer o real e apropriá-lo em seu RAMOS, M. N. O “novo ensino médio”
potencial para o ser humano. à luz de antigos princípios: trabalho,
ciência e cultura. Boletim Técnico do Senac,
29(2): 19-27, maio-ago., 2003.
Para saber mais:
SANTOMÉ, J. Globalização e
Interdisciplinaridade: o currículo integrado.
BERNSTEIN, B. A Estruturação do
Discurso Pedagógico: classe, código e controle. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
Petrópolis: Vozes, 1996. SAVIANI, D. Sobre a Concepção de
FRIGOTTO. G. A interdisciplinaridade Politecnia. Rio de Janeiro: EPSJV/
como necessidade e como problema nas Fiocruz, 1989.

118
A

C
CURRÍCULO POR COMPETÊNCIAS
D
Marise Nogueira Ramos
E
O ‘currículo por competências’ mente na medida das necessidades
é o meio pelo qual a pedagogia das exigidas pelo desenvolvimento dessas
F
competências se institucionaliza na es- competências.
cola, com o objetivo de promover o Do ponto de vista da hierar-
G
encontro entre formação e emprego. quização do saber, o discurso sobre as
H
O fundamento do ‘currículo por com- competências pode ser compreendido
petências’ é a redefinição do sentido como uma tentativa de substituir uma
I
dos conteúdos de ensino, de modo a representação hierárquica estabelecida
atribuir sentido prático aos saberes es- entre os saberes e as práticas, N
colares, abandonando a preeminência notadamente aquela que se estabelece
dos saberes disciplinares para se centrar entre o ‘puro’ e o ‘aplicado’, entre o O
em competências supostamente ‘teórico’ e o ‘prático’ ou entre o ‘geral’ e
verificáveis em situações e tarefas es- o ‘técnico’ por uma representação da P
pecíficas. Essas competências devem diferenciação que seria essencialmente
ser definidas com referência às situa- horizontal e não mais vertical. Q
ções que os alunos deverão ser capa- Ao discutir a elaboração de ‘cur-
zes de compreender e dominar. So- rículos por competências’ no ensino R
mente após essas definições é que se profissionalizante, Jiménez (1995)
selecionam os conteúdos de ensino. compreende que as competências de- S
Em síntese, em vez de partir de um finidas como referências para o currí-
corpo de conteúdos disciplinares culo correspondem a unidades para as T
existentes, com base no qual se efetu- quais convergiriam e se entrecruzariam
am escolhas para cobrir os conheci- um conjunto de elementos que as U
mentos considerados mais importan- estruturam (conhecimentos, habilida-
tes, a elaboração do ‘currículo por com- des e valores). Considerar a competên- V
petências’ parte da análise de cia como unidade e ponto de conver-
situações concretas e da definição de gência entre conhecimentos, habilida- A
competências requeridas por essas si- des e valores congrega a idéia de que a
tuações, recorrendo às disciplinas so- competência constitui uma unidade e
A

119
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de que os elementos isolados perdem processos de trabalho para os quais se


esse sentido. A autora indica duas ca- pretende formar. Quando aplicados
racterísticas que se encontram implíci- aos sistemas de formação, desta análi-
tas em qualquer definição de compe- se resultam os documentos
tência: por um lado, centrar-se no de- referenciais. Na França, eles foram cha-
sempenho; por outro, recuperar con- mados de referenciais de diploma, para
dições em que este desempenho é re- a escola, e de referenciais de emprego
levante. ou de atividades profissionais, para a
O desempenho é compreendido empresa. No Brasil, foram elaboradas
como a expressão concreta dos recur- diretrizes e referenciais curriculares na-
sos que o indivíduo articula quando cionais produzidos pelo Ministério da
realiza uma atividade. Uma formação Educação.
que persiga o desenvolvimento de Para análise dos processos de tra-
competências para o desempenho balho, ainda que exista uma variedade
pressupõe selecionar conhecimentos de metodologias, estas se originam de
dos quais os estudantes necessitam três matrizes principais: a condutivista,
para aplicar em esquemas operatórios, a funcionalista e a construtivista. A
para entender o que significam e como matriz condutivista compreende a
funcionam, facilitando a ação em situ- competência, sobretudo, como uma
ações diversas. Isto implica deixar de habilidade que descreve o que a pes-
fazer a separação entre o saber e o sa- soa pode fazer. Assim definida, as com-
ber-fazer para centrar o esforço em petências são características que dife-
resultados de aprendizagem nos quais renciam um desempenho superior de
se atinge uma integração entre ambos. um desempenho médio ou pobre. Por
Incorporar condições nas quais o isto, a análise parte da pessoa que faz
desempenho é relevante remete às con- bem seu trabalho de acordo com os
dições em que se promove e se deman- resultados esperados.
da que o indivíduo ponha em jogo seus A análise funcional se origina no
recursos. Essa concepção requer que pensamento funcionalista da sociolo-
a elaboração dos currículos ocorra por gia, tendo sido acolhida pela nova
contato direto com as situações de tra- teoria dos sistemas sociais. Por essa te-
balho, o que exige que um dos proce- oria, a análise funcional não se refere
dimentos prévios à elaboração somente ao sistema em si, mas tam-
curricular pela escola seja a análise dos bém à sua relação com o em torno

120
Currículo por Competências A

(mercado, tecnologia, relações sociais tem como finalidade evidenciar as re- C


e institucionais etc.). A análise do pro- lações mútuas e as ações existentes
cesso de trabalho é feita estabelecen- entre os grupos, seu em torno, as situ- D
do-se uma relação entre problemas e ações de trabalho e as situações de
resultados. As competências são capacitação (Schwartz apud Mertens,
E
deduzidas das relações entre resultados 1996). Ou seja, as competências não
F
e habilidades, conhecimentos e atitu- são deduzidas à parte das necessida-
des dos trabalhadores. des e propostas formativas. O méto-
G
Esta foi a perspectiva adotada pelo do rechaça a defasagem entre a cons-
Ministério da Educação no Brasil para trução das competências e a H
a elaboração dos referenciais implementação de uma estratégia de
curriculares nacionais do ensino téc- capacitação. Com isto, as competênci- I
nico. Estes ficaram organizados em as não são deduzidas somente a partir
matrizes ou quadros de competências da função ocupacional, mas concedem N
por áreas profissionais, nas quais se igual importância à pessoa, aos seus
definiram funções, subfunções que objetivos e às suas possibilidades. O
caracterizam o processo de trabalho; Os referenciais curriculares
competências e habilidades (‘saber-fa- explicitam os elementos que deverão P
zer’) requeridas pelos trabalhadores; compor o currículo para se lograr o
bases instrumentais, científicas e desenvolvimento das competências Q
tecnológicas, correspondentes aos con- requeridas pelo trabalho. Tanguy &
teúdos de ensino ou ‘saberes’ necessá- Ropé (1997) descrevem a metodologia R
rios ao desenvolvimento das respecti- de construção do referencial de diplo-
vas competências e habilidades. As ma: enuncia-se a competência global S
unidades de aprendizagem, preferen- visada (em termos de ser ‘capaz de’);
cialmente autônomas, organizadas depois, as capacidades gerais implica- T
como módulos, teriam esses das nessa competência global (que se
parâmetros como base. À conclusão de exprimem geralmente por quatro verbos U
cada módulo poder-se-ia adquirir um de ação ou sinônimos: informar-se, or-
título que habilitaria o trabalhador ao ganizar, realizar, comunicar); depois, as
V
exercício de determinadas funções e/ capacidades e competências terminais
A
ou subfunções. e, enfim, os ‘saberes’ e o ‘saber-fazer’
A matriz construtivista desenvol- que à competência global são associa-
A
vida por Bertand Schwartz, na França, dos. Ao termo desse conjunto de pro-

121
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cedimentos, os referenciais de diplo- correspondem a duas formas de ação:


mas apresentam-se, à primeira vista, a ação mental, implícita, não
sob forma de quadros que relacionam, obser vável, correspondente à
de um lado, as funções e atividades cognição; e a ação manifesta, explícita,
principais descritas no referencial do observável, correspondente à ativida-
emprego com as capacidades e com- de. Ainda que sejam mecanismos es-
petências terminais; de outro, as com- pecíficos, capacidade e atividade ou
petências terminais com os ‘saberes’ e cognição e ação formam uma unida-
‘saber-fazer’ tecnológicos associados. de. Não obstante, os referenciais
Essa codificação dos diplomas de en- curriculares cindem esta unidade. Além
sino técnico e profissio-nalizante re- disto, afirmar que alguém deve ser ‘ca-
pousa, em última instância, sobre uma paz de’ não diz nada do conteúdo des-
lista de ‘saber-fazer’. Esses saber-fazer, sa capacidade. Conforme afirma o
unidades de base desse ordenamento mesmo autor, as listas de competênci-
técnico, são eles mesmos definidos por as nas quais se tenta basear o currículo
uma seqüência de relações de encaixe. não dizem nada sobre o que devem
Como explica Tanguy (1997), com adquirir os estudantes para serem ca-
base na regulamentação educacional pazes de fazer o que se pretende que
francesa, eles são estabelecidos com eles façam. Por isto, é preciso aceitar
base na lista de tarefas e funções ela- que o desenvolvimento de competên-
borada no referencial de atividades cias é uma conseqüência e não o con-
profissionais, podendo ser apreendi- teúdo em si da formação, e que os efei-
dos com a expressão ‘ser capaz de’. tos pretendidos com a prática pedagó-
Concretamente são descritos por um gica podem se constituir no máximo
verbo de ação e pelos objetos aos como horizontes, cujos limites se alar-
quais a ação se aplica. gam permanentemente na proporção
Críticas à tamanha racionalização de novas aprendizagens. Sendo assim,
pedagógica não são raras. Malglaive o currículo mantém-se baseado em sa-
(1994), por exemplo, argumenta que os beres de referência, oriundos dos cam-
‘saber-fazer’, evidência explícita das pos das ciências e das profissões. Pe-
competências, como ações obser- las críticas apresentadas anteriormen-
váveis, são governados por outras te, o chamado ‘currículo por compe-
ações, inobserváveis: as ações mentais. tências’ dificilmente escapa da condição
Assim, capacidade e atividade de ser um construto elaborado com

122
Currículo por Competências A

base em objetivos de ensino e de apren- humana que está em jogo na sua reali- C
dizagem, diferindo muito pouco da ló- zação. Concluímos, então, que a possi-
gica que orientou sua própria gênese: a bilidade virtuosa de relacionar as ativi- D
adequação da educação aos princípios dades pedagógicas às situações de tra-
da eficiência social. balho e à prática social em geral está
E
Deluiz (2001) discute a possibili- no horizonte e, ao mesmo tempo, no
F
dade de construção de uma matriz crí- limite em que essas relações possam se
tico-emancipatória, cujos fundamentos constituir em referências para a forma-
G
teóricos estariam no pensamento crí- ção plena dos trabalhadores, orientadas
tico-dialético, pretendendo não só pela ampliação de seus conhecimentos, H
ressignificar a noção de competência, capacidades e atividades intelectuais.
atribuindo-lhe um sentido que atenda I
aos interesses dos trabalhadores, mas
também apontar princípios orienta- Para saber mais: N
dores para a investigação dos proces-
sos de trabalho. Em convergência com DELUIZ, N. O modelo das O
esta proposição, Ramos (2005) apresen- competências profissionais no mundo
do trabalho e na educação: implicações
tou como princípio epistemológico do
para o currículo. Boletim Técnico do Senac,
P
currículo a compreensão totalizante dos mar., 2001 (Número especial)
processos de trabalho, incorporando na Q
JIMÉNEZ, M. del C. El punto de vista
análise, além da dimensão científico- pedagógico. In: ARGÜELLES, A. (Org.)
tecnológica, as dimensões ético-políti- Competencia Laboral y Educación Basada en R
cas, sócio-históricas, ambientais, cultu- Normas de Competencia. México: Editorial
rais e relacionais do trabalho. Limusa, 1995. S
Ocorre, entretanto, que essa pers- MALGLAIVE, G. Competência e
pectiva, por se tratar de uma concep- engenharia de formação. In: PARLIER, T
M. & WITTE, S. (Orgs.) La Competénce:
ção teórico-metodológica e ético-polí-
tica da formação de trabalhadores, não
mythe, construction ou realité? Paris: U
L´Harmattan, 1994.
é redutível a metodologias de análises
de processo de trabalho. Ademais, a
MERTENS, L. Sistemas de Competência V
Laboral: surgimiento y modelos. México:
descrição precisa, definitiva, exaustiva, Cinterfor/OIT, 1996. (Resumo
Executivo)
A
de qualquer processo de trabalho, não
capta suas múltiplas determinações e, RAMOS, M. Possibilidades e desafios na A
menos ainda, a complexidade da ação organização do currículo integrado. In:

123
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. & TANGUY, L. Racionalização


RAMOS, M. (Orgs.) Ensino Médio pedagógica e legitimidade política. In:
Integrado: concepção e contradições. São Paulo: TANGUY, L. & ROPÉ, F. (Orgs.)
Cortez, 2005. Saberes e Competências: o uso de tais noções
na escola e na empresa. São Paulo: Papirus,
1997, p. 25-68.

124
A

C
D D
DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO E

F
Denise Elvira Pires
G
O termo divisão do trabalho é Divisão social do trabalho
H
encontrado em estudos oriundos de
diversas áreas do conhecimento, como A expressão ‘divisão social do tra-
I
a economia, a sociologia, a antropo- balho’ tem sido usada no sentido cu-
logia, a história, a saúde, a educação, nhado por Karl Marx (1818-1883) e N
dentre outras, e tem sido utilizado também referendada por autores como
com diversas variações. Em termos Braverman (1981) e Marglin (1980) O
genéricos refere-se às diferentes for- para designar a especialização das ati-
mas que os seres humanos, ao vive- vidades presentes em todas as socie- P
rem em sociedades históricas, produ- dades complexas, independente dos
zem e reproduzem a vida. As varia- produtos do trabalho circularem como Q
ções encontradas no termo divisão do mercadoria ou não. Designa a divisão
trabalho podem ser organizadas em do trabalho social em atividades pro- R
quatro grupos, cada uma referindo- dutivas, ou ramos de atividades neces-
se a diferentes fenômenos sociais re- sárias para a reprodução da vida. Marx, S
lativos às formas de produzir bens e em O Capital (1982), diz que a ‘divisão
serviços necessários à vida: 1) ‘divi- social do trabalho’ diz respeito ao ca- T
são social do trabalho ou divisão do ráter específico do trabalho humano.
trabalho social’; 2) ‘divisão capitalista Um animal faz coisas de acordo com U
do trabalho, ou divisão parcelar ou o padrão e necessidade da espécie a que
pormenorizada do trabalho, ou divi- pertence, enquanto a aranha é capaz V
são manufatureira do trabalho, ou di- de tecer e o urso de pescar, um indiví-
visão técnica do trabalho’; 3) ‘divisão duo da espécie humana pode ser, “si-
A
sexual do trabalho’; 4) ‘divisão inter- multaneamente, tecelão, pescador,
nacional do trabalho’. construtor e mil outras coisas combi-
A

125
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

nadas” (Braverman, 1981, p. 71). balho’ ou divisão do trabalho social.


Essa capacidade de produzir diferen- Esta forma de divisão do trabalho fi-
tes coisas e até de inventar padrões cou bem caracterizada na estrutura dos
diferentes dos animais não é possí- ofícios da Idade Média. Os artesãos
vel ser exercida individualmente, mas organizados nas guildas, ou
a espécie como um todo acha possí- corporações de artífices, constituíam
vel fazer isso, em parte pela divisão uma unidade de produção, de
do trabalho. capacitação para o ofício e de
“A divisão social do trabalho é comercialização dos produtos. Apesar
aparentemente inerente característi- de existir, entre mestres-companhei-
ca do trabalho humano tão logo ele ros-aprendizes, divisão do trabalho,
se converte em trabalho social, isto hierarquia e também atividades de co-
é, trabalho executado na sociedade e ordenação e gerenciamento do proces-
através dela” (Braverman, 1981, p. so de produção, estas eram diferentes
71-72). A produção da vida material da divisão parcelar do trabalho e da
e o aumento da população geram re- hierarquia verificada na emer-gência
lação entre os homens e divisão do das fábricas e do modo de produção
trabalho. Os vários estágios da divi- capitalista. No artesanato, os produto-
são do trabalho correspondem às res eram donos dos instrumentos ne-
formas de propriedade da matéria, cessários ao seu trabalho, tinham do-
dos instrumentos e dos produtos do mínio sobre o processo de produção,
trabalho verificados em cada socie- sobre o ritmo do trabalho e sobre o
dade, nos diversos momentos histó- produto, e também, quase certamente,
ricos (Marx, 1982). havia ascensão a companheiro e mui-
A divisão do trabalho sempre exis- to provavelmente a mestre (Marglin,
tiu. Inicialmente, dava-se ao acaso, pela 1980).
divisão sexual, de acordo com a idade
e vigor corporal. Com a complexidade
da vida em sociedade e o
aprofundamento do sistema de trocas
entre diferentes grupos e sociedades,
identifica-se a divisão do trabalho em
especialidades produtivas, designada
pela expressão ‘divisão social do tra-

126
Divisão Social do Trabalho A

Divisão parcelar ou porme- ordenar as operações, centralizar o su- C


norizada do trabalho, divi- primento de materiais, registro de cus-
tos, folha de pagamentos etc. No capi- D
são manufatureira do traba-
lho ou divisão técnica do talismo industrial manu-fatureiro, os
trabalhadores ficam especializados em
E
trabalho
parcelas (tarefas/atividades específicas)
F
do processo de produção
A ‘divisão parcelar ou pormeno-
dentro de uma mesma especialidade
rizada do trabalho, divisão manufa- G
produtiva, e o controle do processo
tureira do trabalho ou divisão técnica
passa para a gerência. H
do trabalho’ é típica do modo de pro- Essa mudança tem como conse-
dução capitalista. Refere-se à fragmen-
tação de uma especialidade produtiva
qüência para os trabalhadores a alie- I
nação e para o capitalista constitui-se
em numerosas operações limitadas, de em um problema gerencial. Esse fenô- N
modo que o produto resulta de uma meno é qualitativamente diferente da
grande quantidade de operações exe- ‘divisão social do trabalho’ na socieda- O
cutadas por trabalhadores especia- de que foi explicada, inicialmente, pela
lizados em cada tarefa. Surge em mea- clássica análise de Adam Smith (1723- P
dos do século XVIII com a manufatu- 1790), no An Inquiry into the Nature and
ra e caracteriza o sistema de fábricas. Causes of the Wealth of Nations (A Ri- Q
O capitalismo industrial começa quan- queza das Nações) a respeito do proces-
do um grande número de trabalhado- so de produção em uma fábrica de al- R
res é empregado por um capitalista finetes. A análise deste fenômeno de
(Braverman, 1981). Inicialmente, o fragmentação do processo de produ- S
processo de trabalho era igual ao exe- ção foi mais bem qualificada com os
cutado na produção feudal, no artesa- estudos de Charles Babbage (em On T
nato nas guildas (vidreiros, padeiros, the Economy of Machinery, de 1832) ao
ferreiros, marceneiros, boticários, ci- acrescentar que essa forma de divisão U
rurgiões). O domínio do processo es- do trabalho não apenas fragmenta o
tava com os trabalhadores. Ao reuni- processo permitindo um aumento da
V
los, seja nas guildas seja na oficina ca- produtividade como também
pitalista, seja no hospital, surge o pro- A
hierarquiza as atividades, atribuindo
blema da gerência. Para o próprio tra- valores diferentes a cada tarefa execu-
balho cooperativo já era necessário:
A
tada por diferentes trabalhadores ou

127
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

grupo de trabalhadores específicos. O gerente controla o trabalho dos


Assim, aumenta a produtividade outros organizando o processo de tra-
não só pelo aumento numérico dos balho com vistas a tirar o maior resul-
produtos em uma determinada uni- tado possível. Gerência, como organi-
dade de tempo como também au- zação racional do trabalho no modo
menta a produtividade diminuindo capitalista de produção, envolve o con-
o custo da força de trabalho com- trole do processo de trabalho e do tra-
prada pelo capitalista. balho alienado, isto é, da força de
A emergência da ‘divisão parce- trabalho comprada e vendida. A fun-
lar do trabalho’ que muitos autores de- ção da gerência, que no início do capi-
nominam ‘divisão técnica do trabalho’ talismo é desenvolvida pelo proprietá-
(Abercrombie, Hill & Turner, 2000) rio do capital, passa a ser exercida por
ocorre no bojo de um processo mais trabalhadores contratados, que, ao
amplo de mudanças, no qual se des- mesmo tempo, são empregados e em-
tacam: a apropriação capitalista dos pregadores de trabalho alheio, recebem
meios de produção (força de traba- melhor remuneração que os demais,
lho, objetos de trabalho e instrumen- representam e se articulam com os pro-
tos); a associação de diversos traba- prietários do capital, controlam o tra-
lhadores em um mesmo espaço físi- balho dos outros e organizam o pro-
co, onde cada um desenvolve uma ta- cesso de trabalho visando ao lucro
refa específica, e o produto só é obti- (Braverman, 1981). O principal teóri-
do como resultado do trabalho cole- co da gerência aplicada ao modo de
tivo, ou, nas palavras de Marx (1980), produção capitalista é Frederick
o produto resulta de um trabalhador Winslow Taylor (1856-1915) que for-
coletivo; a modificação do papel da mula o que chamou de ‘princípios da
gerência para o de controle do pro- gerência científica’, incluindo a sepa-
cesso e da força de trabalho; e a ex- ração entre concepção e execução do
propriação do trabalhador do produ- trabalho; a separação das tarefas entre
to do seu trabalho. Opera-se uma di- diferentes trabalhadores; e o
visão entre trabalho manual (que detalhamento da atividade de modo
transforma o objeto) e intelectual (a que a gerência possa controlar cada
consciência que o trabalhador tem so- fase do processo e seu método de exe-
bre o trabalho), separa-se concepção cução, buscando obter maior produti-
e execução. vidade do trabalho.

128
Divisão Social do Trabalho A

Divisão sexual do trabalho mulheres rercebem menor remunera- C


ção do que os homens mesmo desen-
A expressão ‘divisão sexual do tra- volvendo trabalhos iguais; determina- D
balho’ tem sido utilizada mais recente- das atividades são atribuídas ao femi-
nino, pior remuneradas e menos valo-
E
mente, especialmente no contexto dos
estudos de gênero, para expressar os rizadas socialmente do que as que são
F
diferentes papéis atribuídos a homens atribuídas aos homens.
e mulheres na sociedade e no proces- G
so produtivo. As diferenças entre ho-
mens e mulheres são freqüentemente Divisão internacional do H
abordadas com o olhar biológico des- trabalho
tacando as diferenças no papel I
reprodutivo. No entanto, este debate A expressão ‘divisão internacio-
ganha nova qualificação com as críti- nal’ do trabalho diz respeito à posição N
cas introduzidas pelas feministas à se- dos países no mercado e no processo
paração das esferas públicas e priva- produtivo global, bem como à dinâmi- O
das na sociedade capitalista, na qual ca dos padrões de acumulação de ca-
tem cabido às mulheres a esfera priva- pital no contexto planetário. No atual P
da e de cuidado dos filhos e aos ho- contexto de globalização, a expressão
mens a esfera pública, incluindo o tra- ‘nova divisão internacional do traba- Q
balho remunerado e as ativi- lho’ tem sido usada para designar as
dades de maior prestígio social mudanças no mercado, na distribuição R
(Abercrombie, Hill & Turner, 2000). de capital e das empresas, bem como
Com a urbanização, a ampliação do no fluxo da força de trabalho entre os S
acesso à educação e as conquistas dos países, especialmente a relação ‘centro-
movimentos de mulheres, houve uma periferia’. Ou seja, a relação países ca-
T
ampliação do ingresso das mulheres no pitalistas desenvolvidos, países emer-
mercado de trabalho, no entanto ain-
U
gentes e países pobres ou com pouco
da é significativa a desigualdade em ter- potencial competitivo na economia
V
mos de valorização do trabalho femi- global (Henk, 1988).
nino em relação ao masculino. Até
A
hoje, início do terceiro milênio, mes-
mo considerando as diferenças entre
A
os diversos países e culturas, muitas

129
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: economic change. London/New Jersey: Zed


Books, 1988.
ABERCROMBIE, N.; HILL, S. & MARGLIN, S. A. Origem e funções do
TURNER, B. The Penguin Dictionary of parcelamento das tarefas. Para que
Sociology. 4.ed. London: Penguin Books, servem os patrões? In: GORZ, A. (Org.)
2000. Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo:
Martins Fontes, 1980. (1.ed., 1973)
BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital
Monopolista: a degradação do trabalho no século MARX, K. O Capital. 8.ed. São Paulo:
XX. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar,1981. Difel, 1982. Livro 1, v.1. (1.ed., 1867)
(1.ed., 1974) SMITH, A. An Inquiry into the Nature
HENK, T. The erosion of trade unions. and Causes of the Wealth of Nations. 5.ed.
In: HENK, T. (Ed.) Globalization and London: Methuen and Co./Edwin
Third World Unions: the challenge of rapid Cannan, 1904. (1.ed., 1776).

                                         
DIVISÃO TÉCNICA DO TRABALHO EM SAÚDE

Denise Elvira Pires

O uso desta expressão origina- A expressão ‘divisão técnica do


se de análises sobre o processo de trabalho em saúde’ diz respeito a ca-
trabalho em saúde, que aparecem na racterísticas da ‘divisão técnica ou di-
literatura brasileira a partir de mea- visão parcelar do trabalho’ (ver o ver-
dos de 1970. Estes estudos buscam bete Divisão Social do Trabalho) pre-
entender a organização do trabalho sente na forma de organização e pro-
em saúde, utilizando como dução do cuidado prestado por diver-
referencial análises sociológicas sos grupos profissionais a seres huma-
(Donangelo, 1975; Gonçalves, 1979; nos com carências de saúde. Refere-se
Almeida, 1986; Nogueira, 1977), e à forma de organização do trabalho
identificar semelhanças e diferenças coletivo em saúde na qual se identifi-
com o trabalho profissional típico da cam a fragmentação do processo de
produção artesanal, bem como com cuidar; a separação entre concepção e
a divisão parcelar do trabalho do execução; a padronização de tarefas
modo capitalista de produção. distribuídas entre os diversos agentes,

130
Divisão Técnica do Trabalho em Saúde A

de modo que ao cuidador cabe o cum- para a estruturação de um modelo de C


primento da tarefa, afastando-o do en- organização do trabalho que distancia
tendimento e controle do processo; a o médico do entendimento do seu D
hierarquização de atividades com atri- objeto de trabalho como seres huma-
buição de diferentes valores à remune- nos que são individualidades, biológi-
E
ração da força de trabalho. ca e subjetiva, mas também uma tota-
F
Com a mudança do papel dos lidade complexa. Esse modelo frag-
hospitais para espaço de tratamento e menta o ser humano, ao focalizar a
G
ensino na área da saúde, a partir do fi- atenção na ‘parte afetada do corpo’, e
nal do século XVIII, diferentes gru- influencia não apenas a medicina, mas H
pos profissionais, tais como, físicos o conjunto das profissões de saúde, em
(médicos clínicos), boticários, cirurgi- maior ou menor grau, bem como a I
ões (ofício independente da medicina organização do trabalho coletivo
clínica até meados do século XVIII) e institucional. A forma de organização N
práticos cuidadores, religiosos e leigos do trabalho em saúde, apesar de ter
(que fazem parte de um conjunto de especificidades, é também influencia- O
trabalhos que darão origem, pós da pelo macro contexto histórico
Florence Nightingale, ao trabalho pro- institucional de cada país e pelos mo- P
fissional de enfermagem) encontram- delos de organização e gestão presen-
se no mesmo espaço físico e colabo- tes em outras áreas da produção, bem Q
ram para cuidar da saúde de seres hu- como em outras atividades do setor
manos (Foucault, 1984; Nogueira, de serviços. R
1977; Pires, 1989). Essa organização do As normas institucionais estabe-
trabalho marca fortemente, até hoje, o lecem os papéis de cada grupo profis- S
trabalho em saúde. Neste processo, sional e a coordenação do trabalho
ocorre certa perda de autonomia pro- coletivo, a qual, ao longo da história, T
fissional frente aos constrangimentos tem cabido aos médicos. Schraiber
institucionais e gerenciais. (1993) e Peduzzi (2001) apontam que, U
O modelo da biomedicina que fi- na prática cotidiana, os profissionais de
cou bem caracterizado com o chama- saúde, como sujeitos do trabalho, exer-
V
do modelo flexneriano, baseado no cem certa autonomia técnica concebi-
A
relatório do mesmo nome e datado de da como liberdade de julgamento e
1910, orientou a organização das es- tomada de decisão frente às necessi-
A
colas médicas nos EUA e contribuiu dades de saúde dos usuários. Essa ca-

131
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

racterística ocorre de modo conco- profissionais envolvidos dominam os


mitante com as diferenças técnicas conhecimentos para o exercício das
especializadas e a desigualdade de va- atividades específicas de sua qualifica-
lor atribuído a esses distintos trabalhos. ção profissional, aproximando-se, des-
A hierarquia de trabalhos e de saberes ta forma, das características do traba-
marca as diferenças de custo da força de lho profissional.
trabalho e manifesta-se nas relações O ato assistencial em saúde, até
de trabalho resultando em tensões en- hoje, pode ser realizado de forma in-
tre os diversos agentes, com conflitos dependente/autônoma, numa relação
explícitos ou não (Peduzzi, 2001; Pi- direta profissional de saúde-cliente,
res, 1998). Ocorre certa compar- mantendo características do trabalho
timentalização de ações e perda de con- profissional e da pequena produção.
trole do processo assistencial, no en- No entanto, face à complexidade dos
tanto, a gerência da instituição não con- problemas, dos conhecimentos acumu-
segue submeter, de modo rígido, o tra- lados no campo da saúde e do instru-
balho da equipe multiprofissional, e mental envolvido na assistência, gran-
“não é possível desenhar um projeto de parte da mesma desenvolve-se em
assistencial único e definitivo antes de instituições públicas e/ou privadas, no
sua implementação” (Peduzzi, 2001, p. espaço intra ou extra-hospitalar, com
105). A gerência não consegue domi- estruturas e níveis de complexidade
nar a concepção e nem controlar rigi- diversos. Majoritariamente, o assistir/
damente os processos de execução do cuidar em saúde envolve um trabalho
trabalho, há um espaço de autonomia coletivo no qual é possível identificar
técnica (Peduzzi, 2001; Pires, 1998; duas características básicas – as da di-
Campos, 1997). visão técnica ou parcelar do trabalho e
O ato assistencial em saúde envol- as do trabalho do tipo profissional.
ve um conhecimento sobre o proces- Trabalho profissional, no sentido de
so que não é dominado pela adminis- trabalho especializado e reconhecido
tração da instituição, e nem existe uma socialmente como necessário para a
equipe de técnicos e gerentes que de- realização de determinadas atividades,
termine qual é a tecnologia assistencial entendendo profissão como uma for-
que será empregada e qual o papel de ma de trabalho portadora de caracte-
cada trabalhador, como pode ocorrer rísticas semelhantes as do ‘trabalho
nas empresas da produção material. Os artesanal’ desenvolvido na Idade Mé-

132
Divisão Técnica do Trabalho em Saúde A

dia, na Europa – aquele trabalho de- processo de trabalho de modo que têm C
senvolvido nas corporações de artífi- menos instrumental tanto para inter-
ces por produtores que tinham con- vir na concepção do trabalho quanto D
trole sobre o seu processo de traba- para intervir criativamente no agir co-
lho, controlavam o ritmo, eram pro- tidiano. Assim, distanciam-se do enten-
E
prietários dos instrumentos, tinham dimento da finalidade do seu trabalho
F
controle sobre o produto, bem como, e ficam mais submetidos às decisões
da produção e reprodução dos conhe- gerenciais. Quanto maior o controle
G
cimentos relativos ao seu trabalho sobre o processo de trabalho mais pró-
(Braverman, 1981; Marglin, 1980; ximo da divisão social do trabalho; e H
Marx, 1982; Machado, 1995). quanto menor o domínio sobre o pro-
Neste sentido, a divisão de ativi- cesso de trabalho maior aproximação I
dades entre os diferentes profissionais com a divisão técnica ou parcelar do
de saúde assemelha-se à ‘divisão social trabalho. N
do trabalho’ (ver o verbete Divisão Em algumas profissões da saúde,
Social do Trabalho), por envolver ações como, por exemplo, enfermagem, fisi- O
assistenciais realizadas por grupos de oterapia, farmácia, nutrição e, também,
trabalhadores especializados, ou seja, certas práticas da odontologia, o tra- P
que dominam os conhecimentos e téc- balho é desenvolvido por trabalhado-
nicas especiais, para assistir indivíduos res com graus diferenciados de esco- Q
ou grupos populacionais com proble- laridade. A coordenação do trabalho,
mas de saúde ou com risco de adoe- dentro do gr upo profissional, é R
cer, desenvolvendo atividades de cu- exercida pelos profissionais de nível
nho investigativo, preventivo, curativo, superior que concebem o trabalho e S
de cuidado, de conforto ou com o ob- delegam atividades parcelares aos de-
jetivo de reabilitação, quando os indi- mais participantes da equipe. Majori- T
víduos ou grupos sociais não podem tariamente, a organização do trabalho
fazer por si mesmos ou sem essa ajuda reproduz a fragmentação taylorista, U
profissional. O ‘trabalho coletivo em mas é possível encontrar diferencia-
saúde’ aproxima-se da ‘divisão técnica ções, com maior ou menor aproxima-
V
do trabalho’ quando os participantes ção com um trabalho cooperativo, mais
A
da equipe de saúde distanciam-se do criativo e menos alienado.
entendimento do seu objeto de traba- Pires, Gelbcke e Matos (2004)
A
lho, têm menor domínio sobre o seu identificam, no trabalho da enferma-

133
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

gem, algumas características da divisão to de trabalho, um trabalhador; contro-


técnica do trabalho e da sua sistemati- le de tempos e movimentos – tempo
zação realizada por Taylor, conhecida de trabalho, pausas e descanso são de-
como ‘organização científica do traba- finidos pela gerência; separação entre as
lho’ (OCT). Estas se evidenciam quan- funções de controle e de concepção das
do o mesmo é organizado com base funções de execução – “quem executa
no chamado ‘modelo funcional’, no não controla ou avalia os resultados (...)
qual o foco é a realização da tarefa dis- quem executa, não concebe, não deci-
tanciando o trabalhador do controle do de, não planeja, não programa, não or-
seu processo de trabalho e da interação ganiza, não coordena”.
com o sujeito cuidado. O trabalho é No ‘modelo dos cuidados inte-
mais repetitivo, com pouca autono- grais’, cada membro da equipe de en-
mia e pouco espaço para ações criati- fermagem presta todo o conjunto di-
vas e para participação no processo versificado de cuidados que o sujeito
decisório do cuidar. Aos enfermeiros necessita, considerando-se os cuidados
e enfermeiras cabe o gerenciamento prescritos por médicos e enfer-
da assistência de enfermagem, com meiros(as) para cada dia de trabalho.
maior aproximação e controle sobre Neste modo de organização do traba-
a concepção e o processo de cuidar; e lho, ocorre uma maior aproximação do
aos demais trabalhadores que com- trabalhador do entendimento e do con-
põem a equipe cabe a execução de ta- trole sobre o processo de cuidar, pos-
refas delegadas. sibilitando uma relação mais criativa e
Segundo Graça com base em Liu humana entre o cuidador e o sujeito
(1983), em “Les nouvelles logiques en cuidado. Há certa possi-bilidade de o
organisation du travail”, a OCT assen- trabalhador identificar mudanças no
ta-se nas seguintes idéias-chave: quadro clínico ou reações individuais
‘parcelarização’ – cada trabalhador res- do sujeito cuidado e assim intervir di-
ponsabiliza-se por uma tarefa ou um retamente, ou buscar colaboração, para
conjunto específico de tarefas simples; atender às necessidades dos doentes ou
especialização – cada trabalhador exe- pessoas com carências em relação à
cuta sempre a mesma tarefa, ligada a um saúde. E, mesmo que os enfermeiros e
determinado posto de trabalho, não há enfermeiras continuem com o papel
espaço para troca na equipe; gerencial na equipe, esse modelo afasta-
individualização – uma tarefa, um pos- se mais das características da divisão téc-

134
Divisão Técnica do Trabalho em Saúde A

nica do trabalho que o modelo dos ‘cui- MARGLIN, S. A. Origem e funções do C


dados funcionais’ (Pires, 1998; Matos & parcelamento das tarefas. Para que
Pires, 2002).
servem os patrões? In: GORZ, A. (Org.) D
Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo:
Martins Fontes, 1980. (1.ed., 1973)
E
Para saber mais: MARX, K. O Capital. 8.ed. São Paulo:
Difel, 1982. Livro 1, v.1. (1.ed., 1867)
F
ALMEIDA, M. C. P. de. O Saber de MATOS, E. & PIRES, D. A organização
Enfermagem e sua Dimensão Prática. São do trabalho da enfer magem na
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1979. Dissertação de Mestrado, São Paulo: professionals: a study in a Dutch hospital.
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da Faculdade de Medicina da USP. PIRES, D; GELBCKE, F; & MATOS,
LIU, M. Les nouvelles logiques en E. Organização do trabalho em U
organisation du travail. Révue Française de enfermagem: implicações no fazer e
Gestion, 41: 15-19, 1983. viver dos trabalhadores de nível médio. V
Revista Trabalho Educação e Saúde, 2(2):
MACHADO, M. H. Sociologia das 311-325, 2004.
profissões: uma contribuição ao debate A
teórico. In: MACHADO, M. H. (Org.) SCHRAIBER, L. B. O Médico e seu
Profissões de Saúde: uma abordagem sociológica. Trabalho. Limites da liberdade. São Paulo:
Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. Hucitec, 1993. A

135
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

DUALIDADE EDUCACIONAL

Ana Margarida Campello

Em ‘Crítica ao programa de trabalhadores manuais (rede primário-


Gotha’, no qual o Partido Operário profissional ou rede PP) e a rede de for-
Alemão exige’: ‘Educação popular ge- mação dos trabalhadores intelectuais
ral e igual a cargo do Estado’, Marx (rede secundário-superior ou rede SS).
(s.d.) contra-argumenta: “Educação O dualismo da escola no modo capita-
popular igual? O que se entende por lista de produção se manifesta como re-
isto? Acredita-se que na sociedade atual sultado de mecanismos internos, peda-
... a educação pode ser igual para todas gógicos, de destinação de ‘uns e não ou-
as classes?” Refletir sobre a escola com tros’ (Souza e Silva, 2003) para os estu-
base nessas perguntas é questionar a dos longos em suas fileiras nobres como
possibilidade de, na sociedade capita- mecanismo de reprodução das classes
lista, a educação ser igual para todas as sociais. Nessa concepção, para apreen-
classes sociais. der a dualidade estrutural característica
A dualidade estrutural expressa uma da escola capitalista é necessário colo-
fragmentação da escola a partir da qual car-se do ponto de vista daqueles que
se delineiam caminhos diferenciados se- são dela excluídos. A repetência, o aban-
gundo a classe social, repartindo-se os dono, a produção do retardo escolar são
indivíduos por postos antagonistas na mecanismos de funcionamento da escola
divisão social do trabalho, quer do lado e que fazem parte de suas característi-
dos explorados, quer do lado da explo- cas. É sua função discriminar, e isto des-
ração. Baudelot e Establet (1971), entre de o início da escolarização, na própria
outros teóricos do crítico- escola primária, que também não é úni-
reprodutivismo, desvendam a ilusão ide- ca e que também divide. “Seus ‘defeitos’
ológica da unidade da escola e da exis- ou ‘fracassos’ são, em verdade, a realida-
tência de um tipo único de escolaridade. de necessária de seu funcionamento”
Para essa teoria, a escola não é única, nem (Baudelot e Establet, id., p. 269).
unificadora, mas constituída pela unida- No Brasil, essa diferenciação se
de contraditória de duas redes de concretizou pela oferta de escolas de
escolarização: a rede de formação dos formação profissional e escolas de for-

136
Dualidade Educacional A

mação acadêmica para o atendimento do sistema educativo no modo capita- C


de populações com diferentes origens lista de produção. A escola de forma-
e destinação social. Durante muito ção das elites e a escola de formação D
tempo o atual ensino médio ficou res- do proletariado. Nessa concepção está
trito àqueles que prosseguiriam seus implícita a divisão entre aqueles que
E
estudos no nível superior, enquanto a concebem e controlam o processo de
F
educação profissional era destinada aos trabalho e aqueles que o executam. A
órfãos e desvalidos, os ‘desfavorecidos educação profissional destinada àque-
G
da fortuna’. les que estão sendo preparados para
A análise do fluxo escolar, no Bra- executar o processo de trabalho, e a H
sil, neste início de século XXI, aponta educação científico-acadêmica destina-
para a expulsão da escola de uma imen- da àqueles que vão conceber e contro- I
sa parcela da população: apesar da qua- lar este processo. Essa visão que separa
se universalização do acesso a 1ª série a educação geral, propedêutica da edu- N
do Ensino Fundamental, apenas 45% cação específica e profissionalizante,
dos jovens brasileiros concluem o En- reduz a educação profissional a treina- O
sino Médio. Percebe-se claramente a mentos para preenchimento de postos
constituição de dois grupos: aqueles de trabalho. P
que permanecem no interior da escola Nas análises sobre a dualidade da
e os que dela vão sendo excluídos. escola brasileira focaliza-se principal- Q
Entre os que permanecem, uma nova mente o ensino médio:
diferenciação se produz pela desigual- R
dade das condições de escolarização e A literatura sobre o dualismo na
pela precarização dos programas pe- educação brasileira é vasta e con- S
cordante quanto ao fato de ser o
dagógicos que conduzem a uma ensino médio sua maior expressão.
certificação desqualificada, para ‘uns e ... Neste nível de ensino se revela
T
não outros’. com mais evidência a contradição
A dualidade estrutural confirma- entre o capital e o trabalho, expres- U
sa no falso dilema de sua identida-
se nos limites das classes sociais e da
dicotomia histórica entre os estudos de
de: destina-se à formação prope- V
dêutica ou à preparação para o tra-
natureza teórica e os estudos de natu- balho? (Frigotto, Ciavatta e Ramos,
2005, p. 31). A
reza prática. A ‘escola do dizer’ e a ‘es-
cola do fazer’ são, nas palavras de A história do ensino médio no A
Nosella (1995), as divisões estruturais Brasil é a história do enfrentamento da

137
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tensão entre educação geral e educa- um enfrentamento, da dualidade estru-


ção específica, em decorrência de sua tural que historicamente marca as con-
própria natureza de mediação entre a cepções e práticas educativas no Brasil
educação fundamental e a formação (Rodrigues, 2005), especialmente no
profissional stricto sensu. Sua dupla fun- que diz respeito ao Ensino Médio.
ção – preparar para a continuidade dos Essa proposta, no entanto, não
estudos e para o mundo do trabalho – conseguiu ser implantada e, no final
lhe confere ambigüidade, “uma vez que dos anos 1990, ainda no primeiro go-
esta não é uma questão apenas peda- verno Fernando Henrique Cardoso, a
gógica, mas política, determinada pe- partir da promulgação da Lei de Dire-
las mudanças nas bases materiais de trizes e Bases da Educação Brasileira
produção, a partir do que se define a (Lei no 9.394/96), por meio das refor-
cada época uma relação peculiar en- mas do Ensino Médio e da Educação
tre trabalho e educação (Kuenzer, Profissional foi proibido o desenvol-
2007, p. 9). vimento integrado do ensino médio e
Na década de 1980, o campo edu- técnico, obrigando-se a constituição de
cacional brasileiro atravessou um in- sistemas paralelos de educação básica
tenso processo de disputa em cujo cen- e educação profissional. Na análise
tro estava a reestruturação de nosso dessas reformas, evidencia-se um re-
sistema educacional profundamente torno à dualidade estrutural da educa-
reformulado durante os mais de vinte ção brasileira estabelecida pela Refor-
anos que durou a ditadura instituída ma Capanema, que, em 1942, por meio
pelo golpe militar de 1964. Difundiu- das chamadas ‘leis’ orgânicas, criou ra-
se um clima de democratização, de par- mos de ensino: de um lado, o ensino
ticipação social que levou à mobilização secundário, propedêutico, para a for-
de educadores e políticos, visando à mação de intelectuais; de outro, os ra-
elaboração de uma nova Lei de Dire- mos técnicos (agrícola, industrial, co-
trizes e Bases para a Educação Nacio- mercial e normal) para a formação de
nal. Em termos de educação profissi- trabalhadores instrumentais. Os egres-
onal, a meta era avançar na direção do sos dos ramos técnicos não tinham
ensino politécnico. A apresentação de então direito de acesso ao ensino su-
uma proposta alicerçada na concepção perior. Esse direito só lhes foi plena-
de politecnia indica a possibilidade se- mente assegurado em 1961, com a pro-
não de uma superação, ao menos de mulgação da Lei no 4.024 que estabe-

138
Dualidade Educacional A

leceu a equivalência entre o ensino se- educar de forma conjunta para as ati- C
cundário, atual ensino médio, e o ensi- vidades intelectuais e manuais, e pro-
no técnico, para fins de prosseguimen- piciar uma orientação múltipla em re- D
to dos estudos. lação às futuras atividades profissio-
Ao fazer a crítica do caráter de nais, sem predeterminar escolhas
E
classe da escola burguesa, a proposta (Manacorda, 1990).
F
escolar de Gramsci afirma a concep- É possível superar a dualidade da
ção de politecnia na construção de uma educação na sociedade capitalista, ou
G
escola unitária: a “unitariedade inscreve-se no campo
da utopia a ser construída através da H
Escola única inicial de cultura ge- superação do capitalismo”? (Kuenzer,
ral, humanista, formativa, que equi-
libre equanimente o desenvolvi-
2004, p. 90). I
mento da capacidade de trabalhar É preciso, ao reconhecer que a
manualmente (tecnicamente, indus- escola contribui para a reprodução das N
trialmente) e o desenvolvimento das classes sociais, ressaltar a contradição
capacidades de trabalho intelectu-
al. Deste tipo de escola única, atra-
como aspecto fundamental do dina- O
vés de repetidas experiências de ori- mismo histórico. Se por um lado a es-
entação profissional, passar-se-á a cola reproduz (os valores dominantes P
uma das escolas especializadas ou da exploração e do poder), por outro
ao trabalho produtivo (Gramsci, alimenta o movimento de superação do Q
1995, p. 118).
estado de coisas existente. A esse res-
Para Gramsci, o surgimento da peito, afirma Frigotto (1989, p. 24): R
escola unitária não se restringe aos li-
mites da educação escolar, mas diz res- A escola ao explorar (...) as contra- S
peito a toda a vida cultural e social. O dições inerentes à sociedade capi-
advento da escola unitária significa o
talista é ou pode ser um instrumen- T
to de mediação na negação dessas
início de novas relações entre trabalho relações sociais de produção. Mais
intelectual e trabalho manual, não ape- que isto, pode ser um instrumento
U
nas na escola, mas em toda a vida so- eficaz na formulação das condições
cial. O princípio unitário, por isso, re- concretas da superação dessas rela- V
ções sociais que determinam uma
fletir-se-á em todos os organismos de separação entre capital e trabalho, A
cultura, transformando-os e empres- trabalho manual e trabalho intelec-
tando-lhes um novo conteúdo. A es- tual, mundo da escola e mundo do
trabalho.
A
cola unitária elementar e média deve

139
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A escola única, politécnica, ao to- GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. 2.ed.


mar o trabalho como princípio Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.
1. 2001.
educativo, busca a articulação ente teo-
ria e prática e a negação da separação GRAMSCI, A. Os intelectuais e a
organização da cultura. Rio de Janeiro:
entre cursos teóricos e cursos práticos,
Civilização Brasileira, 1995.
entre ensino propedêutico e ensino
KUENZER, A. Exclusão includente e
profissionalizante. Coloca-se, aqui, o
inclusão excludente: a nova forma de
conceito de escola unitária, ou de dualidade estrutural que objetiva as
unitariedade, tendo em vista o princí- novas relações entre educação e trabalho.
pio da união dos contrários e para esta- In: LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D.;
belecer uma relação dialética com SANFELICE, J. L. (Orgs.) Capitalismo,
trabalho e educação. 2. ed. rev. Campinas,
dualidade escolar no sentido da cons- SP: Autores Associados, HISTEDBR,
trução de uma escola que não se dife- 2004.
rencia em função das classes sociais e
KUENZER, A. Z. Ensino médio e
que, por isto, significa o início de novas profissional: as políticas do estado neoliberal.
relações entre trabalho intelectual e tra- 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
balho manual, não apenas na escola, mas MANACORDA, M. A. História da
também na vida social, no sentido da educação: da antiguidade aos nossos dias. 4.ed.
superação da sociedade de classes. São Paulo: Cortez, 1995.
MANACORDA, M. A. O princípio
educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990.
Para saber mais:
MARX, K. Crítica ao programa de
BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. Gotha. In: MARX, K. & ENGELS, F.
L’École capitaliste - en France. Paris: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega,
Librairie François Maspero, 1971. s.d.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola NOSELLA, P. Prefácio. In: MANA-


improdutiva: um (re)exame das relações entre CORDA, M. (Org.). História da educação:
educação e estrutura econômico-social e da antiguidade aos nossos dias. 4. ed. São
capitalista. 3.ed. São Paulo: Cortez/ Paulo: Cortez, 1995.
Autores Associados, 1989. RODRIGUES, J. Ainda a educação
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. & politécnica: o novo decreto da educação
RAMOS, M. (Orgs.). Ensino médio profissional e a per manência da
integrado: concepção e contradições. São Paulo: dualidade estrutural. Trabalho, Educação
Cortez, 2005. e Saúde, 3 (2): p. 259-282, 2005.

140
Dualidade Educacional A

SAVIANI, D. O choque teórico da SOUSA e SILVA, J. Por que uns e não C


politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, outros?: Caminhada de jovens pobres para
1(1): p. 131-152, 2003. a uni versidade. Rio de Janeir o: 7 D
Letras, 2003.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica:
primeiras aproximações. 9. ed. São Paulo: E
Autores Associados, 2005.
F

141
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

142
A

C
E D
EDUCAÇÃO E

F
Lílian de Aragão Bastos do Valle
G
Em sua designação mais genéri- afasta muito da simples adaptação ani-
H
ca, chama-se de ‘educação’ uma ativi- mal – com a ressalva de que, no caso
dade social tão antiga quanto a pró- humano, trata-se de conservar ‘o modo
I
pria instituição de uma sociedade mi- de ser singular’ de uma sociedade, de
nimamente organizada: assim, como forma que essa sobrevivência jamais
N
considera Werner Jaeger, “todo povo segue um cânone prees-tabelecido e
que atinge certo grau de desenvolvi- comum a todos os indivíduos da espé- O
mento inclina-se naturalmente à práti- cie, como acontece com os demais vi-
ca da educação” (Jaeger, 1995, p. 3). ventes. Por isso, mesmo nesse nível P
Como se pode, portanto, facil- mais elementar, a simples exigência de
mente perceber, nessa primeira conservação e reprodução da identida- Q
acepção – bastante corrente, sobretu- de social implica processos altamente
do no domínio da sociologia –, a ‘edu- complexos de preservação da cultura, R
cação’ corresponderia a uma ‘prática dos hábitos, valores, comportamentos
espontânea e irrefletida’ que, em reali- – enfim, do ‘mundo próprio’ que a so- S
dade, responde pelas necessidades mais ciedade criou e organizou para si, emi-
elementares de conservação e de auto- nentemente, como ‘sentido’. T
reprodução que a sociedade, tal como É claro, no entanto, que essa defi-
qualquer ser vivo, não deixa de mani- nição mais abrangente é bastante in- U
festar (Castoriadis, 1997, p. 15). E como suficiente e que se pode e se deve for-
essas necessidades referem-se, de for- necer ao conceito de ‘educação’ um sig- V
ma imediata, à produção das condições nificado mais preciso, sobretudo se o
‘materiais’ de sobrevivência físico-bi- que está interessando não é apenas essa A
ológica, estar-se-ia designando como prática muda, ainda que profunda em
‘educação’ um processo que não se sua significação ontológica e antropo-
A

143
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

lógica, mas também e sobretudo a ati- e conduzida em relação a finalidades


vidade para qual a existência da socie- coletivamente instituídas e proclamadas.
dade é, mais do que ocasião para insti- Nessa segunda acepção, a prática da
tuição de comportamentos espontâne- ‘educação’ se faz acompanhar por uma
os, objeto de um exame e de uma deli- intensa atividade investigativa, de exa-
beração explícitos que passam a visar me e reflexão, que pode, a justo título,
e a caracterizar essa instituição. ser denominada teoria educacional.
Aceitando-se essa nova condição
– que não é outra senão o projeto de-
mocrático! – dever-se-á reservar o ter- Antigüidade
mo ‘educação’ para uma atividade que
nada tem de ‘natural’, que não é tão Enfatizando o caráter intencional
somente a contrapartida tornada ne- do fenômeno educativo, uma outra
cessária pelo aparecimento do que versão da mesma tradição conservado-
Arendt denominou os “recém-chega- ra insiste em reduzi-lo à puericultura,
dos” (Arendt, 1972, p. 228) em um à ação especializada visando ao desen-
mundo velho, em um mundo marca- volvimento biológico e orgânico dos
do pelo “fechamento cognitivo” pequenos, assim como aos cuidados
(Castoriadis, 1987, p. 272) no qual ne- médico, higiênico, nutricional, psicoló-
nhuma sociedade deixa de estar mer- gico aí envolvidos. Por suas origens, no
gulhada. Pelo contrário, na medida em grego, o termo paideia está, sem dúvi-
que o exame e a deliberação que carac- da, associado à juventude, mas também
terizam a democracia supõem o está intimamente ligado à noção de
questionamento do modo de ser da so- ‘formação’ – a ser entendida como pro-
ciedade, o que tratamos, então, por cesso geral e mais amplo de
‘educação’ concerne somente a um ‘hominização’, como atividade ‘social’
‘tipo’ bastante particular de coletivida- refletida, como ‘autotransformação’ cons-
des humanas, nas quais a ruptura – ciente e contínua, ou como patri-
sempre parcial, sempre provisória – em mônio ‘cultural’ que fornece assento
relação ao fechamento social foi tor- aos três outros. Pois, se o significado
nada possível. Na acepção que a aspi- de ‘pais’ é ‘criança’, o termo não de-
ração democrática lhe concede, a ‘edu- signa, no grego, nem aquele que sim-
cação’ é, pois, prática ‘deliberada’, sub- plesmente vem à vida (para o qual o
metida a permanente questionamento termo é teknon, ‘o engendrado’), nem

144
Educação A

aquele que deve ser meramente alimen- somente nela é possível viver inteira- C
tado e cuidado (que é dito trephô), como mente segundo o lógos. Mas é preciso
qualquer animal (Cassin, 2004, p. 200- atentar para o fato de que o termo lógos, D
201): somente ao filhote de homem se correntemente traduzido por ‘razão’,
aplica a exigência de um desenvolvimen- acaba, na atualidade, por ser contami-
E
to que vai bem além dos cuidados com nado pelos sentidos que desde a
F
o bem-estar físico e com a aptidão bio- Modernidade este termo vem receben-
lógica à adaptação. do. Para os gregos, o lógos é razão
G
A paideia está sempre, portanto, discursiva (Cassin, 1999) e deliberativa
associada ao ‘artifício’ que institui a (Castoriadis, 1997), pública H
vida humana e que somente a ele é (Aristóteles, Metafísica, 4) e comum
devida: para a tradição filosófica grega (Heráclito, fragmento 2). Este é o sen- I
– para Platão tanto quanto para tido da afirmação de que o homem é
Aristóteles – a paideia é o instrumento um animal político – literalmente, um N
para a plena realização daquilo que, no ‘animal da pólis’: como a razão não se
humano, lhe é próprio e o distingue de desenvolve espontaneamente no hu- O
todos os viventes: o lógos. E isso por- mano, é na pólis democrática que, fa-
que, diz Aristóteles, “ninguém possui zendo uso de sua razão, ele pode reali- P
o lógos desde o início, totalmente e de zar a plenitude sua humanidade, vivi-
uma vez por todas”: é preciso da no seio de uma comunidade de ação Q
desenvolvê-lo, e é esse o espaço deixa- e de deliberação. Mas o lógos também
do à ação humana. No entanto, para o supõe a dimensão ética inescapável: R
filósofo, a artificialidade do lógos nada enquanto os animais, vivendo ou não
tem de antinatural, mas é, ao contrá- em ‘sociedade’, respondem de forma S
rio, a própria “finalidade da natureza” instintiva às exigências do estrato na-
humana (Aristóteles, 1997, VII, 13, tural de sua existência – às necessida- T
1334 b 15). des funcionais de sobrevivência e de
Desenvolver o lógos é arrematar o reprodução, que levam tudo o que vive U
trabalho que a natureza, por si só, não a buscar o prazer e a fugir do sofri-
é capaz de levar a cabo. Eis porque a mento –, o humano, e somente ele
V
pólis democrática deve ser dita paideusis entre os viventes, tem a capacidade de
A
– não só educadora, mas constituin- deliberar sobre o que é ‘útil ou preju-
do-se, ela própria, a educação de que dicial’. Assim, o bem e o mal são obje-
A
necessitam os cidadãos: porque nela e to, não de apreensão imediata, mas de

145
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

julgamento, e, portanto, de instituição, gral dos cidadãos; estabeleceu também


não mais se apresentando como reali- o costume de debater abertamente os
dades naturais, e sim como objetos de diferentes projetos que a nova exigên-
uma criação específica. Por isso, a ra- cia suscitou. A Modernidade não só
zão que fornece sustentação à inven- retoma o princípio dessa ‘educação’
ção da política e da ética é dita, em gre- comum, como o realiza cabalmente, ao
go, logon didonai – a capacidade de dar criar uma instituição inteiramente
conta de e de prestar contas por seus dedicada a esse fim, a escola pública
pensamentos, palavras e atos (Valle, 1997), que passa a monopolizar
(Castoriadis, 1997). iniciativas e debates acerca da forma-
É a essa prática de discernimento ção dos cidadãos.
e deliberação que a paideia democrática Formalmente, insiste-se ainda que
visa. Paidéia, pois, como formação éti- o fim da ‘educação’, tal como propu-
ca, que, no universo grego, jamais se sera Aristóteles, é desenvolver os
separa da dimensão estética. Na pólis, a ‘germens de humanidade’ que a natu-
dedicação ao lógos implica que o amor reza depositou em cada ser humano e
à beleza e à sabedoria se transformou que espontaneamente não se perfazem.
em modos de vida: a afirmação é de Tanto quanto os antigos, os modernos
Péricles, um dos maiores líderes que fazem coincidir a hominização com o
a democracia grega conheceu desenvolvimento da ‘razão’; no entan-
(Tucídides, 1999, II, 40). to, o sentido que eles atribuem ao con-
ceito se restringe consideravelmente,
distanciando-se bastante daquele que
Modernidade Aristóteles fixara. Para começar, na
Modernidade, a razão marca, não mais
Assim como a Antigüidade, a uma experiência comum, mas o prin-
Modernidade foi um período em que cípio de uma individualidade.
o enorme interesse despertado pela Com Descartes e a partir daí re-
‘educação’ conduziu a uma intensa faz-se a relação entre lógos e ser, entre
redefinição das práticas e, por isso razão e humanidade – que passam a
mesmo, dos sentidos associados ao estar inteiramente ancorados no indi-
termo. A democracia antiga havia in- víduo e em sua experiência de si, em
ventado a exigência de uma ‘educação’ uma pura auto-referência (Descartes,
comum, voltada para a formação inte- 1990). O desenvolvimento da espécie

146
Educação A

depende do fato de que cada indiví- mação pública do fórum político para C
duo possa atingir “toda a perfeição de o âmbito dos especialistas. Do ponto
que seja capaz” (Kant, 1996): são es- de vista teórico, tratava-se, segundo D
sas as bases sobre as quais se apóia o parece, de libertar a reflexão educacio-
estabelecimento de um sistema de ‘edu- nal do duvidoso terreno ‘metafísico’,
E
cação’ pública caracterizado por forte para, já sob a denominação de ‘peda-
F
diferenciação, tal como apenas Platão gogia’, confiá-la aos cuidados da ciên-
havia ousado sugerir, e relacionado ao cia nascente, supostamente autônoma
G
projeto de uma sociedade altamente e antidogmática (Cambi, 1999).
hierarquizada (Rancière, 2002). “Não Do ponto de vista prático, a insti- H
podemos, nem devemos”, diz-nos tuição da escola pública seguiu, em
Durkheim, “nos dedicar, todos, ao muitos países, como no caso do Bra- I
mesmo gênero de vida; temos, segun- sil, as características do modelo origi-
do nossas aptidões, diferentes funções nal francês: centralismo estatal, criação N
a preencher, e será preciso que nos de corpo especializado de profissionais,
coloquemos em harmonia com o tra- crescente ênfase na diferenciação dos O
balho, que nos incumbe” (Durkheim, objetivos e níveis de ensino. Essas ca-
1952, p. 29). racterísticas acabariam por implicar em P
O argumento organicista serve, uma drástica atenuação da dimensão
desse modo, a duas definições comple- política que, no projeto original da es- Q
mentares da ‘educação’. Na versão con- cola pública, fora a principal dimen-
servadora, ela é descrita como traba- são reconhecida à ‘educação’ comum. R
lho espontâneo de transmissão, de ge- Estabelecido pelo projeto de domínio
ração em geração, da cultura instituí- sobre as disposições naturais, sobre S
da; na versão ‘moderna’, mais propria- seus sentidos, psicologia e paixões, o
mente adaptada aos projetos liberais, sujeito cognoscente adquire, por força T
ela ganha porém o status de tarefa du- do culto à racionalidade, a dignidade
plamente e, cada vez mais, especializa- de conceito abstrato e, não obstante, U
da: porque visa a produzir e a legiti- de tipo antropológico central na edu-
mar as diferenciações sociais e cação: e, em que pese a aparente valo-
V
ocupacionais sob as quais o desenvol- rização do substrato empírico da inte-
A
vimento capitalista se apóia e porque, ligência humana, por parte de tantas
para fazê-lo, desloca a formulação, o teorias em voga durante os séculos XIX
A
debate e a execução das ações de for- e XX, é dessa forma que ele se impõe,

147
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

não apenas na figura do aluno a ser for- as exigências de construção das socie-
mado, mas também do professor capaz dades modernas, que levam à criação
de fazê-lo. Mas esse modelo que a da escola e à sua adoção como modelo
Modernidade legou ao campo educaci- universal da prática de ‘educação’ pú-
onal não é obra solitária de teóricos: é blica e, por outro, a sistemática racio-
produto de um mundo que não apenas nalização dos sujeitos da ação escolar,
se quer desencantado, mas inteiramen- aos poucos inteiramente reduzidos à
te voltado para o progresso material, em sua dimensão cognitiva.
nome do qual os indivíduos são cha- Em primeiro lugar, essa relação
mados a abdicar da vida pública – da pode ser justificada pelo fato de que,
‘liberdade dos antigos’. chamada para monopolizar o grosso
Arendt (1987) analisou as conse- das iniciativas educacionais modernas,
qüências do desaparecimento, no mun- a escola pública é uma das primeiras
do moderno, das esferas privada e pú- manifestações da Modernidade, fazen-
blica, anteriormente constitutivas da do-se, pois, legitimamente tributária
existência humana: o estabelecimento, das expectativas, dos projetos, dos mi-
por um lado, de uma ‘privaticidade’ tos e das obsessões que passam a mar-
esvaziada e muda e, por outro, de uma car o período. Porém, é preciso convir
prática social que, não mais permitin- que na medida em que realiza a con-
do a experiência da política da versão da complexa tarefa de forma-
pluralidade e da singularização, se re- ção humana à sua expressão objetiva e
duz a comportamento estereotipado. racionalizável, propondo os termos a
Nessa perspectiva, caberia ainda as- partir dos quais os objetivos da ‘edu-
sociar a construção do sujeito moder- cação’ finalmente podem ser, como se
no à emergência do ideal ‘político’ de diria mais tarde, opera-cionalizáveis, a
uniformização das condutas, pronta- redução cognitivista se torna a verda-
mente retraduzido em termos educa- deira conditio per quam da escola moder-
cionais na tarefa de modelagem das na. Ela é, assim, instrumento essencial
subjetividades modernas, que coube, para a legitimação da atividade dos es-
desde os primeiros tempos, a essa pecialistas, que, por meio da adminis-
outra criação da Modernidade – a es- tração racional, tanto quanto da
cola pública. teorização da ‘educação’, pretendem
Pode-se, assim, estabelecer uma legislar (de cima e de fora) sobre a prá-
relação nada casual entre, por um lado, tica escolar, convertendo-a, e aos tipos

148
Educação A

antropológicos a ela associados, em Atualidade C


objetos amplamente determináveis e
deter minados pelas disposições O recrudescimento atual do
D
normativas. cognitivismo – que corresponde ao
A perspectiva histórica talvez aju-
E
desinvestimento do caráter político da
de a compreender o renitente apego ‘educação’ pública, à renovação do
F
que a teoria pedagógica, tanto quanto mito do especialista, ao esvaziamento
o discurso oficial sobre a ‘educação’ até dos espaços de construção coletiva e, G
hoje demonstram pela redução mesmo, à valorização da iniciativa pri-
cognitivista e seus instrumentos de pre- vada como alternativa para a respon- H
dileção: os documentos legais, de ca- sabilidade pública pela ‘educação’ – não
ráter técnico-normativo e eternamen- pode ser dado como mera fatalidade I
te condenados pela contradição entre que apenas prolonga as características
as ilusões que entretêm quanto a seu desde sempre identificáveis no mode- N
poder instituinte e as evidências de sua lo original da ‘educação’ escolar. O
ineficácia, a desdobrar seus neologis- cognitivismo é ainda hoje uma cons- O
mos er uditos em uma profusão trução social: no entanto, diferente-
infindável de explicitações, comentá- mente do passado, essa construção não P
rios, estudos, manuais de aplicação; a mais se apóia em uma árdua e consis-
transposição curricular universal – pela tente elaboração antropológica, mas, Q
qual a formação ética, a construção das paradoxalmente, em sua ausência. A
subjetividades, o treinamento das ha- superficialidade das concepções de ho- R
bilidades de socialização, a aquisição de mem, de aluno e de professor que pre-
sensibilidades, afetos e gostos especí- sidem o discurso educacional acompa- S
ficos se fazem objetos de uma abstra- nha o empobrecimento da vida social e
ção destinada, inicialmente, a instruir a ‘escalada da insignificância’ em que T
o professor e, em seguida, à aplicação mergulhou a reflexão em nossas socie-
prática; as grades avaliativas, estatísti- dades. Na ‘educação’, mas não só aí, ela
U
cas e testes objetivos que, alternando- contribui para manter vivo o mito da
se à ‘subjetividade’ dos conceitos e ca-
V
atuação especializada do legislador, do
tegorias teóricos, procedem ao administrador e do teórico, em substi-
A
ordenamento de toda atividade esco- tuição às incertezas da construção polí-
lar segundo o princípio da instrução, tica, da deliberação coletiva, da iniciati-
A
que se faz, por esses meios, verificável. va empírica e singular.

149
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para a reflexão educacional, duas CASSIN, B. Aristóteles e o Lógos: contos da


fenomenologia comum. São Paulo: Loyola,
questões são ainda hoje essenciais, pois
1999.
da capacidade social de criação de res-
CASSIN, B. “Paideia”, “cultura”,
postas satisfatórias parece depender a
“Bildung”: nature et culture. In:
própria democracia: como formar, no Vocabulaire Européen des Philosophes. Paris:
seio de uma sociedade heterônoma, o Seuil, 2004, p. 200-201.
cidadão autônomo; e como fazer para CASTORIADIS, C. A pólis grega e a
superar, ainda aqui, a irresistível tendên- criação da democracia. In:
cia que leva as sociedades a sacralizar CASTORIADIS, C. Encruzilhadas do
Labirinto II. Domínios do Homem. Rio de
alguns valores específicos, realizando e Janeiro: Paz e Terra, 1987.
legitimando a exclusão não só de ou-
CASTORIADIS, C. Encruzilhadas do
tros grupos sociais e valores, mas da Labirinto V. Feito e a ser feito. Rio de
própria autocriação da autonomia? Janeiro: DP&A, 1997, p. 15 e seg. (O
vivente existe para si. Ele cria seu mundo
próprio e nada existe para ele (a não ser
como catástrofe) que não entre neste
Para saber mais: mundo segundo a organização deste
mundo)
ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; DESCARTES, R. Meditações Metafísicas.
HERÁCLITO. Os Pensadores Originários. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
3.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
DURKHEIM, É. Educação e Sociologia.
ARENDT, H. La crise de l’éducation. São Paulo: Melhoramentos, 1952.
In: ARENDT, H. La Crise de la Culture.
Paris: Gallimard, 1972. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem
grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
ARENDT, H. A Condição Humana. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1987. KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba:
Unimep, 1996.
ARISTÒTELES. Metafísica 4. Ética a
Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, RANCIÉRE, J. O Mestre Ignorante: cinco
1984. lições sobre emancipação intelectual. Tradução
de Lilian do Valle. Belo Horizonte:
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Autêntica, 2002. (Série Educação,
Martins Fontes, 1997. Experiência e Sentido)
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 1, TUCÍDIDES. História da Guerra do
1103, 10-17. São Paulo: Martin Claret, Peloponeso. Tradução de Mário da Gama
2000. Kury. Brasília: Editora da UnB, 1999.
CAMBI, F. História da Pedagogia. São VALLE, L. do. A Escola Imaginária. Rio
Paulo: Unesp, 1999. de Janeiro: DP&A, 1997.

150
A

C
EDUCAÇÃO CORPORATIVA
D
Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos
Nayla Cristine Ferreira Ribeiro
E

F
A Educação Corporativa consis- em sistemas interligados, e de assumir
a responsabilidade no grupo de traba-
G
te em um projeto de formação desen-
volvido pelas empresas, que tem como lho” (Markert 2000, apud Quartiero e
H
objetivo “institucionalizar uma cultu- Cerny, 2005, p. 28).
ra de aprendizagem contínua, propor- A Educação Corporativa se justi-
I
cionando a aquisição de novas com- fica, segundo a literatura, pela ‘incapa-
petências vinculadas às estratégias em- cidade’ do Estado em fornecer para o N
presariais” (Quartiero e Cerny, 2005, mercado mão-de-obra adequada. Des-
p. 24). sa forma, as organizações chamam para O
Segundo Jeanne Meister (1999), a si essa responsabilidade, defendendo
Educação Corporativa é um “guarda- o deslocamento do papel do Estado P
chuva estratégico para desenvolver e para o empresariado na direção de pro-
educar funcionários, clientes, fornece- jetos educacionais – Teoria do Capital Q
dores e comunidade, a fim de cumprir Intelectual. “As empresas (...) ao invés
as estratégias da organização” (p. 35). de esperarem que as escolas tornem R
Este fenômeno em crescente ex- seus currículos mais relevantes para a
pansão tem como sustentação a cha- realidade empresarial, resolveram per- S
mada ‘sociedade do conhecimento’, correr o caminho inverso e trouxeram
“cujo paradigma é a capacidade de a escola para dentro da empresa” T
transformação (...) do indivíduo social (Meister, 1999, p. 23).
por meio do conhecimento” Esse modelo educativo oferecido U
(Managão, 2003, p. 9). Um ‘novo tra- pelas empresas abrange várias modali-
balhador’ é exigido nesse contexto, que dades de ensino, tais como: cursos téc- V
enfatiza as ‘competências’ segundo um nicos (inglês, informática, etc.), educa-
“comportamento independente na so- ção básica (ensinos fundamental e mé- A
lução de problemas, a capacidade de dio), pós-graduação lato sensu, entre
outros. Ele emerge na década de 1950
A
trabalhar em grupo, de pensar e agir

151
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

nos Estados Unidos, a partir da crítica logia da competição para o mercado


ao tradicional modelo de Treinamento globalizado. Esse modelo educacional
e Desenvolvimento (T&D) das empre- assumido pelas empresas surgiu “no
sas, considerado então obsoleto para auge do Programa Brasileiro de Quali-
os padrões do ‘novo modelo produti- dade e Produtividade – PBQP”
vo’ – a acumulação flexível: (Martins, 2004, p. 10).

(...) as características de um setor de


Treinamento e Desenvolvimento
padrão se tornaram tão desgasta-
Características da Educação
das que melhorias ou mesmo uma Corporativa
reengenharia mais forte não seriam
suficientes para adequá-lo às no- Espaço físico – Segundo Martins
vas necessidades de educação no
espaço das organizações (Quartie-
(2004), as unidades de Educação
ro e Cerny, 2005, p. 34). Corporativa têm o espaço físico mais
como um conceito do que uma reali-
Naquele momento as empresas
dade. As estratégias pedagógicas po-
investiam nessa modalidade com o
dem ocorrer por meio da educação
objetivo de ensinar aos trabalhadores
presencial, à distância ou
‘o como fazer’. As empresas inicial-
semipresencial. A modalidade à distân-
mente tinham como foco “desenvol-
cia proporciona um aprendizado por
ver qualificações isoladas, para a cria-
meio de um ambiente virtual. Há ins-
ção de uma cultura de aprendizagem
tituições que atuam apenas em espa-
contínua, em que os funcionários
ços virtuais, por intermédio da moda-
(aprendessem) uns com os outros e
lidade da Educação à Distância – EAD
(compartilhassem as) inovações e me-
– ou o e-learning – aprendizado eletrô-
lhores práticas com o objetivo de so-
nico –, propiciando maior flexibilida-
lucionar problemas empresariais”
de do treinamento, uma vez que o alu-
(Meister, 1999, p. 21).
no tem “mais liberdade para escolher
No Brasil, a Educação o local e a hora para aprender, (além
Corporativa emerge na década de 1990 de proporcionar) a redução do custo”
com a política neoliberal implementada (Blois e Melca, 2005, p. 59). Existem
no então governo Fernando Collor de instituições que contam com espaços
Mello, no quadro de abertura econô- físicos próprios, direcionados aos trei-
mica do país que impulsionou a ideo- namentos dos seus funcionários, e

152
Educação Corporativa A

eventualmente, utilizam espaços aca- tes como forma de “agregar valor à C


dêmicos ou hotéis. cadeia produtiva” (Martins, 2004,
As novas tecnologias - As no- p. 44). A utilização dos gerentes D
vas tecnologias educacionais tornaram- traz um duplo benefício ao conhe-
se um ganho para a infra-estrutura edu- cimento organizacional:
E
cacional viabilizada pelas empresas.
(...) receber gerentes (...) não ape-
F
Através da Educação à Distância a
“qualificação dos funcionários é reali- nas para ensinar os conceitos que
utilizam todos os dias na sua vida G
zada em um tempo menor e com cus-
profissional, mas também para ade-
tos reduzidos, salientando que a eco- quar esses conceitos à realidade dos H
nomia de tempo pode chegar a 50%, e [‘colaboradores’]. ... (Além), das
vantagens econômicas. Em vez de
de custo a 60%, em relação aos cursos
contratar facilitadores profissionais,
I
presenciais” (Quartiero e Cerny, 2005,
(usa-se) a própria força de trabalho
p. 37). Usando-se as ferramentas
(Meister, 1999, p. 22). N
tecnológicas, o trabalhador pode
aprender por meio de videocon- O
Certificação - A maior dificulda-
ferências, de cursos ministrados pela
de encontrada pelas empresas está na
Internet, ou até mesmo pela Intranet da P
empresa. Nesse contexto, não existe certificação dos cursos de educação
mais a necessidade do trabalhador au- formal. Somente instituições acadêmi- Q
sentar-se para fazer a capacitação, uma cas credenciadas pelo Ministério da
vez que o conhecimento ‘vai a ele’. Educação (MEC) ou secretarias de R
Público-alvo – Pretende atender educação (no caso da Educação Bási-
aos ‘colaboradores internos’ – os fun- ca) podem emitir diplomas. A estraté- S
cionários –, ‘os colaboradores exter- gia encontrada pelas empresas foi rea-
nos’ – os familiares dos funcionários, lizar parcerias com as ‘Universidades T
fornecedores, clientes e a comunidade Tradicionais’ – nomenclatura pela qual
em geral que são atendidos, principal- o mundo corporativo denomina as U
mente, por intermédio das ações de Universidades Acadêmicas. Essas par-
responsabilidade social. cerias podem ser para validar a V
Corpo docente – Cerca de 70% certificação dos cursos, como também
para formatar um curso de acordo com
A
dos docentes são os próprios gerentes
e executivos das instituições a encomenda da empresa. Existem
A
corporativas, enfatiza-se a atuação des- parcerias das empresas tanto com es-

153
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

colas e universidades públicas quanto produção: implicações para uma nova


privadas. didática na formação profissional.
Educação e Sociedade. Campinas, n.72, ago.,
Um modelo de educação profis-
p. 177-196, 2000.
sional pautado pelo mercado e tendo
como principal finalidade a dissemi- MARTINS, H. G. Estudos da Trajetória
das Universidades Brasileiras, 2004. Tese
nação da cultura organizacional e o
de Doutorado, Rio de Janeiro:
atendimento do plano estratégico da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
empresa, não atende à necessidade so- COPPE.
cial de um projeto de formação huma-
MEISTER, J. C. Educação corporativa. São
na comprometido com a construção Paulo: Makron Books, 1999.
de justiça social e a igualdade.
QUARTIERO, E. M.; CERNY, R. Z.
Universidade Corporativa: uma nova
face da relação entre mundo do trabalho
e mundo da educação. In:
Para saber mais: QUARTIERO, E. M.; BIANCHETTI,
L. (Orgs.). Educação corporativa: mundo do
BLOIS, M.; MELCA, F. Educação trabalho e do conhecimento: aproximações. São
corporativa: novas tecnologias na gestão do Paulo: Cortez, 2005.
conhecimento. Rio de Janeiro: Edições
Consultor, 2005. RAMOS, G. S. Um novo espaço de (con)formação
profissional: a Universidade Corporativa da
EBOLI, M. Educação Corporativa no Brasil:
Companhia Vale do Rio Doce - VALER e a
Mitos e Verdades. São Paulo: Editora
legitimação da apropriação da subjetividade do
Gente, 2004.
trabalhador. Dissertação de Mestrado, Rio de
GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz/Instituto
Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Oswaldo Cruz, 2007.
Civilização Brasileira, 1991.
SANTOS, A. F. T. dos. Teoria do capital
GRAMSCI, A. Escritos Políticos. Rio de intelectual e teoria do capital humano:
Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1. 2004.
Estado, capital e trabalho na política
MANAGÃO, K. C. Z. Universidade educacional em dois momentos do
Cor porativa: um mecanismo do aparelho processo de acumulação. In: Associação
ideológico educativo. Trabalho de Conclusão Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
de Curso (Mestrado em Educação – em Educação. Anais eletrônicos da 27a
Universidade Católica de Petrópolis) Reunião Anual. Caxambu: Minas Gerais,
Petrópolis, 2003. 2004. Disponível em: http://
MARKERT, W. Novos paradigmas do www.anped.org.br/reunioes/27/gt09/
conhecimento e modernos conceitos de t095.pdf Acesso em: 12 de fev. 2007.

154
Educação em Saúde A

SANTOS, A. F. T. et al. Formação de C


Trabalhadores no Modelo da
Educação Corporativa. In: ESCOLA D
POLITÉC-NICA DE SAÚDE
JOAQUIM VENÂNCIO (Org.).
Estudos de politecnia e saúde. v. 2. Rio de
E
Janeiro: EPSJV, p. 67-892007 .
                                          F

EDUCAÇÃO EM SAÚDE G

H
Márcia Valéria Morosini
Angélica Ferreira Fonseca I
Isabel Brasil Pereira
N
Inicialmente, deve-se localizar a Neste verbete, educação, saúde e
O
temática da educação em saúde como trabalho são compreendidos como
um campo de disputas de projetos práticas sociais que fazem parte do P
de sociedade e visões de mundo que modo de produção da existência hu-
se atualizam nas formas de conceber mana, precisando ser abordados his- Q
e organizar os discursos e as práticas toricamente como fenômenos consti-
relativas à educação no campo da tuintes - produtores, reprodutores ou R
saúde. Como nos lembra Cardoso de transformadores - das relações sociais.
Melo (2007), para se compreender as Nas sociedades ocidentais, tem S
concepções de educação em saúde é predominado a compreensão da edu-
necessário buscar entender as con- cação como um ato normativo, no qual T
cepções de educação, saúde e socie- a prescrição e a instrumentalização são
dade a elas subjacentes. De nossa as práticas dominantes. Essa forma de U
parte, acrescentamos, também, a ne- conceber a educação, baseada numa
cessidade de se compreender essas pretensa objetividade e neutralidade do V
concepções na interface com as con- conhecimento, produzido pela razão
cepções a respeito do trabalho em cientificamente fundada, guarda cor- A
saúde e suas relações com os sujei- respondência com uma compreensão
tos do trabalho educativo. da saúde como fenômeno objetivo e A

155
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

produto de relações causais imediata- Poderíamos situar o final do séc.


mente apreensíveis pela ciência XIX e o início do século XX como um
hegemônica no campo, a biologia. momento histórico importante na
A busca por uma objetivação das construção de concepções e práticas
ações humanas, fruto de um de educação e saúde que tiveram em
racionalismo de ímpeto controlador, sua base a Higiene, enquanto um cam-
tanto na educação quanto na saúde, po de conhecimentos que se articulam,
acaba contribuindo para um processo produzindo uma forma de conceber,
de objetivação dos próprios sujeitos explicar e intervir sobre os problemas
destas ações. Assim, o professor pode de saúde. Nesse momento histórico, a
reduzir-se a um transmissor das infor- Higiene está fortemente associada à
mações, e o aluno, um seu correspon- ideologia liberal, encontrando neste
dente, um mero receptor passivo das pensamento os seus fundamentos po-
informações educativas. Por sua vez, líticos. Destarte, a Higiene centrava-se
o profissional de saúde pode tornar-se nas responsabilidades individuais na
um operador de protocolos e condu- produção da saúde e construía formas
tas, e o ‘doente’, um corpo onde se dá de intervenção caracterizadas como a
a doença e, conseqüentemente, o ato prescrição de normas, voltadas para os
médico. Em geral, homens desempe- mais diferentes âmbitos da vida social
nhando um papel pré-defindo e (casa, escola, família, trabalho), que
apassivado nas relações professor-alu- deveriam ser incorporadas pelos indi-
no e profissional de saúde-doente. víduos como meio de conservar a saú-
Outros resultados não menos im- de. Arouca (2003), ressalta que a Higi-
portantes desse processo são, no caso ene acaba por reduzir à aplicação de
da educação, a adaptação dos medidas higiênicas a solução dos pro-
educandos à realidade social apresen- blemas de saúde, que se constituem a
tada como a ordem natural das coisas, partir das condições de existência.
como única forma de existência possí- É nesse período que a filosofia da
vel e racional; assim como, no caso do educação de John Dewey, formulada
processo saúde-doença, a compreen- em estreito diálogo com a psicologia
são deste como o percurso natural do experimental e com o evolucionismo
desenvolvimento da doença, seja esta biológico, sofre grande apropriação
compreendida como um fenômeno pelo pensamento e pelas práticas de
unicausal ou multicausal. educação para a saúde. Muitos elemen-

156
Educação em Saúde A

tos merecem ser destacados do pensa- Entretanto, numa perspectiva crí- C


mento filosófico de Dewey, mas é a tica, a educação parte da análise das
ênfase que este pensador atribui à pri- realidades sociais, buscando revelar as D
mazia das características dos indivídu- suas características e as relações que
os para o desenvolvimento do proces- as condicionam e determinam. Essa
E
so educativo e o fato de tomar a cons- perspectiva pode ater-se à explicação
F
trução de hábitos como um norte para das finalidades reprodutivistas dos
a educação que são claramente processos educativos ou trabalhar no
G
identificáveis no que denominamos âmbito das suas contradições, buscan-
como educação sanitária. do transformar estas finalidades, es- H
O desenvolvimento da educação tabelecendo como meta a construção
sanitária, a partir dos EUA, deu-se de de sujeitos e de projetos societários I
forma associada à saúde pública, ten- transformadores.
do sido instrumento das ações de pre- Da mesma forma, no campo da N
venção das doenças, caracterizando-se saúde, a compreensão do processo saú-
pela transmissão de conhecimento. de-doença como expressão das condi- O
Mesmo que realizada de forma ções objetivas de vida, isto é, como
massiva, como no caso das campanhas resultante das condições de “habitação, P
sanitárias no Brasil, a perspectiva não alimentação, educação, renda, meio
contemplava a dimensão histórico-so- ambiente, trabalho, transporte, empre- Q
cial do processo saúde-doença. go, lazer, liberdade, acesso e posse da
Cardoso de Melo (1976), no bojo terra e acesso a serviços de saúde” R
do movimento pela Reforma Sanitária (Brasil, 1986, p. 04) descortina a saúde
no Brasil, fez uma crítica severa aos e a doença como produções sociais, S
efeitos do distanciamento da saúde passíveis de ação e transformação, e
pública em relação ao social, afirman- aponta também para um plano coleti- T
do que “como o social não é conside- vo e, não somente individual de inter-
rado na prática da saúde pública, se- venção. U
não em perspectiva restrita, a educa- Essa forma de conceber a saúde
ção passa a ser uma atividade paralela, tem sido caracterizada como um ‘con-
V
tendo como finalidade auxiliar a ceito ampliado’, pois não reduz a saú-
A
efetivação dos objetivos eminentemen- de à ausência de doença, promovendo
te técnicos dos programas de saúde a idéia de que uma situação de vida
A
pública” (p. 13). saudável não se resolve somente com

157
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

a garantia do acesso aos serviços de do funcionado, muitas vezes, como bra-


saúde – o que também é fundamental ços do controle estatal sobre os indiví-
–, mas depende, sobretudo, da garan- duos e as relações sociais.
tia de condições de vida dignas que, Stotz (1993), ao analisar os dife-
em conjunto, podem proporcionar a rentes enfoques no campo da educa-
situação de saúde. Nesse sentido, são ção e saúde, coloca em evidência a pre-
indissociáveis o conceito de saúde e a dominância histórica do padrão médi-
noção de direito social. co na forma de conceber e organizar
Na interface da educação e da as atividades conhecidas pelo nome de
saúde, constituída com base no pensa- educação sanitária. Esse padrão, que
mento crítico sobre a realidade, torna- chamaremos de enfoque ou modelo
se possível pensar educação em saúde biomédico, tornou-se alvo de intensas
como formas do homem reunir e dis- críticas, a partir da crise do sistema ca-
por recursos para intervir e transfor- pitalista iniciada ao final da década de
mar as condições objetivas, visando a 60. Foram denunciadas, principalmen-
alcançar a saúde como um direito so- te, a incapacidade do modelo
cialmente conquistado, a partir da atu- biomédico de responder às necessida-
ação individual e coletiva de sujeitos des de melhoria das condições de saú-
político-sociais. de da população; a medicalização dos
Quanto ao trabalho em saúde, a problemas de caráter socioeconô-
forma histórica hegemônica por ele as- micos; a iatrogenia; e o caráter cor-
sumida estruturou-se a partir da porativo da atuação dos profissionais.
biomedicina, organizando o processo O autor relaciona as críticas dirigidas
de trabalho de forma médico-centrada, ao modelo biomédico às críticas feitas
caracterizando-se pela hierarquização, aos paradigmas do cientificismo, às
reproduzindo a divisão intelectual e idéias de neutralidade e atemporalidade
social do trabalho e do saber em saúde. da ciência concebida como universal.
Dessa forma, a educação em saúde, pro- Nessa perspectiva histórica, Stotz
duzida no âmbito dos serviços de saú- localiza as mudanças ocorridas na dé-
de, esteve muito subordinada a esse cada de 70, quando o Estado capitalis-
modelo, assim como, as práticas de edu- ta incorporou parte das propostas for-
cação sanitária, dirigidas à sociedade em muladas pelos movimentos críticos na
geral e suas instituições, reproduziram área da saúde, mas o fez segundo seus
em larga escala o poder biomédico, ten- objetivos de racionalização de custos.

158
Educação em Saúde A

Esse mesmo autor, apoiado no vo, ao sujeito da ação, ao âmbito da C


trabalho de Tones (1987, apud Stotz, ação, ao princípio orientador, à estra-
1993), nos auxilia também a compre- tégia e ao pressuposto de eficácia. A D
ender as diferentes concepções que se seguir, reproduzimos o quadro no qual
constituíram, mais recentemente, nas essas concepções são sistematizadas
E
formas de abordar a educação e saú- segundo esses critérios:
F
de, definindo-as quanto ao seu objeti-

H
Quadro 1
I

S
Fonte: Stotz, 1993. T

159
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Em relação aos critérios analisa- higienismo, que ao responsabilizar o


dos, pode-se notar que o papel atribu- indivíduo pela reversão da sua dinâmi-
ído ao indivíduo e ao social varia entre ca de adoecimento, acabou por
essas concepções. Talvez seja em rela- culpabilizá-lo, esvaziando a compreen-
ção ao peso relativo atribuído a esses são da dimensão social do processo
pólos (indivíduo e sociedade) que se saúde/doença.
possa melhor discriminar os projetos No movimento constante em de-
e as ações educativas desenvolvidas fesa do Sistema Único de Saúde (SUS)
segundo essas concepções. Acrescen- como projeto de um sistema universal,
tamos também a dimensão do Estado público, equânime, integral e democráti-
e o papel a ele atribuído na solução, na co, encontra-se a necessidade de se bus-
prevenção e na recuperação dos pro- car uma concepção da relação educação
cessos de saúde-doença, assim como, e saúde que se configura como resulta-
no desenvolvimento de projetos do da ação política de indivíduos e da
educativos no campo da saúde. coletividade, com base no entendimen-
Atualmente, considerando a im- to da saúde e da educação em suas múl-
portância adquirida pelo projeto de tiplas dimensões: social, ética, política,
promoção da saúde, que busca cultural e científica.
capilarizar-se em várias dimensões da Essa construção passa necessaria-
vida social (família, escola, comunida- mente pela redefinição do processo de
de) e individual (cuidados com o cor- trabalho em saúde e das atribuições e res-
po, desenvolvimento de hábitos sau- ponsabilidades entre os trabalhadores,
dáveis), a discussão sobre as dimensões assim como, pela transformação do pa-
individuais e coletivas da saúde/doen- pel desempenhado por estes trabalhado-
ça torna-se oportuna e particularmen- res nos encontros com a população. Com-
te importante. preendendo a potencialidade educativa
O modelo da promoção, no qual dos vários atos promovidos nas ações e
a educação em saúde se apresenta nos serviços de saúde, pode-se compre-
como um dos seus eixos de sustenta- ender todos os trabalhadores da saúde
ção, vê-se diante do desafio de não re- como educadores, e estes, junto com a
produzir, a partir da incorporação ins- população atendida, sujeitos do processo
trumental da categoria de risco e da de produção dos cuidados em saúde.
ênfase na mudança de comportamen- A categoria práxis tem centralidade
to, a mesma redução operada pelo nessa perspectiva, uma vez que estabe-

160
Educação em Saúde A

lece uma relação de continuidade e Nesse sentido, não cabem relações ver- C
complementaridade entre a teoria e a ticais entre educador e educando, ou a
prática, compreendendo o conheci- transferência de conhecimentos e a
D
mento e as técnicas como uma pro- normatização de hábitos, que marca-
dução social, historicamente constitu-
E
ram o pensamento hegemônico da
ídos e implicados entre si, não-neu- educação sanitária no século passado
F
tros, isto é, orientados por um proje- e que ainda hoje estão presentes nas
to societário transformador. Nesse práticas educativas em saúde.
G
sentido, os sujeitos da ação-reflexão
não são redutíveis a objeto e não são Como campo de disputas, a edu- H
considerados senão nas suas várias di- cação em saúde é permeada por essas
mensões, como sujeitos históricos, várias concepções que se enfrentam, I
políticos, sociais. ainda hoje, nas práticas dos diversos
O potencial da educação como trabalhadores da saúde que realizam o N
processo emancipatório, na interface SUS. Em certa medida, cumpre refor-
com os movimentos sociais, tem na ca- çar que não são somente perspectivas O
tegoria de práxis social, criadora/ ou correntes educacionais ou sanitári-
transformadora da realidade, um aspec- as que se defrontam, mas formas de con- P
to central que está presente nas teses ceber os homens, a relação entre estes,
que permeiam o pensamento de Paulo as formas de organizar a sociedade e Q
Freire. Esse pensador exerceu forte in- partilhar os bens por ela produzidos.
fluência no Movimento da Educação R
Popular em Saúde, na América Latina
e, particularmente, no Brasil. S
São marcas da pedagogia freireana
a concepção de processo ensino-apren- Para saber mais: T
dizagem como uma troca, como um
processo dialógico entre educador e AROUCA, S. O Dilema Preventivista. U
Contribuição para a compreensão e crítica
educando, que se dá numa realidade
vivida. O conhecimento advém da re-
da medicina pr eventiva. São Paulo: V
Editora Unesp; Rio de Janeiro: Editora
flexão crítica sobre essa realidade, cons- Fiocruz, 2003.
A
truindo-se, ao mesmo tempo em que
BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório
o homem vai se constituindo e se da VIII Conferência Nacional de Saúde. A
posicionando como um ser histórico. Brasília, 1986.

161
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

CANGUILHEM, G. O normal e o COSTA, J. F. Ordem Médica e Norma


patológico. Rio de Janeiro: Forense Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Editora, 1990.
FOUCAULT, M. A Microfísica do Poder.
CARDOSO DE MELO, J. A. Educação Rio de Janeiro: Graal, 1979.
e as Práticas de Saúde. In: ESCOLA
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia:
POLITÉCNICA DE SAÚDE
saberes necessários à prática educativa. São
JOAQUIM VENÂNCIO (Org.).
Paulo: Paz e Terra, 1996.
Trabalho, Educação e Saúde: reflexões críticas
de Joaquim Alberto Cardoso de Melo. Rio de NUNES, E.; D. GARCIA, J. C. (Orgs.).
Janeiro: EPSJV, 2007. Pensamento Social na América Latina. São
Paulo: Cortez, 1989.
CARDOSO DE MELO, J. A. Educação
Sanitária: uma visão crítica. Cadernos do STOTZ, E. N. Enfoques sobre educação
Cedes. São Paulo: Cortez Editora- e saúde. In: VALLA, V.; STOTZ, E. N.
Autores Associados, n. 4, p. 28-43, 1981. (Orgs.). Participação Popular, Educação e
Saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro:
____________. A Prática da Saúde e a
Relume-Dumará, p.11-22, 1993.
Educação. Saúde em Debate, n. 1, p. 13-
14, out/nov. 1976.
                                         
EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE

Ricardo Burg Ceccim


Alcindo Antônio Ferla

A ‘educação permanente em saú- Como ‘prática de ensino-aprendi-


zagem’ significa a produção de conheci-
de’ precisa ser entendida, ao mesmo
mentos no cotidiano das instituições de
tempo, como uma ‘prática de ensino-
saúde, a partir da realidade vivida pelos
aprendizagem’ e como uma ‘política de
atores envolvidos, tendo os problemas
educação na saúde’. Ela se parece com enfrentados no dia-a-dia do trabalho e
muitas vertentes brasileiras da educa- as experiências desses atores como base
ção popular em saúde e compartilha de interrogação e mudança. A ‘educa-
muitos de seus conceitos, mas enquan- ção permanente em saúde’ se apóia no
to a educação popular tem em vista a conceito de ‘ensino problematizador’ (in-
cidadania, a educação permanente tem serido de maneira crítica na realidade e
em vista o trabalho. sem superioridade do educador em rela-

162
Educação Permanente em Saúde A

ção ao educando) e de ‘aprendizagem sig- saúde’ envolve a contribuição do ensi- C


nificativa’ (interessada nas experiências no à construção do Sistema Único de
anteriores e nas vivências pessoais dos Saúde (SUS). O SUS e a saúde coletiva D
alunos, desafiante do desejar aprender têm características profundamente bra-
mais), ou seja, ensino-aprendizagem sileiras, são invenções do Brasil, assim
E
embasado na produção de conhecimen- como a integralidade na condição de
F
tos que respondam a perguntas que per- diretriz do cuidado à saúde e a partici-
tencem ao universo de experiências e pação popular com papel de controle
G
vivências de quem aprende e que gerem social sobre o sistema de saúde são
novas perguntas sobre o ser e o atuar no marcadamente brasileiros. Por decor- H
mundo. É contrária ao ensino-aprendi- rência dessas particularidades, as polí-
zagem mecânico, quando os conheci- ticas de saúde e as diretrizes I
mentos são considerados em si, sem a curriculares nacionais para a formação
necessária conexão com o cotidiano, e dos profissionais da área buscam ino- N
os alunos se tornam meros escutadores var na proposição de articulações en-
e absorvedores do conhecimento do tre o ensino, o trabalho e a cidadania. O
outro. Portanto, apesar de parecer, em A ‘educação permanente em saú-
uma compreensão mais apressada, ape- de’ não expressa, portanto, uma opção P
nas um nome diferente ou uma designa- didático-pedagógica, expressa uma
ção da moda para justificar a formação opção político-pedagógica. A partir Q
contínua e o desenvolvimento continu- desse desafio político-pedagógico, a
ado dos trabalhadores, é um conceito ‘educação permanente em saúde’ foi R
forte e desafiante para pensar as ligações amplamente debatida pela sociedade
entre a educação e o trabalho em saúde, brasileira organizada em torno da S
para colocar em questão a relevância temática da saúde, tendo sido aprova-
social do ensino e as articulações da for- da na XII Conferência Nacional de T
mação com a mudança no conhecimen- Saúde e no Conselho Nacional de Saú-
to e no exercício profissional, trazendo, de (CNS) como política específica no U
junto dos saberes técnicos e científicos, interesse do sistema de saúde nacio-
as dimensões éticas da vida, do traba- nal, o que se pode constatar por meio
V
lho, do homem, da saúde, da educação da Resolução CNS n. 353/2003 e da
A
e das relações. Portaria MS/GM n. 198/2004. A ‘edu-
Como ‘política de educação na cação permanente em saúde’ tornou-
A
saúde’, a ‘educação permanente em se, dessa forma, a estratégia do SUS

163
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

para a formação e o desenvolvimento está errado, quer dizer que, para haver en-
de trabalhadores para a saúde. sino-aprendizagem, temos de entrar em
Essa política afirma: 1) a articula- um estado ativo de ‘perguntação’, cons-
ção entre ensino, trabalho e cidadania; tituindo uma espécie de tensão entre o
2) a vinculação entre formação, gestão que já se sabe e o que há por saber.
setorial, atenção à saúde e participação Uma condição indispensável para
social; 3) a construção da rede do SUS um aluno, trabalhador de saúde, gestor
como espaço de educação profissional; ou usuário do sistema de saúde mudar
4) o reconhecimento de bases ou incorporar novos elementos à sua
locorregionais como unidades políti- prática e aos seus conceitos é o des-
co-territoriais onde estruturas de en- conforto com a realidade naquilo que
sino e de serviços devem se encon- ela deixa a desejar de integralidade e
trar em ‘cooperação’ para a formula- de implicação com os usuários. A ne-
ção de estratégias para o ensino, cessidade de mudança, transformação
assim como para o crescimento da ges- ou crescimento vem da percepção de
tão setorial, a qualificação da organiza- que a maneira vigente de fazer ou de
ção da atenção em linhas de cuidado, o pensar alguma coisa está insatisfatória
fortalecimento do controle social e o in- ou insuficiente em dar conta dos desa-
vestimento na interse-torialidade. O eixo fios do trabalho em saúde. Esse des-
para formular, implementar e avaliar a conforto funciona como um
‘educação permanente em saúde’ deve ‘estranhamento’ da realidade, sentindo
ser o da integralidade e o da implicação que algo está em desacordo com as ne-
com os usuários. cessidades vividas ou percebidas pes-
Para a ‘educação permanente em soalmente, coletivamente ou
saúde’, não existe a educação de um institucionalmente.
ser que sabe para um ser que não sabe, Uma instituição se faz de pesso-
o que existe, como em qualquer edu- as, pessoas se fazem em coletivos e
cação crítica e transformadora, é a tro- ambos fazem a instituição. Todos e
ca e o intercâmbio, mas deve ocorrer cada um dos profissionais de saúde tra-
também o ‘estranhamento’ de saberes balhando no SUS, na atenção e na ges-
e a ‘desacomodação’ com os saberes e tão do sistema, têm idéias, conceitos e
as práticas que estejam vigentes em concepções acerca da saúde e da sua
cada lugar. Isto não quer dizer que produção; do sistema de saúde, de sua
aquilo que já sabemos ou já fazemos operação e do papel que cada profis-

164
Educação Permanente em Saúde A

sional e cada unidade deve cumprir na entornos de trabalho e atuação, esta- C


organização das práticas de saúde. É a belecendo tanto o contato emociona-
partir dessas concepções que cada pro- do com as informações como movi- D
fissional se integra às equipes ou agru- mentos de transformação da realida-
pamentos de profissionais em cada de. Enfatizamos novamente: será ‘edu-
E
ponto do sistema. É a partir dessas cação permanente em saúde’ o ato de
F
concepções, mediadas pela organiza- colocar o trabalho em análise, as práti-
ção dos serviços e do sistema, que cada cas cotidianas em análise, as articula-
G
profissional opera. ções formação-atenção-gestão-partici-
Para produzir mudanças de práti- pação em análise. Não é um processo H
cas de gestão e de atenção, é funda- didático-pedagógico, é um processo
mental dialogar com as práticas e con- político-pedagógico; não se trata de I
cepções vigentes, problematizá-las – conhecer mais e de maneira mais críti-
não em abstrato, mas no concreto do ca e consciente, trata-se de mudar o N
trabalho de cada equipe – e construir cotidiano do trabalho na saúde e de
novos pactos de convivência e práticas, colocar o cotidiano profissional em O
que aproximem o SUS da atenção inte- invenção viva (em equipe e com os
gral à saúde. Não bastam novas infor- usuários). P
mações, mesmo que preciosamente bem A escolha pela ‘educação perma-
comunicadas, senão para a mudança, nente em saúde’ é a escolha por novas Q
transformação ou crescimento. maneiras de realizar atividades, com
Porque queremos tanto que no- maior resolutividade, maior aceitação R
vas informações cheguem aos serviços, e muito maior compartilhamento en-
aos trabalhadores, aos usuários e aos tre os coletivos de trabalho, querendo S
gestores? Para esclarecê-los? Para a implicação profunda com os usuári-
torná-los mais cultos? Para torná-los os dos sistemas de saúde, com os co- T
mais letrados em ciência e tecnologias? letivos de formulação e implemen-
Se for assim, podemos apenas trans- tação do trabalho, e um processo de U
mitir conhecimento, mandar ler manu- desenvolvimento setorial por ‘encon-
ais e exercitar jogos de perguntas e res- tro’ com a população.
V
postas. A ‘educação permanente em É nesse sentido que, no Brasil, se
A
saúde’, entretanto, configura uma ‘pe- constituiu o conceito de ‘quadrilátero
dagogia em ato’, que deseja e opera da formação’: educação que associa o
A
pelo desenvolvimento de si e dos ensino como suas repercussões sobre

165
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

o trabalho, o sistema de saúde e a par- des não são dadas. Assim como as in-
ticipação social. É o debate e a proble- formações, as realidades são produzi-
matização que transformam a informa- das por nós mesmos, por nossa sensi-
ção em aprendizagem, e é a ‘educação bilidade diante dos dados e por nossa
permanente em saúde’ que operação com os dados de que dispo-
torna grupos de trabalho em coletivos mos ou de que vamos em busca. O
organizados de desenvolvimento de si segundo passo é organizar espaços in-
e de seus entornos de trabalho e atua- clusivos de debate e proble-matização
ção na saúde. das realidades, isto é, cotejar informa-
Para a ‘educação permanente em ções, cruzá-las, usá-las em interroga-
saúde’, a informação necessária é aque- ção umas às outras e não segregar e
la que se propõe como ocasião para excluir a priori ou ensimesmar-se em
aprendizagem, mas que também bus- territórios estreitos e inertes. O tercei-
ca ocasião de maior sensibilidade di- ro passo é organizar redes de intercâm-
ante de si, do trabalho, das pessoas, do bio para que informações nos cheguem
mundo e das realidades. Então, a me- e sejam transferidas, ou seja, estabele-
lhor informação não está no seu con- cer interface, intercessão e democracia
teúdo formal, mas naquilo de que é forte. O quarto passo é produzir as in-
portadora em potencial. Por exemplo: formações de valor local num valor
a nova informação gera inquietação, inventivo que não se furte às exigênci-
interroga a forma como estamos tra- as do trabalho em que estamos inseri-
balhando, coloca em dúvida a capaci- dos e à máxima interação afetiva com
dade de resposta coletiva da nossa uni- nossos usuários de ações de saúde.
dade de serviço? Se uma informação O ‘quadrilátero’ da ‘educação per-
nos impede de continuarmos a ser o manente em saúde’ é simples: análise e
mesmo que éramos, nos impede de ação relativa simultaneamente à forma-
deixar tudo apenas como está e ção, à atenção, à gestão e à participa-
tensiona nossas implicações com os ção para que o trabalho em saúde seja
usuários de nossas ações, ela desenca- lugar de atuação crítica, reflexiva,
deou ‘educação permanente em saúde’. propositiva, compromissada e tecnica-
A ‘educação permanente em saú- mente competente. Diferentemente
de’ pode ser um processo cada vez mais das noções programáticas de
coletivo e desafiador das realidades. O implementação de práticas previamen-
primeiro passo é aceitar que as realida- te selecionadas em que as informações

166
Educação Permanente em Saúde A

são empacotadas e despachadas por Para saber mais: C


entrega rápida às mentes racionalistas
dos alunos, trabalhadores e usuários, BRASIL/Ministério da Saúde. D
Secretaria de Gestão do Trabalho e da
as ações de ‘educação permanente’
desejam os corações pulsáteis dos alu-
Educação na Saúde. Departamento de E
Gestão da Educação na Saúde. A
nos, dos trabalhadores e dos usuários Educação Permanente Entra na Roda: pólos
F
para construir um sistema produtor de de educação permanente em saúde – conceitos
saúde (uma abrangência), e não um sis- e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério
da Saúde, 2005. G
tema prestador de assistência (um
estreitamento). Uma política de ‘edu- CARVALHO, Y. M. & CECCIM, R. B.
For mação e educação em saúde:
H
cação permanente em saúde’ congre-
aprendizados com a saúde coletiva. In:
ga, articula e coloca em roda diferen-
CAMPOS, G. W. S. et al. (Orgs.) Tratado I
tes atores, destinando a todos um lu- de Saúde Coletiva. São Paulo/Rio de
gar de protagonismo na condução de Janeiro: Hucitec/Fiocruz, 2006. N
sistemas locais de saúde. No Brasil, essa CECCIM, R. B. Educação
é a política atual do SUS para a educa- per manente em saúde: desaf io O
ção em saúde e, portanto, a diretriz para ambicioso e necessário. Interface -
os atores que atuam na área. comunicação, saúde, educação, 9(16): 161- P
178, set. 2004-fev., 2005.
Ao colocar o trabalho na saúde sob
as lentes da ‘educação permanente em CECCIM, R. B. Educação permanente Q
saúde’, a informação científica e em saúde: descentralização e
disseminação de capacidade pedagógica
tecnológica, a informação administrati- na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 10(4):
R
va setorial e a informação social e cul- 975-986, out.-dez., 2005a.
tural, entre outras, podem contribuir S
CECCIM, R. B. Onde se lê “recursos
para pôr em evidência os ‘encontros humanos da saúde”, leia-se “coletivos
rizomáticos’ que ocorrem entre ensino, organizados de produção da saúde”: T
trabalho, gestão e controle social em desafios para a educação. In:
saúde, carreando consigo o contato e a PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de U
(Orgs.) Construção Social da Demanda:
permeabilidade às redes sociais que tor-
nam os atos de saúde mais humanos e
direito à saúde, trabalho em equipe, participação V
e espaços públicos. Rio de Janeiro: Uerj/
de promoção da cidadania. IMS/Cepesc/Abrasco, 2005b.
A

167
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

CECCIM, R. B. & FEUERWERKER, Demanda: direito à saúde, trabalho em equipe,


L. C. M. O quadrilátero da formação participação e espaços públicos. Rio de
para a área da saúde: ensino, gestão, Janeiro: Uerj/IMS/Cepesc/Abrasco,
atenção e controle social. Physis – Revista 2005.
de Saúde Coletiva, 14(1): 41-66, 2004.
HADDAD, J.; ROSCHKE, M. A. &
CECCIM, R. B. & FERLA, A. A. Notas DAVINI, M. C. (Orgs.) Educación
cartográficas sobre a escuta e a escrita: Per manente de Personal de Salud.
contribuição à educação das práticas de Washington: OPS/OMS, 1994.
saúde. In: PINHEIRO, R. & MATTOS,
MERHY, E. E. Saúde: cartografia do
R. A. (Orgs.) Construção Social da
trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.


EDUCAÇÃO POLITÉCNICA

José Rodrigues

É consenso, entre os pesquisa- pectos específicos”, por outro lado, e


dores da área de trabalho e educação, “acima de tudo, está colocada organi-
que o conceito de ‘educação politécni- camente no contexto de uma crítica
ca’ foi esboçado inicialmente por Karl rigorosa das relações sociais”
Marx, em meados do século XIX. Em (Manacorda, 1991, p. 9).
outras palavras, ‘educação politécnica’ Dentre as obras em que Marx
pode ser vista como sinônimo de con- abordou a temática pedagógica, desta-
cepção marxista de educação. cam-se O Capital, particularmente no
Cabe esclarecer que, se é originá- capítulo XIII – A maquinaria e a indús-
ria de Marx a concepção de ‘educação tria moderna (Marx, 1994 –, A Ideolo-
politécnica’, o filósofo alemão jamais gia Alemã (Marx & Engels, 1987) e Crí-
escreveu um texto sistemático dedica- tica ao Programa de Gotha (Marx &
do especificamente à questão pedagó- Engels, s.d.).
gica. Como ensina Mario Alighiero Mas, em que consistiria a ‘educa-
Manacorda, em sua clássica obra, Marx ção politécnica’ para Marx? Sem pre-
e a Pedagogia Moderna, se, por um lado, tender esgotar a discussão, pois certa-
a “temática pedagógica é, de fato, tra- mente essa é uma questão bastante
tada de maneira ocasional em seus as- complexa, extrapolando os limites des-

168
Educação Politécnica A

te dicionário, pode-se, primeiramente, combinação de trabalho produtivo C


ilustrar o pensamento marxiano atra- pago com a educação intelectual, os
vés de uma das passagens mais conhe- exercícios corporais e a formação po- D
cidas de Karl Marx, retirada das Instru- litécnica elevará a classe operária aci-
ções aos Delegados do Conselho Central Pro- ma dos níveis das classes burguesa e E
visório da Associação Internacional dos Tra- aristocrática” (1983, p. 60).
F
balhadores, de 1868 (Marx & Engels, Nessas indicações, encontra-se o
1983, p. 60 – grifos do autor): “afirma- embrião fundamental do trabalho
como princípio educativo, que busca
G
mos que a sociedade não pode permitir que
na transformação radical da sociedade
pais e patrões empreguem, no trabalho, cri-
sua última finalidade. Nesse sentido, os
H
anças e adolescentes, a menos que se com-
principais vetores da concepção mar-
bine este trabalho produtivo com a
xista de educação são:
I
educação”.
1. Educação pública, gratuita, obriga-
E, continuando, o filósofo alemão
tória e única para todas as crianças e
N
deixa claro o que entende por educa-
jovens, de forma a romper com o
ção (1983, p. 60): monopólio por parte da burguesia da O
cultura, do conhecimento.
Por educação entendemos três coisas:
2. A combinação da educação (inclu- P
1. Educação intelectual. indo-se aí a educação intelectual,
corporal e tecnológica) com a pro- Q
2. Educação corporal, tal como a dução material com o propósito de
que se consegue com os exercícios superar o hiato historicamente pro-
de ginástica e militares. R
duzido entre trabalho manual
(execução, técnica) e trabalho inte-
3. Educação tecnológica, que reco-
lectual (concepção, ciência) e com S
lhe os princípios gerais e de caráter
isso proporcionar a todos uma com-
científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, ini-
preensão integral do processo pro- T
dutivo.
cia as crianças e os adolescentes no
manejo de ferramentas elementares 3. A formação omnilateral (isto é, mul- U
dos diversos ramos industriais. tilateral, integral) da personalida-de
Pode-se facilmente perceber a di-
de forma a tornar o ser humano ca- V
paz de produzir e fruir ciência,
reção de uma educação multilateral pre- arte, técnica.
conizada por Karl Marx; seguindo, o A
4. A integração recíproca da escola à
autor aponta a finalidade de sua pro- sociedade com o propósito de supe-
posta de ‘educação politécnica’: “Esta rar a estranhamento entre as práti-
A

169
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cas educativas e as demais práticas linha de trabalho que primava pela


sociais. opção de ‘ir às fontes’, buscando su-
No Brasil, essa proposta/concep- perar aquelas leituras simplificadoras,
ção de educação ficou relativamente la- típicas do marxismo vulgar. Saviani
tente até a década de 1980, quando foi entendia que estudar teoria da forma-
(re)introduzida no debate pedagógico ção humana era buscar apreender as
por Dermeval Saviani através do cur- concepções de homem, sociedade e
so de doutorado em educação na educação, em Marx e em Gramsci. Foi
Pontifícia Universidade Católica de São precisamente esse retorno ‘às fontes’,
Paulo (PUC-SP), notadamente a par- conduzido por Saviani, que propiciou
tir do estudo das concepções de Marx a base teórica fundamental ao estabe-
e de Antonio Gramsci. As obras de lecimento e posterior ampliação da dis-
Manacorda sobre o pensamento de cussão da concepção politécnica de
Marx e de Gramsci, sem dúvida, têm educação na década de 1980.
papel decisivo na apreensão da concep- Além do debate teórico, propria-
ção marxista de educação no Brasil. mente dito, cabe destacar que, em 1988‚
Primeiramente, as obras circularam em iniciou-se o então curso técnico de 2º
suas traduções espanholas, sendo mais grau da Escola Politécnica de Saúde Jo-
tarde vertidas para a língua portugue- aquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), na
sa (Manacorda, 1990, 1991). Cabe tam- perspectiva de
bém explicitar que podem ser encon- Pensar um projeto de educação ar-
tradas publicações brasileiras, anterio- ticulado com um projeto de socie-
res à década de 1980, que abordam a dade não excludente, pensar um
educação politécnica (como, por exem- ensino de segundo grau que se des-
vie da dualidade [educação prope-
plo, Lemme, 1955). Contudo, estas
dêutica X formação profissional],
obras não alcançaram maiores reper- pensar uma educação que tenha o
cussões no pensamento pedagógico ser humano como centro e não o
brasileiro. mercado [de trabalho]. (Malhão,
1990, p. 3)
Neste curso, Saviani buscava de-
senvolver uma crítica consistente ao No mesmo ano, promulgada a
especialismo, ao autoritarismo e ao Constituição em 1988, abriu-se o perí-
reprodutivismo em educação, assim odo dos debates acerca das chamadas
como ao marxismo vulgar. Desse ‘leis complementares’, que necessaria-
modo, o pesquisador desenvolveu uma mente decorreriam da nova Carta. Com

170
Educação Politécnica A

isso, a discussão em torno da Lei de ções genéricas e inconsistentes à C


Diretrizes e Bases da Educação Naci- politecnia (Saviani, 1997, 2003).
onal (LDB) irrompeu no país levando No plano específico das pesquisas D
consigo o debate da politecnia. e publicações que tratam prioritariamente
do tema politecnia, podem ser destaca-
E
Mais uma vez coube ao professor
Dermeval Saviani a iniciativa de produ- das as contribuições de Dermeval Saviani
F
zir um texto que, como ele mesmo afir- (1986, 1988a, 1988b, 1989, 2003),
mou, era ‘um início de conversa’ para a Gaudêncio Frigotto (1984, 1985, 1988,
G
formulação da nova LDB, onde se des- 1991), Acácia Kuenzer (1988, 1989, 1991,
tacam os conceitos de desenvolvimen- 1992), Lucília Machado (1989, 1990, H
to omnilateral e formação politécnica. 1991a, 1991b, 1992) e Rodrigues (1998,
Um deputado, apropriando-se do esbo- 2005, 2006). I
ço desenhado por Saviani, o transfor- Essa grande e diversificada pro-
mou no primeiro anteprojeto de LDB. dução intelectual, marcada pelo con- N
Com isso, tanto no texto “Contribui- texto e pela conjuntura brasileiros,
ção à elaboração da nova Lei de Dire- consubstanciou, sem dúvida, um de- O
trizes e Bases da Educação: um início bate específico sobre a concepção
de conversa”, de Dermeval Saviani marxista de educação. P
(1988a), quanto no anteprojeto apresen- Até hoje, existe uma polêmica que
tado pelo deputado Otávio Elísio (1988, gira em torno da denominação mais Q
p. 3), podia-se ler: adequada à concepção marxiana (e
marxista) de educação. Em vez de ‘edu- R
Art.35 A educação escolar de 2º
grau (...) tem por objetivo geral pro-
cação politécnica’, alguns autores op-
piciar aos adolescentes a formação tam pela designação educação S
politécnica necessária à compreensão tecnológica. Concordamos com a po-
teórica e prática dos fundamentos sição de Saviani (2003, p. 145-146), que T
científicos das múltiplas técnicas
assinala uma importante mudança no
utilizadas no processo produtivo.
discurso econômico e pedagógico da U
Não cabe aqui explicitar a trajetó- burguesia, no que tange à utilização dos
ria da LDB, aprovada em 1996, contu- termos ‘tecnologia’ e ‘politecnia’, sen-
V
do, é mister registrar a efetiva derrota do o primeiro definitivamente apropri-
que sofreu a proposta da concepção A
ado pelo discurso dominante: “Assim,
marxista de educação no curso dessa a concepção de politecnia foi preser-
trajetória, onde ficaram apenas men-
A
vada na tradição socialista, sendo uma

171
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

das maneiras de demarcar esta visão O segundo vetor do debate brasi-


educativa em relação àquela correspon- leiro sobre a ‘educação politécnica’ –
dente à concepção dominante” dimensão socialista – busca expor a
(Saviani, 2003, p. 146). profunda relação entre essa concepção
Em que pesem as diferentes pers- de formação humana e um projeto de
pectivas dos autores, grosso modo, a pro- construção de uma sociedade sem clas-
posta brasileira de ‘educação politéc- ses. Para autores brasileiros, no auge
nica’ pode ser caracterizada por três do debate da politecnia, seria o proje-
eixos fundamentais: dimensão infra- to socialista-revolucionário de uma
estrutural, dimensão socialista e dimen- nova sociedade que possibilitaria, por
são pedagógica. um lado, proporcionar unidade teóri-
A dimensão infra-estrutural da co-política à concepção politécnica de
concepção politécnica de educação educação e, por outro, impedir a sua
agrega os aspectos relacionados ao ‘naturalização’, isto é, impedir o equí-
mundo do trabalho, especificamente os voco de se entender que a formação
processos de trabalho sob a organiza- politécnica seria o caminho ‘natural’
ção capitalista de produção, e, conse- demandado pelo modo de produção ca-
qüentemente, a questão da qualifica- pitalista. Em outras palavras, a politecnia
ção profissional. A questão nodal era, – apoiada em sua dimensão socialista –
então, procurar esclarecer como as ino- representaria uma profunda ruptura
vações tecnológicas ‘implicariam’ a com o projeto de educação profissio-
politecnia, ou seja, em que medida as nal e, fundamentalmente, com o proje-
mudanças nos processos de trabalho to de formação humana postos pela so-
estariam contribuindo para a efetivação ciedade burguesa.
de uma formação politécnica. Enfim, Ora, como caminhar para uma
a concepção politécnica de educação progressiva explicitação do modus
propõe, através de sua dimensão infra- operandi de uma escola que se paute
estrutural, a identificação de estratégi- numa orientação politécnica, sem re-
as de formação humana, com base nos cair em proposições abstratas, isto é,
modernos processos de trabalho, que historicamente desenraizadas? Na
apontem para uma reapropriação do opinião dos autores em tela, através
domínio do trabalho, somente possí- do permanente estudo da dimensão
vel a partir das transformações infra-estrutural, além da consciência
tecnológicas. de que nenhum estudo ou pesquisa

172
Educação Politécnica A

poderá substituir a práxis educativa alismo real’ e da reestruturação capita- C


desenvolvida a partir do horizonte da lista mundial de cariz neoliberal, qual
politecnia. Ou seja, a construção de o atual lugar da concepção da ‘educa- D
uma concepção de ‘educação poli- ção politécnica’?
técnica’ precisaria, necessariamente, Ora, se concordarmos com a no-
E
estar embasada em práticas pedagó- tória formulação de Jean-Paul Sartre
F
gicas concretas que deveriam buscar – “o marxismo é a filosofia insuperá-
romper com a profissionalização es- vel do nosso tempo. Ele é insuperá-
G
treita, por um lado, e com uma edu- vel porque as circunstâncias que o en-
cação geral e propedêutica, livresca gendraram não foram superadas” –, H
e descolada do mundo do trabalho, então, somos obrigados a concluir que
por outro. enquanto houver uma educação I
Enfim, embora os autores não marcada pela divisão social do traba-
identificassem polivalência com lho, haverá inexoravelmente a neces- N
politecnia, posto que a polivalência re- sidade de uma concepção de ‘educa-
presentaria apenas um momento ne- ção politécnica’, isto é, marxista, que O
cessário à politecnia, ficava mais ou àquela se contraponha.
menos implícito que haveria margem P
para um acordo supraclassista em tor-
no do caráter ‘progressista’ da rees- Para saber mais: Q
truturação produtiva. Em poucas
ELÍSIO. O. Projeto de Lei n. 1.258 de
palavras, a superação do padrão 1988. (1a versão). p. 3.
R
taylorista-fordista de organização do
trabalho e de formação profissional
FRIGOTTO, G. A Produtividade da Escola
S
Improdutiva: um (re)exame das relações entre
interessaria tanto à burguesia (dita na- educação e estrutura econômico-social
cional) quanto à classe trabalhadora, o capitalista. São Paulo: Cortez/Autores T
que supostamente contribuiria para o Associados. 1984.
avanço da práxis educativa de caráter FRIGOTTO, G. Trabalho como U
politécnico (Rodrigues, 2006). princípio educativo: por uma superação
Resta saber: passados vinte anos
das ambigüidades. Boletim Técnico do Senac, V
Ano 11, 3: 175-192, set.-dez., 1985.
desde as primeiras publicações brasi-
FRIGOTTO, G. Formação Profissional no A
leiras sobre politecnia e da experiência 2º grau: em busca do horizonte da “educação”
acumulada pela EPSJV, após também politécnica. Rio de Janeiro: EPSJV/ A
a derrocada dos regimes do dito ‘soci- Fiocruz, 1988. (Transcrição da aula

173
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

inaugural, proferida pelo autor, do curso décadas de 20 e 30. Teoria & Educação, 3:
técnico de 2º grau da EPSJV/Fiocruz). 151-174, 1991a.
FRIGOTTO, G. Trabalho-educação e MACHADO, L. R. de S. Politecnia no
tecnologia: treinamento polivalente ou ensino de segundo grau. In: GARCIA,
for mação politécnica? Educação e W. & CUNHA, C. (Coords.) Politecnia no
Realidade, 14(1):17-26, jan.-jun., 1989. Ensino Médio. São Paulo/Brasília:
FRIGOTTO, G. Tecnologia, relações Cortez/Seneb, 1991b. (Cadernos Seneb,
sociais e educação. Revista Tempo 5)
Brasileiro, 105: 131-148, abr.-jun., 1991. MACHADO, L. R. de S. Mudanças
KUENZER, A. Z. Ensino de 2º grau: o tecnológicas e a educação da classe
trabalho como princípio educativo. São Paulo: trabalhadora. In: MACHADO, L. et al.
Cortez, 1988. (Orgs.) Trabalho e Educação. Campinas:
Papirus/ Cedes/Ande/Anped, 1992.
KUENZER, A. Z. O trabalho como
princípio educativo. Cadernos de Pesquisa, MALHÃO, A. P. Teoria e prática na
68: 21-28, 1989. construção do curso técnico de 2º grau
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
KUENZER, A. Z. Ensino médio: uma Venâncio/Fiocruz. Niterói: Faculdade
nova concepção unificadora de ciência, de Educação-UFF, 1990. (Mimeo.)
técnica e ensino. In: GARCIA, W. &
CUNHA, C. (Coords.) Politecnia no Ensino MANACORDA, M. A. O Princípio
Médio. São Paulo/Brasília: Cortez/ Educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes
Seneb, 1991. (Cadernos Seneb, 5) Médicas, 1990.
KUENZER, A. Z. A questão do ensino MANACORDA, M. A. Marx e a
médio no Brasil: a difícil superação da Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez/
dualidade estrutural. In: MACHADO, L. Autores Associados, 1991.
et al. (Orgs.) Trabalho e Educação. MARX, K. & MARX, K. A maquinaria
Campinas/São Paulo, Papirus/Cedes/ e a indústria moderna. O Capital: crítica
Ande/Anped, 1992. (Coletânea CBE)
da economia política. 14.ed. Rio de Janeiro:
LEMME, P. A Educação na U.R.S.S. – Bertrand Brasil, 1994. t.1, v.1.
1953. Rio de Janeiro: Vitória, 1955.
MARX, K. & ENGELS, F. Textos sobre
MACHADO, L. R. de S. Politecnia, Escola Educação e Ensino. São Paulo: Moraes,
Unitária e Trabalho. São Paulo: Cortez/ 1983.
Autores Associados, 1989.
MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia
MACHADO, L. R. de S. Em defesa da Alemã. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1987.
politecnia. Ciência & Movimento, Ano 1,
MARX, K. & ENGELS, F. Crítica do
1: 55-61, set., 1990.
programa de Gotha. In: MARX, K. &
MACHADO, L. R. de S. A politecnia ENGELS, F. (Orgs.) Obras Escolhidas.
nos debates pedagógicos soviéticos das São Paulo: Alfa e Ômega, s.d. v.2.

174
Educação Profissional A

NOGUEIRA, M. A. Educação, Saber, Educação: um início de conversa. In: XI C


Produção em Marx e Engels. São Paulo: Reunião Anual da Anped, 1988, Porto
Cortez/Autores Associados, 1990. Alegre, Anais... Porto Alegre, abr. 1988a. D
(Mimeo.)
RODRIGUES, J. A Educação Politécnica
no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998. SAVIANI, D. Perspectivas de expansão E
e qualidade para o ensino de 2º grau:
RODRIGUES, J. Ainda a educação
repensando a relação trabalho-escola. In:
politécnica: o novo decreto da educação
Seminário de Ensino de 2º grau -
F
profissional e a per manência da
Perspectivas, 1988, São Paulo, Anais...
dualidade estrutural. Trabalho, Educação 1988b, p. 79-91. G
e Saúde, 3(2): 259-282, 2005.
SAVIANI, D. Sobre a Concepção de
RODRIGUES, J. Qual cidadania, qual Politecnia. Rio de Janeiro: Politécnico da H
democracia, qual educação? Trabalho, Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, 1989.
Educação e Saúde, 4(2), 2006. (No prelo)
SAVIANI, D. A Nova Lei da Educação: I
SAVIANI, D. O nó do ensino de 2º grau. LDB – trajetória, limites e perspectivas.
Bimestre - Revista do 2º grau, 1(1): 13-15, Campinas: Autores Associados, 1997. N
out., 1986. (Entrevista)
SAVIANI, D. O choque teórico da
SAVIANI, D. Contribuição à elaboração politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, O
da nova Lei de Diretrizes e Bases da 1(1): 131-152, 2003.
 P
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Q

Ana Margarida de Mello Barreto Campello R


Domingos Leite Lima Filho
S

Na Grécia antiga, quando a so- simples e reiterativas que não exigiam T


ciedade se mantinha pela utilização do a incorporação de conhecimentos sis-
trabalho escravo, e a escola era o lugar temáticos. “Quem se dedicava ao tra- U
do ócio e da prática de esportes, as fun- balho intelectual era a parcela dos in-
ções intelectuais ficavam restritas a uma telectuais, fundamentalmente concen- V
pequena parcela da sociedade. Na Ida- trada no clero. As escolas, naquele
de Média, a sociedade era sustentada momento histórico, se restringiam a A
pelo trabalho servil, pelo cultivo da essa parcela e, por isso, eram chama-
terra, desenvolvido segundo técnicas das Escolas Monacais” (Saviani, 2003, A

175
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

p. 134). Na Idade Média a transmissão bém a “passagem definitiva da instru-


dos conhecimentos profissionais esta- ção das Igrejas para os Estados”: “as
va situada fora dos estabelecimentos leis que criam a escola de Estado vêm
escolares os quais eram empregados juntas com as leis que suprimem a
apenas para o melhor desenvolvimen- aprendizagem corporativa” (Mana-cor-
to intelectual da juventude. da, 1994, p. 249). É nesse momento
À revolução industrial corres- de mudança não só do modo de pro-
pondeu uma Revolução Educacional: dução, mas também do modo de vida
aquela colocou a máquina no centro do homem, que nasce o ideal de esco-
do processo produtivo; esta erigiu a la elementar gratuita e para todos, tan-
escola em forma principal e dominan- to na América do Norte como na Fran-
te de educação (Saviani, 2006). A trans- ça revolucionária, pós-1789. O perío-
missão, via escola, de conhecimentos do revolucionário afirma o direito de
técnicos e científicos, corresponde ao todos à educação e renova seus con-
aparecimento de novas divisões e no- teúdos.
vas funções na hierarquia social do tra- A incorporação de uma cultura
balho. As primeiras escolas de enge- técnico-científica voltada para a pre-
nheiros são escolas para a formação paração profissional aos conteúdos
de quadros funcionais especializados para escolares até então essencialmente
o Estado. Essas escolas de ciências apli- especulativos e teóricos implica uma
cadas articulam os conhecimentos revolução, que para Petitat (1994) tal-
técnico-científicos e as práticas so- vez seja a mais importante desde a
ciais. A partir delas o conhecimento própria aparição da escola. Esta cul-
é difundido, mas elas são também tura, em um primeiro momento, não
locais de articulação entre o saber e o encontrou espaço nas escolas então
poder. O aparecimento dessas esco- existentes, e surgiram novas institui-
las se faz acompanhar de uma ções: academias, escolas técnicas e
redefinição dos conteúdos a serem profissionais.
transmitidos, o que, por sua vez, leva a No Brasil, a predominância de
uma reorganização dos conhecimen- uma “mentalidade jurídico-profissio-
tos exigidos. nal, voltada inteiramente para as car-
No dizer de Manacorda (1994, p. reiras liberais e para as letras, a política
246), fábrica e escola nascem juntas, e a administração” (Azevedo, 1996, p.
em um movimento que implica tam- 626) faz com que o ensino técnico-pro-

176
Educação Profissional A

fissional seja relegado a um plano se- ra de encarar o trabalho que não fosse C
cundário. De um lado, o encargo dos intelectual.
trabalhos pesados dado inicialmente No entanto, a velha concepção D
aos índios e aos escravos; de outro, a destinando esse tipo de ensino aos
espécie de educação que os jesuítas deserdados da fortuna persiste mesmo
E
ofereciam criou, no Brasil, uma men- depois da instauração da República.
F
talidade que levou ao desprezo pelo Quando Nilo Peçanha, em 1909, cria
ensino de ofícios. Essa mentalidade as escolas de aprendizes artífices (De-
G
imperou ao longo de nossa história, da creto n. 7.566/09), destina essas esco-
descoberta até quase a República. las aos ‘deserdados da fortuna’. A cri- H
Durante esse período, a aprendi- ação dessa rede de escolas é, segundo
zagem profissional era destinada aos Ciavatta (1990, p. 330), a expressão I
órfãos e desvalidos, não fazendo parte histórica, naquele momento, “da ques-
das ações desenvolvidas nas escolas; tão social manifesta no desamparo N
não era entendida como ação afeta à dos trabalhadores e de seus filhos e
instrução pública, mas como ação de na ausência de uma política efetiva de O
caridade. Mais tarde, o ensino profis- educação primária”.
sional é incluído no conjunto geral da O contexto da industrialização e P
instrução, mas entendido como neces- da revolução de 1930 destaca a relação
sariamente de grau elementar, continu- entre trabalho e educação como pro- Q
ando a ser considerado como depri- blema fundamental. A Constituição de
mente e desmoralizante. 1937, entretanto, ainda explicita clara- R
Os liceus de artes e ofícios, cria- mente o dualismo escolar e a
dos em 1858, traziam em seus progra- destinação do ensino profissional aos S
mas uma nova filosofia, uma outra menos favorecidos:
maneira de encarar o ensino técnico- T
O ensino pré-vocacional e profissi-
profissional, que deixava de ser mera- onal destinado às classes menos fa-
mente assistencial e elementar. A mul- vorecidas é, em matéria de educa- U
tiplicação de liceus de artes e ofícios ção, o primeiro dever do Estado.
em várias províncias parece indicar que
Cumpre-lhe dar execução a esse V
dever, fundando institutos de ensi-
em todo o país surgiam novas idéias no profissional e subsidiando os de A
com relação ao ensino necessário à in- iniciativa dos Estados, dos Municí-
dústria. A abolição da escravatura tam- pios e dos indivíduos ou associa-
ções particulares e profissionais.
A
bém contribuiu para uma nova manei-

177
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

O Manifesto dos Pioneiros iden- A industrialização, a partir princi-


tifica a existência, no Brasil, de dois sis- palmente dos anos 30 do último sécu-
temas paralelos e divorciados de edu- lo, modifica lentamente a sociedade
cação, fechados em compartimentos brasileira, tornando necessária uma
estanques e incomunicáveis: nova proposta de educação: faz-se ne-
cessário preparar trabalhadores para a
O sistema de ensino primário e pro-
fissional e o sistema de ensino se- indústria, dentro de uma nova ordem
cundário e superior teriam diferen- social, gerada pela acumulação do ca-
tes objetivos culturais e sociais, pital. A necessidade de preparação de
constituindo-se, por isso mesmo,
mão-de-obra para a indústria implica
em instrumentos de estratificação
social. A escola primária e a profis- uma mudança de concepção do ensi-
sional serviriam à classe popular, no profissional. De uma aprendizagem
enquanto que a escola secundária e mais próxima do ofício era necessário
a superior à burguesia. (Cunha, passar para uma aprendizagem que in-
1997, p. 13)
troduzisse o domínio das técnicas, da
Naquela época, as escolas profissi- parcelarização do trabalho e da adap-
onais da Prefeitura do Distrito Federal tação à máquina, de maneira a discipli-
exigiam, para matrícula, que os alunos nar a força de trabalho e adequá-la à
apresentassem atestado de pobreza. organização fabril. Nesse quadro, a
Embora as escolas técnicas profissionais ‘educação profissional’
continuassem destinadas aos pobres, situa-se em um contexto maior de
percebia-se nitidamente uma mudança demandas de uma nova sociedade: a
na concepção da ‘educação profissio- sociedade industrial. Além de prepa-
nal’, na medida em que essas escolas pas- rar tecnicamente para o trabalho, é pre-
savam a ser encaradas como escolas for- ciso também disciplinar os jovens para
madoras de técnicos capazes de as atividades produtivas e a divisão do
desempenhar qualquer função na indús- trabalho.
tria. “O trabalho e o assistencialismo Nos anos 30 e de novo nos anos
constituem-se fundamentos de proces- 40 reforma-se o ensino secundário. A
sos educativos associados à ‘escola do partir de 1942 são baixadas por decre-
trabalho’, segundo dois eixos fundamen- to-lei as conhecidas “leis orgânicas da
tais: a regeneração pelo trabalho e o tra- educação nacional” para o ensino se-
balho para a modernização da produção” cundário, o ensino industrial, o ensino
(Ciavatta, 1990, p. 328). comercial, o ensino primário, o ensino

178
Educação Profissional A

normal e o ensino agrícola. A Consti- ção do conhecimento e da ciência ao C


tuição de 1937, ao determinar que o processo produtivo trouxeram uma
ensino vocacional e pré-vocacional são nova concepção sobre o valor do tra- D
dever do Estado, a ser cumprido com balho e sobre o caráter teórico-prático
a colaboração das empresas e dos sin- do fazer e da técnica.
E
dicatos econômicos, propiciou a defi- No início da República, o ensino
F
nição das Leis Orgânicas do Ensino secundário, o normal e o superior, eram
Profissional e a criação de entidades competência do Ministério da Justiça
G
especializadas como o Serviço Nacio- e dos Negócios Interiores, e o ensino
nal de Aprendizagem Industrial (Senai) profissional, por sua vez, era afeto ao H
e o Serviço Nacional de Aprendizagem Ministério da Agricultura, Indústria e
Comer-cial (Senac), bem como a trans- Comércio. A junção dos dois ramos de I
formação das antigas escolas de apren- ensino, a partir da década de 1930, no
dizes artífices em escolas técnicas fe- âmbito do mesmo Ministério da Edu- N
derais. cação e Saúde Pública foi apenas for-
No conjunto das Leis Orgânicas mal, não ensejando, ainda, a necessá- O
da Educação Nacional, o ensino secun- ria e desejável ‘circulação de estudos’
dário e o ensino normal têm como entre o acadêmico e o profissional. P
objetivo “formar as elites condutoras Apenas na década de 1950 é que se
do país”, enquanto para o ensino pro- passou a permitir a equivalência entre Q
fissional define-se como objetivo ofe- os estudos acadêmicos e
recer “formação adequada aos filhos profissionalizantes. Em 1961, com a R
dos operários, aos desvalidos da sorte promulgação da Lei de Diretrizes e
e aos menos afortunados, aqueles que Bases da Educação Nacional (Lei n. S
necessitam ingressar precocemente na 4024 de 20 de dezembro de 1961) fica
força de trabalho”. A herança dualista estabelecida a completa equivalência T
perdura e é explicitada (CNE, 1999). entre os cursos técnicos e o curso se-
Aprofunda-se, na época, a ênfase cundário para efeitos de ingresso nos U
na participação da escola na formação cursos superiores. As lutas políticas em
da mão-de-obra de maneira a contri- torno da primeira Lei de Diretrizes e
V
buir para o aumento da produtividade Bases da Educação Nacional estão na
A
do trabalho e da riqueza nacional. A origem das Leis de Equivalência que
Revolução Industrial, o desenvolvi- progressivamente equiparam os estu-
A
mento do capitalismo e a incorpora- dos acadêmicos aos profissionais em

179
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

termos de prosseguimento de estudos senvolvimento de aptidões para a vida


no nível superior. produtiva”. Pela primeira vez, consta
A Lei n. 5.692/71 reformou o em uma lei geral da educação brasilei-
ensino primário e secundário. Estabe- ra um capítulo específico sobre ‘edu-
leceu compulsoriamente a profissio- cação profissional’. Em 17 de abril de
nalização como finalidade única para 1997, o governo federal baixou o De-
o ensino de 2º grau. Em decorrência creto n. 2.208, regulamentando os dis-
desta lei, a ‘educação profissional’ dei- positivos da LDB referentes à ‘educa-
xou de estar limitada a estabelecimen- ção profissional’, definindo seus obje-
tos especializados. Segundo Cunha tivos e níveis, além de estabelecer ori-
(1998), com a implantação dessa lei, as entações para a formulação dos currí-
escolas técnicas viram-se procuradas culos dos cursos técnicos. O decreto
por levas de estudantes que pouco ou especifica três níveis de ‘educação pro-
nenhum interesse tinham por seus cur- fissional’: o básico, o técnico e o
sos profissionais. Paradoxalmente, a tecnológico. A reforma dos anos 90
profissionalização compulsória do en- proíbe o desenvolvimento do ensino
sino de 2o grau trouxe como efeito o técnico integrado ao ensino médio e
reforço da função propedêu-tica das define a ‘educação profissional’ como
escolas técnicas, que se transformaram necessariamente paralela e comple-
numa alternativa de ensino público mentar à educação básica.
para estudantes que apenas pretendi- Na proibição do desenvolvimento
am se preparar para o vestibular. Onze do ensino técnico integrado ao ensino
anos depois, a Lei 7.044/82 retirou a médio evidencia-se de forma exemplar
obrigatoriedade da habilitação profis- as principais características da reforma
sional no ensino de 2o grau. Em de- da ‘educação profissional’ dos anos 90,
corrência, a ‘educação profis-sional’ no Brasil: o retorno formal ao dualismo
voltou a ficar restrita aos estabeleci- escolar, na medida em que se aparta a
mentos especializados. ‘educação profissional’ da educação re-
A Lei n. 9.394/96, atual Lei de gular; na concepção de educação que
Diretrizes e Bases (LDB), configura a embasa essa reforma – a ruptura entre o
identidade do ensino médio como uma pensar e o agir e o aligeiramento da edu-
etapa de consolidação da educação cação profissional; a subsunção da es-
básica e dispõe que “a educação pro- cola à cultura do mercado na forma-
fissional (...) conduz ao permanente de- ção do cidadão produtivo (Frigotto &

180
Educação Profissional A

Ciavatta, 2006). Essa concepção de tor, no âmbito de um projeto nacional C


educação se insere no contexto de de desenvolvimento.
hegemonia das políticas neoliberais e se D
afina à redução do papel do Estado.
Retoma-se com essa reforma uma vi- Para saber mais: E
são dualista do sistema educacional,
AZEVEDO, F. A Cultura Brasileira: F
destinando-se explicitamente a ‘educa-
introdução ao estudo da cultura do Brasil. 6.ed.
ção profissional’ ao atendimento de uma Rio de Janeiro/Brasília: Editora da G
determinada classe social. UFRJ/Editora da UnB, 1996.
O Decreto n. 5.154, de julho de CIAVATTA, M. O Trabalho como Princípio H
2004, revogou o Decreto n. 2.208/97 Educativo: uma investigação teórico-
metodológica (1930-1960), 1990. Tese de
e restituiu a possibilidade de articula-
Doutorado, Rio de Janeiro: PUC.
I
ção plena do ensino médio com a ‘edu-
CNE. Parecer n. 16/1999. Institui as
cação profissional’, mediante a oferta N
diretrizes curriculares nacionais para a
de ensino técnico integrado ao ensino
educação profissional de nível técnico.
médio. Manteve, entretanto, as alter- Documenta (456) Brasília, set. 1999. O
nativas anteriores que haviam sido
CUNHA, L. A. Educação para a
fortalecidas e ampliadas com o Decre- democracia: uma lição de política prática. P
to n. 2.208/97 e expressavam a históri- In: TEIXEIRA, A. (Orgs.) Educação para
ca dualidade estrutural da educação a Democracia: introdução à administração Q
brasileira. educacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1997.
O debate em torno das concepções R
que estavam presentes nas discussões que CUNHA, L. A. Ensino médio e ensino
antecederam a Lei n. 9.394/96, no final
profissional: da fusão à exclusão. S
Tecnologia e Cultura, Ano 2, 2: 25-42, jul.-
dos anos 80, é retomado nesse início do dez., 1998.
século XXI de maneira a contemplar T
CURY, C. R. J. Políticas atuais para o
uma proposta de articulação entre ciên- ensino médio e a educação profissional
cia, cultura e trabalho, como elementos de nível técnico: problemas e U
norteadores de uma nova política edu- perspectivas. In: ZIBAS, D.; AGUIAR,
cacional. A expansão e democratização
M. & BUENO, M. S. O Ensino Médio e a V
Reforma da Educação Básica. Brasília: Plano
da ‘educação profissional’ no Brasil as- Editora, 2002.
A
sume grande relevância nesse contexto
FRIGOTTO, G. & CIAVATTA, M.
em razão das expectativas de elaboração (Orgs.) A Formação do Cidadão Produtivo: A
de uma nova política pública para o se- a cultura de mercado no ensino médio técnico.

181
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Brasília: Instituto Nacional de Estudos SAV I A N I , D. A N o v a L e i d a


e Pesquisas Educacionais Anísio Educação: trajetória, limites e
Teixeira, 2006. perspectivas. 6.ed. Campinas: Autores
Associados, 2000.
MANACORDA, M. A. História da
Educação: da Antiguidade aos nossos dias. SAVIANI, D. O choque teórico da
4.ed. São Paulo: Cortez, 1994. politecnia. Revista Trabalho, Educação
e Saúde, 1(1):131-152, mar., 2003.
PETITAT, A. Pr odução da Escola/
Produção da Sociedade: análise sócio-histórica SAVIANI, D. Trabalho e Educação:
de alguns momentos decisivos da evolução fundamentos ontológicos e históricos. In:
escolar no Ocidente. Porto Alegre: Artes 2 9 ª Re u n i ã o d a A n p e d , 2 0 0 6 ,
Médicas, 1994. Caxambu. Anais... Caxambu, 2006.

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Isabel Brasil Pereira


Júlio César França Lima

De modo geral, o termo educa- A ‘educação profissional em saú-


ção profissional já constava como pro- de’ foi permitida legalmente, no Bra-
posta das reformas educacionais defen- sil, a partir da Lei 4.024/61. Até então,
didas pelos arautos do escolanovismo, o ensino técnico estava organizado
nas décadas de 1920 e 1930, como com base nas Leis Orgânicas de Ensi-
Fernando Azevedo (1931), principal no, promulgadas, durante o Estado
mentor da idéia de uma educação pú- Novo, pelo ministro da Educação e
blica, gratuita e laica. Ainda que com Saúde, Gustavo Capanema (Lima,
ideais liberais e de preparação para o 1996). Estas tratavam, porém, especi-
trabalho, a escola é vislumbrada naque- ficamente, da formação de quadros
le contexto como espaço privilegiado profissionais para a indústria, o comér-
para o desenvolvimento de práticas e cio, a agricultura e a formação de pro-
conteúdos de saúde visando à forma- fessores, o que não impediu que na
ção dos futuros trabalhadores, de década de 1940 fosse aprovada legis-
modo a possibilitar o aumento da sua lação educacional para a área de en-
capacidade produtiva. fermagem, que busca regular a for-

182
Educação Profissional em Saúde A

mação técnica dos práticos de enfer- Os estudos sobre economia da C


magem (Decreto-Lei n. 8.778/1946) e educação e economia da saúde, de
dos auxiliares de enfermagem (Lei n. matriz neoclássica, ofereceram o su- D
775/1949), para o então incipiente e porte conceitual e analítico necessário
pouco desenvolvido mercado de tra- para o desenvolvimento da idéia de que
E
balho hospitalar. os gastos com os setores sociais não
F
A partir dessa época, mais precisa- se limitavam a despesas com consumo,
mente no final da década de 1950, co- mas eram investimentos rentáveis que
G
meça a predominar, no discurso de es- o Estado deveria assumir como meio
tudiosos e técnicos de instituições inter- de promoção do desenvolvimento eco- H
nacionais, uma concepção de desenvol- nômico. Nesse sentido, os dispêndios
vimento que se constitui, ao mesmo tem- em programas de saúde e na melhoria I
po, em uma teoria da educação, ambas da organização sanitária significavam a
inspiradas na teoria do ‘capital humano’ promoção da saúde e, conse- N
de Theodore W. Schultz, que lhe valeu o quentemente, uma maior produtivida-
Prêmio Nobel de Economia em 1979. de do trabalho. Em contrapartida, o in- O
No primeiro caso, reorienta a estratégia vestimento em educação, por ser esta
da Comissão Econômica para a Améri- produtora de capacidade de trabalho, P
ca Latina (Cepal) que passa a preconizar significava, potencialmente, o aumento
na década de 1960 o desenvolvimento da renda e a posse de um capital. É no Q
integrado, a partir do planejamento eco- bojo dessa discussão que emerge a
nômico-social, como instrumento de noção de recursos humanos em saú- R
superação do subdesenvolvimento. No de, para designar a mão-de-obra
segundo, irá influenciar toda a políti- engajada no setor. S
ca educacional brasileira desenhada a O marco internacional para ado-
partir da segunda metade dos anos 60, ção dessa visão foi a Carta de Punta del T
especialmente a ‘educação profissio- Este, em 1961, que elaborou o Primei-
nal em saúde’, materializando-se de ro Plano Decenal de Saúde para as U
forma acabada na década de 1970, Américas, ratificado no Brasil, em 1967,
com a Lei 5.692/71, que reformula o na IV Conferência Nacional de Saúde,
V
ensino de 1° e 2° graus no país, im- cujo tema central foi recursos humanos
A
plantando compulsoriamente a para as atividades de saúde. Nesse con-
terminalidade profissional atrelada a texto, difunde-se a idéia da formação
A
este último grau de ensino. de técnicos de saúde de nível médio em

183
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

função das necessidades de um supos- apenas uma questão de modernização


to mercado de trabalho para estes pro- de alguns fatores, onde os recursos
fissionais surgidas em decorrência do humanos qualificados – ‘capital huma-
crescimento econômico acelerado no no’ – constituem o elemento funda-
tempo do ‘milagre econômico’ brasilei- mental. Em contrapartida, passa a idéia
ro (1968-1974) e da introdução de so- de que o antagonismo capital-trabalho
fisticados equipamentos médicos no pode ser superado mediante um pro-
processo de trabalho em saúde, no âm- cesso meritocrático – pelo trabalho,
bito hospitalar. especialmente pelo trabalho
De fato, os serviços de saúde fo- potenciado como educação, treina-
ram um importante pólo de criação de mento etc. No plano econômico, o
postos de trabalho nesse período, e isso conceito de ‘capital humano’ estabele-
está diretamente associado ao modelo ce, de um lado, o nivelamento entre
de saúde adotado no pós-64, de am- capital constante e capital variável (for-
pliação em larga escala da produção de ça de trabalho) na produção de valor;
serviços médicos hospitalares. Porém, coloca o trabalhador assalariado como
isso ocorreu às custas de duas catego- um duplo proprietário: da força de tra-
rias polares: os atendentes de enferma- balho – adquirida pelo capitalista – e
gem, com nível de escolaridade equi- de um capital adquirido por ele – quan-
valente às quatro primeiras séries do tidade de educação ou de ‘capital hu-
atual ensino fundamental, e os médi- mano’. Por outro lado, esse conceito
cos. Portanto, como aponta Frigotto reduz a concepção de educação e, por
(1986), no contexto da recomposição extensão, a educação profissional a
do capitalismo em sua fase mero fator técnico da produção.
monopolista, o fetiche e a mistificação Sendo assim, verificou-se, no se-
da necessidade de formação técnica tor saúde, que não só a formação de
média para um suposto mercado de técnicos de enfermagem, por exemplo,
trabalho veiculada pela teoria do ‘capi- não determinou o seu ingresso no
tal humano’ cumpriu um papel políti- mercado de trabalho – e mesmo aque-
co, ideológico e econômico específicos. les que conseguiram não se garantiu a
No plano político-ideológico, essa ocupação do cargo – como essa con-
teoria veicula a idéia de que o subde- cepção tecnicista de educação profis-
senvolvimento não diz respeito às re- sional contribuiu, entre outros, para na-
lações de poder e dominação, sendo turalizar as ações feitas pelos trabalha-

184
Educação Profissional em Saúde A

dores técnicos em saúde: reduzir a for- cação é colocada em novo patamar, C


mação profissional a meros treinamen- buscando sobretudo resgatar a dimen-
tos; conformar os trabalhadores à di- são contraditória do fenômeno D
visão técnica do trabalho em saúde; educativo, seu caráter mediador e sua
manter a hegemonia do ideário especificidade no processo de transfor-
E
cientificista e tecnicista na área; incen- mação da sociedade.
F
tivar a crença nas técnicas pedagógicas Se a escola tende a mediar os in-
como instrumento para resolver pro- teresses do capital e a adaptação ao
G
blemas da formação técnica e de saú- existente, não é da sua natureza ser
de da população; estabelecer análises capitalista. Nesse sentido, abre-se no H
lineares e imediatas entre educação e seu interior a possibilidade e a neces-
mercado de trabalho em saúde, de sidade de construir outras mediações I
modo a adequar a formação às neces- que a articulem com os interesses dos
sidades desse mercado, reduzindo o trabalhadores no processo de sua qua- N
ensino às tarefas do posto de trabalho. lificação, mediações que resgatem o
Contribuiu, em síntese, para a adapta- homem em sua tripla dimensão – O
ção e conformação dos trabalhadores individualidade, natureza e ser social
ao existente, numa perspectiva – e o saber científico-tecnológico pro- P
economicista, instrumentalista, prag- duzido historicamente por esse mes-
mática e moralizadora (Pereira, 2006). mo homem. Q
Antagônica a essa concepção de Desse último ponto de vista, o pa-
adaptação, foi sendo construída nos pel do ensino médio e da educação pro- R
anos 80, ao mesmo tempo, uma con- fissional em saúde deveria ser o de re-
cepção de educação que a recoloca no cuperar a relação entre conhecimento e S
âmbito das práticas sociais, isto é, como a prática do trabalho. Isto significaria
uma prática constituída e constituinte explicitar como a ciência se converte em T
das relações sociais e uma concepção potência material no processo de pro-
de escola, cujo eixo básico centra-se na dução de mercadorias, de maneira ge- U
questão da escola unitária, de forma- ral, e nos serviços de saúde, em parti-
ção tecnológica ou politécnica e na cular. Assim, seu horizonte deveria ser
V
necessidade de aprofundamento do o de propiciar aos alunos o domínio dos
A
sentido e dos desafios de tomar-se o fundamentos científicos das diversas
trabalho como princípio educativo. técnicas e não o mero adestramento em
A
Nesse debate, a relação trabalho-edu- técnicas produtivas. A noção de

185
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

politecnia postula uma formação que a saúde desenvolvem trabalho comple-


partir do próprio trabalho social desen- xo, na perspectiva de valor de uso e,
volva a compreensão das bases de or- portanto, precisam de formação qua-
ganização do trabalho em nossa socie- lificada; a defesa da escola e da escola-
dade. Trata-se da possibilidade de ridade como política pública e como
formar profissionais em um proces- condição para a formação dos traba-
so onde se aprende praticando, mas, lhadores técnicos em saúde; a defesa
ao praticar, se compreendem os prin- da explicitação da dimensão política e
cípios científicos que estão direta e técnica da prática educativa na saúde;
indiretamente na base desta forma a crítica ao positivismo, ao
de organizar o trabalho na socieda- cientificismo e ao tecnicismo; o traba-
de. Implica ainda que o processo de lho como princípio educativo e a idéia
trabalho desenvolva em uma unida- da qualificação como construção soci-
de indissolú-vel os aspectos manu- al (Castro, 1992; Hirata, 1994).
ais e intelectuais, pois são caracterís- As reflexões em torno do ideário
ticas do trabalho humano. A separa- da politecnia tinham como fulcro as
ção dessas funções é um produto transformações que estavam ocorren-
histórico-social e não é absoluta, mas do no mundo do trabalho com a in-
relativa (Saviani, 2003; EPSJV, 2005; trodução de novas tecnologias
Ramos, s.d.). informáticas e biotecnológicas e novas
À educação cabe, neste contexto, formas de energia que se intensificaram
contribuir para a emancipação dos tra- no decorrer dos anos 90, chegando a
balhadores em relação a uma ordem ser incorporado no projeto de Lei de
social e econômica excludente e alie- Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nada, que tende a transformar a saúde nal apresentado pelos setores educaci-
e a educação em uma mercadoria como onais progressistas à Câmara dos De-
outra qualquer, e conseqüentemente putados em 1988. Entretanto, esse pro-
ter como meta transformar a socieda- jeto de LDB foi derrotado pelo do
de e tornar realidade o direito univer- Senador Darcy Ribeiro, aprovado em
sal à saúde e à educação. Consideran- 20 de dezembro de 1996, com a Lei
do o trabalho e a ‘educação profissio- 9.394, que levou a diversas regulamen-
nal em saúde’, Pereira (2006) destaca tações posteriores, entre as quais, a re-
algumas premissas dessa concepção, gulamentação curricular com base na
tais como: os trabalhadores técnicos de pedagogia das competências, que se

186
Educação Profissional em Saúde A

tornou a referência fundamental para processos de trabalho, na sua comple- C


a política educacional de maneira ge- xidade, heterogeneidade e imprevi-
ral, mas em especial para a ‘educação sibilidade, essa opção pedagógica acaba D
profissional em saúde’. não contribuindo para o fortalecimento
Originária do mundo dos negóci- da relação entre o mundo da escola e do
E
os, a noção de competência, assim trabalho. Entre outros motivos, por le-
F
como a de sociedade do conhecimen- var à ‘desintegração curricular’, ao tentar
to, emerge como produto e resultado reproduzir as situações de trabalho nos
G
da crise do modelo fordista de desen- espaços formativos.
volvimento. Uma crise da acumulação, Do ponto de vista legal – a atual H
concentração e centralização de capi- Legislação Educacional, conforme pre-
tal, que implicou um novo tipo de or- vista no art. 39 da Lei 9.394 e no De- I
ganização do trabalho, baseado em creto 5.154, de 23 de julho de 2004 –,
tecnologia flexível, em contraposição a educação profissional em saúde com- N
à tecnologia rígida do sistema preende a formação inicial ou conti-
taylorista-fordista, e na formação de nuada, a formação técnica média e a O
um trabalhador também flexível, ba- formação tecnológica superior. Ela
seada na pedagogia das competências. pode ser realizada em serviços de saú- P
Na área de saúde, a noção de com- de (formação inicial ou continuada) e
petência foi difundida com a institui- em instituições de ensino (formação Q
ção do Sistema de Certificação de inicial ou continuada, formação técni-
Competências do Projeto de Profissio- ca e tecnológica). A formação técnica R
nalização dos Trabalhadores na área de compreende as formas de ensino inte-
Enfermagem do Ministério da Saúde grado, concomitante ou subseqüente S
(Profae/MS), a partir do ano 2000, e ao ensino médio. Tanto a formação
de acordo com Ramos (s.d.), apesar de técnica como a formação tecnológica T
(re)construir essa noção numa perspec- se organizam atualmente em doze
tiva contrária àquela que predomina na subáreas de formação em saúde, con- U
organização de sistemas de competên- forme os Referenciais Curriculares
cias profissionais, de corte Nacionais da área (Brasil/Ministério da
V
funcionalista e condutivista, e de Educação, 2000). São elas: biodiag-
A
relacioná-la ao desenvolvimento da au- nóstico, enfermagem, estética, farmá-
tonomia dos trabalhadores em saúde cia, hemoterapia, nutrição e dietética,
A
para enfrentar os acontecimentos dos radiologia e diagnóstico por imagem,

187
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

reabilitação, saúde bucal, saúde visual, Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz


segurança do trabalho e vigilância sa- (EPSJV/Fiocruz). Essas experiências
nitária. A área profissional saúde diz são realizadas no cenário histórico e
respeito às ações integradas referentes social do capitalismo tardio, um cená-
às necessidades individuais e coletivas, rio contraditório e complexo, em que
com base em modelo que ultrapasse a se confrontam as posições progressis-
ênfase na assistência médico-hospita- tas, que defendem e reafirmam a saú-
lar. As ações de saúde se desenvolvem de como um direito universal, e a rea-
em locais, tais como: centros de saúde, lidade da formação recente do capita-
postos de saúde, hospitais gerais e lismo em nosso país, que tende a tor-
especializados, laboratórios, domicíli- nar a saúde uma mercadoria.
os, centros comunitários, escolas e A educação profissional em saú-
outros espaços sociais. de no seu viés de transformação afir-
Portanto, a educação profissional ma a formação omnilateral e a
em saúde é um objeto de disputa e humanização do trabalhador pelo tra-
embate de projetos societários. Ape- balho. O caráter politécnico do ensi-
sar da hegemonia de idéias e práticas no, como diz Frigotto (1985, p. 4), “de-
de educação profissional que têm corre da dimensão de um desenvolvi-
como objetivo a adaptação e confor- mento total das possibilidades huma-
mação dos trabalhadores ao existente nas, onde, como afirma Marx, na Ideo-
e ao mercado de trabalho, assim como logia Alemã, os pintores serão ‘hombres
às necessidades de manutenção e trans- que además pintem’.
formação do capital, existem projetos
contra hegemônicos que lutam por
Para saber mais:
uma educação e saúde que tenham
como finalidade a construção de uma
AZEVEDO, F. Novos Caminhos e Novos
sociedade mais humana e solidária (Pe- Fins. Rio de Janeiro: Cia. Melhoramento,
reira & Ramos, 2006). São exemplos, 1931.
na ‘educação profissional em saúde’, a BRASIL/Ministério da Educação.
‘concepção ensino e serviço’, desen- Educação Profissional: referenciais curriculares
volvida pelas Escolas Técnicas do Sis- nacionais da educação profissional de nível
tema Único de Saúde (Etsus), e a ‘con- técnico. Área profissional: Saúde. Brasília:
MEC, 2000.
cepção politécnica’, desenvolvida pela
Escola Politécnica de Saúde Joaquim

188
Educação Profissional em Saúde A

CASTRO, N. Organização do trabalho, LIMA, J. C. F. Tecnologias e a C


qualificação e controle na indústria educação do trabalhador em saúde. In:
moderna. In: Coletânea CBE. EPSJV (Org.) Formação de Pessoal de D
Conferência Brasileira de Educação. Nível Médio para a Saúde: desafios e
Trabalho e Educação. Campinas: Papirus, perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1992. 1996.
E
EPSJV. Projeto Político Pedagógico. Rio de
Janeiro: EPSJV/ Fiocruz, 2005.
MILITÃO, M. N. Educação F
profissional, ensino profissional,
FRIGOTTO, G. Trabalho como formação profissional. In: FIDALGO,
princípio educativo: por uma superação F. & MACHADO, L. (Orgs.) Dicionário G
das ambigüidades. Boletim Técnico do Senac, da Educação Pr ofissional. Belo
11(3): 1-14, set.-dez., 1985. Horizonte: Núcleo de Estudos sobre H
Trabalho e Educação/ Faculdade de
FRIGOTTO, G. A Produtividade da Escola
Improdutiva: um (re)exame das relações entre
Educação da UFMG, 2000. I
educação e estrutura econômico-social e PEREIRA, I. B. Possibilidades da
capitalista. São Paulo: Cortez, 1986. Avaliação Produzir Conhecimento para a N
Formação em Saúde. In: Seminário de
FRIGOTTO, G. Educação e a Crise do
Avaliação de Integralidade em Saúde,
Capitalismo Real. São Paulo: Cortez, 1995.
2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de
O
FRIGOTTO, G. A dupla face do Janeiro, 2006.
trabalho: criação e destruição da vida.
PEREIRA, I. B. & RAMOS, M. N.
P
In: FRIGOTTO, G. & CIAVATTA, M.
Educação profissional em saúde.
(Orgs.) A Experiência do Trabalho e a
Coleção Temas de Saúde. Rio de Janeiro: Q
Educação Básica. Rio de Janeiro: DP&A,
2002. Fiocruz, 2006.
RAMOS. M. N. Referências teórico- R
HIRATA, H. Da polarização das
qualificações ao modelo de metodológicas da educação
competências. In: FERRETTI, C. et al. profissional em saúde no Brasil. In: S
(Orgs.) Novas Tecnologias, Trabalho e EPSJV (Org.) Textos de apoio em políticas
Educação: um debate multidisciplinar. de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, v.2. T
Petrópolis: Vozes, 1994. (No prelo)

189
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA

Domingos Leite Lima Filho


Ana Margarida de Mello Barreto Campello

A predominância do trabalho as- É analisando estas contradições e


salariado e a introdução da maquinaria como elemento da luta política dos tra-
na produção constituem, ao longo do balhadores, que Marx utiliza o termo
século XVIII, inicialmente na Inglater- ‘educação tecnológica’, situando-o no
ra e daí progressivamente espraiando- próprio corpo teórico de sua crítica às
se ao mundo, as bases fundamentais relações sociais capitalistas de produção.
das relações sociais capitalistas de pro- Nesse sentido, a ‘educação tecnológica’
dução. A Revolução Industrial marca teria como princípio a união da instru-
a emergência dessas relações, e a gran- ção com o trabalho material produtivo
de indústria baseada na maquinaria traz (no sentido geral de trabalho social útil),
consigo o ingresso da ciência como o que, para Marx, seria o germe da edu-
conhecimento sistematizado, no pro- cação do futuro.
cesso de produção, tornando-se ele- De acordo com Manacorda
mento material e intelectual do desen- (1991), Marx utiliza como sinônimos
volvimento das forças produtivas. No os termos ‘educação tecnológica’ e
entanto, sob a hegemonia deste modo ‘educação politécnica’. Enquanto a
de produção, a união que se dá entre denominação ‘educação tecnológica’
ciência e processo produtivo tem seu aparece no Manifesto Comunista (1848),
correspondente antagônico na separa- no texto escrito por Marx para o Pri-
ção ou divisão social do trabalho, me- meiro Congresso da Associação Inter-
diante a qual estão cindidas a concep- nacional dos Trabalhadores (1866) e
ção e a execução do trabalho, ou seja, em O Capital (1867), o termo educa-
a própria separação entre a ciência (e ção politécnica apareceria somente no
os que a dominam) e os trabalhadores texto de 1866.
diretos, ocorrendo a subordinação des- Já no Manifesto Comunista, o pensa-
tes àqueles (Magaline, 1977). dor alemão assinalava a importância,

190
Educação Tecnológica A

para a classe trabalhadora, da luta pela na e o manejo das técnicas e instru- C


educação pública e gratuita de todas as mentos dos diversos ramos da produ-
crianças, da abolição do trabalho das ção industrial, a educação profissional D
crianças nas fábricas e da combinação da trata apenas deste último e, de modo
educação com a produção material (Marx & ainda mais restrito, em um determina-
E
Engels, 1988). Por sua vez, o texto de do ramo ou especialidade, como ade-
F
1866 traria uma definição mais completa quação/reprodução prática e imediata
do autor acerca da questão educacional (Marx, 1968).
G
para os trabalhadores, entendendo-a Ao propugnar a unidade entre edu-
composta pelas dimensões intelectual, cação e trabalho, traduzida no conceito H
corporal e ‘tecnológica’, sendo esta a que de ‘educação tecnológica’, no fundo, a
trata dos “princípios gerais e de caráter concepção de Marx trata da união en- I
científico de todo o processo de pro- tre trabalho intelectual e material, cuja
dução e, ao mesmo tempo, inicia as cri- possibilidade estaria na raiz da supera- N
anças e adolescentes no manejo de fer- ção da divisão social do trabalho. E,
ramentas elementares dos diversos ra- nesse sentido, Enguita (1993) adverte O
mos industriais” (Marx, 1983, p. 60). No que é verdadeiramente impossível com-
texto d`O Capital, em uma passagem preender a insistência de Marx na com- P
marcada pelo otimismo, assinalava que binação de educação e produção se não
“a conquista inevitável do poder políti- levarmos em conta a caracterização que Q
co pela classe operária vai introduzir o o pensador alemão faz do trabalho
ensino teórico prático da tecnologia nas esco- como práxis e como elemento R
las do povo” (Marx, 1968, p. 553 – grifos constitutivo do gênero humano.
nossos). Marx considerou a existência de S
Em contrapartida, Marx destaca uma íntima conexão – vínculo históri-
o sentido redutor/estreito do ‘ensino co e indissociável – entre a produção T
profissional’ [educação profissional], material da vida e sua elaboração espi-
um conceito associado ao mero trei- ritual, ou seja, a produção de idéias, de U
namento/adestramento limitado às ta- representações e da consciência. Satis-
refas imediatas da produção capitalis- fazer as necessidades materiais da vida
V
ta. Enquanto que à educação politéc- e produzir a própria sobrevivência,
A
nica ou à ‘educação tecnológica’ ele produzir novas necessidades, reprodu-
atribui um sentido de domínio dos zir-se e estabelecer novas relações com
A
princípios gerais da produção moder- os demais e com a natureza – trans-

191
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

formando-a e transformando-se a si balho material e trabalho intelectual.


mesmo –, o que implica estabelecer Ao contrário, consideram que o desen-
novas relações de produção, de poder volvimento da base material de pro-
e de propriedade, que corres-pondem dução (forças produtivas), o desenvol-
a determinado grau ou estágio de de- vimento das relações sociais ou das for-
senvolvimento das forças produtivas. mas de organização societária e o de-
Esta dinâmica constitui o devir histó- senvolvimento da consciência social
rico, a essência ontológica do ser soci- humana estão permanentemente e in-
al. Nela, a consciência se constrói, na trinsecamente relacionados. No entan-
interpenetração de cada uma dessas to, o processo de produção capitalista
dimensões da história da humanidade. gera contradições entre estas três di-
A consciência não é, como queria mensões. Com a divisão social do tra-
Hegel, o espírito absoluto e abstrato, balho, dá-se também a distribuição
mas a consciência histórica, construída desigual do seu produto, tanto
e forjada no continuum histórico, ou, quantitativamente quanto qualitativa-
como na síntese lapidar de Marx e mente: produtos materiais e conheci-
Engels (1977), “o homem é tal como mento. Contradições reais, para as
se produz”. A consciência humana é, quais os idealistas vão buscar construir
portanto, um produto social e não in- explicações a partir da ideologia, da
dividual, externo ou abstrato, como teologia, da filosofia, da moral. Ainda
supõe o idealismo. assim, mesmo quando a consciência
É importante destacar que a aná- parece encontrar condições de eman-
lise marxiana reitera a relação de cipar-se da consciência prática e pas-
simbiose que caracteriza as ‘expressões sar à elaboração de teoria pura,
ideológicas’ do pensamento e a reali- filosofia, moral etc, não há ruptura
dade material histórica, compondo a entre representação e materialidade,
totalidade do metabolismo social. Mes- pois a representação produzida
mo com o desenvolvimento da pro- expressa as condições e contradições
dução industrial capitalista, em que se da materialidade.
acentua a divisão social e técnica do Nessa concepção de unidade en-
trabalho, Marx e Engels não admitem tre produção intelectual e produção
a possibilidade de ruptura entre essas material, entre ciência e processo pro-
duas dimensões, ainda que o processo dutivo, como podemos situar o con-
de produção apareça cindido em tra- ceito de tecnologia? A tecnologia é

192
Educação Tecnológica A

entendida como extensão das possibi- concretas de construção do socialismo, C


lidades e potencialidades humanas, da sobretudo na experiência soviética, le-
produção social. Assim, o desenvolvi- varam à adoção do termo educação D
mento científico e tecnológico é o de- politécnica em detrimento da denomi-
senvolvimento da ciência do trabalho nação ‘educação tecnológica’. De acor-
E
produtivo, isto é, processo de apropri- do com Manacorda (1989), as resolu-
F
ação contínua de saberes e práticas pelo ções relativas à educação, aprovadas no
ser social no devir histórico da huma- VIII Congresso do Partido Comunis-
G
nidade. A ciência e a tecnologia são, ta, em 1919, têm como referência ge-
portanto, construções sociais comple- ral as proposições de Marx definidas H
xas, forças intelectuais e materiais do no I Congresso da AIT, em 1866.
processo de produção e reprodução Destacam-se, entre elas “a instrução I
social. Como processo social, partici- geral e politécnica (que faz reconhe-
pam e condicionam as mediações so- cer em teoria e em prática todos N
ciais, porém não determinam por si só os ramos principais da produção)
a realidade, não são autônomas, nem ... [e a] plena realização dos princípi- O
neutras e nem somente experimentos, os da escola única do trabalho (...) que
técnicas, artefatos ou máquinas: são sa- concretize uma estreita ligação do en- P
beres, trabalhos e relações sociais sino com o trabalho socialmente pro-
objetivadas. dutivo” (Lênin apud Manacorda, Q
Nesse sentido, poderíamos afirmar 1989, p. 314-315).
que o conceito originário de ‘educação No desenvolvimento dos sistemas R
tecnológica’, diríamos, o conceito e políticas educacionais, especialmen-
marxiano, se assentaria sobre uma con- te a partir do final do século XVIII, S
cepção ampla e de formação integral e sob a égide de Estados liberais ou au-
omnilateral do ser social que se caracte- toritários, nas diversas nações, consti- T
rizaria, conforme Bastos (1998, p. 32) tuíram-se modelos de educação para
pela “integração do saber, do fazer, do os trabalhadores, com denominações U
saber fazer e do pensar e repensar o diversas, tais como escola para o tra-
saber e o fazer, enquanto objetos per- balho, educação técnica, educação pro-
V
manentes da ação e da reflexão crítica fissional ou profissionalizante, ensino
A
sobre a ação”. industrial, ensino vocacional e outras.
O desenvolvimento das lutas soci- O traço distintivo desses modelos era
A
ais dos trabalhadores e as experiências a dualidade do sistema educacional que

193
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

nada mais era que a expressão da veu-se, paralelamente, a educação re-


dualidade estrutural que caracteriza as gular, geral, escolar e superior, letrada,
sociedades capitalistas marcadas pela destinada à formação das chamadas
divisão social do trabalho. Em cada ‘elites condutoras’ da sociedade. Ao
cultura e nação essa dualidade se ex- longo do século XX, a história da edu-
pressa historicamente, em distintos cação brasileira registra lutas por con-
graus, incidindo nas políticas e nos cepções educacionais democráticas,
sistemas educacionais e definindo situando-se neste contexto as reivin-
percursos escolares distintos de acor- dicações e conquistas de inclusão de
do com a origem dos educandos e conteúdos de cultura geral e de ciência
em relação com o valor social atri- nos currículos dos cursos de educação
buído ao trabalho intelectual e ma- profissional e pela equivalência destes
nual em cada sociedade. aos cursos da educação escolar geral,
No Brasil, uma sociedade intento alcançado, apenas formalmen-
marcada pela herança colonial e te, com a Lei de Diretrizes e Bases da
escravocrata, na qual o conceito soci- Educação Nacional (LDB), em 1961.
al do trabalho e dos que trabalham é A partir daí, e nos diversos con-
fortemente desvalorizado, a educação textos de lutas sociais que marcaram a
para os trabalhadores é, inicialmente, sociedade brasileira ao longo da dita-
mera aprendizagem prática e ensino dura de meados da década de 1960 à
de ofícios, inclusive com o estigma década de 1980, e sobretudo a partir
de prática social necessária à correção das lutas pela redemocratização do
de uma suposta propensão ‘ao crime e país, é que surgem, nas discussões so-
ao vício’ que marcaria os ‘desvafo- bre a política educacional, a denomi-
recidos da fortuna’, conforme o esta- nação e os diferentes conceitos de ‘edu-
belecido no Decreto de 1909 que cria- cação tecnológica’. Nesse processo, o
va as escolas de aprendizes artífices. conceito de ‘educação tecnoló-gica’ na
Posteriormente denominado ensino educação brasileira foi parcialmente
profissionalizante, técnico ou industri- apropriado pelas formulações liberais
al, a educação para os trabalhadores e e tecnicistas de políticas educacionais
as instituições que as ofereciam foram mais recentes, especialmente a partir
concebidas e marcadas historicamen- da década de 1970, cujo momento im-
te pelo viés da segregação e da exclu- portante foi a criação dos primeiros
são. Ao lado desse sistema, desenvol- centros federais de educação

194
Educação Tecnológica A

tecnológica, em 1978. Estas institui- deiro capital e exigindo, por sua vez, C
ções, constituídas a partir da transfor- uma renovação da escola, para que
mação das escolas técnicas federais, ori-
se assuma seu papel de transforma- D
dora da realidade econômica e so-
ginárias das escolas de aprendizes artí- cial do país. (Brasil, 1991, p. 57)
fices criadas no início do século XX, e
E
De acordo com Garcia e Lima
que se tornaram referência na oferta
Filho (2004), este momento pode ser F
de educação profissional de nível mé-
considerado como um dos primeiros
dio, passaram a ofertar, além daquela
em que aparece, no âmbito das discus- G
modalidade histórica, uma formação
sões e propostas governamentais para
de nível superior em cursos de curta H
a educação brasileira, o conceito de
duração, inicialmente de engenharia de
‘educação tecnológica’.
operação, depois engenharia industri-
Este conceito, entretanto, difere, I
al e, posteriormente, os cursos supe-
na sua concepção, do conceito de
riores de tecnologia.
‘educação tecnológica’ de origem
N
No âmbito das políticas educa-
marxiano, o mesmo que foi trabalha-
cionais de caráter neoliberal que pre- O
do no debate em torno da LDB, e que,
dominaram na política educacional bra-
sinonimicamente substituiu o concei-
sileira a partir dos anos de 90, ocorre P
to de educação politécnica na propos-
um processo de ressignificação
conceitual que marcará o sentido atri-
ta da sociedade civil brasileira e no de- Q
bate parlamentar dos anos de 80-90.
buído à ‘educação tecnológica’. Em
1992, é criada a Secretaria Nacional de
Portanto, os significados atribuídos ao R
termo ‘educação tecnológica’ pela so-
Educação Tecnológica (Senete) do
Ministério da Educação, decorrente,
ciedade civil e pelo Ministério da Edu- S
cação são distintos. Por um lado, o
conforme o discurso governamental,
debate parlamentar em sua relação T
da ‘necessária’ reestruturação do apa-
com a sociedade civil, interpreta-o
relho de Estado, visando sua moder-
como uma alternativa para a educa- U
nização. Conforme a concepção do
ção politécnica, mantendo o conteú-
Ministério da Educação, V
do desta. Por outro, na proposta go-
a educação tecnológica guarda com- vernamental, ‘educação tecnológica’
promisso prioritário com o futuro, não se vincula a uma concepção pe- A
no qual o conhecimento vem se
transformando no principal recur- dagógica, mas a uma estratégia de ca-
so gerador de riquezas, seu verda- ráter econômico. A

195
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Neste conceito de ‘educação ção tecnológica’, caracterizam-se por


tecnológica’ formulado pelo Ministé- serem de duração mais curta do que
rio da Educação, ressurge, então, a ve- os tradicionais cursos de graduação de
lha retórica da educação redentora dos licenciatura e bacharelado. Esta nova
males sociais. A retórica do valor eco- configuração curricular, ‘mais focada
nômico da educação é acompanhada, e especialista’, é obtida, em geral, me-
agora em sua roupagem neoliberal, dos diante redução significativa de conteú-
paradigmas da competitividade e da mo- dos de base científica, profissional e
dernização, o que, no campo das políti- humanística, redirecionando-se os
cas educacionais, passou a orientar a currículos para a priorização de con-
aproximação das instituições do ensino teúdos técnicos aplicados e para a
técnico ao mundo empresarial, sobretu- organização e gestão da produção em-
do, pela recomendação de que tais insti- presarial. Portanto, pode-se inferir que
tuições deveriam adotar o modelo de a política em implementação da ‘edu-
gestão da iniciativa privada, dotado de cação tecnológica’ na modalidade dos
flexibilidade e operacionalidade no âm- cursos superiores de tecnologia, em
bito da lógica mercantil. curso no Brasil a partir do final dos
É por esta perspectiva teórica que anos de 90, em instituições de educa-
se orienta a formulação de educação pro- ção profissional e superior públicas e
fissional, contida no Capítulo III (arti- privadas, antes que novidade, pode
gos 39 a 42) da LDB (Lei n. 9.394/96), e reiterar a continuidade histórica de
as regulamentações posteriores, dentre uma política de dualidade ou de
elas o Decreto n. 2.208/97 que define a fragmentação educacional, median-
educação profissional em três níveis: o te a constituição de modelos alter-
básico, o técnico e o tecnoló-gico. O nativos e dirigidos a parcelas espe-
Decreto n. 5.154/04 manteve as defini- cíficas da população.
ções gerais da educação profissional con-
tidas na legislação anterior, definindo a
educação profissional tecnológica como Para saber mais:
aquela “correspondente a cursos de ní-
vel superior na área tecnológica”. BASTOS, J. A. Educação tecnológica:
Os cursos superiores de conceitos, características e perspectivas.
Tecnologia & Educação. Curitiba: Cefet-
tecnologia, que constituem a ‘educa- PR, 1998, p. 31-52.

196
Empregabilidade A

BRASIL. O Sistema Nacional de Educação MAGALINE, A. D. Luta de Classes e C


Tecnológica, Brasília, 1991. Desvalorização do Capital. Lisboa:
BRASIL. Lei n. 9.394/96, de 20 de Moraes, 1977. D
dezembro de 1996. Estabelece as MANACORDA, M. A. História da
Diretrizes e Bases da Educação Educação da Antiguidade aos Nossos Dias. E
Nacional. Brasília, 1996. São Paulo: Cortez/Autores Associados,
BRASIL. Decreto n. 2.208/97, de 17 de 1989. F
abril de 1997. Regulamenta o § 2º do art. MANACORDA, M. A. Marx e a
36 e os arts. 39 a 42 da lei n. 9.394/96. Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez/ G
Brasília, 1997. Autores Associados, 1991.
BRASIL. Decreto n. 5.154 de 23 de julho MARX, K. O Capital: crítica da economia H
de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e política. São Paulo: Civilização Brasileira,
os arts. 39 a 42 da lei n. 9.394/96.
Brasília, 2004.
1968. I
MARX, K. Instruções aos delegados do
ENGUITA, M. F. Trabalho, Escola e
Ideologia. Porto Alegre: Artes Médicas,
Conselho Central Provisório. In: N
MARX, K & ENGELS, F. (Orgs.) Textos
1993. sobre Educação e Ensino. São Paulo:
GARCIA, N. M. D. & LIMA FILHO, Moraes, 1983.
O
D. L. Politecnia ou Educação Tecnológica:
MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia
desafios ao ensino médio e à educação P
Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977.
profissional. In: XXVII Reunião Anual da
Anped, 2004, Caxambu. Anais... MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto Q
Caxambu, 2004. Comunista. São Paulo: Global, 1988.
 R

S
EMPREGABILIDADE T

U
Ramon de Oliveira
V
Para Nassin Mehedeff, ex-secre- Henrique Cardoso, período no qual foi
tário de formação e desenvolvimento desencadeada, talvez, a maior ação pú- A
profissional do Ministério do Traba- blica brasileira de qualificação profis-
lho, durante a gestão Fernando sional, o conceito de ‘empregabilidade’ A

197
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

foi lançado por especialistas em polivalentes, expressando, na visão em-


outplacement (Mehdeff, 1996). Esta pa- presarial, a possibilidade de os indiví-
lavra de origem inglesa representa um duos ajustarem-se ao conjunto de mo-
serviço prestado por especialistas em dificações ocorridas no setor produti-
recursos humanos às empresas, vo e no setor de serviços.
objetivando melhor encaminhar o Não por acaso também, o Plano
processo de dispensas de profissionais Nacional de Formação Profissional, cuja
de nível superior, ou seja, aqueles meta era garantir a qualificação dos tra-
que ocupavam cargos executivos. balhadores em risco social, objetivava
Contudo, também passou a contribuir serem perseguidas nos momentos de
no assessoramento desses profissio- qualificação: habilidades para viver na
nais demitidos de forma a facilitar a sociedade moderna, habilidades para
sua recolocação em outros locais ocupar um posto no mercado de traba-
de trabalho. lho e habilidades de empreendimento
Embora esse conceito tenha (Brasil, MTb/Sefor, 1995).
como origem os profissionais de mai-
or nível de qualificação, passou a ser O conceito de ‘empregabilidade’
largamente utilizado ao se fazer refe- surgiu como instrumento de relati-
vização da crise do emprego, face à
rências às parcelas da população com incapacidade do setor produtivo de
menor nível de escolarização e com incorporar ou manter, no seu inte-
menor poder de disputa por uma vaga rior, o mesmo número de trabalha-
no mercado de trabalho. dores. Surgiu como justificativa para
o desemprego em massa, atribuin-
No sentido mais comum, do à má qualificação dos trabalha-
‘empregabilidade’ tem sido compreen- dores a culpa por estes não atende-
dida como a capacidade de o indivíduo rem às novas exigências do merca-
manter-se ou reinserir-se no mercado do de trabalho. Nesse cenário, tor-
na-se importante entender como o
de trabalho, denotando a necessidade
conceito de ‘empregabilidade’ pas-
de o mesmo agrupar um conjunto de sou a se relacionar diretamente com
ingredientes que o torne capaz de com- as atividades de qualificação profis-
petir com todos aqueles que disputam sional e de valorização da educação
básica.
e lutam por um emprego. Não por aca-
so surge, nesse mesmo período, a déca- No início dos anos 90, as agênci-
da de 1990, a ênfase empresarial pelo as multilaterais, tais como o Banco
requerimento de trabalhadores Mundial e a Comissão Econômica para

198
Empregabilidade A

a América Latina e o Caribe (Cepal), nuo de eliminação de postos de C


preocuparam-se com uma melhor ar- trabalho e a diminuição acentuada da
ticulação entre a educação e a melhoria intervenção estatal nos campos soci- D
da qualificação dos trabalhadores. Par- ais e econômicos, no que diz respeito
ticularmente a Cepal (1992) pressupôs à garantia da reprodução da força de
E
que essa articulação contribuiria para trabalho, deslocam para o indivíduo a
F
uma melhoria da participação dos paí- responsabilidade pela criação de estra-
ses latino-americanos no cenário eco- tégias eficientes de inserção ou perma-
G
nômico internacional. De forma seme- nência no mercado de trabalho.
lhante a esta instância ligada à Organi- Contraditoriamente à lógica H
zação das Nações Unidas (ONU), o neoliberal de comprometimento do
empresariado industrial brasileiro ex- Estado com a oferta de serviços soci- I
pressou um maior interesse pela edu- ais básicos, à educação é atribuída a res-
cação, alertando que a busca da for- ponsabilidade de não só garantir a for- N
mação de novas competências por par- mação de trabalhadores mais capazes
te das instituições tradicionais de qua- de se adequarem ao novo modelo de O
lificação profissional, através de seus produção de mercadorias e de convi-
cursos, teria uma repercussão direta no vência societal, mas também ser o prin- P
aumento das possibilidades de os tra- cipal instrumento de fortalecimento do
balhadores inserirem-se no mercado de movimento ocorrido no mercado de Q
trabalho, em contínua mudança. Nesse trabalho, de aumento da eficiência e da
período, pela primeira vez, o produtividade. Vêem-se surgir políticas R
empresariado industrial brasileiro fez estatais de qualificação de mão-de-obra,
referência ao conceito de bem como uma subsunção da escola à S
‘empregabilidade’ (Oliveira, 2005). lógica economicista, pela emergência de
A incerteza de um futuro empre- práticas organizacionais e pedagógicas T
go presente no conceito de referenciadas em conceitos próprios
‘empregabilidade’ decorre do fato do novo cenário socioeconômico, U
de o mesmo surgir num momento no tais como: excelência na educação,
qual a característica do mercado de tra- qualidade total, pedagogia das com-
V
balho, notadamente do setor petências etc.
A
de produção de mercadorias, ser a ins- O conceito de ‘empregabilidade’
tabilidade ou a impossibilidade de pro- surge, neste ínterim, como um meca-
A
jeção de futuro. O movimento contí- nismo que retira do capital e do Esta-

199
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

do a responsabilidade pela implemen- frações de classe economicamente do-


tação de medidas capazes de garantir minantes (Oliveira, 2005).
um mínimo de condições de sobrevi- As novas habilidades demandadas
vência para a população. Ao se respon- pelo mercado de trabalho e nesse caso,
sabilizar os indivíduos pelo estabeleci- não exclusivamente pelo setor indus-
mento de estratégias capazes de inse- trial, caracterizam-se por um conjuga-
ri-los no mercado, justifica-se o desem- do de competências de ordem
prego pela falta de preparação dos cognitiva que possam facilitar as inter-
mesmos para acompanharem as mu- venções dos trabalhadores nos locais
danças existentes no mundo do traba- de trabalho, numa perspectiva de au-
lho. Sob a ótica da ‘emprega-bilidade’, mento de produtividade e de maior
a necessidade de os indivíduos dispo- responsabilidade com as tarefas a se-
rem de habilidades e conhecimentos rem cumpridas.
adequados aos interesses da produção Um dos questionamentos perti-
passa a ser o primeiro elemento consi- nentes à utilização em larga escala do
derado nas discussões a respeito das conceito de ‘empregabilidade’ decorre
possibilidades de superação do desem- do fato de as possibilidades de inserção
prego existente. no mercado de trabalho, embora forte-
Especificamente para a sociedade mente relativas ao capital cultural dis-
brasileira, ainda que no nível mundial ponível do indivíduo, não se resumi-
talvez possa ser feita a mesma afirma- rem a uma avaliação de suas compe-
ção, observa-se uma diminuição da pos- tências para a ocupação de um posto.
sibilidade de intervenção política, bem O momento atual de desenvolvimento
como o esvaziamento das posições con- do capitalismo estrutura-se por um forte
trárias à hegemonia do capital, por par- movimento de eliminação dos postos
te dos setores vinculados aos trabalha- de trabalho, expressando a busca do
dores. Por outro lado, evidencia-se uma capital de tornar-se autônomo em rela-
maior presença das organizações em- ção à força de trabalho.
presariais interferindo nas políticas go- Levando-se em conta o destaca-
vernamentais, assegurando no plano do por Pochmann (2001), algumas
político e econômico a legitimação dos questões devem ser levadas em consi-
seus interesses, obscurecendo outras deração quando analisamos a possibi-
concepções de desenvolvimento con- lidade de inserção no mercado de tra-
trárias àquelas gestadas pelas classes e balho. A primeira refere-se ao fato de

200
Empregabilidade A

o capital tender a buscar novas for- justificadores das contradições na so- C


mas de gerenciamento da produção ciedade capitalista. Procura-se utilizar
como mecanismo de aumento das justificativas para desviar do campo das D
suas taxas de acumulação, e esse me- relações de conflito entre capital e tra-
canismo ressalta a diminuição da uti- balho, o motivo pelo qual milhões de
E
lização da mão-de obra. Uma segun- pessoas ficam destituídas das condi-
F
da questão diz respeito ao fato de que ções mínimas de garantia de sobrevi-
por mais que se aponte a necessidade vência. O conceito de ‘empre-
G
de o trabalhador ter mais gabilidade’ encaixa-se perfeitamente
envolvimento com o processo de pro- nesse movimento, uma vez que reto- H
dução, tal envolvimento nem sempre ma com um novo formato explicações
pressupõe uma maior qualificação. que desarticulam a existência da pobre- I
O capital dispõe de maiores con- za, da marginalidade e da desigualdade
dições para explorar os trabalhadores, social ao que está estabelecido no pla- N
para impor-lhes um maior número de no das relações econômicas capitalis-
responsabilidades, sem que isso seja tas. Estes fenômenos são tidos como O
acompanhado do aumento real de sa- conseqüências de um movimento pro-
lários. Além disso, os patrões estão duzido pelas próprias pessoas visando P
mais à vontade para estabelecer níveis à satisfação de seus interesses.
maiores de seletividade no processo de O conceito de ‘empregabilidade’ Q
contratação. Logo, o discurso corren- esvazia a idéia de um movimento
te de acúmulo de competências visan- integrador e de responsabilidade co- R
do ao aumento da ‘empregabilidade’ letiva. Não à toa sua assunção evi-
mostra-se esvaziado de coerência e de denciar-se num momento no qual S
sustentação empírica, caracterizando-se se torna mais evidente a desres-
como uma falsa explicação que procu- ponsabilização do Estado com as T
ra direcionar para os próprios indivídu- políticas sociais, bem como a mini-
os a responsabilidade pela sua condi- mização de sua atuação como U
ção de desempregado. regulador das relações entre capital
Nesse sentido, podemos dizer que e trabalho.
V
a incapacidade de criar mecanismos efi-
A
cazes para a diminuição do desempre-
go em massa obriga a implementação
A
de mecanismos ideológicos

201
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: OLIVEIRA, R. de. A (Des)qualificação da


Educação Profissional Brasileira. São Paulo:
Cortez, 2003.
BRASIL/MTb/SEFOR. Educação Profis-
sional: um projeto para o desenvolvimento OLIVEIRA, R. de. Empresariado
sustentado. Brasília: Sefor, 1995. Industrial e Educação Brasileira: qualificar
para competir? São Paulo: Cortez, 2005.
CEPAL/UNESCO. Educación y Conoci-
miento: eje de la transformación productiva con POCHMANN, M. O Emprego na
equidad. Santiago do Chile: s.n., 1992. Globalização: a nova divisão internacional do
trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu.
GENTILI, P. Educar para o
São Paulo: Boitempo, 2001.
desemprego: a desinteg ração da
promessa integradora. In: FRIGOTTO, RAMOS, M. N. A Pedagogia das
G. (Org.) Educação e Crise do Trabalho: Competências: autonomia ou adaptação? São
perspectivas de final de século. Petrópolis: Paulo: Cortez, 2001.
Vozes, 2000.
MEHEDFF, N. G. A era da
empregabilidade. O Globo, Rio de Janeiro,
9 out. 1996.

EQÜIDADE EM SAÚDE

Sarah Escorel

O termo eqüidade é de uso rela- respondentes, e dá outras providênci-


tivamente recente no vocabulário da as, é “a igualdade de assistência à saú-
Reforma Sanitária brasileira. Foi incor- de, sem preconceitos ou privilégios de
porado posteriormente à promulgação qualquer espécie” que figura entre os
da Constituição de 1988 que se refere princípios reitores do Sistema Único
ao direito de todos e dever do Estado de Saúde (SUS). Nem nessa lei, nem
em assegurar o “acesso universal e igua- na 8.142/90 eqüidade em saúde é re-
litário às ações e serviços” de saúde. ferida.
Na lei 8.080/90, que dispõe sobre as O conceito de eqüidade em saú-
condições para a promoção, proteção de foi formulado por Margaret
e recuperação da saúde, a organização Whitehead incorporando o parâmetro
e o funcionamento dos serviços cor- de justiça à distribuição igualitária. “Ini-

202
Eqüidade em Saúde A

qüidades em saúde referem-se a dife- igualdade eqüitativa de oportunidades; C


renças desnecessárias e evitáveis e que e, em segundo, devem ser para o mai-
são ao mesmo tempo consideradas in- or benefício dos membros da socie- D
justas e indesejáveis. O termo iniqüi- dade que têm menos vantagens
dade tem, assim, uma dimensão ética e (Rawls, apud Sen, 2001).
E
social” (Whitehead, 1992). Kawachi, No segundo princípio de Rawls
F
Subramanian e Almeida Filho, em seu eqüidade aparece como adjetivo; qua-
Glossário das Desigualdades em Saúde lifica a igualdade de oportunidades,
G
(2002), consideram ser difícil confere uma carga valorativa. É, pois,
operacionalizar os atributos “evitável” a partir do conceito de igualdade, mas H
e “desnecessário”, restringindo à injus- dele distinguindo-se por incorporar
tiça o critério que distingue desigual- juízos de valor, que foi construída a I
dades de iniqüidades. definição de eqüidade.
A definição de Whitehead é No Dicionário de Política (1991), N
caudatária da teoria da justiça de John Oppenheim distingue três significa-
Rawls, considerada por Amartya Sen dos de igualdade tomando por base o O
(2001) “a teoria da justiça mais influ- âmbito de exercício do conceito. No
ente – e acredito que a mais impor- caso das características pessoais de P
tante – apresentada neste século, a da qualquer ordem (cor do cabelo ou dos
‘justiça como eqüidade’”. Rawls apre- olhos, por exemplo), é um conceito Q
sentou, em 1982, uma reelaboração descritivo, de comprovação empírica,
dos dois princípios propostos, em não depende de escalas de valores. R
1971, na edição em inglês de “Teoria Quando se refere às normas de dis-
da Justiça”: tribuição significa que duas pessoas S
1.Cada pessoa tem igual direito a quaisquer são tratadas iguais em rela-
um esquema plenamente adequado de ção a uma determinada regra e tam- T
liberdades básicas iguais que seja com- bém em virtude desta regra. E, como
patível com um esquema similar de li- propriedade das regras de distribui- U
berdades para todos. ção quer dizer o caráter igualitário da
2. As desigualdades sociais e eco- própria regra. Nesse último significa-
V
nômicas devem satisfazer duas con- do, que associa igualdade à justiça,
A
dições. Em primeiro lugar, devem es- surge a definição de eqüidade.
tar associadas a cargos e posições Uma segunda distinção pode ser
A
abertos a todos sob condições de feita em relação ao momento do pro-

203
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cesso de distribuição. Igualdade pode igualitárias em relação a uma distri-


qualificar a quantidade de benefíci- buição anterior.
os ou penalidades que serão distri-
buídos ou pode indicar os resulta- Turner (1986) indica que a
dos finais da repartição. igualdade pode ser avaliada em qua-
tro dimensões:
Regras de igualdade proporcio- • Ontológica – inerente aos seres
nal distribuem partes diferentes a humanos, constituinte de princípios
pessoas diferentes, na proporção da religiosos e de correntes filosóficas;
diferença. O elemento central das
regras pode estar no mérito (“a cada • Oportunidades – princípio das
um segundo o próprio merecimen- doutrinas liberais que consideram
to”), ou em diferenças relevantes que dado um mesmo patamar de di-
para a regra em questão, como por reitos, o acesso a posições sociais
exemplo, a desigualdade de riqueza resulta da competição entre os indi-
e o pagamento de impostos. Nesse víduos que as conquistarão confor-
caso, as regras não são igualitárias já me seus méritos;
que a carga de impostos é diferente
entre as pessoas, entretanto, são re- • Condições – estabelecimento
gras justas porque a tributação está de um mesmo nível de partida, isto
relacionada com a capacidade de pa- é, nivelamento da satisfação de um
gamento de cada um, e os mais ricos mínimo de necessidades básicas
pagam mais impostos. Regras de substancialmente idênticas em todos;
igualdade proporcional envolvem • Resultados – envolve mudan-
conceitos de valor; são objetos de ças nas regras de distribuição para
avaliação subjetiva e não de verifica- transformação das desigualdades de
ção objetiva, como assinala início em igualdade de conclusão.
Oppenheim (1991). O princípio de eqüidade surge
no período contemporâneo associa-
Do ponto de vista dos resulta- do aos direitos das minorias e intro-
dos das regras de distribuição, estas duz a diferença no espaço público da
seriam igualitárias quando nivelam cidadania, espaço por excelência da
ou reduzem as diferenças. Portanto, igualdade. O reconhecimento da di-
só podem ser classificadas como ferença entra em conflito com o pen-

204
Eqüidade em Saúde A

samento jurídico clássico que perce- der às necessidades de outros, man- C


be a cidadania como sendo comum tendo as desigualdades” (Ministé-
e indiferenciada. Entretanto, dada a
rio da Saúde, 2000). D
diversidade das sociedades modernas, Lígia Vieira Silva e Naomar
Almeida Filho elaboraram uma “análi-
E
“a noção de igualdade só se com- se de série significante – distinção, di-
pleta se compartida à noção de eqüi- F
ferença, desigualdade, iniqüidade – no
dade. Não basta um padrão univer-
sentido de uma teoria social da saúde”.
sal se este não comportar o direito G
à diferença. Não se trata mais de um Nessa teoria “diferença remete ao in-
padrão homogêneo, mas de um dividual, diversidade à espécie, desi-
padrão equânime” (Sposati, 1999,
H
gualdade à justiça e distinção ao sim-
p.128).
bólico. Iniqüidade adquire sentido no I
Dessa forma, a idéia de eqüidade campo político como produto dos
foi incorporada e até mesmo substi- conflitos relacionados com a reparti- N
tuiu o conceito de igualdade. Igualda- ção da riqueza na sociedade” (2000, p.
de significaria a distribuição homogê- 4-11). Dessa forma, corrobora-se a O
nea, a cada pessoa uma mesma quanti- acepção de que há um limite das de-
dade de bens ou serviços. Eqüidade, sigualdades a partir do qual passam P
por sua vez, levaria em consideração a ser consideradas como iniqüidades,
que as pessoas são diferentes, têm ne- ou seja, “perversas, malévolas, extre- Q
cessidades diversas. Uma distribuição mamente injustas” (Buarque de
eqüitativa responde ao segundo ele- Holanda, s/d). R
mento do princípio marxista “de cada Igualdade e desigualdade são
um segundo suas capacidades, a cada conceitos mensuráveis que se referem S
um segundo suas necessidades” (Marx, a quantidades passíveis de serem me-
1875, s/d). Sendo assim, o princípio didas. Por sua vez, eqüidade e iniqüi- T
de eqüidade estabelece um parâmetro dade são conceitos políticos que ex-
de distribuição heterogênea. pressam um compromisso moral com U
a justiça social (Kawachi et al, 2002).
“Se o SUS oferecesse exatamente o A partir do momento em que de-
V
mesmo atendimento para todas as finições ou instrumentos de justiça são
pessoas, da mesma maneira, em to- A
dos os lugares, estaria provavelmen- acionados para estabelecer o conceito
te oferecendo coisas desnecessári- de eqüidade fica patente que não há
as para alguns, deixando de aten-
A
como fugir de juízos de valor. É preci-

205
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

so então perguntar “eqüidade em rela- presenta uma situação de eqüidade ver-


ção a quê?”, para compreender o seu tical (Travassos & Castro, 2008).
significado. O julgamento e a medida Eqüidade horizontal, por sua vez,
das desigualdades dependem integral- corresponde à igualdade entre iguais,
mente da escolha da variável em torno ou seja, uma regra de distribuição igua-
da qual a comparação é feita (Sen, litária entre pessoas que estão em igual-
2000). Se valores são intrínsecos às dade de condições. A eqüidade no aces-
decisões eles devem ser explicitados, so e utilização de serviços de saúde é
coletivamente assumidos e perma- abordada em relação à eqüidade hori-
nentemente avaliados e revistos, seja zontal e tem sido operacionalizada
porque os critérios selecionados não como “igualdade de utilização de ser-
se revelaram os mais adequados, seja viços de saúde entre os grupos sociais
porque depois dos critérios aplicados para necessidades de saúde iguais”.
as situações sofreram modificações Pode-se dizer que as normas que re-
e exigem novos critérios e escolhas. gem o SUS incorporam a definição de
Há, portanto, que pensar a eqüidade eqüidade horizontal, ou seja, acesso,
em saúde como um processo, perma- utilização e tratamento igual para ne-
nente, em transformação, que vai mu- cessidades iguais (Travassos & Castro,
dando seu escopo e abrangência na 2008).
medida em que certos resultados são Em geral, o princípio de eqüida-
alcançados. de tem sido operacionalizado em duas
principais dimensões: condições de
Eqüidade pode ser analisada saúde e acesso e utilização dos servi-
como vertical e como horizontal. Eqüi- ços de saúde.
dade vertical é entendida como desi- No âmbito das condições de saú-
gualdade entre desiguais, ou seja, uma de é analisada a distribuição dos riscos
regra de distribuição desigual para in- de adoecer e morrer em grupos
divíduos que estão em situações dife- populacionais. Embora variações bio-
renciadas. A noção de eqüidade verti- lógicas (sexo, idade) determinem dife-
cal é geralmente empregada em rela- renças de morbidade e mortalidade, a
ção ao financiamento. Por exemplo, a maior parte das condições de saúde é
progressividade no financiamento, isto socialmente determinada e não decor-
é, a contribuição inversamente propor- re de variações naturais, ou de livres
cional ao rendimento das pessoas re- escolhas pessoais por estilos de vida

206
Eqüidade em Saúde A

mais ou menos saudáveis. Os pobres, so aos serviços de saúde. Modifica- C


grupo social e economicamente vulne- ções nas características do sistema
rável, pagam o maior tributo em ter-
de saúde alteram diretamente as D
desigualdades sociais no acesso e no
mos de saúde acumulando a carga de uso, mas não são capazes de mudar
maior freqüência de distribuição de por si só as desigualdades sociais E
doenças, sejam estas de origem infec- nas condições de saúde entre os
grupos sociais” (Travassos & Cas- F
ciosa, sejam crônico-degenerativas, ou tro, 2008).
ainda as originadas de causas externas.
Outros âmbitos de
G
Para alguns autores, essa é a dimensão
mais importante da eqüidade em saú- operacionalização e de análise da eqüi-
H
de (Evans et al, 2002) e à sua dade são relativos ao princípio
orientador das reformas dos sistemas
mensuração dedicam-se estudiosos e I
instituições (Carr-Hill & Chalmers- de saúde e à institucionalidade do sis-
tema de saúde. No primeiro caso veri-
Dixon, 2005). N
Em relação à esfera do acesso e fica-se em que medida a eqüidade é o
utilização dos serviços de saúde ve- princípio que prepondera na definição O
rificam-se as diferentes possibilida- das políticas de saúde e nos seus des-
des de consumir serviços de saúde dobramentos em programas e ações. P
dos diversos graus de complexidade Também pode ser observado se eqüi-
por indivíduos com necessidades dade prevalece sobre, e é Q
iguais de saúde. complementada pela orientação de efi-
ciência, ou se é a ela subordinado pos- R
“As condições de saúde de uma to que, neste caso, a ordem dos fato-
população estão fortemente asso- res, em geral, altera o produto. Ainda S
ciadas ao padrão de desigualdades nesse âmbito sobressaem dois aspec-
sociais existentes na sociedade. Já
as desigualdades sociais no acesso tos: a predominância de políticas uni- T
e utilização de serviços de saúde são versais ou, ao contrário, de políticas
expressão direta das características residuais e seletivas, focalizadas; e, a U
do sistema de saúde. A disponibili- distribuição de recursos financeiros
dade de serviços e de equipamen-
que interferem diretamente na promo- V
tos diagnósticos e terapêuticos, a
sua distribuição geográfica, os me- ção da eqüidade entre grupos sociais e
canismos de financiamento dos ser- regiões geográficas. A
viços e a sua organização represen-
Em relação à institucionalidade
tam características do sistema que A
podem facilitar ou dificultar o aces- do sistema de saúde outros dois tópi-

207
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cos de grande impacto na Quaisquer que sejam as dimen-


implementação das políticas de saúde sões adotadas, a análise das iniqüida-
podem ser analisados no que se refere des em saúde deve apoiar-se na posi-
a um padrão mais ou menos eqüitati- ção social da pessoa (que agrupa mui-
vo: o processo de descentralização real tos dos fatores de risco individuais
de poder e autonomia para o nível lo- como idade, sexo, hábitos alimentares,
cal de regulação do sistema de saúde e tabagismo e consumo de álcool, peso
sua conseqüente responsabilização e pressão arterial) e nas características
pelas condições de saúde e assistência do contexto social mais amplo (local
aos munícipes; e, o processo decisório de residência urbano ou rural, situação
analisando a presença ou ausência de ocupacional, políticas econômicas e
uma efetiva e representativa participa- sociais mais amplas). “Todo marco [de
ção social. conhecimento] deve captar a idéia de
A operacionalização das catego- que as vias finais fisiológicas que con-
rias referentes às quatro dimensões duzem às más condições de saúde in-
assinaladas esbarra em dificuldades re- dividuais estão inextricavelmente liga-
lacionadas com os sistemas de infor- das às condições sociais” (Diderichsen
mação e, também, em modelos que et al, 2002).
organizem as informações em estru- Tendo em vista essa concepção da
turas lógicas de conhecimento. Por determinação social da saúde, os auto-
exemplo, o estudo Medindo as desigual- res apresentam um modelo constituí-
dades em saúde no Brasil: uma proposta de do por quatro mecanismos que desem-
monitoramento (Viana et al., 2001) ado- penham um papel na geração das ini-
tou seis dimensões de análise. O âm- qüidades em saúde e, ao mesmo tem-
bito das condições de saúde foi des- po, constituem pontos de partida de
dobrado em situação de saúde e con- políticas para reduzir a falta de eqüida-
dições de vida. A esfera do acesso e de em saúde: estratificação social; ex-
utilização dos serviços de saúde foi posição diferencial; vulnerabilidade (ou
desmembrada em oferta (recursos hu- susceptibilidade) diferencial; e conse-
manos e capacidade instalada), acesso qüências sociais diferenciais das más
e utilização de serviços, e qualidade de condições de saúde.
atenção. A sexta dimensão adotada no
estudo diz respeito ao financiamento “A formulação de uma resposta
(despesas federal e familiar). política forte e adequada às iniqüi-

208
Eqüidade em Saúde A

dades de saúde obriga a agir numa políticas eqüitativas serão sempre im- C
ampla variedade de campos: em prescindíveis.
primeiro lugar, devem ser estabele- D
cidos os valores; a seguir, há que se
descrever e analisar as causas; de-
E
pois, devem ser erradicadas as cau- Para saber mais:
sas profundas das iniqüidades; e,
por último, devem-se reduzir as F
BARATA, R. B.; BARRETO, M. L.;
conseqüências negativas das más
ALMEIDA FILHO, N.; VERAS, R. P.
condições de saúde” (Whitehead et
Eqüidade e Saúde: contribuições da G
al, 2002).
Epidemiologia. Rio de Janeiro: Fiocruz/
Políticas eqüitativas constituem Abrasco, 1997. H
um meio para se alcançar a igualdade. BUARQUE de HOLANDA, A. Novo
Numa perspectiva relativamente utó- Dicionário Eletrônico Aurélio. Versão 5.0. I
Positivo Informática, s/d.
pica podemos pensar que ações desse
tipo integrariam uma fase intermediá- CARR-HILL, R.; CHALMERS- N
D I XO N, P. T h e P u b l i c H e a l t h
ria, transitória, visando a atingir a igual-
dade de condições, de oportunidades
Obser vatory Handbook of Health O
Inequalities Measurement. South
sociopolíticas. Ou seja, fazendo uma East Public Health Obser vator y.
Oxford, 2005. P
distribuição desigual para pessoas e
grupos sociais desiguais (mais para DIDERICHSEN, F.; EVANS, T.;
WHITEHEAD, M. Bases sociales de las Q
quem tem menos) atingiríamos (hipo-
disparidades en salud. In: EVANS, T.;
teticamente) uma situação de igualda- WHITEHEAD, M.; DIDERICHSEN, R
de, em que todos teriam acesso às mes- F.; BHUIVA, A.; WIRTH, M. (Ed.)
mas coisas, fossem elas bens e servi- Desafío a la falta de Equidad en la Salud: de S
ços ou oportunidades. Mas, uma vez la ética a la acción. Fundación Rockefeller:
Organización Panamericana de la Salud.
atingido esse patamar de igualdade de Publicación Científica y Técnica n. 585, T
condições as políticas eqüitativas ain- 2002.
da seriam necessárias, pois não se pode ESCOREL, S. Os dilemas da eqüidade U
prescindir dos critérios de justiça. E, em saúde: aspectos conceituais. http://
sobretudo no campo da saúde, em que www.opas.org.br/servico/Arquivos/ V
as necessidades são sempre diferentes, Sala3310.pdf. Acesso em: ago. 2008.
em que cada caso é um caso, a igualda- EVANS, T.; WHITEHEAD, M.; A
DIDERICHSEN, F.; BHUIVA, A.;
de de condições parece algo impossí-
vel (e indesejável) de ser atingido e
WIRTH, M. (Ed.) Desafío a la falta de A
Equidad en la Salud: de la ética a la acción.

209
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Fundación Rockefeller: Organización no acesso e utilização dos serviços de


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210
Exclusão Social A

C
EXCLUSÃO SOCIAL
D
Sarah Escorel
E
A origem mais contemporânea sem suscitar polêmicas ou debates. Até
F
do termo exclusão social é atribuída ao então essas análises referiam-se à
título do livro de René Lenoir, Les underclass, e, posteriormente, à
G
exclus: un français sur dix (‘Os excluídos: marginalidade. A noção de underclass foi
um em cada dez franceses’), publicado utilizada para classificar moradores dos H
em 1974, ainda que o trabalho não con- guetos norte-americanos, com forte
tivesse qualquer elaboração teórica do carga preconceituosa e estigmatizante I
conceito de exclusão social. A preocu- que parecia estabelecer quase um ‘des-
pação do então Secretário de Ação tino’ de gravidez precoce, desempre- N
Social do governo gaullista de Jacques go, alcoolismo, família desestruturada
Chirac concentrava-se nos e criminalidade. Numa direção teórica O
‘inadaptados sociais’, nos pobres que oposta, com forte influência do mar-
precisavam ser amparados por ações xismo, na década de 1960, P
governamentais, representando gastos marginalidade era um conceito inte-
sociais crescentes. O título foi confe- grante da teoria que buscava entender Q
rido pelo editor baseado no sucesso a inserção marginal no processo pro-
dos trabalhos de Foucault, principal- dutivo capitalista nas economias de- R
mente em sua história sobre a loucura pendentes da América Latina.
(Didier, 1996). No momento da publi- Em 1976, na França, o processo S
cação do livro de Lenoir, quando a si- de pauperização começou a atingir não
tuação de pobreza na França parecia apenas os grupos populacionais ‘tra- T
ser residual e superável, a noção de dicionalmente marginalizados’ (imi-
exclusão estava relacionada à sua di- grantes e moradores das periferias),
U
mensão subjetiva e não à sua dimen- mas também os que até então pareci-
V
são objetiva, econômico-ocupacional. am inseridos socialmente e usufruin-
Antes de ganhar o destaque no do, mesmo que nas margens do siste-
A
título do livro, referências à exclusão e ma capitalista, dos benefícios do de-
excluídos eram utilizadas nos trabalhos senvolvimento econômico e da prote-
A
sobre pobreza e desigualdades sociais ção social. A partir de meados dos anos

211
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

80, frente a uma situação objetiva de No Brasil, na década de 1990, es-


aumento das desigualdades e de mu- tudiosos também identificam uma
dança do perfil de pobreza, a noção de nova problemática social a exigir uma
exclusão social estabeleceu-se no de- conceituação própria. No entanto, as
bate público e acadêmico e foi em solo análises tendem a considerar a emer-
francês que o tema adquiriu prepon- gência do fenômeno contemporâneo
derância e estatuto teórico, relevância como expressão de um processo com
e publicidade. raízes históricas ancestrais na socieda-
Exclusão social passou a ser usa- de brasileira, ao longo do qual ocorre-
do para denominar o fenômeno in- ram situações de exclusão que deixa-
tegrante de uma “nova questão so- ram marcas profundas em nossa so-
cial” (Rosanvallon, 1995; Castel, ciabilidade, como a escravidão. A par-
1991, 1998), problemática específi- tir dessa marca estrutural a sociedade
ca do final de século XX, cujo nú- apresentou, nos diversos períodos his-
cleo duro foi identificado na crise do tóricos, faces diferenciadas, expressões
assalariamento como mecanismo de de processos sociais presididos por
inserção social. Essa crise, por sua uma mesma ‘lógica’ econômica e/ou
vez, era oriunda de mudanças no de cidadania excludente. Na década de
processo produtivo e na dinâmica de 80, a transição do regime político e os
acumulação capitalista gerando a di- ciclos econômicos recessivos aumen-
minuição de empr eg os, taram a visibilidade da ‘questão social’.
inviabilizando essa via de constitui- Na década de 90, e não antes, surgi-
ção de solidariedades e de inserção ram os sinais evidentes de uma piora
social, constituindo os ‘inválidos pela das condições de vida. A exclusão so-
conjuntura’ e provocando fraturas na cial tornou-se visível e contundente a
coesão social. A exclusão foi então partir da população de rua e da violên-
percebida como uma marca profun- cia urbana (Nascimento, 1993).
da de disfunção societal que assume No processo de construção do
uma multiplicidade de formas. O conceito de exclusão social este tem
conceito expressa a existência de um sido contraposto e diferenciado de uma
fenômeno diferente de uma ‘nova série relativamente abrangente de ou-
pobreza’, e ao mesmo tempo, tem a tros termos e categorias, que acabam
capacidade de vocalizar a indignação por integrar o ‘vocabulário’ da exclu-
com esse mundo partido em dois. são: desvinculação, desfiliação,

212
Exclusão Social A

desqualificação, precariedade, duo posto que não consegue “adquirir C


vulnerabilidade, marginalização, discri- a cesta básica de alimentos que lhe pro-
minação e segregação social. Pelo lado porcione nutrição suficiente para uma D
positivo do fenômeno há também dis- vida ativa e produtiva” (Gershman &
tinções a fazer entre inclusão social e Irwin, 2000, p. 15).
E
justiça social, capital social, integração, A pobreza relativa, a desigualda-
F
emancipação, autonomia e de, é a falta de recursos ou de consu-
empoderamento. mo em relação a padrões usuais ou
G
A exclusão social integra o cam- aprovados pela sociedade do que é
po da pobreza e das desigualdades considerado essencial para uma vida H
embora seja diferente destes dois con- digna. As desigualdades sociais expres-
ceitos e contenha em si situações e pro- sam as modalidades e os mecanismos I
cessos que podem se desenvolver fora mediante os quais numa dada socieda-
do âmbito da pobreza e das desigual- de são distribuídos bens e recursos, N
dades sociais, como por exemplo, a atribuindo posições diferenciadas e
impossibilidade dos homossexuais relativas aos indivíduos e grupos em O
constituírem uniões estáveis e terem relação ao acesso aos bens, e também
direito à herança de seus companhei- em relação a uma escala de valores P
ros ou companheiras. Entretanto, a mediante a qual estes lugares sociais
maior parte dos processos de exclu- são avaliados. As três dimensões essen- Q
são social está relacionada e tem con- ciais do processo de estratificação são
seqüências diretas nas condições eco- a riqueza, o prestígio e o poder (Cavalli, R
nômicas dos grupos populacionais, e 1991). Nas sociedades ocidentais e
se fazem mais presentes em situações modernas, ou melhor, no modo de S
de intensa pobreza e desigualdades produção capitalista, o fato fundamen-
sociais. tal que orienta a estratificação é a pro- T
A pobreza absoluta significa não priedade dos meios de produção e a
ter acesso aos bens e serviços essenci- divisão social do trabalho, conforman- U
ais, é a impossibilidade de suprir as do um sistema de classes sociais.
necessidades básicas, alimentares e Amartya Sen (2000) aponta os li-
V
não-alimentares (Lopes, 1992). A in- mites da abordagem das desigualdades
A
digência ou miséria é o afastamento de pelo critério de renda. No seu enten-
um mínimo necessário à manutenção der, o mais importante é verificar como
A
da sobrevivência física de um indiví- a renda e outros bens e serviços con-

213
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tribuem para as capacidades das pes- mica, política, social e cultural –, e


soas de atingir seus objetivos de viver em diferentes níveis incluindo indi-
vidual, domiciliar, grupal, comuni-
uma vida digna e satisfatória. Nesse tário, nacional e global. Resulta em
sentido, outro conceito importante é um continuum de inclusão/exclusão
o de vulnerabilidade, pois permite ana- caracterizado por acessos desiguais
lisar a exposição de determinados gru- aos recursos, capacidades e direitos
que produzem iniqüidades em saú-
pos a riscos externos e avaliar suas ca- de (Popay et al, 2008, p. 36).
pacidades em responder a estes desa-
fios (Gershman e Irwin, 2000). A noção de exclusão social desig-
O conceito de exclusão social na ao mesmo tempo um processo e
amplia as dimensões de análise da po- um estado. Uma trajetória ao longo de
breza e das desigualdades. um eixo inserção/exclusão, um movi-
mento que exclui, processos potenci-
É o processo pelo qual indivíduos almente excludentes, vetores de exclu-
ou grupos são total ou parcialmen- são ou vulnerabilidades e, ao mesmo
te excluídos de participarem inte- tempo, um estado, a condição de ex-
gralmente da sociedade em que vi-
vem (European Foundation for the Im- clusão, o resultado do movimento.
provement of Living and Working Con- Nessa condição (estado) costuma-se
dition, apud Gershman e Irwin, verificar a sobreposição das situações
2000, p. 16). de exclusão num mesmo grupo social.
São processos de vulnerabilidade,
Há uma somatória, uma concentra-
fragilização ou precariedade e até ção dos critérios sociais de discrimi-
ruptura dos vínculos sociais em nação, estigmatização e exclusão em
cinco dimensões da existência hu- certos grupos a um ponto tal que a
mana em sociedade: ocupacionais
exclusão social caracteriza o contex-
e de rendimentos; familiares e so-
ciais proximais; políticas ou de ci- to de sociabilidade.
dadania; culturais; e, no mundo da
vida onde se inserem os aspectos Processos excludentes produzem
relacionados com a saúde (Esco- uma distribuição injusta de recur-
rel, 1999, p. 75). sos e acessos desiguais a capacida-
des e direitos de: criar as condições
A exclusão consiste de processos necessárias para que todas as po-
dinâmicos, multidimensionais pro- pulações tenham e possam ir além
duzidos por relações desiguais de das necessidades básicas; permitir
poder que atuam ao longo de qua- sistemas sociais participativos e co-
tro dimensões principais – econô-

214
Exclusão Social A

esos; valorizar a diversidade; garan- No campo da saúde, a exclusão C


tir a paz e os direitos humanos; e, social foi abordada em trabalho con-
sustentar sistemas ambientais (Po-
junto realizado pela Organização In- D
pay et al, 2008, p. 36).
ternacional do Trabalho (OIT) e pela
Nem todos concordam que exclu- Organização Pan-Americana da Saú-
E
são social seja uma categoria explicativa de (OPS), relativo à Extensão da
de fenômenos sociais contemporâne- F
Proteção Social em Saúde (EPSS,
os. A maior crítica que é feita ao con- 1999), posteriormente desenvolvido
ceito é que, assim como underclass e G
pela OPS (2001, 2003) com a Agên-
marginalidade, traz implícita uma visão cia Sueca para o Desenvolvimento
dicotômica, que divide o todo em duas
H
Internacional.
partes, perdendo a complexidade das A OPS define exclusão social I
relações sociais envolvidas no fenôme- como um processo estr utural,
no. Não existiria um dentro (inclusão) multidimensional, que envolve a falta N
e um fora (exclusão) da sociedade. To- de recursos e oportunidades e a falta
das as relações constituiriam uma mes- de pertencimento como um produto O
ma tessitura social, mais ou menos da ruptura dos laços sociais que per-
esgarçada, porém sempre tecida. mitem que os indivíduos integrem uma P
rede social (OPS, 2003). A exclusão em
A noção passou a ser criticada saúde, fenômeno integrante, mas in- Q
tanto pelos alegados limites em dependente da exclusão social, consti-
sua capacidade explicativa
tui a negação do direito de uma pessoa R
como em função do uso abusi-
vo do termo. (...) [Sua] contri- ou um grupo de satisfazer suas neces-
buição é mais relevante no cam- sidades em saúde e pode adotar dife- S
po da ação pública do que no rentes formas em função de fatores
da pesquisa social. Exclusão geográficos, culturais, econômicos e T
social remeteria ao enfraqueci-
sociais (OIT e OPS, 1999).
mento da participação dos in-
A exclusão em saúde tem em sua U
divíduos nas redes sociais mais
fundamentais do contexto em origem três dimensões: falta de aces-
que vivem (...) enfraquecimen- so; problemas de financiamento; e bai-
V
to, mas não descarte, abando- xa dignidade da atenção (qualidade e
no, porque o excluído pertence A
oportunidade dos serviços). Portanto,
ao sistema em relação ao qual
a proteção social em saúde (EPSS), di-
ele tende a ser colocado à mar- A
gem (Zioni, 2006, p. 24). reito dos cidadãos e dever do Estado,

215
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

deve garantir: o acesso aos serviços eli- perfil dos grupos e indivíduos vulne-
minando qualquer tipo de barreira; a ráveis a processos de exclusão nos sis-
segurança financeira dos domicílios; e a temas de saúde é, em sua maioria, de
atenção com qualidade e dignidade. pobres, idosos, mulheres, crianças,
A exclusão social em saúde tende grupos étnicos, trabalhadores infor-
a ser maior em sistemas de saúde que mais, desempregados e subemprega-
apresentam uma ou mais de quatro dos e população rural, indicando que
características: segmentação ou coexis- a exclusão em saúde reitera os pro-
tência de subsistemas com diferentes cessos excludentes que estão vigen-
arranjos de financiamento, filiação e tes na sociedade.
prestações que segmentam a popula- Um enfoque diferenciado das re-
ção segundo seu nível de renda ou ca- lações entre exclusão social e iniqüida-
pacidade de contribuição; fragmenta- des em saúde veio à luz com a consti-
ção ou existência de múltiplas entida- tuição da Comissão de Determinantes
des não integradas dentro de um mes- Sociais em Saúde da Organização
mo subsistema que aumentam a inefi- Mundial de Saúde (OMS), que estimu-
ciência dos recursos; predomínio do lou a composição de nove redes de
pagamento direto dos serviços ou um conhecimento entre as quais a Rede de
alto gasto individual; e a frágil reitoria Conhecimentos sobre Exclusão Soci-
manifesta na ausência de regras justas al. Em seu Relatório Final, o grupo de
nas relações entre usuários e pesquisadores (Popay et al, 2008) res-
prestadores (OPS, 2002 apud salta a importância da abordagem pro-
Hernández et al, 2008). cessual da exclusão social em
Pesquisas realizadas pela OPS contraposição ao que vem sendo feito
(2003) identificaram, na região das correntemente por órgãos e unidades
Américas, que a exclusão em saúde está de combate à exclusão social que con-
fortemente associada com a pobreza, centram suas preocupações e ações em
a marginalidade, a discriminação racial grupos excluídos, em situações extre-
e outras formas de exclusão relaciona- mas, desconsiderando os processos
das a: características culturais, precari- causais e, preconizando políticas foca-
edade do emprego, subemprego e de- lizadas minoram as conseqüências mas
semprego, isolamento geográfico, fal- não atingem as causas dos processos
ta de acesso aos serviços públicos e excludentes que continuam a produzir
baixo nível educacional das pessoas. O grupos de excluídos.

216
Exclusão Social A

Focando a atenção em processos res de vulnerabilidade e nas capacida- C


incrustados nas relações de poder, des de proteção, aprofundando a dife-
em questões de mediação e inter-
renciação e estratificação social (Popay D
venção (quem está sendo excluído,
por quem e como respondem?) e et al, 2008).
na natureza multidimensional e in- Embora seja pequeno o número
E
ter-relacionada das iniqüidades eco- de pesquisas adotando o conceito de
nômicas e sociais, [a categoria de] F
exclusão social provê novas com- exclusão social como alavanca analíti-
ca para compreender as causas das de-
preensões sobre os determinantes G
das desigualdades sociais em saúde sigualdades em saúde, é possível iden-
e fornece novas direções para polí- tificar tanto no plano teórico quanto
ticas e ações reparadoras (Popay et H
no empírico as relações entre exclusão
al, 2008, p. 37).
social e desigualdades em saúde. Essas I
A estratificação social produzida relações são de ordem constitucional
nas quatro dimensões – social, políti- e instrumental. Constitucional, pois a N
ca, econômica e cultural – em que in- participação restrita nas relações eco-
divíduos, grupos, comunidades ou pa- nômicas, sociais, políticas e culturais O
íses estão posicionados em situações tem impacto negativo na saúde e no
de maior ou menor inserção, experi- bem-estar. Instrumental, na medida em P
mentando processos mais ou menos que essas restrições resultam em ou-
excludentes, está relacionada com a tras privações que contribuem para o Q
exposição diferenciada a circunstânci- adoecimento e piores condições de
as prejudiciais para a saúde. E, ao mes- saúde. O modelo elaborado pela Rede R
mo tempo, essa posição social estabe- de Conhecimento sobre Exclusão So-
lece as capacidades (de ordem biológi- cial fornece um guia útil para o desen- S
ca, social, psicológica e econômica) das volvimento de políticas e ações
pessoas de se protegerem (ou não) direcionadas para reverter os proces- T
dessas circunstâncias, assim como pos- sos excludentes, e um marco de avalia-
sibilita ou restringe seu acesso aos ser- ção para examinar a adequação e o U
viços de saúde e a outros serviços es- impacto de tais políticas e ações (Popay
senciais para a proteção e promoção et al, 2008).
V
da saúde. Esses processos criam desi-
gualdades em saúde que A
retroalimentam e aumentam as iniqüi-
dades em relação à exposição de fato-
A

217
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

PARA SABER MAIS: Final del Grupo Colombia - Nodo


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219
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

220
A

C
F D
FOCALIZAÇÃO EM SAÚDE E

F
Maria Lúcia Frizon Rizzotto
G
Focalização tem sido traduzida Tais projetos teriam como objetivo
como a ação de concentrar os recur- explícito combater a pobreza, satisfa-
H
sos financeiros disponíveis em uma zendo as necessidades básicas, o que
população definida. Em última instân- deveria propiciar um mínimo de digni-
I
cia, trata-se de uma decisão orientada dade a esse segmento populacional.
N
por razões de caráter econômico. Nas Nesse sentido, a discussão da
últimas décadas do século XX, no ‘focalização’ está diretamente relaciona-
O
âmbito das políticas sociais em geral e da com a temática da pobreza.
das políticas de saúde em particular, o Pode-se afirmar que o interesse P
termo ‘focalização’ assume status de dos Organismos Internacionais pela
categoria com ampla utilização em pobreza ocorreu, de forma mais enfá- Q
documentos de Organismos Interna- tica, em dois momentos distintos. Pri-
cionais, como o Banco Mundial, o Fun- meiro, no final da década de 1960, iní- R
do Monetário Internacional (FMI), a cio da era McNamara na presidência
Organização Pan-Americana da Saú- do Banco Mundial, quando se consta- S
de (Opas), a Organização das Nações tou que o crescimento econômico
Unidas para a Educação, a Ciência e a ocorrido nos países periféricos, nas T
Cultura (Unesco), entre outros, que décadas anteriores, não resultou de
passaram a difundir a idéia de que o forma mecânica e imediata em desen- U
alívio da pobreza e a redução das enor- volvimento social, em na redução das
mes desigualdades sociais existentes desigualdades sociais existentes. O V
nos países dependentes iriam ocorrer crescimento econômico experimenta-
a partir da implementação de projetos do não melhorou a situação de vida das A
e programas sociais dirigidos às popu- pessoas marginalizadas nessas socieda-
lações pobres e grupos vulneráveis. des, ao contrário, reverteu em maior A

221
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

concentração de renda e aumento das nuidade da acumulação, ampliação e


desigualdades intra e entre países. O concentração capitalista em nível mun-
segundo momento se deu na década dial. É nesse contexto que a
de 1990, quando os níveis de pobreza ‘focalização’, como pressuposto das
assumiram dimensões planetárias, re- políticas sociais, ganha contornos mais
fletindo os danos sociais dos planos nítidos e se constitui em importante
de estabilização do FMI e dos progra- estratégia de intervenção na organiza-
mas de empréstimos de ajuste estrutu- ção da sociedade.
ral e setorial do Banco Mundial, colo- O mecanismo encontrado para
cados em prática ao longo dos anos de induzir os Estados Nacionais a ado-
80 do século XX, na tentativa de resol- tarem as medidas de ‘focalização’
ver os problemas da dívida externa dos propostas se deu, de forma mais siste-
países periféricos, resultado em grande mática, por meio da ação desses
medida da transferência da crise que os organismos que passaram a financiar
países ricos enfrentaram a partir da dé- políticas, programas e projetos de in-
cada de 1970. vestimento nos setores de educação,
Sem abandonar o entendimento saúde, nutrição, controle demográfico
de que o crescimento econômico se e saneamento, considerados como
constitui em condição a priori para a capazes de contribuírem para o bem-
solução dos problemas sociais, os diri- estar social e para uma melhor distri-
gentes desses organismos, respaldados buição de renda. Mas, ao financiarem
pelos governos dos países ricos, em os projetos e programas focalizados,
face da constatação da existência de estava implícito o objetivo de apaziguar
uma conexão entre pobreza mundial e os pobres por meio da satisfação das
as relações instáveis entre e intra as necessidades básicas ao mesmo tem-
nações, passaram a uma ação na dire- po em que pretendiam manter sob
ção de pressionar os governos nacio- controle a sua expansão.
nais dos países dependentes a coloca- A noção de ‘focalização’ traduz o
rem em prática políticas sociais entendimento de que diante do
dirigidas às parcelas pobres da popu- contingenciamento e da limitada dis-
lação, visando amenizar a situação de ponibilidade de recursos financeiros
miserabilidade em que viviam e vivem, para atender as demandas infinitas por
mantendo, assim, um mínimo de coe- serviços e benefícios sociais, inclusive
são societária necessária para a conti- estabelecendo a clássica relação custo-

222
Focalização em Saúde A

benefício, o Estado deve priorizar e Fernando Henrique Cardoso. A refor- C


direcionar a sua ação, no âmbito das ma, entre outras mudanças, deveria
políticas sociais, para as camadas mais permitir ao Estado a ‘focalização’ no D
desfavorecidas da população. Esta no- atendimento das necessidades sociais
ção se contrapõe ao princípio da uni- básicas, reduzindo a sua área de atua-
E
versalidade, inscrito na Constituição ção por meio de três mecanismos: a
F
Brasileira, diante do qual o Estado deve privatização, que consiste na venda de
garantir, para toda a população, o aces- ativos de empresas públicas; a
G
so a bens e serviços públicos como publicização, ou seja, a transformação
saúde, educação, saneamento básico, de órgãos estatais em entidades públi- H
habitação, transporte etc. Traduzem cas não-estatais; e a terceirização, que
duas concepções distintas do que seja implica a contratação de serviços pres- I
bem-estar e, conseqüentemente, de tados por terceiros.
organização e concepção de socieda- Respaldados em documentos de N
de, pois delas decorrem arranjos Organismos Internacionais que criti-
institucionais que revelam a lógica de cavam o pouco investimento em pro- O
cada projeto, indicando papéis distin- moção e prevenção da saúde e o ex-
tos para o Estado desempenhar. cesso de gastos públicos brasileiros P
Em nível nacional, no campo da com a oferta de serviços de base hos-
saúde, embora desde o início da década pitalar, especializados e em procedi- Q
de 1990 o governo brasileiro esteja cum- mentos de alta tecnologia, os governos
prindo a agenda dos organismos inter- brasileiros, a partir do início da década R
nacionais, implementando programas de 1990, assumiram como uma dire-
focalizados e seletivos, a exemplo do triz política, a ‘focalização’ dos servi- S
Programa dos Agentes Comunitários de ços públicos de saúde nas populações
Saúde (Pacs), implementado em 1991, pobres. T
e do Programa de Saúde da Família Assim, antes mesmo de terem
(PSF), implementado em 1994, a dis- sido implementados plenamente os U
cussão acerca da ‘focalização’ das polí- princípios constitucionais que confor-
ticas sociais em geral e das políticas de mam o Sistema Único de Saúde (SUS),
V
saúde em particular, ganha novas di- coloca-se para a sociedade brasileira
A
mensões com o debate sobre a refor- dilemas, como universalizar o acesso
ma do Estado Brasileiro, ocorrida a ou destinar os parcos recursos do se-
A
partir de 1995, no governo de tor para os mais pobres; manter a

223
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

gratuidade para todos ou instituir for- seletividade. Neste cenário, a difusão


mas de co-pagamento para quem pode da concepção de justiça social termi-
pagar; responsabilizar o Estado pela nal, ou seja, a que seria feita na hora da
assistência à saúde ou envolver a co- distribuição, dando a quem tem me-
munidade para que ela mesma encon- nos, oblitera a discussão da justiça so-
tre alternativas aos seus problemas; cial no início do processo, ou seja, a
obrigar o setor público a oferecer to- possibilidade de fazer justiça no mo-
dos os níveis de assistência ou apenas mento da arrecadação e da tributação
um pacote de serviços essenciais aos do que foi produzido e acumulado,
mais pobres; ofertar bens privados ou cobrando mais de quem tem mais.
apenas bens públicos e os que conte- Muitas críticas têm sido feitas às
nham grandes externalidades. políticas, programas e projetos focali-
Tais proposições, quando aborda- zados e seletivos, particularmente pe-
das fora de uma análise de totalidade los efeitos perversos que acarretam, na
da sociedade e do papel do Estado medida em que consolidam as desigual-
numa sociedade de classes, tornam-se dades já existentes, uma vez que se dão
difíceis de serem equacionadas. Dessa no marco de agudas desigualdades so-
forma, vai-se construindo o consenso ciais. Além de introduzirem uma pre-
da necessidade de reformar o SUS an- cariedade e descontinuidade, as políti-
tes mesmo de sua plena cas focalizadas são assisten-cialistas,
implementação, cuja direção aponta abrem espaço à arbitrariedade dos que
para a ‘focalização’ das ações do Esta- têm o poder de decidir sobre quem irá
do nas populações pobres. ser beneficiado pela política e qual o
Diante do aumento real da pobre- rol de necessidades a serem satisfeitas.
za, resultado da apropriação desigual Além disso, a ‘focalização’ em saú-
da riqueza e das crises cíclicas do capi- de cria uma segmentação no acesso à
talismo em escala mundial, as assistência em face da duplicidade da
dualidades apresentadas assumem con- política, em que, de um lado, estimula-
tornos de tensão, constituindo-se em se a criação e regulamentação de um
argumento político-ideológico para o sistema de saúde privado de serviços
questionamento da visão universalista de alto nível, destinados às classes so-
do SUS, vinculada à noção de direito ciais de maior renda e riqueza, em gran-
social, e em conseqüência aderindo à de medida subsidiadas pelo Estado, e,
defesa do binômio focalização- de outro, implementa-se um sistema

224
Focalização em Saúde A

estatal, com recursos insuficientes, for- Para saber mais: C


necendo serviços básicos, muitas ve-
zes de baixa qualidade, destinados aos BANCO MUNDIAL. Salud. D
mais pobres. Documento de política sectorial.
Destaca-se ainda, no processo de
Washington, D.C., 1975. E
focalização das ações de saúde nos po- BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o
Desenvolvimento Mundial de 1993: investindo F
bres, a adoção de programas de baixo
em saúde. Rio de Janeiro: FGV, 1993.
custo e de alto impacto. Contribuiu
COHN, A. O SUS e o direito à saúde: G
para isso, por exemplo, a proposta de
universalização e focalização nas
ênfase na atenção primária à saúde, políticas de saúde: In: LIMA, N. T. et al. H
presente em declarações de eventos (Orgs.) Saúde e Democracia: história e
democracia do SUS. Rio de Janeiro: Editora
internacionais como o de Alma Ata,
Fiocruz, 2005.
I
de 1978.
MEDEIROS, M. Princípios de Justiça na
Exemplos de outros países mos-
Alocação de Recursos em Saúde. Brasília:
N
tram que a adoção da ‘focalização’
Ipea, 1999. (Texto para discussão n. 687)
como diretriz das políticas de saúde O
PAIM, J. Políticas de saúde no Brasil ou
leva a perdas para os setores médios
recusando o apartheid sanitário. Ciência &
da sociedade, os quais acabam retiran- Saúde Coletiva, 1: 18-20, 1996. P
do seu apoio a essas políticas, o que
RIZZOTTO, M. L. F. O Banco Mundial e
pode resultar, a médio e longo prazo, as Políticas de Saúde no Brasil nos Anos 90: Q
em perdas para as próprias populações um projeto de desmonte do SUS, 2000. Tese
pobres, aparentemente beneficiadas de Doutorado, Campinas: Universidade R
com a ‘focalização’. Estadual de Campinas/Faculdade de
Ciências Médicas.
A adoção dessa estratégia como S
SENNA, M. de C. M. Eqüidade e
pressuposto para a formulação e
implementação das políticas de saúde
política de saúde: algumas reflexões T
sobre o Programa Saúde da Família.
implica negar a universalidade como Cadernos de Saúde Pública, 18 (supl.): 203-
princípio doutrinário do sistema de 211, 2002. U
saúde e substituir o princípio da igual-
dade pelo da eqüidade como diretriz
V
para a tomada de decisão no âmbito
A
dos serviços.

225
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

226
A

C
G D
GESTÃO DO TRABALHO EM SAÚDE E

F
Maria Helena Machado
G
Pode-se afirmar que as décadas logia das políticas de Recursos Huma-
de 1980 e de 1990 foram décadas nos, com destaque para três momen-
H
paradigmáticas para a saúde pública do tos distintos, assim descritos.
Brasil. A criação do Sistema Único de I
Saúde (SUS) na década de 1980 repre- O primeiro (1967-1974), caracteri-
zado por incentivo à formação pro-
sentou para os gestores, trabalhadores
fissional especialmente de nível su- N
e usuários do sistema uma nova forma perior; estratégia de expansão dos
de pensar, estruturar, se desenvolver e empregos privados a partir do fi- O
produzir serviços e assistência em saú- nanciamento público; incremento
da contratação de médicos e aten-
de, uma vez que os princípios da uni-
dentes de enfermagem, reforçando
P
versalidade de acesso, da integralidade a bipolaridade ‘médico/atendentes’;
da atenção à saúde, da eqüidade, da e incentivo à hospitalização/espe- Q
participação da comunidade, da auto- cialização. O segundo momento
nomia das pessoas e da (1975-1986) se caracteriza, na pri- R
meira fase (1975-1984), pelo surgi-
descentralização tornaram a ser
mento de dispositivos institucionais
paradigmas do SUS. O sistema de saú- para reverter o quadro existente. Já S
de passou a ser, de fato, um sistema na segunda fase (1984-1986), pela
nacional com foco municipal, o que se sua implementação com resultados, T
ou seja, aumento da participação do
denomina ‘municipalização’ (Machado,
2005). A gestão do trabalho e da edu-
setor público na oferta de serviços
U
ambulatoriais e hospitalares; au-
cação, nessa perspectiva, ganhou rele- mento da formação do pessoal téc-
vância nacional e tornou-se elemento nico e sua incorporação nas equi- V
pes de saúde; e aumento do pesso-
crucial para a implementação e conso-
lidação do SUS.
al que atua na rede ambulatorial. O A
terceiro momento (de 1987 em di-
Para melhor compreender a pro- ante) é caracterizado pelas mudan-
ças estruturais rumo à Reforma Sa-
A
blemática é preciso conhecer a crono-

227
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

nitária, marcadas especialmente do toda a lógica preconizada, ou seja,


pelo processo de descentralização
de serem os trabalhadores (recursos
da assistência e, conseqüentemen-
te, dos recursos humanos que inte- humanos) peças-chave para a consoli-
gram os serviços. Inicia-se aí o pro- dação do SUS. Fato de grande relevân-
cesso que culminaria na reversão do cia nesse período foi a elaboração da
quadro de pessoal, ora concentra-
Norma Operacional Básica de Recur-
do na esfera federal ora na munici-
pal. Toda a política de Recursos sos Humanos – NOB-RH (Brasil,
Humanos passa a girar em torno da 2005), que define princípios e diretri-
proposta da Reforma Sanitária – zes para uma NOB que teve como
não só os aspectos gerenciais, mas
objetivo principal a discussão da
também os financeiros, na perspec-
tiva de atender às demandas que centralidade do trabalho, do trabalha-
impunham tal reforma. O SUS tor- dor, da valorização profissional e da
na-se uma realidade após longo de- regulação das relações de trabalho em
bate constitucional (Machado, 2005,
saúde. No entanto, poucos resultados
p. 276-277).
foram alcançados com a NOB, uma
vez que a política que imperou nesse
No entanto, com o passar do tem- período foi a antipolítica de Recursos
po e com o avanço do processo de Humanos, priorizando a privatização
consolidação do SUS, a realidade que por meio da terceirização de serviços,
se apresenta para a área de Recursos a flexibilização das relações e o laissez-
Humanos remete a mais dois momen- faire na abertura de novos cursos na
tos distintos que são caracterizados por área da saúde.
momentos de grande guinada da pro- O segundo momento de
posta da Reforma Sanitária, ou seja, o reafirmação da reforma inicia-se com
primeiro considerado de anti-reforma o novo governo, em 2003, caracteriza-
e o segundo, de reafirmação da refor- do pelo retorno aos princípios de que
ma. O momento anti-reforma refere- saúde é um bem público e os trabalha-
se a toda a década de 1990, caracteri- dores que atuam são um bem público.
zada pela adoção dos preceitos A mudança positiva nas políticas de
neoliberais em detrimento aos da re- Recursos Humanos vem acompanha-
forma sanitária. Isso transformou a da da criação, no governo Lula, da Se-
questão de Recursos Humanos, ao lon- cretaria de Gestão do Trabalho e da
go da década, em um enorme proble- Educação na Saúde, no âmbito do Mi-
ma para a reforma sanitária, inverten- nistério da Saúde, e mais, com a cria-

228
Gestão do Trabalho em Saúde A

ção de dois departamentos distintos, criatividade, co-participação, e co- C


um que trataria das questões de gestão responsabilização, de enriquecimento
da educação e outro da gestão do tra- e comprometimento mútuos. D
balho, além da imediata reinstalação da É importante destacar que a área
Mesa Nacional de Negociação Perma- de Recursos Humanos, no setor saú-
E
nente do SUS, quando a gestão do tra- de, como campo de estudos e pesqui-
F
balho passa a ser vista como política sas data das últimas décadas do século
de Estado considerando as relações de XX, com ênfase após a década de 1970.
G
trabalho e suas implicações como cen- Os primórdios desses estudos, mais
trais para a dinâmica do SUS. O que teóricos, apontavam para a reflexão no H
significa dizer que questões oriundas campo da organização social das prá-
do momento anti-reforma, tais como ticas em saúde. Já na década de 1980, a I
a precarizaçao do trabalho, a ausência vertente foi a realização de estudos
de carreiras, os baixos salários pagos desvendando as tendências macro do N
aos trabalhadores, a falta de negocia- mercado de trabalho, como por exem-
ção entre gestores e trabalhadores, a plo, o assalariamento, o prolongamen- O
total ausência de políticas regulatórias, to da jornada de trabalho, o
bem como a própria gestão do traba- multiemprego, a feminilização da for- P
lho, enquanto estr uturas ça de trabalho. Na década de 1990, sur-
organizacionais, passaram a constituir giram os estudos de cunho sociológi- Q
a agenda central do governo federal. E cos sobre mercado de trabalho, mun-
mais, gestão do trabalho passou ser do do trabalho, e a própria conforma- R
concebida com base em uma visão ção das profissões de saúde. Surgem
política na qual a participação do tra- também estudos voltados aos temas da S
balhador é fundamental para a formação e educação desvendando o
efetividade e eficiência do Sistema processo de formação e capacitação T
Único de Saúde. Dessa forma, o tra- dos profissionais de saúde de níveis
balhador é percebido como sujeito e superior e técnico. Enfim, a área de U
agente transformador de seu ambien- recursos humanos passa a contar com
te e não apenas um ‘recurso humano’ diversos estudos e análise fundamen-
V
realizador de tarefas previamente tais para a grande mudança de menta-
A
estabelecidas pela administração local. lidade, transformando o acanhado e
Nessa abordagem, o trabalho é visto reduzido mundo dos recursos huma-
A
como um processo de trocas, de nos em gestão do trabalho e da educa-

229
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ção. Pensar e formular na área da ges- reta adequação entre as necessidades


tão passa a significar pensar e formu- da população usuária e seus objetivos
lar para um complexo e vasto mundo institucionais. Pensar em gestão do tra-
do trabalho, no qual os que produzem balho como eixo da estrutura
estes serviços e os que os gerenciam organizacional dos serviços de saúde
estão em permanente processo de significa pensar estrategicamente, uma
interação e negociação. vez que a produtividade e a qualidade
Está contido na área da gestão do dos serviços oferecidos à sociedade
trabalho um conjunto de ações que serão, em boa parte, reflexos da forma
visam a valorizar o trabalhador e o seu e das condições com que são tratados
trabalho, tais como: a implementação os que atuam profissionalmente na
das Diretrizes Nacionais para a insti- organização (Arias et al., 2006, p.119),
tuição ou reformulação de Planos de o que nos coloca da importância de se
Carreiras, Cargos e Salários no âmbito estruturar uma efetiva política para a
do SUS e o apoio às instâncias do SUS área nas três esferas de governo, en-
neste sentido; a desprecarização dos volvendo os setores público e privado
vínculos de trabalho na área da saúde; que compõem o sistema de saúde e
o apoio à implantação de Mesas de contribuindo, desta forma, para a pro-
Negociação Permanente do SUS; a cri- moção da melhoria e humanização do
ação da Câmara de Regulação do Tra- atendimento ao usuário do SUS.
balho em Saúde – para debater, em
especial, as questões relacionadas à re-
gulamentação de novas profissões na Para saber mais:
área da saúde, e a proposta de organi-
zação da gestão do trabalho e da edu- ARIAS, E. H. L. et al. Gestão do trabalho
cação na saúde nas três esferas de go- no SUS. Cadernos RH Saúde, Brasília:
3(1) p. 119-124, mar. 2006.
verno, por meio do Programa de Qua-
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho
lificação e Estruturação da Gestão do
Nacional de Saúde. Princípios e Diretrizes
Trabalho e da Educação no SUS - para a gestão do trabalho no SUS (NOB/
ProgeSUS (Brasil, 2006), dentre outras. RH-SUS). 3 a ed. rev. atual. Série
A gestão do trabalho é, pois, uma Cadernos Técnicos CNS. Brasília:
Ministério da Saúde, 2005
questão que tem merecido, na atuali-
BRASIL. Ministério da Saúde. O SUS
dade, a devida atenção por parte de de A a Z. 2a ed. Brasília: Ministério da
todas as instituições que buscam a cor- Saúde, 2006.

230
Gestão em Saúde A

MACHADO, M. H. Trabalhadores da C
saúde e sua trajetória na Reforma
Sanitária. In: LIMA, N. T. et AL. (Orgs.). D
Saúde e democracia: histórias e perspectivas do
SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
p. 257-281, 2005.
E

F
GESTÃO EM SAÚDE G

H
Gastão Wagner de Sousa Campos
Rosana Teresa Onocko Campos
I

N
Um campo aplicado de era a capacidade de fazer a gestão de-
conhecimento mocrática das cidades estado.
O
Vale a pena ressaltar essa rela-
Em vários dicionários, gestão ção entre gestão e política porque a
P
e administração aparecem como sinô- constituição da administração e da ges-
nimos. O Houaiss – Dicionário da Lín- tão, como um campo estruturado e sis- Q
gua Portuguesa – assim define esses temático de conhecimento, pretendeu,
termos: “Ato ou efeito de administrar; ação exatamente, produzir uma ruptura ou R
de governar ou gerir empresa, órgão público uma descontinuidade entre a política e
.... Exercer mando, ter poder de decisão (so- gestão. No princípio do século XX, o S
bre), dirigir, gerir” (Houaiss, 2001, grifos engenheiro norte-americano Frederick
nossos). Os termos gestão e adminis- Winslow Taylor publicou o livro ‘Prin- T
tração referem-se ao ato de governar cípios da Administração Científica’,
pessoas, organizações e instituições. considerado como marco zero de um U
Política, portanto. Gestão diz respeito novo campo de conhecimento. Taylor
à capacidade de dirigir, isto é, confun- pretendeu apresentar uma metodologia V
de-se com o exercício do poder. Em que permitisse a existência de uma ges-
sua origem, na Grécia clássica, o ter- tão técnica, com base em evidências, e A
mo ‘política’ tinha exatamente esse sig- não orientada por disputas políticas
nificado. ‘Polis’ era a cidade, e a política entre interesses e valores distintos. Tra-
A

231
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ta-se de uma obra clássica do pensa- balho e investimento sobre o afeto das
mento administrativo. Clássica e fun- pessoas para condicioná-las aos obje-
dadora de um estilo de governar que, tivos da empresa. A Teoria de Siste-
em seus princípios gerais, não foi ain- mas, o Desenvolvimento
da superada. Ainda que o campo da Organizacional, a Qualidade Total e
gestão tenha se ampliado desde 1911, congêneres enriqueceram a visão so-
a disciplina e o controle continuam bre a organização, chegando a prome-
sendo o eixo central dos métodos de ter maior autonomia e melhor
gestão. A centralização do poder nos integração do empregado ao projeto
gestores (dirigentes) é a pedra de to- geral da empresa. Gestão matricial,
que das múltiplas variedades de méto- achatamento do organograma, delega-
dos de gestão ainda hoje existentes. ção de poder para planejar e decidir aos
Tanto o ‘segundo princípio’ da teoria trabalhadores da base. No entanto, o
taylorista (separação entre trabalho in- âmbito dessas mudanças tem sido
telectual, o momento da concepção muito restrito, admite-se liberdade tão-
daquele de execução) quanto o ‘quar- somente para que todos trabalhem
to princípio’ (centralização do poder melhor segundo o interesse e a visão
de planejar e de decidir na direção da da direção geral. Autonomia e
empresa), buscam limitar a autonomia integração para inventar novos modos
e iniciativa do trabalhador. para resolver problemas internos, sem-
Essa obsessão em retirar poder pre no sentido de aumentar a produti-
do trabalhador é um dado concreto, vidade e não no de enfrentar questões
evidenciado pelo fato das distintas es- atinentes aos próprios trabalhadores.
colas ainda não haverem elaborado No fundo, a Qualidade Total e outros
uma crítica sistemática à função con- métodos de reengenharia ou de desen-
trole. Nos anos trinta, a escola das Re- volvimento organizacional operam
lações Humanas criticou a concepção com a idéia de abrir a empresa à con-
taylorista do homem, valorizando fa- corrência, como se fosse instituído um
tores subjetivos no funcionamento micro mercado dentro dos muros da
concreto da empresa. Entretanto, essa Organização. Matar ou morrer, uma
nova percepção apenas ampliou os re- exacerbação da concorrência entre as
cursos técnicos empregados para con- equipes e as pessoas, uma nova lei.
trolar. Além do estímulo econômico Tudo isso, não favorece a democracia
direto, melhoria das condições de tra- ou a convivência solidária. Ao contrá-

232
Gestão em Saúde A

rio, exacerba a concorrência entre os mento, nasceu interdisciplinar quando C


trabalhadores e aumenta, em decorrên- esta expressão sequer fora ainda cunha-
cia, a dependência da chefia. Afinal, da. A Saúde Pública baseou-se na me- D
serão os chefes os julgadores do su- dicina, microbiologia, zoologia, geolo-
cesso ou insucesso do desempenho de gia, entre outras ciências, para pensar
E
cada um. Alguns autores contemporâ- explicações para o processo saúde e
F
neos têm se referido, inclusive, ao doença. Dessa junção, nasceria tanto a
‘gerencialismo’ como sendo uma nova administração sanitária quanto a
G
ideologia, uma doença social, que am- epidemiologia. Foi, portanto, ainda nos
pliou o controle sobre o trabalho em primórdios da Saúde Pública que ocor- H
um grau nunca antes observado. reu a constituição de um campo de
O método denominado ´atenção conhecimentos, denominado ‘adminis- I
gerenciada´ (managed care), que vem tração sanitária e de práticas em saú-
sendo proposto para os serviços de de’. Encarregava-se de pensar a admi- N
saúde, é exemplar dessa tendência. nistração de um pedaço do Estado, os
Imagina diminuir custos e aumentar nascentes departamentos, escolas e la- O
a eficácia do trabalho em saúde, reti- boratórios de saúde pública, mas, dis-
rando dos profissionais, particular- tinguia-se da Administração de Empre- P
mente dos médicos, a capacidade de sas porque procurava articular a ges-
decisão sobre o próprio trabalho clí- tão às ‘práticas’ consideradas eficazes Q
nico. Esse poder é passado aos geren- para debelar os problemas coletivos de
tes, que por meio de minuciosos pro- saúde. Tratava-se, portanto, de uma R
tocolos - padronização de condutas área que procurava compatibilizar co-
diagnósticas e terapêuticas - contro- nhecimentos sobre administração pú- S
lam e determinam o que fazer no co- blica com procedimentos sanitários
tidiano dos trabalhadores. considerados eficazes no combate a T
epidemias. A administração em saúde
na medicina de mercado apresentava U
Gestão em saúde menos especificidades; em geral, adap-
tava elementos da teoria geral a hospi-
V
A gestão em saúde é quase tão tais e clínicas.
A
antiga quanto a Saúde Pública. A Saú- A administração sanitária, em seus
de Pública sempre recorreu a várias primórdios, importou muitos concei-
A
especialidades e campos de conheci- tos e modos de operar do campo mili-

233
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tar. Da gestão de conflitos armados e de uma rede de serviços constituída


de guerras, a Saúde Pública importou segundo o conceito de integração sa-
a idéia de considerar a doença, os ger- nitária. Essa rede pública não executa-
mes e as condições ambientais insalu- ria apenas ações de caráter preventivo
bres como inimigos. Sendo inimigos e de relevância coletiva, mas assumiria
havia de erradicá-los, controlá-los e também a atenção clínica, ou seja, a
vigiá-los. Planejamento estratégico e assistência individual em hospitais e
tático, programas sanitários e gestão outros serviços. Com essa finalidade
operacional. Da arte da guerra impor- foi cunhado o conceito de
taram-se também os conceitos de hierarquização e regionalização dos
erradicação e de controle, de risco, de serviços, inventando-se a modalidade
vigilância e de análise de informação. de rede denominada de atenção primá-
A gestão em saúde é um desdo- ria.
bramento contemporâneo dessa tradi- O antigo arcabouço de conheci-
ção. Evidente que no lugar da guerra mentos da administração sanitária era
entraram conceitos originários da Ci- claramente insuficiente para dar conta
ência Política, da Sociologia e da Teo- da complexidade dessa nova política
ria Geral da Administração. Em mea- pública. Em função disso, em vários
dos do século XX houve uma amplia- desses países houve, ao longo do sé-
ção do objeto e do campo de interven- culo XX, um esforço de investigação
ção da gestão em saúde. Nessa época, voltado para o desenvolvimento de
em alguns países europeus, inicialmen- novos arranjos organizacionais e no-
te na Grã-Bretanha, Suécia e União vos modelos de atenção à saúde. A
Soviética e, mais tarde, em inúmeras Organização Mundial de Saúde (OMS)
outras nações da Europa, América e e Organização Pan-Americana de Saú-
Oceania, foram construídos os Siste- de (OPAS) estimularam tanto a pro-
mas Nacionais e Públicos de Saúde. dução de conhecimentos nessa área
Com essa finalidade desenvolveu-se quanto trataram de sistematizar a di-
toda uma cultura sanitária voltada para fusão dessas experiências e dessa
a organização de serviços e programas tecnologia sobre organização, planeja-
de saúde segundo uma nova mento e gestão dos serviços de saúde.
racionalidade. O Estado foi responsa- Em decorrência desse fenômeno hou-
bilizado pelo financiamento e gestão ve uma aproximação entre as áreas da

234
Gestão em Saúde A

Clínica e o campo da Saúde Pública. CAMPOS, G. W. S. Um método para C


São desse período o desenvolvimento análise e co-gestão de coletivos. São Paulo:
de estudos sobre sistemas locais de
Hucitec, 2000. D
saúde, modelos de atenção, gestão de FERLIE, E.; ASBURNER, L.;
pessoal, atenção primária, planejamen-
FITZGERALD, L.; PETTIGREW, A. E
A nova administração pública em ação.
to e programação em saúde. Observa- Brasília: UnB & Enap, 1999.
F
se como um fato curioso o pequeno GUALEJAC, V. Gestão como doença social:
envolvimento da área de Gestão e Pla- ideologia, poder gerencialista e fragmentação G
nejamento, no Brasil, com hospitais, social. São Paulo: Idéias & Letras, 2007.
talvez explicado pelo afastamento his- HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da H
tórico da Saúde Pública deste pedaço Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. Disponível em:
dos sistemas de saúde. A formação de
www.houaiss.uol.com.br/busca.jhtm I
gestores para hospitais foi marcada por
LOURAU, R. A Análise Institucional. 2a
cursos compostos segundo a lógica
ed. revisada. Tradução de Marino N
específica das áreas de Economia e da Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1995.
Administração de Empresas. Somente
MORGAN, G. Imagens da Organização.
O
nos últimos anos, observa-se um es- Tradução de Cecília W. Bergamini e
forço da área para recompor a forma- Roberto Coda. São Paulo: Atlas, 1998. P
ção e a pesquisa em gestão hospitalar. MOTTA, F. C. P. Teoria Geral da
Buscando superar a perspecti- Administração. São Paulo: Livraria Q
va restrita das teorias administrativas Pioneira Editora, 14a ed.,1989.
têm sido desenvolvidas análises que TAYLOR, F. W. Princípios da R
procuram ampliar e democratizar a Administração Científica. São Paulo:
gestão. Discute-se a gestão Atlas, 1960. S
participativa, o controle social dos TESTA, M. Pensar en Salud. Buenos
gestores pela sociedade civil e várias Aires: Lugar editorial, 1997. T
formas de co-gestão em saúde. TRATENBERG, M. Burocracia e ideologia.
São Paulo: Unesp, 2006. U

V
Para saber mais:

BROW, G. D. Managed Care. Springfiel:


A
Merrian-Webster Inc. 1996.
A

235
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

GLOBALIZAÇÃO

Ramón Peña Castro

O termo ‘globalização’ começou serviu para consolidar a crença na su-


a circular no final dos anos 80 para posta unificação do mundo, represen-
sugerir a idéia de unificação do mun- tada pela globalização dos mercados.
do, como resultado dos três processos A expressão mais delirante dessa idéia
que marcaram o fim do “breve século foi, sem dúvida, a tese de Francis
XX” (Hobsbawn, 1995). A vitória po- Fukuiama sobre o fim da História.
lítica do neoliberalismo, representada A origem dos termos sociedade
pela ditadura de Pinochet (1973) e pe- global e globalização é anterior ao triunfo
los governos Thatcher (1979) e Reagan político da globalização neoliberal; data de
(1980); a interrupção da ‘construção finais dos anos 1960 e deve ser credi-
nacional’ no Terceiro Mundo, esmaga- tada a MacLuhan e a Bzezinski, auto-
do pelo peso insuportável da dívida res norte-americanos de dois livros fa-
externa, imposta pelas oligarquias fi- mosos na época: Guerra e paz na aldeia
nanceiras globalizadas; a global, de Marshall MacLuhan e A revo-
autodesintegração da União Soviética. lução tecnotrônica, de Zbigniew
Esses três acontecimentos encerram as Brzezinski. MacLuhan anunciou a
três maiores mudanças históricas do emergência da ‘aldeia global’, com base
século: a Revolução Socialista Russa, numa extrapolação da agressão militar
primeira alternativa real ao capitalismo; americana contra o Vietnam (a maior
as variadas experiências de constru- derrota militar sofrida pelos EE.UU.)
ção nacional independente no Tercei- que ao ser transmitida ao vivo pelas
ro Mundo; e o refor mismo redes de TV, transformou-se na primei-
socialdemocrata, basicamente euro- ra ‘realidade virtual global’, assistida
ocidental, que durante mais de três por milhões de telespectadores do
décadas parecia ter domesticado o ca- mundo. Por sua vez, Brzezinski colo-
pitalismo, por meio do chamado Esta- cou em circulação as expressões cidade
do de Bem-estar social. E esse encer- global e sociedade global para designar a
ramento das maiores alternativas con- nova reconfiguração globalizada do
cretas opostas ao capitalismo liberal nosso habitat, operada pelas redes

236
Globalização A

tecnotrônicas, termo introduzido por ele tado de uma política, implementada C


para designar a conjugação do compu- por governos nacionais e instituições
tador, da TV e da rede de telecomuni- internacionais, mediante instrumentos D
cação. O protótipo dessa ‘sociedade muito específicos, tais como abertura
global’ eram os EE.UU., centro pro- dos mercados de capitais, bens e ser-
E
pulsor da revolução ‘tecnotrônica’ viços, a desregulamentação do merca-
F
mundial que oferecia ao mundo o ‘úni- do de trabalho e a eliminação de qual-
co modelo global de modernidade’, quer obstáculo legal ou burocrático à
G
com os correspondentes ‘padrões de ‘livre empresa’ e, sobretudo, aos inves-
comportamento e valores universais’. tidores internacionais. A globalização H
Nessa visão, a globalização se apresenta neoliberal visa, portanto, a criar as con-
como sinônimo de americanização, o que dições de dominação das grandes I
confere ao termo um sentido clara- corporações e fundos de investimen-
mente ideológico, como fora reafirma- to, que confrontam as empresas naci- N
do de forma inapelável pelo prestigio- onais numa concorrência muito desi-
so economista liberal norte-americano gual em mercados abertos. O
John Galbraith: “Globalização não é um O mercado globalizado de capi-
conceito sério – diz Galbraith. Nós, ame- tais tende a reduzir a autonomia eco- P
ricanos, o inventamos para dissimular nossa nômica dos governos nacionais, elimi-
política de penetração econômica nos outros nando a possibilidade de manipular as Q
países” (Entrevista a Folha de São Pau- taxas de câmbio, as taxas de juros ou
lo, 02.11.97). de recorrer a financiamentos orçamen- R
O discurso da ‘globalização’ tem tários deficitários. Esse é particular-
dois sentidos. Um descritivo ou sim- mente visível no Brasil, cuja política S
bólico, referido à suposta unificação do econômica está fortemente condicio-
mundo. Outro, prescritivo ou nada pelas regras da globalização T
normativo, representado pelas políticas neoliberal.
neoliberais muito concretas, Tudo isso permite afirmar que a U
implementadas por agentes e instituições globalização é antes de mais nada um
gestoras do capitalismo dominante. mito legitimador da hegemonia do ca-
V
A globalização econômica está pital financeiro, predominantemente
A
longe de ser uma conseqüência mecâ- especulativo.
nica do desenvolvimento econômico A ideologia da globalização se tor-
A
ou das novas tecnologias; ela é o resul- nou uma forma de pensamento difuso,

237
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

interiorizada no senso comum, pelo fato ças especulativas. Com o auxílio da


de se alimentar da percepção, superfi- moeda, fetiche supremo, levanta-se uma
cialmente amalgamada, de uma série de densa muralha que separa e oculta os
fenômenos reais: o progresso espeta- centros de poder real que operam
cular das comunicações (Internet, so- ciberneticamente nas bolsas de moedas,
bretudo), a expansão do comércio e das títulos e mercadorias - as modernas ca-
operações monetárias e financeiras, tedrais -, onde o dinheiro se transfor-
junto com a internacionalização de ma magicamente em mais dinheiro, sem
muitos processos de produção. Em qualquer relação aparente com o traba-
razão disso, a globalização, simboliza- lho produtor de riqueza real.
da pela ampliação dos mercados e pela Esse divórcio entre o símbolo
Internet, passou a ser vista como um monetário e a materialização da rique-
fenômeno ‘natural’ e incontornável; za no mundo cruel do trabalho vivo,
condicionado e condicionante da forma a base invisível em que se cons-
competitividade internacional que in- trói o mito da globalização como rei-
vade todos os espaços da vida indivi- no do glamour e da felicidade, ao al-
dual e social (emprego, formação, con- cance de países e indivíduos aptos para
sumo, lazer, família, etc). responder às exigências da
A necessidade permanente de competitividade total, fluida e
dissimulação ideológica da ordem incontornável.
mundial imperialista tornou-se mais O lado oculto da globalização
intensa nas últimas décadas, quando o neoliberal está representado pelas con-
capitalismo mundial entrou num lon- seqüências nefastas da racionalização
go ciclo recessivo, após trinta anos de neoliberal dos processos de trabalho e
expansão (1945-1975). A nova fase produção, com suas novas formas da
recessiva, iniciada em finais dos anos ‘gestão fluida’ da força humana de tra-
1970, caracteriza-se, em primeiro lugar, balho.
pela expansão sem precedentes dos A globalização neoliberal acentua
grandes g rupos financeiros o totalitarismo da exploração do tra-
globalizados que lucram com investi- balho na produção universalizada e
mentos especulativos fluidos e também a sua impunidade. Aumenta a
desregulados. riqueza e com ela as desigualdades. As
A globalização neoliberal funcio- cem maiores empresas do mundo con-
na como mito legitimador das finan- trolam recursos equivalentes a 1/3 do

238
Globalização A

PIB mundial anual. Nos EE.UU., 1% comércio; hoje, estas duas esferas es- C
dos mega-ricos que em 1975 controla- tão subordinadas às decisões da esfera
vam 5% da riqueza nacional controla- financeira, cuja autonomização é uma D
va, em 2005, nada menos que 20% realidade, extrapolada ou absolutizada,
desta riqueza. Os dados da ONU so- justamente, pela ideologia da
E
bre a pobreza mundial demonstram globalização.
F
claramente que a globalização A esfera financeira relativamen-
neoliberal é o paraíso dos poderosos e te autonomizada opera como uma for-
G
o inferno das maiorias deserdadas. ça centrífuga em prol da
Essa realidade, negada no discur- desnacionalização das sociedades pe- H
so oficial, constitui um dos fenômenos los grandes inversores que operam nos
sociais mais importantes da mercados globalizados, ampliados pe- I
modernidade neoliberal. O capital am- los programas de liberalização, de
plia continuamente seu poder sobre o desregulamentação e de privatização N
trabalho, reorganizando e aumentando das economias dependentes e
o potencial de produção e, com ele, o endividadas, aplicadas por Governos O
volume absoluto e relativo do valor ex- conservadores ou social-liberais, de-
cedente apropriado pelos seus diversos mocraticamente eleitos com as mais P
agentes (fabricantes, comerciantes, ban- modernas técnicas de marketing.
queiros e rentistas com diferentes As moedas estabilizadas (no sen- Q
titulações). Banalizando a desigualdade, tido de dolarizadas ou ‘euroizadas’), os
o desamparo, a miséria e a exploração, orçamentos públicos rigidamente ajus- R
a globalização capitalista universaliza a tados (no sentido de subordinados à
insegurança e a violência. política financeira global, delegada aos S
Os políticos e expertos em ciên- Bancos Centrais neocolonizados) às
cias sociais, de filiação neoliberal, atu- exigências dos investidores T
am como autênticos terapeutas da eco- globalizados, junto com a
nomia, quando se limitam a descrever desregulamentação plena dos merca- U
o existente como realidade ‘natural’ e dos, são os símbolos principais de ade-
única, fechada a qualquer alternativa. são confiável à nova ordem mundial
V
A globalização neoliberal negli- sob o comando financeiro.
A
gencia o fato de que o capital financei- Os mercados financeiros são
ro deixou de ser a contraface ou o com- instituições sui generis que funcionam
A
plemento necessário da produção e do como a principal conexão entre a or-

239
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ganização econômica e política nacio- e para os mega-investidores que pre-


nal, de um lado, e a economia mundi- dominam nos mercados globais. Es-
al, de outro. Na prática, isso implica a sas instituições funcionam, portanto,
emergência de novos agentes ou cen- como autênticas potências tutelares,
tros de poder econômico, representa- aparentemente anônimas, ilocalizáveis
dos por corporações multinacionais, e ubíquas; essas potências onipotentes
mercados financeiros e instituições e onipresentes, se conectam com as
supranacionais (OMC, FMI e BIRD), grandes redes de corporações
formalmente internacionais, mas na re- oligopólicas, sediadas nos grandes cen-
alidade subordinados ao condomínio do tros imperialistas.
G7 (grupo dos sete países mais ricos: Importa lembrar, finalmente,
EE.UU, Alemanha, Japão, França, In- que o que tornou possível a recompo-
glaterra, Holanda, Itália), ao qual recen- sição do poder do capital (substrato
temente se associam China e Índia, cujo real, mascarado pelo mito da
volume de comércio exterior e reservas globalização) não foi a tecnologia, nem
de divisas disputam o terceiro e quarto as comunicações, nem a economia,
lugares entre os operadores dos merca- nem a política como tais; foi a mudan-
dos monetários globais. ça da relação fundamental do sistema,
Contudo, a principal mudança a virada radical da correlação de for-
sociológica do capitalismo globalizado ças entre o capital e o trabalho, que se
se refere à natureza imperialista do manifesta nas relações de domínio/
poder político. A recomposição do exploração de classe, em nível nacio-
poder econômico do capital nal, e nas desigualdades e contradições
mundializado gerou uma série de pro- entre Estados e povos que integram o
cessos de ‘desnacionalização’, ou me- sistema capitalista universalizado.
lhor, de transferência de soberania das Em suma, a globalização não é,
instituições nacionais para os merca- propriamente falando, um conceito
dos globais. Trata-se de uma transfe- teórico. Não passa de um construto ide-
rência de poder de decisão, de gover- ológico destinado a legitimar, dissimu-
nos, parlamentos e partidos políticos lar e unificar um mundo que, justamen-
sobre aspectos fundamentais da eco- te por estar uniformizado só pelo ca-
nomia e da política nacional, para ins- pital, é profundamente desigual e con-
tituições, supostamente supranacio- traditório.
nais, como OMC, FMI, BIRD e BCE,

240
Globalização A

Para saber mais: HARVEY, D. O problema da globalização. C


In: Novos Rumos, nº 27, São Paulo,
ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento.
1997. D
Petrópolis:Vozes, 1997. ________. Breve historia del neoliberalismo.
—————. O longo século XX. São
Madrid: Akal, 2007. E
Paulo: Unesp, 1996. HIRST, P.; TOMMPSON, G. A
BATISTA Jr, P. N. O Brasil e a
globalização em questão. Petrópolis: Vozes, F
1998.
economia internacional. Rio de Janeiro:
Campus, 2005. HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve G
século XX, São Paulo: Cia. das Letras,
BEINSTEIN, J. O capitalismo senil. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
1995. H
_________. O novo século. Entrevista a
CASTELLS, M. La ciudad informacional.
Madrid: Alianza,1995.
Antonio Polito. São Paulo: Cia. das I
Letras, 1999.
CHESNAIS, F. A mundialização do capital.
São Paulo: Xamã, 1996.
JAMESON, F. A cultura do Dinheiro. N
Ensaios sobre globalização. Petrópolis:
___________ (Coord.). A mundialização Vozes, 2000.
financeira. São Paulo: Xamã,1999.
O
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora
34, 1999.
—————— (Org.). Uma nova fase do
P
capitalismo? Campinas: CEMARX/
MATTELART, A. Comunicação-Mundo.
IFCH, Unicamp, 2004.
Petrópolis: Vozes, 1999. Q
FIORI, J. L.(Org.). O Poder Americano.
SINGER, P. Globalização e desemprego. São
Petrópolis: Vozes, 2004.
Paulo: Contexto, 2000. R
FURTADO, C. O capitalismo global. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
S

241
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

242
A

C
H D
HUMANIZAÇÃO E

F
Eduardo Henrique Passos Pereira
Regina Duarte Benevides de Barros
G

H
No campo das políticas públi- Orientada pelos princípios da
cas de saúde ‘humanização’ diz res- transversalidade e da indissociabilidade
I
peito à transformação dos modelos de entre atenção e gestão, a ‘humanização’
atenção e de gestão nos serviços e sis- se expressa a partir de 2003 como Polí- N
temas de saúde, indicando a necessá- tica Nacional de Humanização (PNH)
ria construção de novas relações en- (Brasil/Ministério da Saúde, 2004). O
tre usuários e trabalhadores e destes Como tal, compromete-se com a cons-
entre si. trução de uma nova relação seja entre P
A ‘humanização’ em saúde volta- as demais políticas e programas de saú-
se para as práticas concretas compro- de, seja entre as instâncias de efetuação Q
metidas com a produção de saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS), seja
produção de sujeitos (Campos, 2000) entre os diferentes atores que constitu- R
de tal modo que atender melhor o usu- em o processo de trabalho em saúde.
ário se dá em sintonia com melhores O aumento do grau de comunicação em S
condições de trabalho e de participa- cada grupo e entre os grupos (princí-
ção dos diferentes sujeitos implicados pio da transver-salidade) e o aumento T
no processo de produção de saúde do grau de democracia institucional por
(princípio da indissociabilidade entre meio de processos co-gestivos da pro- U
atenção e gestão). Este voltar-se para dução de saúde e do grau de co-respon-
as experiências concretas se dá por sabilidade no cuidado são decisivos para V
considerar o humano em sua capaci- a mudança que se pretende.
dade criadora e singular inseparável, Transformar práticas de saúde A
entretanto, dos movimentos coletivos exige mudanças no processo de cons-
que o constituem. trução dos sujeitos dessas práticas. So-
A

243
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

mente com trabalhadores e usuários é preciso aceitar a tarefa sempre


protagonistas e co-responsáveis é pos- inconclusa da reinvenção da humani-
sível efetivar a aposta que o SUS faz dade, o que não pode se fazer sem o
na universalidade do acesso, na trabalho também constante da produ-
integralidade do cuidado e na eqüida- ção de outros modos de vida, de no-
de das ofertas em saúde. Por isso, fala- vas práticas de saúde.
mos da ‘humanização’ do SUS Tais afirmações indicam que na
(HumanizaSUS) como processo de gênese do conceito de ‘humanização’ há
subjetivação que se efetiva com a alte- uma tomada de posição de que o ho-
ração dos modelos de atenção e de ges- mem para o qual as políticas de saúde
tão em saúde, isto é, novos sujeitos im- são construídas deve ser o homem co-
plicados em novas práticas de saúde. mum, o homem concreto. Deste modo,
Pensar a saúde como experiência de cri- o humano é retirado de uma posição-
ação de si e de modos de viver é tomar padrão, abstrata e distante das realida-
a vida em seu movimento de produ- des concretas e é tomado em sua singu-
ção de normas e não de assujeitamento laridade e complexidade. Há, portanto,
a elas. na gênese do conceito, tal como ele se
Define-se, assim, a ‘humanização’ apresenta no campo das políticas de
como a valorização dos processos de saúde, a fundação de uma concepção
mudança dos sujeitos na produção de ‘humanização’ crítica à tradicional
de saúde. definição do humano como “bondoso,
humanitário” (Dicionário Aurélio). Esta
crítica permite argüir movimentos de
Gênese do conceito ‘coisificação’ dos sujeitos e afirmar a
aventura criadora do humano em suas
Por ‘humanização’ entende-se diferenças. ‘Humanização’, assim, em
menos a retomada ou revalorização da sua gênese, indica potencialização da
imagem idealizada do Homem e mais capacidade humana de ser autônomo
a incitação a um processo de produ- em conexão com o plano coletivo que
ção de novos territórios existenciais lhe é adjacente.
(Benevides & Passos, 2005a). Para esta capacidade se exercer é
necessário o encontro com um ‘outro’,
Neste sentido, não havendo uma estabelecendo com ele regime de tro-
imagem definitiva e ideal do Homem, cas e construindo redes que suportem

244
Humanização A

diferenciações. Como o trabalho em humanos referidos, principalmente ao C


saúde possui “natureza eminentemen- dos usuários, valorizando sua inserção
te conversacional” (Teixeira, 2003), como cidadãos de direitos. As alianças D
entendemos que a efetuação da entre os movimentos de saúde e os de-
‘humanização’ como política de saúde mais movimentos sociais, como por
E
se faz pela experimentação conectiva/ exemplo, o feminismo, desempenham
F
afectiva entre os diferentes sujeitos, aí papel fundamental na luta pela garan-
entre os diferentes processos de tra- tia de maior eqüidade e democracia nas
G
balho constituindo outros modos de relações.
subjetivação e outros modos de traba- A XI Conferência Nacional de H
lhar, outros modos de atender, outros Saúde, CNS (2000), que tinha como
modos de gerir a atenção. título “Acesso, qualidade e I
humanização na atenção à saúde com
controle social”, procura interferir nas N
Desenvolvimento Histórico agendas das políticas públicas de saú-
de. De 2000 a 2002, o Programa Naci- O
Nos anos 90, o direito à privacida- onal de Humanização da Atenção
de, a confidencialidade da informação, Hospitalar (PNHAH) iniciou ações em P
o consentimento em face de procedi- hospitais com o intuito de criar comi-
mentos médicos praticados com o usu- tês de ‘humanização’ voltados para a Q
ário e o atendimento respeitoso por melhoria na qualidade da atenção ao
parte dos profissionais de saúde ganham usuário e, mais tarde, ao trabalhador. R
força reivindicatória orientando propos- Tais iniciativas encontravam um cená-
tas, programas e políticas de saúde. Com rio ambíguo em que a humanização era S
isto vai-se configurando um “núcleo do reivindicada pelos usuários e alguns
conceito de humanização [cuja] idéia [é trabalhadores e, por vezes, secun- T
a] de dignidade e respeito à vida huma- darizada por gestores e profissionais
na, enfatizando-se a dimensão ética na de saúde. Por um lado, os usuários rei- U
relação entre pacientes e profissionais vindicam o que é de direito: atenção
com acolhimento e de modo
V
de saúde” (Vaitsman & Andrade, 2005,
p. 608). resolutivo; os profissionais lutam por
A
melhores condições de trabalho. Por
Cresce o sentido que liga a outro lado, os críticos às propostas
A
‘humanização’ ao campo dos direitos humanizantes no campo da saúde

245
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

denunciavam que as iniciativas em cur- Com estas direções foram defini-


so se reduziam, grande parte das ve- dos norteadores para a Política Nacio-
zes, a alterações que não chegavam efe- nal de Humanização (Brasil, 2004): 1)
tivamente a colocar em questão os mo- Valorização das dimensões subjetiva e
delos de atenção e de gestão instituí- social em todas as práticas de atenção
dos (Benevides & Passos, 2005a). e gestão no SUS, fortalecendo o com-
Entre os anos 1999 e 2002, além promisso com os direitos do
do PNHAH, algumas outras ações e cidadão, destacando-se o respeito às
programas foram propostos pelo Mi- questões de gênero, etnia, raça, orien-
nistério da Saúde voltados para o que tação sexual e às populações específi-
também foi-se definindo como cam- cas (índios, quilombolas, ribeirinhos,
po da ‘humanização’. Destacamos a assentados etc); 2) Fortalecimento de
instauração do procedimento de Car- trabalho em equipe multiprofissional,
ta ao Usuário (1999), Programa Naci- fomentando a transversalidade e a
onal de Avaliação dos Serviços Hospi- grupalidade; 3) Apoio à construção de
talares (PNASH –1999); Programa de redes cooperativas, solidárias e com-
Acreditação Hospitalar (2001); Progra- prometidas com a produção de saúde
ma Centros Colaboradores para a Qua- e com a produção de sujeitos;
lidade e Assistência Hospitalar (2000); 4) Constr ução de autonomia e
Programa de Modernização Gerencial protagonismo de sujeitos e coletivos
dos Grandes Estabelecimentos de Saú- implicados na rede do SUS; 5) Co-res-
de (1999); Programa de Humanização ponsabilidade desses sujeitos nos pro-
no Pré-Natal e Nascimento (2000); cessos de gestão e de atenção;
Norma de Atenção Humanizada de 6) Fortalecimento do controle social
Recém-Nascido de Baixo Peso – Mé- com caráter participativo em todas as
todo Canguru (2000), dentre outros. instâncias gestoras do SUS; 7) Com-
Ainda que a palavra ‘humanização’ não promisso com a democratização das
apareça em todos os programas e ações relações de trabalho e valorização dos
e que haja diferentes intenções e focos profissionais de saúde, estimulando
entre eles, podemos acompanhar a re- processos de educação permanente.
lação que vai-se estabelecendo entre
humanização-qualidade na atenção-sa-
tisfação do usuário (Benevides & Pas-
sos, 2005a).

246
Humanização A

Emprego na atualidade pre necessário não separar, nem C


dissociar a questão clínica das formas
A ‘humanização’ enquanto políti- de organização do trabalho e sua (...) D
ca pública de saúde vem-se afirmando gestão” (Onocko Campos, 2005, p.
579).
E
na atualidade como criação de espa-
ços/tempos que alterem as formas de Com a desestabilização do cará-
F
produzir saúde, tomando como prin- ter unitário e totalitário de ‘homem’ e
cípios o aumento do grau de comuni- com a valorização da dimensão con-
G
cação entre sujeitos e equipes creta das práticas de saúde, o conceito
(transversalidade), assim como a de ‘humanização’ ganha capacidade de H
inseparabilidade entre a atenção e a transformação dos modelos de gestão
gestão. Este movimento se faz com e atenção. I
sujeitos que possam exercer sua auto- Assim, ao ser proposto como po-
nomia de modo acolhedor, co-respon- lítica pública, o conceito de N
sável, resolutivo e de gestão comparti- ‘humanização’ se amplia, por um lado,
lhada dos processos de trabalho. incorporando concepções que procu- O
ram garantir os direitos dos usuários e
Podemos dizer que se trata de uma trabalhadores e, por outro, apontando P
“estratégia de interferência no proces- diretrizes e dispositivos clínico-políti-
so de produção de saúde, através do cos concretos e comprometidos com Q
investimento em um novo tipo de um SUS que dá certo.
interação entre sujeitos, qualificando R
vínculos interprofissionais e destes
com os usuários do sistema e susten- Para saber mais: S
tando a construção de novos disposi-
tivos institucionais nessa lógica” BENEVIDES DE BARROS, R. & T
(Deslandes, 2004, p. 11). “Trabalhar- PASSOS, E. Humanização na saúde: um
mos em prol da transdisciplinaridade,
novo modismo?. Interface, 9(17): 389-394, U
2005a.
buscar mos relações mais
horizontalizadas de poder entre os di-
BENEVIDES DE BARROS, R. & V
PASSOS, E. A humanização como
versos saberes (...) não descartar a clí- dimensão pública das políticas públicas A
nica (...)” (Onocko Campos, 2005, p. de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3):
578), indicam que “em saúde (...) é sem- 561-571, 2005b.
A

247
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

BRASIL/MINISTÉRIO DA SAÚDE. In: SPINELLI, H. (Org.) Salud Colectiva.


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2004. Disponível em: <http://
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trabalhador-usuário na atenção à saúde:
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uma contribuição da nar rativa
25 ago 2006.
psicanalítica ao tema do sujeito na saúde
CAMPOS, G. W. Um Método para Análise coletiva. Ciênc. Saúde Colet., 10(3): 573-
e Co-Gestão dos Coletivos: a construção do 583, 2005.
sujeito, a produção de valor de uso e a
PUCCINI, P. T. & CECÍLIO, L. C. O.
democracia em instituições – o método da roda.
A humanização dos serviços e o direito
São Paulo: Hucitec, 2000.
à saúde. Cad. Saúde Pública, 20(5): 1342-
CASATE, J. C. & CORRÊA, A. K. 1353, 2004.
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TEIXEIRA, R. R. Acolhimento num
conhecimento veiculado na literatura
serviço de saúde entendido como uma
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rede de conversações. In: PINHEIRO,
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oficial sobre humanização da assistência em saúde. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/
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DESLANDES, S. F. A ótica de gestores TEIXEIRA, R. R. Humanização e
sobre a humanização da assistência nas atenção primária à saúde. Ciênc. Saúde
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VAITSMAN, J. & ANDRADE, G.
626, 2005.
Satisfação e responsividade: formas de
ONOCKO CAMPOS, R. Humano, medir a qualidade e a humanização da
demasiado humano: uma abordaje del assistência à saúde Ciênc. Saúde Colet.,
mal-estar em la institución hospitalaria. 10(3): 599-613, 2005.

248
A

C
I D
INFORMAÇÃO EM SAÚDE E

G
Arlinda B. Moreno
Claudia Medina Coeli
Sergio Munck H

O termo informação, segundo o que se refere à etimologia, o termo in- I


dicionário Houaiss, tem, entre outras formação origina-se do latim informátìó,
acepções, as seguintes: a) comunicação ónis que significa “ação de formar, de fa-
N
ou recepção de um conhecimento ou zer, fabricação; esboço, desenho, plano; idéia,
O
juízo; b) o conhecimento obtido por concepção; formação, forma” (Houaiss,
meio de investigação ou instrução; es- 2008, grifos nossos). Portanto, é intrín-
P
clarecimento, explicação, indicação, co- seco à informação o potencial de fa-
bricação, desenho (projeto) ou concep-
municação, informe; c) acontecimen- Q
to ou fato de interesse geral tornado ção de algo. Sobre esse aspecto, serão
do conhecimento público ao ser divul- tecidas adiante algumas considerações. R
gado pelos meios de comunicação;
notícia; d) conjunto de atividades que S
têm por objetivo a coleta, o tratamen- Gênese do Conceito e
to e a difusão de notícias junto ao pú- Desenvolvimento Histórico T
blico; e) conjunto de conhecimentos
reunidos sobre determinado assunto. Para refletir sobre a expressão In- U
Além dessas, na rubrica informática en- formação em Saúde podemos nos reme-
contramos: mensagem suscetível de ser ter à necessidade existente, desde a V
tratada pelos meios informáticos; con- antiguidade, do ser humano comuni-
teúdo dessa mensagem; interpretação car algo a alguém (ou a alguma coleti- A
ou significado dos dados; e, ainda, pro- vidade) sobre sua própria saúde ou
duto do processamento de dados. No sobre a saúde de alguém (ou de algum A

249
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

grupo de pessoas) a ele relacionado. Ou sos desdobramentos para a expressão


seja, preliminarmente, a Informação em Informação em Saúde transformaram-se,
Saúde pode ser pensada como um praticamente, em subáreas distintas e
compósito de transmissão e/ou recep- dirigidas, principalmente, a subsidiar,
ção de eventos relacionados ao cuida- não apenas a população em geral, mas
do em saúde. também gestores da área saúde:
Assim sendo, podemos inferir que a)sobre: perfil da população (de
não é tarefa fácil demarcar o início do que adoece e morre, dados
uso dessa terminologia no campo da demográficos e socioeconômicos); ser-
saúde. Mas, certamente, é a partir do viços prestados; materiais e medica-
século XIX, período que marca o re- mentos consumidos; força de trabalho
crudescimento dos estudos em envolvida;
epidemiologia, que a necessidade de b) para conhecer: necessidades da
comunicar questões relacionadas à saú- população atendida; uso potencial e
de das populações se torna a grande real da rede instalada; investimentos
alavanca para a disseminação das Infor- necessários;
mações em Saúde. Quase que c)a fim de planejar, controlar e
concomitantemente, a estatística do avaliar as ações e serviços de saúde
final desse século XIX e início do sé- (EPSJV, 2005).
culo XX, inspiradora de estudiosos Como marcos históricos para tan-
como Benthan, Price, Laplace, Galton to, tem-se, no século XVII, na Alema-
(Rosen, 1994) pode ser vista, também, nha, o surgimento da chamada ‘topo-
como um ponto de partida importan- grafia política ou uma descrição das
te para a geração de Informações em Saú- condições atuais do país’, proposta por
de de forma agregada e preditiva. Daí Leibniz, em cuja descrição deveriam
pode-se partir, sem muito pecado, para constar: o número de cidades (maio-
as primeiras peças da Informação em Saú- res e menores) e de aldeias; a popula-
de, compostas pelas Estatísticas Vitais, ção total e a área do país em acres; a
pelas Tábuas de Sobrevida, enfim, por enumeração de soldados, mercadores,
instrumentos de predição e inferência artesãos e diaristas; as informações
de estados de saúde a partir do status sobre as relações entre os ofícios; o
atual de um grupo de pessoas em de- número de mortes e das causas de
terminado contexto de saúde. morte (Rosen, 1980). Em decorrência
E, no correr da história, numero- dessa e de outras ações semelhantes,

250
Informação em Saúde A

surgiram os inquéritos de morbidade Emprego na atualidade C


e as estatísticas dos serviços de saú-
de. Na gênese da vigilância Nos tempos atuais a expressão
D
epidemiológica, é inegável a influên- Informação em Saúde congrega vários
E
cia de Farr, que realizou atividades outros termos e múltiplas dimensões,
de coleta, processamento e análise de podendo ser tomada, portanto, por um
F
dados e sua divulgação para as auto- constructo. Daí termos, de forma
ridades sanitárias. Quando observa- esquemática (Moraes, 2007), a possi- G
mos o célebre estudo sobre o cólera bilidade de observar a Informação em
realizado por Snow, é impossível ne- Saúde como subsídio para o próprio H
gar o uso das Informações em Saúde setor saúde: na administração; na as-
constantes dos mapas de ponto e do sistência; no controle e avaliação; no I
raciocínio epidemiológico no contro- orçamento e finanças; no planejamen-
le desta doença, já no século XIX. to; nos recursos humanos; na N
regulação; na saúde suplementar; no
A essa altura é, também, de suma geoprocessamento em saúde, e na vi- O
importância destacar o papel funda- gilância (epidemiológica, sanitária,
mental do desenvolvimento das ci- ambiental). P
ências da computação, no século XX,
e, portanto, da informática como ins- Em conseqüência disso, por con- Q
trumental necessário e multiplicador siderarmos que muitos não resistem à
tanto das metodologias estatísticas tentação de trabalhar de forma R
quanto das Informações em Saúde. Res- reducionista, dado o caráter
salte-se, também, que esse desenvol- multidimensional da expressão, torna- S
vimento tecnológico tem papel se imprescindível dizer, para reforçar
crucial em inovações intrínsecas à o conceito de Informação em Saúde aqui T
área da saúde, tais como: a) a disse- ancorado, que ele não é:
minação e facilitação da acessibilida- a)a mera transformação, por meio U
de às bases de dados em saúde; b) o do processamento de dados, do dado
registrado em informação em saúde;
V
surgimento e a propag ação da
informática médica; c) a concepção b) a disseminação e/ou constru-
A
e a implementação do prontuário ele- ção indiscriminada de sistemas de in-
trônico do paciente; entre outros. formações em saúde;
A

251
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

c)o banco de dados de um deter- Informação(ões) em Saúde, muito


minado sistema em saúde; menos constructo dependente exclu-
d) o conjunto de indicado- siva e diretamente da informática, vale
res em saúde de determinada região, historiar sucintamente a composição
população ou doença; dos Sistemas de Informação em Saú-
e)o aparato informático que pro- de de Base Nacional, em nosso país,
duz informação; atualmente sediados no Departamen-
f) o conjunto de relatórios gera- to de Informática do Sistema Único
dos a partir de uma miríade de siste- de Saúde - Datasus, uma vez que estes
mas de informações construídos so- são incontestáveis mananciais de Infor-
bre uma lógica fragmentada. mações em Saúde.
Ou seja, retomando o acima men- Para tanto, utilizaremos uma adap-
cionado, temos que, apesar de estar ‘in- tação do texto de Camargo Jr. et al.
trínseco à informação seu potencial de (2007). Nele, os autores referem-se a
fabricação, desenho (projeto) ou con- avanços significativos na implantação
cepção’ ela (a informação em saúde), dos Sistemas de Informações em Saú-
por si só, não tem significado quando de de Base Nacional, ocorridos prin-
em uma ilha. Informação em Saúde apar- cipalmente na década de 1990. Ressal-
tada de uma política nacional de infor- tam, também, como marco inicial de
mação e informática na saúde que pri- composição desses sistemas, o Siste-
me pelo controle social e pela utiliza- ma de Informação sobre Mortalidade
ção ética e fidedigna de dados produ- (SIM), criado em 1975, bem como a
zidos com qualidade seja em relação Criação do Grupo Técnico de Infor-
ao cidadão, seja em relação aos gestores mação em Saúde, em 1986.
da área saúde, não é mais do que um Além disso, são destacados os
mote, uma expressão vazia. E se assim avanços na implantação e no acesso a
o for ela servirá tanto à produção de bancos de dados nacionais com infor-
informações importantes e pertinen- mações sobre nascimentos, óbitos,
tes quanto, também, à disseminação de doenças de notificação, atenção bási-
equívocos e de produtos de manipula- ca, imunizações, produção de proce-
ção indevida dos dados em saúde. dimentos ambulatoriais, atendimento
De toda forma, mesmo tendo em de alto custo, hospitalizações, estabe-
mente que Informação em Saúde não é lecimentos de saúde e orçamentos pú-
um (nem todos) Sistema(s) de blicos.

252
Informação em Saúde A

Na geração dos indicadores em quisa e na avaliação de programas e C


saúde deve ser destacada, também, a serviços de saúde.
maior acessibilidade às informações Para além disso, cabe mencionar D
oriundas do Instituto Brasileiro de os desafios atuais voltados para a con-
Geografia e Estatística (IBGE), refe- cepção e produção de protocolos que
E
rentes a variáveis demográficas e garantam a confidencialidade dos da-
F
socioeconômicas, coletadas e proces- dos em nível individual. Esse é um
sadas. Outras informações produzidas novo nó górdio no jogo de forças
G
em setores do governo, tais como be- entre o uso das informações em
nefícios da previdência social e siste- saúde para a produção de meios e H
mas específicos implantados nos níveis insumos voltados à melhoria da
estadual e municipal, afetas à área da qualidade de vida das populações I
saúde, foram também disponibilizadas. e à exposição indevida de dados
Outro aspecto que deve ser leva- confidenciais e, portanto, resguar- N
do em consideração no Brasil é o aces- dados pela ética em saúde.
so às bases de dados oriundas do sis- Finalmente, vale ratificar nossa O
tema de saúde complementar que co- posição inicial sobre a multidimen-
meçam a ser disponibilizadas pela sionalidade do constructo que ora P
Agência Nacional de Saúde Suplemen- apresentamos e para o qual não opta-
tar - ANS. Essas informações são de mos por uma definição única e Q
suma importância para a análise das encapsulada que possa ser decorada,
condições de saúde da população que recitada e reproduzida sem que sobre R
não utiliza o Sistema Único de Saúde, ela se faça uma genuína reflexão. Ou
exclusivamente ou não. seja, optamos por falar de Informação S
Assim sendo, mesmo consideran- em Saúde sem, contudo, dar-lhe um
do que existem problemas referentes único invólucro, resumindo tal expres- T
à cobertura dos sistemas, à qualidade são a uma frase definitiva e concluden-
dos dados e à ausência de variáveis te. Ao contrário disso, optamos por U
importantes para as análises e/ou cons- situá-la no campo dos saberes
trução de indicadores em saúde, esses polissêmicos e fornecer dados sufi-
V
bancos de dados representam fontes cientes para que a reflexão do leitor
A
importantes que podem ser utilizadas seja, por ela mesma, uma excelente
rotineiramente em estudos epidemio- definição para o constructo Informa-
A
lógicos, na vigilância em saúde, na pes- ção em Saúde.

253
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: Informática do SUS, 29 de março de


2004. Disponível em: http://
w3.datasus.gov.br/APRESENTACAO/
ANS – Agência Nacional de Saúde
PoliticaInfor macaoSaude 29/03/
Suplementar. ANS Tabnet –
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Informações em Saúde Suplementar.
http://www.ans.gov.br/portal/site/ ESCOLA POLITÉCNICA DE
infor macoesss/infor macoesss.asp SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO
(Acesso em: 14 jul. 2008). (Org.). Projeto Político Pedagógico. Rio de
Janeiro: EPSJV, 2005.
BRANCO, M. A. F. Infor mação e
Saúde: uma Ciência e suas Políticas em CAMARGO JR., K. R.; COELI, C. M.
u m a N o va E r a . R i o d e Ja n e i r o : Sistemas de informação e banco de dados em
Editora Fiocruz, 2006. saúde: uma introdução. (Série Estudos em
Saúde Coletiva). Rio de Janeiro: IMS,
BRASIL. Ministério da Saúde. Manual
Uerj, 2000.
de Procedimentos do Sistema de
Informação sobre mortalidade. Brasília: CAMARGO JR., K. R.; COELI, C. M.
Ministério da Saúde, 2001a. Políticas de informação em saúde. In:
EPSJV (Org.). (Série Trabalho e
BRASIL. Ministério da Saúde. Manual
Formação em Saúde).Textos de Apoio em
de Procedimentos do Sistema de Informação
Políticas de Saúde. Rio de Janeiro: Editora
sobre Nascidos Vivos. Brasília: Ministério
Fiocruz, 2005, p. 143-156.
da Saúde, 2001b.
CAMARGO JR., KR.; COELI, CM.;
BRASIL. Ministério da Saúde. Manual
MORENO, A.B. Infor mação e
do sistema de informações hospitalares do SUS.
Avaliação em Saúde. In: MATTA, G. C.;
Brasília: Ministério da Saúde, 2001c.
PONTES, A. L. de. Políticas de saúde: a
BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de organização e a operacionalização do sistema
Informações do Programa Nacional de único de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/
Imunizações - avaliação do programa de Fiocruz, 2007, p. 251-266.
imunizações. Brasília: Ministério da Saúde;
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da
2001d.
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
BRASIL. Ministério da Saúde. Guia de Objetiva, 2008. Disponível em:
Vigilância Epidemiológica. Brasília: www.houaiss.uol.com.br/busca.jhtm
Ministério da Saúde, v. I, 2002.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia
BRASIL. Ministério da Saúde. Política e Estatística. Pesquisa por Amostra de
Nacional de Informação e Informática em Domicílios - acesso e utilização de serviços de
Saúde - proposta versão 2.0 (inclui saúde. Brasília: IBGE, Ministério da
deliberações da 12ª. Conferência Saúde, 2003.
Nacional de Saúde) – Brasília: Ministério
MORAES, I. H. S.; GOMEZ, M. N. G.
da Saúde: Secretaria Executiva:
Informação e informática em saúde:
Departamento de Infor mação e

254
Integralidade em Saúde A

caleidoscópio contemporâneo da saúde. Universidade Estadual Paulista; Rio de C


Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. Janeiro: Associação Brasileira de Pós-
12, n. 3, p. 553-565, 2007. Graduação em Saúde Coletiva, 1994. D
RIPSA. Rede Interagencial de ROSEN, G. Da polícia médica à medicina
Informações para a Saúde. Indicadores social: ensaios sobre a história da assistência E
Básicos de Saúde no Brasil: conceitos e médica. Tradução de Ângela Loureiro de
aplicações. Brasília: Opas, 2002. Souza. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
F
ROSEN, G. Uma História da Saúde
Pública. São Paulo: Hucitec: Editora da G

H
INTEGRALIDADE EM SAÚDE
I

Roseni Pinheiro
N

O
Integralidade como princí- Mattos (2005a) sistematizou três
pio do direito à saúde conjuntos de sentidos sobre a P
‘integralidade’ que têm por base a gêne-
A ‘integralidade’ é um dos prin- se desses movimentos, quais sejam: a Q
cípios doutrinários da política do Es- ‘integralidade’ como traço da boa me-
tado brasileiro para a saúde – o Siste- dicina, a ‘integralidade’ como modo de R
ma Único de Saúde (SUS) –, que se organizar as práticas e a ‘integralidade’
destina a conjugar as ações como respostas governamentais a pro- S
direcionadas à materialização da saúde blemas específicos de saúde.
como direito e como serviço. Suas ori- No primeiro conjunto de sentidos, T
gens remontam à própria história do a ‘integralidade’, um valor a ser susten-
Movimento de Reforma Sanitária bra- tado, um traço de uma boa medicina, U
sileira, que, durante as décadas de 1970 consistiria em uma resposta ao sofri-
e 1980, abarcou diferentes movimen- mento do paciente que procura o ser- V
tos de luta por melhores condições de viço de saúde e em um cuidado para
que essa resposta não seja a redução A
vida, de trabalho na saúde e pela for-
mulação de políticas específicas de ao aparelho ou sistema biológico des-
te, pois tal redução cria silenciamentos.
A
atenção aos usuários.

255
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A ‘integralidade’ está presente no en- populacional.


contro, na conversa em que a atitude Com a institucionalização do SUS,
do médico busca prudentemente reco- mediante a lei 8.080-90, deflagrou-se
nhecer, para além das demandas explí- um processo marcado por mudanças
citas, as necessidades dos cidadãos no jurídicas, legais e institucionais nunca
que diz respeito à sua saúde. A antes observadas na história das polí-
‘integralidade’ está presente também na ticas de saúde do Brasil. Com a
preocupação desse profissional com o descentralização, novos atores incor-
uso das técnicas de prevenção, tentan- poraram-se ao cenário nacional, e esse
do não expandir o consumo de bens e fato, junto à universalidade do acesso
serviços de saúde, nem dirigir a aos serviços de saúde, possibilitou o
regulação dos corpos. aparecimento de ricas e diferentes ex-
No segundo conjunto de sentidos, periências locais centradas na
a ‘integralidade’, como modo de orga- ‘integralidade’.
nizar as práticas, exigiria uma certa A ‘integralidade’ como definição
‘horizontalização’ dos programas an- legal e institucional é concebida como
teriormente verticais, desenhados pelo um conjunto articulado de ações e ser-
Ministério da Saúde, superando a frag- viços de saúde, preventivos e curati-
mentação das atividades no interior das vos, individuais e coletivos, em cada
unidades de saúde. A necessidade de caso, nos níveis de complexidade do
articulação entre uma demanda progra- sistema. Ao ser constituída como ato
mada e uma demanda espontânea em saúde nas vivências cotidianas dos
aproveita as oportunidades geradas por sujeitos nos serviços de saúde, tem
esta para a aplicação de protocolos de germinado experiências que produzem
diagnóstico e identificação de situações transformações na vida das pessoas,
de risco para a saúde, assim como o cujas práticas eficazes de cuidado em
desenvolvimento de conjuntos de ati- saúde superam os modelos idealizados
vidades coletivas junto à comunidade. para sua realização.
Por último, há o conjunto de sen- Milhares de gestores, profissionais
tidos sobre a ‘integralidade’ e as polí- e usuários do SUS, na busca pela
ticas especialmente desenhadas para melhoria de atenção à saúde, vêm apre-
dar respostas a um determinado pro- sentando evidências práticas do
blema de saúde ou aos problemas de inconformismo e da necessidade de
saúde que afligem cer to gr upo revisão das idéias e concepções sobre

256
Integralidade em Saúde A

saúde, em particular dos modelos tudo, fazer daquilo que não somos, mas C
tecnoassistenciais. A busca pela im- poderíamos ser, parte integrante de
plantação de políticas públicas mais nosso mundo. A experiência é mais vi- D
justas no país por esses atores tem-se dente que evidente, criadora que
destacado pela sua ‘ação criativa’, como reprodutora.
E
sujeitos em ação que, na luta pela cons- É a partir da experiência que te-
F
trução de um sistema de saúde uni- mos as bases de uma ética particular e
versal, democrático, acessível e de qua- concreta, em que a obra e vida se nu-
G
lidade, vêm possibilitando o trem sem se reduzirem uma a outra. A
surgimento de inúmeras inovações partir dela a ética seria o desdobramen- H
institucionais, seja na organização dos to da politização dos sujeitos em suas
serviços de saúde, seja na incorpora- lutas e conquistas no presente, no I
ção e/ou desenvolvimento de novas mundo que vivemos.
tecnologias assistenciais de atenção As experiências de ‘integralidade’ N
aos usuários do SUS. identificam que conceitos, definições
Essas experiências, fruto de ini- e noções vêm sendo repensados, O
ciativas municipais e estaduais, têm reconstruídos, formando um verdadei-
implicado o repensar dos aspectos ro amálgama dos demais princípios P
mais importantes do processo de tra- norteadores do SUS. Pensar o cuida-
balho, da gestão, do planejamento e, do em saúde como uma tecnologia, por Q
sobretudo, da construção de novos exemplo, e não somente como objeto
saberes e práticas em saúde, resultan- de práticas de saúde realizadas em de- R
do em transformações no cotidiano terminado nível de atenção, e sim nos
das pessoas que buscam e dos profis- demais níveis de atenção especializa- S
sionais e gestores que oferecem cui- da, nos quais a complexidade não seja
dado de saúde. dada pelo grau de hierarquização dos T
Entende-se que a experiência não espaços e procedimentos por ela defi-
é apreendida para ser repetida simples- nidos, mas pelos recursos cognitivos, U
mente e passivamente transmitida, materiais e financeiros que reúnem.
ela acontece para migrar, recriar, Na experiência a ‘integralidade’
V
potencializar outras vivências, outras ganha o sentido mais ampliado de sua
A
diferenças. Há uma constante negoci- definição legal, ou seja, pode ser con-
ação para que ela exista e não se isole. cebida como uma ação social que re-
A
Aprender com a experiência é, sobre- sulta da interação democrática entre os

257
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

atores no cotidiano de suas práticas, tões estão diretamente relacionadas,


na oferta do cuidado de saúde, nos di- muitas vezes de forma contraditória,
ferentes níveis de atenção do sistema. com as políticas econômicas e sociais
A ‘integralidade’ das ações consiste na adotadas no país nas últimas décadas
estratégia concreta de um fazer coleti- – políticas excludentes que concentram
vo e realizado por indivíduos em defe- riqueza e fragilizam a vida social, au-
sa da vida. mentando de forma exponencial a de-
manda da população brasileira por
ações e serviços públicos de saúde.
Integralidade como meio de Se, de um lado, a forma de organi-
concretizar o direito à saúde zação de nossa sociedade, baseada no
capitalismo, tem favorecido inúmeros
A ‘integralidade’ como eixo avanços nas relações de produção, so-
prioritário de uma política de saúde, ou bretudo no que diz respeito à crescente
seja como meio de concretizar a saúde sofisticação e progresso de tecnologias
como uma questão de cidadania, sig- em diferentes campos, inclusive da saú-
nifica compreender sua de, o mesmo não se pode dizer das re-
operacionalização a partir de dois mo- lações sociais. Estas revelam o sofrimen-
vimentos recíprocos a serem desenvol- to difuso e crescente de pessoas que são
vidos pelos sujeitos implicados nos cotidianamente submetidas a padrões de
processos organizativos em saúde: a profundas desigualdades, expressos pelo
superação de obstáculos e a implanta- acirramento do individualismo, pelo es-
ção de inovações no cotidiano dos ser- tímulo à competitividade desenfreada e
viços de saúde, nas relações entre os pela discriminação negativa, com des-
níveis de gestão do SUS e nas relações respeito às questões de gênero, raça,
destes com a sociedade. etnia e idade.
Esses dois movimentos consistem Na contramão desse processo, te-
nos principais nexos constituintes da mos a Constituição Federal, que, ao
‘integralidade’ como meio de concre- criar e estabelecer as diretrizes para o
tizar o direito à saúde da população, SUS, oferece os elementos básicos para
do qual emergem um conjunto de o reordenamento da lógica de organi-
questões consideradas relevantes para zação das ações e serviços de saúde
sua apropriação conceitual e prática no brasileiros, de modo a garantir ao con-
campo da saúde coletiva. E essas ques- junto dos cidadãos as ações neces-

258
Integralidade em Saúde A

sárias à melhoria das condições de vida gestão, de cuidados e de controle so- C


da população. cial. A saúde, como direito de cidada-
Surgem experiências inovadoras e nia e defesa da vida, exige análises com- D
exitosas, em diferentes estados e mu- preensivas, a fim de identificá-la como
nicípios do país, cujos contextos nem uma categoria da prática portadora de
E
sempre são favoráveis. Contudo, nes- padrões móveis e progressivos, e o sis-
F
sas experiências, podemos identificar tema de saúde, sua organização e o
os atributos habilitadores da ‘integra- conjunto de práticas no seu interior
G
lidade’, na medida em que revelam o devem ter a capacidade de acompanhá-
campo das práticas como espaço pri- los e, mesmo, construir sempre novas H
vilegiado para o surgimento de inúme- possibilidades, em um movimento re-
ras inovações institucionais na organi- novado de ‘integra-lidade’ com eqüi- I
zação da atenção à saúde. Inovações dade. Torna-se necessário exercer, no
que são construídas cotidianamente limite, todas as combinações possíveis N
por permanentes interações democrá- de forças técnicas, políticas e adminis-
ticas dos sujeitos nos e entre os servi- trativas existentes em cada realidade O
ços de saúde, sempre pautadas por va- local – com a necessidade tal como
lores emancipatórios fundamentados na expressa pelos usuários e como é per- P
garantia da autonomia, no exercício da cebida por meio de indicadores que a
solidariedade e no reconhecimento da razão técnica analisa para o planeja- Q
liberdade de escolha do cuidado e da mento, com a gerência dos serviços e
saúde que se deseja obter. com as práticas dos trabalhadores – em R
Daí nasce o entendimento de su- arranjos dinâmicos que, a partir de cada
jeitos coletivos “resultantes da conquista realizada, pressionem e or- S
intersubjetividade que somos”, viven- ganizem as condições para novos avan-
do em espaços públicos, ainda caren- ços. T
tes de um agir político compartilhado Para entendermos a ‘integralidade’
e sociabilizado – os serviços de saúde. como meio para concretizar o direito U
Experiências de organização da à saúde é importante atentar para as
atenção à saúde efetivam a construção três dimensões que a constituem: a or-
V
do SUS também no cotidiano dos usu- ganização dos serviços, os conheci-
A
ários e trabalhadores, oferecendo di- mentos e práticas de trabalhadores de
ferentes padrões de eqüidade e saúde e as políticas governamentais
A
‘integralidade’ forjados por práticas de com participação da população.

259
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Integralidade como fim na ção das práticas de saúde, sendo reco-


produção da cidadania do nhecida nas práticas que valorizam o
cuidado cuidado e que têm em suas concepções
a idéia-força de considerar o usuário
A ‘integralidade’ como fim na pro- como sujeito a ser atendido e respeita-
dução de uma cidadania do cuidado re- do em suas demandas e necessidades.
fere-se ao ato de cuidar integral que tem Essa idéia-força constitui o cerne da
as práticas de saúde como eixos políti- cidadania do cuidado.
cos-organizativos, formas de construir A ‘integralidade’ ganha visibilida-
inovações e novas tecnologias de aten- de quando se atinge a resolubilidade
ção aos usuários no SUS. da equipe e dos serviços, por meio de
discussões permanentes, capacitação,
A ‘integralidade’ como fim na pro- utilização de protocolos e reorganiza-
dução de uma cidadania do cuidado se ção dos serviços. Como exemplo, tem-
dá pelo modo de atuar democrático, se o acolhimento/usuário-centrado e
do saber fazer integrado, em um cui- a democratização da gestão do cuida-
dar que é mais alicerçado numa rela- do pela participação dos usuários nas
ção de compromisso ético-político de decisões sobre a saúde que se deseja
sinceridade, responsabilidade e confi- obter.
ança entre sujeitos, reais, concretos e Nesse sentido, é preciso reconhe-
portadores de projetos de felicidade. cer nas estratégias de melhoria de
Entende-se o sujeito como ser acesso e desenvolvimento de práticas
real, que produz sua história e é res- integrais, como o acolhimento, o vín-
ponsável pelo seu devir. Respeita-se o culo e a responsabilização. Franco,
saber das pessoas (saber particular e Bueno e Merhy (1999) destacam, his-
diferenciado), esses saberes históricos toricamente centrados na oferta e no
que foram silenciados e profissional médico, um modelo
desqualificados, que representam uma centrado no usuário.
atitude de respeito que possa expres- O acolhimento é assim concebi-
sar compromisso ético nas relações do como dispositivo para interrogar
gestores/profissionais/usuários. processos intercessores que constro-
Desta forma, ‘integralidade’ exis- em relações nas práticas de saúde, bus-
te em ato e pode ser demandada na cando a produção da responsabilização
organização de serviços e na renova- clínica e sanitária e a intervenção

260
Integralidade em Saúde A

resolutiva, reconhecendo que, sem aco- admitir, aceitar, dar crédito, levar em C
lher e vincular, não há produção dessa consideração”. Já vínculo é definido
responsabilização. como “aquilo que ata, liga ou aperta: D
Merhy (1997) propõe refletir que estabelece um relacionamento ló-
como têm sido nossas práticas nos di- gico ou de dependência, que impõe
E
ferentes momentos de relação com os uma restrição ou condição”. É interes-
F
usuários. O autor afirma que uma das sante notar que os sentidos atribuídos
traduções de acolhimento é a relação às palavras não se correlacionam dire-
G
humanizada, acolhedora, que os traba- tamente às questões de saúde, mas
lhadores e o serviço, como um todo, podemos identificar alguns de seus sig- H
têm de estabelecer com os diferentes nificados, como: “atenção, considera-
tipos de usuários. Em nossa busca pré- ção, abrigo, receber, atender, dar cré- I
via pelos conceitos atribuídos aos ter- dito a, dar ouvidos a, admitir, aceitar,
mos acolhimento e vínculo, recorre- tomar em consideração, oferecer refú- N
mos a alguns dicionários de língua por- gio, proteção ou conforto físico, ter ou
tuguesa, a fim de verificar concordân- receber alguém junto a si”, atributos O
cia, além de observar o nexo lexical. de atenção integral à saúde, enfim, da
No Dicionário Aurélio de Língua Por- ‘integralidade’. P
tuguesa, o termo acolhimento está rela- Os valores implícitos nessas pala-
cionado ao “ato ou efeito de acolher; vras nos permitem realizar diferentes Q
recepção, atenção, consideração, refú- aproximações com as distintas produ-
gio, abrigo, agasalho”. E acolher signi- ções sobre ‘integralidade’ no cuidado, R
fica: “dar acolhida ou agasalho a; hos- que se refere sobretudo, na definição
pedar, receber; atender; dar crédito a; de responsabilidades entre serviços e S
dar ouvidos a; admitir, aceitar; tomar em população, à humanização das práticas
consideração; atender a”. Já vínculo é da saúde, ao estabelecimento de um T
“tudo o que ata, liga ou aperta; ligação vínculo entre profissionais de
moral; gravame, ônus, restrições; rela- saúde e a população, ao estímulo à or- U
ção, subordinação; nexo, sentido”. ganização da comunidade para o exer-
No Dicionário Houaiss, o termo cício do controle social e ao reconhe-
V
acolhimento não existe, porém acolher cimento da saúde como direito de
A
significa “oferecer ou obter refúgio, cidadania.
proteção ou conforto físico. Ter ou A construção da ‘integralidade’
A
receber (alguém) junto a si. Receber, como fim na produção da cidadania do

261
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

cuidado, implica, necessariamente, a de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco,


disponibilidade em trabalhar a partir de 2005a.
um plano aberto de possíveis, aspecto MERHY, E. E. Em busca do tempo
que torna essa categoria tão particu- perdido: a micropolítica do trabalho vivo
em saúde. In: MERHY, E. E. &
larmente polissêmica e polifônica. Tal ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um
característica, ao contrário de indicar desafio para o público. São Paulo: Hucitec,
uma limitação ou negatividade, é antes 1997.
o que nos faz tomar a ‘integralidade’ PINHEIRO, R. & MATTOS, R.
como um campo de disputa política e Construção da Integralidade: cotidiano, saberes,
produção de real social menos deter- práticas em saúde. 3.ed. Rio de Janeiro:
Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco, 2004.
minado pelas configurações
institucionais e normativas e, portan- PINHEIRO, R. & MATTOS, R. Os
Sentidos da Integralidade na Atenção e no
to, especialmente constituído e mate- Cuidado em Saúde. 4.ed. Rio de Janeiro:
rializado através da textura conflituosa Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco, 2005a.
dos encontros de diversos sujeitos e PINHEIRO, R. & MATTOS, R.
instituições. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed.
A ‘integralidade’ é assim concebida Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj/
como uma construção coletiva, que ga- Abrasco, 2005b.
nha forma e expressão no espaço de en- PINHEIRO, R. & MATTOS, R.
contro dos diferentes sujeitos implica- Construção Social da Demanda: direito à
saúde, trabalho em equipe e participação em
dos na produção do cuidado em saúde.
espaços públicos. 1.ed. Rio de Janeiro:
Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco, 2005c.

Para saber mais:


FRANCO, T. B.; BUENO, W. S. &
MERHY, E. E. O acolhimento e os
processos de trabalho em saúde: Betim,
Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde
Pública, 2(15): 345-353, 1999.
MATTOS, R. Os sentidos da
integralidade: algumas reflexões acerca
de valores que merecem ser defendidos.
In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R.
(Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na
Atenção e no Cuidado em Saúde. 4.ed. Rio

262
Interdisciplinaridade A

C
INTERDISCIPLINARIDADE
D
Isabel Brasil Pereira
E

Ainda que pese a polissemia do e forma pode o homem conhecer? F


termo, a interdisciplinaridade pode ser Como se dá a relação do homem com
traduzida em tentativa do homem co- a natureza e a sociedade, de forma frag- G
nhecer as interações entre mundo na- mentada, como fato isolado, ou de for-
tural e a sociedade, criação humana e ma integrada em que o observado e/ H
natureza, e em formas e maneiras de ou vivido está inserido numa rede de
captura da totalidade social, incluindo relações que lhe dá sentido e significa- I
a relação indivíduo/sociedade e a rela- do? A partir de que forma e sentido
ção entre indivíduos. Consiste, portan- pode o homem transmitir esse conhe- N
to, em processos de interação entre co- cimento?
nhecimento racional e conhecimento O caráter de ruptura no que a
O
sensível, e de integração entre saberes interdisciplinaridade é chamada a res-
P
tão diferentes, e, ao mesmo tempo, ponder, ou seja, a fragmentação do
indissociáveis na produção de sentido saber, instituída pela ciência moderna
Q
da vida. sob a égide do capital, do mundo do
Há que se afirmar trabalho e da cultura, e transmitida pela
R
interdisciplinaridade como um concei- prática educativa. A transmissão da
to historicamente e socialmente pro- fragmentação do saber na prática S
duzido, apresentando no campo educativa reflete e ao mesmo tempo
epistemológico, no mundo do traba- responde aos processos conflituosos T
lho, e na educação, movimento de con- e contraditórios do mundo do traba-
tinuidade e ruptura em relação às ques- lho e da própria produção do conhe- U
tões que busca elucidar, e que simulta- cimento científico que com o advento da
neamente a constituem. O caráter de ciência moderna, passou por um profundo V
continuidade da interdisciplinaridade processo de esfacelamento em função da mul-
tem implicações com questões, inces- tiplicação crescente das ciências, cujo desen- A
santemente, em pauta na história da volvimento se fez às custas da especialização
humanidade, tais como: de que maneira (Japiassú, 1976). A

263
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Embora dito e redito que a ciên- da, no início do século XX. Nesse ca-
cia moderna tem como inerente à sua minho, outros conceitos ganham for-
própria instituição os métodos analíti- ça, dentre eles a transdisciplinaridade.
cos de Galileu e Descartes, é sempre Para Piaget (1981, p. 52), a
bom lembrar que no pensamento des- interdisciplinaridade pode ser entendi-
te último está presente o desejo de da como o “intercâmbio mútuo e
reconstituição da totalidade e a neces- integração recíproca entre várias ciên-
sidade das conecções entre as ciências cias”. A interdisciplinaridade, para o
(Pombo, 1994). autor, é uma interação entre as ciênci-
Ainda que compreendamos as di- as, que deveria conduzir à
versas tentativas do homem conhecer transdisciplinaridade, sendo esta últi-
como intrínsecas ao trabalho humano, ma, concepção que se traduz em não
à produção cultural e à necessidade de haver mais fronteiras entre as discipli-
autoconhecimento e sobrevivência, o nas. Piaget aposta na
fato é que a busca por saberes tão di- transdisciplinaridade, entendida como
versos perderam-se nos desvãos da integração global das ciências, afirman-
ideologia e serviram a mestres menos do ser esta uma etapa posterior e mais
nobres. Não à toa as especializações, integradora que a interdisciplinaridade,
sob a égide do capitalismo, apresenta- visto que, segundo o autor, alcançaria
ram características cada vez mais as interações entre investigações
reducionistas, perdendo-se de vista a especializadas, no interior de um siste-
possibilidade da totalidade do conhe- ma total, sem fronteiras estáveis entre
cimento, e mesmo as conecções mais as disciplinas.
profundas entre as ciências. Atualmente, a interdisciplinari-
No final do século XIX, as ciên- dade continua seu caminho pela
cias haviam se dividido em muitas dis- (re)construção do conhecimento uni-
ciplinas e a busca pela interação entre tário e totalizante do mundo frente à
estas disciplinas ecoa forte no sentido fragmentação do saber. Na escola, essa
de promover um diálogo entre elas. Na noção é materializada em práticas e
Educação, a preocupação com formas reflexões como a integração de con-
e maneiras de atender ao apelo a uma teúdos e a interação entre ensino e
integração e interação entre as ciênci- pesquisa.
as, sob as quais essa prática social se Do ponto de vista da diretriz de
constrói, ocorre de maneira mais níti- política governamental, o Ministério da

264
Interdisciplinaridade A

Educação por meio dos Parâmetros do conhecimento escolar pode ser C


Curriculares Nacionais (1999) procu- construída? Quais são os lugares e
ra orientar quanto a atitudes e ações ações da prática escolar, hoje, onde se D
interdisciplinares. De acordo com busca a interdisciplinaridade?
Kaveski (2005, p. 128, grifos meus) “a A superação, no âmbito escolar,
E
interdisciplinaridade é entendida no PCN do da forma em que o conhecimento é
F
ensino médio como função instrumental, ‘a de apresentado e construído não pode
utilizar os conhecimentos de várias discipli- entender a escola e o conhecimento
G
nas para resolver um problema concreto ou separados da vida social de outras es-
compreender um determinado fenômeno sob feras da vida humana. Para tanto, é H
diferentes pontos de vista’ a partir ‘de uma necessário entender a interdiscipli-
abordagem relacional’ ...”. naridade no âmbito de uma dimensão I
Como contraponto à fragmenta- política e ética.
ção do conhecimento escolar, do ensi- A busca pela integração e N
no e do conhecimento educacional, a interação entre as diferentes áreas de
interdisciplinaridade tem como primei- conhecimento e/ou disciplinas tem de O
ro desafio perceber que: esta fragmen- estar atenta para o grau de autonomia
tação na educação - como já desvela- necessário a cada uma delas. Há que se P
do pelo pensamento crítico - reproduz ter, portanto, cuidado com a armadi-
o mundo fragmentado, fruto das rela- lha positivista (que apresenta aí mar- Q
ções de produção e reprodução social. cas da sua ambigüidade, pois foi o
A consciência sobre isso permite pen- positivismo significativo na fragmen- R
sar a interdisciplinaridade com base no tação do saber) quando afirma que as
seu próprio limite. Isso significa se diferentes áreas da ciência podem ser S
debruçar, sem idealização de um alcan- analisadas e compreendidas sob o mes-
ce absoluto da sua missão, sobre a se- mo método e/ou sob a mesma lógica. T
guinte questão: Quais são as Como exemplo dessa armadilha, a no-
(im)possibilidades da interdisci- tória e por vezes ideológica apropria- U
plinaridade no âmbito escolar? A par- ção do conceito de evolução de Darwin
tir dessa questão, outras se derivam, sobre a natureza, sendo aplicada para
V
dentre elas: Quais os cuidados que se se pensar e compreender a sociedade.
A
deve ter ao integrar os conhecimentos Em relação a já mencionada es-
disciplinares? De que formas e manei- pecialização que se traduz em
A
ras a interdisciplinaridade no âmbito autonomização gerando fragmentação

265
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

do conhecimento, é sempre bom avi- se estar atento para que formas de or-
sar que: há que se não confundir a crí- ganização do trabalho em saúde, que
tica à especialização, com uma não primam pela integralidade, possam
especificidade necessária, como o acentuar a fragmentação do conheci-
enfoque do conhecimento, devido ao mento escolar.
seu acúmulo ao longo da existência O termo interdisciplinaridade é
humana como síntese dos saberes também aplicado com base em um
construídos histórico-socialmente, que deslocamento de sentido e/ou apro-
levam em conta a totalidade no pró- priação deste conceito por correntes
prio campo da ciência e na sociedade. hegemônicas da educação profissional
Deve ainda a interdisciplinaridade a favor do capital. Hoje, há processo
estar atenta para a relação forma e con- de formação profissional que adere a
teúdo dentro de uma mesma discipli- uma concepção da totalidade como
na no que tange aos níveis de comple- soma das partes, e visa a uma forma-
xidade do conhecimento, de grande ção polivalente do trabalhador. A qua-
importância para a prática educativa. lificação profissional pautada pela
A interdisciplinaridade pode se polivalência justapõe conhecimentos
materializar nas metodologias de ensi- técnicos, de modo a garantir a organi-
no, no currículo e na prática docente. zação do trabalho em que o mesmo
Na educação profissional em saúde ela trabalhador possa desempenhar vári-
tem se traduzido em tentativas, por as funções outrora realizadas por mais
vezes bem sucedidas, de projetos e trabalhadores. Nessa história, recente e atu-
concepções diversos, mas que parti- al, é demandado aos sistemas educacionais um
lham a necessidade de perseguir, de ajuste às novas maneiras que o capital encon-
acordo com o que pensam ser isto, o tra para administrar as suas crises, no caso a
saber unitário. Indo além, nesse cami- produção de um trabalhador polivalente, com
nho coloca-se a necessidade da capacidades, ‘conhecimentos’, valores e atri-
interação entre escola e serviço de saú- butos, destreza e capacidade de resolver pro-
de, entre escola e as demandas de saú- blemas, compatíveis com o mundo do traba-
de da população urbana e do campo. lho em mutação (Pereira, 2002).
A partir do olhar histórico que Trata-se assim de perceber que a
desvela que o processo de fragmenta- característica central do capitalismo,
ção do saber se acentua com o proces- lembrando aqui Marx (1999), é estar
so de fragmentação do trabalho, deve- em constante expansão, buscando no-

266
Interdisciplinaridade A

vos mercados, pesquisando novas Currículo Integrado aproxima-se C


tecnologias, rompendo tradições às das concepções de Bernstein
vezes milenares e criando relações de
(1996), denominadas pelo autor de D
Classificação (quanto maior o iso-
trabalho que tendem à mudança. Como lamento entre o conhecimento or-
derivado desse movimento, ou seja, de ganizado em Disciplinas, maior será E
acordo com as novas formas pelas o grau de classificação). Para o au-
tor, as questões mais relevantes no F
quais o capital organiza a produção e campo do currículo são as que abor-
o trabalho assalariado, tal organização, dam as relações estruturais entre os G
assim como o avanço científico e diferentes tipos de conhecimento
tecnológico seriam indicativos do que o constituem. Em Berstein, o
Currículo Integrado tem como ca- H
desejo da junção de áreas de conheci-
racterística o fato de que as áreas
mento, ou seja, um sentido de de conhecimento não estão isola- I
interdisciplinaridade que, a partir da das, possibilitando, por exemplo,
que o mesmo conceito possa ser
soma das partes, vai gerar novas for-
trabalhado por áreas diversas, fa-
N
mas de organização curriculares e de
vorecendo aspectos da interdiscipli-
enfoque metodológico. naridade (Pereira, 2002). O
Pensar a interdisciplinaridade
Quanto à relação interdisciplinari-
no currículo voltado à formação téc- P
nica em saúde significa ter como dade e prática docente, partir da premis-
premissa que as práticas curriculares sa de que o docente é educado no con- Q
são marcadas tanto pela flito e na contradição, não é uma tábula
historicidade da construção do pró- rasa nem tampouco chegará a condições R
prio conhecimento, como também ideais de promover práticas
pelo pensamento hegemônico no interdisciplinares que superem a conten- S
mundo do trabalho, em que as exi- to lacunas da sua formação profissional,
gências de uma formação humanista da sua história de leitura e de vida. T
e crítica entram em constante cho- Frigotto (1995), chama a atenção
que com as exigências pragmáticas para o fato de que se no campo da pro- U
e objetivas do conhecimento. dução científica os desafios ao traba-
Ainda sobre interdisciplinaridade lho interdisciplinar são grandes, no
V
e currículo, lembremos que: cotidiano do trabalho pedagógico per-
A
cebemos que estamos diante de limi-
Visando ao menor isolamento pos- tes cruciais. Para o autor, a formação
sível entre as disciplinas, a idéia do A
fragmentária, positivista e metafísica do

267
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

docente, assim como a forma de orga- ção do saber escolar. Ou seja, trocar o
nização do trabalho na escola e na vida currículo por disciplina por outra for-
social em geral constituem barreiras, ma de organização curricular, por si só
por vezes intransponíveis, para o tra- nada significa para um avanço do tra-
balho interdisciplinar. balho interdisciplinar. Mais importan-
A ação docente pautada na sua te é a escola estar atenta aos limites e
concepção de ciência, política, cultura possibilidades do conhecimento esco-
e postura ética são os esteios centrais lar no processo de mudança de
sob os quais podem ser delineadas, paradigma das ciências e da transfor-
com êxito ou não, as práticas mação do mundo do trabalho, perce-
interdisciplinares. A ber neste processo para qual projeto
interdisciplinaridade é entendida por de sociedade irá contribuir, e abrir es-
Fazenda (1999) como ação, enfatiza paço a toda ação visando à
que depende de uma atitude, de uma interdisciplinaridade - que não confun-
mudança de postura em relação ao da integração e articulação com justa-
conhecimento, uma substituição da posição e que não caia em um
concepção fragmentária para a unida- relativismo que nada institui – valori-
de do ser humano. Diante disso, é bas- zando os pequenos avanços do traba-
tante evidente a ênfase dada ao sujei- lho escolar neste processo que requer
to, para que se promova uma transfor- para sua validação ser sempre consi-
mação no conhecimento, o que coloca derado inacabado.
a formação docente e as condições
objetivas do trabalho docente como
eixos centrais da promoção do traba- Para saber mais:
lho interdisciplinar na escola.
Por último, há que se compreen- BERNSTEIN, B. Class, codes and
der que a interdisciplinaridade na edu- contr o l. Londr e s : Routledg e and
cação do trabalhador não pode ser Kehgan Paul, 1980.
construída a partir de premissas que BRASIL/MEC. Parâmetros Curriculares
percam de vista a totalidade das ques- Nacionais. Brasília: MEC/SENEB,
tões que ela tem a enfrentar. Como 1999.
exemplo, é no mínimo ingênuo pensar FAZENDA, I (Or g.). Práticas
que abolir o currículo por disciplina é Interdisci-plinares na Escola. 6. ed. São
a solução para acabar com a fragmenta- Paulo: Cortez, 1999.

268
Itinerários Formativos A

FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade PEREIRA, I. B. A Formação Profissional C


como necessidade e como problema nas em Serviço no Cenário do Sistema Único de
ciências sociais. In: JANTSCH, A.; Saúde. Tese de Doutoramento. Programa D
BIANCHETTI, L. (Orgs.). Interdisci- de Estudos Pós-Graduados em
plinaridade para além da filosofia do sujeito. Educação: História, Política e Sociedade.
Petrópolis, Vozes, 1995. PUC/SP, 2002.
E
JAPIASSÚ, H. Interdisciplinaridade e PIAGET, J. Problémes Géneraux de la
Patologia do Saber. Rio de Janeiro: Imago, Recherche Interdisciplinaire et
F
1976. Mécanismes Communs. In: PIAGET, J.
Épistémologie des Sciences de l’Homme. Paris: G
KAVESKI, F. C. G. Concepções acerca da
Gallimard, 1981.
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um
estudo de caso. In: II Congresso Mundial POMBO, O. Problemas e Perspectivas H
de Transdisciplinaridade, Vitória/Vila da Interdisciplinaridade. Revista de
Velha, 2005. Educação, IV, 3-11, 1994. I
MARX, K. O capital - crítica da economia
política. 17a ed. Rio de Janeiro: Civilização N
Brasileira. 1999.
 O
ITINERÁRIOS FORMATIVOS
P

Marise Nogueira Ramos Q

R
A expressão ‘itinerário formativo’, em coerência com a organização e as
no nível macro, refere-se à estrutura de normas dos sistemas de ensino e de S
formação escolar de cada país, com di- formação profissional.
ferenças marcadas, nacionalmente, a O princípio da continuidade é T
partir da história do sistema escolar, do próprio do currículo. Ele significa que
modo como se organizaram os sistemas a estruturação dos sistemas de ensino U
de formação profissional ou do modo e a programação das atividades educa-
de acesso à profissão. As bases cionais devem garantir o progressivo V
organizativas dos currículos, se contí- avanço do aluno no seu processo de
nuas ou modulares, definirão, em parte, aprendizagem e escolarização, evitan- A
os tipos de ‘itinerários formativos’ que do-se interrupções e repetições de con-
podem ser seguidos pelos estudantes, teúdos e de experiências. Significa tam- A

269
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

bém permitir que não haja divisões que seqüenciação, a complementaridade


impeçam o educando de dar continui- dos conteúdos e a dinâmica dos pro-
dade a seus estudos, a cada etapa cessos de assimilação e aprendizagem,
vencida, não comprometendo, assim, considerando, principalmente, os his-
as perspectivas de uma formação per- tóricos heterogêneos dos alunos, suas
manente e ao longo da vida. Nesse sen- experiências formativas anteriores e
tido, a organização curricular, quer seja planos futuros para sua trajetória de
em séries, quer em ciclos ou módulos, estudos (Machado, 2005).
pode e deve preservar esse princípio. A principal discussão que se trava
Módulos são definidos como uni- sobre esta questão está ligada ao con-
dades temáticas autônomas, com ca- fronto entre os sistemas de formação
ráter de terminalidade, sancionáveis mais generalistas e os sistemas profis-
por exames e certificados, podendo ser sionais que formam qualificações a se-
acumuladas para fins de obtenção de rem imediatamente utilizadas em cer-
diplomas. Podem ser previstas ou aten- tos postos de trabalho (Crivellari,
der demandas emergentes, abranger 2005). A relação linear e imediata en-
uma única ou mais disciplinas, contar tre a educação, especialmente a profis-
ou não com pré-requisitos. Tal organi- sional, e as necessidades do mercado
zação curricular permite ao aluno im- de trabalho, foi o principal fundamen-
primir ritmo e direção ao seu percurso to da economia da educação dos anos
formativo, dando-lhe alguma indepen- 70, protagonizada pela Teoria do Ca-
dência e flexibilidade para retardar, ace- pital Humano e das medidas designa-
lerar, interromper e retomar seus es- das como man power approach. Críticas
tudos; atender a demandas contundentes e fundamentadas a essa
individuais e a novas exigências pro- abordagem foram realizadas tanto pelo
fissionais, facilitando a integração da- seu aspecto ideológico quanto por sua
queles com defasagens e dificuldades insuficiência empírica. Não obstante,
de aprendizagem. Entretanto, o grau sob a crise contemporânea do empre-
de liberdade dos alunos para influir go e das qualificações, essa abordagem
nesse processo é um assunto para ne- muitas vezes é resgatada para justificar
gociações. Sobretudo, é preciso garan- políticas de for mação e de
tir que a estruturação do currículo siga requalificação mais afinadas com as
critérios psicopedagógicos e que leve configurações ocupacionais do merca-
em conta os graus de complexidade, a do de trabalho.

270
Itinerários Formativos A

A discussão sobre os ‘itinerários trabalhador, não se pode cair, por ou- C


formativos’ não escapa a essa aborda- tro lado, no pressuposto de regular a
gem. A lógica de organização dos iti- oferta formativa de acordo com os D
nerários formativos tem dois funda- postos de trabalho existentes, ao esti-
mentos. O primeiro é a previsão de que lo do citado modelo de man power
E
as qualificações obtidas por meio de approach. Isto voltaria a fragmentar e a
F
cursos, etapas ou módulos correspon- limitar a formação dos trabalhadores
dentes a ocupações de uma família aos requisitos econômicos, técnicos e
G
ocupacional ou área profissional pos- procedimentais da oferta de postos de
sam redundar numa titulação de nível trabalho, retirando-se, mais uma vez, H
superior a essas qualificações. O segun- o trabalhador de sua condição de
do considera que tais cursos, etapas ou sujeito para objetivá-lo a fator des- I
módulos, nos seus respectivos níveis, cartável da produção.
correspondam a ocupações existentes A maneira de enfrentar essa ques- N
no mercado de trabalho. Com isto, as tão relaciona-se com a concepção de
experiências formativas dos trabalha- qualificação que embasa os parâmetros O
dores teriam um potencial de apro- definidores dos títulos profissionais e
veitamento, tanto para o trabalhador dos ‘itinerários formativos’. Esses P
quanto para o empregador, em duas parâmetros podem ser restritos às ocu-
direções: a) verticalmente, porque um pações e características dos postos de Q
conjunto de qualificações de níveis trabalho, ou configurados com base
menores pode levar a titulações de numa compreensão da qualificação R
níveis superiores; b) horizontalmen- como unidade integrada de conheci-
te, porque a cada qualificação mentos científicos e técnicos que pos- S
corresponderia uma ocupação reco- sibilitem ao trabalhador atuar em pro-
nhecida nas classificações cessos produtivos complexos, com T
ocupacionais. suas variações tecnológicas e
Se a perspectiva de organização de procedimentais, associados a uma for- U
‘itinerários formativos’ ascendentes, mação política que permita uma inser-
em que as formações intermediárias ção profissional não subordinada e ali-
V
sejam tanto possibilitadas pela oferta enada na divisão social do trabalho.
A
de cursos quanto validadas por um sis- A realidade concreta dos sujeitos
tema de certificação, constituiu-se adultos trabalhadores que retornam a
A
numa oportunidade e num direito do processos formativos sejam de educa-

271
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ção básica, sejam de qualificação pro- nerários formativos’, referentes às eta-


fissional, não pode ser ignorada. De pas que podem ser seguidas por um
fato, esse retorno se dá, na maioria das indivíduo no seu processo de forma-
vezes, de forma fragmentada e sazo- ção profissional. Do ponto de vista
nal, intercalando-se períodos formais das políticas de emprego, a identifica-
de estudo com outros somente de tra- ção das possíveis trajetórias ocupa-
balho, períodos de emprego com os de cionais e a construção dos ‘itinerários
desemprego. Essa realidade, que não formativos’, além de permitir melhor
pode ser avaliada sob princípios mo- correspondência entre os requisitos de-
rais, deve ser compreendida como um mandados nas atividades de trabalho e
produto da história de exclusão desses os perfis construídos no processo
sujeitos. É preciso, então, que as polí- educativo, podem possibilitar aos tra-
ticas de educação dos trabalhadores balhadores adequar, de acordo com
não ignorem essa realidade e, ao con- suas possibilidades e condições, o ‘iti-
trário, proporcionem meios para que nerário formativo’ ao itinerário profis-
nenhuma dessas experiências seja sional (Moraes & Neto, 2005).
perdida. Se os ‘itinerários formativos’ A coerência e organicidade inter-
são estruturados de modo articula- na perseguidas no desenvolvimento da
do, com possibilidades de ingresso, educação integral dos trabalhadores
conclusão e retor no a etapas mediante ‘itinerários formativos’ se
formativas, mediante critérios de re- opõem à justaposição de cursos espe-
conhecimento e validação de sabe- cíficos já existentes, transformados em
res, os adultos devem ser incentiva- módulos de grandes cursos e à oferta
dos a construir sua formação enfren- fragmentada e pontual de cursos bási-
tando as adversidades das condições cos de qualificação profissional de cur-
concretas pelas quais produz sua ta duração. Ao contrário, um plano de
existência. Para isto, entretanto, são formação continuada deve-se organi-
necessárias políticas públicas que in- zar em etapas seqüenciais, progressi-
tegrem formação, certificação, orien- vas e flexíveis, estruturadas de forma a
tação e inserção profissional. abarcar vários níveis de conhecimen-
É nesse contexto que é preciso tos – dos básicos e técnicos gerais de
considerar a importância da organiza- uma área até os profissionais mais es-
ção de um projeto de educação inte- pecíficos, incluindo-se aí os saberes
gral de trabalhadores com base em ‘iti- mais abrangentes, novos conhecimen-

272
Itinerários Formativos A

tos e conceitos relevantes na atualida- construídos em tantas outras experi- C


de, que permitam visão ampla do pro- ências diferentes da escolar. Reconhe-
cesso produtivo e dos avanços e co- cendo-se essa contradição como pró- D
nhecimentos culturais, científicos e pria de uma realidade de exclusão, ad-
tecnológicos e que possibilitem a in- miti-la só faz sentido mediante o com-
E
serção/intervenção na sociedade con- promisso ético-político com a traves-
F
temporânea (Moraes & Neto, 2005). sia em direção a um tipo de sociedade
Não se pode ignorar a existência não excludente. Ignorar essa necessi-
G
de uma contradição de fundo na con- dade levaria a ignorar os próprios adul-
figuração de ‘itinerários formativos’. A tos trabalhadores como sujeitos de H
organização da educação profissional conhecimento ou a reificar as alterna-
em ‘itinerários formativos’ flexíveis tivas até agora existentes (cursos su- I
seria plenamente adequada para uma pletivos e cursos básicos de qualifica-
população que tenha a educação bási- ção profissional de curta duração) N
ca universalizada. Nesses termos, a como as únicas possíveis. Seria, então,
educação de adultos e a educação pro- cristalizar a exclusão. O
fissional se fundiriam como política de Por este compromisso, é preciso,
educação continuada. Nem a primeira ainda, da perspectiva político-pedagó- P
seria uma modalidade da educação bá- gica, atentar para que a condição autô-
sica voltada para aqueles que a ela não noma conferida aos cursos, etapas e Q
tiveram acesso em idade apropriada, módulos não acabe fragmentando o
como é o caso do Brasil, nem a segun- conhecimento em compartimentos R
da poderia ter uma finalidade compen- que simplificam a formação profissio-
satória em relação à falta da educação nal, transformando o conhecimento S
básica. em mero domínio de um conjunto de
Não obstante, é exatamente em técnicas isoladas, de caráter unicamen- T
uma sociedade em que isto não acon- te instrumental, ao invés de se consti-
tece, que mais se evidencia a necessi- tuir em estratégia de organização da edu- U
dade de a educação profissional, inte- cação integral dos trabalhadores de for-
grada à educação básica, ser organiza- ma continuamente ascendente, na cons-
V
da em ‘itinerários formativos’ para se trução e validação de seus saberes.
A
viabilizar a educação de adultos traba- Para seguir flexivelmente um ‘iti-
lhadores por reconhecimento e supe- nerário formativo’, o trabalhador pode
A
ração dialética de seus saberes cursar diferentes cursos, etapas ou

273
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

módulos que culminem numa qualifi- mática social, educacional e existencial


cação ou habilitação profissional em que abordamos neste momento.
diferentes instituições ou programas.
Neste caso, há que se garantir a
organicidade da ação dessas próprias Para saber mais:
instituições e programas numa políti-
ca integrada, bem como um sistema de CRIVELLARI, H. Itinerário Formativo
certificação democrático, cons-truído Profissional. São Paulo: IIEP, 2005
(Mimeo.)
sob bases permanentes de participa-
ção e níveis crescentes de IIEP. Currículo em Bases Modulares. São
Paulo: IIEP, 2005 (Mimeo.)
autonomia de decisão dos trabalhado-
res. Afinal, poder-se-ia perguntar: que IIEP. Itinerário Formativo: expectativas dos
alunos e realidade. São Paulo: IIEP, s.d.
responsabilidade teria cada uma das
(Mimeo.)
instituições com a totalidade da forma-
MACHADO, L. Cur rículo em Bases
ção dos trabalhadores e com o
Contínuas. São Paulo: IIEP, 2005
diagnóstico, a avaliação e o reconheci- (Mimeo.)
mento de seus conhecimentos? Essas
MORAES, C. & NETO, S. A Certificação
são questões que não podem ser de Conhecimentos e Saberes como Parte do
ignoradas; ao contrário, devem ser ana- Direito à Educação e Formação. São Paulo,
lisadas e respondidas à luz da proble- 2005 (Mimeo.)

274
A

C
N D
NEOLIBERALISMO E SAÚDE E

F
Maria Lúcia Frizon Rizzotto
G

A emergência ou o reapareci- perspectiva, como “Os fundamentos


H
mento de dado pressuposto teórico- da liberdade” de Frederich Hayek, em
I
político, que carrega consigo um con- 1960, e “Capitalismo e liberdade” de
junto de diretrizes, conformadas por Milton Friedman, publicado em 1962.
N
uma visão de mundo, de homem e de Contudo, foi a crise global, inicia-
sociedade, deve ser contextualizado da com a crise do petróleo, em 1973, e O
para uma melhor compreensão dos a onda inflacionária que se seguiu na
determinantes que contribuíram para o década de 1980, levando ao declínio do P
seu surgimento, bem como da vitalida- Estado de Bem-Estar Social, associa-
de que tais determinantes comportam. do ao colapso do socialismo real, sim- Q
O pensamento liberal do final do bolizado pela queda do muro de Berlim
século XX, comumente denominado em 1989, que permitiu uma ampla R
de ‘neoliberalismo’, reapareceu logo ofensiva do pensamento liberal, tradu-
após a Segunda Guerra Mundial, em zido no projeto neoliberal deste final S
contraposição às políticas keynesianas de século.
e sociais-democratas, que estavam sen- O neoliberalismo consiste em T
do implementadas nos países centrais. uma reação teórica e política contra o
Inicialmente surgiu de forma tímida Estado intervencionista, opondo-se U
por meio da divulgação de textos como fortemente a qualquer forma de pla-
“O caminho da servidão” de Frederich nejamento da economia. Condena toda V
Hayek, de 1944, e “A sociedade aberta ação do Estado que limite os mecanis-
e seus inimigos”, de Popper, em 1945. mos de mercado, denunciando-as A
Na década de 1960 outras publicações como ameaças à liberdade, não somen-
se seguiram, dando sustentação a essa te econômica, mas também política. A

275
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para os teóricos neoliberais, tan- Para os defensores do ‘neolibe-


to os vinculados à escola econômica ralismo’, da mesma forma que a partir
austríaca que emergiu no final do sé- da década de 1940 determinados acon-
culo XIX e teve como principal discí- tecimentos na economia global tinham
pulo, no século XX, Frederich Hayek, alterado o contexto em que os Estados
como os vinculados à escola de Chi- nacionais atuavam, exigindo uma ampli-
cago, cujo representante mais ação das suas atribuições; a partir da dé-
emblemático é Milton Friedman, a ra- cada de 1970, os parâ-metros de uma
zão é incapaz de reconstruir a ordem economia mundial globalizada estariam
social, portanto, o uso de qualquer requerendo um novo Estado, mais efici-
forma de planejamento, na economia, ente e ágil, que se concentrasse nas tare-
seria conseqüência de um equívoco te- fas básicas, necessárias à manutenção da
órico, devendo-se permitir que a or- ordem na sociedade. A mudança experi-
dem espontânea do mercado se ma- mentada a partir da década de 1940 teria
nifeste livremente. ocorrido, nos países centrais, para
fazer frente às demandas do Estado
Como para esses teóricos a con- de Bem-Estar Social e, nos países peri-
duta humana é determinada pelo féricos, para criar as condições estru-
conhecimento prático, por normas so- turais e induzir o desenvolvimento eco-
ciais advindas dos costumes e das cren- nômico, necessário à expansão do
ças e pelo sistema de comunicação do capitalismo mundial.
mercado, a melhor sociedade seria O pensamento neoliberal foi singu-
aquela que funcionasse a partir das larizado no denominado receituário do
escolhas espontâneas dos indivíduos, Consenso de Washington, expressão que
na qual a existência de normas deve emergiu a partir do encontro realizado
estar limitada à segurança pública e à em novembro de 1989, na cidade de
manutenção da propriedade privada. Washington, quando se reuniram funcio-
Portanto, a essência do pensamento nários do governo americano, especia-
neoliberal baseia-se na defesa do listas em assuntos latino-americanos,
livre curso do mercado, colocando-o representantes dos organismos interna-
como mediador fundamental das re- cionais como o Fundo Monetário
lações societárias e no Estado míni- Internacional (FMI), o Banco Mundial,
mo como alternativa e pressuposto o Banco Interamericano de Desenvolvi-
para a democracia. mento (BID) e alguns economistas

276
Neoliberalismo e Saúde A

liberais, com o objetivo de realizar uma necessidade de modernização do país, C


avaliação das reformas econômicas em- que se iniciou no governo de Fernando
preendidas, nas décadas anteriores, nos Collor de Mello, em 1989, e se D
países da América Latina. aprofundou nas décadas de 1990 e
Neste encontro foram definidas as 2000. No primeiro caso, com ênfase
E
linhas de política macroeconômica, que nas reformas econômicas, na
F
iriam inspirar as reformas, denominadas privatização das empresas estatais e nas
neoliberais, as quais foram políticas sociais focalizadas; no segun-
G
implementadas em grande número de do, aprofundando esses aspectos e
países periféricos, como o Brasil, nas modificando substancialmente a estru- H
décadas de 1980 e 1990. As linhas bási- tura do Estado por meio de ampla re-
cas formuladas, no referido encontro, forma, consubstanciada em documen- I
consistiam na defesa da to denominado Plano Diretor de Re-
desregulamentação dos mercados, forma do Aparelho do Estado (1995). N
na abertura comercial e financeira, no No referido documento foram defini-
equilíbrio das contas públicas, na das as diretrizes da reforma e a nova O
privatização das empresas estatais, na configuração que o Estado brasileiro
flexibilização das formas de vínculo en- deveria assumir a partir de então. P
tre capital e trabalho e no estabelecimen- O movimento neoliberal defendia
to de uma taxa cambial realista. a tese de que a crise das décadas de Q
Esse pensamento se constituiu em 1970 e 1980 decorria do mau funcio-
referência para governos que assumiram namento do Estado, evidenciado R
o poder em países centrais, como na falta de efetividade, no cresci-
Margareth Tatcher, na Inglaterra, em mento distorcido, nos altos custos S
1979, e Ronald Reagan, nos EUA, em operacionais, no excesso de endivi-
1980, locais onde este pensamento se damento público e na incapacidade de T
originou e de onde foi difundido. Con- se adequar ao processo de globa-
tudo, o que se observou foi uma assimi- lização em curso, que teria reduzido a U
lação diferenciada dos pressupostos autonomia e a capacidade dos Estados
neoliberais, com radicalidade dos enun- Nacionais para gerirem suas próprias
V
ciados nos países periféricos, sem a mes- políticas econômicas e sociais. Portan-
A
ma correspondência nos países centrais. to, seria necessário que as sociedades
No Brasil, o ‘neoliberalismo’ foi aceitassem uma redefinição das respon-
A
introduzido associado ao discurso da sabilidades do Estado, selecionando

277
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

estrategicamente as ações que o Esta- que impediam a adoção de uma admi-


do iria desenvolver e as que deixaria nistração ágil, com maior grau de au-
de executar. Esperava-se com isso re- tonomia, capaz de enfrentar os desafi-
duzir as atribuições impostas ao Esta- os do Estado moderno.
do e fazer com que os cidadãos se en- No que tange às políticas sociais,
volvessem mais na solução dos pro- para o pensamento neoliberal, estas
blemas da comunidade. não são compreendidas como direitos,
O novo Estado, denominado ‘so- mas como forma de assistir aos mais
cial liberal’, teria como principal fun- necessitados ou como ato de
ção a regulação, a representatividade filantropia, daí que a ação do Estado
política, a justiça e a solidariedade, de- deve ser focalizada nos pobres, e a so-
vendo-se afastar do campo da produ- ciedade, na figura das organizações
ção e se concentrar na função regula- não-governamentais e no voluntariado,
dora e na oferta de alguns serviços deve ser estimulada a assumir respon-
básicos, não realizados pelo mercado, sabilidades pela resolução dos seus
tais como os serviços de educação, saú- problemas, reduzindo a carga imposta
de, saneamento, entre outros. A ao Estado ao longo do tempo.
implementação de reformas adminis- Nesse aspecto, a ofensiva às polí-
trativas e gerenciais per mitiria a ticas sociais foi linear, atingindo tanto
focalização da ação estatal no atendi- os países que conseguiram construir
mento das necessidades sociais bási- um Estado de Bem-Estar-Social como
cas, reduzindo a área de atuação do os países periféricos que só consegui-
Estado por meio de três mecanismos: ram realizar um esboço de proteção
a privatização (venda de empresas pú- social aos seus cidadãos. Contudo, a
blicas), a publicização (transferência da forma de assimilação e os resultados
gestão de serviços e atividades para o foram distintos em um e noutro con-
setor público não-estatal) e a texto, com maior desmonte dos siste-
terceirização (compra de serviços de mas de proteção social nos países peri-
terceiros). féricos, tanto pela fragilidade desses sis-
Para proceder às mudanças apre- temas como pela pouca capacidade de
goadas no âmbito do projeto resistência dos segmentos afetados.
neoliberal, deveriam ser removidos os No campo da saúde, no Brasil, a
constrangimentos jurídico-legais, assimilação dos pressupostos neoli-
notadamente de ordem constitucional, berais, a partir do início da década de

278
Neoliberalismo e Saúde A

1990, momento em que também se BRASIL. Presidência da República. C


iniciava o processo de implementação Câmara da Refor ma do Estado.
do Sistema Único de Saúde (SUS), re-
Ministério da Administração Federal e D
Reforma do Estado. Plano Diretor da
sultou num quadro que pode ser ca- Refor ma do Aparelho do Estado.
racterizado da seguinte forma: ampli- Brasília, 1995.
E
ação do acesso aos serviços de aten- FIORI, J. L. Ajuste, transição e
governabilidade: o enigma brasileiro. In:
F
ção básica; mercantilização dos servi-
ços de nível secundário e terciário (cer- TAVARES, M. C. & FIORI, J. L. (Orgs.)
(Des)Ajuste Global e Moder nização G
ca de 70% da oferta estão na iniciativa
Conservadora. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
privada); grande precarização dos vín- 1993. H
culos de trabalho no setor público;
MORAES, R. Neoliberalismo: o que é e para
terceirização de grande parte dos ser- onde leva. Cadernos em Tempo. Texto de I
viços assistenciais e terapêuticos; con- apoio da edição n. 300/301. s.d.
formação de um sistema de saúde com- NETO, J. P. Crise global contemporânea N
plementar, regulamentado; e e barbárie. In: LOUREIRO, I. M. &
institucionalização da participação, por VIGEVANI, T. (Orgs.) Liberalismo e O
Socialismo: velhos e novos paradigmas. São
meio dos conselhos e conferências de
Paulo: Editora da Unesp, 1995.
saúde nas três esferas de governo. (Seminários e debates) P
PEREIRA. L. C. B. A Reforma do Estado
nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Q
Para saber mais:
Brasília, 1997. (Cadernos MARE da
ANDERSON, P. Balanço do
Reforma do Estado, Cad 1.) R
neoliberalismo. In: SADER, E. & PEREIRA. L. C. B. Reforma
GENTILI, P. (Orgs.) Pós-neoliberalismo: as Administrativa do Sistema de Saúde. In: S
políticas sociais e o Estado democrático. Rio Colóquio Técnico prévio à XXV
de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Reunião do Conselho Diretivo do T
CLAD. Buenos Aires, out. 1995.
BATISTA Jr., P. N. O Consenso de
Washington: a visão neoliberal dos SADER, E. & GENTILI, P. (Orgs.) Pós- U
problemas latino-americanos. São Paulo: neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
Paz e Ter ra. 1994. (Cader nos da democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Dívida Externa, n. 6) 1995. V
BRASIL/MINISTÉRIO DA SAÚDE. SOARES, L. T. R Ajuste Neoliberal e
Plano de Ação do Ministério da Saúde Desajuste Social na América Latina. Rio de
A
1995-1999. Brasília, 1995. Janeiro: UFRJ, 1999.
A

279
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

280
A

C
O D
OCUPAÇÃO E

F
Naira Lisboa Franzoi
G
Dentre as diversas acepções do atacando aquilo que lhe pode causar
H
termo, este verbete trata da atividade ameaça e, para isso, diferenciando o
laboral desempenhada por um indiví- que seria uma política para a assistên-
I
duo, não se detendo na distinção entre cia de uma política para o trabalho.
‘ocupação’ e profissão (para essa dis- É possível identificar, nos meados
N
cussão ver: profissão). Pode-se enten- do século XIV, uma espantosa conver-
der como ‘ocupação’ o lugar de um gência de iniciativas dos poderes cen- O
indivíduo na divisão social e técnica do trais, ou de poderes locais, em diferen-
trabalho. Tal divisão classifica e tes países da Europa, para regulamen- P
hierarquiza os indivíduos, o que envol- tar e limitar a mobilidade profissional
ve aspectos subjetivos e identitários. e geográfica dos trabalhadores braçais. Q
Nesse sentido, se está falando de cate- De maneira geral, todas essas regula-
gorias ocupacionais. Os indivíduos se mentações tinham o mesmo tom do R
reconhecem e são reconhecidos por Estatuto dos Trabalhadores de 1349,
grupos que desempenham as mesmas promulgado por Eduardo III, rei da S
atividades e organizam-se a partir des- Inglaterra, que obrigava a todos a per-
se reconhecimento. Prévia a esta manecerem fixos em seu local de tra- T
categorização é aquela que classifica os balho e a contentar-se com sua condi-
indivíduos em dois grandes agregados: ção e com a retribuição dela advinda. U
os que têm ou não algum lugar nessa Pouco tempo depois, Ricardo II acres-
hierarquia fundada no trabalho. centa a tal decreto a obrigação, para os V
Historicamente, as tentativas de empregados que deixam seu posto, de
estabelecer tal demarcação estão for- portar um atestado emitido pela auto- A
temente associadas à necessidade de ridade local, sem o qual seriam deti-
uma sociedade assegurar sua coesão, dos. Ao mesmo tempo, decreta que
A

281
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

quem tivesse trabalho agrícola não ociosa dos que procuravam trabalho e
poderia escolher outro trabalho braçal de traçar uma linha divisória entre os
(Castel, 1998). da alçada da ‘polícia dos pobres’ e das
Tal convergência de regulamenta- políticas de trabalho. A vagabundagem,
ções pode ser explicada pelo contexto na sociedade pré-industrial, embora ex-
da época. A sociedade européia vive um presse uma questão social, oculta-a por-
abalo das instituições feudais, dado pelo que a desloca para a margem extrema da
desequilíbrio das estruturas agrárias até sociedade, até fazer dela quase uma ques-
então vigentes, expulsando para as cida- tão de polícia (Castel, 1998).
des aqueles que não podem mais viver Contemporaneamente, as demar-
da terra. No entanto, as cidades não têm cações e mensurações das populações
mais a capacidade de acolhimento de um ocupadas e não ocupadas têm objeti-
período anterior, de maior expansão do vos correlatos. O Estado de Bem-Es-
artesanato e do comércio. O rigoroso tar Social baseou-se claramente em tal
sistema de hierarquias, em que estão ins- demarcação para estabelecer suas po-
critas as corporações de ofício, não tem líticas de seguridade social, diferencia-
lugar para essa nova figura representada das para cada uma dessas populações
por uma mão-de-obra flutuante que – afetas, assim, à esfera do trabalho ou
ameaça a coesão social. da assistência.
Surge, pois, um novo perfil do ‘va- Não por acaso, a preocupação
gabundo’ (de ‘vaguear’, ‘peram-bular’), com a classificação e construção de
que perambula em busca de um lugar parâmetros internacionais para as es-
para si: sem trabalho e sem reconheci- tatísticas de emprego surgem no âm-
mento, porque sem perten-cimento bito da Organização Internacional do
comunitário. Mais tarde, em 1701, na Trabalho (OIT), na década de 1920,
França, decreta-se que são “vagabun- objetivando estabelecer medidas para
dos aqueles que não têm profissão, o desemprego. No pós-guerra, em
nem ofício, nem domicílio certo, nem 1947, o tema ressurge com ênfase no
lugar para subsistir”, ao que o Decreto “desemprego enquanto principal pro-
Real de 1764 acrescenta à cláusula “to- blema social para o emprego, como
dos aqueles que não têm profissão nem objetivo central do planejamento eco-
ofício” o quantificativo “há mais de seis nômico” (ILO apud Hoffmann &
meses” (Castel, 1998, p. 121). Tratava- Brandão, 1996, p. 5). As orientações
se de distinguir os adeptos de uma vida da OIT vão dar origem às mensurações

282
Ocupação A

da população ocupada no Brasil. No posteriormente, os conceitos de C


entanto, o Instituto Brasileiro de Geo- marginalidade e de mercado infor-
grafia e Estatística (IBGE) e o Depar-
mal de trabalho, uma vez que nes- D
tas últimas categorias ficarão inclu-
tamento Intersindical de Economia e ídos não apenas os desempregados,
os subempregados e os emprega-
E
Estatística (Dieese) em parceria com a
Fundação Sistema Estadual de Dados dos instáveis, mas, igualmente, to-
dos aqueles cujas ocupações, por F
(Seade) do governo de São Paulo utili-
mais regulares e estáveis, não te-
zam diferentes conceitos de ‘ocupação’ nham sido ainda regulamentadas. G
para embasar suas metodologias, reper- (Santos, 1979, p. 75-76)
cutindo em formas diferenciadas de
A Classificação Brasileira de Ocu- H
definir a relação dos indivíduos com o
pações (CBO), que descreve as ‘ocu-
trabalho, debate este que mereceria um
pações’ brasileiras sem função de re- I
tratamento mais longo.
gulamentação, embora editada pela
primeira vez em 1982, obedecia a uma
N
É a partir desse contexto que po-
estrutura elaborada em 1977, como
dem ser entendidas as classificações O
resultado de um convênio firmado
ocupacionais no Brasil. No país, a
entre o país e a Organização das Na-
regulamentação profissional/ocupa- P
ções Unidas (ONU), por intermédio
cional está intimamente ligada ao con-
ceito de “cidadania regulada” utili-
da OIT, tendo como base a Classifica- Q
zado por Santos (1979). Segundo o ção Internacional Uniforme de Ocu-
autor, a regulação ocupacional foi a es- pações (CIUO) de 1968. Atualizada em R
tratégia selecionada pela elite dirigente 2002, nomeia e codifica os títulos das
brasileira, pós 1930, como condição pré- ‘ocupações’ do mercado de trabalho S
via para implementar políticas sociais. brasileiro e seus conteúdos. Com isto
Isso restringia a abrangência dos direi- pode ser utilizada tanto para registros T
tos, dividindo os trabalhadores entre tra- administrativos (como a Relação Anu-
balhadores ‘formais’ – aqueles cuja ‘ocu- al de Informações Sociais – Rais; Ca- U
pação’ era regulamentada e, portanto, dastro Geral de Empregados e Desem-
pregados – Caged; Seguro desempre- V
sujeitos desses direitos – e os ‘informais’,
excluídos de qualquer direito: go; Censo demográfico; Pesquisa na-
cional por amostra de domicílios – A
A associação entre cidadania e ocu-
pação proporcionará as condições Pnad – e pesquisas de emprego e de-
institucionais, para que se inflem, semprego) quanto para subsidiar os
A

283
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

serviços de recolocação de trabalhado- Para saber mais:


res como o realizado no Sistema Naci-
onal de Empregos (Sine) e a elabora- BRASIL/MTE. Classificação Brasileira de
ção de currículos de formação profis- Ocupações. Brasília, 2002. Disponível em:
<http://www.mtecbo.gov.br>. Acesso
sional de escolas, de empresas e de sin-
em: 20 ago. 2006.
dicatos. (Brasil/MTE, 2002).
CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão
‘Ocupação’, para a CBO,
Social: uma crônica do salário. Petrópolis:
é um conceito sintético não natu- Vozes, 1998.
ral, artificialmente construído pe-
HOFFMANN, M. B. P. & BRANDÃO,
los analistas ocupacionais. O que
S. M. C. Medição de emprego:
existe no mundo concreto são as
recomendações da OIT e práticas
atividades exercidas pelo cidadão
nacionais. Cadernos do Cesit, 22, nov.,
em um emprego ou outro tipo de
1996.
relação de trabalho (autônomo, por
exemplo). Ocupação é a agregação SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça.
de empregos ou situações de tra- Rio de Janeiro: Campus, 1979.
balho similares quanto às ativida-
des realizadas. O título ocupacio-
nal, em uma classificação, surge da
agregação de situações similares de
emprego e/ou trabalho. (Brasil/
MTE, 2002, p. 1)

OMNILATERALIDADE

Justino de Sousa Junior

O conceito de omnilateralidade pela reificação, pelas relações burgue-


é de grande importância para a refle- sas estranhadas, enfim.
xão em torno do problema da educa- Esse conceito não foi precisa-
ção em Marx. Ele se refere a uma for- mente definido por Marx, todavia,
mação humana oposta à formação em sua obra há suficientes indica-
unilateral provocada pelo trabalho ali- ções para que seja compreendido
enado, pela divisão social do trabalho, como uma ruptura ampla e radical

284
Omnilateralidade A

com o homem limitado da socieda- tal o cunado lo poseemos directa- C


de capitalista. mente, cuando lo comemos, lo be-
A unilateralidade burguesa se re-
bemos, lo vestimos, habitamos en D
él, etc., en una palabra, cuando lo
vela de diversas formas: de início a usamos (Marx e Engels, 1987, p.
partir da própria separação em classes 620). E
sociais antagônicas, base segundo a
A esse dado fundamental da F
qual se desenvolvem modos diferen-
unilateralidade humana corresponde
tes de apropriação e explicação do real;
o fato de que a dinâmica da vida soci- G
revela-se ainda por meio do desenvol-
al se submete a imperativos não de-
vimento dos indivíduos em direções H
terminados pelos indivíduos associa-
específicas; pela especialização da for-
dos segundo um planejamento que
mação; pelo quase exclusivo desenvol-
observe acima de tudo as necessida- I
vimento no plano intelectual ou no
des humanas mesmas. A dinâmica da
plano manual; pela internalização de
vida social é determinada pelo movi- N
valores burgueses relacionados à
mento de valorização do capital, que
competitividade, ao individualismo,
submete os indivíduos, em geral, a O
egoísmo, etc. Mas, acima de tudo, a
agentes da sua ‘vontade’.
unilateralidade burguesa se revela nas P
mais diversas formas de limitação de- Embora não haja em Marx uma
correntes do submetimento do conjun- definição precisa do conceito de Q
to da sociedade à dinâmica do omnilateralidade, é verdade que o au-
sociometabolismo do capital. Nos tor a ela se refere sempre como a rup- R
Manuscritos de 1844, quando analisa tura com o homem limitado da socie-
a propriedade privada como aquilo em dade capitalista. Essa ruptura deve ser S
que se condensa a criação do trabalho ampla e radical, isto é, deve atingir uma
humano alienado, e sua contribuição gama muito variada de aspectos da for- T
decisiva para a definição de uma base mação do ser social, portanto, com
social em que se impõe a expressões nos campos da moral, da U
unilateralidade humana, Marx afirma: ética, do fazer prático, da criação inte-
lectual, artística, da afetividade, da sen-
V
La propiedadad privada nos há sibilidade, da emoção, etc. Essa ruptu-
vuelto tan estúpidos y unilaterales, A
ra não implica, todavia, a compreen-
que un objeto solo es nuestro cu-
são de uma formação de indivíduos
ando lo tenemos y, por tanto, cuan- A
do existe para nosotros como capi- geniais, mas, antes, de homens que se

285
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

afirmam historicamente, que se reco- grifos do autor). Aqui Marx discute a


nhecem mutuamente em sua liberda- riqueza humana identificando-a à capa-
de e submetem as relações sociais a um cidade de desenvolver demandas huma-
controle coletivo, que superam a sepa- nas, isto é, a riqueza aqui diz respeito à
ração entre trabalho manual e intelec- carência de manifestações humanas
tual e, especialmente, superam a mes- não-fetichizadas: um homem é tanto
quinhez, o individualismo e os precon- mais rico quanto mais demanda mani-
ceitos da vida social burguesa. festações humanas e “la más grande de
O homem omnilateral não se de- las riquezas, (es) el otro hombre” (Marx
fine pelo que sabe, domina, gosta, co- e Engels, 1987, p. 624, grifo do autor).
nhece, muito menos pelo que possui, O homem rico se define pela ca-
mas pela sua ampla abertura e dispo- rência de um conjunto variado de ma-
nibilidade para saber, dominar, gostar, nifestações humanas que o
conhecer coisas, pessoas, enfim, reali- plenifiquem, nas quais se reconheça e
dades – as mais diversas. O homem pelas quais se constitui. Necessidades
omnilateral é aquele que se define não não determinadas pelo caráter de mer-
propriamente pela riqueza do que o cadoria, segundo a dialética de Marx,
preenche, mas pela riqueza do que lhe só poderiam nascer e serem amplamen-
falta e se torna absolutamente indis- te satisfeitas em relações não-burgue-
pensável e imprescindível para o seu sas, em relações que ultrapassem o sis-
ser: a realidade exterior, natural e soci- tema de relações do capital.
al criada pelo trabalho humano como Segundo o exposto, a omnilatera-
manifestação humana livre. lidade tem como condição a supera-
Nos Manuscritos de 1844, espe- ção do capital ou, de acordo com os
cialmente, aparecem elementos funda- Manuscritos, da alienação e da propri-
mentais para a compreensão do con- edade privada:
ceito de omnilateralidade. É com base
neles que se pode afirmar que o ho- La superación de la propiedad pri-
vada representa, por tanto, la plena
mem omnilateral equivale ao homem
emancipación de todos los sentidos
rico que Marx desenvolve no citado y cualidades del hombre. (...) [Por sua
texto: “El hombre rico es al mismo vez], el hombre sólo deja de perder-
tiempo, el hombre necesitado de uma se en su objeto cuando éste se con-
vierte para él en objeto humano o
totalidad de manifestaciones de vida en hombre objetivo (Marx e Engels,
humanas” (Marx e Engels, 1987, p. 624, 1987, p. 621, grifo do autor).

286
Omnilateralidade A

É na sua ação sobre o mundo que totalidad; en que no tratará de se- C


o homem se afirma como tal, no en- guir siendo lo que ya es o ha sido,
tanto, ele precisa atuar como um todo
sino que se incorporará al movimi- D
ento absoluto del devenir? (Marx,
sobre o real, com todas as suas facul- 1985, p. 345-346).
dades humanas, todo seu potencial e
E
Nesse trecho evidencia-se a con-
não como ser fragmentado, pois só
tradição entre a sociabilidade estranha- F
assim ele poderá se encontrar
da, com suas restrições e
objetivado como ser total diante de si
unilateralidades de um lado, e a uni- G
mesmo.
versalidade, a totalidade do desenvol-
Nos Grundrisse, mais uma vez, H
vimento humano e o devenir, de ou-
Marx apresenta elementos para a com-
tro. Marx associa o que se pode cha-
preensão da omnilateralidade como ri-
mar de omnilateralidade, que se opõe I
queza do desenvolvimento humano
à unilateralidade burguesa, ao movi-
amplo e livre, nos seguintes termos:
mento do devenir, das novas relações N
emancipadas. Aqui aparece mais uma
Ahora bien, qué es, in fact, la rique-
vez com clareza a idéia da universali- O
za despojada de su estrecha forma
burguesa, sino la universalidad, im- dade, termo com o qual o conceito de
pulsionada por el intercambio uni- omnilateralidade estabelece uma rela-
P
versal de las necesidades, las capa- ção de correspondência.
cidades, los goces, las fuerzas pro- Q
ductivas, etc., de los individuos?
Qué es sino el desarrollo total del R
dominio del hombre sobre las fuer-
zas naturales, tanto las de la natura- Omnilateralidade & politecnia
leza misma como las de la propia S
naturaleza humana; la absoluta po- O conceito de omnilateralidade
tenciación [de su capacidad] por guarda relação com outro conceito T
obra del esfuerzo de sus dotes cre-
marxiano importante para o problema
adoras, sin más premisa que el de-
da formação humana que é o de U
sarrollo histórico precedente, que
lleva a convertir en fin en si esta politecnia. O elemento fundamental de
totalidad del desarrollo, es decir, el distinção entre os dois conceitos é jus- V
desarrollo de todas las fuerzas hu- tamente o fato de que a politecnia re-
manas en cuanto tales, sin medirlo
presenta uma proposta de formação A
por uma pauta preestabelecida, y en
que el hombre no se reproducirá aplicável no âmbito das relações bur-
como algo unilateral, sino como una guesas, articulada ao próprio momen- A

287
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

to do trabalho abstrato, ao passo que a ciados, significariam uma formação


omnilateralidade apenas se faz possí- mais elevada dos filhos dos trabalha-
vel no conjunto de novas relações, no dores em relação às demais classes so-
‘reino da liberdade’. Como lembra ciais. Assim, a experiência do trabalho
Nogueira (1990, p. 129): (em atividades diversas), associada aos
estudos dos fundamentos teóricos do
Para Marx, a educação politécnica trabalho e à formação escolar, e ainda
não é utopia da criação de um indi- aos exercícios físicos e militares, repre-
víduo ideal, desenvolvido em todas
sentariam um salto na formação dos
as suas dimensões. Mas é antes, di-
aleticamente e ao mesmo tempo, trabalhadores, pois imporiam fortes
uma virtualidade posta pelo desen- elementos contrários à empobrecedora
volvimento da produção capitalista formação decorrente das condições de
e um dos fatores em jogo na luta
trabalho capitalistas.
política dos trabalhadores contra a
divisão capitalista do trabalho... Os dois conceitos, no entanto,
apesar de apresentarem esse traço dis-
A noção de politecnia, antes da tintivo, se complementam. Na verda-
formulação marxiana, surge nas expe- de, não há uma dissociação do tipo: a
riências teóricas e práticas dos socia- politecnia se realiza no âmbito das re-
listas utópicos. Por sua vez, a noção lações burguesas ao passo que a
de politecnia enquanto formação omnilateralidade apenas se realiza com
polivalente – ou pluriprofissional, a superação destas relações. Ambas são
modo como Manacorda (1990) e realizações da práxis revolucionária que
Nosella (2006) nomeiam a noção de em graus diferentes se manifestam em
politecnia defendida pelo capital – em diferentes estágios históricos da vida
grande medida, é uma realidade impos- social. A omnilateralidade, por exem-
ta pelo próprio desenvolvimento da plo, é uma busca da práxis revolucio-
grande indústria. Em Marx, todavia, a nária no presente, desde sempre, em-
proposta de politecnia adquire novos bora sua realização plena apenas seja
relevos. Para esse autor, ela era, acima possível com a superação das determi-
de tudo, uma forma de se confrontar nações históricas da sociedade do ca-
com a formação unilateral e os pital. Elementos de ruptura para com
malefícios da divisão do trabalho capi- as unilateralidades burguesas são exer-
talista. Ela representava a reunião de citados cotidianamente por meio de
diversos aspectos que, uma vez asso- relações diferenciadas com a natureza,

288
Omnilateralidade A

com a propriedade, com o outro, com cadas pelo cotidiano da vida social ali- C
as crianças, com as artes, com o saber, enada e estranhada. É nesse cotidiano
por intermédio de relações éticas de que atua a formação politécnica, po- D
novo tipo, etc. Porém, de maneira ple- tencialmente capaz de elevar as classes
na, como ruptura ampla e radical, a trabalhadoras a um patamar superior
E
omnilateralidade só se realiza como de compreensão de sua própria condi-
F
práxis social, coletiva e livre, pois de- ção social e histórica. Aí atua a práxis
pende da universalização das relações revolucionária, principal ação político-
G
não-alienadas entre os indivíduos, no pedagógica da formação do proletari-
intercâmbio com a natureza e no in- ado como sujeito social transformador. H
tercâmbio social em geral. Nesse processo são gestados elemen-
Já a politecnia é claramente uma tos que deverão ser consolidados - e I
proposta que toma como ponto de que só podem ser consolidados com a
partida a contribuição dos socialis- superação da alienação e do N
tas utópicos e a observação do pró- estranhamento – no interior das no-
prio movimento material da produ- vas relações não-estranhadas. Somen- O
ção capitalista, que avança com a te a partir dessas relações é possível a
grande indústria. formação omnilateral. P
A politecnia é proposta para se Portanto, politecnia e omnilaterali-
realizar no presente da opressão a que dade se complementam no processo Q
estão submetidos os trabalhadores desde a formação do sujeito social re-
com o propósito de a eles responder. volucionário até a consolidação do Ser R
A politecnia não almeja alcançar a for- social emancipado. Se a omnilate-
mação plena do homem livre, mas a ralidade como formação plena é im- S
formação técnica e política, prática e possível – senão de forma germinal -
teórica dos trabalhadores no sentido no seio das relações estranhadas da T
de elevá-los na busca da sua realidade do trabalho abstrato, é preci-
autotransformação em classe-para-si. samente neste momento que a U
Portanto, a politecnia não tem como politecnia aparece como proposta de
condição para sua realização a ruptura educação de grande importância, até
V
ou superação das determinações his- que se consolidem as condições histó-
A
tóricas da sociedade do capital. ricas de possibilidade de realização ple-
Entre politecnia e omnilatera- na da omnilateralidade. A politecnia é
A
lidade há complexas mediações colo- a formação dos trabalhadores no âm-

289
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

bito da sociedade capitalista que, uni- gusto, el tacto, el pensar, el intuir, el


da aos outros elementos da proposta percibir, el querer, el actuar, el amor,
en una palabra, todos los órganos
marxiana de educação, deve encontrar de su individualidad, como órganos
o caminho entre a existência alienada que son inmediatamente en su for-
e a emancipação humana em que se ma en cuanto órganos cumunes,
constrói o homem omnilateral. representan, en su comportamien-
to objetivo o en su comportamien-
Manacorda (1991), dentro da sua to hacia el objeto, la apropiación de
rica contribuição para o estudo do pro- éste. La apropiación de la realidad
blema da educação em Marx, apresenta humana, su comportamiento hacia
uma possibilidade diferente de entendi- el objeto, es el ejercicio de la reali-
dad humana” (Marx e Engels, 1987,
mento do conceito de omnilateralidade.
p. 620, grifos do autor).
Para o autor, por exemplo, não aparece
claramente estabelecida a distinção apon- Quanto ao exposto, vejamos o que
tada aqui entre omnilateralidade e afirma Manacorda (1991, p. 82) a res-
politecnia ou educação tecnológica, peito de um comentário elogioso de
como ele prefere. Marx, presente n’O Capital, em rela-
A própria consideração das con- ção a John Bellers, por ter este autor
dições históricas para a realização da defendido desde os fins do século
omnilateralidade não aparece clara- XVII a superação da educação e da
mente estabelecida. Nos Manuscritos divisão do trabalho da época por for-
de 1844, essas condições históricas marem indivíduos limitados:
aparecem nos seguintes termos:
Eis aí um homem educado com
Así también la superación positiva doutrinas não ociosas, com ocupa-
de la propiedad privada, es decir, la ções não estúpidas, capaz de livrar-
apropriación sensible de la esencia se da estreita esfera de um trabalho
y la vida humanas, del hombre ob- dividido. Trata-se do tipo de ho-
mem onilateral que Marx propõe,
jetivo, de las obras humanas para e
superior ao homem existente...
por el hombre, no debe concebirse
simplemente en el sentido del po- Ora, como se observa claramen-
seer o del tener. El hombre se apro-
te, o destaque de Manacorda está na
pia su esencia omnilateral de un
modo omnilateral, es decir, como ‘educação em doutrinas não ociosas’,
un hombre total. Cada uno de sus nas ‘ocupações não estúpidas’ e na ‘es-
comportamientos humanos ante el treita esfera do trabalho dividido’, por-
mundo, la vista, el ódio, el olfato, el tanto, em dimensões dos campos do

290
Omnilateralidade A

‘fazer’ e do ‘saber’ que não necessaria- gostos, dos prazeres, das aptidões, das C
mente rompem com a sociabilidade habilidades, dos valores etc., que serão
estranhada. O indivíduo alienado/es- propriedades da formação humana em D
tranhado pode alcançar tudo isso a que geral, desenvolvidas socialmente, por-
Manacorda se refere mesmo sem atin- tanto, não correspondem à genialidade
E
gir o ponto mais elevado da condição de um indivíduo desenvolvido num
F
do homem livre que se reconhece no determinado sentido especial ou ainda
seu trabalho e na ampla coletividade que seja em sentidos diversos.
G
livre. Na consideração de Manacorda o
Os comentários elogiosos de conceito de omnilateralidade represen- H
Marx a indivíduos dotados de talento ta uma formação mais ampla, mais
criativo especial muitas vezes são to- avançada, mas não antagônica ao me- I
mados como referência de modelos de tabolismo do capital, por isto, talvez,
formação, por exemplo, quando Marx não haja necessidade da consideração N
enaltece o relojoeiro Watt, o barbeiro das premissas materiais da construção
Arkwright e o artífice de ourivesaria do homem omnilateral - a criação de O
Fulton por terem descoberto, respec- novas bases sociais que permitam o li-
tivamente, a máquina a vapor, o tear e vre desenvolvimento das P
o navio a vapor (Marx, 1989, p. 559). potencialidades humanas.
Esse reconhecimento da capacidade Q
inventiva acima da média ou ao talen-
to especial está longe de caracterizar R
uma formação omnilateral.
Para saber mais
Esse tipo de capacidade criativa S
MANACORDA, M. A. Marx e a
individual sempre existiu na história da Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez,
humanidade. Em todas as épocas hou- 1991. T
ve homens e mulheres cuja competên- MARX, K. O Capital - Para a Crítica da
cia inventiva ultrapassava a média de Economia Política. 13 a ed. Rio de U
seu tempo, mas não é a isto que se re- Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, 6 vols.
fere o conceito de omnilateralidade de ________. Grundrisse 1857-1858. In: V
MARX e ENGELS. Obras fundamentales.
Marx, ele remete ao campo vasto, com- México - DF: Fondo de Cultura A
plexo e variado das dimensões huma- económica, 1985, vols. 6-7.
nas: ética, afetiva, moral, estética, sen- MARX e ENGELS. Escritos de
juventud. In: MARX e ENGELS Obras
A
sorial, intelectual, prática; no plano dos

291
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

fundamentales:. 1ª. Reimpresión. México relação trabalho e educação. Revista


- DF: Fondo de Cultura Econômica, Brasileira de Educação, Rio de Janeiro,
1987, vol. 1. Anped, v.12, n.34, jan.-abr., 2007.
NOGUEIRA, M. A. Educação, saber, SOARES, R. Entrevista com Mário A.
produção em Marx e Engels. São Paulo: Manacorda. Revista Novos Rumos. Ano
Cortez, 1990.
19, nº. 41, 2004.
NOSELLA, P. Trabalho e perspectivas de
SOUSA Jr., J. de. Sociabilidade e
formação dos trabalhadores: para além da
formação politécnica. I Encontro Educação em Marx. Dissertação de
Internacional de Trabalho e Perspectivas Mestrado, Faculdade de Educação da
de For mação dos Trabalhadores. UFC, Fortaleza, 1994.
Fortaleza: Universidade Federal do ________. Politecnia e onilateralidade
Ceará, 07 a 09 de setembro de 2006. em Marx. Trabalho & Educação. Belo
SAVIANI, D. Trabalho e Educação – Horizonte: NETE, jan. jul., n. 5, p.
Fundamentos histórico-ontológicos da 98-114, 1999.

292
A

C
P D
PARTICIPAÇÃO SOCIAL E

F
Eduardo Navarro Stotz
G
Conceito genérico usado na So- nifica democratização ou participação
ciologia com o sentido de: a) ampla dos cidadãos nos processos H
integração, para indicar a natureza e o decisórios em uma dada sociedade.
grau da incorporação do indivíduo ao Representa a consolidação, no pensa- I
grupo, e b) norma ou valor pelo qual mento social, de um longo processo
se avaliam tipos de organização de na- histórico. Para os atenienses do século N
tureza social, econômica, política, etc. V a.c. a participação na pólis (cidade)
(Rios, 1987). era uma exigência da democracia (go- O
O primeiro é o sentido amplo do verno do povo, demos), independente-
termo e assinala a importância da ade- mente do saber de cada um dos cida- P
são dos indivíduos na organização da dãos sobre os assuntos de governo. Os
sociedade. Do ponto de vista socioló- homens livres que se abstinham de Q
gico, participação é um conceito participar eram idiótes (idiotas), pois
relacional e polissêmico, pois remete preferiam recolher-se à vida privada. R
tanto à coesão social como à mudança Uma participação apática também era
social. A participação implica compor- incompatível com o ideal de comuni- S
tamentos e atitudes passivos e ativos, dade cidadã (Finley, 1988). Não por
estimulados ou não. Na medida em que acaso o filósofo Aristóteles afirmou ser T
a ação mobiliza o sujeito do ponto de o homem um animal político – zoom
vista emocional, intuitivo e racional, a politkon; esta concepção, apesar de ex- U
participação pode ser entendida como cluir a história, declara a
um princípio diretor do conhecimen- indissociabilidade de indivíduo, natu-
V
to, variável segundo os tipos de socie- reza e sociedade, e recusa, portanto, a
A
dade em cada época histórica. idéia do indivíduo no estado de natu-
No segundo sentido, mais estrito reza, este ser abstrato, livre e racional
A
e de caráter político, participação sig- pressuposto pela teoria do contrato

293
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

social na época das revoluções burgue- rados. Como adverte Goldmann


sas. O ideal democrático incorpora- (1986), se todo fato social é histórico e
do na cultura política burguesa foi, du- vice-versa, não há fatos sociais sem as
rante séculos, limitado aos homens de correspondentes doutrinas ou teorias
escolarização mais elevada e renda por meio das quais se tornam consci-
alta. Voto qualificado e entes. A primeira parte da frase pode
associativismo restrito caracteriza- ser entendida como uma crítica ao so-
ram a democracia liberal até que os cialismo no contexto da ‘guerra fria’
movimentos operários impuseram, (competição tecnológica e equilíbrio
em decorrência de prolongada luta, baseado no poder nuclear) entre EUA
o regime de sufrágio universal e a li- e URSS, países líderes dos dois siste-
berdade de organização e expressão mas, capitalista e socialista, em que se
característica dos regimes democrá- dividiu o mundo entre 1945 e 1989.
ticos vigentes a partir do século XX. Contudo, ao se examinar a segunda
Participação tem, porém, um parte da frase, conclui-se que a crítica
sentido especial, formulado por José é extensiva àqueles países, situados no
Arthur Rios nos seguintes termos: bloco capitalista, nos quais a burgue-
sia nacional deteve um poder econô-
Lema e tópico central em pro- mico e político tão concentrado que a
gramas e doutrinas reformistas democracia formal mal conseguia ocul-
generalizadas a partir dos anos
60, quando se pensou em con-
tar um governo ditatorial oligárquico
trapor à massificação, à centra- em meio à sua situação generalizada de
lização burocrática e aos mono- desigualdade e pobreza.
pólios de poder o princípio de- Nesse último contexto, a partici-
mocrático segundo o qual todos
pação insere-se na proposta do gover-
os que são atingidos por medi-
das sociais e políticas devem no dos Estados Unidos da América de
participar do processo decisório, ajuda econômica e social para a Amé-
qualquer que seja o modelo po- rica Latina, efetuada entre os anos 1961
lítico ou econômico adotado e 1970, na chamada Aliança para o Pro-
(Rios, 1987, p. 869).
gresso. Como aponta Victor Vincent
Essa definição deixa patente que Valla, o programa reformista previa
em matéria de ciência social todos os formas de participação voltadas para
conceitos são alvos de interpretação à incluir populações no processo de in-
luz dos contextos nos quais foram ge- dustrialização e urbanização de países

294
Participação Social A

capitalistas periféricos e dependentes, habitação, transporte, etc.)”. Tais ações C


de modo a ampliar o mercado consu- expressam, simultaneamente, concep-
midor, aumentar a coesão social e ata- ções particulares “da realidade social D
lhar, preventivamente, soluções revo- brasileira e propostas específicas para
lucionárias como a tomada do poder enfrentar os problemas da pobreza e
E
pelos trabalhadores em Cuba, no ano exploração das classes trabalhadoras no
F
de 1959, e a instauração do socialismo Brasil” (Valla e Stotz, 1989, p. 6).
em 1961 (Valla, 1986). Durante esse Percebe-se, portanto, como o con-
G
período são cunhadas e encaminhadas ceito de participação, inclusive em sua
diversas modalidades de participação, acepção social, é solidário da problemá- H
como ‘modernização’, ‘integração de tica do poder, sob diferentes perspecti-
grupos marginalizados’, ‘mutirão’ e ‘de- vas políticas, mas sempre envolvendo I
senvolvimento comunitário’. Durante uma ampliação ou restrição das necessi-
a ditadura militar no Brasil (1964-1984), dades individuais e coletivas dos que vi- N
foi criada pelo Exército a estratégia das vem às custas de seu próprio trabalho.
Ações Cívico-Sociais, de atendimento No sistema capitalista, o mono- O
às carências das populações ‘margina- pólio dos meios de produção estabe-
lizadas’ do desenvolvimento econômi- lece uma distribuição primária da rique- P
co permanente até nossos dias. Nos za produzida que reproduz as condi-
anos 1980, emerge a participação po- ções de desigualdade, inclusive entre os Q
pular, distinta das anteriores por não próprios trabalhadores. A
estar mais vinculada ao processo de redistribuição da renda e a atenuação R
desenvolvimento capitalista e sim à da desigualdade ocorrem apenas com
formulação e implementação de polí- a intervenção do Estado, diretamente S
ticas públicas afetas às classes traba- como agente econômico ou indireta-
lhadoras (Valla e Stotz, 1989; Valla, mente mediante impostos e taxas, tal T
1993). como aconteceu na Europa no final da
Para esses autores, definir partici- II Guerra Mundial sob o chamado U
pação social implica entender as múl- Estado de Bem-Estar Social. Desde o
tiplas ações que diferentes forças soci- final da década de 1970, porém, em
V
ais desenvolvem com o objetivo de “in- decorrência da recessão econômica
A
fluenciar a formação, execução, fisca- mundial e da ascensão eleitoral de go-
lização e avaliação de políticas públi- vernos conservadores com o argumen-
A
cas na área social (saúde, educação, to de que o Estado de Bem-Estar, ao

295
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

atender as demandas sociais, deprimia A propósito da participação soci-


a capacidade de investimento e, con- al na saúde deve ser ressaltado que o
seqüentemente minava a base do sis- texto da Constituição de 1988 é bas-
tema capitalista (Offe, 1984), esta situ- tante limitado, pois ao se referir às di-
ação praticamente foi revertida em retrizes de organização do Sistema
benefício dos capitalistas. O sucesso Único de Saúde (SUS), menciona ape-
deveu-se, dentre outras medidas deno- nas ‘participação da comunidade’ que,
minadas neoliberais, ao primado no- na História do Brasil, faz parte de um
vamente concedido às forças de mer- ideário de participação limitada. O
cado, à desestatização de setores eco- enfrentamento dessa limitação do tex-
nômicos, à descentralização da políti- to constitucional evidencia-se na Lei
ca pública para subníveis nacionais e à nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990,
redução do gasto social. que “dispõe sobre a participação da
O caso brasileiro parecia estar na comunidade na gestão do Sistema
contramão dessas tendências nos anos Único de Saúde - SUS e sobre as trans-
1980-90, pois a Constituição de 1988 ferências intergovernamentais de re-
incorporou em seu texto demandas de cursos financeiros na área da saúde”.
cunho universalista em matéria de pro- Ao atribuir aos conselhos de saúde a
teção social, a exemplo do direito à função de atuar na formulação de es-
saúde. A convergência entre recessão tratégias e no controle da execução da
econômica e democratização política, política de saúde, o texto legal retoma
marcada pela onda de greves operárias a perspectiva ideológica da 8ª Confe-
entre 1978 e 1980, e pela participação rência (Brasil, 1990). Esse processo é,
em massa da população nas ruas entre na verdade, a culminação das lutas que
1982 e 1984, inviabilizou a adesão ao caracterizaram o período da
neoliberalismo por parte do primeiro redemocratização política num amplo
governo civil após 20 anos de ditadura leque de experiências e reflexões de
militar. Mas os avanços na profissionais de saúde e lideranças po-
universalização ficaram bastante com- pulares, que nos anos 1976-1984 ca-
prometidos principalmente a partir de racterizam a vertente popular da luta
1998, quando o governo de Fernando pelo direito à saúde (Stotz, 2005).
Henrique Cardoso introduziu a esta- Uma avaliação inicial do proces-
bilização fiscal como princípio para so de institucionalização do controle
ordenar o gasto social. social do SUS com base nas conferên-

296
Participação Social A

cias de saúde e da criação e atuação dos blico como do privado, se dá à mar- C


conselhos de saúde, feita por Stotz gem das instâncias de controle social
(2006) aponta para as dificuldades das do SUS: é uma atribuição das comis- D
conferências de saúde se constituírem em sões intergestoras bipartites (secreta-
instâncias populares para avaliar a situa- rias municipais e estaduais de saúde) e
E
ção de saúde e propor as diretrizes para tripartites (secretarias municipais e es-
F
a formulação da política de saúde nos taduais e Ministério da Saúde).
três níveis de governo (municipal, esta- As limitações apontadas têm como
G
dual e federal) conforme os termos da pano de fundo uma conjuntura adversa
Lei no. 8.142 de 28 de dezembro de 1990. aos movimentos populares. Nos anos da H
Tais dificuldades devem-se principal- década de 1990, houve uma
mente ao processo de sua convocação a desmobilização relativa desses movimen- I
partir do Estado e do encaminhamento tos num contexto de fragmentação das
ascendente de suas deliberações sem lo- lutas e ‘demissão’ do Estado (Bourdieu, N
grar consensos para a ação em cada ní- 2001). Entretanto, foi nessa conjuntura
vel de organização (municipal, estadual, que aconteceu a criação de 90% dos con- O
federal). Quanto aos conselhos de saú- selhos de saúde no país, num processo
de, a maioria não conseguiu cumprir a de instituição do controle social a partir P
função de atuar na formulação de es- do Estado. Lembre-se, a propósito, que
tratégias e no controle da execução da a criação dos conselhos de saúde passou Q
política de saúde na instância corres- a ser uma condição legal para a
pondente. Essa tem sido essencialmen- municipalização dos serviços com a R
te uma função dos secretários munici- transferência de recursos por meio dos
pais e estaduais de saúde. O formato fundos públicos (Carvalho, 1995). S
das conferências contribui também As conferências de saúde e a estru-
para esse resultado. tura dos conselhos, apesar das dificulda- T
Por outro lado, em que pesem os des e limitações apontadas, constituem
interesses e tentativas de capacitação um campo político que expressa, nas cir- U
de conselheiros para a fiscalização das cunstâncias da conjuntura da saúde, uma
políticas, principalmente no que diz aliança entre profissionais de saúde e
V
respeito ao gasto em saúde, ainda se usuários em contraposição à ofensiva
A
trata de um tema fora do alcance dos neoliberal tal como referida na experi-
conselhos de saúde. Sabemos que a ência da Inglaterra por Desmond S.
A
regulação na saúde, tanto do setor pú- King (1988).

297
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: RIOS, J. A. Participação. In: SILVA, B.


(coord.). Dicionário de Ciências Sociais. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, p.
BOURDIEU, P. Contrafogos 2: por um
869-70, 1987.
movimento social europeu. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. 53 p. STOTZ, E. N. A educação popular nos
movimentos sociais da saúde: uma
BRASIL. Lei nº 8.142 de 28 de dezembro
análise da experiência nas décadas de
de 1990. Dispõe sobre a participação da
1970 e 1980. Trabalho, Educação e Saúde,
comunidade na gestão do Sistema Único
v.3, n1. p. 9-30, 2005. Disponível em
de Saúde – SUS e sobre as transferências
http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/ .
intergovernamentais de recursos
Acesso em: 04 fev. 2007.
financeiros na área da saúde e dá outras
providências. Disponível em: http:// ____________. Trajetórias, limites e
www.conselho.saude.gov.br/legislacao/ desafios do controle social do SUS. Saúde
index.htm. Acesso em: 04 dez. 2007. em Debate, 30 (73/74): p. 149-160, 2006.
CARVALHO, A. I. de. Conselhos de VALLA, V. V. Educação e favela: políticas
saúde no Brasil: participação cidadã e para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985.
controle social. Rio de Janeiro: Fase; Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro:
IBAM, p. 19-33. 1995. ABRASCO, 1986. 212 p.
FINLEY, M. I. Democracia antiga e ____________. Participação popular e
moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988, saúde: a questão da capacitação técnica
192 p. no Brasil. In: VALLA, V. V. e STOTZ
E. N. (Orgs.). Participação popular, educação
FREIRE, P. A educação na cidade. 3a ed.
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Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
Relume Dumará, p 55-86, 1993.
GOLDMANN, L. Ciências Humanas e
____________ e STOTZ, E. N.
Filosofia. O que é a Sociologia? 10ª ed. São
Participação popular e saúde. Série Saúde e
Paulo: DIFEL, 1986. 118 p.
Educação. Petrópolis: Centro de Defesa
KING, D. S. O Estado e as Estruturas de Direitos Humanos; Rio de Janeiro:
Sociais de Bem-Estar em Democracias Centro de Estudos e Pesquisas da
Industriais Avançadas. Novos Estudos, 22: Leopoldina. 1989, 39 p.
53-76, out. 1988.
OFFE, C. A ‘ingovernabilidade’: sobre
o renascimento das teorias
conservadoras da crise. In: OFFE C.
Problemas estruturais do estado capitalista.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p.
235-260. 1984.

298
Pedagogia das Competências A

C
PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS
D
Marise Nogueira Ramos
E

A noção de competências é de recursos dos atores em torno das mes- F


tal forma polissêmica que poderíamos mas situações, para compartilhar os
arrolar aqui um conjunto de defini- acontecimentos, para assumir os do- G
ções a ela conferida. Uma das defini- mínios de corresposabilidade”.
ções comumente usadas considera a Ao ser utilizada no âmbito do tra- H
‘competência’ como o conjunto de co- balho, essa noção torna-se plural –
nhecimentos, qualidades, capacidades ‘competências’ –, buscando designar os
I
e aptidões que habilitam o sujeito para conteúdos particulares de cada função
N
a discussão, a consulta, a decisão de em uma organização de trabalho. A
tudo o que concerne a um ofício, su- transferência desses conteúdos para a
O
pondo conhecimentos teóricos formação, orientada pelas competên-
fundamentados, acompanhados das cias que se pretende desenvolver nos
P
qualidades e da capacidade que per- educandos, dá origem ao que chama-
mitem executar as decisões sugeridas mos de ‘pedagogia das competências’, Q
(Tanguy & Ropé, 1997). Outras defi- isto é, uma pedagogia definida por seus
nições, propostas por Zarifian (1999, objetivos e validada pelas competênci- R
p. 18-19) em sua principal obra sobre as que produz.
o tema são: “ a competência é a con- A emergência da ‘pedagogia das S
quista de iniciativa e de responsabili- competências’ é acompanhada de um
dade do indivíduo sobre as situações fenômeno observado no mundo pro- T
profissionais com as quais ele se con- dutivo – a eliminação de postos de tra-
fronta”; “a competência é uma inteli- balho e redefinição dos conteúdos de U
gência prática das situações que se trabalho à luz do avanço tecnológico,
apóiam sobre os conhecimentos ad- promovendo um reordenamento so- V
quiridos e os transformam, com tan- cial das profissões. Este
to mais força quanto a diversidade das reordenamento levanta dúvidas sobre A
situações aumenta”; “competência é a capacidade de sobrevivência de pro-
a faculdade de mobilizar os fissões bem delimitadas, ao mesmo A

299
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tempo em que fica diminuída a expec- estágios, longos ou breves, de forma-


tativa da construção de uma biografia ção contínua, mas também em ativida-
profissional linear, do ponto de vista do des lúdicas, de interesse público fora da
conteúdo, e ascendente, do ponto de vis- profissão, atividades familiares etc.
ta da renda e da mobilidade social. Pode- As competências, a partir de pro-
se falar da crise do valor dos diplomas, cedimentos de avaliação e de validação,
os quais perdem importância para a qua- passam a ser consideradas como ele-
lificação real do trabalhador, promo- mentos estruturantes da organização
vida pelo encontro entre as competên- do trabalho que outrora era determi-
cias requeridas pelas empresas nada pela profissão. Enquanto o do-
e adquiridas pelo trabalhador, capazes mínio de uma profissão, uma vez ad-
de serem demonstradas na prática quirido, não pode ser questionado (no
(Paiva, 1997). máximo, pode ser desenvolvido), as
Enquanto o conceito de qualifi- competências são apresentadas como
cação se consolidou como um dos con- propriedades instáveis dentro e fora do
ceitos-chave para a classificação dos exercício do trabalho. Isso quer dizer
empregos, por sua multidi- que uma gestão fundada nas compe-
mensionalidade social e coletiva, tências encerra a idéia de que um assa-
apoiando-se especialmente, mas sem lariado deve se submeter a uma valida-
rigidez, na formação recebida inicial- ção permanente, dando constantemen-
mente, as competências aparecem te provas de sua adequação ao posto
destacando os atributos individuais do de trabalho e de seu direito a uma pro-
trabalhador. Segundo o discurso con- moção. Tal gestão pretende conciliar
temporâneo das empresas, o apelo às o tempo longo das durações de ativi-
competências requeridas pelo empre- dades dos assalariados com o tempo
go já não está ligado (ao menos for- curto das conjunturas do mercado, das
malmente) à formação inicial. Ou, em mudanças tecnológicas, tendo em vis-
outras palavras, as práticas cognitivas ta que qualquer ato de classificação
dos trabalhadores, necessárias e relati- pode ser revisado. Assim, a extensão
vamente desconhecidas, podem não ser das práticas de avaliação e de valida-
representadas pelas classificações pro- ção executadas por especialistas deten-
fissionais ou pelos certificados escola- tores de técnicas relativamente inde-
res. Essas competências podem ter sido pendentes da atividade avaliada efetua-
adquiridas em empregos anteriores, em se por referência à instituição escolar,

300
Pedagogia das Competências A

dela separando-se simultaneamente, de a essa produção, que caracteriza a ‘pe- C


uma maneira radical: com efeito, o di- dagogia das competências’. Essas com-
ploma é um título definitivo, mesmo petências devem ser definidas com re- D
que seu valor possa variar no merca- ferência às situações que os alunos de-
do, ao passo que a validação das aqui- verão ser capazes de compreender e
E
sições profissionais – as competências dominar. A ‘pedagogia das competên-
F
– é sempre incerta e temporária cias’ passa a exigir, então, tanto no en-
(Tanguy & Ropé, 1997). sino geral quanto no ensino
G
A abordagem profissional pelas profissionalizante, que as noções as-
competências pretende, então, liberar a sociadas (saber, saber-fazer, objetivos) H
classificação e a progressão dos indiví- sejam acompanhadas de uma
duos das classificações dos postos de explicitação das atividades (ou tarefas) I
trabalho, a partir da construção de um em que elas podem se materializar e
conjunto de instrumentos destinados a se fazer compreender, explicitação N
objetivar e a medir uma série de dados esta que revela a impossibilidade de
necessários à aplicação dessa lógica. dar uma definição a essas noções se- O
Com isso, a evolução das situações de paradamente das tarefas nas quais elas
trabalho e a definição dos empregos se materializam. P
ocorrem muito mais em função dos ar- A afirmação desse modelo no en-
ranjos individuais do que das classifica- sino técnico e profissionalizante é re- Q
ções ou da gestão dos postos de traba- sultado de um conjunto de fatores que
lho a que se referiam as qualificações. expressam o comprometimento dessa R
As potencialidades do pessoal são co- modalidade de ensino com o processo
locadas no centro da divisão do traba- de acumulação capitalista, que S
lho, tornando-se um instrumento indis- impõe a necessidade de justificar a vali-
pensável das políticas da empresa. dade de suas ações e de seus resultados. T
Esse deslocamento da qualifica- Além disso, espera-se que seus agen-
ção para as competências no plano do tes (professores, gestores, estudantes) U
trabalho produziu, no plano pedagó- não mantenham a mesma relação com
gico, outro deslocamento, a saber: do o saber que os professores de discipli-
V
ensino centrado em saberes disciplina- nas academicamente constituídas, de
A
res para um ensino definido pela pro- modo que a validade dos conhecimen-
dução de competências verificáveis em tos transmitidos seja aprovada por sua
A
situações e tarefas específicas e que visa aplicabilidade ao exercício de ativida-

301
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

des na produção de bens materiais ou mitir a correlação estreita entre a ofer-


de serviços. A ‘pedagogia das com- ta de formação e a distribuição das ati-
petências’ é caracterizada por uma vidades profissionais.
concepção eminentemente pragmá- Além de atender o propósito de
tica, capaz de gerir as incertezas e reordenar a relação entre escola e em-
levar em conta mudanças técnicas e prego, a ‘pedagogia das competênci-
de organização do trabalho às quais as’ visa também a institucionalizar no-
deve se ajustar. vas formas de educar os trabalhado-
Essa redefinição pedagógica so- res no contexto político-econômico
mente ganha sentido mediante o esta- neoliberal, entremeado a uma cultura
belecimento de uma correspondência chamada de pós-moderna. Por isto, a
entre escola e empresa. Para isso cons- ‘pedagogia das competências’ não se
troem-se os chamados referenciais, em limita à escola, mas visa a se instaurar
alguns países, a exemplo da França, nas diversas práticas sociais pelas
chamados de referenciais de diploma, quais as pessoas se educam. Nesse
para a escola, e de referenciais de em- contexto, a noção de competência
prego ou de atividades profissionais, vem compor o conjunto de novos sig-
para a empresa. No Brasil, esses nos e significados talhados na
referenciais se equivalem às diretrizes cultura expressiva do estágio de acu-
e aos referenciais curriculares nacionais mulação flexível do capital, desempe-
produzidos pelo Ministério da Educa- nhando um papel específico na
ção para a escola, enquanto no mundo representação dos processos de for-
do trabalho aplica-se a Classificação mação e de comportamento do tra-
Brasileira de Ocupações, produzida balhador na sociedade.
pelo Ministério do Trabalho. Tais Assim, o desenvolvimento de uma
referenciais, que tomam as competên- pedagogia centrada nessa noção pos-
cias como base, são, supostamente, as sui validade econômico-social e tam-
ferramentas de comunicação entre os bém cultural, posto que à educação se
agentes da instituição escolar e os re- confere a função de adequar psicolo-
presentantes dos meios profissionais. gicamente os trabalhadores aos novos
Constituem-se também como supor- padrões de produção. O novo senso
tes principais de avaliação tanto na for- comum, de caráter conservador e libe-
mação inicial e continuada quanto no ral, compreende que as relações de tra-
ensino técnico, com o intuito de per- balho atuais e os mecanismos de in-

302
Pedagogia das Competências A

clusão social se pautam pela compe- funcionamento desta última ocorre C


tência individual. muito mais por fragmentos do que por
A competência, inicialmente um uma seqüência de fatos previsíveis. D
aspecto de diferenciação individual, é O processo de construção do
tomada como fator econômico e se conhecimento pelo indivíduo, por sua
E
reverte em benefício do consenso so- vez, seria o próprio processo de a-
F
cial, envolvendo todos os trabalhado- daptação ao meio material e social. Nes-
res supostamente numa única classe: a ses termos, o conhecimento não resul-
G
capitalista; ao mesmo tempo, forma- taria de um esforço social e historicamen-
se um consenso em torno do capita- te determinado de compre-ensão da re- H
lismo como o único modo de produ- alidade para, então, transformá-la, mas
ção capaz de manter o equilíbrio e a sim, das percepções e concepções sub- I
justiça social. Em síntese, a questão da jetivas que os indivíduos extraem do seu
luta de classe é resolvida pelo desen- mundo experiencial. O conhecimento fi- N
volvimento e pelo aproveitamento ade- caria limitado aos modelos viáveis de
quado das competências individuais, de inteiração com o meio material e social, não O
modo que a possibilidade de inclusão tendo qualquer pretensão de ser reconhe-
social subordina-se à capacidade de cido como representação da realidade ob- P
adaptação natural às relações contem- jetiva ou como verdadeiro.
porâneas. A flexibilidade econômica A validade do conhecimento assim Q
vem acompanhada da psicologização compreendido é julgada, portanto, por
da questão social. sua viabilidade ou por sua utilidade. Pre- R
A noção de competência situa-se, domina, então, uma conotação utilitária
então, no plano de convergência entre e pragmática do conhecimento. Suas vi- S
a teoria integracionista da formação do abilidade e utilidade, muito além de se-
indivíduo e da teoria funcionalista da rem consideradas históricas, são tidas T
estrutura social. A primeira demons- como contingentes. Ou seja, não existe
tra que a competência torna-se uma qualquer critério de objetividade, de to- U
característica psicológico-subjetiva de talidade ou de universalidade para julgar
adaptação do trabalhador à vida con- se um conhecimento ou um modelo
V
temporânea. A segunda situa a com- representacional é válido, viável ou útil.
A
petência como fator de consenso ne- Com isto, o carácter histórico-
cessário à manutenção do equilíbrio da ontológico do conhecimento é substi-
A
estrutura social, na medida em que o tuído pelo caráter experiencial. Essa

303
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

concepção de conhecimento, às vezes buindo para a elaboração dos proje-


chamada de epistemologia experiencial tos subjetivos no sentido de torná-los
ou epistemologia socialmente maleáveis o suficiente para se trans-
construtivista é, na verdade, uma formarem no projeto possível em face
epistemologia ‘adaptativa’, visto que da instabilidade da vida contemporâ-
seu fundamento axiológico vincula-se nea. Atuar na elaboração dos proje-
a essa função. As categorias objetivo e tos possíveis é construir um novo
subjetivo se fundem indistintamente profissionalismo que implica prepa-
no processo de inteiração, superando rar os indivíduos para a mobilidade
proposições de certeza e de universa- permanente entre diferentes ocupa-
lidade em beneficio da particularidade, ções numa mesma empresa, en-
da indeterminação e da contingência tre diferentes empresas, para o
do conhecimento. Em outras palavras, subemprego, para o trabalho autôno-
o sentido e o valor de qualquer repre- mo ou para o não-trabalho Em
sentação do real dependeria do ponto outras palavras, a ‘pedagogia das
a partir do qual se vê o real – competências’ pretende preparar os
relativismo – e de quem o vê – indivíduos para a adaptação perma-
subjetivismo. Isto implica romper com nente ao meio social instável da con-
a epistemologia moderna em favor de temporaneidade.
uma epistemologia que compõe o uni-
verso ideológico pós-moderno. Para saber mais:
A ‘pedagogia das competências’
reconfigura, então, o papel da escola. CARDOSO, A. et al. Trajetórias
Se a escola moderna comprometeu- ocupacionais, desemprego e emprega-
se com a sustentação do núcleo bási- bilidade. Há algo de novo na agenda dos
co da socialização conferido pela fa- estudos sociais do trabalho no Brasil?
Contemporaneidade e Educação, Ano II, 1:
mília e com a construção de identida- 52-67, maio, 1997.
des individuais e sociais, contribuin-
CASALI, A. et al. Empregabilidade e
do, assim, para a identificação dos Educação: novos caminhos no mundo do
projetos subjetivos com um projeto trabalho. São Paulo: Educ, 1997.
de sociedade; na pós-modernidade a DELUIZ, N. Formação do Trabalhador:
escola é uma instituição mediadora da produtividade & cidadania. Rio de Janeiro:
constituição da alteridade e de identi- Shape Ed., 1995.
dades autônomas e flexíveis, contri-

304
Pedagogia de Problemas A

DESAULNIERS, J. B. R. Formação & RAMOS, M. N. Pedagogia das Competências: C


Trabalho & Competências. Rio Grande do autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez,
Sul: Edipucrs, 1998. 2001. D
HIRATA, H. Da polarização das TANGUY, L. & ROPÉ, F. (Orgs.)
qualificações ao modelo da competência. Saberes e Competências: o uso de tais noções E
In: FERRETI, C. et al. (Orgs.) Tecnologias, na escola e na empresa. São Paulo: Papirus,
1997.
Trabalho e Educação: um debate
multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994.
F
ZARIFFIAN, P. Objective Comptence.
PAIVA, V. Desmistificações das Paris: Liasion, 1999. G
profissões: quando as competências
reais moldam as formas de inserção no
mundo do trabalho. Contemporaneidade e H
Educação, Ano II, 1: 19-37, maio, 1997.
 I

PEDAGOGIA DE PROBLEMAS N

O
Suzana Lanna Burnier Coelho
P
A idéia da utilização pedagógica No Brasil, apesar do impacto das Q
de problemas sobre algum assunto a pedagogias progressistas em torno das
ser resolvido pelos aprendizes não é décadas de 1950 e 1960 pouco se efe- R
nova. Stanic e Kilpatrick (1989) recu- tivou em termos de desenvolvimento
peram coleções de problemas tanto de de propostas e práticas curriculares S
manuscritos egípcios de 1650 a.C. baseadas em resolução de problemas
quanto de documentos chineses de nos termos propostos por Dewey. T
1000 a.C. No âmbito da escola moder- A partir dos anos 90, entretanto, di-
na, na virada do século XIX para o versas instituições de ensino superior U
século XX, principalmente a partir das vêm resgatando tal proposta, além de
idéias de John Dewey, que tal propos- autores diversos nas áreas de didáticas V
ta começa a ser sistematizada e implan- específicas (de matemática, de quími-
tada. Entretanto, sofre certo ca, de física etc). Esse movimento dos A
arrefecimento sendo retomada a par- anos 90 iniciou-se no exterior, nas es-
tir dos anos 80 do século XX. colas médicas de McMaster, no Cana- A

305
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dá e de Maastricht, na Holanda, e ain- reflexivo, a ‘pedagogia de problemas’


da nas escolas de Albuquerque, de era, para Dewey, a essência do pensa-
Harvard e do Hawai, nos Estados Uni- mento humano, uma vez que a
dos, entre outras. Mais recentemente,
diversas escolas vêm resgatando essa instrução em matéria que não se
perspectiva pedagógica, tanto na edu- relacione com qualquer problema já
abordado na própria experiência do
cação básica quanto na profissional e estudante, ou que não seja apresen-
também na educação superior. tado para resolver um problema é
Atendo-nos apenas ao desenvol- pior do que inútil para propósitos
vimento moderno da metodologia, po- intelectuais. Na medida em que não
entra em qualquer processo de re-
demos constatar que, ao longo do sé- flexão, é desnecessária; mantém-se
culo XIX, vai-se formando uma pos- em mente como madeiras e escom-
tura crítica da concepção dita tradicio- bros sem préstimo, é uma barreira,
nal de educação, voltada para a forma- um obstáculo no caminho do pen-
samento efectivo quando o proble-
ção espiritual e moral do indivíduo.
ma surge (Dewey, 1910, p. 199)
Zanotto e De Rose (2003) identificam
quatro autores, representativos de Para Saviani, a problematização
abordagens diversas da proble- deve-se inserir na perspectiva do ma-
matização como atividade de ensino- terialismo histórico-dialético, com
aprendizagem: Dewey, Saviani, Paulo seus requisitos de radicalidade, rigor
Freire e Ausubel. É importante perce- e globalidade, dialeticamente articula-
ber que podem haver diferentes abor- dos entre si, enfatizando o ‘sujeito
dagens metodológicas de tal atividade, cognoscente’.
dependendo da filiação filosófico-ide- Já Paulo Freire, mesmo que ressal-
ológica do autor ou de quem aplica tais tando, como Dewey, a origem real dos
propostas. problemas propostos, destaca a neces-
O pragamatismo de Dewey (1859- sidade de um compromisso com a trans-
1952), grande filósofo americano da formação da realidade estudada, pela
educação, que nos anos 30 do século ação do sujeito. Daí sua ênfase recair
XX propugnava uma educação estrei- sobre o ‘sujeito práxico’, enfatizado pela
tamente ligada às demandas concretas abordagem sociocultural.
da vida social. Apesar de não utilizar A perspectiva cognitivista, por sua
com freqüência o termo ‘resolução de vez, enfatiza o ‘sujeito aprendente’: aque-
problemas’, e sim falar de pensamento le que aprende a aprender. Dentre

306
Pedagogia de Problemas A

outros autores que trabalham nessa § a aprendizagem deve ser integrada: C


perspectiva, Ausubel ressalta a impor- os conteúdos não devem ser apre-
tância do desenvolvimento de capa-
sentados isoladamente, mas disponi- D
bilizados para estudo na medida em
cidades mentais ou cogni-tivas e de-
fende que a ação de proble-matizar é
que se relacionam ao problema; E
passível de aprendizagem e que, nesse § a aprendizagem deverá ser progres-
siva: as habilidades requeridas vão- F
processo, desenvolvem-se níveis alta-
se transformando à medida que os
mente elaborados de atividade cognitiva. alunos amadurecem. G
É importante que se faça uma dis-
§ a aprendizagem será consistente: os
tinção entre uma ‘pedagogia de pro- H
objetivos da aprendizagem baseada
blemas’ e a adoção da ‘técnica de pro-
em problemas deverão ser operaci-
blemas’ no ensino. Uma ‘pedagogia de onalizados nas diversas facetas do I
problemas’ implicaria, stricto sensu, a currículo, como, por exemplo, na re-
construção de um currículo baseado lação entre ensino e avaliação. N
em problemas, ou seja, toda uma pro-
Já a ‘técnica de problemas’ é a apli-
posta de trajetória formativa centrada
cação mais ou menos esporádica de es- O
na resolução de problemas. Essa abor-
tratégias, recursos e procedimentos
dagem seria então o eixo norteador da
organizados em torno de uma deter-
P
organização dos tempos e espaços es-
minada situação-problema, indepen-
colares, das disciplinas e das relações Q
dente do tipo de organização curricular
sociais no processo educativo. Tal
em que tal técnica é aplicada. Entre
abordagem implica uma organização R
esses dois pólos, há, obviamente, um
multidisciplinar do currículo, confron-
gradiente de opções de intensidades e
tando os estudantes com situações- S
intencionalidades de aplicação da lógi-
problema como as que encontrarão na
‘vida real’. Engel (1991) aponta para a
ca de resolução de problemas como T
estratégia de ensino-aprendizagem.
necessidade de escolher conteúdos e
métodos adequados a tal proposta, o De qualquer forma, é necessária a U
que levaria à adoção, no currículo, dos definição, em primeiro lugar, do que se-
seguintes princípios de aprendizagem: jam ‘problemas’ pedagogicamente rele-
V
vantes, diferindo-os de meros ‘exercíci-
§ a aprendizagem será cumulativa: ne- A
nhum tópico será abordado de for- os’. Os exercícios seriam atividades de
aprendizagem para as quais o sujeito já
ma completa e definitiva, mas sim A
reintroduzido repetidamente; dispõe das estratégias de solução e en-

307
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tão as aplica às situações propostas. Já o ram a apresentação do problema. Nes-


‘problema’ é uma situação apresentada se momento, os estudantes não têm ain-
em um estado inicial, que se deseja avan- da indícios sobre a profundidade de
çar para outro estágio, mas não havendo, conhecimentos inerentes à descrição do
a priori, uma estratégia direta e óbvia para problema, mas isso ficará mais claro no
deslocar-se de um estado ao outro (Mayer, decorrer do processo. Algumas respos-
1992). Destaca-se nessa concepção o ca- tas, assim, poderão ser inadequadas, mas
ráter de ineditismo da situação para o su- isso não importa agora. O educador
jeito, segundo o qual, a solução do pro- deverá resistir ao impulso de oferecer
blema nunca está imediatamente dispo- qualquer forma de explicação ou de
nível, ainda que, ao se deparar com um transmissão de conhecimento, permi-
problema, o sujeito recorra a esquemas tindo que as dúvidas invadam o pensa-
que já possui e que lhe permitem formar mento dos alunos;
uma representação apropriada da situa- 3. Desenvolve-se uma sessão de
ção (Alves & Brito, 2003). brainstorming para avaliar o que é conhe-
A partir dessa definição, podemos cido (ou julgado conhecido) sobre o
então analisar o processo de desenvol- assunto (conhecimentos prévios);
vimento de uma atividade baseada na 4. Registram-se os pontos-chave
solução de problemas. É vasta a litera- do que foi discutido. Elabora-se então
tura e são inúmeros os sítios da internet uma lista do que é sabido sobre o as-
onde se encontra tal tipo de orienta- sunto, o que é desconhecido, o que está
ção. Dentre as diversas sugestões de pouco claro e que precisa ser investiga-
procedimentos, encontram-se os fa- do em mais detalhes. Tudo isso é feito
mosos ‘Sete passos da aprendizagem para ajudar o grupo a compreender os
baseada em problemas’: aspectos relativos ao problema;
1. Escolhe-se um coordenador e 5. O grupo deverá combinar seus
um secretário para cada sessão. O co- objetivos de aprendizagem e tarefas
ordenador e o grupo lêem o proble- que eles deverão colocar em prática
ma. O coordenador pergunta se al- antes do próximo encontro, o que será
guém não entendeu algum termo do sistematizado pelo secretário e
problema. Tudo deve ser esclarecido disponibilizado a todos;
nesse momento; 6. Estudo individual – os membros
2. O coordenador pede ao grupo do grupo coletam as informações
para expressar como eles compreende- identificadas no item 5. São possíveis dois

308
Pedagogia de Problemas A

caminhos: cada aluno se encarrega de de solução de problemas (muitas ins- C


algumas das questões a serem estudadas tituições subdividem as turmas em gru-
ou então todos se encarregam de todas pos com cerca de 12 alunos), D
as questões. A segunda opção demanda poderá haver uma apresentação das
mais tempo, entretanto, a primeira op- descobertas de cada grupo. Nesse mo-
E
ção pode resultar em lacunas na com- mento é interessante fazer uma discus-
F
preensão e aprendizagem de alguns alu- são sobre os motivos de se ter chega-
nos. O educador deverá prover uma lis- do a diferentes soluções para o mesmo
G
ta de referências para orientar os alunos problema e o que se pode aprender de
em suas pesquisas; cada uma dessas diferentes soluções. H
7. O grupo se encontra pela se- O tutor pode, nesse momento, fazer
gunda vez. São lidos os objetivos esta- uma exposição demonstrando como I
belecidos, e cada estudante tem a opor- conceitos relativos a aspectos diversos
tunidade de apresentar sua pesquisa do problema podem ser usados para N
para os demais. O secretário anota to- analisá-lo. Essa exposição pode ajudar
das as informações relevantes. Isso os estudantes a observar como conhe- O
pode ser feito na assembléia ou em cimentos relacionados a uma situação-
pequenos grupos. problema podem ser transferidos para P
Em todos os encontros cada alu- outras situações. O ciclo continua
no deverá entregar uma folha com re- então com a apresentação de outro Q
sumo de suas pesquisas e anotações problema estimulante.
para avaliação. O educador também Vê-se, assim, que a proposta tem R
pode identificar outros critérios para grandes potencialidades. Diversos ar-
avaliar o aluno: participação nas dis- tigos publicados em periódicos tanto S
cussões, papel como secretário ou co- na área da educação como em outras
ordenador, qualidade da pesquisa in- áreas de formação que também vêm T
dividual realizada, e outros. Para evitar utilizando a metodologia relatam ex-
ausência, a presença poderá ser valori- periências bem sucedidas com a mes- U
zada na avaliação final. ma. Entretanto, como qualquer pro-
Ao final do processo, o secretário posta pedagógica, a aprendizagem
V
prepara uma súmula da investigação e baseada em problemas tem suas
A
das conclusões, que deve ser limitações. Em primeiro lugar, os
disponibilizada para cada membro do estudantes, habituados às aulas ex-
A
grupo. Se houveram diversos grupos positivas tradicionais podem se sen-

309
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tir pouco confortáveis diante da formação ou uma simplificação de


proposta. Está a cargo dos professo- problemas, mas descobrirão que ce-
res convencê-los de que eles são pes- nários e problemas complexos au-
quisadores em busca de informações mentam o engajamento dos estudan-
e soluções para problemas que não tes com a questão. Por outro lado, os
têm, obrigatoriamente, uma ‘respos- professores se verão agora num am-
ta certa’. Por isso é importante pre- biente de sala de aula estimulante, sig-
parar os professores para adotar nificativo, recompensador e que pode
novas perspectivas em sala de aula, se transformar numa das experiênci-
quando trabalhando com ambientes as mais gratificantes dos docentes.
de ensino-aprendizagem baseados em Outros desafios são a construção de
problemas. Além disso, o ritmo do tra- um banco de problemas relevantes e
balho nessa perspectiva é diferente, o o gerenciamento de pessoas e grupos,
que traz de volta a velha tensão peda- uma vez que as turmas não são mais
gógica entre volume de conhecimen- platéias que escutam, mas grupos que
tos trabalhados e qualidade da apren- interagem ativamente com vistas a um
dizagem. Há diversas maneiras de resultado. O professor deve ser pre-
contornar essa limitação, provendo parado para todas essas ações em sala.
volume de conhecimentos, ainda que Uma outra variante dessa
menos aprofundados, através de ou- metodologia é a da ‘problematização’
tras estratégias paralelas. (Berbel, 1998). Sua especificidade é
Do ponto de vista dos professo- que, nesse caso, o problema não é apre-
res, transitar por novas abordagens sentado aos alunos pelo professor ou
pedagógicas pode gerar incertezas e tutor, mas sistematizado pelos própri-
certamente eles se verão diante de si- os alunos a partir da observação da re-
tuações de imprevisibilidade e risco. alidade social. Ainda que seja definido
Se os estudantes não são familiariza- um tópico de estudo referente ao qual
dos com a metodologia, eles apren- a ida dos alunos a campo será organi-
derão menos no início, e essa familia- zada, são os próprios alunos que iden-
ridade pode levar um ano e gastar mais tificarão dificuldades, carências, discre-
energia do professor. Professores que pâncias a serem transformadas em pro-
se iniciam nessa abordagem poderão blemas que serão, por sua vez, analisa-
se sentir tentados a oferecer aos estu- dos à luz da teoria, dando origem a
dantes as variáveis-chave, excessiva in- projetos de intervenção prática. Essa

310
Pedagogia de Problemas A

metodologia tem como ponto de des- porânea e do mercado de trabalho. C


taque sua capacidade de preparar o es- Duarte denuncia o uso de perspecti-
tudante para tomar consciência de seu vas pedagógicas por aqueles que pre- D
mundo e atuar intencionalmente para tendem manter o modelo social atual,
transformá-lo, sendo assim uma das excludente e concentrador, fora da crí-
E
aplicações da pedagogia de Paulo tica, centrando as discussões em pro-
F
Freire, já mencionada. postas milagrosas de formação de in-
Optando-se pela ‘problema- divíduos que estariam, a partir disso,
G
tização’ ou pela aprendizagem basea- capacitados para alcançarem sucesso
da em problemas como metodologia na sociedade e no mercado de traba- H
estr uturante de toda a proposta lho. Duarte também denuncia o velho
curricular ou, em outro caso, pela uti- risco de se enfatizarem as metodologias I
lização esporádica e individualizada da em detrimento do acesso a sólidos con-
técnica de problemas, possibilitamos, teúdos teóricos e reafirma a necessi- N
como foi visto, em distintos graus e dade de se integrarem conteúdo e for-
direções, o desenvolvimento de inú- ma e de que tal integração deve ter O
meras capacidades dos estudantes di- como referência as reais contradições
ficilmente estimuláveis através do mé- da sociedade capitalista e de seu cada P
todo expositivo tradicional. Cabe a vez mais precário e reduzido mercado
cada projeto pedagógico definir em de trabalho. Q
que nível de abrangência a perspectiva
será adotada e compete ainda prover R
a capacitação docente e os recursos Para saber mais:
(tempos, espaços e materiais) ne- S
cessários à sua implementação que ALVES, E. V. & BRITO, M. R. F.
deve ser cuidadosamente planejada e Algumas considerações sobre a T
avaliada. solução de problemas. In: Encontro
Para concluir, não podemos dei-
Brasileiro de Estudantes de Pós- U
graduação em Educação Matemática,
xar de lembrar os sérios alertas que nos
faz Duarte (2001) quando, analisando
2003, Rio Claro. Anais…Rio Claro, V
2003.
as pedagogias do “aprender a apren-
BERBEL, N. A. N. A problematização A
der”, alerta para os riscos de se tomar e a aprendizag em baseada em
tal perspectiva como a solução para os problemas: diferentes ter mos ou
A
graves desafios da sociedade contem- diferentes caminhos? Interface –

311
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

comunicação, saúde e educação, 1(2): 139-154, MAYER, R. E. Thinking, Problem Solving,


fev., 1998. Cognition. New York: W. H. Freeman and
Company, 1992.
DEWEY, J. How We Think. Boston:
Heath, 1910. STANIC, G. M. A. & KILPATRICK, J.
Historical perpectives on problem
DUARTE, N. Sociedade do Conhecimento
solving mathematics curricula. In:
ou Sociedade das Ilusões? Quatro Ensaios
CHARLES, R. I. & SILVER, E. A.
Crítico-Dialéticos em Filosofia da Educação.
(Eds.) The Teaching and Assessment of
Campinas: Autores Associados, 2003.
Mathematical Problem Solving. Reston, VA:
ENGEL, C. E. Nor just a method but a NCTM e Lawrence Erlbaum, 1989.
way of learning. In: BOUD, D. &
ZANOTTO, M. A. do C. & DE ROSE,
FELETTI, G. (Eds.) The Challenge of
T. M. S. Problematizar a própria
Problem-Based Learning. London: Kogan
realidade: análise de uma experiência de
Page, 1991.
formação contínua. Educ. Pesqui., 29(1):
GAGNÉ, R. M. Como se Realiza a 45-54, jan.-jun., 2003.
Aprendizagem. Tradução de T. M. R.
Tovar. Rio de Janeiro: Livros Técnicos
e Científicos Editora, 1974.


PLANEJAMENTO DE SAÚDE

Francisco Javier Uribe Rivera

O Planejamento de Saúde surge centrais e periféricos e para o logro do


na América Latina na década de 1960, desenvolvimento. Nesse contexto, ao
sob a influência da teoria planejamento é atribuído o papel de
desenvolvimentista da Comissão Eco- elemento de racionalização da política
nômica para América Latina (Cepal). substitutiva a ser operada pelo Estado.
Esse último organismo internacional O desenvolvimento é visto inicialmen-
prega a partir de 1950 uma política de te como expansão do crescimento eco-
substituição de importações para os nômico, mas a partir de 1960 ao mero
países da área, como condição para a crescimento é acrescentado o objetivo
superação do diagnóstico da deterio- da redistribuição por meio do desenho
ração dos termos de troca entre países racional e da implementação de políti-

312
Planejamento de Saúde A

cas sociais. Desse modo, o desenvol- cedido pela proposta de priorização de C


vimento integrado é o cenário danos à prevenção; a proposta de uma
discursivo em que aparece o Planeja- atuação integrada, sistêmica; o estímulo D
mento de Saúde, representado por um à formulação de sistemas de custos, etc.
esforço metodológico desenvolvido Mas, a sua possibilidade de aplicação
E
pelo Centro de Desenvolvimento revelou-se muito precária devido ao
F
(Cendes), órgão criado na Venezuela baixo poder de interferência do Esta-
(junto à Universidade Central) e apoi- do sobre o setor, dominado em boa
G
ado pela Organização Panamericana da parte por interesses privados.
Saúde (OPAS). A avaliação do método questionou H
O método Cendes-OPAS (1965) a omissão dos aspectos políticos ineren-
é um enfoque sistêmico de Programa- tes à problemática institucional do se- I
ção de Recursos de Saúde, atrelado a tor, como o financiamento, a falta de
uma sorte de análises de custo-benefí- coordenação dos serviços, a baixa capa- N
cio. Contempla uma proposta de cidade de regulação do Estado, a baixa
priorização dos danos à saúde que ten- capacidade de governo, o nível de O
de a privilegiar os danos que apresen- privatização, etc. O fato é que esse mé-
tam um custo relativo menor por mor- todo foi qualificado como excessivamen- P
te evitada. O raciocínio básico do mé- te tecnocrático, economicista, represen-
todo é o da eficiência, evidenciado pela tando uma ilustração do paradigma Q
proposta de programação de recursos normativo do planejamento.
que consiste em um esforço de Todos os esforços realizados pe- R
normatização econômica dos instru- los organismos internacionais de pes-
mentos (ou recursos nucleares) que quisa e ensino se centraram a partir de S
realizam as atividades de saúde. Esse então na formulação de enfoques que
processo normatizador visa a aumen- situaram o planejamento como ele- T
tar as atividades e, simultaneamente, mento auxiliar das políticas, como fe-
reduzir os custos, neste último caso, nômeno político. O primeiro marco U
por meio de uma atuação sobre a com- dessa evolução está representado pelo
posição quantitativa dos instrumentos documento ‘Formulação de Políticas
V
ou sobre a combinação de recursos que de Saúde’ (1975) do Centro
A
compõem os instrumentos. Panamericano de Planejamento de Saú-
O método tem vários méritos, de (CPPS). Ele concebe o Planejamen-
A
como por exemplo, o privilégio con- to como um processo que, embora

313
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dominado pelo Estado, supõe a ponsabilidade decorrente do


mobilização de vários atores, e, intro- monitoramento, da cobrança e a
prestação de contas. Essa proposta
duz a necessidade da análise de viabili-
deriva da formulação de uma teoria
dade política e da estratégia. das macroorganizações, na qual a
O Planejamento normativo cede crise do planejamento expressa todo
o lugar ao Planejamento estratégico. Os um sistema da baixa responsabilida-
dois maiores expoentes dessa corren- de que caracteriza a administração
pública latino-americana.
te são: Carlos Matus (1993; 1997) e
Mário Testa (1987). Testa acompanhou a evolução do
Matus apresenta uma dupla con- planejamento de saúde desde o Cendes.
tribuição: Responsável, junto com Matus, pela
crítica ao planejamento normativo, de-
• O modelo de processamento de pro- dicou-se a formular uma proposta de
blemas e soluções, que corresponde explicação da problemática setorial
à sua proposta de planejamento es- (epidemiológica e organizativa), de na-
tratégico. Apoiado nas teorias da si-
tureza estratégica, que integra um di-
tuação, da produção social e da ação
interativa, Matus constrói um pro- agnóstico administrativo, um diagnós-
tocolo de processamento de proble- tico estratégico e um diagnóstico ide-
mas que supõe 04 momentos: ológico. Testa evolui, na crítica a Matus,
explicativo, normativo, estratégico e para a defesa de um enfoque de plane-
tático-operacional. Com elementos
jamento que não represente um exces-
de cálculo de cenários e um sofisti-
cado instrumental de análise estra- so de formalização política. Esse
tégica, o autor propõe um modelo enfoque teria um componente forte-
de planejamento criativo, flexível e mente comunicacional, trazendo à tona
interativo. a teoria do agir comunicativo
habermasiano (1987). Testa postula a
• Uma proposta de direção estratégi-
ca para a administração pública, que priorização de um tipo de atuação ca-
consiste na reforma vertical da ad- paz de acentuar os traços democráti-
ministração por meio da introdução cos da instituição, constituindo-se em
de uma série conexa de subsistemas um crítico contundente de formas au-
de gestão, que priorizam o planeja-
toritárias. O planejamento adota den-
mento criativo, a descentralização
dos sistemas de condução e uma tro dessa moldura o significado de prá-
abordagem de gestão por objetivos ticas dialógicas a serviço do estabele-
ou operações e, por fim, a alta res- cimento de consensos e de acordos

314
Planejamento de Saúde A

sobre compromissos, perdendo a ima- tante citar os aportes à C


gem de uma metodologia muito integralidade que a escola faz por
estruturada.
meio da formulação do conceito de D
Clínica do Sujeito, que integraria o
No Brasil, autores como Mehry melhor da clínica não degradada,
(1995) assinalam a existência de 04
E
um olhar voltado para a subjetivi-
correntes de planejamento/gestão dade dos usuários e outro para o
contexto social de proveniência da F
em saúde:
problemática individual.
G
• A corrente da gestão estratégica do • A corrente do Planejamento Estra-
Laboratório de Planejamento (Lapa) tégico Comunicativo, representado
da Faculdade de Medicina de Cam- H
por núcleos do Departamento de
pinas. Essa corrente defende um Administração e Planejamento de
modelo de gestão colegiada e demo- Saúde (DAPS) da Ensp/Fiocruz. I
crática, caracterizado pelas seguintes Essa escola adere ao Planejamento
premissas: forte autonomia, Estratégico-situacional, mas não se N
colegiados de gestão, comunicação limita a ele. Incorpora um enfoque
lateral e ênfase na avaliação para au-
mentar a responsabilidade. A pro-
de planejamento/gestão estratégica O
de hospitais, adaptado da França,
posta de um modelo de planejamen- especificamente de Michel Crémadez
to é a de uma caixa de ferramentas, (1997). Também desenvolve toda P
que inclui o Pensamento Estratégi- uma reflexão de componentes de
co de Testa, o Planejamento Estra- uma gestão pela escuta, como a lide- Q
tégico-situacional de Matus, elemen- rança, a prática de argumentação li-
tos da Qualidade Total, a Análise
Institucional, etc. Apesar da ênfase
gada à negociação e à questão cultu- R
ral, com alguma influência da escola
que a escola atribui ao Atendimento da organização que aprende e de um
Básico, ela tem uma boa experiência ramo da Filosofia da Linguagem apli- S
na parte hospitalar, na qual tentaram cada à gestão organizacional, repre-
implementar seu modelo de gestão. sentado por Flores (1989) e T
Mais recentemente, a corrente intro- Echeverria (1994). O termo Comu-
duziu com base na Saúde Mental os nicativo alude a uma aplicação da U
conceitos de acolhimento e vínculo, Teoria do Agir Comunicativo (TAC)
tão caros a uma política de de Habermas (1987) sob a forma de
humanização. Crescentemente pre- parâmetro de crítica do paradigma
V
ocupada com os microprocessos de estratégico.
trabalho assistencial, a escola intro- A
duziu novos instrumentos de análi- • A corrente da Vigilância à Saúde.
se como os fluxogramas Representada por um grupo hetero- A
analisadores. Finalmente, é impor- gêneo do ponto de vista geográfico,

315
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

essa escola postula um modelo de multidisciplinares de trabalho em


vigilância à saúde fortalecido de equipe. Em relação à técnica de pro-
modo a se poder pensar numa in- gramação, a escola sustenta a neces-
versão do modelo assistencial. Esse sidade de uma abertura
modelo combate a velha atomização programática por grupos humanos
dos programas verticais da saúde amplos, para além de um recorte
pública, e defende a necessidade de patológico estanque. Enseja assim
uma sorte de integração horizontal condições para uma abordagem
dos vários componentes do mais integrada do atendimento. A
sanitarismo. Em grande parte, essa problemática da integração e da co-
possibilidade de coordenação seria ordenação é destacada. Atribui-se,
ensejada pela utilização do planeja- tal como na escola da Vigilância,
mento situacional, oriundo de Matus, uma importância crucial ao uso in-
no processamento de problemas teligente da Epidemiologia Clínica
transversais. A Vigilância à Saúde se e Social, como disciplina útil na pos-
caracterizaria por esse tipo de sibilidade de programação das prá-
integração, mas também pela busca ticas de serviços, incluindo os clíni-
de uma atuação intersetorial, na li- cos. Alguns professores dessa escola
nha da promoção à saúde, que seria
têm desenvolvido, da mesma forma
o paradigma básico da Vigilância, al-
que a escola da Ensp, uma preocu-
ternativo ao paradigma flexeriano da
pação importante pelo ramo da fi-
Clínica. Contemplaria como um dos
losofia da linguagem dentro da ver-
seus alicerces assistenciais a rede bá-
tente comunicativa de Habermas. A
sica de atendimento, e primordial-
escola considera que a busca da
mente o modelo de Médico de Fa-
integração entre serviços básicos e
mília. Hoje em dia, uma das princi-
pais contribuições da escola é a pro- hospitalares depende do estabeleci-
posta de Sistemas de Micror- mento de uma rede eficaz de con-
regionalização Solidária, como célu- versações, ou seja, de processos co-
la de um sistema regionalizado que municativos.
avance na possibilidade de constituir
sistemas integrados de saúde por
oposição aos sistemas fragmentados.
Para saber mais:
• A escola da Ação Programática da
Faculdade de Medicina da USP: esta CRÉMADEZ, M. Le Management
corrente se evidencia pelas práticas Stratégique Hospitalier. Paris: Intereditions,
experimentais de modificações das 1997.
práticas assistenciais da rede básica ECHEVERRIA, R. Ontologia del Lenguaje.
de atendimento, enfatizando formas Santiago: Dolmen, 1994.

316
Precarização do Trabalho em Saúde A

FLORES, F. Inventando la empresa del Siglo Planejamento. Reflexões sobre Política, C


XXI. Santiago: Hataché, 1989. Estratégia e Liberdade. São Paulo/Rio de
HABERMAS, J. Teoria de la Acción
Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1995. D
Comunicativa. Madrid: Taurus, 1987. MATUS, C. Política, Planejamento e
OPS-OMS. Problemas conceptuales y
Governo. Brasília: Ipea, 1993. E
metodológicos de la programación de MATUS, C. Adeus, Sr. Presidente.
la salud. Publicación Científica nº 111. Governantes e Governados. São Paulo: F
Washington: Cendes-Venezuela, 1965. Fundap, 1997.
OPS-CPPS. Formulación de Políticas de TESTA, M. Estrategia, coherencia y G
Salud. Santiago: CEPAL/ILPES, 1975. poder en las propuestas de salud.
MEHRY, E. E. Planejamento como
Cuadernos Médico-Sociales. Rosario, n. 38 H
(1ª parte) y 39 ( 2ª parte), 1987.
tecnologia de gestão: tendências e
debates sobre planejamento de saúde no I
Brasil. In: GALLO, E. Razão e
 N

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE O

P
Denise Elvira Pires
Q
Este termo tem sido utilizado balhadores e direitos trabalhistas, no R
para designar perdas nos direitos tra- contexto do processo de ruptura do
balhistas ocorridas no contexto das modelo de desenvolvimento fordista S
transformações do mundo do traba- e de emergência de um novo padrão
lho e de retorno às idéias liberais de produtivo (Mattoso, 1995). T
defesa do estado mínimo, que vêm sur- No final dos anos 60 do último
gindo, especialmente, nos países capi- século o modelo fordista de desenvol- U
talistas desenvolvidos a partir da ter- vimento entra em crise: cresce a insa-
ceira década do século passado. Em tisfação dos operários com a organi- V
termos genéricos refere-se a um con- zação taylorista-fordista de execução de
junto amplo e variado de mudanças em tarefas maçantes e repetitivas, ainda A
relação ao mercado de trabalho, con- que bem pagas; explodem movimen-
dições de trabalho, qualificação dos tra- tos sociais, sindicais e extra-sindicais; A

317
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

as empresas aumentam os preços ge- tempo determinado, trabalho part-time,


rando inflação, questionam os compro- assalariados de empresas terceiras,
missos estabelecidos no Welfare State, membros de cooperativas, e outras.
e assumem políticas que prejudicam as Essa multiplicidade de formas de
conquistas trabalhistas. Deste proces- contratação difere da padronização
so emergem mudanças marca-das pela fordista e tem sido chamada pelos de-
inovação tecnológica, por mudanças fensores de ‘flexibilização’ (Piore &
nas formas de organização e gestão do Sabel, 1984). No entanto, porque, ma-
trabalho e pela descen-tralização da joritariamente, implica perdas de direi-
produção, invertendo-se a tendência de tos, tem sido chamada tem pelos críti-
verticalização das empresas. Cresce a cos de ‘precarização’. A literatura tam-
terceirização, flexibilizam-se as relações bém registra que a ‘precarização do tra-
trabalhistas, bem como muda a estru- balho’, com múltiplas relações
tura vertical das instituições emergin- contratuais, tem contribuído para
do um modelo de rede, com forte co- aumentar as dificuldades de represen-
laboração interempresas e intersetorial. tação e atuação sindical deixando os
A empresa ou instituição mantém o trabalhadores desprotegidos e mais
que é central e terceiriza parte do seu vulneráveis às exigências gerenciais e
processo de produção. Deste modo, o patronais (Mattoso, 1995; Pires, 1998).
trabalho não é desenvolvido apenas Esse processo tem ocorrido com
pelo trabalhador assalariado e protegi- maior intensidade na produção indus-
do pelos benefícios do Estado de bem- trial e nos setores de ponta da econo-
estar social. A flexibilização e mia, mas tem afetado, de modo dife-
estruturação de rede interempresarial renciado, todos os setores da produ-
possibilita que o processo de produ- ção na sociedade. É visível no setor de
ção envolva trabalhadores submetidos serviços em geral (Offe, 1991) e na
a diversas formas de contratação, re- saúde em particular.
cebendo salários diferenciados para a Uma das mudanças recentes, no
realização de trabalhos semelhantes e âmbito do trabalho em saúde no Brasil,
sem os mesmos benefícios que os tra- é o crescimento do número de traba-
balhadores da empresa-mãe. A confec- lhadores sem as garantias trabalhistas de
ção de um produto pode resultar do que gozam os demais trabalhadores as-
trabalho desenvolvido de diversas for- salariados da instituição. Encontra-se:
mas: prestação de serviço, trabalho por contratos temporários; trabalhadores

318
Precarização do Trabalho em Saúde A

contratados para realizar atividades es- em 2000, como fruto de negociação sin- C
peciais (plantonistas em hospitais, por dical. Os trabalhadores podem optar
exemplo); flexibilização na contratação pelo regime part-time; nestes casos, a re- D
de agentes comunitários de saúde e equi- muneração corresponde às horas tra-
pes de saúde da família pelo governo balhadas, mas não ocorre perda de di-
E
brasileiro; e o trabalho temporário pre- reitos trabalhistas (Pires, 2004).
F
visto no Programa de Interiorização do O Ministério da Saúde do Brasil
Trabalho em Saúde. reconhece a existência de múltiplas for-
G
Como nos demais setores da pro- mas de trabalho precário em saúde e ela-
dução, a terceirização também cresce bora, através da Secretaria de Gestão do H
na saúde e tem sido utilizada pelos em- Trabalho e da Educação em Saúde, um
pregadores tanto do setor público “Programa Nacional de Desprecarização I
quanto do privado, para diminuir os do Trabalho no SUS” com estratégias
custos com a remuneração da força de definidas para a reversão do quadro. N
trabalho e para fugir das conquistas ‘Precarização’ é um termo amplo que se
salariais e direitos trabalhistas dos tra- unifica pelo sentido de perda de direi- O
balhadores efetivos da empresa-mãe tos. Para o Conselho Nacional de Secre-
(instituição-original) (Dieese, 1993; Pi- tários de Saúde (Conass) e o Conselho P
res, 1998; Pires, Gelbcke & Matos, Nacional dos Secretários Municipais de
2004). No entanto, é importante con- Saúde (Conasems), o trabalho precário Q
siderar que a flexibilização nas formas está relacionado aos vínculos de traba-
de contratação, bem como a tercei- lho no Sistema Único de Saúde (SUS) R
rização, não é sempre sinônimo de que não garantem os direitos traba-
‘precarização’, apesar de, no caso bra- lhistas e previdenciários consagrados S
sileiro, majoritariamente, essas inicia- em lei. Para as entidades sindicais que
tivas terem o sentido de redução dos representam os trabalhadores que T
custos com a força de trabalho e de atuam no SUS, trabalho precário está
‘precarização’. Dependendo do contex- caracterizado não apenas como au- U
to institucional e histórico em que os sência de direitos trabalhistas e pre-
tipos de contratação ocorrem, flexi- vi-denciários consagrados em lei, mas
V
bilizar pode não ser sinônimo de também como ausência de concurso
A
precarizar. Na Holanda, por exemplo, público ou processo seletivo público
o trabalho part-time é um direito dos tra- para cargo permanente ou emprego
A
balhadores que foi conquistado em lei, público no SUS.

319
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: PIRES, D. Reestruturação Produtiva e


Trabalho em Saúde no Brasil. São Paulo:
Annablume, 1998.
DIEESE. Os Trabalhadores Frente à
Terceirização. São Paulo, maio 1993. PIRES, D. Relationship between New
(Pesquisa Dieese, n. 7). Technologies and the Health of Health
Care Professionals: a study in a Dutch
MATTOSO, J. E. L. A Desordem do
hospital. Amsterdam, 2004. (Research
Trabalho. São Paulo: Página Aberta /
Report)
Escrita, 1995.
PIRES, D. E.; GELBCKE, F. L. &
OFFE, C. Trabalho e Sociedade: problemas
MATOS, E. Current labour changes
estruturais e perspectivas para o futuro da
and their implications for the health
sociedade do trabalho. Rio de Janeiro:
c a r e wo r k f o r c e. I n : 7 t h Wo r l d
Tempo Brasileiro, 1991. v.2 –
Conference on Injur y Prevention
Perspectivas.
and Safety Promotion, 2004, Viena.
PIORE, M. & SABEL, C. The Second Anais…Viena, 2004, p. 612-613.
Industrial Divide? Possibilities for Prosperity.
New York: Basic Books, 1984.


PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE

Marina Peduzzi
Lília Blima Schraiber

Gênese do conceito lises consistentes sobre as relações en-


tre saúde e sociedade e entre profissão
Pioneiramente, Maria Cecília Fer- médica e práticas sociais no país, rom-
ro Donnangelo (1975, 1976), no final pendo com a visão que o modo de exe-
da década de 1960, iniciou estudos so- cutar a prática médica e as relações
bre a profissão médica, o mercado de entre os indivíduos envolvidos (usuá-
trabalho em saúde e a medicina como rios, médicos e demais profissionais de
prática técnica e social. Utilizou como saúde) seriam independentes da vida
referenciais teóricos estudos socioló- social (Mota, Silva & Schraiber, 2004;
gicos, o que lhe permitiu construir aná- Schraiber, 1997). Esses estudos tiveram

320
Processo de Trabalho em Saúde A

vários desdobramentos, no Brasil e na três elementos componentes do pro- C


América Latina, na área médica e nas cesso de trabalho são: a atividade ade-
demais áreas profissionais da saúde, quada a um fim, isto é, o próprio tra- D
constituindo-se importante referencial balho, o objeto de trabalho, ou seja, a
para o estudo do campo da saúde, so- matéria a que se aplica o trabalho, e os
E
bretudo em relação a duas grandes instrumentos ou meios do trabalho.
F
temáticas: de um lado, as políticas e Importante lembrar que o processo de
estruturação da assistência, que deri- trabalho e seus componentes consti-
G
vou em muitos estudos do sistema de tuem categorias de análise, portanto
saúde brasileiro, até o atual Sistema abstrações teóricas por meio das quais H
Único de Saúde (SUS); de outro, os é possível abordar e compreender cer-
estudos sobre o mercado, as profissões tos aspectos da realidade, no presente I
e as práticas de saúde. Esta segunda caso, as práticas de saúde, cujo traba-
linha expandiu-se para a constituição lho constitui “a base mais fundamen- N
de dois importantes conceitos: força tal de sua efetivação” (Mendes Gon-
de trabalho em saúde e ‘processo de çalves, 1992, p. 2). O
trabalho em saúde’ (Schraiber, 1997). No estudo do processo de traba-
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, lho em saúde Mendes Gonçalves P
discípulo e colaborador de (1979, 1992) analisa os seguintes com-
Donnangelo, foi o autor que formu- ponentes: o objeto do trabalho, os ins- Q
lou o conceito de ‘processo de tra- trumentos, a finalidade e os agentes, e
balho em saúde’, a partir da análise destaca que esses elementos precisam R
do processo de trabalho médico, em ser examinados de forma articulada e
particular. não em separado, pois somente na sua S
Mendes Gonçalves (1979, 1992) relação recíproca configuram um dado
estuda a aplicação da teoria marxista processo de trabalho específico. T
do trabalho ao campo da saúde. Segun- O objeto representa o que vai ser
do Marx (1994), no processo de traba- transformado: a matéria-prima (maté- U
lho, a atividade do homem opera uma ria em estado natural ou produto de
transformação no objeto sobre o qual trabalho anterior), e no setor saúde, ne-
V
atua por meio de instrumentos de tra- cessidades humanas de saúde. O obje-
A
balho para a produção de produtos, e to será, pois, aquilo sobre o qual incide
essa transformação está subordinada a ação do trabalhador. Segundo Men-
A
a um determinado fim. Portanto, os des Gonçalves o objeto de trabalho

321
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

contém, potencialmente, o produto (1979, 1992, 1994) analisa, no ‘proces-


resultante do processo de transforma- so de trabalho em saúde’, a presença
ção efetivado pelo trabalho, no entan- de instrumentos materiais e não-ma-
to, não deixa essa qualidade potencial teriais. Os primeiros são os equipamen-
transparecer por si mesma, imediata- tos, material de consumo, medicamen-
mente, de modo que essa qualidade de tos, instalações, outros. Os segundos
produto precisa ser evidenciada ativa- são os saberes, que articulam em
mente no objeto. Portanto, um certo determinados arranjos os sujeitos
aspecto da realidade destaca-se como (agentes do processo de trabalho) e os
objeto de trabalho somente quando o instrumentos materiais. Além disso,
sujeito assim o delimita, o objeto de constituem ferramentas principais do
trabalho não é um objeto natural, não trabalho de natureza intelectual. O au-
existe enquanto objeto por si só, mas tor salienta que esses saberes são tam-
é recortado por um ‘olhar’ que con- bém os que permitem a apreensão do
tém um projeto de transformação, com objeto de trabalho.
uma finalidade. Esta
representa a intencionalidade do pro- Objeto e instrumentos de traba-
cesso de trabalho, o projeto prévio de lho só podem ser configurados por re-
alcançar o produto desejado que está ferência à sua posição relacional,
na mente do trabalhador, ou seja, intermediada pela presença do agente
em que direção e perspectiva será rea- do trabalho que lhe imprime uma dada
lizada a transformação do objeto em finalidade. Por meio da presença e ação
produto. do agente do trabalho torna-se possí-
Os instrumentos de trabalho vel o processo de trabalho – a dinâmi-
tampouco são naturais, mas constituí- ca entre objeto, instrumentos e ativi-
dos historicamente pelos sujeitos que, dade. Portanto, o agente pode ser in-
assim, ampliam as possibilidades de terpretado, ele próprio, como instru-
intervenção sobre o objeto. O meio ou mento do trabalho e, imediatamente
instrumento de trabalho é uma coisa sujeito da ação, na medida em que traz,
ou um complexo de coisas que o tra- para dentro do processo de trabalho,
balhador insere entre si mesmo e o além do projeto prévio e sua finalida-
objeto de trabalho e lhe serve para di- de, outros projetos de caráter coletivo
rigir sua atividade sobre esse objeto e pessoal, dentro de um certo campo
(Marx, 1994). Mendes Gonçalves de possíveis (Peduzzi, 1998).

322
Processo de Trabalho em Saúde A

O conceito ‘processo de trabalho uso e o valor de troca. O valor de uso C


em saúde’ diz respeito à dimensão mi- é produzido no trabalho concretamen-
croscópica do cotidiano do trabalho em te realizado ou chamado trabalho con- D
saúde, ou seja, à prática dos trabalha- creto, o qual dá o sentido qualitativo
dores/profissionais de saúde inseridos do produto. O valor de troca
E
no dia-a-dia da produção e consumo de corresponde ao valor que o produto
F
serviços de saúde. Contudo, é necessá- adquire como mercadoria colocada em
rio compreender que neste processo mercado, o que só se revela quando se
G
de trabalho cotidiano está reproduzida contrapõem mercadorias de valores de
toda a dinâmica do trabalho humano, usos diversos, pois o valor de troca não H
o que torna necessário introduzir al- é algo inerente à mercadoria. O valor
guns aspectos centrais do trabalho que de troca faz aflorar a dimensão de tra- I
é a grande categoria de análise da qual balho abstrato, na qual o produto do
deriva o conceito de ‘processo de tra- trabalho perde sentido (utilidade) e as- N
balho em saúde’. sume um significado quantitativo de
O trabalho constitui o processo coisas produzidas em quantidade. É O
de mediação entre homem e natureza, nesta dimensão que o agente de tra-
visto que o homem faz parte da natu- balho torna-se alienado do sentido P
reza, mas consegue diferenciar-se dela desse trabalho, do produto dele e de
por sua ação livre e pela inten- si próprio como agente dessa produ- Q
cionalidade e finalidade que imprime ção. O trabalho é, portanto, uma
ao trabalho. Portanto, o trabalho é um transformação não só de objetos, R
processo no qual os seres humanos mas do próprio trabalhador, e, nes-
atuam sobre as forças da natureza se sentido, um movimento dialético S
submetendo-as ao seu controle e de exploração/alienação e de cria-
transformando-as em formas úteis à ção/emancipação (Antunes, 1995, T
sua vida, e nesse processo de inter- 1999, 2005).
câmbio, simultaneamente, transfor- U
mam a si próprios. Todo trabalho pro-
V
duz algo que tem utilidade e pode ser Desenvolvimento histórico
trocado por outros produtos necessá-
A
rios. Contudo, no processo de produ- Embora o conceito de ‘processo
ção da sociedade capitalista, são tor- de trabalho em saúde’ tenha sido de-
A
nados radicalmente distintos o valor de senvolvido inicialmente com base no

323
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

trabalho médico desde o início dos saber como o recurso que põe em
anos 80, passa a ser utilizado para o movimento os demais componentes
estudo de processos de trabalho espe- do processo de trabalho. Será, pois,
cíficos de outras áreas profissionais em saber operante ou tecnológico – saber
saúde. Dentre estes, destaca-se a área que tem sua origem ‘no’ e ‘através do’
de enfermagem que inicia a análise do processo de trabalho, fundamentando
processo de trabalho de enfermagem intervenção em saúde (Mendes Gon-
com a tese de Doutorado de Maria çalves, 1994; Schraiber, 1996; Peduzzi,
Cecília Puntel de Almeida, de 1984 1998).
(Almeida & Rocha, 1986), seguida de Um último aspecto a ser desenvol-
várias outras pesquisas com esta abor- vido por Mendes Gonçalves e que terá
dagem até a atualidade. muitas repercussões no campo da saú-
Embora Mendes Gonçalves tenha de, refere-se aos aspectos dinâmicos e
apontado para a categoria ‘necessida- relacionais do ‘processo de trabalho em
des’ e a categoria ‘saber’ como elemen- saúde’. Se os primeiros estudos buscam,
tos do processo de trabalho desde sua na referência da sociabilidade e
formulação original, ao longo do de- historicidade do trabalho em saúde, suas
senvolvimento do conceito, este mes- articulações na estrutura social, a arti-
mo autor retoma estas categorias. Em culação do estudo do ‘processo de tra-
seu texto de 1992, analisa a balho em saúde’ com abordagens teó-
consubstancialidade entre trabalho e ricas, como Canguilhem (1982), Heller
necessidades humanas, de modo que (1991) e a escola de Frankfurt
os processos de trabalho são também (Habermas, 1994, 2001), permitirá, no
‘re-produção’ das necessidades, ou seja, dizer de José Ricardo Ayres (2002), tra-
tanto reiteram as necessidades de saú- tar mais positiva e produtivamente os
de e o modo como os serviços se or- aspectos relacionais do trabalho em saú-
ganizam para atendê-las quanto podem de, necessários para pensá-lo não ape-
criar novas necessidades e respectivos nas como estrutura de sociabilidade,
processos de trabalho e modelos de mas como prática social.
organização de serviços. Já na catego- Ao introduzir a análise da
ria ‘saber’, o autor mostra que, ao ex- micropolítica do trabalho vivo em ato
pressar a intermediação entre ciência e na saúde e a tipologia das tecnologias
trabalho, remete à dimensão em saúde (leve, leve-dura e dura),
tecnológica deste. Formula, então, o Emerson Elias Merhy (Merhy, 1997,

324
Processo de Trabalho em Saúde A

2002; Merhy & Chakhour, 1997) parte origem e continua representando im- C
das contribuições de Mendes Gonçal- portante abordagem teórico-conceitual
ves e de autores como Cornelius para as questões sobre recursos huma- D
Castoriades, Felix Guatarri e Gilles nos em saúde. Segundo Nogueira
Delleuze, da escola de análise (2002), a noção clássica de trabalho e
E
institucional. Recuperando de Marx a de processo de trabalho constitui rele-
F
concepção de trabalho vivo e trabalho vante categoria interpretativa nos estu-
morto, define este último como todos dos sobre recursos humanos em saúde.
G
os produtos-meio que estão envolvi- Nesse sentido, destaca-se o Projeto
dos no processo de trabalho e que são Capacitação em Desenvolvimento de H
resultado de um trabalho anteriormen- Recursos Humanos de Saúde –
te realizado, e aquele outro como tra- CADRHU –, implantado em 1987, que, I
balho instituinte, buscando compreen- em sua primeira unidade didática, pre-
der a potencialidade de esse trabalho via a caracterização da problemática de N
vivo em ato questionar, no próprio recursos humanos de saúde como par-
processo de trabalho, a te do processo produtivo do setor saú- O
intencionalidade e a finalidade do tra- de, em especial, como processo de tra-
balho em saúde e de seus modos de balho (Santana & Castro, 1999). P
operar os modelos tecno-assistencias. A partir dos anos 90, um conjun-
A dimensão processual e transfor- to de questões novas estabelece um Q
madora do trabalho vivo em ato na divisor de águas para a reflexão e pes-
saúde é atribuída à característica desse quisa sobre o ‘processo de trabalho em R
trabalho que tem a sua essencialidade saúde’: por um lado, aparecem ques-
na ação. E como tal será fonte de tões relacionadas às novas formas de S
tecnologias, na medida em que o tra- trabalho flexível e/ou informal e da
balho em ato pode abrir linhas de fuga regulação realizada pelo Estado, com T
no já instituído. foco nos mecanismos institucionais de
gestão do trabalho; por outro, as ques- U
tões da integralidade do cuidado e da
V
Emprego do conceito na autonomia dos sujeitos, cujo foco de
área da saúde na atualidade análise se desloca para o plano da
A
interação envolvendo a relação profis-
sional - usuário ou as relações entre os
O estudo do ‘processo de traba- A
lho em saúde’ representou desde sua profissionais (Nogueira, 2002). No que

325
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

se refere especificamente ao cuidado geral e se reproduzem no setor saúde


em saúde, destacam-se as contribuições com especificidades (Peduzzi, 2003;
do estudo sobre o trabalho vivo em Nogueira, Baraldi & Rodrigues, 2004;
ato (Merhy, 1997, 2002; Merhy & Antunes, 2005b).
Chakhour, 1997) e sobre a
intersubjetividade e a prática dialógica Para saber mais:
(Ayres, 2001, 2002).
Assim, na atualidade, o conceito ALMEIDA, M. C. P. & ROCHA, J. S. Y.
‘processo de trabalho em saúde’ é uti- O Saber da Enfermagem e sua Dimensão
lizado no estudo dos processos de tra- Prática. São Paulo: Cortez, 1986.
balho específicos das diferentes áreas ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho:
que compõem o campo da saúde, per- ensaios sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
mitindo sua abordagem como práticas
sociais para além de áreas profissionais ANTUNES, R. O Caracol e sua Concha:
ensaios sobre a morfologia do trabalho. São
especializadas. Também é utilizado nas Paulo: Boitempo, 2005.
pesquisas e intervenções sobre aten-
ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho?
ção à saúde, gestão em saúde, mode- Ensaios sobre as Metamorfoses e a
los assistenciais, trabalho em equipe de Centralidade do Mundo do Trabalho. São
saúde, cuidado em saúde e outros te- Paulo/Campinas: Cortez/Editora da
Universidade Estadual de Campinas,
mas, permitindo abordar tanto aspec-
1995.
tos estruturais como aspectos relacio-
AYRES, J. R. C. M. Sujeito,
nados aos agentes e sujeitos da ação,
intersubjetividade e práticas de saúde.
pois é nesta dinâmica que se configu- Ciência & Saúde Coletiva, 6(1): 63-72,
ram os processos de trabalho. 2001.
Questões bem atuais referentes ao AYRES, J. R. C. M. Do Processo de Trabalho
‘processo de trabalho em saúde’ abor- em Saúde à Dialógica do Cuidado: repensando
dam as mudanças do mundo do traba- conceitos e práticas em saúde coletiva, 2002.
Tese de Livre Docência, São Paulo:
lho que se iniciam em meados dos anos Faculdade de Medicina da Universidade
70 e suas repercussões no setor saúde, de São Paulo.
particularmente: a crescente incorpo- CANGUILHEM, G. O Normal e o
ração tecnológica, o desemprego estru- Patológico. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-
tural, a flexibilização e precarização do Universitária, 1982.
trabalho, entre outros fenômenos que DONNANGELO, M. C. F. Medicina e
ocorrem no mundo do trabalho em Sociedade. São Paulo: Pioneira, 1975.

326
Processo de Trabalho em Saúde A

DONNANGELO, M. C. F. & MERHY, E. E. & CHAKKOUR, M. C


PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Em busca de ferramentas analisadoras
Paulo: Duas Cidades, 1976. das tecnologias em saúde: a informação D
e o dia a dia de um ser viço,
HABERMAS, J. Técnica e Ciência como
interrogando e gerindo trabalho em
Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.
saúde. In: MERHY, E. E. &
E
HABERMAS, J. Teoria de la Acción ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde:
Comunicativa, I. Espanha: Taurus, 2001. um desafio para o público. São Paulo: F
HELLER, A. Sociologia de la Vida Hucitec, 1997.
Cotidiana. Barcelona: Pennsula, 1991. MOTA, A.; SILVA, J. A. & G
MARX, K. O Capital. 14.ed. São Paulo: SCHRAIBER, L. B. Contribuições
Difel, 1994. v.1. Pragmáticas para a Organização dos Recursos H
Humanos em Saúde e para a História da
MENDES GONÇALVES, R. B. Profissão Médica no Brasil: obra de Maria
Medicina e História: raízes sociais do trabalho Ceclia Donnangelo. Brasília: Ministério da
I
médico, 1979. Dissertação de Mestrado, Saúde, 2004.
São Paulo: Faculdade de Medicina da N
Universidade de São Paulo. NOGUEIRA, R. P. O trabalho em
saúde: novas formas de organização. In:
MENDES GONÇALVES, R. B. Práticas NEGRI, B.; FARIA, R. & VIANA, A. O
de Saúde: processos de trabalho e necessidades. L. D. (Orgs.) Recursos Humanos em Saúde:
São Paulo: Centro de Formação dos política, desenvolvimento e mercado de trabalho. P
Trabalhadores em Saúde da Secretaria Campinas: Unicamp/IE, 2002.
Municipal da Saúde, 1992. (Cadernos
Cefor, 1 – Série textos) NOGUEIRA, R. P.; BARALDI, S. & Q
RODRIGUES, V. A. Limites críticos
MENDES-GONÇALVES, R. B.
Tecnologia e Organização Social das Práticas
das noções de precariedade e R
desprecarização do trabalho na
de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.
administração pública. In: BARROS,
MENDES GONÇALVES, R. B. A. F. R. (Org.) Observatório de Recursos S
Prefácio. In: AYRES, J. R. C. M. Humanos em Saúde no Brasil: estudos e
Epidemiologia e Emancipação. São Paulo: análises. Brasília: Ministério da Saúde, T
Hucitec, 1995. 2004. (Série B. Textos Básicos de
MERHY, E. E. Em busca do tempo Saúde) U
perdido: a micropolítica do trabalho vivo PEDUZZI, M. Equipe Multiprofissional de
em saúde. In: MERHY, E. E. & Saúde: a interface entre trabalho e interação, V
ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um 1998. Tese de Doutorado, Campinas:
desafio para o público. São Paulo: Hucitec, Faculdade de Ciências Médicas da
1997. Universidade Estadual de Campinas.
A
MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do PEDUZZI, M. Mudanças tecnológicas
trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. e seu impacto no processo de trabalho
A

327
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

em saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 1(1): de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves


75-91, 2003. para a compreensão da articulação entre
saber, prática e recursos humanos.
SANTANA, J. P. & CASTRO, J. L.
Divulgação em Saúde para Debate, 14: 7-12,
(Orgs.) Capacitação em Desenvolvimento de
1996.
Recursos Humanos de Saúde: CADRHU.
Brasília/Natal: Ministério da Sade/ SCHRAIBER, L. B. Medicina Tecnológica
Organização Pan-Americana da Saúde/ e Prática Profissional Contemporânea: novos
EDUFRN, 1999. desafios, outros dilemas, 1997. Tese de Livre
Docência, São Paulo: Faculdade de
SCHRAIBER, L. B. Ciência, trabalho e
Medicina da Universidade de São Paulo.
trabalhadores em saúde: contribuições


PROFISSÃO

Naira Lisboa Franzoi

A dificuldade de precisar gem administrativa, principalmente


conceitualmente o termo ‘profissão’ nas classificações dos recenseamentos
deve-se ao fato de que o mesmo as- promovidos pelo Estado.
sume diferentes conotações de acor- No Ocidente, as ‘profissões sábi-
do com a área de conhecimento e a as’ e os ‘ofícios’ têm uma origem co-
tradição nacional e idiomática em que mum nas corporações, e o termo ‘pro-
é empregado. Quando utilizado na so- fissão’ é tributário da ‘profissão de fé’ –
ciologia anglo-americana, o termo juramento que faziam aqueles que pas-
(profession) é reservado para as profis- savam a pertencer à corporação. O tra-
sões ditas sábias, ou seja, que pressu- balho, considerado uma arte, reunia nas
põem formação universitária, distin- corporações, onde se ‘se professava uma
guindo-se de occupations – o conjunto arte’, trabalhadores manuais e intelec-
dos empregos. Diferentemente, tan- tuais, artistas e artesãos. Na rígida hie-
to na língua francesa quanto na por- rarquia da sociedade medieval, a oposi-
tuguesa, o termo, sem o qualificativo ção se dava entre aqueles que pertenci-
liberal (ou libérales), designa tanto as am às corporações de ofícios
‘profissões sábias’ quanto o conjunto juramentados e os jornaleiros, que tra-
dos empregos reconhecidos na lingua- balhavam por dia. É só com a expansão

328
Profissão A

e a consolidação das universidades que mentada por tal tendência, a sociolo- C


se passa a fazer esta distinção entre as gia das ‘profissões’, até a década de
‘profissões’, derivadas das septem artes 1960, de forma geral, apresentava os D
liberales, aí ensinadas, e os ofícios, deriva- grupos profissionais como: a) comu-
dos das ‘artes mecânicas’ (Dubar, 1997). nidades homogêneas reunidas em tor-
E
Subjacente a essa oposição semân- no dos mesmos valores e de um mes-
F
tica está, de fato, uma oposição associ- mo código de ética; b) detentores de
ada a “um conjunto de distinções so- um poder assentado sobre um conhe-
G
cialmente estruturantes e classificado- cimento científico tomado como ab-
ras que se reproduziram através dos soluto e dado. H
séculos: cabeça/mão, intelectuais/ma- Foi a partir dessa década que boa
nuais, alto/baixo, nobre/vilão etc. parte da literatura sobre as ‘profissões’ I
(Dubar, 1997, p. 124). Ou seja, trata- começou a esclarecer o caráter históri-
se de uma disputa de poder na socie- co e social do processo de N
dade que se configura como uma luta hierarquização intra e entre grupos
política e ideológica pela distinção e profissionais. Essa literatura permite O
pela classificação. um novo enfoque, que busca, nas ‘pro-
Pode-se considerar também, que, fissões sábias’ e nas ocupações em ge- P
mais recentemente, o Taft Hartley Act, ral, o que têm de comum, e não tanto
promulgado em 1947, nos EUA, foi, sua diferenciação. As novas abordagens Q
em parte, responsável pela consolida- passam a entender a formação dos gru-
ção dessa diferenciação, ao distinguir, pos profissionais como uma disputa R
por lei, as ‘profissões’ das ‘meras ocu- pelo monopólio de mercado, inserida
pações’. Enquanto as últimas davam na divisão social do trabalho, mostran- S
apenas o direito organização sindical, do também que o caráter ‘mais’ ou
as primeiras contemplavam um esta- ‘menos científico’ do conhecimento T
tuto e o direito de organização em ‘as- monopolizado por cada grupo profis-
sociações profissionais’. sional não é dado, mas socialmente U
É a esse mesmo registro que se construído.
pode atribuir a distinção entre profis- O conhecimento formal e o pa-
V
sões e ocupações na sociologia das pro- pel legitimador que a ciência assume
A
fissões tradicional, de inspiração nas sociedades modernas definem a
funcionalista, fortemente referida nos relação de poder que se estabelece en-
A
estudos sobre a profissão médica. Ali- tre as esferas de criação, transmissão e

329
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

aplicação do conhecimento formal. A trabalho envolvia purgas e sangrias,


educação formal requerida para o em- além das cirurgias; além disso, tinham
prego em determinadas posições dis- originalmente como atividades a fabri-
tingue as profissões das ocupações. cação e comercialização de medica-
Este sistema de credenciamento fun- mentos. Esta divisão criava uma
ciona como mecanismo de reserva de hierarquização dentro do grupo, de
mercado de trabalho para os membros acordo com a maior ou menor ligação
da profissão e exclusão dos demais. com o conhecimento erudito ou com
Portanto, as diferentes formas de aces- a aplicação prática do conhecimento e
so/controle do saber produzem as di- com o comércio.
ferenças entre o profissional e o leigo O atual debate sobre o projeto de
e as hierarquias no interior do grupo lei, que ficou conhecido como “ato mé-
profissional (Freidson, 1998). dico (ver as indicações de sítios na
A história é rica em exemplos que internet que tratam do tema), o qual
ilustram essa construção social da le- pretende diferenciar as atribuições es-
gitimidade e hierarquia dos grupos pro- pecíficas dos médicos das de outros
fissionais. Na Idade Média, a linha que profissionais da saúde, põe em evidên-
divide trabalhadores mais ou menos cia o caráter histórico de que se reves-
reconhecidos deixa de um lado os sa- te a hierarquização entre os grupos
pateiros e alfaiates, pertencentes a profissionais da área.
corporações, e de outro seus corres- No processo de constituição das
pondentes femininos – costureiras e profissões, as instituições de formação,
chapeleiras. nos seus diferentes níveis e com seus
A história da constituição das pro- diferentes mecanismos, assumem im-
fissões de saúde é emblemática. Antes portante papel de legitimação, sendo
da unificação da profissão, os médicos o Estado um ator central na pac-
se dividiam entre os físicos, os cirurgi- tuação e regulação através, dentre ou-
ões e os apotecários. Os primeiros ti- tras ações, do reconhecimento dessas
nham seus estudos desenvolvidos nas instituições e das credenciais por ele
universidades e dedicavam-se exclusi- emitidas.
vamente às consultas e prescrição de No caso do Brasil, o Estado pós-
tratamentos; os segundos provinham 1930 investe na regulamentação das
das corporações de ofícios dos cirur- ocupações/profissões para, a partir
giões-barbeiros e açougueiros, e seu dela, definir aqueles que seriam sujei-

330
Profissão A

tos de direitos, constituindo o que San- ca julgamento de valor e de prestígio’. C


tos (1979) chama de “cidadania regu- O autor enfatiza a divisão do trabalho
lada. Para as ‘profissões regulamenta- como ponto de partida de qualquer D
das’, a posse do diploma era suficien- análise sociológica do trabalho huma-
te. Para as não-regulamentadas, era no, pois não se pode separar uma ati-
E
necessária a comprovação na prática da vidade do conjunto daquelas onde ela
F
competência, ou seja, “o ‘fechamento’ se insere e dos procedimentos de dis-
do mercado de prestação de serviços tribuição social.
G
profissionais era, e continua a ser, o Para sustentar seu argumento,
do credenciamento educacional, a pos- Hughes mostra que o profissional é H
se do diploma de nível superior (Coe- aquele que possui um ‘diploma’ (licence)
lho, 2003). O que definia que uma ‘pro- e um ‘mandato’ que lhe são atribuídos I
fissão’ fosse regulamentada era a pela sociedade. O diploma é a autori-
mobilização de seus praticantes, atra- zação legal para exercer atividades que N
vés de uma associação, da persuasão outros não podem, através da qual o
de setores da sociedade de sua impor- profissional é separado dos demais. O O
tância e da capacidade de lobby junto mandato é a obrigação legal de asse-
ao Congresso para a apresentação e a gurar uma função específica, através do P
aprovação de projeto de lei de regula- qual lhe é confiada uma missão. Esses
mentação. dois atributos conferem ao profissio- Q
É importante salientar que, pela nal um poder sagrado e constituem as
legislação do país, os cursos de gradu- bases da divisão moral do trabalho, que R
ação em medicina, em odontologia e implica uma separação entre funções
em psicologia, são os únicos, além dos essenciais (sagradas) e secundárias S
cursos jurídicos, cuja criação, pelo Mi- (profanas). Esse profissional detém um
nistério da Educação, deve ser subme- segredo, pelo qual deve se responsabi- T
tida manifestação do conselho da área, lizar. Mas a ciência é apenas uma falsa
o Conselho Nacional de Saúde. justificativa para assegurar o poder dos U
Desvelados esses processos, é profissionais e de suas associações –
possível ampliar o conceito de ‘profis- instituições destinadas a proteger o di-
V
são’, como o faz Hughes (1994), para ploma e a manter o mandato de seus
A
quem o termo ‘profissional’ deve ser membros. Embora as figuras do mé-
tomado como categoria da vida coti- dico e do advogado sejam
A
diana ‘que não é descritivo, mas impli- emblemáticas, é possível estender es-

331
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

sas características a um vasto leque de empíricos individuais que como


profissionais. O autor estende essa espécimes de algum conceito fixo e
mesma compreensão para aqueles cuja mais geral.
ocupação não adquiriu o status de ‘pro- No caminho aberto pelos autores,
fissão’, mostrando que estes também é possível verificar, mesmo dentre tra-
reivindicam e a eles são atribuídos uma balhadores com inserção precria no
licença e um mandato. Assim, estabe- mercado de trabalho, seu auto-reco-
lece-se uma analogia entre ‘ocupações’ nhecimento como profissionais, na
e ‘profissões’ e pode-se estender a no- medida em que se identificam com
ção de socialização profissional para as determinados grupos e que conside-
atividades assalariadas ‘comuns’. Esse ram seus saberes e seu trabalho úteis
tratamento dado ao conceito por socialmente (Franzoi, 2006).
Hughes e seus pares da assim chama-
da Escola de Chicago, ou intera-
cionistas, é um avanço em relação so- Para saber mais:
ciologia clássica das ‘profissões’.
Ainda assim, Dubar (1997) con- BARBOSA, M. L. de O. A sociologia
sidera que tal abordagem insuficiente das profissões: em tor no da
legitimidade de um objeto. Boletim
para compreender o processo de soci-
Informativo e Bibliográfico de Ciências
alização dos trabalhadores de forma Sociais, 36: 3-30, 2. sem. 1993.
geral, em especial, dos assalariados
BECKER, H. S. The nature of a
menos qualificados da grande empre-
profession. In: BECKER, H. S. (Ed.)
sa. O conceito de formas identitárias Sociological Work: method and substance.
formulado pelo autor, no diálogo com New Br unswick, NJ: Transaction
as teorias anteriores, permite ampliar Books, 1970.
a compreensão da relação dos indiví- CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão
duos, ou grupo de indivíduos, com o Social: uma crônica do salário. Petrópolis:
seu trabalho. Abre-se, assim, um pro- Vozes, 2003.
fícuo caminho de estudos sobre o COELHO, E. C. As profissões Imperiais:
tema, pois, como alerta Freidson medicina, engenharia e advocacia. Rio de
(1998), a complexidade do conceito Janeiro: Record, 2003.
não deve ser empecilho para tais DUBAR, C. A Socialização: construção
estudos, cuja estratégia de análise é to- das identidades sociais e profissionais.
mar as ocupações mais como casos Porto: Porto Editora, 1997.

332
Profissão A

DURKHEIM, É. Da Divisão do Trabalho MERTON, R. K. The Student-Physician: C


Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995. an introductory studies in the sociology of
FRANZOI, N. L. Entre a formação e o
medical education. Cambrigde: Harvard D
University, 1957.
trabalho: trajetórias e identidades
profissionais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, PARSONS, T. Ensayos de teoría sociologica. E
2006. Buenos Aires: Paidós, 1967.
FREIDSON, E. Renascimento do SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça. F
Profissionalismo: teoria, profecia e política. São Rio de Janeiro: Campus, 1979.
Paulo: Edusp, 1998. <http://www.portalmedico.org.br/ G
HUGUES, E. C. On work, Race and the atomedico> Acesso em: 27 ago. 2006.
Sociological Imagination. Chicago: The <http://www.portalcofen.gov.br> H
University of Chicago Press, 1994. Acesso em: 27 ago. 2006.
MACHADO, M. H. (Org.) Profissões de <http://www.sedes.org.br/Instituto> I
Saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Acesso em: 27 ago. 2006.
Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.
N

333
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

334
A

C
Q D
QUALIFICAÇÃO COMO RELAÇÃO SOCIAL E

F
Nadya de Araújo Guimarães
G
É amplo (e antigo) o debate A partir dos anos 70, esse debate
H
intelectual em torno da questão da ganhou novo colorido e intensidade.
‘qualificação’. Têm-se discutido Eles foram os anos da chamada
I
intensamente tanto a sua natureza ou ‘bravermania’, para tomar de emprés-
mudanças no tempo, como as fontes e timo a expressão ironicamente cunha-
N
formas de produzi-la, com crescente da por Littler e Salaman (1982).
interesse pelo nexo entre experiência e Braverman (1974) sustentou as suas O
conhecimentos obtidos e aperfeiçoados idéias numa releitura da concepção
no cotidiano de trabalho face àqueles marxiana. Com efeito, Marx entendia P
desenvolvidos na vida fora do trabalho. que o trabalho – enquanto não aliena-
Nos anos 60, a produção acadêmi- do – expressaria e desenvolveria a Q
ca foi pródiga em formulações relativas criatividade e a habilidade do homem
ao tema face aos sinais de uma nova re- por ser um processo de transforma- R
volução tecnológica. A controvérsia an- ção da natureza cujo resultado estaria
tepôs, por um lado, hipóteses sobre a previamente figurado pelo sujeito que, S
desumanização do trabalho, parcela- usando instrumentos, transformava
rizado em face de uma tecnologia seu objeto. Entretanto, diria ele, quan- T
alienante (Friedman & Naville, 1966) e, do a força de trabalho se constituiu
por outro, as expectativas sobre a emer- como mercadoria, o trabalhador (um U
gência de novas qualificações, passíveis proletário, juridicamente livre, mas pri-
de menor alienação e maior controle vado dos meios de produção) tornou- V
sobre o trabalho, em especial na nova se impotente por depender completa-
classe operária, afluente e potencialmente mente do capitalista para forjar a sua A
aristocrática (Mallet, 1963; Blauner, sobrevivência. A subordinação tecida
1964). pelas relações mercantis se consolida-
A

335
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ria na mesma medida em que a inova- assim, contaminada pela mesma


ção permanente dos meios técnicos de negatividade que caracterizava a sua
trabalho reduzia os operários a meros concepção do trabalho alienado. Nes-
apêndices das máquinas. Formal e re- se sentido, estudar a ‘qualificação’ equi-
almente subsumidos, no dizer de valia a pesquisar a sua perda progres-
Marx, os trabalhadores passariam a siva, uma vez que ela estaria reduzida a
viver o ato de produzir não mais um mero instrumento consciente do
como expressão criativa de ativida- controle gerencial despótico, tornado
des auto-suficientes, mas com a factível não somente pelos avanços
negatividade própria ao seu caráter tecnológicos, mas também pelas téc-
de trabalho alienado. nicas tayloristas da ‘administração ci-
Essa foi a pedra de toque do ar- entífica do trabalho’.
gumento de Braverman. Desafiava-o Já os críticos da abordagem
a necessidade de explicar como a pro- bravermaniana acreditavam que a
dução capitalista, calcada no trabalho transformação da capacidade de traba-
humano, podia controlar tal autodeter- lho em trabalho efetivo não se
minação subjetiva. Sua resposta: daria de maneira automática, pelo
cindindo a unidade entre trabalho in- mecanismo de coerção estrutural
telectual e trabalho manual, entre con- anteriormente descrito e fundado na
cepção e execução, do que resultaria a expropriação do saber, na desqua-
progressiva e irreversível expropriação lificação e degradação do trabalho. Ao
das habilidades do produtor direto. contrário, propugnavam que esse pro-
Desse modo, aquilo que a seu ver cesso seria politicamente produzido
se constituía como fim último da ativi- por meio de aparatos que regulariam
dade do capitalista – controlar o tra- as relações sociais tecidas na produção
balho vivo – realizava-se mediante a (Burawoy, 1978, 1983). Tecnologia,
expropriação do saber operário, na es- organização, decisões de investimento
teira do processo de ‘polarização da e aparatos de produção tornam-se, eles
qualificação’, que desqualificava a am- próprios, objetos de luta, politizando-
pla massa dos trabalhadores, ao mes- se a análise do processo de trabalho.
mo tempo em que sobrequalificava o Assim fazendo, os críticos compreen-
pequeno contingente de técnicos su- diam que as estratégias que assegura-
periores e os quadros gerenciais. A pro- vam a realização do valor (como as es-
blemática da ‘qualificação’ aparecia, tratégias de mercados, por exemplo)

336
Qualificação como Relação Social A

poderiam ser tão ou mais importantes dispusessem dessas mesmas credenci- C


do que as que asseguravam a sua ex- ais (Wright, 1985). Importaria, assim,
tração (Littler, 1990). Tornava-se, des- identificar e explorar esses ativos de D
se modo, muito difícil seguir susten- ‘propriedades’ individuais que estariam
tando a pertinência exclusiva dessas na base de diferenças constitutivas de
E
últimas, tanto quanto o seu fundamen- grupos sociais e de hierarquias de po-
F
to necessário na expropriação do sa- der; eles seriam importantes focos de
ber operário. Abria-se, assim, um novo organização das relações (e desigualda-
G
campo para as discussões sobre o nexo des) sociais na empresa. Isso faria da
entre trabalho e ‘qualificação’; seu fun- ‘qualificação’ uma arena política onde H
damento deveria ser buscado nas rela- se disputariam credenciais que conferi-
ções políticas entre saberes e poderes. riam reconhecimento e assegurariam o I
Tais relações refletiriam as experiênci- acesso e a mobilidade.
as e qualidades que os sujeitos trariam Por outro lado, no início dos anos N
consigo como um capital que lhes se- 80, outros estudiosos, como Piore e
ria próprio e com o qual atuariam na Sabel (1984), apontaram, também na O
barganha por sua inserção nos siste- contramão do argumento braver-
mas de classificação que organizariam maniano, que a crise econômica que se P
as relações na firma. delineara desde os anos 70 representa-
Essa tradição colocou uma ques- va não apenas a falência de um Q
tão nova e instigante, deixando entre- modelo de crescimento industrial fun-
ver a influência do pensamento dado na produção em massa, mas o R
weberiano: as habilidades e qualificações prenúncio de que a sua superação
dos indivíduos poderiam ser conside- estaria vinculada à adoção de um novo S
radas como ‘ativos’ (assets), mobilizados paradigma tecnológico e organiza-
nas relações econômicas de dominação cional. Tal paradigma estaria muito dis- T
e/ou de exploração. Nesse sentido, pes- tante das rígidas linhas de produção em
soas com altos níveis de ‘qualificação’ massa com seus exércitos de desinte- U
aufeririam maiores rendimentos não ressados trabalhadores pouco qualifi-
apenas por terem ‘qualificação’ mais ele- cados, usados para produzir bens pa-
V
vada, mas pela manutenção dos diferen- dronizados. Ele seria, ao contrário, ca-
A
ciais de ‘qualificação’ que as beneficia- racterizado por sistemas flexíveis de
vam, estabelecendo uma forma parti- máquinas, voltadas para múltiplos pro-
A
cular de relação social com os que não pósitos, movidas por trabalhadores

337
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

polivalentes. Nesse novo cenário, os as- se a um conjunto de características que


pectos cognitivos ombreariam em im- se expressam nas rotinas de trabalho.
portância com os aspectos atitudinais. Mas ela pode também estar referida ao
O próprio conceito de ‘qualificação’, tra- grau de autonomia do trabalhador, sen-
dicionalmente associado aos compo- do inversamente proporcional ao grau
nentes cognitivos, passaria a ser desafi- de controle gerencial. Pode ainda ser
ado pela abordagem em termos de conceituada como base para a atribui-
‘competências’, que pretendia ultrapas- ção ou aquisição de posições em hie-
sar o mero debate sobre o ‘saber fazer’ rarquias de status.
e sua aquisição (Zarifian, 2001). É certo que a ‘qualificação’ foi ini-
Mas, qual a amplitude dessa nova cialmente abordada (até por facilidade
tendência? Significaria a chegada à ante- operacional) a partir do conjunto de
sala das formas do trabalho que reco- características das rotinas de trabalho.
brariam a utopia da politecnia e da Expressava-se empiricamente em ter-
omnilateralidade? Os estudos desenvol- mos do tempo de aprendizagem no
vidos nos anos 90 em diante mostra- trabalho ou do tipo de conhecimento
ram o quão diversos poderiam ser – do que estaria na base das tarefas
ponto de vista da ‘qualificação’ – os efei- definidoras de uma dada ocupação.
tos da inserção do trabalhador em dife- Mas, sempre quando tomada isolada-
rentes pontos das cadeias produtivas e mente e aprisionada numa visão
de valor, crescentemente globalizadas objetivista, essa concepção correu o
(Gereffi & Korzeniewicz, 1994; Gereffi risco da reificação ao materializar a
& Sturgeon, 2004); em seus elos mais ‘qualificação’ num certo equipamento
longínquos, elas tendiam a reproduzir e posto e, assim fazendo, reduzir as ha-
as antigas e supostamente ultrapassadas bilidades do trabalhador a um mero
formas de organização do trabalho pau- ‘requerimento da tecnologia’, esque-
tadas na desqualificação dos trabalha- cendo que mesmo esta é fruto de uma
dores e na precarização das suas condi- construção sociocultural complexa.
ções de trabalho. Entretanto, há que reconhecer que
A multiplicidade de ângulos sus- as organizações operam com represen-
citados até aqui revela a rica diversida- tações sistemáticas e formalizadas das
de de dimensões que está contempla- tarefas e das habilidades requeridas
da na agenda de análise da ‘qualifica- daqueles que pretende recrutar. Por
ção’. Vimos como esta pode associar- certo, é variável o grau de universalismo

338
Qualificação como Relação Social A

com que essas regras são aplicadas, seja a temática da ‘qualificação’ das operá- C
no recrutamento, seja na supervisão. rias, chamaram a atenção para o fato
Ademais, nem sempre os sistemas de de que suas posições geralmente infe- D
classificação que norteiam o acesso e a riores nas hierarquias organizacionais
permanência nos postos de trabalho não resultavam de uma ‘qualificação’
E
estão fundados em critérios baseados precária ou inadequada, ou da ausên-
F
em características de tipo aquisitivo, cia de motivação individual para obtê-
como o grau de escolariza-ção ou a la e credenciar-se à ascensão funcio-
G
experiência profissional. Não raro, eles nal. Embora as competências e habili-
refletem o peso de características que dades dessas mulheres parecessem ade- H
os sociólogos denominam ‘adscritas’ quadas à execução de suas tarefas, elas
(como o sexo biológico ou a cor da não representavam uma ‘qualificação’. I
pele), as quais também fundamentam Isso porque tais qualidades não havi-
formas de classificação social com efei- am sido obtidas através dos canais so- N
tos de inclusão ou de exclusão cialmente reconhecidos de formação
(Kergoat, 1982; Hirata, 2002). Diante da mão-de-obra, mas através da expe- O
desse fenômeno, cabe ter em conta tan- riência de trabalho nas esferas ditas
to o que inicialmente se denominara ‘reprodutivas’. Isso tornava P
como a ‘qualificação do posto de traba- ‘desqualificadas’ as suas portadoras, já
lho’ quanto uma outra dimensão igual- que sua habilitação era considerada Q
mente relevante, qual seja a ‘qualifica- como ‘inata’. Mais ainda, e com fre-
ção do trabalhador’. Esta última reme- qüência, nem mesmo as próprias tra- R
te a atenção do analista para a forma- balhadoras se reconheciam como qua-
ção e a experiência mobilizadas pelo in- lificadas (Kergoat, 1982). Isso nos re- S
divíduo no momento de executar uma mete ao tema da chamada ‘qualifica-
tarefa. ‘Qualificação do posto de traba- ção tácita’ (Wood & Jones, 1984), fru- T
lho’ e ‘qualificação do trabalhador’ têm to da vivência concreta de um indiví-
fontes distintas e, a depender do reco- duo trabalhador. Baseada na experiên- U
nhecimento social que lhes seja confe- cia adquirida numa situação específi-
rido, podem (ou não) credenciar quem ca, ela é de difícil transmissão através
V
as possua. da linguagem formalizada sendo, ao
A
Assim, por exemplo, os estudos mesmo tempo, insubstituível, mesmo
sobre relações sociais de gênero nos quando as novas tecnologias informa-
A
cotidianos de trabalho, ao enfocarem tizadas buscaram internalizar no equi-

339
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

pamento a memória da experiência sin- BRAVERMAN, H. Labor and Monopoly


gular do trabalhador. Capital. New York: Monthly Review
Press, 1974.
Finalizando, poder-se-ia dizer que
a ‘qualificação’ é, a um só tempo, re- BURAWOY, M. Toward a marxist theory
of the labor process: braverman and
sultado e processo. Como resultado, ela beyond. Politics and Society, 8(3/4): 247-312,
expressa as qualidades, ou credenciais 1978.
de que os indivíduos são possuidores. BURAWOY, M. Between the labor
Mas não podemos esquecer que essa process and the state: the changing face
aquisição é socialmente construída: ela of factory regimes under advanced
resulta de mecanismos e procedimen- capitalism. American Sociological Review, 48:
587-605, oct., 1983.
tos sociais de delimitação, reconheci-
mento e classificação de campos, FRIEDMAN, G. & NAVILLE, P.
Tratado de Sociología del Trabajo. México:
irredutíveis em sua riqueza empírica à Fondo de Cultura Económica, 1966.
mera escolarização alcançada ou aos
GALLIE, D. In Search of the New Working
treinamentos em serviço realizados. Class. Londres: Cambridge University
Assim, os trabalhadores são conside- Press, 1978.
rados qualificados (ou desqua- GEREFFI, G. & KORZENIEWICZ,
lificados) em função da existência (ou M. (Eds.) Commodity Chains and Global
não) de regras deliberadas de restri- Capitalism. Westport, Conn.: Greenwood
ção à ocupação, socialmente produ- Press, 1994.
zidas, partilhadas e barganhadas. Es- GEREFFI, G. & STURGEON, T. J.
sas regras devem ser cuidadosamente Globalization, Employment, and Economic
Development: a briefing paper. Cambridge:
buscadas nos discursos e práticas dos
Massachusetts Institute of Technology-
escalões organizacionais, das institui- IPC Working Paper Series. jun., 2004.
ções sindicais e dos próprios traba-
HIRATA, H. Nova Divisão do Trabalho?
lhadores individuais. São Paulo: Boitempo, 2002.
KERGOAT, D. Les Ouvrières. Paris: Le
Sycomore, 1982.
Para saber mais: LITTLER, C. The labour process debate:
a theoretical review 1974-88. In:
BLAUNER, R. Alienation and Freedom. KNIGHTS, D. & WILLMOTT, H.
Chicago: University of Chicago Press, (Eds.) Labour Process Theory. London: The
1964. Macmillan Press, 1990.

340
Qualificação como Relação Social A

LITTLER, C. & SALAMAN, G. WOOD, S. & JONES, B. Qualifications C


Braver mania and beyond: recent tacites, division du travail et nouvelles
theories of the labour process. Sociology, technologies. Sociologie du Travail, 4: 407- D
16(2): 215-269, 1982. 421, 1984.
MALLET, S. La Nouvelle Classe Ouvrière. WRIGHT, E. Classes. Londres: Verso, E
Paris: Éditions du Seuil, 1963. 1985.
PIORE, M. J. & SABEL, C. F. The Second ZARIFIAN, P. Objetivo Competência. São F
Industrial Divide. New York: Basic Paulo: Atlas, 2001.
Books, 1984. G

341
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

342
A

C
R D
RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE E

F
Monica Vieira
G
O conceito de ‘recursos huma- O processo de conforma- H
nos’ é próprio da área de administra-
ção da área de Recursos
ção e remete à racionalidade gerencial I
hegemônica que reduz o trabalhador à Humanos em Saúde
condição de recurso, restringindo-o a N
uma dimensão funcional. No entanto, A noção de RHS pode ser, ini-
na área da saúde, a questão dos ‘recur- cialmente, associada à década de O
sos humanos’ envolve tudo que se re- 1950, com análises sobre a forma-
fere aos trabalhadores da saúde em sua ção médica estimuladas pela Orga- P
relação com o processo histórico de nização Pan-Americana da Saúde
(Opas). Nos anos 60 iniciaram-se Q
construção do Sistema Único de Saú-
de (SUS – Mendes Gonçalves, 1993), estudos para identificar a força de
R
configurando, assim, um dos seus trabalho no setor e apenas na segun-
da metade da década seguinte teve
subsistemas. Nesse sentido, esse é tan- S
to um campo de estudo como de in- início o progressivo processo de
tervenção. A área de ‘Recursos Huma- institucionalização da área. Nos anos T
nos em Saúde’ (RHS) abarca múltiplas 70 destaca-se o Programa de Prepa-
dimensões: composição e distribuição ração Estratégica de Pessoal de Saú- U
da força de trabalho, formação, quali- de (PPREPS), que teve como pro-
ficação profissional, mercado de tra- pósitos centrais capacitar pessoal de V
balho, organização do trabalho, nível médio e elementar e apoiar a
regulação do exercício profissional, criação de sistemas de desenvolvi- A
relações de trabalho, além da tradicio- mento de recursos humanos para a
nal administração de pessoal. saúde nos estados (Paim, 1994).
A

343
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Assim, desde a década de 1970 a país, a complexidade da área de RHS


Opas buscava definir linhas para for- ganha visibilidade, desencadeando um
mulação de propostas de educação processo particular de análise de suas
contínua para as equipes de saúde, con- temáticas próprias.
siderando a necessidade de que os tra- No início da Reforma Sanitária, as
balhadores do setor fossem capazes de questões mais sistematizadas da área
analisar seu contexto de trabalho, iden- de RHS restringiam-se à temática da
tificar problemas, promover a partici- formação de pessoal. As incursões ana-
pação e tomar decisões no processo líticas acerca de outros aspectos, como
de trabalho. Dessa forma, constituí- planejamento da força de trabalho,
ram-se, nos anos 80, grupos de traba- mercado de trabalho e regulação do
lho nos países das Américas com o exercício profissional, eram apenas
objetivo de desenvolver novas aborda- pontuais.
gens em face do problema de Esses primeiros estudos foram res-
capacitação profissional. O Programa ponsáveis pela denominação do que,
de Desenvolvimento de RHS da Opas posteriormente, veio a se chamar de
assumiu o papel de dinamizar esses RHS. Mendes Gonçalves (1993)
esforços que buscavam viabilizar a chama a atenção para o caráter fragmen-
transformação das práticas de saúde tado, limitado teoricamente e com in-
nos serviços, a partir da modificação terpretações pouco explicativas dessa
nas práticas educativas. primeira ‘maré’ de estudos sobre a área.
No período anterior à formulação Em 1986 foi organizada a Primei-
do SUS, a área de RHS teve pequena ra Conferência Nacional de Recursos
relevância, aparecendo como questão Humanos para a Saúde, quando se de-
de menor repercussão no sistema de fine uma agenda específica sobre o
saúde nacional. Passa a adquirir maior tema, a partir de análises dos princi-
nitidez com a VIII Conferência Naci- pais aspectos identificados na implan-
onal de Saúde, desen-cadeada pela Re- tação do SUS. Tais aspectos foram, em
forma Sanitária brasileira. Pode-se, in- grande parte, pautados pelas reivindi-
clusive, dizer que a estruturação da área cações dos trabalhadores da saúde,
de RHS seguiu as recomendações da considerando-se a reorganização de
VIII Conferência Nacional de Saúde. suas práticas profissionais e de suas
Naquele momento, que marcou a bases jurídico-legais. Entre essas ques-
reformulação das políticas de saúde no tões destacavam-se a falta de incenti-

344
Recursos Humanos em Saúde A

vos para a qualificação profissional, a a emergência de um trabalho C


própria visão burocrática da área de revalorizado, ou seja, com maiores ní-
recursos humanos, a baixa remunera- veis de autonomia e participação. No D
ção dos trabalhadores, as desfavoráveis que se refere ao SUS, nesse cenário, co-
condições de trabalho e a ausência de incidiram o aprofundamento da
E
uma política de recursos humanos que descentralização e a expansão das equi-
F
contemplasse um plano de cargos, car- pes de saúde, especialmente aquelas
reira e salários no sentido de favorecer voltadas para a atenção básica. Esses
G
a implantação do SUS. aspectos acabaram por gerar
A Segunda Conferência Nacional de enfrentamentos para a gestão munici- H
Recursos Humanos para a Saúde, pal que ainda se defrontou com a ho-
realizada em 1993, mostrou a exis- mologação da Lei de Responsabilida- I
tência de uma contradição na área de Fiscal, limitando os gastos com in-
de RHS, que, embora apontada
como estratégica nos documentos
corporação de força de trabalho. N
de saúde pública, vinha sendo mui- O reflexo dessa política pode ser
to pouco valorizada, uma vez que traduzido pela precarização das relações O
sempre mencionada de forma su- de trabalho, falta de regulação do siste-
perficial quando o assunto em pau-
ta era os aspectos que fundamen-
ma de ingresso nos serviços, alta P
talmente afetavam as políticas pú- rotatividade nos postos de trabalho e
blicas de saúde no país. ausência de uma política salarial e de car- Q
reira que acabam por comprometer a
profissionalização dos trabalhadores. R
Sobre a gestão do trabalho Numa sistematização das produ-
no SUS ções teóricas sobre RHS, Brito (2002) S
e Peduzzi e Schraiber (2000) aponta-
A dimensão da gestão do traba- ram o caráter interdisciplinar da área e T
lho em saúde que integra o campo de a necessidade de promover um novo
RHS começa a ganhar visibilidade na conceito de RHS. Esses autores iden- U
segunda metade da década de 1990, no tificaram a necessidade de análises acer-
contexto de flexibilização das relações ca das dimensões antropológicas des-
V
de trabalho. Desenha-se um cenário ses trabalhadores, de questões sobre
paradoxal, no qual os níveis crescen-
A
qualidade e produtividade no trabalho
tes de flexibilização das relações de tra- e da constr ução de uma teoria
A
balho convivem com discursos sobre própria do trabalho em organizações

345
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de saúde. Também destacaram a lacuna da força de trabalho em saúde no país.


de abordagens alternativas de gestão do As questões do trabalho retornam
trabalho, estudos acerca da dimensão levando a uma reflexão sobre que mo-
subjetiva dos trabalhadores e de alterna- delo de Estado deve orientar as relações
tivas teórico-metodológicas que susten- com a sociedade. As recentes
tem a complexidade do trabalho no co- diretrizes apontadas pela SGTES visam:
tidiano dessas organizações. regular a mobilidade profissional, valo-
rizar a força de trabalho e gerar satisfa-
ção com o trabalho. Busca-se, ainda,
Momento atual: um uma melhor compreensão de processo
redirecionamento? de trabalho, a implementação da edu-
cação permanente, o reconhecimento
Nos últimos tempos, sujeitos po- das mesas de negociação como espaço
líticos relacionados com a questão dos democrático de equacionamento dos
RHS (Abrasco, Conass, CNS) têm si- conflitos nas relações de trabalho além
nalizado a falta de priorização dessa da instituição de processos de avaliação
temática, especialmente nos processos de desempenho com participação dos
de reforma do Estado, desencadeados trabalhadores.
na década de 1990. Identifica-se, em Parece que o momento atual apon-
documentos recentes, que a área vem ta para um possível deslocamento da tra-
sendo considerada como a mais com- dicional área de RHS em direção a uma
plexa do SUS, recolocando a necessi- concepção mais ampliada e necessaria-
dade de um resgate da gestão do tra- mente integrada acerca da gestão e qua-
balho em saúde como política pública lificação do trabalho no SUS. Esse pro-
e igualmente a necessidade de valori- cesso, ainda que visível apenas na esfera
zação profissional e da regulação das federal, deve transcender a alteração na
relações de trabalho. denominação da estrutura ministerial res-
É assim que, em 2002, com a cri- ponsável pela área, associando-se à bus-
ação da Secretaria da Gestão do Tra- ca de alternativas teórico-metodológicas
balho e da Educação na Saúde que possam sustentar as reorientações
(SGTES), no Ministério da Saúde, demandadas.
explicita-se o papel do gestor federal Assim, as questões priorizadas na
quanto às políticas de formação, de- atual agenda da área de gestão do traba-
senvolvimento, planejamento e gestão lho e da educação no SUS, como o pla-

346
Recursos Humanos em Saúde A

no de cargos, carreiras e salários, a BRITO, P. Presentación – El mundo del C


desprecarização do trabalho, a mesa de trabajo en el ámbito de la salud. Revista
negociação permanente, a estratégia
Latinoamericana de Estudios del Trabajo, D
Ano 8, 15: 5-14, 2002.
de educação permanente, a avaliação de
desempenho e os incentivos à produti-
MENDES GONÇALVES, R. B. A E
Investigação sobre Recursos Humanos em
vidade, merecem ser contempladas am- Saúde. Brasília: Ministério da Saúde/
Coordenação Geral de
F
pliando-se os enquadramentos tradici-
onalmente utilizados pela área de ‘Re- Desenvolvimento de Recursos
Humanos para o SUS, 1993. (Relatório G
cursos Humanos’.
de seminário)
PAIM, J. S. Recursos Humanos em Saúde no H
Brasil: problemas crônicos e desafios agudos.
Para saber mais:
São Paulo: Faculdade de Saúde Pública/ I
USP, 1994.
BRASIL/Ministério da Saúde. Conselho
Nacional de Saúde. Desenvolvimento do PEDUZZI, M. & SCHRAIBER, L. B. N
A Pesquisa na Área de Recursos Humanos
sistema Único de Saúde no Brasil: avanços,
desafios e reafirmação de princípios e diretrizes.
em Saúde no Brasil. In: Workshop O
Mapeamento de Projetos de Pesquisa e
Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
Intervenção sobre Recursos Humanos
BRASIL/Ministério da Saúde. Secretaria em saúde, no âmbito nacional. São P
de Gestão do Trabalho e da Educação Paulo, maio 2000. (Mimeo.)
na Saúde. Departamento de Gestão e da PIERANTONI, C. R. Reformas da Saúde Q
Regulação do Trabalho em Saúde. Gestão e Recursos Humanos: velhos problemas x novos
do Trabalho e da Regulação Profissional em desafios, 2000. Tese de Doutorado em R
Saúde: agenda positiva. Brasília: Ministério Saúde Coletiva, Rio de Janeiro: Instituto
da Saúde, 2004. de Medicina Social da Uerj.
S

347
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA EM SAÚDE

Emerson Elias Merhy


Túlio Batista Franco

A ‘reestruturação produtiva’ é a fissão, que têm atitudes de escutar o que


resultante de mudanças no modo de o usuário diz bem diferentes. Eles dis-
produzir o cuidado, geradas a partir de putam lá no cotidiano maneiras
inovações nos sistemas produtivos da distintas de fazer saúde.
saúde, que impactam o modo de fabri- Como conseqüência dessas dispu-
car os produtos da saúde, e na sua for- tas, o modelo tecnológico de produção
ma de assistir e cuidar das pessoas e da saúde pode caracterizar-se a partir
dos coletivos populacionais. de diversos dispositivos de mudança no
Nem sempre, novas formas de modo de produzir saúde, que não ne-
organizar o processo de trabalho re- cessariamente alteram o seu núcleo
sultam em modos radicalmente novos tecnológico. A mudança que provocam
de produzir o cuidado, que sejam ca- não é tão profunda no sentido de des-
pazes de impactar os processos de pro- viar a lógica da produção de saúde, mo-
dução da saúde. As determinações para dificando a hegemonia centrada no tra-
que uma ‘reestruturação produtiva’ se balho morto (os mais comuns, hoje,
realize são diversas. Os vários sujeitos, como aqueles que estão voltados para
que estão ligados à área da saúde, dis- a produção de uma prática centrada na
putam, nos lugares onde se decide so- produção profissional de procedimen-
bre a organização da política e dos ser- tos duros, dependentes de equipamen-
viços de saúde, seus interesses distin- tos e máquinas, e que têm-se tornado
tos, como os: corporativos, burocráti- um fim em si mesmo) para uma outra
cos, políticos e de mercado. Mas, no centrada no trabalho vivo em ato, que
dia a dia dos serviços de saúde, tam- pode direcionar-se pela centralidade nos
bém há uma disputa importante pelo atos de produção de vínculos, acolhi-
modo de cuidar de indivíduos e de po- mento, atos de fala, em função da fina-
pulações; por exemplo, em uma mes- lidade de cuidar do outro e responder
ma equipe de saúde pode-se encontrar ao mundo acerca de suas necessidades
trabalhadores de saúde, da mesma pro- de saúde.

348
Reestruturação Produtiva em Saúde A

Por exemplo, a incorporação de Nesses dois exemplos citados, C


novas tecnologias no trabalho em saú- podem-se observar mudanças nos pro-
de na assistência hospitalar pode alte- cessos de trabalho e na forma de pro- D
rar o modo de produção do cuidado, duzir o cuidado, mas não a ponto de
e, assim, caracterizar uma forma de alterar a lógica produtiva e de formar
E
‘reestruturação produtiva’, pois altera uma outra maneira de construção do
F
os processos de trabalho e impacto no cuidado.
modo de realizar atos de saúde, cons- As mudanças dos processos
G
truindo a assistência. No entanto, o produtivos na saúde podem ser
núcleo tecnológico dos processos de verificadas na incorporação de novas H
trabalho, criadores dos produtos, pode tecnologias de cuidar, nos processos
permanecer como antes, ‘trabalho produtivos, nas outras maneiras de I
morto centrado’, com grande captura organizar o processo de trabalho e, até
do ‘trabalho vivo em ato’. Em relação mesmo, nas mudanças das atitudes dos N
ao Programa Saúde da Família, pode- profissionais no modo de cuidar do
se assistir ao mesmo fenômeno con- outro. Isto é, processos de subjetivação O
servador, quando este não consegue dos profissionais, que mexam nos seus
alterar os processos de trabalho modos de enxergar e de valorizar a vida P
centrados na produção de procedimen- do outro, também podem determinar
tos médicos, estruturados a partir dos uma certa ‘reestruturação produtiva’, Q
seus atos prescritivos – buscando desde que impactem o modo de
como finalidade mais a produção do produzir o cuidado. A ‘reestruturação R
procedimento do que qualquer outra produtiva’, como é um processo,
coisa e comandando as ações dos ou- inclusive que acontece no cotidiano S
tros trabalhadores. Desse modo, ele do fazer a produção da
muda a forma de produzir saúde a par- saúde, pode ocor rer de for ma T
tir dos grupos familiares e da referên- desigual e em diversos graus de
cia no território, mas o núcleo mudança, no interior dos processos U
tecnológico onde se processa o cuida- de trabalho.
do continua centrado em um grande O debate em torno das
V
predomínio do trabalho morto, que tecnologias de trabalho em saúde teve
A
opera basicamente a construção de um como uma das primeiras referências a
modo de cuidar, focado na produção obra de Mendes Gonçalves (1994), que
A
dos procedimentos em si. as define como “tecnologias materiais”

349
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

(máquinas e instr umentos) e “micropolítica do trabalho vivo em


“tecnologias não materiais” (conheci- ato”. Trata-se sobretudo do reconhe-
mento técnico). Mendes Gonçalves su- cimento de que o espaço onde se pro-
gere, para nossa interpretação, que no duz saúde é um lugar onde se realizam
trabalho em saúde há uma micro-polí- também os desejos e a
tica, pois os saberes tecnológicos intersubjetividade, que estruturam a
(como a clínica e a epidemiologia) po- ação dos sujeitos trabalhador e usuá-
dem adquirir no mesmo serviço, de- rio, individual e coletivo. É onde o tipo
pendendo do trabalhador e da organi- de trabalhador e de coletivos de traba-
zação do modelo assistencial onde lho fazem a diferença, pois fazem de
atua, formatos tão diferentes que o suas liberdades micropolíticas formas
modo de fazer o cuidado, no mesmo de ação ético-político direcionadas. E,
serviço, pode ser o oposto do outro. assim, conforme compreendem o
Nesta direção, podemos lançar mão de que é o outro, modificam seus mo-
outras categorias para designar e com- dos tecnológicos de construir o cui-
preender as tecnologias de trabalho: as dado, intervindo nas formas de uso
centradas em máquinas e instrumen- de suas ferramentas conhecimento
tos, chamadas de ‘tecnologias duras’; e equipamentos.
as do conhecimento técnico (saberes), É possível haver, portanto, várias
‘tecnologias leve-duras’; e as das rela- formas de ‘reestruturação produtiva’,
ções, “tecnologias leves”. Todas estas sempre centradas na idéia de que há
dimensões das tecnologias operam o mudanças nos processos de trabalho e
‘trabalho morto’ e o ‘trabalho vivo em no modo de produzir o cuidado. Mas,
ato’, compondo assim os distintos pro- se estas mudanças conseguem de fato
cessos de produção da assistência alterar o núcleo tecnológico do cuida-
à saúde, que definem o núcleo do, criando não só novos modos de
tecnológico do trabalho. produzir coisas antigas, mas produzin-
Verifica-se que, para além das do novos produtos, entendemos que a
máquinas e do conhecimento técnico, ‘reestruturação produtiva’ alçou ao
há algo nuclear no trabalho em saúde, patamar de uma ‘transição tecnológica’.
que são as relações entre os sujeitos e Este é o caso de um cuidado centrado
o agir cotidiano destes. Essa perma- nas tecnologias leves, que passam a
nente atuação no cenário de produção organizar um modo de produção
da saúde configura, então, a centrado no trabalho vivo em ato e

350
Reestruturação Produtiva em Saúde A

focado no mundo das necessidades do de fazer a gestão dos processos de cui- C


usuário, como determinação e decisão dar, mas que não estão olhando para
dos sujeitos que o operam (trabalha- o mundo das necessidades de saúde, D
dor e usuário), conformando um modo individuais e coletivas, porque a sua
de produção totalmente novo. Por isso, finalidade é gerar processos produti-
E
a noção de ‘transição tecnológica’ não vos de cuidar que controlem a incor-
F
é obrigatoriamente um conceito do poração de tecnologias duras, visan-
bem, pois há situações de ‘transição do à obtenção de ganhos para o capi-
G
tecnológica’, que não levam em conta tal financeiro.
o mundo do usuário como seu objeto Essa situação nova vem criando H
principal. É o que ocorreu no começo um outro pólo de disputa no campo
do século XX, quando houve uma da saúde entre os grupos de interes- I
‘transição tecnológica’ para a medici- ses do capital vinculado ao complexo
na das especialidades, que continuou médico-industrial e os que compõem N
o procedimento de lógica centrada, em o complexo financeiro da saúde. É
que o benefício do usuário era conse- uma disputa entre interesses capita- O
qüente e não nuclear. listas distintos.
A ‘transição tecnológica’ traz em Hoje, é conhecido como atenção P
si a idéia de que há mudanças de senti- gerenciada (ou managed care) esse
do na produção do cuidado; de que há, modo como o capital financeiro na Q
de fato, uma nova forma de conceber saúde vem intervindo para realizar o
o próprio objeto e a finalidade do cui- seu controle e domínio do território R
dado. Alterando de modo significativo de construção do cuidado em saúde,
a lógica de produção do cuidado, muda contrapondo-se de um lado ao inte- S
o núcleo tecnológico. resse do modelo médico-hegemônico
Vale chamar a atenção para o fato e do outro ao modelo centrado na T
de que, hoje, há uma disputa por uma defesa da vida, individual e coletiva,
transição tecnológica na saúde que é para o qual a vida é em si o patrimônio U
do interesse do capital financeiro, apli- de investimento social.
cado no campo da saúde, que também Por isso, é interessante olhar com
V
procura superar a lógica procedimen- atenção o conjunto desses processos
A
to, dando ênfase na valorização das de reestruturação produtiva e de tran-
tecnologias leves, como as relacionais sição tecnológica, pois os grupos do
A
de cuidado e as vinculadas às formas capital financeiro vêm-se utilizando

351
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

intensamente de dispositivos muito consumidores de um produto qual-


semelhantes aos do modelo em defesa quer, como se não tratasse da área da
da vida para provocar uma saúde e de algo que pode interferir na
‘reestruturação produtiva’, na qual são qualidade do bem que temos – a nos-
acrescentados processos de subje- sa vida e a capacidade de vivê-la.
tivação, que buscam um modo de agir
no mundo do trabalho em saúde – tam-
bém com predomínio do trabalho vivo Para saber mais:
em ato e das tecnologias leves no pro-
cesso produtivo de cuidar e na gestão AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE/
das linhas de cuidado – voltando-se, MS-BRASIL. Duas Faces da Mesma Moeda:
microrregulação e modelos assistenciais na saúde
entretanto, para a produção de capital
suplementar. Rio de Janeiro: Ministério da
e não de mais vida. Assim, este movi- Saúde, 2005. (Regulação e Saúde 4)
mento não é na direção do interesse
FRANCO, T. B. Processos de Trabalho e
do usuário, mas na do próprio mer-
Transição Tecnológica na Saúde, 2003. Tese
cado da saúde. Isso faz com que apa- de Doutorado, São Paulo: Unicamp.
reça no mercado um
MENDES GONÇALVES, R. B.
discurso em defesa da produção da Tecnologia e Organização Social das Práticas
saúde, mas de modo instrumental, de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.
pois o objetivo central é o lucro com MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do
o cuidado de grupos populacionais trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.
que não fiquem doentes ou não con- PIRES, D. Reestruturação Produtiva e
sumam atos de saúde e que no máxi- Trabalho em Saúde no Brasil. São Paulo:
mo são reconhecidos como simples Editora Annablume, 1998.

352
A

C
S D
SAÚDE E

F
Madel Therezinha Luz
G

Origens etimológicas do Em relação aos humanos, o esta- H


termo do de ‘saúde’, romano ou grego, im-
plicaria um conjunto de práticas e há- I
Saúde, em português, deriva de bitos harmoniosos abrangendo todas
salude, vocábulo do século XIII (1204), as esferas da existência: o comer, o N
em espanhol salud (século XI), em ita- beber, o vestir, os hábitos sexuais e
liano salute, e vem do latim salus (salutis), morais, políticos e religiosos. Implica- O
com o significado de salvação, conser- ria virtudes específicas ligadas a todas
essas esferas, e também em vícios, que P
vação da vida, cura, bem-estar. O étimo
francês santé, do século XI, advém de poderiam degradar o estado de harmo-
nia, ensejando o adoecimento e, no li- Q
sanitas (sanitatis), designando no latim
mite, a morte.
sanus: “são, o que está com saúde, apro- R
ximando-se mais da concepão grega de
A virtude capital ligada à ‘saúde’
‘higiene’, ligada deusa Hygea. Em seu
seria a prudência, que não era certa-
S
plural de origem idiomática, o termo
mente, como na cultura contemporâ-
‘saúde’ designa, portanto, uma afirma- T
nea, um vigilante cuidado ligado ao
ção positiva da vida e um modo de exis-
medo de adoecer, mas um agir equili-
tir harmônico, não incluindo em seu U
brado, como um ‘caminho do meio’,
horizonte o universo da doença. Pode- que evitaria os extremos, nocivos ao
se dizer, deste ponto de vista, que ‘saú- V
equilíbrio e, conseqüentemente, ao es-
de’ é, em sua origem etimológica, um tado de ‘saúde’ do indivíduo, dos gru-
A
‘estado positivo do viver’, aplicável a to- pos e da sociedade, entre os quais não
dos os seres vivos e com mais havia a separação característica da so- A
especificidade à espécie humana. ciedade moderna. Em suma, o im-

353
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

portante a salientar aqui é que ‘saúde’, mais Assim, nasce a ‘saúde pública’, com a
que um estado ‘natural’, é uma definição dupla missão de combater e prevenir
construída social e culturalmente. E nos- doenças coletivas, ou mesmo individu-
sa definição atual está muito longe de sua ais, que, por contágio ou transmissão,
origem etimológica, tendo caminhado em ameacem a organização social e a or-
sentido restritivo, senão oposto, ao longo dem pública.
dos últimos dois séculos. A medicina, de arte ou saber prá-
tico, associa-se aos saberes científicos
ligados à matéria, em contínua revolu-
Definições e concepções de ção, transformando-se progressiva-
saúde e doença na mente, ela também, em ciência, em
modernidade ocidental conhecimento das doenças, tornando-
se seu centro de pesquisa as patologi-
A preocupação social com a do- as em sua origem ou causalidade, seja
ença das populações, primeiramente, no meio ambiente físico ou biológico,
em função das pestes e guerras no exterior ou interior da denominada
(freqüentemente implicadas nas epide- ‘máquina’ humana. Neste contexto, a
mias) que dizimam a Europa no alvo- terapêutica, como arte milenar da cura
recer da idade moderna, nos séculos de seres humanos, sofre um progres-
XIV a XVII, e posteriormente dos in- sivo deslocamento do olhar epistemo-
divíduos, durante os séculos XVIII e lógico, tanto no plano da produção de
XIX, prenuncia a relação peculiar da evidências (saber) como no da inter-
modernidade entre vida humana e po- venção clínica (prática), tornando-se
lítica, que o filósofo Michel Foucault secundária diante da ciência
(2003) designou de biopoder. Pois ser diagnóstica. Combater as doenças não
a partir de políticas de ‘saúde’, isto é, será mais necessariamente sinônimo de
de medidas de ‘combate’ (mais tarde, curar doentes. A clínica moderna,
durante o século XX, de ‘prevenção’) como assinala Foucault, será uma tra-
às doenças coletivas e individuais, que jetória de busca à morte, ou do que pode
instituições médicas, investidas do po- matar, no interior do corpo humano. E
der de Estado (polícia médica), como a cultura incorpora, com o passar do sé-
assinalou George Rosen (1994), defi- culo XX e as “vitórias da ciência, como
nirão o estatuto do viver e suas nor- define a imprensa, a visão de ‘saúde’
mas no plano individual e coletivo. como ausência relativa ou total de do-

354
Saúde A

ença, em coletividades e indivíduos. Ter mem conjunto de partes, dominante C


‘saúde’, ser sadio, passa a significar não nas especialidades médicas, buscando
estar doente, não ser portador de pa- reassociar as dimensões em que se in- D
tologia ou, mais positivamente, estar sere a vida humana: social, biológica e
em ‘parâmetros de normalidade sinto- psicológica. Recentemente associou-se
E
mática’. O estado de normalidade sin- a dimensão ‘espiritual’ à definição, e
F
tomática é, portanto, a definição não é sem fundamento supor que em
institucional do estado de ‘saúde’ em futuro próximo a dimensão ‘ambiental’
G
nossa sociedade. Torna-se concepção fará também parte oficial da definição
hegemônica não apenas entre os pro- sanitária, completando assim o siste- H
fissionais de todas as formações liga- ma de dimensões que encerram o vi-
das ao saber biomédico, como na so- ver humano em complexa teia de rela- I
ciedade civil e nas instituições como ções. As concepções implícitas nessa
um todo, sobretudo nos órgãos encar- definição não apenas exprimem, mas N
regados de formar a opinião pública, ampliam o campo da ‘saúde pública’,
conhecidos como mídia. Hegemônico indo assim ao encontro do campo inter O
não significa, entretanto, único, mas ou transdisciplinar da ‘saúde coletiva’,
dominante. em constituição há três décadas. P
A partir do fim da Segunda Guer-
ra Mundial, e durante a segunda meta- Q
de do século XX, as recém-criadas or- Concepções holísticas ou
ganizações internacionais de ‘saúde vitalistas presentes na cultu- R
pública’ – Organização Mundial da ra da saúde
Saúde (OMS) e Organização Pan- S
Americana da Saúde (Opas), sobretu- Além destas concepções, ligadas
do a OMS, de caráter mundial – pro- às instituições que definem socialmente T
põem novas definições, de caráter mais a ‘saúde’, encontramos na cultura oci-
positivo e abrangente que as veicula- dental contemporânea outras, de na- U
das pelas instituições médicas: “esta- tureza vitalista, ou ‘holísticas’, ligadas
do de completo de bem-estar físico, a paradigmas distintos dos dominan-
V
mental e social”, por exemplo, por utó- tes na sociedade ocidental. Entre elas
A
pico que nos pareça, é uma definição devem ser salientadas aquelas ligadas
que se propõe a superar, em termos às medicinas orientais, como a medici-
A
de concepção, a visão mecânica do ho- na chinesa ou à medicina indiana

355
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

(M.T.C. e Ayurvédica), que definem mente, temos definições vitalistas não


‘saúde’ como um estado de harmonia filiadas a nenhum sistema médico, mas
da força ou energia vital que circula em a saberes e práticas ‘populares’, onde
todos os órgãos (medicina chinesa), em ‘saúde’ é freqüentemente definida
todos os tecidos (medicina ayurvédica), como boa disposição para a vida diá-
tendo ela a capacidade de regular, por ria e suas atividades, sobretudo o tra-
seu fluxo harmonioso, os eventuais balho.
desequilíbrios do ser humano, consi-
derado por essas medicinas como um
Para saber mais:
todo bio-sócio-psíquico-espiritual.
Além dessas, temos as medicinas oci-
Enciclopédia Mirador Internacional -
dentais homeopática e antroposófica, São Paulo, Rio de Janeiro; Encyclopedia
para as quais o ser humano é também Britannica do Brasil Publicações Ltda,
uma totalidade interconectada com a V. 18,Verbete Saúde, p. 10271-10274.
natureza e os outros seres vivos, nos FOUCAULT, Michel - O nascimento da
quais circula a energia vital. O clínica; Rio de Janeiro, Forense
adoecimento seria o efeito do Universitária, 1977.
desequilíbrio ou desarmonia desta FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.
18.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
energia. A ‘saúde’, neste caso, é um
estado de harmonia energética, e sua LUZ, Madel Therezinha - Natural,
Racional, Social - Razão médica e
conservação depende de hábitos e sen-
racionalidade científica moderna; São
timentos saudáveis. Essas medicinas, Paulo, HUCITEC, 2004 (2ª edição
e outras tradicionais, que incluem sis- revista e prefaciada)
temas médicos indígenas, orientam-se LUZ, Madel Therezinha - Novos
por lógicas de intervenções terapêuti- Saberes e Práticas em Saúde Coletiva -
cas e diagnósticas que não se enqua- Estudos sobre racionalidades médicas e
dram no que denominamos medicina atividades corporais. São Paulo,
HUCITEC, 2005 (2ª edição)
científica, atuando com outras lógicas,
paradigmas, ou racionalidades. Final- ROSEN, G. Uma História da Saúde
Pública. São Paulo: Editora Unesp, 1994.

356
Sistema Único de Saúde A

C
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
D
Lígia Bahia
E

F
A expressão ‘Sistema Único de nal de Assistência Médica da Previdên-
Saúde’ (SUS) alude em ter mos cia Social (Inamps) pelo Ministério da G
conceituais ao formato e aos proces- Saúde e na universalização do acesso a
sos jurídico-institucionais e administra- todas ações e cuidados da rede H
tivos compatíveis com a univer- assistencial pública e privada contrata-
salização do direito à saúde e em da e ao comando único em cada esfera I
termos pragmáticos à rede de institui- de governo. ‘Saúde’ compreendida
ções – serviços e ações – responsável como resultante e condicionante de N
pela garantia do acesso aos cuidados e condições de vida, trabalho e acesso a
atenção à saúde. Os termos que com- bens e serviços e, portanto, componen- O
põem a expressão ‘SUS’, espelham po- te essencial da cidadania e democracia
sitivamente críticas à organização pre- e não apenas como ausência de doen- P
térita da assistência médico-hospitalar ça e objeto de intervenção da medici-
brasileira. ‘Sistema’, entendido como o na; a saúde, tomada como medida de Q
conjunto de ações e instituições, que determinações sociais e perspectiva de
de forma ordenada e articulada con- conquista da igualdade, contrapõe-se R
tribuem para uma finalidade comum, ao estatuto de mercadoria assistencial
qual seja, a perspectiva de ruptura com que lhe é conferido pela ótica S
os esquemas assistenciais direcionados economicista, tal como definida na
a segmentos populacionais específicos, VIII Conferência Nacional de Saúde é
T
quer recortados segundo critérios “a resultante das condições de alimen-
socioeconômicos, quer definidos a par- tação, habitação, renda, meio ambien-
U
tir de fundamentos nosológicos. ‘Úni- te, trabalho, transporte, emprego, lazer,
V
co’ referido à unificação de dois siste- liberdade, acesso e posse da terra e
mas: o previdenciário e o do Ministé- acesso aos serviços de saúde”.
A
rio da Saúde e secretarias estaduais e
municipais de saúde, consubstanciada A
na incorporação do Instituto Nacio-

357
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Histórico: o contexto de de (Cebes), em 1976, as experiênci-


formulação e inscrição do as locais alternativas de organização
sus na Constituição de 1988 de serviços de saúde, a presença de
sanitaristas no planejamento de ins-
O SUS foi formulado, na estei- tituições de saúde e, sobretudo, o
ra da luta pela redemocratização do intenso debate e a apresentação de
Brasil, por intelectuais, entidades de reflexões, em fóruns dos movimen-
profissionais de saúde, estudantis e tos sociais e nas arenas governamen-
outras entidades da sociedade civil. tais, sobre as alter nativas à
Como expressão institucional da hegemonia dos interesses mercantis
Reforma Sanitária, o SUS, entre ou- na assistência médica previdenciária,
tras referências, inspirou-se no pro- tornaram-se os ingredientes essen-
cesso de mudança no sistema de saú- ciais para a elaboração das diretrizes
de italiano –denominado Riforma do SUS. Durante o I Simpósio de
Sanitaria do qual se originou a Lei n. Saúde da Câmara dos Deputados em
833 de 1978 sobre a Istituzione del 1979, o documento do Cebes
Servizio Sanitario Nazionale. A conver- intitulado “Saúde é Democracia” si-
gência entre as mudanças teórico- nalizou para a necessidade de cria-
conceituais acerca das concepções ção de um sistema único e para a
sobre as relações entre saúde, Esta- necessidade de transformação das
do e sociedade e as lutas pelas liber- ações de saúde em bens sociais gra-
dades democráticas contra o regime tuitos sob responsabilidade do Es-
militar confluíram para a formulação tado a partir de uma base eficaz de
e tradução operacional da Reforma financiamento. Tais premissas justa-
Sanitária Brasileira. O lema “saúde é postas às acepções sistêmicas e
democracia” embalou as proposi- universalistas sobre previdência e as-
ções da Reforma Sanitária difundi- sistência social fundamentaram a ins-
das durante a preparação e realiza- crição do SUS como integrante das
ção da VIII Conferência Nacional de ações destinadas a assegurar os di-
Saúde em 1986. A efervescência dos reitos relativos à saúde, à previdên-
movimentos sociais a partir da me- cia e à assistência social no artigo 194
tade da década de 1970, a criação do da Constituição de 1988.
Centro Brasileiro de Estudos de Saú-

358
Sistema Único de Saúde A

Fundamentos teóricos- em um contexto pautado pela C


políticos do SUS emergência de demandas complexas
em ter mos sociais, biológicos e D
O SUS resulta da formulação e geográficos questionavam as respostas
estatais centradas em programas de
E
legitimação de estratégias de
reordenação do sistema de saúde controle de endemias, por meio da
F
brasileiro postas em disputa com atuação do Ministério da Saúde ou do
atendimento individual a determinadas
teorias divergentes sobre as G
concepções sobre saúde-doença e categorias de trabalhadores,
distintos projetos de poder no campo administrado pela Previdência Social. H
da saúde. A partir da concepção No final dos anos 70, o descompasso
histórico-estruturalista, os estudos entre as receitas e as despesas com I
sobre as relações entre medicina e saúde e as críticas à natureza
sociedade enfatizaram a necessidade de dicotomizada e fragmentada do N
desvendar os padrões de intervenção sistema foram incluídos nas agendas
estatal específicos na área da saúde. As de reivindicação dos movimentos O
interpretações sobre as articulações sociais e nas pautas da g rande
entre saúde e política econômica imprensa. No período de transição P
buscaram evidenciar simultaneamente: democrática, a feição nacional e
1) a natureza objetiva (histórico- universalista da luta pela transformação Q
material) da sociedade, a identificação do sistema de saúde e das condições
de padrões, variações e matizes dos de saúde da população brasileira R
arranjos político-institucionais viabilizou alianças com setores
presentes no setor saúde no Brasil; 2) progressistas de diferentes orientações S
a identificação e análise da origem e político-partidárias. Os compromissos
das contradições entre projetos de com a produção de conhecimentos T
atores singulares, suas projeções no sobre os determinantes sociais da
saúde, com o movimento por mudança U
Estado, visto não apenas como locus de
preser vação de legitimação, mas no sistema de saúde e mudanças na
sociedade brasileira lastrearam a
V
também como arena de disputa por
hegemonia. O padrão dual de formulação do SUS. No início da
A
desenvolvimento social e econômico denominada Nova República, a
coalizão suprapartidária e a mobi-
e seus rebatimentos sobre os níveis de A
desigualdade e indicadores de saúde, lização social, essenciais para a inclusão

359
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

da Seguridade Social e do SUS como tuição Brasileira de 1988);


direitos de cidadania, tornaram a integralidade das ações de saúde; a
exeqüível a nomeação de integrantes descentralização, com direção única em
do movimento sanitário para cargos de cada esfera de poder e a participação
direção no Ministério da Saúde e na da sociedade (artigo 198). Em termos
Previdência Social, que, por seu turno, operacionais, trata-se de um sistema
construíram as bases técnico- unificado, regionalizado, com atribui-
operacionais para a transferência de ções definidas por esfera de governo,
recursos humanos, financeiros e físicos financiamento compartilhado e áreas
e competências do Instituto Nacional de competências e abrangência firma-
de Assistência Médica da Previdência das. A saúde passa a ter o estatuto de
Social para o Ministério da Saúde. bem de relevância pública tal como
previsto no artigo 197, que define a
competência do poder público na re-
Bases jurídico-legais gulamentação, fiscalização e controle
do SUS das ações e serviços de saúde. O arti-
go 199 franqueia à iniciativa privada a
O direito à saúde elevado ao pa- participação nas atividades de saúde.
tamar de direito essencial em função As áreas de atuação e competência dos
de sua ligação intrínseca com o direito órgãos do sistema de saúde são defini-
à vida e à dignidade da pessoa humana das no artigo 200. Segundo este dis-
no âmbito da positivação dos direitos positivo, o controle, fiscalização, exe-
sociais atribuída pela Constituição de cução e ordenamento das políticas,
1988, traduz-se no reconhecimento da ações e programas referentes a itens
saúde como direito público subjetivo diversos, tais como alimentos, medica-
de eficácia plena e imediata. A tutela mentos, equipamentos, hemode-
estatal e o agir positivo, ao ensejarem a rivados, saneamento básico, formação
criação e efetivação de políticas públi- de recursos humanos para a saúde, am-
cas, fazem com que esses direitos ad- bientes de trabalho, desenvolvimento
quiram caráter coletivo. O SUS, res- científico e tecnológico e meio ambi-
ponsável pela garantia do exercício do ente são atribuições do SUS. O con-
direito à saúde, tem como suportes teúdo constitucional do SUS é discri-
doutrinários o direito universal e de- minado e detalhado em duas leis orgâ-
ver do Estado (artigo 196 da Consti- nicas, a Lei 8.080/90 e a Lei 8.142/90.

360
Sistema Único de Saúde A

A Lei 8.080/90 contém dispositivos re- de seguridade social e ao apoio às pro- C


lacionados com o direito universal, re- postas de organização de seguros ba-
levância pública, unicidade, seados na relação contribuição-bene- D
descentralização, financiamento, entre fício sob regime de capitalização ema-
outros, enfatizando a definição das atri- nadas do receituário de ajuste fiscal, al-
E
buições de cada esfera de governo den- teraram o curso de implementação do
F
tro do novo sistema. A Lei 8.142/90 SUS. No início dos anos 90, a conjun-
dispõe sobre o caráter, as regras de tura adversa aos projetos de corte
G
composição, regularidade de funciona- universalista contribuiu para a frag-
mento das instâncias colegiadas do mentação das bases de apoio político, H
SUS – o conselho e a conferência de não observância das normas sobre as
saúde – e transferências intergover- receitas e destinos do orçamento da I
namentais de recursos. Ao longo do ‘seguridade social’ e distintas velocida-
tempo, a legislação ordinária foi des da regulamentação de cada um de N
complementada por decretos de auto- seus componentes: saúde, previdência
ria do poder executivo ou do legislativo e assistência social. A fragmentação da O
e normas emanadas do Ministério da seguridade social e, em especial, o não
Saúde, entre as quais as nor mas cumprimento dos preceitos constitu- P
operacionais básicas (NOBs) que de- cionais relacionados com o financia-
terminaram as regras para o repasse mento da saúde limitaram a plena Q
dos recursos federais às esferas implementação do SUS. Em 1993, o
subnacionais. então Ministério da Previdência e As- R
sistência Social retirou as transferênci-
as destinadas à saúde a partir da con- S
tribuição sobre a folha de salários.
O processo de Desde então, a resistência contra o T
implementação dos princí- subfinanciamento da saúde tem sido a
pios e diretrizes tônica de entidades da sociedade civil, U
organizacionais do SUS parlamentares e integrantes do poder
judiciário e do ministério público, e a
V
Os questionamentos à Constitui- participação das esferas subnacionais,
ção de 1988, especialmente quanto à
A
principalmente os municípios, tem sido
generosa e abrangente perspectiva de crescente. A mobilização permanente
A
organização de um sistema integrado em torno da garantia de recursos para

361
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

a saúde gerou compromissos governa- concerne especialmente à oferta de


mentais com a estabilidade dos repas- assistência médico-hospitalar, não é
ses tal como expressos na Emenda universal. A preservação da segmen-
Constitucional 29. No que concerne ao tação das demandas condiciona e de
desenho e à execução dos pactos certo modo legitima o subfinan-
intergovernamentais para consolidar o ciamento público para a atenção uni-
processo de descentralização e reorga- versal à saúde e desafia permanente-
nizar as redes do sistema de saúde, os mente a lógica da organização do SUS.
avanços são notáveis. Nos marcos da A vigência da clivagem assistencial afeta
democracia e do federalismo, o SUS a eqüidade do acesso aos serviços de
construiu uma estrutura institucional saúde, os valores sobre a qualidade do
complexa para coordenar as ações dos que é público e a própria definição de
três níveis de governo: as ações de saú- SUS. Os usos correntes do termo SUS,
de pública e os serviços de saúde esta- como sinônimo de um convênio de re-
tais, filantrópicos e privados. As Co- passe de recursos ou órgão de compra
missões Gestoras Bipartite e a Comis- de serviços e não como sistema de saú-
são Tripartite, integradas por represen- de, restringem drasticamente sua na-
tantes das três esferas de governo, são tureza e atribuições constitucionais. Al-
instâncias de decisão compartilhada ternativamente, a imunidade do direi-
sobre políticas de saúde. Os governos to à saúde tal como previsto pela Cons-
locais tornaram-se essenciais na orga- tituição de 1988 às tentativas de
nização da atenção à saúde, e os repre- desfigurá-lo, bem como os efeitos fa-
sentantes dos usuários, profissionais de voráveis da inclusão e universalização
saúde e gestores civis dispõem de ins- das ações de saúde conferiram ao SUS
trumentos para formular políticas de o estatuto de política de Estado e mo-
saúde, controlar e fiscalizar a ação das delo exemplar de sistema de saúde na
instituições de saúde. Contabilizam-se América Latina.
ainda, entre os expressivos avanços da
estruturação de um sistema único e
descentralizado, os êxitos do impacto O resgate do SUS
sobre o controle/redução de agravos constitucional
relacionados com a oferta de atenção
universal a grupos populacionais defi- As avaliações sobre a persistência
nidos. Contudo, o SUS, no que de problemas de saúde e elevadas de-

362
Sistema Único de Saúde A

sigualdades econômico-sociais e no to “SUS pra Valer: universal, C


acesso a bens e serviços vis-à-vis o humanizado e de qualidade”, subscri-
subfinanciamento, as distorções na es- to por essas entidades, elaborado no D
trutura dos gastos públicos e a subor- segundo semestre de 2006, contendo
dinação das políticas sociais em face estratégias programáticas, reafirma a
E
da ‘financeirização’ do orçamento pú- imprescindibilidade da
F
blico estimularam a realização do VIII compatibilização dos padrões de saú-
Simpósio da Câmara Federal sobre de dos brasileiros ao progresso
G
Política Nacional de Saúde em 2005. tecnológico, cultural e político dispo-
O debate e a mobilização para o res- nível. Por sua vez, as instituições res- H
gate do SUS constitucional implicam ponsáveis pela gestão do SUS defini-
a defesa da seguridade social e a defi- ram novas diretrizes para a I
nição de uma política nacional de de- descentralização no Pacto pela Vida,
senvolvimento e, portanto, revisão da em Defesa do ‘SUS’ e de Gestão, pro- N
política monetária. Recursos oriundos posto pelo Ministério da Saúde, Con-
da desvinculação de receitas da União, selho de Secretários de Saúde (Conass) O
inclusive das contribuições sociais e do e Conselho Nacional de Secretários
elevado superávit fiscal, devem ser Municipais de Saúde (Conasems) em P
redirecionados para as políticas soci- 2006. Medidas como o reforço à orga-
ais. As iniciativas de criar e reunir um nização das regiões sanitárias, a co-ges- Q
Fórum da Reforma Sanitária na Esco- tão, a base do financiamento tripartite
la Nacional de Saúde Pública Sergio como parâmetro para o planejamento R
Arouca e a realização de reuniões con- e definição de responsabilidades sani-
juntas da Associação Brasileira de Saú- tárias compartilhadas aproximam a tra- S
de Coletiva (Abrasco) Centro Brasilei- jetória do SUS real a do SUS constitu-
ro de Estudos de Saúde (Cebes), Rede cional. Os esforços para corrigir o T
Unida, Associação Brasileira de Eco- rumo e o prumo da trajetória do SUS,
nomia da Saúde (Abres), Associação quer oriundos da esfera da sociedade U
Nacional de Promotores do Ministé- civil, quer gerados na esfera governa-
rio Público em Defesa da Saúde mental, ainda que até agora tenham
V
(Ampasa) e a Frente Parlamentar da logrado contra-restar plenamente obs-
A
Saúde permitiram ampliar e aprofun- táculos estruturais, expressam a vitali-
dar a reflexão e as propostas de resga- dade e perenidade de seus princípios e
A
te do SUS constitucional. O documen- diretrizes.

363
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: ESCOREL, S. Reviravolta na Saúde: origem


e articulação do movimento sanitário. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.
SANTOS, L. Sistema Único de Saúde:
coletânea de leis e julgados da saúde. 2.ed. CAMPOS, G. W. de S. A Saúde Pública e
Campinas: Instituto de Direito Sanitário a Defesa da Vida. São Paulo: Hucitec,
Aplicado, 2003. 1992.
DALLARI, S. G. (Org.) O Conceito TEIXEIRA, S. F. O Estado Sem Cidadão:
Constitucional de Relevância Pública. São seguridade social na América Latina. Rio de
Paulo: Organização Pan-Americana da Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.
Saúde, 1992.


SOCIABILIDADE NEOLIBERAL

André Silva Martins

Sociabilidade é uma expressão em- As formulações de John Locke


pregada na produção acadêmica em di- (1632 a 1704) representam um marco
ferentes sentidos. Em geral, é relaciona- no pensamento político. Suas idéias
da às análises sobre os modos de viver e serviram de base para as lutas da bur-
de ser em sociedade, em comunidades guesia contra o absolutismo e mais tar-
ou em pequenos grupos sociais. Histo- de inspiraram a doutrina liberal, sobre-
ricamente, o conceito de sociabilidade tudo em suas formulações sobre Es-
vem sendo disputado por diferentes cor- tado. Em seus escritos políticos é pos-
rentes de pensamento presentes no de- sível localizar registros importantes
bate das ciências sociais. para traçarmos a gênese do conceito
Em autores clássicos encontra- em questão.
mos importantes formulações que ofe- Para Locke todos os homens se-
recem elementos para a compreensão riam iguais e independentes por natu-
do alcance teórico do conceito de so- reza, ninguém poderia/deveria preju-
ciabilidade e, de modo particular, do dicar ou ameaçar os ‘direitos naturais’
significado de sociabilidade neoliberal do outro, principalmente o ‘direito na-
tão presente na atualidade. tural’ à propriedade, pois ela faria par-

364
Sociabilidade Neoliberal A

te da constituição do próprio indiví- cias para delimitar a gênese do concei- C


duo, estando relacionada à condição de to. Suas formulações não se restringi-
sobrevivência do ser e da humanida- ram ao contexto de sua época, ultra- D
de. No pensamento lockeniano, liber- passaram o tempo, inspirando ações
dade e propriedade seriam, portanto, políticas para afirmar um padrão capi-
E
indissociáveis. talista de sociabilidade.
F
Para ele, a propriedade estaria li- Para Smith, os homens organiza-
gada ao ‘estado de natureza’, teria sur- riam o seu modo de vida em socieda-
G
gido antes mesmo da sociedade. No de com base em preceitos naturalmente
pensamento lockeniano, a expansão da preestabelecidos pela ordem natural H
propriedade privada, mesmo criando das coisas, reafirmando as idéias de
a desigualdade entre os homens, não Locke. Os indivíduos seriam regidos I
violaria o preceito da ‘lei natural’. A por uma racionalidade baseada em in-
teorização de Locke indica ainda que teresses privados e na busca incessan- N
o modo de vida (sociabilidade) seria te do lucro, de maneira egoísta, mas
constituído para o individuo e pelo in- produtiva, cujas repercussões seriam O
divíduo (seres isolados e racionais) e, positivas para todos. A associação en-
num segundo plano, pelo ‘contrato tre indivíduos obedeceria a uma lei P
social’, ou seja, um acordo coletivo natural e necessária de obtenção ou
entre indivíduos para preservar os ‘di- preservação do lucro. A ‘mão invisí- Q
reitos naturais’ de cada um, forman- vel’ do mercado seria a força
do, assim, a sociedade e o Estado (cen- ordenadora das relações sociais e das R
tro de poder). Considerando que o in- condutas individuais. Para legitimar o
divíduo vem antes da sociedade, a de- individualismo, Smith defendia que o S
limitação da sociabilidade envolveria somatório dos esforços de cada indi-
dois planos: no primeiro pelo indivi- víduo de uma sociedade representaria T
dualismo; num segundo plano, pelo um resultado positivo para toda a so-
contrato social, cujo foco seria a pre- ciedade, uma vez que haveria um au- U
servação da propriedade. mento geral da riqueza beneficiando a
A perspectiva liberal de sociabili- todos, ainda que indiretamente e de
V
dade foi tratada também por outro forma desigual. Partindo do pressupos-
A
importante formulador político, Adam to de que a propriedade, a liberdade e
Smith (1723 a 1790). Em alguns de seus a vida existiriam naturalmente antes da
A
escritos encontramos outras referên- organização dos homens em socieda-

365
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de, Smith acreditava que as regras e as maioria dos favores e serviços de


condutas pessoais deveriam ser preser- que necessitamos. Não é da bondade
do homem do talho, do cervejeiro ou do
vadas e incentivadas como referências padeiro que podemos esperar o nosso jan-
para o perfeito funcionamento de qual- tar, mas da consideração em que eles têm
quer sistema social. O interesse pró- o seu próprio interesse. Apelamos, não
prio seria o ponto fundamental do para a sua humanidade, mas para o ego-
ísmo, e nunca lhes falamos das nossas
ordenamento das relações sociais, en- necessidades, mas das vantagens deles.
volvendo trabalho e vida em todas as Ninguém, a não ser um mendigo,
suas dimensões. A esse respeito Smith se permite depender essencialmen-
argumentava que: te da bondade dos seus concida-
dãos. Até mesmo um mendigo não
depende inteiramente dela (1981, p.
Numa sociedade civilizada o ho- 94/95, grifo nosso).
mem necessita constantemente da
ajuda e cooperação de uma imensi- Nessa lógica, o individualismo
dade de pessoas, e a sua vida mal marcaria o modo de vida dos homens
chega para lhe permitir conquistar
a amizade de um pequeno número. e mulheres, sendo a base do equilíbrio
Em quase todas as outras espécies social e do funcionamento de toda a
animais, cada indivíduo, ao atingir sociedade.
a maturidade, é inteiramente inde-
pendente, e, no seu estado normal, Um terceiro intelectual importan-
não necessita da ajuda de qualquer te para a compreensão do conceito de
outro ser vigente. Mas o homem sociabilidade no capitalismo foi
necessita quase constantemente do Friedrich August von Hayek (1899 a
auxílio dos seus congêneres e seria
vão esperar obtê-lo somente da sua
1992). Ao atualizar as idéias de Locke
bondade. Terá maior probabilida- e Smith para o século XX e fundar o
de de alcançar o que deseja se con- que foi denominado de neoliberalismo,
seguir interessar o egoísmo deles a Hayek definiu que o mercado, centro
seu favor e convencê-los de que te-
das relações sociais, e o individualis-
rão vantagem em fazer aquilo que
ele deles pretende. Quem quer que mo, principal marca da ação humana,
propõe a outro um acordo de qual- deveriam ser recuperados com toda
quer espécie, propõe-se conseguir ênfase no mundo contemporâneo.
isso. Dá-me isso, que eu quero, e Hayek defendia que o mercado
terás isto, que tu queres, é o signifi-
asseguraria uma superioridade a qual-
cado de todas as propostas desse
gênero; e é por esta forma que ob- quer tipo de regulação econômica e
temos uns dos outros a grande política e a qualquer instituição social,

366
Sociabilidade Neoliberal A

devendo ser vir de base para o essenciais que deveriam ser difundidos C
ordenamento das sociedades e das con- nos processos educativos escolares e
dutas humanas. Isso possibilitaria que não-escolares: o individualismo como D
uma sociedade evitasse o massacre e o valor moral radical, o empreendedorismo
tolhimento do ser humano, permitin- e a competitividade.
E
do, assim, a expansão de todas as Embora essas idéias ainda
F
potencialidades do ser. permeiem o mundo de hoje, são as
Argumentava também que o in- formulações de Anthony Giddens
G
dividualismo não seria sinônimo de (1938 a ...), em seu esforço para siste-
egoísmo e desconsideração com o ou- matizar o projeto da ‘nova social-de- H
tro. Em sua visão, o egoísmo seria uma mocracia’ em nível mundial, que me-
qualidade humana ligada à própria di- lhor traduzem a sociabilidade I
mensão da razão. Considerando que os neoliberal no século XXI.
indivíduos teriam uma capacidade li- Considerando que a atual fase do N
mitada de absorver intelectualmente capitalismo privilegia a ‘libertação psi-
um conjunto de problemas, demandas cológica’ dos indivíduos das pressões O
e necessidades presentes no mundo, ou exercidas pelo mundo polarizado do
ainda de compreendê-los como uma passado e dos antagonismos entre ca- P
totalidade, Hayek acreditava que não pital-trabalho, o autor argumenta que
restaria outra opção a não ser valori- o individualismo configura-se como Q
zar a qualidade natural sem um estilo de vida sem retorno e deve
artificialismos. Nessa linha, os homens ser tomado como referência para re- R
se organizariam em pequenos grupos cuperar a coesão cívica que teria en-
para defender os interesses específicos trado em crise com as políticas S
e limitados, e nunca por interesses co- neoliberais de viés hayekiano.
letivos que pudessem representar mu- A grande tarefa para educar a so- T
danças substantivas na política e na ciabilidade no século XXI seria a eli-
economia. Na lógica hayekiana, os or- minação ou resignificação dos símbo- U
ganismos sindicais e partidários de los do passado, recriando, assim, a tra-
massa deveriam ser abolidos ou dição. Para Giddens, o mundo conti-
V
redefinidos, abandonando as bandei- nua reivindicando indivíduos empre-
A
ras de lutas mais gerais. endedores e competitivos, mas neces-
A sociabilidade neoliberal propos- sitaria também de indivíduos ‘colabo-
A
ta por Hayek abrangeria três aspectos radores’. Considerando que o Estado

367
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

de bem-estar social e o Estado neoliberal, cial e cultural (Gramsci, 1999). Os se-


com sua ênfase no mercado, teriam ge- res humanos, coletivamente, produzem
rado mais problemas do que soluções e reproduzem as condições objetivas e
para a humanidade, ampliando tensões subjetivas de sua própria existência,
sociais graves, a saída seria para Giddens portanto, não as recebem prontas da
a criação de algo ‘novo’: a ‘sociedade de natureza. A produção da existência
bem-estar’, sustentada pelo espírito em- humana se desenvolve sob determina-
preendedor e voluntarioso dos novos das condições e por diferentes media-
tipos humanos. ções em um dado contexto histórico.
Nesses termos, a sociabilidade O ser humano é, portanto, o conjunto
neoliberal no século XXI incorpora as da natureza e da história, uma síntese
idéias de Locke, Smith e Hayek, e as das forças materiais e culturais presen-
atualiza com a idéia de cooperação ou tes em um tempo (Gramsci, 1999;
colaboração social de caráter não- Marx & Engels, 1984).
classista. Assim, em processos sociais A sociabilidade é uma construção
moleculares, indivíduos em regime de histórica produzida coletivamente, en-
cooperação, reunidos em pequenos volvendo relações de poder e refletida
grupos, atuariam solidariamente em em cada sujeito singular por diferen-
defesa do ‘bem-comum’. O resultado tes mediações, expressando, assim, um
do processo seria a coesão cívica, algo ordenamento mais ou menos comum
positivo para cada indivíduo e para o sobre as formas de sentir/pensar/agir.
conjunto da sociedade. A sociabilidade neoliberal no século
A sociabilidade neoliberal do sé- XXI indica que há um padrão predo-
culo XXI (ou sociabilidade neoliberal minante de percepções, pensamentos
da Terceira Via) é definida como a e comportamentos que deve ser segui-
nova ‘cidadania ativa’, caracterizada do por todos que desejam ser consi-
pelo: empreendedorismo, compe- derados bons cidadãos e bons traba-
titividade, trabalho voluntário e co- lhadores.
laboração social. A sociabilidade neoliberal do sé-
Numa perspectiva crítica, sociabi- culo XXI vem permitindo que os su-
lidade corresponde ao ‘conformismo jeitos históricos entendam a explora-
social’ a que homens e mulheres são ção do capital sobre o trabalho como
submetidos num deter minado algo naturalmente constituído, que seu
ordenamento político, econômico, so- sucesso ou fracasso é unicamente de-

368
Sociabilidade Neoliberal A

corrente do seu esforço (de sua capa- ________. A terceira via: reflexões sobre C
cidade empreendedora e competitiva) o impasse político atual e o futuro da social-
e que é possível promover o bem-co-
democracia. 4. ed. Rio de Janeiro: D
Record, 2001.
mum com ações voluntárias, indepen-
dentemente das condições KONDER, L. Os sofrimentos do homem E
burguês. São Paulo: Senac, 2000.
socioeconômicas e das relações de
MARTINS, A. S. Burguesia e a nova F
poder existentes.
sociabilidade: estratégias para educar o
consenso no Brasil contemporâneo. Tese de G
Doutorado. (Doutorado em
Para saber mais: Educação). Niterói: Universidade H
Federal Fluminense, 2007.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia I
g overno. In: Locke (Coleção Os alemã. Tradução de Luis Cláudio de
Pensadores). São Paulo: Abril, 1978. Castro e Costa. Introdução de Jacob N
HAYEK, F. von A. O caminho da servidão. Gorender. São Paulo: Moraes, 1984.
Rio de Janeiro: Expressão e Cultura.
Instituto Liberal, 1987.
PAULANI, L. Modernidade e discurso O
econômico. São Paulo: Boitempo, 2005.
GRAMSCI, A. Cader nos do cárcere.
Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia SENNET, R. A corrosão do caráter : P
de Benedetto Croce. Tradução de Carlos conseqüências pessoais do trabalho no novo
Nelson Coutinho. vol. 1. Rio de Janeiro: capitalismo. Rio de Janeiro: Record, Q
Civilização Brasileira, 1999. 1999.

GIDDENS, A. Para além da esquerda e da SMITH, A. Riqueza das Nações. vol 1. R


direita. O futuro da política radical. São Lisboa: Fundação Calouste
Paulo: Editora da Unesp, 1996. Gulbenkian, 1981. S

369
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

SOCIEDADE CIVIL

Virgínia Fontes

A categoria de sociedade civil gia abrirem mão de sua violência ‘na-


nasce com o mundo burguês, vincula- tural’, delegando unicamente ao Esta-
do ao conceito de Estado. Antonio do o poder, ou o controle da violên-
Gramsci, no século XX, critica e cia, agora legitimada, garantindo assim
reformula o conceito. Na atualidade, o direito à vida. Esse pacto não pode-
tanto o conceito como as próprias en- ria ser rompido, pois o soberano
tidades da sociedade civil são âmbito doravante teria o direito de impô-lo
de intensas lutas sociais entre uma contra qualquer ameaça. O Estado era
abordagem (e uma prática) de cunho considerado como um ‘sujeito’, con-
liberal e uma abordagem (e uma práti- tendo uma lógica própria e uma razão
ca) crítica. própria. Pouco depois, Locke (1632-
Nas origens do pensamento libe- 1704) manteria essa noção de ‘nature-
ral, Hobbes (1588-1674), pensador za humana’, agregando a propriedade
contratualista anglo-saxônico, descar- como seu atributo fundamental. Como
tou o pensamento religioso, analisou decorrência, o Estado tornava-se o
as instituições políticas como resultan- garantidor da propriedade. Hoje sabe-
tes de acordo humano e definiu o Es- mos que nenhuma evidência histórica
tado como um pacto (contrato). Adap- lastreia essa suposição de guerra con-
tava o conhecimento da sociedade a tra todos. As sociedades sem Estado
uma ciência natural empiricista: partia jamais foram marcadas por violência
de um pressuposto imediato – o indi- interna similar e, ao contrário, seus in-
víduo – e dele deduzia uma ‘natureza tegrantes mantinham relações bem
humana’ permanente, fixa, ‘natural’. menos tensas. Rousseau (1712-1778)
Tais indivíduos seriam naturalmente apontaria a propriedade privada
egoístas, defendendo seu próprio in- como base das desigualdades sociais
teresse e tenderiam permanentemente e da violência.
à violência, à luta de todos contra to- Ainda no pensamento liberal, o
dos. O pacto entre os indivíduos exi- pacto estatal implica o surgimento si-

370
Sociedade Civil A

multâneo de duas novas categorias: tudo do aperfeiçoamento das institui- C


uma sociedade política e uma socieda- ções governamentais, para melhor as-
de civil. A sociedade política seria cons- segurar as necessidades e/ou exigên- D
tituída pelas instituições do poder so- cias dos proprietários.
berano (os órgãos do Estado), enquan- Ora, uma natureza humana con-
E
to a sociedade civil seria a base da vida cebida dessa maneira espelha a soci-
F
social. Introduz-se uma cisão insupe- edade burguesa, na qual competem
rável entre o Estado e a sociedade: a interesses individuais contraditórios,
G
sociedade seria ‘natural’, enquanto o expressos na sociedade civil. Em
pacto seria uma convenção a ser ad- contrapartida, o Estado – detentor H
ministrada; a sociedade civil seria o lo- da violência legítima – parece pairar
cal da vida privada, enquanto a socie- acima da sociedade, assumindo uma I
dade política se regeria por imperati- dupla feição. Por sua distância de
vos distintos (vida, segurança, propri- cada interesse singular, seria o garan- N
edade, ordem e defesa externa consti- tidor do interesse de todos (a razão
tuiriam a razão de Estado); finalmen- do Estado). Pela mesma razão, não O
te, e sua derivação mais problemática, deveria imiscuir-se nos interesses
o pacto, embora resulte de uma ação privados da sociedade civil (os inte- P
humana, não poderia por ela ser rom- resses burgueses) que, ao contrário,
pido, sob o risco de imediato retorno deveria assegurar. Q
à barbárie (ou violência). O conceito de sociedade civil e de
Para Hobbes, a sociedade civil se Estado foi submetido à intensa crítica R
subordina ao Estado, o qual deteria por Marx e Engels, no século XIX, que
todos os poderes (defende um Esta- demonstram as razões históricas do S
do Absolutista). Com Locke (e com surgimento de Estados e analisam o
seus seguidores) a noção se modifica, caso específico do Estado burguês e T
pois a defesa da propriedade exigiria capitalista. Desmantelando a noção de
que o Estado acatasse as reivindica- ‘pacto’, demonstram como o Estado U
ções dos proprietários: todos os ho- corresponde à necessidade de classes
mens integrariam a sociedade civil, sociais dominantes para assegurar a
V
mas somente os proprietários pode- reprodução de sua dominação. Assim,
A
riam se manifestar plenamente. Os explicam a forma real do Estado, a sua
principais pensadores políticos libe- aparência e, ainda, os discursos ideo-
A
rais subseqüentes se ocupariam sobre- lógicos ou as apologias do existente.

371
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

O Estado é a forma pela qual os diver- para Estado e autonomizando-o;


sos interesses das diferentes classes desconsideravam o processo histórico
dominantes que historicamente existi- que levou à instauração de Estados e,
ram encontram uma forma de unifica- ainda mais grave, aboliam o futuro,
ção interna e se impõem – pelo uso da apresentando o Estado burguês como
violência, mas também do convenci- necessidade eterna. Sua visão de mun-
mento, por meio da ideologia – sobre do reiterava permanentemente a do-
todo o conjunto social (Marx e Engels, minação burguesa e sua forma de Es-
2007). Não há nenhuma separação tado. Após sua crítica radical, Marx e
entre Estado e sociedade: ao contrá- Engels praticamente abandonam o
rio, o Estado resulta da relação entre conceito de sociedade civil, relegando-
classes sociais e, portanto, encontra sua o ao passado liberal.
razão de ser nesta relação. A aparência Caberá a Gramsci refundar o con-
de separação – legitimada e reforçada ceito, porém em estreita consonância
pelos filósofos que sustentavam uma com as bases críticas lançadas por es-
burguesia em ascensão – é a forma pela ses autores. Para ele, o conceito de so-
qual opera exatamente a ideologia. Su- ciedade civil é inseparável da noção de
por um Estado com lógica própria, totalidade, isto é, da luta entre as clas-
distinta daquela que permeia a vida ses sociais, e integra sua mais densa
social, permite justificar a perpetuação reflexão sobre o Estado ampliado.
desta mesma forma de organização da Gramsci procurou compreender a or-
vida social. ganização das vontades coletivas e sua
Marx e Engels demonstram que conversão em aceitação da dominação,
o pensamento liberal nascente, mais do por meio do Estado capitalista desen-
que compreender o Estado burguês, volvido, em especial, a partir do mo-
tomava parte na luta burguesa contra mento em que incorpora, de modo
as formas de Estado precedentes e as subordinado, conquistas do tipo
antigas classes dominantes. Os liberais democratizante resultantes das lutas
consideravam como ‘natureza huma- populares. Assim, a sociedade civil é
na’ as características predominantes na indissociável dos aparelhos privados de
sociedade burguesa; ocultavam a exis- hegemonia – as formas concretas de
tência da relação social de exploração organização de visões de mundo, da
e subalternização entre as novas clas- consciência social, de formas de ser, de
ses sociais, idealizando um formato sociabilidade e de cultura, adequadas aos

372
Sociedade Civil A

interesses hegemônicos (burgueses). integrantes para a defesa de determi- C


Assinala a ampliação dos espaços de nadas posições sociais e para uma cer-
luta de classes nas sociedades contem- ta sociabilidade. Sua estreita conexão D
porâneas, em sua íntima vinculação com o Estado ocorre em duas direções
com o Estado. Seu objetivo é contri- – tais entidades associativas (ou gru-
E
buir para superar o terreno dos inte- pos de entidades associativas) facilitam
F
resses (corporativo) e o de uma vonta- a ocupação de postos (eleitos ou indi-
de plasmada pela vontade estatal, de- cados) no Estado e, em sentido inver-
G
fendendo uma sociedade igualitária so, atuam do Estado, da sociedade po-
(Gramsci, 2000 e 2001). lítica, da legislação e da coerção, em H
Não há oposição entre sociedade direção ao fortalecimento e à consoli-
civil e Estado, em Gramsci, pois a so- dação de suas próprias diretrizes. Vê- I
ciedade civil é duplo espaço de luta de se, assim, que o Estado está presente
classes: expressa contradições e ajus- dentro e fora do âmbito das institui- N
tes entre frações da classe dominante ções diretamente governamentais, ao
e, ao mesmo tempo, nela se organizam mesmo tempo em que sua direção é O
também as lutas entre as classes. Os assegurada pelos setores capazes de
aparelhos privados de hegemonia (ou formular diretrizes, generalizar sua de- P
de contra-hegemonia) são organiza- fesa em ‘casamatas’ na sociedade civil,
ções nas quais se elaboram e moldam difundir sua visão de mundo (Gramsci Q
vontades, e com base nas quais as for- sublinhava o papel de ‘partidos’ políti-
mas de dominação (ou de luta contra cos assumido pelos jornais, ao que R
ela) se irradiam para dentro e para fora poderíamos agregar o conjunto da
do Estado. Aí subjaz o convencimen- mídia na atualidade). A dominação de S
to não apenas de maneira estática, mas classes se fortalece, ao dirigir e organi-
como processo. zar o consentimento, a começar por T
Para Gramsci, Estado ampliado frações da classe dominante, e esten-
significa maior convencimento, mas dendo-se aos subalternos. Sistematiza- U
não elimina a coerção. Seu momento se a interiorização das relações sociais
predominantemente consensual ocor- existentes como necessárias e legítimas,
V
re por intermédio da sociedade civil - culturalmente sancionadas. O estreito
A
aparelhos privados de hegemonia. Dis- vínculo entre sociedade civil e Estado
seminam-se entidades associativas que explica como a dominação poreja em
A
formulam, educam e preparam seus todos os espaços sociais, educando o

373
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

consenso e ocultando o dissenso, for- vos), genericamente denominados de


jando um ser social adequado aos in- ‘novos’ movimentos sociais.
teresses (e valores) hegemônicos e apli- O forte impulso de mundialização
cando a coerção aos renitentes. do capital a partir da década de 1980
Na atualidade, há intensas lutas acompanhou-se de propostas de
na sociedade civil (no sentido formu- redefinição para o conceito de socie-
lado por Gramsci), que também se tra- dade civil que procuraram rejuvenes-
duzem em disputas em torno do pró- cer sua matriz liberal. Partindo da divi-
prio conceito. Entidades mantidas por são bipolar do liberalismo tradicional
setores empresariais (como associações (Estado vs sociedade civil), propunham
empresariais, fundações e think tanks) uma divisão tripolar, com a coexistên-
retomaram o conceito liberal e se apre- cia de setores (mundos ou esferas) es-
sentaram como ‘sociedade civil’, como tanques na vida social: sociedade civil
se fossem distintas e contrapostas ao (voluntária e virtuosa), mercado (com-
Estado (e aos governos) dos quais par- petitivo) e Estado (burocracia). Essa
ticipam. O termo Organização Não- argumentação abandonava explicita-
governamental, cunhado na ONU mente a compreensão da totalidade da
em 1945, fluido e ambíguo, contri- vida social e, portanto, a dinâmica das
buiu para diluir o sentido social des- relações sociais sob o capitalismo, que
sas entidades. A expressão ONG, crescentemente unificava sob seu co-
embebida na lógica liberal, enfatiza mando o conjunto da existência. Em
uma suposta cisão entre a vida social seu formato atual, amplamente difun-
e o Estado, velando suas relações. dido, identifica sociedade civil e ‘ter-
Obscurece as diferenças entre suas ceiro setor’ (Montaño, 2003). Nesse
matrizes sociais e, sobretudo, o vín- mesmo registro, no Brasil, a defesa de
culo com as classes sociais. De lá para entidades ‘privadas porém públicas’
cá ocorreu enorme expansão de as- atingia três objetivos: 1) contribuía para
sociações de cunho internacional. eliminar as conquistas populares no
Também nos setores populares, en- interior do Estado (redução das políti-
tre os trabalhadores, expandiam-se as cas públicas universais), reclamando
lutas e, com elas, as entidades recursos públicos para tais entidades
organizativas, nacionais ou interna- privadas; 2) como apologia das ‘quali-
cionais (desde sindicatos até associ- dades’ de eficiência e eficácia do mer-
ações com os mais variados objeti- cado quando devotado ao ‘bem públi-

374
Sociedade Civil A

co’; e, 3) como a admissão da pro- do as formas associativas do chão C


priedade privada e do Estado como concreto da produção e reprodução
insuperáveis. da vida social, das formas renovadas D
O âmbito direto da associação de de subordinação do trabalho e dos tra-
trabalhadores, como sindicatos, foi balhadores e abandonavam a crítica E
alvo de intenso ataque sob o período da totalidade social. Ao mesmo tem-
po, participaram ativamente da F
neoliberal, mas também as demais en-
tidades e associações populares se en- reconfiguração da hegemonia do
grande capital contemporâneo. G
contraram sob condições de luta pro-
fundamente desiguais, frente aos co- Em contrapartida, a análise das
H
piosos financiamentos despejados por formas concretas das organizações e
entidades constitutivas da sociedade
setores empresariais e entidades inter- I
nacionais (Garrison, 2000). A partir da civil – tal como formulada por
década de 1980 no Brasil, disseminou- Gramsci – permite avançar critica- N
se uma intensa mercantilização da mente na compreensão da expansão
filantropia que redundou numa efeti- capitalista no mundo e no Brasil con- O
va política de contenção e temporâneos. Diversos estudos reve-
apassivamento de suas reivindicações lam a imbricação crescente entre apa- P
(Fontes, 2006). Na década de 1990, relhos privados de hegemonia de base
reconfigurou-se uma pedagogia da empresarial e Estado, tanto em sua Q
configuração histórica (por exemplo,
hegemonia de novo tipo – de ‘tercei-
ra via’ (Neves, 2005). O Estado, lon-
Mendonça, 1998; Bianchi, 2001) R
como em seus modos de manifesta-
ge de encolher, ampliava-se através de
extensa rede capilar de ‘parcerias’ pri-
ção atual (Martins, 2007), demons- S
trando como a sociedade civil – as-
vado-públicas e de FASFIL – Funda-
ções e Associações Sem Fins Lucrati-
sim como o Estado ao qual se vincula T
– permanecem espaço de acirrada luta
vos (BRASIL, 2005) - formuladoras
e executoras de políticas públicas, em
social e, também, luta de classes. U
inúmeros casos com recursos igual-
V
mente públicos. Para saber mais:
Tais remodelações do conceito
A
de sociedade civil, aprofundando seu BIANCHI, A. Hegemonia em construção. A
sentido liberal, divulgavam uma apre- trajetória do PNBE. São Paulo: Xamã,
A
ensão do mundo segmentada, isolan- 2001.

375
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 6. vol.


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Janeiro: Paz e Terra, 4. ed., 1992. 1999-2001.
BRASIL. IBGE. As Fundações e Associações LOSURDO. Hegel, Marx e a tradição
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. Acesso em: 05 nov. 2008.
Sociabilidade – estratégias políticas para educar
COUTINHO, C. N. Gramsci. Um estudo o consenso no Brasil contemporâneo. Tese de
sobre seu pensamento político. Nova edição doutorado, Programa de Pós-Graduação
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MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia
DURIGUETTO, M. L. Sociedade civil e alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
democracia. Um debate necessário. São Paulo:
MENDONÇA, S. R. de. Agronomia e
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poder no Brasil. Niterói: Vício de Leitura,
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contemporâneo: lutas sociais e luta teórica
MONTAÑO, C. Terceiro Setor e questão
na década de 1980. In: NEVES, L. M. W;
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Educação Escolar no Brasil Contemporâneo. Rio NEVES, L. M. W. (Org.). A nova
de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006. pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital
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2005.
colaboração. Relação entre a Sociedade Civil,
o Governo e o Banco Mundial no Brasil. POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o
Brasília: Banco Mundial, 2000. socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

376
A

C
T D
TECNOLOGIA E

F
Gaudêncio Frigotto
G
Mais do que tratar da compre- ter-se tornado, nas atuais condições do
ensão etimológica ou do senso comum capitalismo, cada vez mais privatizada
H
do termo ‘tecnologia’, torna-se crucial, pelo capital e, conseqüentemente, mais
no atual contexto histórico do capita- excludente e destrutiva.
I
lismo, entendê-la como uma prática Vamos tratar, inicialmente, das di-
N
social cujo sentido e significado eco- ferentes acepções que assume o termo
nômico, político, social, cultural e edu- ‘tecnologia’ e a não necessária lineari-
O
cacional se definem dentro das relações dade entre ciência, técnica e ‘tec-
de poder entre as classes sociais. Isto nologia’. Em seguida, abordaremos a du- P
nos permite compreender porque a pla dimensão da ‘tecnologia’: sua
promessa iluminista do poder da ciên- dominante negatividade dentro do capi- Q
cia, técnica e ‘tecnologia’ – para liber- talismo hoje existente e sua virtualidade
tar o gênero humano da fome, do so- se liberada de sua concepção e uso como R
frimento e da miséria – não se cum- propriedade do capital.
priu para grande parte da humanidade Numa extensa obra sobre o con- S
e, no mesmo sentido, nos permite ceito de ‘tecnologia’ o filósofo brasi-
compreender o caráter mistificador e leiro Álvaro Vieira Pinto (2005) nos T
falso do determinismo tecnológico tão elucida a complexidade do tema e o
em voga atualmente na propalada so- desafio de apreender as diferentes me- U
ciedade globalizada e do conhecimen- diações e significados. Destaca, este
to. Da mesma forma, entender a autor, quatro sentidos mais usuais do V
‘tecnologia’ como uma prática social conceito de ‘tecnologia’. O primeiro e
nos permite, também, não cair no sen- mais geral é seu sentido etimológico: A
tido oposto mediante uma visão de ‘tecnologia’ como o ‘logos’ ou tratado
pura negatividade da ‘tecnologia’ por da técnica. Estariam englobados, nesta A

377
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

acepção, “a teoria, a ciência, a discus- há entre ciência, técnica e ‘tecnologia’


são da técnica, abrangidas nesta últi- uma relação complexa, uma unidade
ma acepção as artes, as habilidades do do diverso. Anaxágoras já nos trazia
fazer, as profissões e, generaliza- esta perspectiva dialética quando afir-
damente, os modos de produzir algu- mou: “somos inteligentes porque te-
ma coisa” (Pinto, 2005, p. 2219). O mos mãos”. Ou seja, o “homo faber não
segundo sentido de ‘tecnologia’ é só vai dilatando o âmbito e a perfei-
tomado, no senso comum e no ção de sua técnica, mas iluminando
linguajar corrente, como sinônimo de o homo sapiens” (Paris, 2002, p. 104).
técnica ou de know-how. O terceiro sen- Seguindo o fio condutor traçado
tido, que também aparece freqüente, por Marx desde os Manuscritos Econô-
relaciona-se ao ‘conjunto de técnicas micos e Filosóficos nos quais indica que
de que dispõe uma sociedade’. Refere- “o homem nasce de sua própria ativi-
se mais especificamente ao grau de de- dade vital, objeto de sua vontade e de
senvolvimento das forças produtivas sua consciência” (Marx, 1972, p. 111),
de uma determinada sociedade. Por tendo, na práxis, a categoria da unida-
fim, um quarto sentido, ligado a este de dialética entre ação e pensamento e
último, que é o de ‘tecnologia’ como teoria e atividade prática, a análise de
‘ideologia da técnica’. Paris nos conduz a uma síntese, na qual
Estes diferentes sentidos ten- saber técnico, tecnológico e científico,
dem, em nossa cultura, a serem em suas especificidades, relacionam-se
tomados de forma fragmentária e li- e fecundam-se dialeticamente.
near. Assim, passa-se a idéia de que Deste modo, “os instrumentos
a ciência se constituiria como um co- adquirem uma nova função a serviço
nhecimento puramente racional de não da ação, mas do conhecimento, da
onde emanaria o saber tecnológico, dilatação do âmbito de nossos senti-
e este, como explicita a primeira dos e de uma maior precisão” (Paris,
acepção anteriormente exposta, se 2002, p. 2001). “(...) o conhecimento
constituiria na epistemologia das di- fundamenta as possibilidades da técnica, e
ferentes técnicas, estas mais ligadas esta, por sua vez, leva ao conheci-mento
ao fazer humano prático. Tal humano conceitos, experiências
linearidade, como mostra Carlos Pa- e materiais, como os aparatos científi-
ris, partindo das raízes biológicas da cos que contribuem para o desenvol-
técnica, não procede. Pelo contrário, vimento do saber” (2002, p. 222).

378
Tecnologia A

A não linearidade não elide a exis- noções de ‘sociedade pós-industrial’, C


tência de especificidade entre as ativi- ‘sociedade do conhecimento’ e ‘era
dades humanas. Assim, pode-se esta- tecnológica’ que expressam a tese de D
belecer uma clara distinção entre ino- que a ciência, a técnica e as ‘novas
vações técnicas e tecnológica. tecnologias’ nos conduziram ao fim do
E
proletariado e a emergência do
As primeiras pressupõem um aper- F
feiçoamento numa linha estabele- ‘cognitariado’, e, conseqüentemente, à
superação da sociedade de classes sem
cida de energia e de materiais – G
como ilustraria o desenvolvimen- acabar com o sistema capital, mas, pelo
to da navegação à vela; as contrário, tornando-o um sistema eterno.
segundas implicam saltos qualita- H
tivos, pela introdução de recursos
Como sinaliza Carlos Paris, a ma-
energéticos e materiais novos - as- nipulação ideológica do avanço I
sim na arte de navegar, o apareci- tecnológico pretende nos apresentar a
mento dos navios a vapor e depois
os movidos por combustíveis fós-
imagem de um mundo em que os gran- N
des problemas estão resolvidos, e, para
seis e por energia nuclear. (Paris,
2002, p. 119) gozar a vida, o cidadão só precisa aper- O
tar diversos botões ou manejar obje-
Tomando a ‘tecnologia’ como tos de apoio (Paris, 2002, p. 175). Mas, P
uma relação e prática social e tendo como prossegue o autor, na verdade,
como horizonte que até o presente, se trata de uma epiderme embelezada Q
como assinalava Marx em sua obra, a que encobre uma imensa maioria de
humanidade vive sua pré-história hu- seres humanos que sequer conseguem R
mana marcada pela desigualdade de satisfazer suas necessidades elementa-
classes, impõe-se uma dupla superação: res. Esta manipulação ideológica, por S
o fetiche do determinismo tecnológico outro lado, passa a idéia que o desen-
e da pura negatividade da ‘tecnologia’ volvimento dos países dependentes e T
sob o capitalismo. subdesenvolvidos é mera questão de
O fetiche do determinismo comprar dos países centrais a U
tecnológico consiste exatamente no ‘tecnologia’ produzida ou desenvolver
fato de tomar-se a ‘tecnologia’ como capital humano (Landes, 1969;
V
força autônoma das relações sociais, Altvater, 1995; Arrighi, 1998).
das relações, portanto, de poder e de
A
Todavia,como observa Marx, “a
classe. A forma mais apologética deste máquina, triunfo do ser humano so-
A
fetiche aparece, atualmente, sob as bre as forças naturais, converte-se, nas

379
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

mãos dos capitalistas, em instrumento produção de ‘trabalho supérfluo’,


de servidão de seres humanos a estas vale dizer desemprego em massa
mesmas forças”; “(...); a máquina, (Mèzsàros, 2002).
meio infalível para encurtar o traba- Cabe, todavia, ressaltar que isso
lho cotidiano, o prolonga, nas mãos não pode nos conduzir ao viés, tam-
do capitalista (...)”; “a máquina, vari- bém freqüente, de uma visão de ‘pura
nha de condão para aumentar a negatividade da tecnologia’ em face à
riqueza do produtor, o empobrece, em sua subordinação aos processos de
mãos do capitalista” (Marx apud Pa- exploração e alienação do trabalhador
ris, 2002, p. 235). e como força cada vez mais diretamen-
Sob esta lógica, a ‘tecnologia’, de te produtiva do metabolismo e da re-
possibilidade de dilatação da vida, tem- produção ampliada do capital. Isto
se transformado, de forma cada vez conduz a uma armadilha para aqueles
mais brutal, em monstruosa Esfinge de que lutam pela superação do sistema
nosso tempo que vorazmente destrói capital de relações sociais por encami-
o direito e ameaça as bases da vida: nhar o embate para um âmbito exclu-
“Essa nova e Esfinge não é já a natu- sivamente ideológico e/ou por refor-
reza indômita, hostil revestida de çar a tese de que a travessia para o so-
símbolos matriarcais, que assaltava o ci- cialismo se efetiva pela indignação em
dadão Édipo fora dos muros da cidade, face à degradação e miséria social –
mas a própria técnica que se ergue ame- ‘tese do quanto pior melhor’.
açadora no recinto do mundo que acre- Os dois vieses – o fetiche do
ditávamos haver forjado para nosso determinismo tecnológico e a pura
bem-estar” (Paris, 2002, p. 162). negatividade da ‘tecnologia’ sob o ca-
A ‘tecnologia’, como força domi- pitalismo – decorrem de uma análise
nantemente do capital, acaba atuando que oculta o fato de que a atividade
numa lógica crescente de ‘produção humana, que produz a ‘tecnologia’ e
destrutiva’. Para manter-se e para pros- seus vínculos imediatos ou mediatos
seguir, o sistema capital funda-se cada com os processos produtivos, define-
vez mais num metabolismo do desper- se e assume o sentido de alienação e
dício, da ‘obsolescência pla-nejada’, na exploração ou de emancipação no
produção de ar mas, no âmbito das relações sociais determina-
desenvolvimento do complexo mili- das historicamente. Ou seja, a forma
tar, na destruição da natureza, e na histórica dominante da ‘tecnologia’ que

380
Tecnologia A

se constitui como força produtiva é a tecnologia, e não a natureza, que C


destrutiva e alienadora do trabalho e tem importância fundamental: ´a
do trabalhador, sob o sistema capital,
natureza não fabrica máquinas, lo- D
comotivas, ferrovias, telégrafo elé-
não é uma determinação a ela intrínse- trico, máquina de fiar automática,
ca, mas, como a mesma, é dominante- etc. Tais coisas são produtos da in- E
mente decidida, produzida e apropria- dústria humana; material natural
transformado em órgãos da vonta- F
da na lógica da propriedade privada e de humana que se exerce sobre a
da reprodução ampliada do capital. natureza ou da participação huma- G
Esta compreensão nos conduz, na na natureza. São órgãos do cérebro
então, ao fato de que a ciência, a técni- humano, criados pela mão humana: o
poder do conhecimento objetificado´ (Grun- H
ca e a ‘tecnologia’ são alvo de uma dis-
drisse apud Bottomore, 1998, p.
puta de projetos de modos de produ- 371). I
ção sociais da existência humana anta-
O embate é, pois, para a supera-
gônicos. A superação do capitalismo N
somente pode ser arrancada pela luta ção da propriedade privada apropria-
de classes, partindo da identificação e da dos meios e instrumentos de pro- O
exploração, no plano histórico, de suas dução e de vida pelo sistema capital
insanáveis e cada vez mais profundas para que a ‘tecnologia’ signifique não P
contradições. O conhecimento cien- meio de ampliação da exploração do
tífico, técnico e tecnológico é parte trabalho, de mutilação de direitos, de Q
crucial desta disputa hegemônica e vidas e do meio-ambiente, mas possa
condição sine qua non, da sociedade se constituir efetivamente em exten- R
socialista ou sociedade com democra- são de sentidos e membros humanos
cia de fato. para dilatar o tempo livre; vale dizer, S
tempo para desenvolvimento das qua-
Seria possível dizer que o marxis- lidades propriamente humanas para T
mo é a teoria e a prática socialistas todos os humanos. Uma ‘tecnologia’
de sociedades especificamente tec-
de cuidado com a vida e, por conse- U
nológicas. Ou seja, se o trabalho
humano que transforma a natureza qüência com as bases materiais e
tendo em vista objetivos coletivos ambientais da mesma. V
humanos é de importância funda-
mental para concepção marxista de A
PRÁXIS, a tecnologia é o produto:
artefatos que encerram valor e têm A
valor de uso (...) Marx ressalta que

381
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: LANDES, D. Prometeu Desacorrentado. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 1969.
ALTVATER, E. O Preço da Riqueza: MARX, K. Manuscritos de Economia y
pilhagem ambiental e a nova (des)ordem Filosofia. Madri: Alianza, 1972.
mundial. São Paulo: Unesp, 1995. MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril
ARRIGHI, G. A Ilusão do Desenvolvimento. Cultural, 1983.
Rio de Janeiro: Vozes, 1998. MÈSZÀROS, I. Para Além do Capital.
BOTTOMORE, T. Dicionário do Campinas: Boitempo, 2002.
Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge PARIS, C. O Animal Cultural. São Carlos:
Zahar Editor, 1998. Editora da UFSCAr, 2002.
GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o PINTO, A. V. O Conceito de Tecnologia.
Estado Moder no. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Editora Contraponto,
Civilização Brasileira, 1991. 2005. v I e II..


TECNOLOGIAS EM SAÚDE

Lilia Blima Schraiber


André Mota
Hillegonda Maria Dutilh Novaes

Gênese do Conceito ser compreendida como conjunto de


ferramentas, entre elas as ações de tra-
Difícil será falar da gênese do con- balho, que põem em movimento uma
ceito ‘tecnologia’ sem referir o concei- ação transformadora da natureza. Sen-
to de ‘técnica’. Difícil também será do assim, além dos equipamentos, de-
separar o que a história reuniu: técnica vem ser incluídos os conhecimentos e
e tecnologia na produção de ‘trabalho’. ações necessárias para operá-los: o sa-
No campo da saúde, observa-se ber e seus procedimentos. O sentido
uma redução usual da tecnologia a contemporâneo de tecnologia, portan-
equipamentos, e mais, a equipamentos to, diz respeito aos recursos materiais
médicos. No entanto, a tecnologia deve e imateriais dos atos técnicos e dos

382
Tecnologias em Saúde A

processos de trabalho, sem, contudo, um saber-fazer que é simultaneamente C


fundir estas duas dimensões. Além dis- um fazer e um saber. Embora juntos na
so, dado o grande desenvolvimento do técnica, estas esferas foram alvo de valo- D
saber técnico-científico dos dias atu- rização e desenvolvimento desigual ao
ais, este componente saber da longo da história, conferindo à própria
E
tecnologia ganha qualidade estatuto técnica ora um sentido maior de saber,
F
social adicionais. Ao buscar precisar ora de produzir algo, sem nunca deixar
melhor estas condições, para explorá- de ser uma ação manual do homem.
G
las no trabalho em saúde, os estudos No primeiro sentido, técnica é
de Lilia B. Schraiber referem-se à tomada na qualidade de engenho hu- H
tecnologia como saber que, se já tem a mano: “faculdade da arte, de criação
grande qualidade de propiciar atos téc- daquilo que ela própria (a Natureza) I
nicos (transformações das coisas por não engendra, não importando os
sua intervenção manual), é construído, motivos pelos quais não o faz” N
valorizado e visto, sobretudo, pelo que (Novaes, 1996, p. 25). O saber, neste
possui de conhecimento complexo: caso, está diretamente ligado à própria O
“um conhecimento do tipo teoria. Di- obra a ser criada (saber poiético). Atu-
remos: uma teoria sobre práticas ou alizando-se na modernidade como sa- P
modos de praticar (...)” (Schraiber et ber do tipo científico, essa mudança irá
al., 1999). Alguns autores chamam este conferir à técnica o sentido de uma Q
saber de teoria científica das técnicas intervenção manual cujo fundamento
ou tecnologia – a ciência das técnicas passa de um saber mais imediato e prá- R
(Gama, 1986; Lenk, 1990); outros, sim- tico para, principalmente, um saber
plesmente ciência, sem diferenciar as progressivamente complexo e produ- S
ciências tecnológicas das ciências bási- zido para o mundo prático, mas não
cas, em razão da grande aproximação imediatamente neste mundo prático: a T
histórica entre ciência e técnica Ciência moderna e seu modo de pro-
(Granger, 1994). duzir conhecimentos com o estatuto U
Técnica (techné), dirá Ricardo L. de verdade. Em um segundo sentido,
Novaes (1996), é o termo grego para de- quando se toma a técnica da perspec-
V
signar uma ‘ordem de produção’ que tiva de um fazer, é valorizada por pro-
A
pressupõe um engendramento, uma cri- duzir produtos, um ‘ofício’, um fazer
ação de modos de fazer, que é gasto de energia do homem, e,
A
‘engenho e arte’. Trata-se, assim, de pois, trabalho. É dele que deriva o pro-

383
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

duto ou “uma obra exterior ao agente, de indústria, por exemplo, como um


ainda que intelectualmente maquinada” agente de trabalho sem saber (‘útil’)
(Novaes, 1996, p. 26). (Schraiber et al., 1999).
A partir dos séculos XV e XVI, De tal modo este caráter técnico
com a valorização do trabalho (ato de ficou associado à ciência (na noção ci-
produzir produtos) e, enquanto parte entífico-tecnológica), que tanto mais
do desenvolvimento histórico do ca- valorizamos a ciência quanto mais re-
pitalismo, ocorrem mudanças das re- presente uma aplicação, uma razão
lações entre a filosofia e a ciência, o tecnológica regendo a produção de
trabalho manual e o intelectual, a teo- conhecimento (Ayres, 1995). Neste
ria e a técnica, culminando com o aban- processo, sobretudo a partir do gran-
dono da concepção de ciência como de desenvolvimento dos equipamen-
verdade desinteressada em prol de sua tos na segunda metade do século XX,
acepção de conhecimento que nasce a própria técnica revestiu-se de ciência
para o atendimento das coisas neces- (conhecimento complexo), tendencial-
sárias à vida (Rossi, 1989), resultando, mente expulsando saberes de outro
no século XIX, na enorme importân- tipo (Habermas, 1990). Esta associa-
cia do trabalho para a conformação da ção atual da técnica com a ciência evi-
vida econômica e social. ta valorizarmos saberes práticos, ou
Essa rearticulação ciência-técnica artes (técnicas) diversas da técnica ci-
corresponde ao movimento que entífica moderna.
redispõe socialmente os artistas, os No campo da saúde, todo este
experimentadores e engenheiros, os movimento de reorientação e nova
médicos, em especial os cirurgiões-bar- qualificação da técnica dirá respeito à
beiros, os artesãos e os trabalhadores emergência do trabalho médico moder-
manuais, camponeses e posteriormente no, e corresponde, na esfera do traba-
fabris, estabelecendo novas configura- lho manual em sua conexão com a téc-
ções e hierarquias entre as artes mecâ- nica, à transformação dos ofícios, ofí-
nicas e as liberais. Ao mesmo tempo, cios das ‘artes de curar’. Surge a ‘tera-
os saberes técnicos são apropriados pêutica clínica’ que reúne diagnose com
como conhecimento erudito até que a intervenção manual, quando a medici-
ciência moderna, já nos séculos XVIII na da modernidade, como nos aponta
e XIX, separa e rejeita o saber prático, Roberto Passos Nogueira (1977), for-
restando o trabalhador manual da gran- ja o médico clínico, seja este o da clíni-

384
Tecnologias em Saúde A

ca médica ou da clínica cirúrgica, ao com a própria tecnologia da medicina, C


integrar cirurgiões-barbeiros com os e, num claro movimento de
físicos (os praticantes da medicina in- sobrevalorização da possibilidade de D
terna), unificando, respectivamente, intervir, ou da criação desta possibili-
artesãos de um ofício com médicos da dade, até mais que a própria utilidade
E
erudição e da diagnose. Este movimen- da técnica e seu produto, significou
F
to também é o do saber médico, quan- para muitos uma espécie de ‘bem em
do a medicina das espécies patológi- si mesmo’, corporificado na existência
G
cas passa a ser a clínica anato- de equipamentos e de medicamentos.
mopatológica (Foucault, 1977), um co- Os primeiros, principalmente, passam H
nhecimento sobre o corpo voltado à a ser o grande referente da noção de
sua (útil) reparação. Os médicos clíni- tecnologia. Será somente quase ao fi- I
cos passam a ser também agentes de nal daquele século que se busca definir
uma técnica e a usarem, além da erudi- saúde em sua positividade, a fim de N
ção e do raciocínio para o diagnóstico, conhecer os procedimentos de sua pro-
suas mãos. moção – ‘tecnologias de saúde’ –, de O
Este movimento tecnificador dá forma separada, ainda que comple-
aos médicos novos sentidos para o uso mentar e interdependente, dos proce- P
de equipamentos: alguns, oriundos das dimentos da medicina.
precedentes artes de cura, gregas ou Q
medievais, são ‘reaproveitados’; outros,
novos, são criados ainda no século Desenvolvimento histórico R
XIX. Mas também na medicina, den- do conceito
tro do movimento histórico mais glo- S
bal, será na segunda metade do século A partir da década de 1980 do sé-
XX que se verifica a grande criação e culo XX, desenvolvem-se abordagens
T
incorporação de equipamentos e me- que enunciam dois segmentos da
dicamentos. Constitui-se, então, a U
‘tecnologia em saúde’: os conceitos de
‘tecnologia em saúde’, que é, sobretu- ‘tecnologias de produto’ (equipamen-
do, ‘tecnologia de curar’.
V
tos, medicamentos) e ‘tecnologias de
De sua origem na modernidade a processo’ (procedimentos). Estas abor-
A
seu estabelecimento como conceito já dagens constituem respostas à
nos anos 70-80 do último século, a indiferenciação com que vinham sen- A
‘tecnologia em saúde’ é confundida do tratados esses componentes da

385
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tecnologia, mascarando a origem rado de 1986 e publicada em livro, em


sócio-histórica das tecnologias de 1994, a necessidade referente às práti-
produto, que, conforme Novaes cas de saúde tomadas como trabalho
(2006), articulam-se de formas espe- social de aprofundar o conhecimento
cíficas em contextos históricos par- das ‘características internas’ (intra-
ticulares, constr uindo processos técnica) dessas práticas,
complexos e ramificados em todas as consubstanciadas com suas ‘caracte-
etapas de sua criação e uso: pesqui- rísticas externas’ (o contexto sócio-
sa, desenvolvimento, inovação e in- histórico de sua produção). E a
corporação e utilização nos serviços tecnologia passa a ser entendida como
de saúde. Autores como Br uno “o conjunto de saberes e instrumentos
Latour (2000) rejeitam o que consi- que expressa, no processo de produ-
deram uma abordagem reducionista ção de serviços, a rede de relações
no estudo das tecnologias que sociais em que seus agentes articulam
desconecta as contingências sociais sua prática em uma totalidade social”
da operacionalização técnica. (Mendes Gonçalves, 1994, p. 32).
No Brasil, os estudos de Maria Assim, da perspectiva da
Cecília F. Donnangelo (1975; historicidade, este olhar, de referência
Donnangelo & Pereira, 1976), dedica- marxista, contrapõe-se à tradição de
dos à análise da medicina como práti- conceber a medicina como prática tão
ca técnica e social, abrem as oportuni- antiga quanto a própria humanidade
dades para a construção de um qua- em seus propósitos e renovada, não
dro teórico que não só examinará o pelos diferentes contextos sociais, mas
proceder das intervenções nas práticas tão-somente pela evolução dos conhe-
de saúde como perseguirá neles a cimentos e técnicas, consubstanciada
historicidade e a socialidade dessas prá- essencialmente nos equipamentos. Já
ticas, emergindo uma teoria do traba- da perspectiva da socialidade, a teoria
lho em saúde (Mendes Gonçalves, do trabalho em saúde rompe com a vi-
1992). Voltada para o ‘processo de tra- são de que o modo de operar a prática
balho’, primeiro em medicina e poste- e as relações correspondentes entre os
riormente em saúde pública, nesta, o indivíduos envolvidos seria situação
conceito de ‘tecnologia em saúde’ ga- derivada das tecnologias materiais.
nhará novo estatuto. Apontará Men- Ao contrário, o modo de vida em so-
des Gonçalves, em sua tese de douto- ciedade está inscrito no modo de ser

386
Tecnologias em Saúde A

das práticas em saúde, produzindo uma Dessa formulação, deriva, em estudos C


configuração geral de tais práticas, a voltados para a política de saúde, a
qual é recriada em arranjos particula- noção de modelos tecno-assistenciais, D
res nas especificidades das técnicas. ou, mais usual, modelos assistenciais
Este lado ‘interno’ são os processos de em saúde.
E
trabalho, arranjos da técnica em medi- Encontra-se também na produção
F
cina na organização social da produ- de Mendes Gonçalves a identificação
ção dos serviços de saúde e que dão de dois específicos saberes
G
conta das múltiplas determinações de tecnológicos em saúde da moderni-
seu trabalho como também social. Este dade. Trata-se da epidemiologia, saber H
‘interno’ são recriações, e não tão-so- tecnológico do trabalho de saúde pú-
mente reflexos de seu ‘exterior’ (as blica, e da clínica, saber tecnológico do I
políticas de saúde, os mercados de tra- trabalho de assistência médica. De ori-
balho, a economia política do comple- gem comum, são estes saberes recria- N
xo médico-industrial, as ideologias ções técnicas específicas de aproxima-
ocupacionais, corporativas e as cultu- ção das necessidades de saúde O
ras profissionais, os movimentos soci- (adoecimentos), na vertente popu-
ais de reivindicação de direitos, de aces- lacional ou coletiva, o primeiro, e na P
so e de consumo etc). Tais recriações vertente individual, o segundo (Men-
estão condensadas no saber que ori- des Gonçalves, 1994). Detalhando, no Q
enta esses modos de produzir, técnica mesmo estudo de investigação histó-
e socialmente, os cuidados. Este saber rica do trabalho em saúde pública em R
é definido como saber tecnológico ou São Paulo, os modos de produzir in-
saber operante do trabalho médico. tervenções correspondentes a diferen- S
‘Tecnologia em saúde’ aparece, então, tes contextos sócio-históricos, o autor
desdobrada em duas novas concep- identifica o controle do meio e das T
ções: o saber que preside o modo de populações com a polícia sanitária e o
produzir os cuidados em saúde – ‘sa- campanhismo, como o primeiro ‘mo- U
ber tecnológico’ em saúde – e o arran- delo tecnológico’ da saúde pública
jo dos elementos técnicos plasmado paulista, presidida pelo ‘saber
V
em um modo de produzir – os mode- tecnológico’ da epidemiologia de base
A
los tecnológicos de organização do tra- bacteriológica, nos anos 1890-1920.
balho ou, simplesmente, ‘modelos Um segundo ‘modelo tecnológico’ se
A
tecnológicos do trabalho’ em saúde. fará presente pelo privilegiamento do

387
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

controle de doentes pelos dispensários repetitivo do conhecimento científi-


e centros de saúde, tendo a educação co. Nesse sentido, passagem da clí-
sanitária como seu ‘saber tecnológico’ nica engenho e arte para o algoritmo
maior, no período 1920-1960. Após clínico dos protocolos contemporâ-
1960, o controle integrado do meio e neos. Apontando que a clínica man-
dos doentes pela territorialização dos tém-se, não obstante a maior valori-
centros de saúde terá, na programa- zação do científico, como um duplo
ção em saúde, uma tentativa de ‘saber técnico, isto é, saber operante que
tecnológico’ da integração médico-sa- combina, nos contextos de trabalho,
nitária, ao se introduzir a assistência o uso do conhecimento científico
médica como parte das atribuições das com aquele de ordem prática, a au-
instituições de saúde pública tora encontra na medicina contem-
(Schraiber, 1990). porânea tanto a mecanização e a
No estudo que explora o traba- rotinização da ação profissional, a
lho de assistência médica, publicado que designa por ‘técnica-
em 1993, Schraiber aponta as trans- tecnológica’, quanto a criação e a ino-
formações históricas da ‘tecnologia vação, que seria a ‘técnica-arte’.
médica’, ao passar a medicina, de um Uma outra terminologia classifi-
‘ar ranjo tecnológico do tipo catória para tratar essas características
artesanal, correspondente ao ‘mode- de rotinização versus criação, que remete
lo tecnológico’ do pequeno produ- também à distinção entre recursos
tor de consultório privado do perío- materiais e saberes, encontra-se nos
do liberal de exercício da profissão, estudos de Emerson Elias Merhy
para um ‘modelo de medicina (1997, 2002), ao propor: as ‘tecnologias
tecnológica’, em arranjos de base leves’, que associa a relações de pro-
progressivamente tecnicistas, com o dução de vínculo, autonomização, aco-
empresariamento da assistência mé- lhimento e gestão; as ‘tecnologias leve-
dica após os anos 60, no Brasil. Ex- duras’, que seriam os saberes já
plorando, em estudo posterior, mais estruturados, tais como a clínica médi-
de perto a clínica como ‘saber ca, a clínica psicanalítica, a
tecnológico’ (Schraiber, 1997), a au- epidemiologia, o taylorismo e o
tora demonstra sua passagem de um fayolismo; e as ‘tecnologias duras’,
saber reflexivo e pouco aparelhado quais sejam, as máquinas, as normas e
para um uso mais mecânico e as estruturas organizacionais.

388
Tecnologias em Saúde A

Emprego do conceito na da integralidade dos cuidados ou dos C


área da saúde na atualidade próprios sentidos do cuidar em saúde
pertence à esfera da filosofia ou da te- D
Diversos são os desdobramentos oria crítica nas ciências humanas e so-
ciais. Para ganhar sentido tecnológico,
E
dessas elaborações primeiras acerca da
‘tecnologia em saúde’ no Brasil. De tal as proposições devem configurar con-
F
modo, porém, elas próprias e as pro- creta e materialmente arranjos de tra-
balho. Algumas o fazem, voltando-se,
duções que se tomam como seus des- G
dobramentos são contemporâneos, em particular, para a atenção primária
que a partição entre o que é emprego em saúde, cuja necessidade de inova- H
atual e o que foi desenvolvimento his- ção está em sua inserção em uma dada
tórico dessa ‘tecnologia em saúde’ fica forma de organização social da pro- I
algo artificial. Contudo, tomou-se aqui dução dos serviços (e de sua distribui-
a inflexão que se dá a partir da ção): o Sistema Único de Saúde (SUS) N
conceituação de tecnologia que passa no Brasil, modelo tecnológico de gran-
a incluir os saberes e as possibilidades des exigências de integralidade (Pinhei- O
que daí emergem de criação do novo: ro & Mattos, 2001, 2003, 2005). Nesse
as ‘inovações tecnológicas’ em saúde, empreendimento, surgem as noções de P
seja nas práticas da assistência médica, ‘tecnologias simplificadas’ e
ou nas da saúde pública. Uma primei- ‘tecnologias próprias’. A primeira no- Q
ra dessas inovações surge exatamente ção corresponde à identificação da
na e para a articulação entre essas prá- atenção primária como arranjo R
ticas: são as diversas elaborações em tecnológico convencional apenas des-
torno da noção de integralidade, com provido de tecnologia material relevan- S
as conseqüentes ‘tecnologias de te, daí ser simplificado. Já as tecnologias
integração’ das práticas de saúde. próprias buscam denotar o específico T
Cabe aqui uma observação, no dessa atenção, apontando o caráter
complexo do ‘saber tecnológico da U
sentido de que se toda inovação
tecnológica tem por base um pensa- integração das ações’ (Schraiber,
Nemes & Mendes Gonçalves, 1996) e
V
mento crítico acerca das práticas de
saúde, nem todo pensamento crítico operando uma distinção entre a com-
A
que se tece acerca dessas práticas con- plexidade da tecnologia material e
aquela assistencial, na produção dos
figura-se como tecnologias ou resulta A
nelas. Assim, muito da reflexão acerca cuidados.

389
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Há, ainda, as inovações correlatas FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica.


ao trabalho gerencial, com seus sabe- Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1977.
res tecnológicos: o planejamento, a or-
ganização e administração, a avaliação GADAMER, H-G. The Enigma of Health:
the art of healing in a scientific age. California:
dos serviços de saúde. São proposições Stanford University Press, 1996.
tecnológicas buscadas na tríade plane-
GAMA, R. A Tecnologia e o Trabalho na
jamento-produção de informação-ava- História. São Paulo: Nobel/Edusp, 1986.
liação e que podem ser mais voltadas à
GIANNOTTI, J. A. Trabalho e Reflexão:
organização da produção dos trabalhos ensaios para uma dialética da sociabilidade.
ou mais voltadas às interações entre 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
sujeitos ali presentes. Nesta última di- GRANGER, G. G. A Ciência e as Ciências.
reção, destaca-se o estudo de Ricardo São Paulo: Unesp, 1994.
Rodrigues Teixeira (2003) com a pro- HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da
posição das ‘redes de conversações’, Modernidade. Lisboa: Publicações D.
tecnologia em que o autor insere o aco- Quixote, 1990.
lhimento como esfera interativa e HABERMAS, J. Técnica e Ciência como
comunicacional do trabalho em saúde. Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.
LATOUR, B. Ciência em Ação: como seguir
engenheiros e cientistas sociedade afora. São
Para saber mais: Paulo: Unesp, 2000.
LENK, H. Razão Pragmática: a filosofia
ARENDT, H. A Condição Humana. entre a ciência e a práxis. Rio de Janeiro:
10.ed. Rio de Janeiro: Ed Forense- Tempo Brasileiro, 1990.
Universitária, 2001.
MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro:
AYRES, J. R. C. M. Epidemiologia e Civilização Brasileira, 1968.
Emancipação. São Paulo: Hucitec-
Abrasco, 1995. MENDES GONÇALVES, R. B.
Medicina e História: raíces sociales del trabajo
AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos
médico. México: Siglo Veinteuno, 1984.
de ser (do) humano e as práticas de
saúde. Saúde e Sociedade, 13(3): 16-29, MENDES GONÇALVES, R. B.
2004. Práticas de saúde: processos de trabalho
DONNANGELO, M. C. F. Medicina e e necessidades. Cadernos Cefor, n. 1, 1992.
Sociedade. São Paulo: Ed Pioneiras, 1975. (Série Textos)

DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, MENDES GONÇALVES, R. B.


L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Tecnologia e Organização das Práticas de
Cidades, 1976. Saúde: características tecnológicas do processo

390
Tecnologias em Saúde A

de trabalho na rede estadual de Centros de PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. C


Saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec- (Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na
Abrasco, 1994. Atenção e no Cuidado à Saúde. Rio de D
MERHY, E. E. Planejamento como Janeiro: IMS/Uerj/Abrasco, 2001.
tecnologia de gestão: tendências e debate PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. E
do planejamento em saúde no Brasil. In: (Orgs.) Construção da Integralidade: cotidiano,
GALLO, E. (Org.) Razão e Planejamento:
reflexões sobre política, estratégia e liberdade.
saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: F
IMS/Uerj/Abrasco, 2003.
São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1995.
PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. G
MERHY, E. E. Em busca do tempo (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da
perdido: a micropolítica do trabalho vivo
em saúde. In: MERHY, E. E. &
Integralidade. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/ H
Abrasco, 2005.
ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um
desafio para o público. São Paulo: Hucitec, ROSSI, P. Os Filósofos e as Máquinas 1440- I
1997. 1700. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do SCHRAIBER, L. B.(Org.) Programação em N
trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. Saúde Hoje. São Paulo: Hucitec, 1990.
NOGUEIRA, R. P. Medicina Interna e SCHRAIBER, L. B. O Médico e seu O
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1977. Dissertação de Mestrado, Rio de Hucitec, 1993. P
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SCHRAIBER, L. B. Medicina Tecnológica
NOVAES, R. L. Sobre a técnica. História, e Prática Profissional Contemporânea: novos Q
Ciências, Saúde-Manguinhos, III(1): 24-49, dilemas, outros desafios, 1997. Tese de Livre-
1996. Docência, São Paulo: Faculdade de R
NOVAES, H. M. D. Da produção à Medicina da USP.
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saúde: desafios do século XXI. Saúde
SCHRAIBER, L. B.; NEMES, M. I. B. S
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(Orgs.) Saúde do Adulto: programas e ações
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em unidade básica. São Paulo: Hucitec,
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SCHRAIBER, L. B et al. Planejamento,
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identificando problemas. Ciência e Saúde
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Coletiva, 4(2): 221-242, 1999.
PEDUZZI, M. Mudanças tecnológicas A
e seu impacto no processo de trabalho SILVA JR., A G. Modelos Tecnoassistenciais:
em saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 1(1): o debate no campo da saúde coletiva. São
75-92, 2003. Paulo: Hucitec, 1998. A

391
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

TEIXEIRA, C. O Futuro da Prevenção. rede de conversações. In: PINHEIRO,


Salvador: Casa da Qualidade Editora, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção
2001. da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas
em saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS/
TEIXEIRA, R. R. O acolhimento num
Abrasco, 2003.
serviço de saúde entendido como uma


TERRITORIALIZAÇÃO EM SAÚDE

Grácia Maria de Miranda Gondim


Maurício Monken

Localizar significa mostrar o lugar. Quer situar os diferentes usos do termo


dizer, além disto, reparar no lugar. territorialização (teórico, prático e
Ambas as coisas, mostrar o lugar e repa-
metodológico) pelo setor saúde, des-
rar no lugar, são os passos preparatórios tacando sua importância no cenário
de uma localização. atual da reorganização da atenção, da
rede de serviços e das práticas sanitá-
Mas é muita ousadia que nos conforme-
rias locais.
mos com os passos preparatórios.
O termo território origina-se do
A localização termina, como corresponde latim – territorium, que deriva de terra e
a todo método intelectual, na interrogação que nos tratados de agrimensura apa-
que pergunta pela situação do lugar. rece com o significado de ‘pedaço de
terra apropriada’. Em uma acepção
(Heidegger,1998)
mais antiga pode significar uma por-
ção delimitada da superfície terrestre.
Ao se buscar definir a Nasce com dupla conotação, material
‘territorialização em saúde’, precede e simbólica, dado que
explicitar a historicidade dos concei- etimologicamente aparece muito pró-
tos de território e territorialidade, suas ximo de terra-territorium quanto de
significações e as formas de apropria- terreo-territor (terror, aterrorizar). Tem
ção no campo da saúde pública e da relação com dominação (jurídico-po-
saúde coletiva. Pretende-se com isso, lítica) da terra e com a inspiração do

392
Territorizalização em Saúde A

medo, do terror – em especial para ra-se a hipótese de que um elemento C


aqueles que, subjugados à dominação, indissociável da noção de poder é o
tornam-se alijados da terra ou são im- território, dado que não há organiza- D
pedidos de entrar no ‘territorium’. ção sem poder (Nunes, 2006).
Por extensão, pode-se também dizer Raffestin (1993) entende o terri-
E
que, para aqueles que têm o privilégio tório como todo e qualquer espaço
F
de usufruí-lo, o território inspira a iden- caracterizado pela presença de um po-
tificação (positiva) e a efetiva ‘apropri- der, ou ainda, “um espaço definido e
G
ação’ (Haesbaert, 1997, 2005; Souza & delimitado por e a partir de relações
Pedon, 2007). de poder” (p. 54). E ainda, o poder H
A concepção de território que “surge por ocasião da relação”, e “toda
mais atende às necessidades de análise relação é ponto de surgimento do po- I
das ciências sociais e humanas é a der” (p. 54). Quando coexistem em
sóciopolítica. Só é possível falar em um mesmo espaço várias relações de N
demarcação ou delimitação em contex- poder dá-se o nome de ‘territoria-
tos nos quais exista uma pluralidade de lidades’, de modo que uma área que O
agentes (Nunes, 2006). Portanto, a abriga várias territorialidades pode ser
noção de território é decorrência da considerada vários territórios. P
vida em sociedade, ou ainda, “os terri- A territorialidade para Robert
tórios [...] são no fundo, antes ralações Sack(1986) é uma estratégia dos indi- Q
sociais projetadas no espaço, que es- víduos ou grupo social para influenci-
paços concretos” (Souza, 1995, p.87). ar ou controlar pessoas, recursos, fe- R
Em uma sociedade política os in- nômenos e relações, delimitando e efe-
divíduos se articulam por meio de re- tivando o controle sobre uma área. A S
lações reguladas e possui princípios territorialidade resulta das relações
mínimos de organização. Essa orga- políticas, econômicas e culturais, e as- T
nização só se viabiliza quando existe sume diferentes configurações, crian-
um poder habilitado a coordenar todos do heterogeneidades espacial, U
aqueles que se encontram em um de- paisagística e cultural - é uma expres-
terminado espaço. Por isso, quando se são geográfica do exercício do poder
V
analisam os coletivos humanos ao lon- em uma determinada área e esta área é
A
go da história, só se destaca a noção o território.
de território a partir das primeiras so- O território configura-se no espa-
A
ciedades políticas. Com isso, corrobo- ço, a partir de uma ação conduzida por

393
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

um ator sintagmático - aquele que rea- contemporaneidade se expressa, se-


liza um programa, em qualquer nível gundo Santos (1996), com base em
da realidade. Ao se apropriar de um dois movimentos: das horizontalidades
espaço, de forma concreta ou abstra- e das verticalidades. As horizon-
ta, “[...] o ator ‘territorializa’ o espaço” talidades serão os domínios de conti-
(Raffestin, 1993, p.143). Significa que güidades, constituídos por uma conti-
o território materializa as articulações nuidade territorial, enquanto as
estruturais e conjunturais a que os in- verticalidades seriam formadas por
divíduos ou os grupos sociais estão pontos distantes uns dos outros, resul-
submetidos num determinado tempo tado de uma interdependência hierár-
histórico, tornando-se intimamente quica dos territórios, conseqüente do
correlacionado ao contexto e ao modo processo de globalização econômica.
de produção vigentes. Esse aspecto As intensas mudanças econômicas e
processual de formação do território políticas, decorrentes das verticalidades
constitui a ‘territorialização’ (Gil, 2004). - mundialização do capital e o modelo
O processo de territorialização neoliberal de organização do Estado
pode ser entendido como um movimen- trouxeram impactos negativos sem
to historicamente determinado pela ex- precedentes na organização dos terri-
pansão do modo de produção capitalis- tórios, nas estruturas produtivas e so-
ta e seus aspectos culturais. Dessa for- ciais dos países em desenvolvimento,
ma, caracteriza-se como um dos produ- desenhando um cenário de profundas
tos socioespaciais das contradições so- desigualdades sociais, com a exclusão
ciais sob a tríade economia, política e de parcela significativa da população
cultura (EPC), que determina as diferen- ao direito à vida e à cidade (Tavares &
tes territorialidades no tempo e no espa- Fiori, 1993; Antunes & Alves, 2004).
ço - as desterritorialidades e as reter- No setor saúde os territórios
ritorialidades. Por isso, a perda ou a cons- estruturam-se por meio de
tituição dos territórios nasce no interior horizontalidades que se constituem em
da própria territorialização e do próprio uma rede de serviço que deve ser
território. Ou seja, os territórios encon- ofertada pelo Estado a todo e qualquer
tram-se em permanente movimento de cidadão como direito de cidadania. Sua
construção, desconstrução e reconstru- organização e operacionalização no es-
ção (Saquet, 2003). paço geográfico nacional pautam-se pelo
A constituição dos territórios na pacto federativo e por instrumentos

394
Territorizalização em Saúde A

normativos, que asseguram os princí- de e acesso às ações e serviços de saú- C


pios e as diretrizes do Sistema de Saú- de (Teixeira et al., 1998).
de, definidos pela Constituição Fede- Para alguns autores, a D
ral de 1988. Não obstante os avanços territorialização nada mais é do que um
na saúde nos últimos 20 anos, processo de “habitar um território”
E
alicerçados em bases teóricas sólidas (Kastrup, 2001, p. 215). O ato de ha-
F
da Reforma Sanitária, o setor padece bitar traz como resultado a
de problemas organizacionais, corporificação de saberes e práticas.
G
gerenciais e operacionais, demandan- Para habitar um território é necessário
do uma nova reorganização de seu pro- explorá-lo, torná-lo seu, ser sensível às H
cesso de trabalho e de suas estruturas suas questões, ser capaz de movimen-
gerenciais nas três esferas de gestão do tar-se por ele com alegria e descober- I
sistema, de modo a enfrentar as desi- ta, detectando as alterações de paisa-
gualdades e iniqüidades sociais em saú- gem e colocando em relação fluxos N
de, delineadas pela tríade econômico- diversos - não só cognitivos, não só
política globalização, mundialização e técnicos, não só racionais - mas políti- O
neoliberalismo. cos, comunicativos, afetivos e
No cenário da crise de legitimida- interativos no sentido concreto, P
de do Estado, o ponto de partida para detectável na realidade. (Ceccim,
a reorganização do sistema local de 2005b). Essa abordagem remete, fun- Q
saúde brasileiro foi redesenhar suas damentalmente, à importância da
bases territoriais para assegurar a uni- territorialização para os processos R
versalidade do acesso, a integralidade formativos em saúde com foco na
do cuidado e a eqüidade da atenção. aprendizagem significativa e nos con- S
Nesse contexto, a territorialização em textos de vida do cotidiano.
saúde se coloca como uma Entende-se, portanto, que o ter- T
metodologia capaz de operar mudan- ritório da saúde não é só físico ou geo-
ças no modelo assistencial e nas práti- gráfico: é o trabalho ou a localidade. U
cas sanitárias vigentes, desenhando “O território é de inscrição de senti-
novas configurações loco-regional, dos no trabalho, por meio do traba-
V
baseando-se no reconhecimento e lho, para o trabalho” (Ceccim, 2005a,
A
esquadrinhamento do território segun- p.983). Os territórios estruturam
do a lógica das relações entre ambien- habitus, e não são simples e nem de-
A
te, condições de vida, situação de saú- pendem de um simples ato de vontade

395
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

sua transformação que inclui a luta pelo as funções relacionadas ao conjunto da


amplo direito à saúde. A tarefa de con- atenção à saúde. Envolve a organiza-
frontar a força de captura das ção e gestão do sistema, a alocação de
racionalidades médico-hegemônica e recursos e a articulação das bases de
gerencial hegemônica requer impor a oferta de serviços por meio de fluxos
necessidade de singularização da aten- de referência intermunicipais. Como
ção e do cuidado e a convocação per- processo de delineamento de arranjos
manentemente dos limites dos territó- espaciais, da interação de atores, orga-
rios (Rovere, 2005). nizações e recursos, resulta de um
Encontra-se em jogo um proces- movimento que estabelece as linhas e
so de territorialização: construção da os vínculos de estruturação do campo
integralidade; da humanização e da relacional subjacente à dinâmica da re-
qualidade na atenção e na gestão em alidade sanitária do SUS no nível local.
saúde; um sistema e serviços capazes Essas diferentes configurações espaci-
de acolher o outro; responsabilidade ais podem dar origem a diferentes pa-
para com os impactos das práticas drões de interdependência entre luga-
adotadas; efetividade dos projetos res, atores, instituições, processos e flu-
terapêuticos e afirmação da vida pelo xos, preconizados no Pacto de Gestão
desenvolvimento da autodeterminação do SUS (Fleury & Ouverney, 2007).
dos sujeitos (usuários, população e pro- A saúde pública recorre à
fissionais de saúde) para levar a vida territorialização de informações, há al-
com saúde. Essa territorialização não guns anos, como ferramenta para lo-
se limita à dimensão técnico-científica calização de eventos de saúde-doença,
do diagnóstico e da terapêutica ou do de unidades de saúde e demarcação de
trabalho em saúde, mas se amplia à re- áreas de atuação. Essa forma restrita
orientação de saberes e práticas no de territorialização é vista com algu-
campo da saúde, que envolve mas restrições, principalmente entre os
desterritorializar os atuais saberes geógrafos. Alegam ser um equívoco
hegemônicos e práticas vigentes falar em territorialização da saúde, pois
(Ceccim, 2005a). seria uma tautologia já que o território
A territorialização pode expressar usado é algo que se impõe a tudo e a
também pactuação no que tange à de- todos, e que todas as coisas estão ne-
limitação de unidades fundamentais de cessariamente territorializadas. Essa
referência, onde devem se estruturar crítica é bem vinda, enriquece o deba-

396
Territorizalização em Saúde A

te teórico e revela os usos limitados da e histórica. Contempla a formulação C


metodologia, constituindo-se apenas de políticas, o pensar e agir estratégi-
como análise de informações geradas cos e a programação dentro de um es- D
pelo setor saúde e simples quema teórico-metodológico de plani-
espacialização e distribuição de doen- ficação situacional para o desenvolvi-
E
ças, doentes e serviços circunscritos à mento dos Sistemas Locais de Saúde.
F
atuação do Estado (Souza, 2004). Tem por base a teoria da produção
Uma proposta transformadora de social, na qual a realidade é indivisível,
G
saberes e práticas locais concebe a e tudo o que existe em sociedade é pro-
territorialização de forma ampla – um duzido pelo homem. A análise social H
processo de habitar e vivenciar um ter- do território deve contribuir para cons-
ritório; uma técnica e um método de truir identidades; revelar subjetividades; I
obtenção e análise de informações so- coletar informações; identificar proble-
bre as condições de vida e saúde de mas, necessidades e positividades dos N
populações; um instrumento para se lugares; tomar decisão e definir estra-
entender os contextos de uso do terri- tégias de ação nas múltiplas dimensões O
tório em todos os níveis das atividades do processo de saúde-doença-cuidado.
humanas (econômicos, sociais, cultu- Os diagnósticos de condições de vida P
rais, políticos etc.), viabilizando o “ter- e situação de saúde devem relacionar-
ritório como uma categoria de análise se tecnicamente ao trinômio estratégi- Q
social” (Souza, 2004, p. 70); um cami- co ‘informação-decisão-ação’ (Teixeira
nho metodológico de aproximação e et al., 1998). R
análise sucessivas da realidade para a A proposta da territorialização,
produção social da saúde. com toda crítica que ainda perdura nos S
Nessa perspectiva, a campos da saúde coletiva e da geogra-
territorialização se articula fortemente fia por sua apropriação tecnicista e prá- T
com o planejamento estratégico tica objetivante, coloca-se como estra-
situacional (PES), e juntos, se consti- tégia central para consolidação do SUS, U
tuem como suporte teórico e prático seja para a reorganização do processo
da Vigilância em Saúde. O PES, pro- de trabalho em saúde, seja para a
V
posto por Matus (1993) coloca-se no reconfiguração do Modelo de Atenção.
A
campo da saúde como possibilidade de Como método e expressão geográfica
subsidiar uma prática concreta em de intencionalidades humanas, permi-
A
qualquer dimensão da realidade social te a gestores, instituições, profissionais

397
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

e usuários do SUS compreender a di- FLEURY, S. M.; OUVERNEY, A. M.


nâmica espacial dos lugares e de po- Gestão em redes: a estratégia de regionalização
da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora
pulações; os múltiplos fluxos que ani-
FGV, 2007, 204p.
mam os territórios e as diversas paisa-
GADAMER, H. G. Verdade e Método:
gens que emolduram o espaço da vida
traços fundamentais de uma hermenêutica
cotidiana. Sobretudo, pode revelar filosófica. Petrópolis: Vozes. 3ª ed. 1997.
como os sujeitos (individual e cole-
GIL, I. C. Ter ritorialidade e
tivo) produzem e reproduzem soci- desenvolvimento contemporâneo.
almente suas condições de existên- Revista Nera. Ano 7, n. 4, jan./jul. 2004.
cia – o trabalho, a moradia, a alimen- HAESBAERT, R. Des-caminhos e
tação, o lazer, as relações sociais, a perspectivas do território. In: RIBAS, A.
saúde e a qualidade de vida, desve- D.; SPOSITO, E. S.; SAQUET, M. A.
lando as desigualdades sociais e as (Orgs.). Território e desenvolvimento: diferentes
abordagens. Francisco Beltrão: Unioeste,
iniqüidades em saúde.
p. 87- 120, 2005.
HAESBAERT, R. Des-territorialização e
identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste.
Niterói: Ed. UFF, 1997.
Para saber mais:
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Vol. l e
II. (1ª ed. em alemão 1927). Rio de
ANTUNES, R. ALVES, G . A s
Janeiro: Vozes, 1998.
Mutações no Mundo do Trabalho na
Era da Mundialização do Capital. KASTRUP, V. Aprendizagem, arte e
Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, invenção. Psicol. Estud., v. 6, n.1, p.17-
p. 335-351, mai./ago. 2004. 25, 2001.
BRASIL. MS/DAB. Dir etriz es MATUS C. Política, planejamento & governo.
Operacionais dos pactos pela vida, em defesa Tomos I e II. Instituto de Pesquisa
do SUS e de gestão. Brasília, 2006. Econômica Aplicada. Brasília, 1993.
CECCIM, R.B. Educação permanente MUSGROVE, P. La equidad del sistema
em saúde: descentralização e de ser vicios de salud. Conceptos,
disseminação de capacidade indicadores e interpretacion. Bol. Ofic.
pedagógica na saúde. Ciência & Saúde Sanit. Panamer, 95: 525-46, 1983.
Coletiva, 10(4), p. 975-986, 2005a. NUNES, P. H. F. A Influência dos recursos
CECCIM R. B. Debate (Réplica). naturais na transformação do conceito de
Comunic, Saúde, Educ. v.9, n.16, p.161- território. Questiones Constitucionales,
177. set. 2004/fev. 2005b. num 15, Julio-Diciembre, 2006.

398
Trabalho A

RAFFESTIN, C. Por uma geografia do SOUZA, E. A.; PEDON, N. R. C


poder. Tradução de Maria Cecília França. Território e Identidade. Revista Eletrônica
São Paulo: Ática, 1993. da Associação dos Geógrafos Brasileiros – D
Seção Três Lagoas. Três Lagoas, v. 1, n.º
ROVERE, M. Comentários
6, ano 4, nov. 2007.
estimulados por la lectura del artículo E
“educação per manente em saúde: SOUZA, M. A. Uso do Território e
Saúde. Refletindo sobre “municípios
desafio ambicioso e necessário”.
saudáveis”. In: Ana Maria Girotti
F
Interface – Co munic, Saúde, Educ. 9 (16):p.
169-171, 2005. Sperandio. (Org.). O processo de construção
da rede de municípios potencialmente saudáveis. G
SACK, R. Human territoriality: Its theory 1ª ed. Campinas: IPES Editorial, v. 2, p.
and histor y. Cambridge: Cambridge
University Press, 1986.
57-77, 2004. H
TAVARES, M. C.; FIORE, J. L.
SANTOS, M. Metamorfoses do espaço (Des)ajuste global e modernização conservadora. I
habitado: fundamentos teóricos e metodológicos Rio de Janeiro:; Paz e Terra, 1993.
da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1996.
TEIXEIRA C. F.; PAIM J. S. N
SAQUET, M. A. Os tempos e os territórios VILLASBÔAS A. L. SUS, modelos
da colonização italiana. Porto Alegre: EST
edições, 2003.
assistenciais e vigilância da saúde. Inf O
Epidemiol SUS, 7: p. 7-28, 1998.

 P

Q
TRABALHO
R
Gaudêncio Frigotto
S

T
Com a afirmação de que o traba- ria ao ser humano em qualquer tempo
lho é uma categoria ‘antidiluviana’, fa- histórico; e o trabalho assume formas U
zendo referência ao conto bíblico da históricas específicas nos diferentes
construção da arca de Noé, Marx nos modos de produção da existência hu- V
permite fazer, ao mesmo tempo, três mana. Estas distinções nos permitem
distinções em relação ao trabalho hu- tanto superar o senso comum e a i- A
mano: por ele, diferenciamo-nos do deologia que reduzem o trabalho hu-
reino animal; é uma condição necessá- mano à forma histórica que assume
A

399
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

sob as relações sociais de produção ca- modifica, ao mesmo tempo, sua


pitalistas (compra e venda de força de própria natureza. (Marx, 1983, p.
149)
trabalho, trabalho assalariado, trabalho
alienado) quanto perceber a improce- Sob esta concepção ontológica ou
dência das teses que postulam o fim ontocriativa, o trabalho, como nos
do trabalho. mostra Kosik (1986, p. 180), “é um
Diferente do animal, que vem re- processo que permeia todo o ser do
gulado e programado por sua nature- homem e constitui a sua espe-
za e, por isso, não projeta sua existên- cificidade”. Por isso, o mesmo não se
cia, não a modifica, mas se adapta e reduz à ‘atividade laborativa ou empre-
responde instintivamente ao meio, os go,’ mas à produção de todas as dimen-
seres humanos criam e recriam, pela sões da vida humana. Na sua dimen-
ação consciente do trabalho, a sua são mais crucial, o trabalho aparece
própria existência. Embora o homem como atividade que responde à pro-
também seja um ser da natureza ao dução dos elementos necessários e im-
constituir-se humano se diferencia dela perativos à vida biológica dos seres
assumindo uma autonomia relativa humanos como seres ou animais evo-
como espécie do gênero humano que luídos da natureza. Concomitan-te-
pode projetar-se, criar alternativas e mente, porém, responde às necessida-
tomar decisões (Konder, 1992; des de sua vida intelectual, cultural,
Antunes, 2000). social, estética, simbólica, lúdica e
afetiva. Trata-se de necessidades, que,
Antes, o trabalho é um processo por serem históricas, assumem
entre o homem e a natureza, um especificidades no tempo e no espaço.
processo em que o homem, por sua
própria ação, medeia, regula e con- “Com justa razão se pode designar o
trola seu metabolismo com a Na- homem que trabalha, ou seja, o animal
tureza. Ele mesmo se defronta com tornado homem através do trabalho,
a matéria natural como uma força como um ser que dá respostas. Com
natural. Ele põe em movimento as
efeito, é inegável que toda a atividade
forças naturais pertencentes à sua
corporeidade, braços, pernas, cabe- laborativa surge como solução de res-
ça e mãos, a fim de se apropriar da postas ao carecimento que a provoca”
matéria natural numa forma útil à (Lukács, 1978, p. 5).
própria vida. Ao atuar, por meio
Na mesma compreensão da con-
desse movimento, sobre a natureza
externa a ele e ao modificá-la, ele cepção ontocriativa de trabalho, tam-

400
Trabalho A

bém está implícito o sentido de pro- rica. O trabalho humano, como insiste C
priedade – intercâmbio material entre Kosik, não se separa da esfera da ne-
o ser humano e a natureza, para poder cessidade, mas, “ao mesmo tempo a D
manter a vida humana. Propriedade, no supera e cria nela os reais pressupos-
seu sentido ontológico, é o direito do tos da liberdade (...) A relação entre
E
ser humano, em relação e acordo soli- necessidade e liberdade é uma relação
F
dário com outros seres humanos, de historicamente condicionada e variá-
apropriar-se, transformar, criar e recriar vel” (Kosik, 1986, p. 188). É a partir
G
pelo trabalho – mediado pelo conheci- desta elementar constatação que per-
mento, ciência e tecnologia – a nature- cebemos a centralidade do trabalho H
za para produzir e reproduzir a sua exis- como práxis que possibilita criar e re-
tência em todas as dimensões anterior- criar, não apenas os meios de vida I
mente assinaladas. imediatos e imperativos, mas o mun-
Estas diferentes dimensões cir- do da arte e da cultura, linguagem e N
cunscrevem o trabalho humano na es- símbolos, o mundo humano como
fera da necessidade e da liberdade, sen- resposta às suas múltiplas e históri- O
do ambas inseparáveis. A primeira diz cas necessidades.
respeito a um quanto de dispêndio de O que acabamos de realçar nos P
tempo e de energia física e mental do permite demonstrar que as teses so-
ser humano, mediado por seu poder bre o fim do trabalho e uma vida Q
inventivo de novas técnicas e saltos dedicada puramente ao ócio não têm
qualitativos tecnológicos, para respon- o menor fundamento. É a mesma coi- R
der às necessidades básicas de sua re- sa que afirmar que a vida humana de-
produção biológica e preservação da sapareceu da face da Terra ou que to- S
vida num determinado tempo históri- dos os seres humanos se meta-
co. A segunda é definida pelo trabalho morfosearam em anjos e já não preci- T
na sua dimensão de possibilidade de sarão mais mover-se e buscar seus
dilatar as capacidades e qualidades mais meios de vida. Outra coisa é o desapa- U
especificamente humanas com o fim em recimento de formas históricas de
si mesmas (Manacorda, 1964, 1991). como o trabalho se efetiva nos dife-
V
Tempo livre de efetiva escolha, rentes modos sociais de produção da
A
gozo, fruição e criação, que não se con- existência humana.
funde com férias ou descanso de fim Tomado o trabalho humano em
A
de semana, mas uma conquista histó- concepção ontocriativa o mesmo se

401
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

constitui em um princípio formativo riência concreta do trabalho dos jovens


ou educativo e se impõe num plano e adultos, ou mesmo das crianças, como
ético (esfera de valores históricos uni- uma base sobre a qual se desenvolvem
versais) como um direito e um dever. processos pedagógicos ou mesmo a ati-
O trabalho como ‘princípio educativo’ vidade prática como método pedagó-
deriva do fato de que todos os seres gico, tal como nos mostra Pistrak
humanos são seres da natureza e, por- (1981), na sua obra clássica sobre o tra-
tanto, têm a necessidade de alimentar- balho como elemento pedagógico.
se, proteger-se das intempéries e criar Como princípio educa-tivo, o trabalho
seus meios de vida. É fundamental é, ao mesmo tempo, um dever e um
socializar, desde a infância, o princípio direito. Dever por ser justo que todos
de que a tarefa de prover a subsistên- colaborem na produção dos bens ma-
cia e outras esferas da vida pelo traba- teriais, culturais e simbólicos, funda-
lho é comum a todos os seres huma- mentais à produção da vida humana.
nos, evitando-se, dessa forma, criar Um direito por ser o ser humano um
indivíduos, grupos ou classes sociais ser da natureza que necessita estabele-
que naturalizam a exploração do tra- cer, por sua ação consciente, um me-
balho de outros. Estes, na expressão tabolismo com o meio natural trans-
de Gramsci, podem ser considerados formando em bens para sua produção
‘mamíferos de luxo’ – seres de outra e reprodução.
espécie que acham normal explorar Por fim, o trabalho na sua essên-
outros seres humanos. cia e generalidade ontocriativa (Lukacs,
O trabalho como princípio 1978), não pode ser confundido com
educativo, então, não é, primeiro e so- as formas históricas que o trabalho
bretudo, uma técnica didática ou assume – trabalho servil, escravo e as-
metodológica no processo de apren- salariado. Do mesmo modo, a propri-
dizagem, mas um princípio ético-polí- edade, como direito de todos os seres
tico. Realçamos este aspecto, pois é fre- humanos de dispor dos bens que lhes
qüente reduzir o trabalho como prin- permite produzir sua existência, não
cípio educativo à idéia didática ou pe- pode ser confundida com a proprie-
dagógica do ‘aprender fazendo’. Para dade privada capitalista. É crucial que
aprofundar a compreensão desta ques- se distinga a propriedade que temos de
tão, indicamos a leitura de Saviani (1994) determinados objetos ou coisas, que
e Frigotto (1985). Isto não elide a expe- são para o uso de quem as possui –

402
Trabalho A

casa, carro, terra etc. –, da propriedade Uma mercadoria especial que os pro- C
privada, que é um capital utilizado para prietários dos meios e instrumentos
incorporar trabalhadores assalariados de produção (capitalistas) compram
D
que produzam para quem tem este ca- e gerenciam de tal sorte que o dis-
pital. A acumulação e o lucro, no capi-
E
pêndio da mesma pelo trabalhador,
talismo, como assinalamos anterior- no processo produtivo, pague o seu
F
mente, advém de uma relação valor de mercado (em forma de salá-
contratual da compra e venda da força rio ou meios de subsistência) e, além
G
de trabalho entre forças desiguais: disso, produza um valor excedente ou
quem detém capital e quem detém ape- mais-valia que é apropriado pelo H
nas sua força de trabalho. Estar de um comprador. O capital apropria-se
lado ou de outro não é uma questão priva-damente também da ciência I
de escolha, mas resultado de um pro- e da tecnologia e as incorpora ao
cesso histórico que precisa ser apreen- processo produtivo como traba- N
dido. A dificuldade de perceber a ex- lho objetivado (trabalho vivo do
ploração reside no fato de que o capi- trabalhador transformado em tra- O
tal compra o tempo de trabalho dos balho morto) com o fim de am-
trabalhadores numa transação e con- pliar o lucro como veremos no P
trato sob o pressuposto da igualdade e verbete ‘tecnologia’.
liberdade das partes. Na realidade, tra- Q
ta-se apenas de uma igualdade e liber- No plano da ideologia, a repre-
dade formal e aparente. Mesmo que sentação que se constrói é a de que R
venha sob os auspícios da legalidade o trabalhador ganha o que é justo
de um contrato, pela assimetria de po- pela sua produção, pois parte do S
der entre o capitalista e o trabalhador, pressuposto de que os capitalistas
constrangido a vender sua força-de-tra- (detentores de capital) e os trabalha- T
balho, materializa-se um processo de dores que vendem sua força de tra-
alienação – vale dizer, uma apropria- balho o fazem numa situação de
U
ção indevida, um roubo legalizado. igualdade e por livre escolha. Apa-
Com efeito, no modo de produ-
V
ga-se, portanto, o processo históri-
ção capitalista, o trabalho daqueles des- co que até o presente mantém o gê-
A
providos de propriedade de meios e nero humano cindido em classes de-
instrumentos de produção é reduzido siguais e que permite a exploração de
A
à sua dimensão de força-de-trabalho. uns sobre outros.

403
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Para saber mais: KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1986.
ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho: ensaios LUKÄCS, G. As bases ontológicas do
sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo pensamento e da atividade do homem.
do trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 1995. Temas de Ciências Humanas, 4: 1-18, 1978.
ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. MANACORDA, M. Il Marxismo e
3.ed.Campinas: Boitempo, 2000. L‘Educaz ione. Roma: Ar mando A.,
FRIGOTTO, G. Trabalho como 1964.
princípio educativo: por uma superação MANACORDA, M. Marx e a Pedagogia
das ambigüidades. Boletim Técnico do Senac, Moderna. São Paulo: Cortez/Autores
11(3): 1-14, set.-dez., 1985. Associados, 1991.
FRIGOTTO, G. Educação e Crise do MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril,
Capitalismo Real. 5.ed. São Paulo: Editora Cultural, 1983. v.I.
Cortez, 2003.
SAVIANI, D. O trabalho como princípio
GRAMSCI, A. A concepção dialética da educativo frente às novas tecnologias. In:
história. Rio de Janeiro: Civilização FERRETI, C. et al. (Orgs.) Novas
Brasileira, 1978 Tecnologias, Trabalho e Educação: um debate
KONDER, L. O Futuro da Filosofia da Práxis multidisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes,
. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992. 1994.


TRABALHO ABSTRATO E TRABALHO CONCRETO

Ramon Peña Castro

São termos utilizados pelo filó- esquema argumentativo: 1) A ‘merca-


sofo alemão Karl Marx (1818-1883) doria representa a existência molecular
para formular a sua teoria crítica do ca- do capital’ porque toda a produção ca-
pitalismo. Seu ‘objetivo’ declarado não pitalista toma a forma de mercadoria;
é explicar como é o capital (objeto de 2) A mercadoria é, em primeiro lugar,
estudo da economia política burgue- um ‘valor uso’, um objeto externo,
sa), mas sim ‘porque o capital existe’. cujas qualidades materiais ou virtuais
Para isso, Marx desenvolve o seguinte a tornam útil para satisfazer “deter-

404
Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto A

minadas necessidades do estomago ou capital, salário, lucro, juro, acumulação C


da fantasia”; em segundo lugar, é um de capital, PIB, desenvolvimento
‘valor de troca’, (cujo nome em dinhei- tecnológico, qualificação do trabalha- D
ro se chama preço), uma relação quan- dor etc. Eis aí resumida a gênese e a
titativa que pressupõe alguma subs- insubstituível importância teórico-
E
tância comum, não perceptível metodológica dos conceitos ‘trabalho
F
empiricamente, de forma imediata; 3) abstrato’ e ‘trabalho concreto’. Cabe,
Essa substância comum é o ‘trabalho ainda, referir brevemente alguns outros
G
humano abstrato’; trabalho despido aspectos correlacionados a esses con-
de suas especificidades e considerado ceitos. H
como simples despesa de energias hu- Na medida que a produção e o
manas, físicas e intelectuais. intercâmbio de mercadorias se desen- I
A partir da mercadoria, conside- volvem até abranger a quase totalida-
rada existência molecular do capital, de dos produtos, quando inclusive a N
Marx define sua dupla realidade, a uni- própria capacidade ou força humana
dade valor de uso e valor de troca, de trabalho torna-se mercadoria, o va- O
como formas de expressão de uma lor, expressão do ‘trabalho abstrato’,
unidade mais profunda: o trabalho no passa a ser representado pelo dinhei- P
seu ‘duplo caráter’, ‘trabalho concre- ro, uma mercadoria especial (material
to’ (que se manifesta no valor de uso) ou simbólica) que serve de equivalen- Q
e ‘trabalho abstrato’ (que se manifesta te universal ou expressão única do va-
no valor de troca). lor de troca de todas as mercadorias, R
Segue-se daí que, ao considerar a por meio de suas várias funções: me-
mercadoria como forma molecular do dida de valor, meio de circulação, meio S
capital, o ‘duplo caráter do trabalho’ de reserva e meio de pagamento. O
contido nela reúne qualidades neces- dinheiro se transforma em capital T
sárias para servir como hipótese-cha- quando o seu possuidor se apossa dos
ve para o entendimento de todos os meios de produção e, para acioná-los, U
fenômenos econômicos, pois permite adquire a mercadoria força de
distinguir claramente o lado técnico- trabalho daqueles trabalhadores que,
V
material, do lado histórico-social. E isto carecendo de meios de produção e mei-
A
se aplica em todas as categorias utili- os de vida, vêem-se forçados a vender,
zadas para entender e explicar o siste- por um tempo determinado, essa sua
A
ma capitalista: mercadoria, dinheiro, única mercadoria.

405
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

O valor de toda mercadoria é o necessariamente, na forma mistificada


‘trabalho abstrato’, não só direto, mas de ‘preço do trabalho’, chamado salá-
também indireto, empregado na sua rio. Tal mistificação decorre do fato de
produção. O ‘trabalho abstrato’ não é que o salário é pago em troca da reali-
simplesmente trabalho de indivíduos zação de uma determinada quantidade
genéricos, é o trabalho alienado da so- de trabalho criador de novo valor em
ciedade burguesa. A alienação econô- quantidade superior ao custo da força
mica do trabalhador assalariado con- de trabalho. A diferença entre seu cus-
siste, substancialmente, em despossui- to e o valor por ela produzido, medi-
lo do controle do trabalho e do pro- ante o consumo capitalista do seu va-
duto do trabalho. Assim, não é o tra- lor de uso, constitui a mais-valia. As-
balhador alienado quem usa os meios sim analisando mais de perto o que
de produção, base material do capi- acontece que o valor de uso da força
tal; são os meios de produção, são as de trabalho, incorporada e posta em
‘coisas’, funcionando como capital, ação como parte do capital produtivo,
que usam o trabalhador, que mandam verificamos que o trabalho concreto,
e exploram o trabalho assalariado. “O vivo, subjacente na força de trabalho
capital não é uma coisa, mas uma re- desempenha, a um só tempo, nada
lação social”, na qual o trabalho vivo menos do que três funções: 1) conser-
serve de ‘meio’ ao trabalho morto, va, transferindo-o ao novo valor de uso
acumulado, para manter e aumentar que produz, a parte do valor dos mei-
o seu valor. os de produção utilizados e consumi-
O poder explicativo dos concei- dos produtivamente (o ‘trabalho abs-
tos ‘trabalho abstrato’ e ‘trabalho con- trato’ indireto, morto, chamado ‘capi-
creto’, ou seja, ‘o duplo caráter do tra- tal constante’); 2) reproduz o próprio
balho’, pode ser mais bem exem- valor na parte equivalente do valor do
plificado na mercadoria força de tra- novo produto (capital variável); 3) pro-
balho, cujo valor de uso é ‘trabalho duz um acréscimo de valor, chamado
concreto’ desenvolvido pelo trabalha- justamente de mais-valia.
dor alienado no processo de valoriza- Cabe insistir em três ou quatro
ção do capital. Como toda mercado- aspectos importantes:
ria, a força de trabalho é unidade de • A abstração é um procedimen-
valor de uso e valor de troca. O valor to cognoscitivo de acesso à
de troca da força de trabalho aparece, generalização.(É algo que todos prati-

406
Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto A

camos, inconsciente e continuamente, confere uma existência dupla: técnico- C


quando usamos palavras que nomei- material e histórico-social. Para enten-
am ações, qualidades o estados consi- der e explicar essa dualidade D
derados separados dos seres ou obje- mistificadora a Economia Política Crí-
tos a que pertencem (exemplos: traba- tica ou marxista elaborou um sistema
E
lho, vegetal, humano, material, conceitual próprio. Assim, para expli-
F
imaterial, vivo, morto, etc). car o valor de troca, aquilo que torna
• O processo de abstração que se equiparáveis e intercambiáveis merca-
G
manifesta no valor de troca ou preço dorias qualitativamente diferentes,
das mercadorias é um processo social Marx não se conforma, como aconte- H
real. O trabalho abstrato é a proprie- ce com os clássicos ingleses (Petty,
dade que adquire o trabalho humano Smith e Ricardo) com a referencia ao I
quando é destinada a produção de trabalho como simples ação humana
mercadorias e, por isso, somente exis- sobre a natureza. Ele procura a sua N
te na produção de mercadorias. O con- “natureza misteriosa” no dispêndio de
ceito de trabalho abstrato não é uma energias humanas, físicas e intelectu- O
invenção cerebrina, mas a represen- ais, num sistema histórico-social de-
tação ou reflexo no pensamento de finido pela propriedade privada dos P
uma propriedade social real. Isto im- meios de produção, separados do tra-
plica que o trabalho abstrato e sua ex- balho e, onde por tanto, a divisão so- Q
pressão, o valor é também real, por- cial do trabalho, a sociedade como tal,
que o trabalho produtor de mercado- somente pode existir com a da troca R
rias cria valor materializado na mer- de valores, “cuja medida intrínseca” é
cadoria que expressa seu valor de tro- o trabalho abstrato, direto e indireto, S
ca ou preço (quando uma mercadoria definido por um complexo mecanis-
especial torna-se equivalente univer- mo social, cuja explicação T
sal ou dinheiro). corresponde a teoria do valor e dos
• O trabalho abstrato e, subse- preços de produção. U
qüentemente, o valor constituem a es-
sência ou natureza social mais profun-
V
da de todos os fenômenos econômi- Para saber mais:
A
cos do capitalismo, mas esta essência
resulta velada, inevitavelmente, pela MARX, K. O Capital. 20.ed. Tradução
de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: A
forma mercantil-monetária que lhes

407
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Civilização Brasileira, 2005. (Livro 1, ATTAC. Le Petit Alter. Dictionnaire


cap.1) altermondialiste. Mille et une nuits.
Fayard.Paris, 2006
ROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de
O Capital (estudos sobre os Grundrisse). SHAIKH, Anwar. Valor, Acumulación y
Tradução de César Benjamin. Rio de Crisis. Edições RyR, Buenos Aires, dic.
Janeiro: Uerj/Contraponto, 2001. 2006 [www.razonyrevolucion.org.ar]

BIANCHI, M. A Teoria do Valor: dos


clássicos a Marx. Lisboa: Edições 70
Livraria Martins Fontes: São Paulo, s. d.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO

Maria Ciavatta

Princípios são leis ou funda- conhecimento, de criação material e


mentos gerais de uma determinada simbólica, e de formas de sociabilida-
racionalidade, dos quais derivam leis ou de (Marx, 1979).
questões mais específicas. No caso do Além dessa questão mais geral, há
trabalho como princípio educativo, a de se considerar o trabalho na socie-
afirmação remete à relação entre o tra- dade moderna e contemporânea onde
balho e a educação, no qual se afirma a produção dos meios de existência se
o caráter formativo do trabalho e da faz dentro do sistema capitalista. Esse
educação como ação humanizadora se mantém e se reproduz pela apropri-
por meio do desenvolvimento de to- ação privada de um tempo de trabalho
das as potencialidades do ser humano. do trabalhador que vende sua força de
Seu campo específico de discussão te- trabalho ao empresário ou emprega-
órica é o materialismo histórico em que dor, o detentor dos meios de produ-
se parte do trabalho como produtor ção. O salário ou remuneração recebi-
dos meios de vida, tanto nos aspectos da pelo trabalhador não contempla o
materiais como culturais, ou seja, de tempo de trabalho excedente ao valor

408
Trabalho como Princípio Educativo A

contratado que é apropriado pelo dono mais elevada atividade humana e o nas- C
do capital. cimento das fábricas; ou a partir do
Historicamente, o ser humano século XVIII, se considerarmos o D
utiliza-se dos bens da natureza por in- industrialismo e a Revolução Industri-
termédio do trabalho e, assim, produz al nos seus primórdios na Inglaterra
E
os meios de sobrevivência e conheci- (De Decca, op. cit.; Iglesias, 1982).
F
mento. Posto a serviço de outrem, no Marx (1980) vai realizar o mais com-
entanto, nas formas sociais de domi- pleto estudo dos economistas que o
G
nação, o trabalho ganha um sentido precederam e a mais aguda crítica ao
ambivalente. É o caso das sociedades modo de produção capitalista e às con- H
antigas e suas formas ser vis e tradições implícitas nas relações entre
escravistas, e das sociedades modernas o trabalho e o capital. I
e contemporâneas capitalistas. As pa- Desenvolve os conceitos de va-
lavras trabalho, labor (inglês), travail (fran- lor de uso e de valor de troca presen- N
cês), arbeit (alemão), ponos (grego) têm tes na mercadoria. Os valores de uso
a mesma raiz de fadiga, pena, sofrimen- são os objetos produzidos para a sa- O
to, pobreza que ganham materialidade tisfação das necessidades humanas,
nas fábricas-conventos, fábricas-pri- como bens de subsistência e de con- P
sões, fábricas sem salário. A transfor- sumo pessoal e familiar. Definem-se
mação moderna do significado da pa- pela qualidade, são as diversas formas Q
lavra deu-lhe o sentido de positividade, de usar as coisas, de transformar os
como argumenta John Locke que des- objetos da natureza, gerando cultura R
cobre o trabalho como fonte de pro- e sociabilidade.
priedade; Adam Smith que o defende Mas os mesmos objetos, as mes- S
como fonte de toda a riqueza; e Karl mas mercadorias que têm uma existên-
Marx para quem o trabalho é fonte de cia histórica milenar, quando se tornam T
toda a produtividade e expressão da objeto de troca, quantidades que se
humanidade do ser humano (De equivalem a outras, tempo de trabalho U
Decca, 1985). que tem um equivalente em salário, in-
Em termos cronológicos, essa serem-se em relações sociais de outra
V
ambivalência do termo ganha forma a natureza. Criam-se vínculos de submis-
A
partir do século XVI, se considerarmos são e exploração do produtor e de do-
o Renascimento e a transformação do minação por parte de quem se apro-
A
sentido da palavra trabalho como a pria do produto e do tempo de traba-

409
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

lho excedente. Esse gera uma certa vação e sofrimento dos trabalhadores
quantidade de valor que vai propiciar e de seus filhos nos primórdios da Re-
a acumulação e a reprodução do capi- volução Industrial. Ainda hoje, em
tal investido inicialmente pelo capita- todo o mundo, milhões de trabalhado-
lista (Marx, op. cit., 1º. cap.). res são submetidos a salários de fome,
O fetiche da mercadoria, o seu ca- insuficientes para uma vida digna para
ráter misterioso, como diz Marx, pro- eles e suas famílias.
vém da própria forma de produzir va- No Brasil, diante da penúria e
lor. “A igualdade dos trabalhos huma- das más condições de vida e de traba-
nos fica disfarçada sob a forma da lho de operários e de trabalhadores do
igualdade dos produtos do trabalho campo, ao final da Ditadura civil-mili-
como valores; a medida, por meio da tar, nos anos 1980, foram muito dis-
duração, do dispêndio da força huma- cutidas as propostas da educação na
na do trabalho toma a forma de quan- Constituinte de 1988 e os termos da
tidade de valor dos produtos do traba- nova Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
lho; finalmente, as relações entre os cação (LDB). Os pesquisadores e edu-
produtores, nas quais se afirma o cará- cadores da área trabalho e educação
ter social de seus trabalhos, assumem tiveram de enfrentar uma questão fun-
a forma de relação social entre os pro- damental: se o trabalho pode ser
dutos do trabalho” (ibid., p. 80). alienante e embrutecedor, como pode
Essa separação do trabalhador ser princípio educativo, humanizador,
de seu próprio fazer é o que Marx de formação humana?
(2004) chamou de alienação (ou No entanto, desde o início do
estranhamento, dependendo da interpre- século XX, com a criação das Escolas
tação do tradutor do original alemão). de Aprendizes e Artífices em 1909,
O conceito veio a ser desenvolvido havia a evidência histórica da introdu-
posteriormente por autores marxistas ção do trabalho (das oficinas, do arte-
(dos quais citamos Meszáros, 1981; sanato, dos trabalhos manuais) em ins-
Antunes, 2004; Kohan, 2004; Lessa, tituições educacionais. E existia a ex-
2002). O fenômeno da alienação do periência socialista do início do mes-
trabalho e do trabalhador da riqueza mo século, introduzindo a educação
social que ele produz foi expresso e politécnica com o objetivo de forma-
criticado de forma contundente por ção humana em todos os seus aspec-
Marx ao analisar as condições de pri- tos, físico, mental, intelectual, prático,

410
Trabalho como Princípio Educativo A

laboral, estético, político, combinan- cívico”. Mas Marx faz dura crítica à C
do estudo e trabalho. burguesia por não assumir de forma
Vários autores se debruçaram radical e conseqüente a união instru- D
sobre o tema porque tratava-se de de- ção-trabalho (p.296).
fender uma educação que não tivesse O Manifesto Comunista (Marx,
E
apenas fins assistenciais, moralizantes, 1998) é claro quando recomenda: “edu-
F
como aquelas primeiras escolas. Tam- cação pública e gratuita para todas as
bém que não se limitasse a preparar crianças. Abolição do trabalho infantil
G
para o trabalho nas fábricas, a exem- nas fábricas na sua forma atual. Com-
plo da iniciativa do Sistema Nacional binação da educação com a produção H
de Aprendizagem Industrial (Senai), material etc.” (p. 31). Em O Capital,
criado no governo de Getúlio Vargas, Marx (1980), explicita a idéia de edu- I
em 1943. Criticava-se, ainda, o cação politécnica ou tecnológica: “Do
tecnicismo voltado ao mercado de tra- sistema fabril, como expõe N
balho, a adoção do industrialismo pelo pormenorizadamente Robert Owen,
sistema das Escolas Técnicas Federais, brotou o germe da educação do futu- O
criado no mesmo período Vargas. ro que combinará o trabalho produti-
De outra parte, a idéia de edu- vo de todos os meninos além de uma P
cação politécnica sofria ataques por sua certa idade com o ensino e a ginástica,
inspiração socialista, implantada pelo constituindo-se em método de elevar Q
regime comunista da Revolução Russa a produção social e de único meio de
de 1917 que, tendo por base a obra de produzir seres humanos plenamente R
Marx, buscava a combinação da ins- desenvolvidos” (p. 554).
trução e do trabalho. Segundo Assim sendo, a discussão sobre S
Manacorda (1989), o marxismo reco- o trabalho como princípio educativo
nhece a “função civilizadora do capi- esteve associada à discussão sobre a T
tal”; não rejeita, antes aceita “as con- politecnia e sua viabilidade social e
quistas ideais e práticas da burguesia política no país. Historicamente, como U
no campo da instrução ...: universali- demonstra a análise de Fonseca (1986),
dade, laicidade, estatalidade, gratuidade, sempre predominou o conser-
V
renovação cultural, assunção da vadorismo das elites, reservando para
A
temática do trabalho, como também a si a formação literária e científica. Para
compreensão dos aspectos literário, os trabalhadores prevaleceu a oferta de
A
intelectual, moral, físico, industrial e educação elementar e não univer-

411
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

salizada para toda a população. (Marx, op. cit.; Gramsci, 1981;


Além disso, o dualismo educacio- Manacorda, 1975 e 1990; Frigotto,
nal se expressa na destinação dos 1985; Kuenzer, 1988; Machado, 1989;
filhos dos trabalhadores ao traba- Saviani, 1989 e 1994; Nosella, 1992;
lho e ao preparo para as atividades Rodrigues, 1998) em um segundo, sem
manuais e profissionalizantes. abrir mão da vertente gramsciana, a
Essa discussão e sua expressão ontologia do ser social desenvolvida
político-prática retornaram nos anos por Lukács (1978 e 1979; Konder,
neoliberais de 1990, com a exaração do 1980; Chasin,1982; Ciavatta Franco,
Decreto n. 2.208/97. Contrariando a 1990; Antunes, 2000; Lessa, 1996).
LDB (Lei n. 9.394/96) que “tem por Gramsci (opcit.) propõe a esco-
finalidade o pleno desenvolvimento do la unitária que se expressaria na uni-
educando, seu preparo para o exercí- dade entre instrução e trabalho, na
cio da cidadania e qualificação para o formação de homens capazes de pro-
trabalho” (art. 2º.), implantou-se a se- duzir, mas também de serem dirigen-
paração entre o ensino médio geral e a tes, governantes. Para isso, seria ne-
educação profissional técnica de nível cessário tanto o conhecimento das
médio. Nos anos 2000, em condições leis da natureza como das humani-
políticas polêmicas, o Governo exarou dades e da ordem legal que regula a
o Decreto n. 5.154/04 que revogou o vida em sociedade.
anterior e abriu a alternativa da forma- Opondo-se à concepção capitalis-
ção integrada entre a formação geral e ta burguesa que tem por base a frag-
a educação profissional, técnica e mentação do trabalho em funções
tecnológica de nível médio. especializadas e autônomas, Saviani
Do ponto de vista político-peda- (1989) defende a politecnia que “pos-
gógico, tanto a conceituação do traba- tula que o trabalho desenvolva, numa
lho como princípio educativo quanto unidade indissolúvel, os aspectos ma-
a defesa da educação politécnica e da nuais e intelectuais. ... Todo trabalho
formação integrada, formulada por humano envolve a concomitância do
educadores brasileiros, pesquisadores exercício dos membros, das mãos e do
da área trabalho e educação têm por exercício mental, intelectual. Isso está
base algumas fontes básicas teórico- na própria origem do entendimento da
conceituais. Em um primeiro momen- realidade humana, enquanto constitu-
to, a vertente marxista e gramsciana ída pelo trabalho” (p. 15).

412
Trabalho como Princípio Educativo A

Frigotto argumenta em dois sen- Desse conjunto de idéias e deba- C


tidos. Primeiro, faz a crítica à ideologia tes foi possível concluir que o traba-
cristã e positivista de que todo traba- lho não é necessariamente educativo, D
lho dignifica o homem: “Nas relações depende das condições de sua realiza-
de trabalho onde o sujeito é o capital e ção, dos fins a que se destina, de quem
E
o homem é o objeto a ser consumido, se apropria do produto do trabalho e
F
usado, constrói-se uma relação do conhecimento que se gera (Ciavatta
educativa negativa, uma relação de sub- Franco, op. cit.). Nas sociedades capi-
G
missão e alienação, isto é, nega-se a talistas, a transformação do produto do
possibilidade de um crescimento inte- trabalho de valor de uso para valor de H
gral” (1989, p. 4). Segundo, preocupa- troca, apropriado pelo dono dos mei-
se com a análise política das condições os de produção, conduziu à formação I
em que trabalho e educação se exer- de uma classe trabalhadora expropria-
cem na sociedade capitalista brasileira; da dos benefícios da riqueza social e N
“como a escola articula os interesses dos saberes que desenvolve. No cam-
de classe dos trabalhadores ... é preci- po da saúde, como na educação, o que O
so pensar a unidade entre o ensino e o é um direito torna-se uma mercadoria,
trabalho produtivo, o trabalho como uma atividade como outra qualquer P
princípio educativo e a escola politéc- sujeita ao mercado.
nica” (1985, p. 178). Tendo por base as exigências do Q
Em um segundo momento, a re- sistema capitalista, a educação profis-
flexão toma forma tendo por base sional modelou-se por uma visão que R
Lukács (opcit.). Em sua reflexão sobre a reduz a formação ao treinamento para
ontologia do ser social, o autor examina o trabalho simples ou especializado S
o trabalho como atividade fundamental para os trabalhadores e seus filhos. A
do ser humano, ontocriativa, que pro- introdução do trabalho como princí- T
duz os meios de existência na relação do pio educativo na atividade escolar ou
homem com a natureza, a cultura e o na formação de profissionais para a U
aperfeiçoamento de si mesmo. De outra área da saúde, supõe recuperar para
parte, o trabalho humano assume for- todos a dimensão do conhecimento
V
mas históricas muitas das quais degra- científico-tecnológico da escola unitá-
A
dantes, penalizantes, nas diferentes cul- ria e politécnica, introduzir nos currí-
turas, na estrutura capitalista e em suas culos a crítica histórico-social do tra-
A
diversas conjunturas. balho no sistema capitalista, os direi-

413
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

tos do trabalho e o sentido das lutas KOHAN, N. El capital. História y método


históricas no trabalho, na saúde e na – una introducción. La haban: Instituto
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Trabalho Complexo A

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I
Fundamentos histórico-ontológicos da
relação trabalho e educação. Revista EPSJV, 1989.
""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" N

O
TRABALHO COMPLEXO
P

Júlio César França Lima


Q
Lúcia Maria Wanderley Neves
Marcela Alejandra Pronko R

S
Conceito formulado por Karl lho simples, caracteriza-se por ser de
Marx, no volume 1 de O Capital, em natureza especializada, ou seja, que re- T
1867, como par do conceito trabalho quer maior dispêndio de tempo de for-
simples. Ambos os conceitos se refe- mação. U
rem à divisão social do trabalho que Na forma particular que assume
existe em qualquer sociedade, mudan- o processo de trabalho e de produção V
do de caráter de acordo com os países no capitalismo, o ‘trabalho complexo’
e os estágios de civilização e, portanto, é ao mesmo tempo produção de valor A
historicamente determinado. O ‘traba- de uso e produção de valor. Como pro-
lho complexo’, ao contrário do traba- dutor de valor de uso, o ‘trabalho A

415
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

complexo’ é trabalho concreto e nessa cionaliza pelo emprego diretamente pro-


condição deve ser considerado nos dutivo da ciência no processo de traba-
seus aspectos qualitativos. Como pro- lho, e, de modo mais abrangente, no pro-
dutor de valor, o ‘trabalho complexo’ cesso de produção da vida.
é trabalho abstrato e, nessa condição, Nos primórdios do capitalismo
só é considerado nos seus aspectos industrial, o ‘trabalho complexo’ na in-
quantitativos, como “trabalho simples dústria era realizado por um pequeno
potenciado ou, antes, multiplicado, de número de trabalhadores que se ocu-
modo que uma quantidade dada de tra- pa do controle e da manutenção da
balho qualificado [seja] igual a uma maquinaria. Esses trabalhadores
quantidade maior de trabalho simples” especializados possuem formação su-
(Marx, 1988, p. 51) É socialmente e não perior, de caráter científico ou de do-
individualmente que o ‘trabalho com- mínio de um ofício. Pelas funções que
plexo’ pode ser considerado como desempenham, eles se distinguem do
múltiplo do trabalho simples. restante dos trabalhadores industriais.
Como trabalho concreto, no de- No conjunto da sociedade, o processo
senvolvimento do capitalismo, o ‘tra- de racionalização da produção da exis-
balho complexo’ vai reconfigurando tência passa a demandar, simultanea-
as suas características a partir da divi- mente, o aumento e a diversificação das
são técnica do trabalho e da decor- funções especializadas de base cientí-
rente hierarquização das funções do fica e tecnológica para a organização
trabalhador coletivo. Essa alteração do da nova cultura urbano-industrial. Este
caráter do ‘trabalho complexo’ está re- movimento se amplia ainda mais no
lacionada às necessidades do constan- decorrer do capitalismo monopolista,
te aumento da produtividade do pro- quando a organização fordista do tra-
cesso de trabalho. Como trabalho abs- balho, de base científica e tecnológica,
trato, esse aumento da produtividade se generaliza e vai, paulatinamente, re-
se realiza sob condições de domina- querendo o aprofun-damento sempre
ção e de exploração para a extração maior do saber sistematizado por par-
de mais-valia. te do trabalho complexo. A socializa-
O ‘trabalho complexo’, no capita- ção da participação política, a
lismo industrial, tende a ser, cada vez mais complexificação das organizações da
especializado à medida que a produção sociedade civil e a intervenção direta
material e simbólica da existência se ra- do Estado na produção material e sim-

416
Trabalho Complexo A

bólica da riqueza, ao racionalizarem dução industriais, em cada formação C


cada vez mais as relações sociais, social concreta. A variação entre es-
aprofundam o processo de diversifica- ses patamares se estende da demanda D
ção e de aumento de volume do traba- de disseminação do conhecimento so-
lho complexo. Nas atuais mudanças cialmente produzido até a criação de
E
qualitativas no processo de trabalho e novos conhecimentos necessários à
F
de produção da vida, a racionalização produção da existência.
atinge um novo patamar, Do ponto de vista do capital, a for-
G
aprofundando o processo em curso. mação para o ‘trabalho complexo’ des-
A execução do ‘trabalho comple- tina-se à preparação de especialistas que H
xo’ exigiu historicamente formas mais possam aumentar a produtividade do
ou menos sistematizadas de prepara- trabalho sob a sua direção e, simultane- I
ção e uma maior duração de sua for- amente, à formação de intelectuais or-
mação. O aumento da racionalização gânicos da sociabilidade capitalista. N
do processo de trabalho no capitalis- O grau de generalização da for-
mo industrial requereu das instituições mação do ‘trabalho complexo’, em O
formadoras uma refuncionalização dos cada formação social concreta, de-
seus conteúdos e métodos, para ade- pende do lugar ocupado por essa for- P
quarem-se às características da cultura mação na divisão internacional do
urbano-industrial, de base científica e trabalho, especialmente, da divisão Q
tecnológica. A escola dividida em graus entre países produtores de conheci-
e modalidades é inerente à mento e países adaptadores do co- R
hierarquização que se estabelece na nhecimento e, também, do estágio da
produção capitalista de mercadorias e luta de classes em cada momento his- S
na própria especificidade do trabalho tórico específico.
na cultura urbano-industrial, de natu- No Brasil, até os anos 1930, a for- T
reza flexível, baseado na variação do mação para o ‘trabalho complexo’ era
trabalho, isto é, na fluidez das funções realizada nas instituições isoladas de U
e na mobilidade do trabalhador. ensino superior (formação científica)
Existe um patamar mínimo e um e nos liceus de artes e ofícios. Com o
V
patamar máximo de escolarização desenvolvimento da urbanização e da
A
para o ‘trabalho complexo’ em cada industrialização ao longo do século
estágio de desenvolvimento das for- XX, tem início uma escolarização de
A
ças produtivas e das relações de pro- cunho tecnológico realizada nas esco-

417
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

las técnicas de nível médio. Por sua vez, lares, essa formação, seguindo a ten-
a formação científica passa a ser ofe- dência geral, também se diversificou
recida em instituições de ensino horizontal e verticalmente. Hoje, com
superior que progressivamente se as mudanças técnicas e ético-políticas
diversificam tanto horizontal quanto na organização do trabalho em saúde,
verticalmente. A diversificação hori- cria-se uma formação tecnológica de
zontal corresponde ao aumento de nível superior (tecnólogos em saúde),
cursos e de especialidades. A diversifi- de curta duração, que vem-se expan-
cação vertical se refere à hierarquização dindo, de forma acelerada, majoritari-
em graus dos cursos superiores. amente na rede privada de ensino.
Hoje, sob a direção do capital, rea-
lizam-se mudanças qualitativas na forma-
ção do ‘trabalho complexo’ com vistas a Para saber mais:
adequar suas instituições formadoras aos
requisitos da nova base técnica do traba- ALMEIDA, M. C. P. de. O Saber de
Enfermagem e sua Dimensão Prática. São
lho, das novas demandas do processo de
Paulo: Cortez, 1986.
acumulação capitalista e da
CAMPELLO, A. M. For mação de
inserção do país na nova divisão inter-
Tecnólogos em Saúde no Brasil: situação
nacional do trabalho. Essas mudanças atual e tendências. Rio de Janeiro:
tendem, de um lado, à homogeneização Fundação Oswaldo Cr uz/EPSJV,
do patamar mínimo de escolarização para 2006 (Mimeo – Relatório parcial de
pesquisa)
o ‘trabalho complexo’ no nível superior
de ensino e, de outro lado, ao surgimento MARX, K. O Capital: crítica da economia
política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
de cursos de mais curta 1988. (Livro Primeiro, v. 1)
duração (cursos seqüenciais para a for-
NAVILLE, P. Essai sur la Qualification
mação científica e cursos de tecnólogos du Travail. Paris: Librairie Marcel
para a formação tecnológica). Rivière et Cie., 1956.
A formação do ‘trabalho comple- NEVES, L. M. W. A Hora e a Vez da
xo’ na área de saúde no Brasil já vinha- Escola Pública? Um Estudo sobr e os
se desenvolvendo no nível superior de Determinantes da Política Educacional do
ensino desde os anos 20 do século pas- Brasil de hoje, 1991. Tese de Doutorado,
Rio de Janeiro: Faculdade de
sado. Com o desenvolvimento da ur- Educação/Centro de Filosofia e
banização, da industrialização e da ex- Ciências Humanas/Universidade
pansão dos serviços médicos hospita- Federal do Rio de Janeiro.

418
Trabalho em Equipe A

NEVES, L. M. W. Brasil 2000: nova C


divisão de trabalho em educação. São Paulo:
Xamã, 2000. D
###########################################
TRABALHO CONCRETO E

F
Ver: Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto.
G
###########################################
H
TRABALHO EM EQUIPE
I

Marina Peduzzi
N

O
Gênese do conceito finalidade do trabalho e introdução de
novos instrumentos e tecnologias. P
No campo da saúde o ‘trabalho No processo de emergência da
em equipe’ emerge em um contexto medicina preventiva, nos anos 50, nos Q
formado por três vertentes: 1) A no- EUA, propõe-se um projeto de mu-
ção de integração, que constitui um danças da prática médica, com uma R
conceito estratégico do movimento da redefinição radical do papel do médi-
medicina preventiva nos anos 50, da co, incorporando, pela primeira vez, em S
medicina comunitária nos anos 60 e propostas curriculares de ensino de
dos programas de extensão de cober- graduação, a idéia de trabalho em equi- T
tura implantados no Brasil nos anos pe multiprofissional liderada pelo mé-
70; 2) As mudanças da abordagem de dico (Arouca, 2003; Silva, 2003). Além U
saúde e de doença que transitam entre da integração da medicina preventiva
as concepções da unicausalidade e da às demais especialidades, este movi- V
multicausalidade; 3) As conseqüentes mento adota um novo conceito de saú-
alterações nos processos de trabalho de e doença, no qual a saúde é um es- A
com base na busca de ampliação dos tado relativo e dinâmico de equilíbrio
objetos de intervenção, redefinição da e a doença é um processo de interação A

419
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

do homem com os agentes de história natural das doenças e da


patogênicos e o ambiente. Esta con- estratégia de integração. Porém, man-
cepção de saúde e doença está ancora- tém-se a centralidade do trabalho mé-
da no paradigma da história natural das dico, em torno do qual outros traba-
doenças, proposto por Leavell e Clark lhos especializados se agregam.
que assumem a definição de saúde pre- Também na área de enfermagem
conizada pela Organização Mundial da a proposta do ‘trabalho em equipe’
Saúde (OMS). Esta organização inter- surge na década de 1950, nos EUA,
nacional, em 1946, adota o conceito através de experiências realizadas no
global e multicausal de saúde que a Teacher´s College da Universidade de
define como o estado de completo Columbia, que preconizam a organi-
bem-estar físico, mental e social e não zação do serviço de enfermagem com
apenas a ausência de enfermidade. As base em equipes lideradas por médi-
práticas de saúde passam a ser cos. Esse modelo de organização do
reorientadas no sentido da obtenção trabalho de enfermagem expressa tan-
de um estado ‘global’ de saúde com a to uma crítica ao modelo funcional,
prevenção das doenças e a recupera- centrado na tarefa em detrimento do
ção ‘integral’ do paciente. paciente, bem como a busca de solu-
No que se refere ao modelo de ção para a escassez de pessoal de en-
causalidade do processo saúde-doen- fermagem nos anos pós Segunda
ça, a medicina preventiva liberta-se da Guerra Mundial (Almeida & Rocha,
unicausalidade, fundamentada na bac- 1986; Peduzzi & Ciampone, 2005).
teriologia, pois se tornara insustentá- Em ambas as áreas, medicina e en-
vel explicar a doença como o efeito da fermagem, buscam-se alternati-
atuação de um agente patogênico, e vas para o problema crescente dos cus-
adota o modelo da multicausalidade. tos da atenção médica. Segundo
(Facchini, 1993) Donnangelo e Pereira (1976), os custos
Assim, a idéia de equipe de saúde médicos progressivos, em grande parte
aparece respaldada principalmente pela decorrentes da incorporação do custo
noção de atenção integral ao paciente, dos produtos industriais, farmacêuticos
tendo em conta os aspectos preventi- e equipamentos ao valor do cuidado
vos, curativos e de reabilitação que de- médico, introduzem um dos elementos
veriam ser contemplados a partir dos contraditórios da prática médica em seu
conceitos de processo saúde-doença, processo de extensão, ou seja, amplia-

420
Trabalho em Equipe A

ção quantitativa dos serviços com a in- lhor relação custo-benefício do traba- C
corporação crescente da população. lho médico e ampliar o acesso e a co-
A medicina comunitária emerge e bertura da população atendida, mas D
se difunde como parte do processo de também responde à necessidade de
extensão da prática médica e de con- integração das disciplinas e das pro-
E
trole dos custos e configura como ob- fissões entendida como imprescin-
F
jeto de intervenção as categorias soci- dível para o desenvolvimento das
ais até então excluídas da atenção à saú- práticas de saúde a partir da nova
G
de, “a pobreza constitui, por excelên- concepção biopsicossocial do pro-
cia, o objeto atribuído à medicina atra- cesso saúde-doença. H
vés desse novo projeto” (Donnangelo
& Pereira, 1976, p. 72). Por outro lado, I
essa extensão requer uma nova Seu desenvolvimento
estruturação dos elementos que com- histórico N
põem a prática médica, sobretudo uma
forma distinta de utilização do traba- As mudanças nas políticas de saú- O
lho médico, o que se fará através da de, nos modelos assistências e nas po-
incorporação do trabalho auxiliar de líticas de recursos humanos em saúde P
outras categorias profissionais, confi- influenciaram o desenvolvimento da
gurando uma prática complementar e concepção de ‘trabalho em equipe’. Q
interdependente entre os distintos tra- Desde meados dos anos 70, o de-
balhadores de saúde. O processo de bate em torno das políticas de saúde e R
divisão de trabalho por meio do qual se de recursos humanos, considerando o
dá essa distribuição de tarefas ocorre no perfil de necessidade de saúde da po- S
interior de um processo social de mu- pulação brasileira, apontava a crítica à
danças da concepção de saúde e doen- formação especializada e curativa dos T
ça, já referido anteriormente, que é acom- profissionais de saúde e a necessidade
panhado de alterações introduzidas nos de incentivar a utilização de métodos U
processos de trabalho e no modelo que estimulassem a atuação
assistencial. multiprofissional. Também assinala-
V
Portanto, o ‘trabalho em equipe’ vam o problema da predominância de
A
não tem na sua origem apenas o cará- pessoal de nível superior, em particu-
ter de racionalização da assistência lar de médicos, e de pessoal sem quali-
A
médica, no sentido de garantir a me- ficação técnica formal, configurando a

421
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

denominada equipe bipolar médico- leque variado de profissionais que


atendente. Porém, somente a partir de podem contribuir na construção de
meados dos anos 80 a tendência à saberes e práticas que vão além do mo-
bipolaridade das equipes de saúde é delo biomédico, abarcando as múltiplas
revertida, aumentando a presença de dimensões da saúde.
profissional de nível médio, sobretu- A introdução do Programa de
do auxiliares de enfermagem, e de ou- Saúde da Família (PSF), em 1994,
tros profissionais de nível superior não- como estratégia de reorganização da
médicos, configurando a possibilidade atenção à saúde, destaca o trabalho em
de trabalho em equipes equipe como pressuposto e diretriz
multiprofissionais mais complexas e operacional para a reorganização do
qualificadas (Machado et al., 1992). processo de trabalho em saúde. Espe-
As políticas de recursos humanos cificamente quanto à atenção primá-
em saúde, para as quais a realização da ria, Starfield (2002) aponta que, embora
VIII Conferência Nacional de Saúde, o ímpeto inicial para o trabalho em
em 1986, representa uma inflexão im- equipe tenha sido aumentar o poten-
portante, enfatizam cada vez mais a cial dos médicos da atenção primária,
‘equipe de saúde’ como unidade pro- cuja oferta era baixa, outros imperati-
dutiva em substituição ao trabalho in- vos agora estão à frente, pois o enve-
dependente e isolado de cada profis- lhecimento da população e o aumento
sional em separado. das doenças que duram mais ou recor-
Nos anos 90 voltam a se intensi- rem mais freqüentemente têm criado
ficar os debates sobre a atenção inte- a necessidade de uma abordagem de
gral agora em torno da noção de atenção primária mais ampla e quali-
integralidade da saúde que aponta para ficada, o que sustenta o movimento em
uma concepção alargada no sentido da relação ao ‘trabalho de equipe’ nos vá-
apreensão e reposta ampliada e rios países.
contextualizada para as necessidades de Por outro lado, a proposta do ‘tra-
saúde dos usuários e população de um balho em equipe’ também é reforçada
dado território (Mattos, 2004). Esta pela crítica aos modelos clássicos de
noção de integralidade requer de for- administração que se estende pelos di-
ma mais objetiva e intensa a atuação versos setores da produção inclusive
profissional na modalidade de traba- ao setor saúde, sobretudo a crítica à
lho em equipe, com a inclusão de um rígida e excessiva divisão do trabalho,

422
Trabalho em Equipe A

à fragmentação das tarefas e à de integração para buscar assegurar a C


despersonalização do trabalho integralidade da atenção à saúde.
(Martins & Dal Poz, 1998; Campos, Desde a segunda metade dos anos D
2000). Cabe, contudo, apontar as 90 tem aumentado a produção teórica
especificidades do ‘trabalho em equi- sobre o tema, no país, incluindo o de-
E
pe’ no campo da saúde, dado o seu senvolvimento de pesquisas empíricas
F
caráter de prestação de serviços, e, es- que têm contribuído com subsídios
pecialmente, as características do pró- para o debate e a prática das equipes
G
prio processo de trabalho em saúde, nos serviços de saúde.
quais sejam: a complexidade dos Peduzzi (1998, 2001) conceitua H
objetos de intervenção, a intersub- ‘trabalho em equipe’ multiprofissional
jetividade, visto que o trabalho sem- como uma modalidade de trabalho I
pre ocorre no encontro profissional- coletivo que é construído por meio da
usuário, e a interdisciplinaridade, relação recíproca, de dupla mão, entre N
características estas que requerem a as- as múltiplas intervenções técnicas e a
sistência e o cuidado em saúde organi- interação dos profissionais de diferen- O
zado na lógica do ‘trabalho em equipe’ tes áreas, configurando, através da co-
em substituição a atuação profissional municação, a articulação das ações e a P
isolada e independente. cooperação. Também estabelece uma
tipologia de trabalho em equipe que Q
não configura um modelo estático, mas
Emprego atual na área da a dinâmica entre trabalho e interação R
saúde que prevalece em um dado momento
do movimento contínuo da equipe: S
Na atualidade há um consenso em equipe integração e equipe agrupamen-
torno do ‘trabalho em equipe’ no se- to. No primeiro tipo ocorre a articula- T
tor saúde, porém ainda persiste e pre- ção das ações e a interação dos agen-
domina uma noção de equipe que se tes; no segundo, observa-se a justapo- U
restringe à coexistência de vários pro- sição das ações e o mero agrupamen-
fissionais numa mesma situação de tra- to dos profissionais. A tendência para
V
balho, compartilhando o mesmo espa- um desses tipos de equipe pode ser
A
ço físico e a mesma clientela, o que analisada pelos seguintes critérios: qua-
configura dificuldades para a prática lidade da comunicação entre os inte-
A
das equipes, visto que a equipe precisa grantes da equipe, especificidades

423
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dos trabalhos especializados, questio- núcleo marcaria a diferença entre os


namento da desigual valoração social membros de uma equipe.
dos diferentes trabalhos, flexibilização Também Campos (1999) propõe
da divisão do trabalho, autonomia a organização dos serviços de saúde se-
profissional de caráter interdependente gundo o conceito de equipe de refe-
e construção de um projeto assistencial rência com apoio especializado
comum. matricial. Nessa proposta, cada servi-
Fortuna (1999) e Fortuna et al. ço (rede básica, serviços especializados,
(2005, p. 264) conceituam o ‘trabalho hospitais, outros) seria organizado por
em equipe’ como “uma rede de rela- meio da composição de equipes de re-
ções entre pessoas, rede de relações de ferência segundo três critérios: o obje-
poderes, saberes, afetos, interesses e tivo da unidade, as características do
desejos, onde é possível identificar pro- local/território e os recursos disponí-
cessos grupais”. As autoras destacam veis, de modo que um conjunto de usu-
a dinâmica grupal das equipes e pro- ários ou famílias seria adscrito a uma
põem o reconhecimento e a compre- equipe básica de referência que conta-
ensão desses processos grupais pelos ria com o apoio de especialistas reuni-
seus integrantes como forma de cons- dos em uma equipe matricial. Cada
truir a própria equipe, concebendo o equipe matricial serve de apoio para
‘trabalho em equipe’ como as relações um determinado número de equipes
que o grupo de trabalhadores constro- de referência em uma dada localidade,
em no cotidiano do trabalho. ambas, com um caráter
Ao analisar o gerenciamento do multiprofissional. A principal função
‘trabalho em equipe’ de saúde, Cam- dos profissionais e das equipes de
pos (1997) sugere a aplicação dos referência seria elaborar e aplicar o
conceitos de campo e de núcleo de projeto terapêutico individual. Esta
competências e responsabilidades, o proposta pressupõe três diretrizes:
primeiro referido a saberes e res- vínculo terapêutico, gestão colegiada
ponsabilidades comuns ou conflu- e transdisciplinaridade, apostando no
entes a várias profissões ou especi- seu potencial para possibilitar a supe-
alidades da saúde; o segundo, ao ração dos aspectos fundamentais
conjunto de saberes e responsabili- sobre os quais repousa o modelo
dades específicos de cada profissão hegemônico – biomédico.
ou especialidade, de modo que o

424
Trabalho em Equipe A

Para finalizar, destacam-se as re- um desafio para o público. São Paulo/ C


lações entre as temáticas do ‘trabalho Buenos Aires: Hucitec/Lugar Editoral;
em equipe’ e a interdisciplinaridade e
1997. D
transdisciplinaridade, embora cada um CAMPOS, G. S. W. Equipes de
referência e apoio especializado E
desses temas tenha sua especificidade, matricial: um ensaio sobre a
bem como a imprecisão na utilização reorganização do trabalho em saúde. F
dessas terminologias no campo da Ciência & Saúde Coletiva, 4(2): 393-403,
saúde. De maneira geral, ora utilizam- 1999.
G
se os prefixos multi, inter ou trans, CAMPOS, G. S. W. Um método para
análise e co-gestão de coletivos. São
ora os sufixos profissional ou disci-
Paulo: Hucitec; 2000.
H
plinar, mas os autores concordam
CECCIM, R. B. Equipe de saúde: a
sobre a importância de não desviar o
perspectiva entre-disciplinar na
I
foco da questão central que é a cons-
produção dos atos terapêuticos. In:
tituição de equipes de trabalho (Jacob PINHEIRO R. & MATTOS, R. A. N
Filho & Sitta, 2002; Iribarry, 2003; (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da
Ceccim, 2005). integralidade. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/ O
Cepesc/Abrasco, 2005.
DONNANGELO, M. C. F. & P
Para saber mais: PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São
Paulo: Duas Cidades, 1976. Q
ALMEIDA, M. C. P. & ROCHA, J. S. Y. FACCHINI, LA. Por que a doença? A
O Saber da Enfermagem e sua Dimensão interferência causal e os marcos teóricos R
Prática. São Paulo: Cortez, 1986. da análise.In:Buschinelli JT,Rocha
Lê,Rigotto RM (organizadores) Isto é
AROUCA, S. O Dilema Preventivista:
trabalho de Gente? Vida, doença e
S
contribuição para a compreensão e crítica da
medicina preventiva. São Paulo/Rio de trabalho no Brasil. São Paulo: Vozes,
Janeiro: Unesp/Editora Fiocruz, 2003. 1993.cap. 3, p. 33-55. T
BUSCHINELLI, J. T.; ROCHA, L. E. FORTUNA, C. M. O Trabalho de Equipe
& RIGOTTO, R. M. (Orgs.) Isto é numa Unidade Básica de Saúde: produzindo e U
Trabalho de Gente? Vida, Doença e Trabalho reproduzindo-se em subjetividades – em busca do
no Brasil. São Paulo: Vozes, 1993. desejo, do devir e de singularidades. Dissertação V
de Mestrado, Ribeirão Preto: Escola de
CAMPOS, G. S. W. Subjetividade e Enfermagem de Ribeirão Preto da USP,
administração de pessoal: considerações 1999.
A
sobre modos de gerenciar trabalho em
equipe de saúde. In: ONOKO, R. & FORTUNA, C. M. et al. O trabalho de A
MERHY, E. E. (Orgs.) Agir em Saúde: equipe no Programa de Saúde da

425
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

Família: reflexões a partir de conceitos MATTOS, R. A. A integralidade na


do processo g r upal e de gr upos prática (ou sobre a prática da
operativos. Rev. Latinoam. Enfermagem, integralidade). Cad. Saúde Pública, 20(5):
13(2): 262-268, 2005. 1411-1416, 2004.
IRIBARRY, I. N. Aproximações sobre PEDUZZI, M. Equipe Multiprofissional de
a transdisciplinaridade: algumas linhas Saúde: a interface entre trabalho e interação.
históricas, fundamentos e princípios Dissertação de Mestrado, Campinas:
aplicados ao trabalho de equipe. Faculdades de Ciências Médicas da
Psicologia: reflexão e crítica, 16(3): 483-490, Unicamp.
2003. PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional
JACOB FILHO, W. & SITTA, M. C. de saúde: conceito e tipologia. Revista de
Interprofissionalidade. In: NETTO, M. Saúde Pública, 35(1): 103-109, 2001.
P. (Org.) Ger ontologia: a velhice e o PEDUZZI, M. & CIAMPONE, M. H.
envelhecimento em visão globalizada. São T. Trabalho em equipe e trabalho em
Paulo: Atheneu; 2002. grupo no Programa de Saúde da Família.
MACHADO, M. H. et al. O Mercado de Revista Brasileira de Enfermagem, 53: 143-
Trabalho em Saúde no Brasil: estrutura e 147, 2005. (Número Especial)
conjuntura. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ensp, SILVA, G. R. Prefácio. In: AROUCA, S.
1992. (Org.) O Dilema Preventivista: contribuição para a
MARTINS, M. I. C. & DAL POZ, M. compreensão e crítica da medicina preventiva. São
R. A qualificação de trabalhadores de Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Fiocruz, 2003.
saúde e as mudanças tecnológicas. Physis, STARFIELD, B. Atenção primária. Brasília:
8(2): 125-146, 1998. Unesco/Ministério da Saúde, 2002.

426
Trabalho em Saúde A

C
TRABALHO EM SAÚDE
D
Emerson Elias Merhy
Túlio Batista Franco E

F
O trabalho ato do trabalho funciona como uma
escola: mexe com a nossa forma de pen- G
Toda atividade humana é um ato sar e de agir no mundo. Formamo-nos,
produtivo, modifica alguma coisa e basicamente, no trabalho. H
produz algo novo. Os homens e mu- Há autores, como Karl Marx, que
lheres, durante toda a sua história, dizem que o trabalho é a essência da I
através dos tempos, estiveram ligados, humanidade dos homens, ou como
de um modo ou outro, a atos produ- Paulo Freire, que afirmam que a cultu- N
tivos, mudando a natureza. Quando ra é dada pela forma como trabalhamos
eles tiram um fruto de uma árvore, o mundo, para que possa fazer sentido O
ou caçam um animal, estão fazendo para nós. Quando caçávamos animais,
um ato produtivo e transformando a estávamos dizendo que os animais es- P
natureza. O fruto fora da árvore ou o tavam aí para serem nossos alimentos,
animal caçado só existem, agora, pelo dávamos este sentido de existência para Q
ato produtivo desses homens e mu- eles. Hoje, é assim também. Quando
lheres. Isso é uma transformação da tiramos árvores para fazer madeira, R
natureza pelo trabalho humano. estamos dizendo que as árvores são
Homens e mulheres vivem em importantes por serem fontes de ma- S
sociedade, sempre em coletivos, juntos. téria-prima: o carvão para fazer fogo,
Os seus trabalhos também se realizam a madeira para fazer casa ou móveis,
T
em conjunto; são atividades organiza- entre outros.
U
das uma com as outras. O trabalho de Mas, ainda bem, que estes senti-
um se organiza junto ao do outro. E, o dos não são fixos. Variam conforme a
V
modo como o trabalho se organiza e sociedade, as necessidades e os inte-
para que ele serve é importante para resses que nós construímos em cada
A
entendermos a sociedade que vivemos. época. Interesses que são muito varia-
Ao trabalharmos, todos nós, modifica- dos e que, muitas vezes, brigam entre A
mos a natureza e nos modificamos. O si. Por exemplo, muitos de nós defen-

427
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dem que árvores, hoje, não são fonte que outro trabalhador produziu. Ago-
de madeira, mas seres vivos importan- ra, o que aparece é o seu ‘valor de tro-
tes que contribuem de modo funda- ca’. Nas sociedades, o modo como es-
mental para manter a vida em geral, na tes dois componentes se comportam
Terra. As sociedades e as formas de varia.
organização do trabalho, portanto, têm Nas sociedades capitalistas, o pro-
história. Variam no tempo, modificam- duto do trabalho do trabalhador é do
se assim como nós. patrão ou da empresa que o emprega.
A sociedade em que vivemos, Ele só recebe um salário por trabalhar
hoje, a capitalista, existe de alguns sé- e não pelos produtos que produz. A
culos para cá. Antes dela, outras for- riqueza da sociedade, se medida pela
mas de organização social e de traba- quantidade de trabalho e de produtos
lho existiram, como, por exemplo, as que o trabalho produz, é desigualmente
sociedades de senhores e escravos, as distribuída. Quem trabalha, como re-
dos reis e dos servos, entre outras. O gra, é quem menos recebe da riqueza
modo como o trabalho é realizado e o produzida. Assim, o trabalho do tra-
que se faz com seus produtos variam balhador serve para produzir produ-
conforme a sociedade que estamos tos que tenham ‘valores de troca’ para
analisando. Nas sociedades de caça e o patrão.
coleta, o trabalho é propriedade de cada Há sociedades modernas, como
um, e o produto do trabalho pertence as socialistas, que defendem que a ri-
a quem o faz. Nas sociedades de se- queza é de toda a sociedade e que a
nhores e escravos, o trabalho do es- sua distribuição deve ser feita de acor-
cravo pertence ao senhor. do com o trabalho e a necessidade de
Dizemos que o trabalho é produ- cada um.
tor de ‘valores de uso’ e de ‘valores de
troca’. Conforme a necessidade que
procura satisfazer, o trabalho produz O trabalho e alguns
um produto que carrega um certo ‘va- de seus detalhes nos
lor de uso’, por exemplo, a caça serve microprocessos
para alimentar satisfazendo esta neces-
sidade; por outro lado, se caço para tro- O objeto do trabalho – o animal
car por uma fruta, a utilidade dele ago- a ser caçado, a planta a ser colhida, o
ra é de ser trocado por outro produto aço a ser trabalhado – vai adquirir sen-

428
Trabalho em Saúde A

tido – ser alimento, virar automóvel – produtos feitos em trabalhos anteri- C


pela ação intencional do trabalhador, ores. Na produção de um carro, exi-
através de seu trabalho com as suas gem-se placas de aço. Para o traba- D
ferramentas, seus meios de trabalhar e lhador fazer em ato o carro necessita
o modo como organiza os seus usos. que o aço esteja já feito. Este aço é
E
Todo trabalhador carrega consigo uma produto de trabalho de uma outra
F
caixa de ferramentas, para fazer o seu produção feita antes pelo trabalhador
trabalho, que, na saúde, traduzimos de uma siderúrgica. Assim, o traba-
G
pela imagem das valises tecnológicas. lho de fazer carro combina um traba-
Nestas valises/caixas de ferramentas, lho em ato do trabalhador, que está H
os trabalhadores, tanto de modo indi- fabricando o carro, e um trabalho fei-
vidual quanto coletivo, têm suas ferra- to antes por outro trabalhador, em I
mentas-máquinas (como o outro tipo de fábrica.
estetoscópio, a seringa), seus conheci- Chamamos o trabalho feito em N
mentos e saberes tecnológicos (o seu ato de ‘trabalho vivo em ato’, e o tra-
saber-fazer clínico) e suas relações com balho feito antes, que só chega através O
todos os outros (como os atos de fala) do seu produto – o aço – chamamos
que participam da produção e consu- de ‘trabalho morto’. P
mo do seu trabalho. O trabalho vivo em ato nos con-
Entretanto, um trabalho não é vida a olhar para duas dimensões: uma, Q
igual ao outro. De acordo com o que é a da atividade como construtora de
produz, um trabalho difere do outro. produtos, de sua realização através da R
Por exemplo, para produzir carro tem produção de bens, de diferentes tipos,
de se fazer de um certo modo; para e que está ligada à realização de uma S
produzir saúde, tem de se produzir de finalidade para o produto (para que ele
outro. Cada produção de um produto serve, que necessidade satisfaz, que ‘va- T
específico exige técnicas distintas, ma- lor de uso’ ele tem?); a outra dimensão
téria-prima diferente, modos específi- é a que se vincula ao produtor do ato, U
cos de organizar o trabalho e trabalha- o trabalhador, e à sua relação com seu
dores próprios para aquela produção. ato produtivo e os produtos que reali-
V
Cada trabalho tem como seu objeto za, bem como com suas relações com
A
coisas distintas. os outros trabalhadores e com os pos-
Todo processo de trabalho com- síveis usuários de seus produtos. De-
A
bina trabalho em ato e consumo de talhar estas duas dimensões é funda-

429
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

mental para entendermos o que é o deve pautar-se pelo ‘referente simbó-


trabalho como prática social e prática lico’: ato de cuidar da vida, em geral, e
técnica. Como ato produtivo de coisas e do outro, como se isso fosse de fato a
de pessoas. Antes de olharmos isso na saú- alma da produção da saúde. E, assim,
de, vamos andar mais um pouco pelo tra- tomar como seu objeto central o mun-
balho em vários outros campos. do das necessidades de saúde dos usu-
Como produtor de bens, o traba- ários individuais e coletivos, expressos
lhador está amarrado a uma cadeia ma- como demandas pelas ações de cuida-
terial dura e simbólica, pois o ‘valor de do. Em última instância, a finalidade
uso’ do produto é dado pelo ‘valor re- que advogamos para as práticas de saú-
ferente simbólico’ que carrega, de é a de visar à produção social da
construído pelos vários atores sociais vida e defendê-la.
em suas relações. Já o ‘valor de troca’
de um produto está amarrado à forma
como funciona uma sociedade, que é Trabalho em saúde
historicamente fabricada pelos ho-
mens, como a capitalista em que vive- O ‘trabalho vivo em ato’: a pro-
mos, hoje. dução na saúde realiza-se, sobretudo,
Se para a produção de carro o ‘va- por meio do ‘trabalho vivo em ato’, isto
lor referente simbólico’ é servir para é, o trabalho humano no exato mo-
transportar ou até para se exibir com mento em que é executado e que de-
uma máquina especial (para quem de- termina a produção do cuidado. Mas
seja não um carro mas uma Ferrari), o trabalho vivo interage todo o tempo
para a produção da saúde o ‘referente com instrumentos, normas, máquinas,
simbólico’ é ser cuidado ou vender formando assim um processo de tra-
procedimentos para ganhar dinheiro. balho, no qual interagem diversos ti-
Depende de quem está em cena, seu pos de tecnologias. Estas formas de
lugar social, seu lugar no processo pro- interações configuram um certo senti-
dutivo, seus valores culturais, entre vá- do no modo de produzir o cuidado.
rias outras coisas. Vale ressaltar que todo trabalho é me-
Por isso, advogamos que nas so- diado por tecnologias e depende da
ciedades de direito à saúde, como é a forma como elas se comportam no
brasileira, de acordo com sua consti- processo de trabalho; pode-se ter pro-
tuição de 1988, o ‘trabalho em saúde’ cessos mais criativos, centrados nas

430
Trabalho em Saúde A

relações, ou processos mais presos à usando como exemplo o trabalho do C


lógica dos instrumentos duros (como médico, no qual se imagina a existên-
as máquinas). cia de três valises para demonstrar o D
‘O trabalho em saúde e seu pro- arsenal tecnológico do trabalho em
duto’: os produtos na saúde trazem a saúde. Na primeira valise se encontram
E
particularidade de uma certa materia- os instrumentos (tecnologias duras), na
F
lidade simbólica, e podemos dizer que, segunda, o saber técnico estruturado
falar em tecnologia é ter sempre como (tecnologias leve-duras) e, na terceira,
G
referência a temática do trabalho. Um as relações entre sujeitos que só têm
trabalho cuja ação intencional é materialidade em ato (tecnologias le- H
demarcada pela busca da produção de ves). Na produção do cuidado, o mé-
‘coisas’ (bens/produtos) que funcio- dico (mas poderia ser o enfermeiro, o I
nam como objetos, mas que não ne- técnico da saúde) utiliza-se das três
cessariamente são materiais duros, pois valises, arranjando de modo diferente N
podem ser bens/produtos simbólicos uma com a outra, conforme o seu
(que também portam valores de uso) modo de produzir o cuidado. Assim, O
que satisfaçam necessidades. O ‘traba- pode haver a predominância da lógica
lho em saúde’ é centrado no ‘trabalho instrumental; de outra forma, pode P
vivo em ato’, à semelhança do traba- haver um processo em que os proces-
lho em educação; e a efetivação da sos relacionais (intercessores) intervêm Q
‘tecnologia leve’ do ‘trabalho vivo em para um processo de trabalho com
ato’, na saúde, expressa-se como pro- maiores graus de liberdade, R
cesso de produção de ‘relações tecnologicamente centrado nas
intercessoras’ em uma de suas dimen- tecnologias leves e leve-duras. S
sões-chave, o seu encontro com o usu- ‘O trabalhador de saúde é sempre
ário final, que ‘representa’, em última coletivo’: o ‘trabalho em saúde’ é sem- T
instância, as necessidades de saúde, pre realizado por um trabalhador co-
como sua intencionalidade, e, portan- letivo. Não há trabalhador de saúde que U
to, quem pode, com seu interesse par- dê conta sozinho do mundo das ne-
ticular, ‘publicizar’ as distintas intencio- cessidades de saúde, o objeto real do
V
nalidades dos vários outros agentes na ‘trabalho em saúde’. Os trabalhadores
A
cena do ‘trabalho em saúde’. universitários, técnicos e auxiliares são
‘Trabalho e suas tecnologias’: o fundamentais para que o trabalho de
A
trabalho em saúde pode ser percebido um dê sentido ao trabalho do outro,

431
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

na direção da verdadeira finalidade do são da organização da assistência à saú-


‘trabalho em saúde’: cuidar do usuário, de e, fundamentalmente, de sua potên-
o portador efetivo das necessidades de cia transformadora, particularmente
saúde. Deste modo, o trabalho de um quando nos debruçamos sobre a
depende do trabalho do outro. Uma micropolítica de organização do tra-
caixa de ferramentas de um é necessá- balho. Verifica-se que, no modelo mé-
ria para completar a do outro. O tra- dico-hegemônico, a distribuição do
balhador sempre depende desta troca, trabalho assistencial é dimensionada
deste empréstimo. Porém, há um cam- para concentrar o fluxo da assistência
po em comum entre todos os tipos de no profissional médico. No entanto,
trabalhadores: todos eles, independen- observa-se que há um potencial de tra-
te da sua formação ou profissão, são balho de todos os profissionais que
operadores da construção do cuidado, pode ser aproveitado para cuidados
e portadores das valises tecnológicas; diretos com o usuário, elevando assim
sendo que a valise das tecnologias le- a capacidade resolutiva dos serviços.
ves, que produz relações, é igualmente Isso se faz, sobretudo, reestruturando
de todos. os processos de trabalho e potencia-
lizando o ‘trabalho vivo em ato’ e a
‘A pactuação do processo de tra-
valise das relações, como fontes de
balho’: a cena na qual é definido o
energia criativa e criadora de um novo
modelo tecnológico de produção da
momento na configuração do modelo
saúde é permeada por sujeitos com ca-
de assistência à saúde.
pacidade de operar pactuações entre
si, de forma que a resultante dessas dis-
putas é sempre produto da correlação
Para saber mais:
de forças que se estabelece no proces-
so. Essa pactuação não se dá apenas
GONÇALVES, R. B. M. Tecnologia e
em processos de negociação, mas es- Organização Social das Práticas de Saúde. São
trutura-se, muitas vezes, a partir de Paulo: Hucitec, 1994.
conflitos e tensões vividos no cenário MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do
de produção da saúde, seja na gestão trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.
ou na assistência. SCHRAIBER, L. B. O Médico e seu
Trabalho: limites da liberdade. São Paulo:
O debate em torno do processo Hucitec, 1993.
de trabalho tem-se mostrado extrema- TESTA, M. Pensar en Salud. Argentina:
mente importante para a compreen- Lugar Editorial, 1993.

432
Trabalho Imaterial A

C
TRABALHO IMATERIAL
D
Sérgio Lessa
E

A expressão ‘trabalho imaterial’ ção segundo a qual as transformações F


tem sido empregada com conteúdos que marcam a passagem do feudalis-
tão diversos que o mais seguro, em um mo aos nossos dias não seriam predo-
G
verbete, é afirmar que o uso que dela minantemente causadas, como quer a
H
fazem Antonio Negri, Maurizzio tradição marxista, pelo desenvolvimen-
Lazzarato e Michael Hardt está longe to das forças produtivas. Não seria,
I
de ser consensual. argumentam, o desenvolvimento das
Para tais autores, o conceito de relações mercantis, no contexto da N
trabalho imaterial seria a superação da Acumulação Primitiva e, em seguida,
concepção materialista de Marx que das Revoluções Burguesas e da Revo- O
eles denominam de “objetivista e lução Industrial, o fundamento da gê-
determinista” (Cleaver, 1991, p. 19-26), nese e desenvolvimento da sociabili- P
segundo a qual a transformação da dade contemporânea. Segundo eles, o
natureza nos meios de produção e de motor desse longo processo histórico Q
subsistência seria a categoria fundante seria o “amor pelo tempo por se cons-
do mundo dos homens. Trata-se, por- tituir” (Negri, 1994, p. 391). R
tanto, de um confronto em toda a li- Para fazermos curta uma longa
nha com a concepção ontológica história, é o ‘amor pelo tempo por se S
marxiana e, conseqüência por eles as- constituir’ que faz com que, nos nos-
sumida explicitamente, também com sos dias, os operários se rebelem con- T
sua concepção revolucionária. Uma das tra o capitalismo, abandonem as fábri-
características dessa vertente teórica é cas (o desemprego é, para eles, o re- U
o seu proselitismo e a sua forma re- sultado da recusa operária do trabalho
buscada, quase rococó de apresentar fabril e não o resultado da expulsão do V
as idéias – forma que talvez, por ve- trabalho vivo da produção)(Lazzarato,
zes, evite que se perceba o quão sim- 1992, p. 57 e ss.; Negri, 1993; Hardt e A
plórias são suas teses centrais. Todas Negri, 1984, p. 272 e ss.) e se lancem
elas se articulam ao redor da proposi- na construção de uma nova sociabili-
A

433
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dade que eles denominam de ‘comu- Do ponto de vista político, as con-


nismo’. Para tais autores, o ‘comunis- cepções de Negri, Hardt e Lazzarato
mo’ seria uma sociabilidade que não se pautam por uma duríssima crítica à
mais conheceria a distinção entre a esquerda que eles denominam de ‘mar-
‘produção’ e a ‘fruição’, entre a pro- xista’ ou ‘tradicional’. Tal esquerda es-
dução e o consumo, entre a produção taria falida por não compreender que,
e a circulação: toda a vida, agora, seria hoje, a defesa dos direitos dos traba-
igualmente produtiva. Nas suas pala- lhadores nada mais seria que a luta pela
vras, a produção teria se manutenção das antigas relações de
‘desterritorializado’ e se expandido a produção capitalistas que estariam sen-
toda sociabilidade. As classes sociais, do superadas pelo comunismo. A es-
evidentemente, estariam desaparecen- querda que combate as transforma-
do. Operariado e burguesia seriam coi- ções em curso seria reacionária por
sas do passado. Todavia, surpreenden- não compreender que elas implicam
temente, a função de controle da pro- o fim das classes sociais e, portanto,
dução não se ‘desterritorializaria’ para defender os ‘trabalhadores’ contra o
toda a sociedade: ficaria concentrada ‘capital’ não passaria de uma luta re-
nas mãos dos “empresários políticos” trógrada contra a evolução em dire-
(Negri, 1999, p. 61). ção ao ‘comunismo’.
Nessas novas circunstâncias, Nos dias em que vivemos, contu-
não haveria mais sentido em manter do, nada que diz respeito ao trabalho é
o trabalho, intercâmbio orgânico uma questão isenta de confusões. Isso
com a natureza, como a categoria porque a imprecisão com que o pró-
fundante do ser social. Agora, a ca- prio conceito de trabalho é tratado no
tegoria que articularia o ‘comunismo’ debate contemporâneo cria um cam-
- que estaríamos vendo nascer sob po enorme para incompreensões e
nossos olhos – seria o ‘trabalho mal-entendidos. O mesmo ocorre com
imaterial’. O ‘trabalho imaterial’ se- o emprego da expressão trabalho
ria, assim, para tais autores, a imaterial: ainda que tenha, hoje tal ex-
encarnação nos nossos dias do ‘amor pressão, a marca da corrente que tem
pelo tempo por se constituir’ no em Negri, Lazzarato e Hardt seus mais
momento final de conclusão da sua conhecidos expoentes, muitos autores
obra histórica de conversão do mun- a empregam de modo e com um con-
do feudal em ‘comunista’. teúdo muito distinto.

434
Trabalho Imaterial A

Há razões históricas, mais distan- teleologias presentes em todo ato hu- C


tes no tempo, para tal situação. Uma mano singular).
delas é o fato de que, nas décadas de Esse emprego, na literatura mar- D
1950 e 1960, quando se tornaram mais xista, de trabalho imaterial no lugar de
freqüentes as traduções das obras de trabalho intelectual ou espiritual, ape-
E
Marx e Engels para o português (e para sar de freqüente, não é inteiramente
F
o espanhol, durante muito tempo qua- justificado. Do ponto de vista
se uma segunda língua de leitura para ontológico marxiano, a expressão tra-
G
os marxistas brasileiros), uma parte balho imaterial é em si mesma um con-
importante delas foi feita das traduções tra-senso. Marx rompe com todas as H
francesas. Essas, naquele momento, ontologias anteriores ao elaborar a pri-
eram marcadas pelas leituras que meira ontologia que abandona a I
Kojève fizera de Hegel, e não poucas dualidade espírito-matéria que domi-
expressões de Marx e Engels foram nou dos gregos até Hegel. Essa ruptu- N
traduzidas de modo ‘interpretativo’. ra pode ser levada a cabo, em primeiro
Uma delas foi a tradução de ‘trabalho lugar, quando Marx descobriu o tra- O
espiritual’ e ‘trabalho intelectual’, ex- balho como categoria fundante do
pressões freqüentemente empregadas mundo dos homens. P
por Marx e Engels, que eram Ou seja, descobriu como e por
traduzidas por vezes por ‘trabalho quais mediações, do trabalho (do in- Q
imaterial’ (para diferenciar do ‘traba- tercâmbio orgânico com a natureza) se
lho material’ ou ‘trabalho manual’). É originam possibilidades e necessidades R
assim que em muitas ocasiões pode- que apenas podem ser exploradas e/
mos encontrar a expressão ‘trabalho ou atendidas pelo desenvolvimento de S
imaterial’ para expressar o ‘trabalho novas relações sociais entre os homens
intelectual’ (em Marx, a atividade de e não mais, apenas, entre os homens e T
controle do trabalho manual para que a natureza. A gênese da ciência, por
ele produza a propriedade privada da exemplo, tem seu fundamento na ne- U
classe dominante de cada formação cessidade de se transformar a nature-
social) ou o ‘trabalho espiritual’ (para za nos meios de produção e de subsis-
V
diferenciar as atividades do espírito tência - todavia o seu desenvolvimen-
A
humano que, direta ou mais to não pode mais se dar apenas na re-
freqüentemente, indiretamente, inter- lação com a natureza. O desenvolvi-
A
ferem nos processos de elaboração das mento das complexas questões

435
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

metodológicas e das questões da teo- ma a sua própria natureza de ser social


ria do conhecimento, desde o período (Marx, 1983:). É assim que Marx pode
moderno até hoje, são um bom exem- demonstrar como a essência humana
plo de como o trabalho gera necessi- é o ‘conjunto das relações sociais’, ou
dades e possibilidades que ele mesmo, seja, é um construto humano e, por-
enquanto tal, não pode mais atender. tanto, pode demonstrar a falsidade da
Em um outro pólo, o fato de o traba- justificativa do capitalismo com base
lho, ao transformar a natureza, trans- na alegação de que corresponderia a
formar também a natureza do ser hu- uma essência humana imutável, eter-
mano, é o fundamento da gênese de na, de proprietários privados. A essên-
uma individualidade humana que vai cia hobbesiana do humano, animal
se tornando cada vez mais social com mesquinho e concorrencial ad aeternun,
o passar do tempo - e tal individuali- é superada por uma concepção histó-
dade, por sua vez, é permeada por ne- rica que demonstra como os homens
cessidades intelectuais, afetivas, etc., se fizeram primitivos, escravistas, feu-
que não podem nem ser adequadas e dais e burgueses ao longo do tempo.
imediatamente exploradas nem aten- E, portanto, com as devidas media-
didas pelo intercâmbio orgânico com ções, como podemos vir a superar a
a natureza. O desenvolvimento da psi- essência burguesa que converte a to-
cologia tem aqui o seu solo fundante, dos nós nos mesquinhos animais pro-
para mencionarmos um outro exem- prietários privados que somos. Sen-
plo. O trabalho, portanto, remete sem- do muito breve, está comprovada a
pre para além de si próprio (Lukács, possibilidade ontológica (o que não
1976). E é devido a isto - de modo quer dizer inevitabilidade histórica), as
fundante - que a reprodução social tor- personalidades individuais humanas
na-se possível enquanto desenvolvi- (o desenvolvimento das forças pro-
mento da universalidade humana (o dutivas, de modo mais evidente) e da
desenvolvimento das forças produti- revolução comunista.
vas, de modo mais evidente) e das sin- A tese de que os humanos são os
gularidades cuja síntese funda esta uni- senhores de seu destino implica, espe-
versalidade (os indivíduos, as persona- ramos que esteja claro, a superação das
lidades individuais). concepções ontológicas dualistas, que
Em poucas palavras, ao transfor- contrapunham espírito e matéria. Em
mar a natureza o ser humano transfor- tais ontologias, o abismo entre essên-

436
Trabalho Imaterial A

cia imutável e cotidiano mutável, his- ções postas no mundo pela atividade C
tórico, resultou, sem qualquer exceção, humana. A matéria do ser social se dis-
na justificativa da exploração do ho- tingue da matéria natural não porque D
mem pelo homem. Foi assim com não seja material, mas porque
Aristóteles, com Agostinho e São To- consubstancia uma matéria cuja repro-
E
más, com os modernos (de Hobbes aos dução requer a mediação da consciên-
F
Iluministas) e até mesmo em Hegel. cia, cuja continuidade tem na consci-
Romper com tal dualidade, por- ência seu ‘médium’ e seu ‘órgão’, no
G
tanto, é fundamental para Marx argu- dizer de Lukács (1981, p. 184, 351, 59-
mentar sua proposta revolucionária. O 60 entre muitas outras passagens). H
que requer, por sua vez, a elaboração A consciência humana para Marx,
de uma nova concepção materialista Engels e Lukács nada mais é do que a I
que articula todos os fenômenos, do forma mais tardia e desenvolvida da
inorgânico ao ser social, passando pela matéria: do desenvolvimento da maté- N
vida, em um mesmo estatuto ria inorgânica temos o salto ontológico
ontológico. É assim que, para Marx, que marca o surgimento da vida, isto O
todo o existente são formas distintas é, uma nova organização da matéria
da matéria. O ‘imaterial’ é rigorosamen- que possui como essência a reprodu- P
te o inexistente. O pensamento do in- ção biológica; analogamente, o desen-
divíduo, a pedra assim como a casa feita volvimento da vida possibilita o salto Q
desta pedra, tudo para Marx é matéria. ontológico para a sociabilidade, uma
O que não é matéria é inexistente. Ou, nova forma de matéria fundada pelo R
se quiserem, o inexistente é imaterial. trabalho. Por isso, o trabalho ao fazer
Novamente a descoberta do tra- a mediação entre o homem e nature- S
balho como categoria fundante do ser za, é fundante do ser social: é nele que
social joga aqui um papel decisivo na a essência da nova esfera de ser se T
elaboração de Marx dessa nova con- manifesta por completo originariamen-
cepção ontológica: é o trabalho que, te, isto é, se manifesta pela primeira vez U
ao mediar entre a matéria natural (o ser a capacidade de ao transformar a na-
orgânico e inorgânico) e o ser social, tureza transformar-se também a natu-
V
possibilita que os humanos desenvol- reza dos humanos.
A
vam ao longo do tempo uma nova es- Trabalho, como categoria
fera ontológica. Isso é, uma nova esfe- fundante, concepção unitária do ser
A
ra material que é composta por cria- (rompimento com a dualidade espíri-

437
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

to-matéria, com a essência não-his- teleologicamente orientada da nature-


tórica versus mundo fenomênico-his- za, na conversão da causalidade dada
tórico) e possibilidade da revolução pela natureza em uma causalidade pos-
proletária são absolutamente articu- ta pelos humanos, diria Lukács.
lados em Marx (e, para acrescentar- O ser social, as atividades espiri-
mos autores contemporâneos, tuais que lhe caracterizam, são, portan-
Lukács e Mészáros). to, tão partícipes da matéria, tão mate-
Assim, quando Marx emprega a rial, quanto uma pedra ou uma planta.
expressão ‘trabalho intelectual’ está ele O que distingue a materialidade huma-
se referindo à atividade de controle na da natureza são suas leis e
sobre a transformação da natureza (‘o processualidades – sua história – por-
trabalho manual’) peculiar às socieda- que, diferente do ser natural, a legali-
des de classe e, não, a uma pretensa dade social brota das ações humanas e
dualidade cabeça/mão que cavaria um não dos processos biológicos, quími-
abismo ontológico entre as atividades cos ou físicos do mundo natural. Mas
espirituais e as atividades materiais o ser social não é menos material do
(Marx, 1985). A elaboração de que a natureza por essa razão.
teleologias é um momento ontológico Esse é o conteúdo do materialis-
ineliminável da reprodução material do mo de Marx: o inexistente é o imaterial,
mundo dos homens. E isso vale, com tudo o que existe é matéria, é alguma
as devidas mediações, para todos os modalidade da matéria. Inclusive a
complexos que nelas intervêm, direta consciência humana.
ou indiretamente, desde a ciência e a É evidente, dizíamos, que quando
filosofia até os valores, a arte, a reli- na tradição marxista brasileira encontra-
gião, etc. Do mesmo modo, a causali- mos a expressão trabalho imaterial com
dade social, posta em movimento pela o conteúdo de trabalho intelectual ou
síntese dos atos humanos singulares espiritual, os autores não estão, na enor-
em tendências históricas universais me maioria dos casos, postulando um
(pela reprodução social), apenas pode retorno às concepções dualistas que, ao
surgir, se desenvolver e se reproduzir conceberem a essência humana como
pela mediação de atos teleologicamente imutável e eterna, cancelam o ser huma-
postos. O ser social, diferente do ser no como o demiurgo da totalidade de
natural, é uma esfera da matéria que se sua história e, com as mediações devi-
torna substância pela transformação das, cancelam a possibilidade ontológica

438
Trabalho Imaterial A

da revolução proletária. E é também evi- Minnesota: University of Minnesota C


dente que, na enorme maioria desses ca- Press, 1984.
sos, também não se faz presente uma LAZZARATO, M. Le concept de travail D
adesão às teses de Negri, Hardt e immatériel: la grand entreprise. Paris: Future
Lazzarato, segundo as quais a crise que Antérieur, n. 10, 1992. E
vivemos seria apenas as dores do parto LESSA, S. Para além de Marx? Crítica às
do nascimento do ‘comunismo’ por obra teses do trabalho imaterial. São Paulo: F
do ‘amor pelo tempo por se constituir’. Xamã, 2005.
LUKÁCS, G. Per una Ontologia dell’Essere G
Portanto, no debate contemporâ-
Sociale. Roma: Ed. Rinuti, vol. I, 1976,
neo, a expressão ‘trabalho imaterial’
vol. II, 1981. H
comparece em formas e com conteú-
MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril
dos bastante distintos: aqui também a
Cultural, vol. I, 1983, Tomo I, 1985, I
confusão semântica e conceitual que Tomo II.
se criou ao redor da categoria trabalho N
NEGRI, A. La première crise du
deixa suas marcas. postfordisme. Paris: Future Antérieur,
1993. O
NEGRI, A. O empresário político. In:
Para saber mais: COCCO, G. et al. (Orgs.). Empresários e P
empregos nos novos territórios produtivos. Rio
de Janeiro: Consórcio do Plano
BORON, A. Império e Imperialismo. Q
Buenos Aires: CLACSO, 2000. Estratégico da Cidade do Rio de
Janeiro/DP&A Editora,1999.
CLEAVER, H. Translator’s R
introduction. Parte I. In: NEGRI, A. NEGRI, A. El poder constituyente. Madri:
Marx beyond Marx. Nova York, Londres: Libertarias; Prodhufi, 1994.
Autonomedia, Pluto Press, 1991.
S
TURCHETTO, M. Antonio Negri e o
HARDT, M.; NEGRI, A. Labor of triste fim do ‘operarismo’ italiano. Revista
Dionysus: a critique of the state form. Crítica Marxista. Rio de Janeiro: 2004. T

439
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

TRABALHO PRESCRITO

Jussara Cruz de Brito

O conceito de ‘trabalho prescri- nada nos países de língua francesa, e


to’ (ou tarefa) refere-se ao que é que se denomina ergonomia da ativi-
esperado no âmbito de um processo dade), demonstraram com clareza que
de trabalho específico, com suas sin- é pertinente falar em ‘compreender’ o
gularidades locais. O ‘trabalho pres- trabalho (com suas diferentes faces),
crito’ é vinculado, de um lado, a considerando que se trata de algo com-
regras e objetivos fixados pela orga- plexo.
nização do trabalho e, de outro, às É interessante chamar a atenção
condições dadas. Pode-se dizer, de que a descoberta de que o trabalho não
forma sucinta, que indica aquilo que se resume à tarefa prescrita ocorreu
‘se deve fazer’ em um determinado justamente com a análise de um traba-
processo de trabalho. lho organizado de uma forma tipica-
Este conceito está baseado em mente taylorista, isto é, no qual se su-
estudos realizados em situações reais punha que aos trabalhadores cabia ape-
de trabalho, que permitiram evidenci- nas executar. Com o desenvolvimento
ar que o trabalho é muito mais do pre- de uma pesquisa sobre o trabalho em
visto e percebido do exterior, ele é sem- linhas de montagem da indústria ele-
pre distinto do planejado. Esses estu- trônica, na virada da década de 1960,
dos possibilitaram, inicialmente, que se os ergonomistas descobriram que as
evidenciassem duas faces do trabalho: operárias não seguiam estritamente
a tarefa (‘trabalho prescrito’) e a ativi- o método de execução planejado: elas
dade (trabalho real). Duas faces que alteravam a ordem de fixação dos
não se opõem, mas, ao contrário, se componentes eletrônicos, modifican-
articulam de uma forma que ainda pre- do os movimentos rigidamente progra-
cisa ser mais bem compreendida. Ao mados. Chegou-se então à conclusão
identificar essas duas faces do traba- de que, apesar da rígida divisão e defi-
lho, esses estudos, desenvolvidos por nição de método do trabalho das ope-
uma certa linha da ergonomia (origi- rárias, elas perceberam que na realida-

440
Trabalho Prescrito A

de tinham de, permanentemente, to- Apesar de ser um objeto de debates, C


mar decisões e controlar incidentes. podemos dizer que, sinteticamente, o
Logo, as operárias não eram ‘mão-de- D
‘trabalho prescrito’ se caracteriza pe-
obra’, seu trabalho não se constituía em los seguintes elementos:
algo ‘automático’, ‘feito sem pensar’.
E
· Os objetivos a serem atingidos e os
Conclusão que, evidentemente, aba-
lava a crença taylorista de que existi-
resultados a serem obtidos, em ter- F
mos de produtividade, qualidade,
ria ‘um’ melhor método de trabalho, prazo; G
definido ‘cientificamente’. Ou seja,
· Os métodos e procedimentos pre-
com essa conclusão, tornou-se possí-
vistos; H
vel afirmar que a padronização total
dos métodos de trabalho é uma ficção. · As ordens emitidas pela hierarquia
(oralmente ou por escrito) e as ins- I
Devido à sua gênese, o conceito truções a serem seguidas;
de ‘trabalho prescrito’ esteve muito
· Os protocolos e as normas técnicas
N
atrelado à concepção taylorista de or-
e de segurança a serem seguidas;
ganização do trabalho (com a tentati- O
va de predição e de controle sem limi- · Os meios técnicos colocados à dis-
tes do processo de trabalho), levando posição – componente da prescrição P
a uma visão negativa do seu sentido. muitas vezes desprezado;
Esta visão, entretanto, foi-se modifi- · A forma de divisão do trabalho pre- Q
cando com a constatação de que há vista;
diferentes modos de prescrição do tra- · As condições temporais previstas; R
balho, uma forma de antecipação ne-
· As condições socioeconômicas (qua-
cessária e que é encontrada em todos S
lificação, salário).
os processos produtivos. Com isso, en-
tendeu-se que o conceito de ‘trabalho Se é evidente o caráter externo T
prescrito’ (ou tarefa) é fundamental desses elementos – normalmente vin-
para descrevermos uma das faces do culado à divisão social do trabalho e às U
trabalho – que logicamente tem impli- relações hierárquicas –, é importante
cação sobre a outra (atividade). Até os ressaltar que há um nível de inter-me- V
dias de hoje os ergono-mistas e demais diação entre a tarefa e a atividade (o
cientistas do trabalho procuram avan- que reforça a idéia de que não são fa- A
çar na definição desse conceito, consi- ces opostas do trabalho) que
derando os mundos atuais de trabalho. corresponde aos objetivos que os tra-
A

441
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

balhadores, individualmente ou coleti- por exemplo, seguir determinadas nor-


vamente, definem para si. Por outro mas de segurança e simultaneamente
lado, há situações em que as prescri- dar conta da tarefa em um tempo exí-
ções não são identificadas com clareza guo. Cabe dizer ainda que ao ‘trabalho
ou que se apresentam de forma implí- prescrito’ soma-se o ambiente físico
cita nos induzindo a pensar que se tra- encontrado nas situações de
ta de casos onde o trabalho se desen- trabalho, na medida em que é um com-
volve sem injunções. Este é um caso ponente externo e representa um cons-
de subprescrição, no qual a definição trangimento para a realização do
dos objetivos e dos meios para atingi- trabalho (por isso, algumas vezes é
los acaba recaindo sobre o trabalhador, apontado como integrante da tarefa).
sobre-trabalho nem reconhecido nem Os debates em torno da prescri-
remunerado. Há que se considerar, ção do trabalho têm levado alguns au-
contudo, que sempre haverá uma par- tores ao exercício de decomposição da
te implícita nas tarefas prescritas. tarefa prescrita em vários níveis até
É importante fazer referência chegar à atividade. Esses debates têm
também às novas exigências também permitido evidenciar que:
tendenciais dos empreendimentos con- · O ‘trabalho prescrito’ não deve ser
temporâneos, como a chamada pres- reduzido à expressão de domina-
crição da subjetividade – sinônimo de ção do capital, pois tem um papel
exigência de implicação, iniciativa, importante no desenvolvimento
das atividades. Sua ausência, ou a
criatividade, autonomia e disponibili-
não definição clara dos objetivos,
dade para a produção. Semelhantes são de instruções e de determinados
os casos em que os objetivos a serem instrumentos de trabalho, compro-
atingidos são demasiadamente amplos, mete significativamente o desen-
levando o trabalhador a dar tudo de si volvimento das atividades e a saú-
para alcançar os resultados esperados, de do trabalhador. Logo, o funda-
mental é discutir: qual prescrição
gerando fadiga crônica, esgotamento. é pertinente?
Além disso, as prescrições podem
contribuir diretamente para o desen- · A prescrição tem sempre um cará-
ter situado (na medida em que há
volvimento das atividades, ou serem
um nível de divisão das tarefas que
ineficazes ou perturbadoras. Em vári- se define localmente ou que depen-
as situações observa-se também a exis- de dos meios colocados à disposi-
tência de prescrições contraditórias: ção), obrigando-nos a ter cautela

442
Trabalho Prescrito A

em falar genericamente sobre um relações de força presentes na vida C


determinado setor de trabalho. social e que infiltram todo o conjunto
Como já dito, o reconhecimento de normas antecedentes. D
dessas diferentes faces do trabalho vem Assim, as normas antecedentes
mesclam:
E
influenciando distintas áreas de estu-
dos e intervenção sobre o trabalho, · saberes técnicos, científicos e cultu- F
contribuído para a evolução dos con- rais (com toda sua ambigüidade), im-
ceitos de ‘trabalho prescrito’ e traba- prescindíveis para o desenvolvimen-
to do trabalho; G
lho real. Destacaremos a contribuição
da ergologia (uma perspectiva de pro- · códigos organizacionais, ligados à H
dução de conhecimento que busca in- divisão (social e sexual) do trabalho
e às relações de poder, de explora-
tervir nos mundos do trabalho a partir
ção econômica e dominação.
I
de uma dupla confrontação: dos dife-
rentes saberes e desses com os produ- Entre o que pode ser considera- N
zidos na atividade de trabalho) que in- do patrimônio relativamente e provi-
dica o seguinte: além das formas de soriamente estabilizado da humanida- O
prescrição antes elencadas, relativas à de (que se torna ‘norma’ porque ne-
organização do trabalho e às condições nhuma atividade de trabalho pode P
dadas (propostas-impostas) ao traba- ignorá-lo) e a estrita imposição de
lhador, encontramos na vida a presen- modo de execução, há toda uma série Q
ça de um movimento de antecipação, de normas antecedentes, mais ou me-
que se configura em um patrimônio nos relevantes. Acrescenta-se que al- R
coletivo. São ‘normas antecedentes’ gumas dessas normas são forjadas pela
vinculadas a aquisições da inteligência história dos coletivos de trabalho (por S
e experiência coletiva (e, neste senti- exemplo, regras e práticas desenvolvi-
do, bens de todos). Essas normas re- das através da experiência, pelo pró- T
ferem-se aos saberes técnicos, cientí- prio coletivo) e outras provêm dos des-
ficos e culturais historicamente incor- tinatários do trabalho (clientes ou usu- U
porados ao fazer (como os diferentes ários), uma vez que esses apresentam
saberes e técnicas do campo da saú- suas expectativas e exigências ao tra- V
de). Portanto, se constituem em balhador.
patrimônio da humanidade – mesmo
A
Há ainda um terceiro aspecto que
que o conhecimento caracteriza as normas antecedentes:
técnico-científico esteja vinculado às
A
elas sinalizam valores. Portanto, elas

443
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

têm uma dimensão sócio-político-ju- dos profissionais e as demandas dos


rídica e não apenas monetária. Dizem usuários. Há que se considerar conjun-
respeito, assim, também a valores do tamente os recursos orçamentários, a
bem comum (saúde, educação, direito organização espacial das unidades, as
ao trabalho, ao lazer, segurança, pre- instalações e suas condições. Outras
servação ambiental, igualdade etc.), so- legislações brasileiras (e internacionais)
bre os quais há sempre um campo de podem também se configurar como
lutas e em nome dos quais se busca normas antecedentes ao trabalho em
instituir dispositivos legais em uma saúde, na medida em que lhe influenci-
conjuntura social específica. em direta ou indiretamente.
Enfim, as normas antecedentes Trabalhar é colocar em debate
estão vinculadas aos regulamentos, uma diversidade de fontes de pres-
procedimentos e tecnologias encontra- crição, estabelecer prioridades entre
das em determinada situação de traba- elas e muitas vezes não poder lhes
lho, ao nível de conhecimento técni- seguir simultaneamente. Do mesmo
co-científico e cultural de uma certa modo que as prescrições, as normas
sociedade e aos valores nela presentes. antecedentes podem ser contraditó-
Neste sentido, é possível reconhe- rias, implicando uma permanente
cermos algumas normas antecedentes tensão entre princípios, regras, mo-
do trabalho em saúde no Brasil: os delos, formação técnico-científica,
princípios de humanidade e cidadania recursos disponíveis etc. São os co-
da Reforma Sanitária, o valor social e letivos de trabalho que enfrentam
político atribuído ao Sistema Único de essa tensão, sendo obrigados a fazer
Saúde (SUS), as políticas de saúde, os escolhas permanentemente – o que
modelos de atenção e de gestão. Elas corresponde à outra face do traba-
incluem também a formação técnico- lho (trabalho real ou atividade). Ao
científica dos profissionais de saúde, a fazer opções, buscam soluções e de-
constituição e a forma de divisão das senvolvem novas técnicas, que mais
tarefas nas equipes (técnica, sexual etc), tarde poderão ser incorporadas às
as tecnologias e materiais disponíveis, normas antecedentes. Portanto, como
os protocolos terapêuticos, as rotinas já dito, as normas antecedentes são
de trabalho previstas, as regras institu- vinculadas a aquisições da inteligên-
ídas nos serviços (de produtividade, de cia e à experiência coletiva (e, por
qualidade etc.), as formas de contrato isso, trata-se de bens comuns).

444
Trabalho Produtivo e Improdutivo A

Se iniciamos nosso texto falando Congrès de la SELF, “Les évolutions C


de la prescription” (Conférence
de ‘trabalho prescrito’ e chegamos às
normas antecedentes, é porque ambos
inaugural), Aix-en-Provence, 2002.
Disponível em: <http://
D
conceitos se referem ao que é dado, www.ergonomie-self.org/self2002/
exigido e apresentado ao trabalhador
daniellou.pdf>. E
antes de a atividade ter início. Além dis- GUÉRIN, F. et al. Compreender o Trabalho
para Transformá-lo: a prática da ergonomia. F
so, algo muito importante: com o con- São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 2001.
ceito de normas antecedentes, pode-
LEPLAT, J. & HOC, J.-M. Tarea y G
mos vislumbrar outros níveis de pres- actividad en en el análisis psicológico de
crição do trabalho, que muitas vezes situationes. In: CASTILLO, J. & H
não são apreendidos como tal. VILLENA, J. (Orgs.) Ergonomía: conceptos
y métodos. Madrid: Editorial
Complutense, 1998. I
MONTMOLLIN, M. Vocabulaire de
Para saber mais:
L’Ergonomie. Toulouse: Éditions Octarès, N
1995.
ALVAREZ, D. & TELLES, A. L.
SCHWARTZ, Y. Le Paradigme
O
Interfaces ergonomia-ergologia: uma
discussão sobre trabalho prescrito e Ergologique ou un Métier de Philosophe.
nor mas antecedentes. In: Toulouse: Octarès, 2000. P
FIGUEIREDO, M. et al. (Orgs.) Labirintos TEIGER, C. El trabajo, ese oscuro objeto
do Trabalho: interrogações e olhares sobre o de la Ergonomía. In: CASTILLO, J. & Q
trabalho vivo. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. VILLENA, J. (Orgs.) Ergonomía: conceptos
DANIELLOU, F. Le travail des
prescriptions. In: Actes du 37ème
y métodos. Madrid: Editorial Complutense, R
1998.
$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$
S
TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO T

U
Sérgio Lessa
V
No início do período moderno, como cobrar os juros e os preços. To-
a burguesia nascente sabia como ‘fa- davia, não conseguia ainda entender A
zer negócios’, isto é, como retirar lu- muitas das ‘leis do mercado’; não com-
cro de suas trocas mercantis; sabia preendia, acima de tudo, de onde pro- A

445
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

veria a força do dinheiro para moldar Na Idade Média, no escravismo


o mundo à sua (do dinheiro) imagem ou no período primitivo, um trabalho
e semelhança. Para se ter uma idéia, a ‘improdutivo’ seria a mais completa
lei da oferta e da procura, então já inutilidade. Isso porque, com todas as
ativa há séculos, apenas foi desco- mediações cabíveis a cada formação
berta na Inglaterra por volta dos social, o trabalho ainda estava muito
anos de 1580: até então os preços próximo da produção de valores de
subiam ou desciam sem que se sou- uso e, por isto, falar em trabalho pro-
besse explicar e, portanto, ‘prever’, dutivo não passava de tautologia. Foi
estas variações. Foi para investigar com a expansão das relações mercan-
questões como essa que surgiu a tis entre os séculos XV e XVIII, isto é,
Economia Política Clássica. E foi com o crescimento da importância na
com ela que surgiu a distinção entre reprodução social do valor de troca,
o trabalho produtivo e improdutivo. que tivemos a gênese da distinção en-
Com o desenvolvimento das rela- tre aquele trabalho assalariado que pro-
ções mercantis, a burguesia começou duz lucro e aquele outro que não o
a se dar conta de que há dois, digamos, produz. Um bom negócio deveria con-
‘tipos’ de salários: um do qual advém tar com o máximo de trabalhadores
lucro e, outro, que não. Numa manu- produtivos e o mínimo necessário de
fatura, por exemplo, quanto mais improdutivos, por exemplo.
artesãos o burguês puder contratar (e Com a Revolução Industrial
isto depende, claro, não apenas de sua (1776-1830), junto com o conjunto da
vontade, mas fundamentalmente das sociedade burguesa, a distinção entre
condições do mercado) maior será o o trabalho produtivo e o improdutivo
seu lucro. O salário dos artesãos é um atingiu a sua maturidade. A indústria
salário que gera lucro. Por outro lado, se tornou o pólo mais dinâmico da re-
um segundo contador, mais vigias, etc., produção do capital e o lucro comer-
são salários que não geram lucro, an- cial ou os juros deixaram de ser o seu
tes, são ‘custos’. Foi a partir de então momento predominante (que é distin-
que começou a fazer sentido a distin- to do seu momento fundante, como
ção entre trabalho produtivo e impro- veremos mais à frente). Com isso, as
dutivo. O primeiro é aquele ‘produti- categorias de trabalho produtivo e im-
vo de lucro’, o segundo representa o produtivo também adquirem sua ma-
custo do negócio. turidade histórica: é produtivo o tra-

446
Trabalho Produtivo e Improdutivo A

balho assalariado que produz mais-va- bre o trabalho, etc.; 2) os trabalhado- C


lia e improdutivo aquele que não pro- res dos serviços que não produzem
duz mais-valia. mais-valia (os empregados domésti- D
Até esse ponto foi a Economia cos, etc.); 3) os trabalhadores do Esta-
Política Clássica. Da perspectiva do capi- do (sempre o aparelho especial de re-
E
tal – e tão somente dessa perspectiva – pressão com que as classes dominan-
F
a distinção fundamental a ser feita é tes contam para manter a reprodução
entre as atividades assalariadas que pro- de sua propriedade privada); e, 4) por
G
duzem mais-valia e aquelas que não fim, os empregados do comércio e
produzem mais-valia. Dessa perspec- dos bancos (sobre eles, voltaremos H
tiva – muito restrita – os trabalhado- mais abaixo). Todos esses trabalhado-
res assalariados se dividem em dois res não produzem mais-valia: repre- I
grandes agrupamentos. O primeiro é sentam ‘custos’.
composto: 1) pelos trabalhadores que, Os trabalhadores improdutivos N
no agrobusiness, nas fábricas e no trans- compõem uma enorme massa de as-
porte, transformam a natureza; e, 2) salariados, muito mais numerosa e he- O
também por aqueles trabalhadores que, terogênea do que a dos trabalhadores
no setor de serviços, produzem mais- produtivos. Todavia, imediatamente P
valia, como o professor da escola pri- (ou seja, não é esta toda a história), o
vada e outras atividades assemelhadas capital se valoriza pela produção da Q
(mais sobre isto à frente). mais-valia. Se isso é assim, por que
O segundo agrupamento é com- então necessita o sistema do capital de R
posto: 1) pelos trabalhadores que, no tal quantidade de assalariados que não
interior das fábricas, agrobusiness, trans- produzem mais-valia? Porque o siste- S
porte e serviços que produzem mais- ma do capital é perdulário em sua es-
valia exercem as atividades de contro- sência. Ele precisa de um sistema de T
le e vigilância dos trabalhadores: os controle hierárquico sobre o trabalho
engenheiros, que concebem como e o que é um gigantesco desperdício: des- U
que será produzido, os funcionários do de as carteiras de identidade e passa-
departamento de pessoal, do departa- portes, até o controle minucioso das
V
mento jurídico, os executivos que ad- ações dos operários no interior das fá-
A
ministram o negócio, os assistentes bricas, a sociedade burguesa vai se de-
sociais, os vigias e toda a hierarquia que senvolvendo em um enorme mecanis-
A
compõe o ‘despotismo’ do capital so- mo de controle da sociedade. Essa

447
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

perdularidade é o que torna imprescin- Como a relação entre o capital e a


dível a gênese, o crescimento e humanidade não é uma relação de iden-
hipertrofia do setor improdutivo. tidade, mas de alienação (Entfremdung),
A perdularidade essencial ao sis- a reprodução do capital não é idêntica
tema do capital torna o trabalho im- à reprodução do ser social. A sociabi-
produtivo indispensável à sua repro- lidade, se Marx estiver correto, tem no
dução. Esse fato gera a ilusão de que, intercâmbio orgânico com a natureza
por serem ‘necessários’ à reprodução (o trabalho) sua categoria fundante. Se
do capital, os trabalhadores improdu- o trabalho funda o ser social em sua
tivos seriam igualmente produtivos: a universalidade, o trabalho primitivo
distinção entre trabalhadores produti- funda as sociedades primitivas, o tra-
vos e improdutivos teria desaparecido, balho escravo funda o escravismo, o
ou perdido importância, nos dias de trabalho servil o feudalismo e, por fim,
hoje. Braverman, com Trabalho e Capi- o trabalho proletário funda o modo de
tal Monopolista(1981), é o mais clássico produção capitalista. E a razão decisi-
representante dessa vertente. Para va dessa situação ontológica é que sem
Marx, a distinção entre o trabalho pro- a transformação da natureza nos mei-
dutivo e improdutivo não se radica no os de produção e de subsistência não
fato de serem necessários ao capital – há qualquer reprodução social possí-
ambos o são, como vimos – mas sim vel. Portanto, se a produção da mais-
nas distintas funções sociais que exer- valia é a mediação pela qual se dá ime-
cem: o primeiro produz mais-valia, o diatamente a reprodução do capital, isto
segundo não o faz (Marx, 1985). não cancela o fato de que a reprodu-
É essa distinção – ontológica – en- ção da sociabilidade capitalista depen-
tre as funções que exercem na reprodu- de de sua capacidade em continuar re-
ção do capital que faz com que, do ponto tirando da natureza os meios de pro-
de vista da reprodução do capital (e esta não dução e subsistência a ela imprescin-
é, repetimos, toda a história), Marx adote díveis. Ou seja, a distinção entre o tra-
criticamente a distinção da Economia balho produtor de mais-valia e não
Política Clássica: os trabalhadores se di- produtor de mais-valia não é a única
videm entre aqueles que geram mais-va- na reprodução do sistema do capital.
lia e aqueles que não o fazem. Há também a distinção entre o traba-
Essa não é, todavia, toda a lho fundante que retira da natureza os
história. meios de produção e de subsistência e

448
Trabalho Produtivo e Improdutivo A

o trabalho abstrato, ou seja, a totalida- tureza, continuam existindo após o fim C


de das atividades assalariadas. É essa do processo de trabalho. Assim, a cada
distinção que particulariza os proletá- instante trabalhado, o proletário acres- D
rios frente aos demais assalariados: centa um novo quantum de riqueza ao
proletários (ou operários) são os tra- já acumulado pela sociedade, amplian-
E
balhadores assalariados que, ao conver- do a riqueza geral da sociedade. Uma
F
terem a natureza, fundam a sociabili- sociedade com mais estradas, ferro, ali-
dade burguesa. São eles, nas palavras mentos, etc. do que no passado acu-
G
de Marx, os “produtores” do capital mulou uma riqueza que corresponde
(Marx, 1985, p. 188, n. 70). ao montante de trabalho humano plas- H
A complexidade do conjunto des- mado nos novos produtos. Do ponto de
sas relações reside no fato de que duas vista da reprodução do capital, essa ampli- I
dimensões da vida social –igualmente ação da riqueza da sociedade compa-
reais - sobrepõem-se pela mediação rece como a ampliação do capital soci- N
dos complexos alienantes oriundos do al total, para empregar a expressão de
capital. A primeira: se quase toda con- Marx (1985). Ao produzir um novo O
versão da natureza se transformou em meio de produção ou de subsistência,
trabalho assalariado, nem todo traba- o proletariado produz um novo quantum P
lho assalariado converte a natureza em de capital: ele valoriza o capital ao pro-
meios de produção e de subsistência. duzi-lo. E como a transformação da Q
A segunda: se toda conversão da natu- natureza requer a atuação da
reza em meios de produção e de sub- “corporalidade” (Marx, 1983, p.149- R
sistência por meio do trabalho assala- 50) dos humanos, este é necessaria-
riado produz mais-valia, nem toda a mente um ‘trabalho manual’. “... Como S
geração de mais-valia ocorre no inter- o homem precisa de um pulmão para
câmbio com a natureza. Vejamos cada respirar, ele precisa de uma ‘criação da T
uma dessas sobreposições: mão humana’ para consumir produti-
- O trabalho proletário do cam- vamente forças da natureza” (Marx, U
po e da cidade: produz a mais-valia 1985, p. 17).
pela conversão da natureza em meios - O trabalho produtivo de mais-
V
de produção e de subsistência. Produz valia fora do intercâmbio com a na-
A
novos produtos (ferro, alimentos, rou- tureza: com o desenvolvimento das
pas, casas, carros, estradas, etc.) que, relações mercantis, expande-se uma
A
por advirem da transformação da na- nova possibilidade de valorização de

449
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

capital pela exploração de alguns ser- outro: não houve a produção de ne-
viços (nem todos os serviços, eviden- nhum novo quantum de riqueza, nem
temente). O exemplo de Marx é o do o capital social total se ampliou.
professor em uma escola privada Houve, apenas, a conversão da rique-
(Marx, 1985). Outros muitos exemplos za que já existia sob a forma de di-
podem ser dados, inclusive os dos pro- nheiro no bolso dos pais dos alunos
fissionais da saúde que trabalham nos na riqueza sob a forma de capital no
planos de saúde e hospitais privados. cofre do burguês. Esse é o exemplo
Nessa esfera, temos a geração da mais- clássico da geração de mais-valia sem
valia ao o capital vender o serviço por a ‘produção’ do capital.
um valor maior do que o valor da for- De onde, todavia, se originou esse
ça de trabalho empregada: o preço da dinheiro que estava no bolso dos pais
aula que os pais pagam é muito supe- dos alunos? Sempre do trabalho pro-
rior ao valor da hora-aula do salário do letariado, o que varia apenas é a me-
professor, etc. Nisso, as coisas são aná- diação. Se o pai do aluno for um bur-
logas ao que encontramos no trabalho guês que expropria diretamente os ope-
proletário. A distinção fundamental rários, veio da riqueza produzida por
está na função social que exercem tais estes últimos. Se ele for um burguês
trabalhadores produtivos não operári- do comércio e dos bancos, veio da
os: eles geram mais-valia, eles ‘valori- mais-valia produzida pelos operários,
zam’ o capital e, todavia, não ‘produ- como veremos logo abaixo. Se ele for
zem’ capital. O montante de mensali- um assalariado não-proletário da indús-
dades que os pais pagam ao burguês tria, ou um assalariado dos bancos ou
dono da “fábrica de ensinar” (Marx, do comércio, a riqueza que é converti-
1983, p.106) é idêntico à soma da mais- da em seu salário também advém da
valia apropriada pelo patrão acrescida riqueza produzida pelos proletários. O
dos salários e dos custos de manuten- mesmo ocorre com o funcionário pú-
ção da escola (incluindo as propinas blico, pela mediação dos impostos.
aos funcionários públicos, etc.). O di- Portanto, a origem de toda a riqueza
nheiro (isto é, a riqueza empregada para sob a forma de dinheiro presente na
as despesas pessoais) dos pais dos alu- sociedade é o trabalho proletário.
nos se transfere para o cofre do bur- O trabalho produtivo de mais-va-
guês. O que os pais dos alunos perde- lia exerce, portanto, duas funções so-
ram de um lado, o burguês ganhou de ciais distintas: o trabalho proletário

450
Trabalho Produtivo e Improdutivo A

‘produz’ o capital, o trabalho produti- trial, vendê-los diretamente. Como a C


vo não proletário apenas gera mais- mercadoria terá de ser vendida pelo seu
valia pela conversão da riqueza já exis- valor, o comércio apenas se encarre- D
tente sob a forma de dinheiro para a gará de sua venda se uma parte da mais-
forma capital. E, de um ponto de vista valia produzida na indústria for a ele
E
mais amplo que a mera reprodução do transferida. Para tanto, o comerciante
F
capital, temos aqui a relação entre o compra do industrial por 8 unidades
trabalho fundante da sociabilidade (tra- uma mercadoria cujo valor é, digamos,
G
balho proletário que realiza o intercâm- 10 unidades. Ao vendê-la, em seguida,
bio orgânico com a natureza) e a por- por 10, se apropria de 2 unidades que H
ção fundada da vida social (os demais correspondem à mais-valia expropria-
complexos da sociedade burguesa): o da do trabalho proletário pelo indus- I
trabalho proletário produz o capital, trial e transferida ao comerciante.
gera toda a riqueza da sociedade capi- Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com N
talista. Funda, por isso, a sociabilidade o pagamento de juros aos bancos
burguesa madura. O trabalhador pro- (Marx, 1985). A riqueza que se con- O
dutivo não-proletário, como o profes- verte em salário dos trabalhadores des-
sor da escola privada, não produz o ses setores não inclui, portanto, nenhu- P
capital, apenas converte a riqueza já ma produção de mais-valia. Por isso,
produzida pelos proletários e que se tais trabalhadores são trabalhadores Q
encontra sob a forma de dinheiro, para improdutivos.
a forma capital. Concentra a riqueza já Por fim, a distinção entre traba- R
produzida e difusa na sociedade nas lho produtivo e improdutivo só faz
mãos da burguesia. A mais-valia pro- sentido, como vimos, do ponto de vista S
duzida pelo professor faz parte, por- do capital. As categorias de trabalho pro-
tanto, da porção da sociedade burgue- dutivo e improdutivo são – esperamos T
sa fundada pelo trabalho proletário. que esteja claro – subcategorias do tra-
- O trabalho assalariado do co- balho abstrato. Ser trabalhador produ- U
mércio e dos bancos. Como prome- tivo ou improdutivo significa, portan-
tido, vamos agora aos bancos e ao co- to, imediatamente, ser explorado pelo
V
mércio. O desenvolvimento do capi- capital. Do ponto de vista da contra-
A
talismo torna mais lucrativo ao indus- dição mais genérica entre o capital e o
trial ceder a venda de seus produtos trabalho abstrato, se desdobra uma
A
aos comerciantes do que ele, indus- exploração que se expressa ao redor

451
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

dos salários (ou da jornada de traba- Os trabalhos produtivo e impro-


lho). Na perspectiva da reprodução do capi- dutivo, portanto, correspondem a uma
tal – e, novamente, esta não é toda a distinção específica às sociabilidades
história – todos os assalariados se equi- regidas pelo capital; são subcategorias
param no sentido de que lutam por au- do trabalho abstrato. Servem para par-
mentar o preço de sua força de traba- ticularizar o trabalho produtor de mais-
lho enquanto os burgueses fazem de valia do trabalho que não produz mais-
tudo para rebaixá-lo. valia. A essa distinção se sobrepõe, sem
Tais lutas ocupam um lugar im- que a cancele, uma outra: a relação en-
portantíssimo no desenvolvimento da tre o trabalho abstrato e o trabalho
sociedade burguesa, todavia, não são fundante do ser social. O trabalho
expressões da contradição antagônica fundante da sociabilidade burguesa –
entre o proletariado e a burguesia ao que corresponde, nos dias de hoje, ao
redor da propriedade privada, do Es- trabalho “condição eterna” (Marx,
tado, do casamento monogâmico (do 1983, p. 153) da vida social – é o inter-
patriarcalismo) e das classes sociais. O câmbio com a natureza realizado pelo
fundamento ontológico dessa distin- trabalho proletário. Esse produz o ca-
ção entre o proletariado e os demais pital pela conversão da natureza em
assalariados está no local distinto que meios de produção e de subsistência;
ocupam na estrutura produtiva. O tra- os demais trabalhos assalariados, ge-
balho proletário funda a sociedade rando ou não mais-valia, não produ-
burguesa. Com as devidas mediações, zem nenhuma nova riqueza e, por isto,
os trabalhadores não-proletários, pro- tal como a burguesia, parasitam o tra-
dutivos ou não, têm a origem da rique- balho proletário. O que distingue a
za que se converte em seus salários na burguesia desses setores assalariados
exploração, pela burguesia, do traba- parasitários é o fato dela extorquir di-
lho proletário. Apenas e tão somente retamente o trabalho proletário – e,
os proletários vivem da riqueza que eles com isto, ficar com a maior parte da
mesmos produzem. Ou seja, como riqueza produzida. Aos assalariados
em todas as sociedades de classe, não-proletários resta a disputa pela di-
também o capitalismo se subdivide visão do extorquido dos operários pe-
em uma classe que produz toda a ri- las lutas ‘econômicas’ (Lênin, 1978) ao
queza da sociedade e os outros seto- redor do valor dos salários. Apenas o
res que a parasitam. proletariado reúne, por isso, as condi-

452
Trabalho Real A

ções históricas para se converter no LENIN, V. I. Que fazer? São Paulo: C


sujeito da revolução pela abolição da Hucitec, 1978.
propriedade privada, do Estado e do MARX, K. O Capital. São Paulo:
D
casamento monogâmico (o Abril Cultural, vol. I, 1983, Tomo
patriarcalismo). Por isso, tal revolução, I, 1985, Tomo II. E
para distinguir das revoluções burgue- N APOLEONI, C. Lições sobr e o
capítulo sexto (inédito) de Marx. São
F
sas, é cientificamente denominada de
Revolução Proletária. Paulo: Livraria Editora Ciências
Humanas, 1981. G
NETTO, J. P.; BRAZ, M. Introdução
à E c o n o m i a P o l í t i c a . S ã o Pa u l o :
H
Para saber mais:
Cortez, 2006.
I
BRAVERMAN, H. Trabalho e capital TEIXEIRA, F. Pensando com Marx.
monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. São Paulo: Ensaio, 1995.
N
%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%
O
TRABALHO REAL
P

Jussara Cruz de Brito Q

R
Como uma primeira definição de que lhe(s) foram prescritos. A parte
‘trabalho real’ (‘atividade’), pode-se di- obser vável da atividade (o S
zer que é aquilo que é posto em jogo comportamental) é apenas um de seus
pelo(s) trabalhador(es) para realizar o aspectos, pois os processos que geram T
trabalho prescrito (tarefa). Logo, tra- a produção deste comportamento não
ta-se de uma resposta às imposições são diretamente observáveis. U
determinadas externamente, que são, O esforço conceitual sinalizado na
ao mesmo tempo, apreendidas e mo- expressão ‘trabalho real’ está vincula- V
dificadas pela ação do próprio traba- do ao pressuposto de que as prescri-
lhador. Desenvolve-se em função ções são recursos incompletos, isto é, A
dos objetivos fixados pelo(s) que desde a sua concepção elas não são
trabalhador(es) a partir dos objetivos capazes de contemplar todas as situa- A

453
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ções encontradas no exercício cotidia- longo do dia, mês ou ano) ou resultam


no de trabalhar. Nesse sentido, é dada de imprevistos e disfuncio-namentos
ênfase ao papel das pessoas como pro- (falhas ou defeitos em equipamentos,
tagonistas ativos do processo produti- problemas com instalações,
vo (e não como ‘fator’ ou ‘recurso’ hu- inadequação ou falta de material, pro-
mano). Mesmo no caso de tarefas blemas relativos aos fluxos previstos e
muito repetitivas, cabe ao trabalhador à comunicação etc.). Do ponto de vis-
fazer regulações/ajustes/desvios – ta dos trabalhadores, as variabilidades
mesmo que infinitesimais – que garan- estão ligadas, principalmente, às carac-
tam a continuidade da produção. Isso terísticas das equipes (qualificações e
implica o questionamento de expres- competências dos diferentes profissi-
sões, como ‘trabalho manual’ ou ‘tra- onais, se são majoritariamente compos-
balho de execução’, que não assinalam tas de mulheres, de homens ou mistas,
ao caráter ativo (mobilização cognitiva diferenças culturais, de ritmo etc.) e às
e afetiva) do trabalhador. mudanças de ‘estado’ de cada trabalha-
Fundamentalmente, a defasagem dor durante a jornada, mês ou ano
sempre existente entre o trabalho pres- (condições de saúde, problemas
crito e o ‘trabalho real’ se deve ao fato extraprofissionais, nascimento de fi-
de as situações reais de trabalho serem lhos, desenvolvimento de competên-
dinâmicas, instáveis e submetidas a cias, expectativas e perspectivas pro-
imprevistos, conforme mostram os fissionais, efeitos da idade, fadiga etc.).
estudos realizados no âmbito da Conseqüentemente, a compreensão da
‘ergonomia da atividade’, desde do fi- atividade não se limita ao que é posto
nal da década de 1960. Portanto, a ati- em jogo pelo(s) trabalhador(es) para
vidade de trabalho envolve estratégias realizar o trabalho prescrito, pois al-
de adaptação do prescrito às situações guns de seus determinantes são encon-
reais de trabalho, atravessadas pelas trados na história da pessoa ou equi-
variabilidades e o acaso. pe, na cultura.
Do ponto de vista do sistema só- A atividade de trabalho (‘trabalho
cio-técnico, as variabilidades dizem res- real’) pode ser definida, então, como
peito a oscilações normais do proces- um processo de regulação e gestão das
so produtivo (por exemplo, quanto à variabilidades e do acaso. Compreen-
quantidade e tipo de produtos/aten- der a atividade de trabalho é compre-
dimentos/procedimentos/ações ao ender os compromissos estabelecidos

454
Trabalho Real A

pelos trabalhadores para atender a exi- Observa-se, além disso, que os C


gências freqüentemente conflitivas e problemas que os trabalhadores têm
muitas vezes contraditórias. Esses de resolver, além de nunca estarem D
compromissos se vinculam a dois pó- definidos inteiramente no enunciado
los de interesses: os relativos aos pró- formal de suas tarefas prescritas, não
E
prios trabalhadores (saúde, desenvol- estão totalmente definidos a priori; ou
F
vimento de competências, prazer) e os seja, são os trabalhadores que devem
relativos à produção. A atividade de ser capazes de construir estes proble-
G
trabalho é, portanto, sempre singular, mas, como sinalizou há décadas o
dado que caracteriza o trabalho de in- ergonomista Alain Wisner. H
divíduos singulares e instáveis/variá- A inteligência do/no trabalho, de
veis, efetuado em contextos singulares acordo com a psicodinâmica do traba- I
e variáveis (em suas dimensões mate- lho (Dejours, 1997), se caracteriza pela
riais, organizacionais ou sociais). astúcia a que é necessário recorrer di- N
Além disso, a defasagem entre a ante das dificuldades da prática. É uma
prescrição e a realidade do trabalho tam- forma de inteligência criativa, O
bém se deve à diferença entre o discurso multiforme e móvel, o que permite
produzido sobre a prática e aquilo que uma atuação exitosa nos processos de P
os trabalhadores experimentam concre- trabalho, com suas instabilidades. Um
tamente na prática. Trata-se dos limites outro traço desta inteligência – que tem Q
das rotinas e protocolos tomados como como modelo uma divindade femini-
referência, indicando que há sempre uma na da Grécia Antiga, Mètis – é que suas R
parte da atividade que não é traduzida capacidades estão sempre enraizadas
em palavras. É por isso que a aborda- no corpo. A inteligência da prática está S
gem da ‘psicodi-nâmica do trabalho’ cha- relacionada com ajustes feitos às nor-
ma a atenção que trabalhar implica sair mas prescritas, visando solucionar as T
do discurso para confrontar-se com o dificuldades experimentadas no con-
mundo. E nesse confronto os traba- fronto com o real (e não previstas nos U
lhadores não ‘aplicam’ os saberes ad- manuais, protocolos etc.). Portanto, o
quiridos (não são ‘executores’), mas, trabalho envolve inteiramente aquele
V
afetados pela situação de trabalho, que trabalha, tem sempre um caráter
A
mobilizam-se, operando com o inventivo e, neste sentido, é enigmático.
patrimônio de saberes adquiridos, A evolução do debate sobre o hi-
A
produzindo novos elementos. ato entre trabalho prescrito e ‘traba-

455
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

lho real’ tem levado à efervescência e A efervescência da noção de ati-


renovação conceitual da noção de ati- vidade de trabalho está vinculada tam-
vidade de trabalho – para muitos mais bém ao seu caráter de mediação entre
fértil que a noção de ‘trabalho real’. o ‘micro’ (o espaço-tempo onde ocor-
Yves Schwartz (2005), na perspectiva re o processo de trabalho) e o ‘macro’
da ergologia, aponta três razões para (seu contexto social, econômico e po-
esta efervescência do debate. Primei- lítico), entre o local e o global. Se apa-
ramente, porque se trata de uma no- rentemente a noção de atividade refe-
ção que não pode ser absorvida total- re-se a um plano muito específico e
mente por nenhuma disciplina, na local do trabalho (seu nível ‘micro’), sua
medida em que a atividade atravessa o acepção tem sido renovada pela indi-
biológico, o psicológico e o cultural, o cação de que o foco sobre o micro re-
individual e o coletivo, o fazer e os va- mete ao macro – e vice-versa. Dito de
lores, o privado e o profissional, o im- outro modo: o foco sobre a atividade
posto e o desejado. Em outras pala- de trabalho permite tanto compreender
vras, a atividade faz uma síntese des- os condicionantes econômicos e soci-
ses diversos elementos, pois nas si- ais dos processos produtivos quanto re-
tuações concretas não é possível conhecer a história singular que se faz
separá-los: o fazer é impregnado de no cotidiano desses processos. É nes-
valores, o privado se articula com o se sentido que a perspectiva ergológica
profissional etc. Logo, a atividade de propõe um vai-vem entre micro e
trabalho não pode ser vista apenas macro: um dado olhar sobre as difi-
de um ângulo, compreendê-la, ope- culdades e possibilidades encontradas
rar com este conceito, exige o diálo- nas situações concretas de trabalho,
go entre diversas disciplinas, diferen- buscando identificar aí as marcas da
tes campos de saberes. A ergologia história de uma sociedade (seu desen-
chama atenção que este debate volvimento científico e cultural, as re-
sinérgico proposto envolve necessa- lações de poder instituídas) e seus va-
riamente os protagonistas do traba- lores. Nesse sentido, a atividade de tra-
lho em análise, remetendo para a dis- balho é sempre um ‘encontro’ entre
cussão sobre um dispositivo perti- ‘micro’ e ‘macro’: no caso dos servi-
nente à geração de saberes para com- ços de saúde, um encontro entre, de
preender-transformar positivamente um lado, diferentes profissionais (com
o trabalho. seus saberes particulares e distintas for-

456
Trabalho Real A

mas de inserção do processo), usuári- Canguilhem (2001), cada um busca ser C


os (com suas histórias de vida e condi- produtor de suas próprias normas, re-
ções clínicas), chefias, equipes, centrando a situação de trabalho. As D
tecnologias; de outro lado, políticas e normas que o indivíduo (re)inventa não
programas de saúde, legislações, a são da mesma natureza que as normas
E
estruturação da rede assistencial etc. às quais ele se confronta em seu traba-
F
Atividade como encontro que envolve lho. Pensar o trabalho como reprodu-
lógicas distintas: a lógica do cuidado, a ção idêntica das normas econômicas e
G
lógica da gestão do serviço e a lógica técnicas subentendidas na atividade de
financeira. O ‘trabalho real’ acontece trabalho seria pensá-lo numa perspec- H
neste encontro, e é o trabalhador, indi- tiva apenas adaptativa, o que, na ver-
vidual e coletivamente, que faz a gestão dade, não dá conta da complexidade I
de tudo isso no cotidiano, muitas vezes da vida e do trabalho. Do mesmo modo
‘se virando’. É nesse sentido que ‘tra- que é impossível eliminar as variabili- N
balhar é gerir’, e que a atividade de tra- dades do meio de trabalho (conforme
balho envolve sempre criação. evidenciou a ergonomia da atividade), O
Há ainda uma outra razão para não se pode viver sob um regime de
efervescência da noção da atividade. total imposição deste meio já-dado, isto P
Ela remete, simultaneamente, às nor- é, de suas normas antecedentes. Diante
mas antecedentes instituídas e delas, na situação real de trabalho, os Q
enraizadas nos processos de trabalho trabalhadores (re)criam estratégias, em
e à tendência dos seres humanos de um movimento contínuo de (re)nor- R
criar novas normas diante dos desafi- matização. É nesse sentido que Yves
os do cotidiano (renormatizações). Ou Schwartz (2005), na linhagem de S
seja, o ‘trabalho real’ é um lugar de Canguilhem, afirma que em toda ativi-
debates de normas e valores, como se dade de trabalho há sempre ‘uso de si’. T
entende na perspectiva ergológica. Para De um lado, ‘uso de si pelos outros’,
entender essa afirmação, lembremos como nos é mais visível; de outro, algo U
que há normas (antecedentes) propos- que é mais difícil de considerar: ‘uso de
tas-impostas, ligadas a instâncias exte- si por si’. Sim, pois os trabalhadores
V
riores aos indivíduos, assim como há precisam – nas situações reais de traba-
A
normas instauradas na própria ativida- lho – mobilizar-se, fazer uso de suas
de (renormatizações), ligadas ao pró- próprias capacidades, de seus próprios
A
prio indivíduo – pois, conforme recursos e de suas próprias escolhas,

457
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

além de fazer uso de si para mobilizar cooperação espontânea entre os traba-


redes de parceiros, para equacionar e lhadores, ao contrário da organização
gerir os problemas emergentes, as vari- prescrita do trabalho que busca defi-
abilidades, as diferentes lógicas e as di- nir separadamente os papéis, os domí-
ferentes normas então presentes. nios de competência e as responsabili-
Nesta mesma perspectiva, na dades de cada um. A cooperação não
abordagem da clínica da atividade pode ser prescrita: é uma construção
(Clot, 2006), sinaliza-se que, para uma fundada em regras produzidas pelos
melhor compreensão da atividade de coletivos de trabalho, a partir de crité-
trabalho, se deve considerar também rios de eficácia e de valores. Esta coo-
o que não se fez e o que não se faz, peração depende de condições favo-
por não querer ou poder, assim como ráveis à mobilização subjetiva – que por
aquilo que se tem vontade e se pensa sua vez está relacionada à dinâmica do
fazer em outro momento. Esta abor- reconhecimento das contribuições dos
dagem enfatiza que o conceito de ati- trabalhadores (invenções e ajustes fei-
vidade de trabalho deve englobar, além tos) para que não haja uma paralisação
do trabalho realizado e dos obstáculos da produção. Trata-se de uma dinâmi-
encontrados, também as possibilidades ca que passa necessariamente pela vi-
de desenvolvimento da atividade, reme- sibilidade do que se faz (das transgres-
tendo ao trabalho como ‘zona de de- sões), exige a possibilidade de confi-
senvolvimento potencial’ e às ança, compreende a existência de um
potencialidades do agir individual e co- espaço público interno no meio de tra-
letivo no trabalho – aquilo de novo que balho, passa por um julgamento – por
no trabalho cada um pode se tornar. parte dos pares, da hierarquia e dos cli-
Todo este debate sobre o ‘traba- entes – sobre o ato profissional e o seu
lho real’ e mais especificamente sobre produto, enfim, pelo reconhecimento
o conceito de atividade de trabalho da contribuição. Logo, o ‘trabalho real’
mostra que este é um assunto atraente apresenta também uma dimensão sub-
e complexo, envolvendo vários aspec- jetiva e intersubjetiva.
tos. A dimensão coletiva do trabalho Considerar a dimensão coletiva do
exige ser considerada. Já foi evidencia- trabalho implica ainda reconhecer que
do pela ergonomia da atividade e pela diferentes redes são formadas para que
psicodinâmica do trabalho que a orga- as atividades se desenvolvam. Redes
nização real do trabalho se baseia na que podem envolver contatos

458
Trabalho Real A

presenciais diretos ou comunicações trabalho humano é sempre necessário C


telefônicas ou escritas, que podem se para fazer face aos acontecimentos.
constituir e em seguida se desfazer, mas D
que integram o ‘trabalho real’. Por
E
exemplo, no cuidado de recém-nasci- Para saber mais:
dos prematuros, em uma UTI-
CANGUILHEM, G. Meio e normas do
F
Neonatal, se constitui um coletivo tran-
sitório formado por profissionais da homem no trabalho. Proposições, 12(2-
3): 35-36, jul.-nov., 2001. G
equipe de enfermagem e as mães dos
CLOT, Y. A Função Psicológica do Trabalho.
bebês. Outro exemplo: redes que se Petrópolis: Vozes, 2006. H
criam a partir da ação do Programa
DEJOURS, C. O Fator Humano. São
Saúde da Família (PSF), envolvendo Paulo: Ed. FGV, 1997. I
inclusive a comunidade. DANIELLOU, F. (Org.) A Ergonomia em
Para concluir: é muito importante Busca de seus Princípios: debates N
e difícil apreender o ‘trabalho real’, epistemológicos. São Paulo: Editora Edgard
Blücher, 2004.
especialmente quando este envolve tão O
poderosamente um componente SCHWARTZ, Y. Actividade Laboreal,
1(1): 63-64, 2005. Disponível em:
relacional, como o trabalho em saúde. <http://laboreal.up.pt>. P
O fundamental é não negar que desvi-
WISNER, A. A Inteligência no Trabalho:
os, ajustes, transgressões, micro-deci- textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Q
sões fazem parte desse universo, pois o Fundacentro, 1994.
R

459
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

TRABALHO SIMPLES

Júlio César França Lima


Lúcia Maria Wanderley Neves
Marcela Alejandra Pronko

Conceito formulado por Karl nessa condição, só é considerado nos


Marx, no volume 1 de O Capital, em seus aspectos quantitativos, servin-
1867, como par do conceito ‘trabalho do de parâmetro de medição do dis-
complexo’. Ambos os conceitos refe- pêndio do trabalho humano.
rem-se à divisão social do trabalho, que Como trabalho concreto, no de-
existe em qualquer sociedade, mudan- senvolvimento do capitalismo, as ca-
do de caráter de acordo com os países racterísticas do ‘trabalho simples’ vão-
e os estágios de civilização e, portanto, se reconfigurando a partir da divisão
historicamente determinados. O ‘tra- técnica do trabalho e decorrente
balho simples’, ao contrário do traba- hierarquização das funções do traba-
lho complexo, caracteriza-se por ser de lhador coletivo. Essa alteração do ca-
natureza indiferenciada, ou seja, dis- ráter do ‘trabalho simples’ está relaci-
pêndio da força de trabalho que “todo onada às necessidades do constante
homem comum, sem educação espe- aumento da produtividade do proces-
cial, possui em seu organismo” (Marx, so de trabalho. Como trabalho da abs-
1988, p. 51). trato, esse aumento de produtividade
Na forma particular que assume se realiza sob condições de domina-
o processo de trabalho e de produ- ção e de exploração para a extração de
ção no capitalismo, o ‘trabalho sim- mais-valia.
ples’ é, ao mesmo tempo, produção O ‘trabalho simples’, no capitalis-
de valor de uso e produção de valor. mo industrial, tende a ser cada vez mais
Como produtor de valor de uso, o racionalizado à medida que a produção
‘trabalho simples’ é trabalho concre- material e simbólica da existência se ra-
to e nessa condição deve ser consi- cionaliza pelo emprego diretamente
derado nos seus aspectos qualitati- produtivo da ciência, especificamente,
vos. Como produtor de valor, o ‘tra- no processo de trabalho e, de forma
balho simples’ é trabalho abstrato e, geral, no processo de produção da vida.

460
Trabalho Simples A

Nos primórdios do capitalismo indus- mentos sistematizados (escola-rizados) C


trial, o ‘trabalho simples’ tinha um ca- e diferentes experiências de trabalho e
ráter predominantemente prático. A de vida. D
organização científica do trabalho, no Do ponto de vista do capital, a
capitalismo monopolista, vai paulatina- formação para o ‘trabalho simples’
E
mente demandando do ‘trabalho destina-se à preparação técnica e éti-
F
simples’ elementos teóricos gerais e bá- co-política da mão-de-obra, visando a
sicos na sua execução. As atuais mudan- aumentar a produtividade do trabalho
G
ças do processo de trabalho tendem a sob a direção capitalista. Dessa forma,
generalizar sua racionalização. a formação do trabalho simples assu- H
Enquanto o trabalho simples pos- me um caráter unilateral.
suía um caráter predominantemente O grau de generalização da for- I
prático, o local de trabalho era ao mes- mação do ‘trabalho simples’, em cada
mo tempo o local de sua formação. O formação social concreta, depende do N
aumento da racionalidade do proces- lugar ocupado por essa formação na
so de trabalho passa a exigir um local divisão internacional do trabalho, es- O
específico para a sua formação: a es- pecialmente, da divisão entre países
cola. A escola dividida em graus e mo- produtores de conhecimento e países P
dalidades é inerente à hierarqui-zação adaptadores do conhecimento e, tam-
que se estabelece na produção capita- bém, do estágio da luta de classes em Q
lista de mercadorias e da própria cada momento histórico específico.
especificidade do trabalho na No Brasil, até os anos iniciais R
cultura urbano-industrial, de natureza do século XX, a formação para o
flexível, baseado na variação do traba- ‘trabalho simples’ era realizada, na S
lho, isto é, na fluidez das funções e na maior parte dos casos, no próprio
mobilidade do trabalhador. processo de trabalho. Com o desen- T
Existe um patamar mínimo de volvimento da urbanização e da in-
escolarização para o ‘trabalho simples’ dustrialização, essa formação pas- U
em cada estágio de desenvolvimento sou a requerer graus crescentes de
das forças produtivas e das relações de sistematização fora do local de tra-
V
produção industriais, em cada forma- balho, sendo realizada nas institui-
A
ção social concreta. Existem também ções de educação escolar elementar
diferenciações na execução das ativi- e nos centros de formação técnico-
A
dades produtivas que exigem conheci- profissional.

461
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

O patamar mínimo de escola- tivos mais racionalizados. A forma-


rização para a formação do ‘trabalho ção técnico-profissional do ‘trabalho
simples’ foi-se estendendo ao longo do simples’ hoje, denominada educação
século XX da educação primária, rea- profissional pela atual LDB, é desen-
lizada em quatro séries de escolarida- volvida por meio de cursos e pro-
de, até o ensino de 1o. grau, de oito anos gramas de formação inicial e de edu-
de escolaridade, cuja obrigatoriedade cação profissional técnica de nível
foi estabelecida inicialmente pela lei médio (Decreto n. 5.154/04).
5.692/71. A lei de Diretrizes e Bases Na área de saúde, até a primeira
da Educação Nacional de 1996 metade do século passado, não era
redefiniu a estrutura da educação es- claramente estabelecido o patamar
colar, estabelecendo dois níveis de edu- mínimo de escolaridade dos traba-
cação: a educação básica e a educação lhadores técnicos. Com a expansão
superior. A educação básica, por sua dos serviços médicos hospitalares a
vez, foi subdividida em três etapas: edu- partir da segunda metade do século
cação infantil, ensino fundamental e XX, que acompanhou o processo de
ensino médio, mantendo, no entanto, urbanização e industrialização no
a obrigatoriedade do ensino funda- país, o ‘trabalho simples’ se diversi-
mental, de oito anos de escolaridade, ficou, diferenciando os tempos de
embora prescreva a progressiva exten- formação e as tarefas concretamen-
são da obrigatoriedade e gratuidade ao te desempenhadas. Na área de enfer-
ensino médio, explicitando assim um magem, maior contingente da força
alargamento do patamar mínimo de de trabalho no setor, ficou claramen-
escolarização para o ‘trabalho simples’, te definida a diferenciação entre
em tempos de automação flexível e de atendentes, auxiliares e técnicos em
relações capitalistas neoliberais. enfermagem. Para os atendentes, o
Por sua vez, a formação técnico- patamar mínimo de escolarização foi
profissional para o trabalho simples estabelecido nas quatro primeiras
foi-se diversificando em relação a ti- séries do ensino fundamental (anti-
pos de cursos e de instituições, e exi- go ensino primário). Para os auxilia-
gindo, tendencialmente, como pré- res, por sua vez, passou-se a reque-
requisitos, patamares progressiva- rer o ensino fundamental completo.
mente mais elevados de Já para os técnicos em enfermagem
escolarização para os setores produ- foi prescrito o ensino médio.

462
Trabalho Simples A

No final do século XX e nos anos LIMA, J. C. F. L. et al. Educação C


iniciais deste século, após a denominada profissional em enfermagem: uma
terceira revolução industrial, uma nova
releitura a partir do Censo Escolar 2001. D
Revista Formação, 2(6): 37-54, set.-dez.,
divisão técnica do ‘trabalho simples’ em 2002.
saúde vem-se configurando, exigindo
E
MARX, K. O Capital: crítica da economia
tendencialmente a homo-geneização do política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1988. (Livro Primeiro, v.1)
F
patamar mínimo de escolarização de to-
das as categorias de trabalhadores técni- NAVILLE, P. Essai sur la qualification du G
cos em saúde no nível médio de ensino. travail. Paris: Librairie Marcel Rivière et
Por sua vez, a formação técnico- Cie., 1956.
H
profissional para o ‘trabalho simples’ em NEVES, L. M. W. A Hora e a Vez da
Escola Pública? Um Estudo sobr e os
saúde ao longo da primeira metade do
Determinantes da Política Educacional do I
século XX se processou majoritaria-
Brasil de hoje, 1991. Tese de Doutorado,
mente no próprio local de trabalho. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação/ N
Entre os anos de 1950 e 1980, com a Centro de Filosofia e Ciências
expansão da rede hospitalar privada, Humanas/Universidade Federal do Rio O
cursos de formação inicial e de educa- de Janeiro.
ção profissional técnica de nível médio NEVES, L. M. W. Brasil 2000: Nova P
passaram a ser desenvolvidos predomi- divisão de trabalho em educação. São
Paulo: Xamã, 2000.
nantemente em instituições privadas de Q
ensino. Nas duas últimas décadas, após VIEIRA, M. et al. A inserção das
ocupações técnicas nos serviços de
a criação do Sistema Único de Saúde R
saúde no Brasil: acompanhando os
(SUS), inversamente, esta formação dados de postos de trabalho pela
vem-se dando em larga escala nas pesquisa. Revista Formação, 3(8): 29-46, S
escolas técnicas de saúde do SUS. mai.-ago., 2003.
T

Para saber mais: U

ALMEIDA, M. C. P. de. O Saber de


V
Enfermagem e sua Dimensão Prática. São
Paulo: Cortez, 1986. A

463
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

464
A

C
U D
UNIVERSALIDADE E

F
Gustavo Corrêa Matta
G
A universalidade tem sido consi- Estado liberal nas constituições ingle-
derada na ciência política como uma sa e francesa no século XVIII. Os prin-
H
noção relacionada ao campo do direi- cipais filósofos a defender direitos que
I
to, mais especificamente ao campo dos não dependem da cidadania, da fé ou
direitos humanos. Ou seja, os direitos da ação do Estado, ou seja, como di-
N
que são comuns a todas as pessoas, reito natural, foram Thomas Hobbes,
como um direito positivo que visa à John Locke e Jean-Jacques Rousseau e O
manutenção da vida individual e social seus trabalhos sobre o chamado ‘con-
no mundo moderno. Na saúde, a uni- trato social’. Essa discussão parte da P
versalidade tem sido uma bandeira das necessidade de rever as relações políti-
lutas populares que a reivindicam como cas na Europa, até então dominadas Q
um direito humano e um dever do pela monarquia e pelo clero, e pela ex-
Estado na sua efetivação. Constitui-se pansão européia no continente ameri- R
como um dos princípios fundamentais cano, enfocando uma concepção libe-
do Sistema Único de Saúde (SUS) e está ral das relações sociais e do direito à S
inscrita na Constituição Federal brasi- propriedade (Bobbio et al., 2004).
leira desde 1988. A defesa do direito às liberdades T
A discussão em torno da univer- individuais, políticas e econômicas fo-
salidade como um conjunto de direi- ram fundamentais para a expansão e U
tos inerentes a todas as pessoas, seja consolidação do capitalismo na Euro-
no interior do aparelho estatal nacio- pa que, desta forma, eram concebidas V
nal ou comum a todos os seres huma- como naturais e protegidas pelo cha-
nos independente de nacionalidade, mado Estado de direito, principalmen- A
apesar de remontar à filosofia política te durante o século XIX. A tensão en-
do século XVII, tornou-se pauta do tre liberdade e intervenção do Estado A

465
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

no mercado terá como resultante a a velhice e a invalidez, e conseqüente-


defesa do direito ao livre comércio, sem mente o avanço da pobreza, começa
regulação estatal, garantindo o status quo pela reforma de Bismarck na Alema-
e a livre circulação dos grandes gru- nha, criando uma forma de interven-
pos econômicos. O discurso liberal ção do Estado na distribuição da ren-
nesse sentido defende a universalida- da e na criação de um sistema de pre-
de do direito às liberdades individuais, vidência social voltada para os traba-
a não-intervenção estatal na economia, lhadores fabris. Essa política abriu de
o direito à propriedade privada e a li- um lado a possibilidade do avanço do
berdade de organização política. Esses socialismo na Europa, e por outro, de
valores da vida burguesa são defendi- forma reativa, começavam a surgir as
dos como direitos ‘naturais’ do ser primeiras formas do Estado de bem-
humano, destituídos de sua conotação estar social (Bobbio, 2004).
política e social, criando uma autono- Esse momento é fundamental
mia do poder judiciário em relação ao para compreender a antinomia entre
Estado para a proteção desses valores. universalismo e particularismo na po-
No final do século XIX, as ques- lítica social contemporânea. A organi-
tões sociais começaram a tomar de as- zação da classe trabalhadora na Ale-
salto a estabilidade da vida burguesa e manha e a luta pelos direitos trabalhis-
do capitalismo. A revolução industrial tas começam a se traduzir em projetos
deixou um rastro de desemprego e pre- de sociedade e em formas de interven-
cariedade nas classes trabalhadoras ur- ção do Estado na vida social. Trata-se
banas que, afastadas da solidariedade de uma disputa entre políticas sociais
e da economia de subsistência da vida meritocráticas, particulares, com base
rural, se aglomeravam nas periferias das em critérios de elegibilidade de
grandes cidades. O problema que se vulnerabilidades e de contribuição
apresentava naquela época não eram previdenciária que visam à atenção a
os pobres, mas sim a produção da po- indivíduos e grupos vulneráveis às
breza, trazida pela grande concentra- mazelas da pobreza; e de políticas so-
ção de capital e pelas contradições do ciais universais fundadas não na renda
processo de industrialização. ou no mérito, mas no direito a um con-
A necessidade de tratar de forma junto de ações que visam a condições
particular a classe trabalhadora preve- mínimas de vida igualitárias a toda
nindo-a socialmente contra a doença, população, independente de classe so-

466
Universalidade A

cial, raça ou religião, resgatando a idéia Na saúde, a universalidade é um C


de um conjunto de direitos naturais de dos princípios constitucionais do sis-
qualquer cidadão. tema de saúde brasileiro, sendo consi- D
Muitas das discussões entre derada uma das maiores conquistas da
focalismo e universalismo têm como população na Constituição Federal de
E
base o papel social do Estado no capita- 1988. A universalidade aponta para o
F
lismo contemporâneo e o lugar da de- rompimento com a tradição
mocracia-liberal na atualidade. Ou seja, previdenciária e meritocrática do sis-
G
o Estado deve formular políticas sociais tema de saúde brasileiro, que conferia
para todos os cidadãos, ou políticas so- unicamente aos trabalhadores formais, H
ciais focalizadas para um conjunto de por meio da contribuição previden-
indivíduos excluídos economicamente? ciária, o acesso às ações e serviços de I
Esse debate tem tomado diversas to- saúde. Com a instituição do SUS, a saú-
nalidades em diferentes momentos dos de tornou-se um direito de qualquer N
séculos XX e XXI, além de acirrar dis- cidadão brasileiro, independente de
cussões e lutas políticas e sociais nos raça, renda, escolaridade, religião ou O
contextos local e global. qualquer outra forma de discriminação,
As estratégias de construção so- e um dever do Estado brasileiro em P
cial da temática da universalidade en- prover esses serviços.
volvem não somente elementos do re- Q
gistro macropolítico, mas também ele- Art. 196. A saúde é direito de to-
mentos micropolíticos de ordem eco- dos e dever do Estado, garantido R
mediante políticas sociais e econô-
nômica, como a limitação dos recur- micas que visem à redução do risco
sos e as formas tributárias de arreca- de doença e de outros agravos e ao S
dação; de ordem política, como os li- acesso universal e igualitário às
mites da intervenção e controle disci- ações e serviços para sua promo- T
ção, proteção e recuperação (Bra-
plinar do Estado na vida social dos in- sil, 2005, p. 39).
divíduos; de ordem político- U
institucional, como a participação dos A universalidade é o princípio que
indivíduos e grupos sociais na formu- organiza e dá sentido aos demais prin- V
lação e controle social das políticas, cípios e diretrizes do SUS na garantia
do direito à saúde de forma integral, A
entre outros, demonstrando a comple-
xidade das relações sociais em jogo equânime, descentralizada e com par-
ticipação popular (Matta, 2007). A
nesta temática.

467
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A universalidade de acesso aos privatização da saúde e sua


serviços de saúde pela população bra- mercadorização.
sileira vem sofrendo diversos constran- O valor da saúde como um direito,
gimentos na efetivação deste direito. a universalidade, tem sido defendido por
Desde as influências históricas e diversos autores na formação e na ges-
institucionais da trajetória do sistema tão do trabalho em saúde como uma
nacional de saúde, principalmente a estratégia para fortalecer o SUS e como
partir dos anos 1960 com a progressi- uma forma de ampliação da participa-
va privatização dos serviços de saúde ção popular (Pinheiro e Mattos, 2005).
e a constituição do chamado comple- Nas últimas décadas, a universali-
xo médico-industrial no Brasil, até as dade em saúde tem sido atacada por
ondas predatórias da globalização organismos internacionais, como o
neoliberal e seus efeitos durante o pro- Banco Mundial, que defendem uma
cesso de democratização do Estado ação mínima do Estado nas políticas
brasileiro nos anos 1980 e 1990, o sis- sociais e a abertura dos sistemas naci-
tema de público de saúde, o SUS, ain- onais de saúde para empresas de se-
da não é o único sistema de saúde no guro-saúde internacionais e sua pro-
Brasil e vem muitas vezes limitando as gressiva privatização (Mattos, 2000;
suas ações às populações menos Matta, 2005).
favorecidas e nas ações de atenção pri- Por outro lado, há grupos e mo-
mária e de alta complexidade, como os vimentos internacionais que defendem
transplantes e o tratamento da AIDS, a universalidade do direito à saúde em
que estão à margem da ação e dos in- escala global, como o Movimento da
teresses dos planos privados de saúde Saúde dos Povos, bem como a produ-
(Matta e Lima, 2008). ção estatal e o fornecimento gratuito
Podemos perceber que, apesar de de medicamentos essenciais a todos
assegurada constitucionalmente, a uni- aqueles que necessitam (PHM, 2005).
versalidade na saúde oscila entre ações A universalidade não é apenas um
abrangentes e integrais a ações focali- elemento da atenção de um Estado
zadas e verticais. Essa tensão faz parte assistencialista, mas um valor a ser for-
da arena de lutas pela democratização talecido e defendido como um projeto
da saúde que remontam aos ideais da emancipatório de sociedade. É nessa
reforma sanitária brasileira e aos gru- perspectiva que a idéia de uma cons-
pos econômicos que lutam pela trução social da universalidade permi-

468
Universalidade A

te a sua ´desnaturalização´ e a valori- Contradições e desafios em 20 anos de SUS. C


zação de suas dimensões histórica, Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008.
política e cultural. MATTA, G. C. A Organização Mundial D
de Saúde: do controle de epidemias à
luta pela hegemonia. Trabalho, Educação E
e Saúde. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 371-
Para saber mais: 396, 2005.
F
MATTOS, R. A. Desenvolvendo e ofertando

BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de


idéias: Um estudo sobre a elaboração de G
propostas de políticas de saúde no âmbito do
Janeiro: Elsevier, 2004. Banco Mundial. Tese de Doutorado. Rio
BOBBIO, N. et al. Dicionário de Política. de Janeiro: IMS/Uerj, 2000. H
Brasília: UNB, 2004. PHM. Asamblea de la salud de los pueblos
(ASP)- Salud en la era de la globalización: de I
BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Brasília: víctimas a protagonistas. Un documento de
Senado Federal, 2005. discusión preparado por el grupo de N
trabajo de la Asamblea de la Salud de
MATTA, G. C. Princípios e Diretrizes
do Sistema Único de Saúde. In:
los Pueblos. 2000. Disponível em: O
<http://www.phmovement.org/>
MATTA, G. C.; PONTES, A. L. de M. Acesso em: 30 de jan.
(Org.). Políticas de Saúde: Organização e P
PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A.
operacionalização do Sistema Único de Saúde.
(Orgs.). Construção Social da Demanda: direito
Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.
à saúde, trabalho em equipe e participação e os Q
MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. Estado, espaços públicos. Rio de Janeiro: IMS, Uerj,
Sociedade e Formação Profissional em Saúde: Cepesc, Abrasco, 2005. R

469
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

470
A

C
V D
VIGILÂNCIA EM SAÚDE E

F
Maurício Monken
Carlos Batistella
G

Aspectos históricos locava-se do isolamento para a quaren- H


tena. Três experiências iniciadas no sé-
I
A expressão ‘vigilância em saú- culo XVIII, na Europa, irão constituir
de’ remete, inicialmente, à palavra vi- os elementos centrais das atuais práti-
N
giar. Sua origem – do latim vigilare – cas da ‘vigilância em saúde’: a medicina
significa, de acordo com o Dicionário de estado, na Alemanha; a medicina ur-
O
Aurélio, observar atentamente, estar a bana, na França; e a medicina social, na
Inglaterra (Foucault, 1982).
atento a, atentar em, estar de sentine- P
la, procurar, campear, cuidar, precaver- O desenvolvimento das investiga-
se, acautelar-se. ções no campo das doenças infeccio- Q
No campo da saúde, a ‘vigilância’ sas e o advento da bacteriologia, em
está historicamente relacionada aos meados do século XIX, resultaram no R
conceitos de saúde e doença presentes aparecimento de novas e mais eficazes
em cada época e lugar, às práticas de medidas de controle, entre elas a vaci- S
atenção aos doentes e aos mecanismos nação, iniciando uma nova prática de
adotados para tentar impedir a disse- controle das doenças, com repercus- T
minação das doenças. sões na forma de organização de ser-
O isolamento é uma das práticas viços e ações em saúde coletiva (Bra- U
mais antigas de intervenção social rela- sil, 2005). Surge, então, em saúde pú-
tiva à saúde dos homens (Rosen, 1994; blica, o conceito de ‘vigilância’, defini- V
Scliar, 2002; Brasil, 2005). No final da do pela específica, mas limitada, fun-
Idade Média, o modelo médico e polí- ção de observar contatos de pacientes A
tico de intervenção que surgia para a atingidos pelas denominadas ‘doenças
organização sanitária das cidades des- pestilenciais’ (Waldman, 1998). A

471
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A partir da década de 1950, o con- sagrada no ano seguinte com a criação


ceito de ‘vigilância’ é modificado, dei- da Unidade de Vigilância
xando de ser aplicado no sentido da Epidemiológica da Divisão de Doen-
´observação sistemática de contatos de ças Transmissíveis da Organização
doentes´, para ter significado mais Mundial da Saúde (OMS). Em 1968, a
amplo, o de ´acompanhamento siste- 21ª Assembléia Mundial da Saúde pro-
mático de eventos adversos à saúde na move ampla discussão sobre a aplica-
comunidade´, com o propósito de apri- ção da ‘vigilância’ no campo da saúde
morar as medidas de controle pública, que resulta em uma visão mais
(Waldman, 1998). abrangente desse instrumento, com re-
Em 1963, Alexander Langmuir, comendação de sua utilização não só
conceituou ‘vigilância em saúde’ como em doenças transmissíveis, mas tam-
a “observação contínua da distribuição bém em outros eventos adversos à saú-
e tendências da incidência de doenças de (Waldman, 1998).
mediante a coleta sistemática, consoli- Um dos principais fatores que
dação e avaliação de informes de propiciaram a disseminação da ‘vi-
morbidade e mortalidade, assim como gilância’ como instrumento em todo
de outros dados relevantes, e a regular o mundo foi a ‘campanha de erra-
disseminação dessas informações a dicação da varíola’, nas décadas de
todos os que necessitam conhecê-la” 1960 e 1970. Neste período, no Bra-
(Brasil, 2005). sil, a organização do Sistema Nacio-
Esta noção de ‘vigilância’, ainda nal de Vigilância Epidemiológica
presente nos dias atuais, baseada na (1975), se dá através da instituição
produção, análise e disseminação de in- do Sistema de Notificação Compul-
formações em saúde, restringe-se ao sória de Doenças. Em 1976, é cria-
assessoramento das autoridades sani- da a Secretaria Nacional de Vigilân-
tárias quanto à necessidade de medi- cia Sanitária. No caso da vigilância
das de controle, deixando a decisão e a ambiental, começou a ser pensada e
operacionalização dessas medidas a discutida, a partir da década de 1990,
cargo das próprias autoridades sanitá- especialmente com o advento do
rias (Waldman, 1998). Projeto de Estruturação do Sistema
Em 1964, Karel Raska, propõe o Nacional de Vigilância em Saúde -
qualificativo ‘epidemiológica’ ao con- VIGISUS (Brasil, 1998; EPSJV,
ceito de ‘vigilância’ – designação con- 2002).

472
Vigilância em Saúde A

O Debate Atual Naquele momento, a preocupação C


incidia sobre a possibilidade de reor-
As discussões que se intensifica- ganizar a prestação dos serviços, bus- D
ram a partir da década de 1990 em tor- cando a integração das diferentes lógi-
cas existentes: a atenção à demanda
E
no da reorganização do sistema de ‘vi-
gilância epidemiológica’, tornando pos- espontânea, os programas especiais e
F
sível conceber a proposta de ação ba- a oferta organizada dos serviços, com
seada na ‘vigilância da saúde’, conti- base na identificação das necessidades
G
nham pelo menos três elementos que de saúde da população.
deveriam estar integrados: 1) a ‘vigi- A excessiva fragmentação obser- H
lância’ de efeitos sobre a saúde, como vada na institucionalização das ações
agravos e doenças, tarefa tradicional- de ‘vigilância’ (epidemiológica, sanitá- I
mente realizada pela ‘vigilância ria e ambiental) também é criticada no
epidemiológica’; 2) a ‘vigilância’ de pe- âmbito de sua construção conceitual. N
rigos, como agentes químicos, físicos Três vertentes apontam diferen-
e biológicos que possam ocasionar tes concepções em torno da noção de O
doenças e agravos, tarefa tradicional- ‘vigilância em saúde’: uma primeira, que
mente realizada pela ‘vigilância sanitá- a entende como sinônimo de ‘análise P
ria’; 3) a ‘vigilância’ de exposições, atra- de situações de saúde’, embora amplie
vés do monitoramento da exposição o objeto da ‘vigilância epide-miológica’, Q
de indivíduos ou grupos populacionais abarcando não só as doenças
a um agente ambiental ou seus efeitos transmissíveis, não incorpora as ações R
clinicamente ainda não aparentes voltadas ao enfrentamento dos proble-
(subclínicos ou pré-clínicos), este últi- mas. A segunda vertente concebe a ‘vi- S
mo se coloca como o principal desafio gilância em saúde’ como integração
para a estruturação da ‘vigilância institucional entre a ‘vigilância epide- T
ambiental’ (Freitas & Freitas, 2005; miológica’ e a ‘vigilância sanitária’, re-
EPSJV, 2002). sultando em reformas administrativas U
No Brasil, o processo de implan- e, em alguns casos, no fortalecimento
das ações de ‘vigilância sanitária’ e na
V
tação dos distritos sanitários buscava
organizar os esforços para redefinir as articulação com os centros de saúde. Por
A
práticas de saúde, tentando articular a fim, a terceira noção concebe a ‘vigilân-
epidemiologia, o planejamento e a or- cia em saúde’ como uma proposta de
A
ganização dos serviços (Teixeira, 2000). redefinição das práticas sanitárias, or-

473
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

ganizando processos de trabalho em guem as ações de promoção, proteção


saúde sob a forma de operações para e recuperação da saúde a outras for-
enfrentar problemas que requerem mas de cuidado voltadas para
atenção e acompanhamento contínu- qualidade de vida das coletividades, in-
os. Estas operações devem se dar em corporando atores sociais antes ex-
territórios delimitados, nos diferentes cluídos do processo de produção da
períodos do processo saúde-doença, saúde, é estratégia para superar o
requerendo a combinação de diferen- ciclo biologicista, antropocêntrico,
tes tecnologias (Teixeira, Paim & medicalizante e iatrogênico em que se
Vilasboas, 1998). Nesta última concep- encontra o sistema de saúde há quase
ção são revistos os sujeitos, os obje- um século.
tos, meios de trabalho e as formas de A ‘vigilância em saúde’, entendi-
organização dos processos de trabalho da como rearticulação de saberes e de
envolvidos. práticas sanitárias, indica um caminho
De acordo com Teixeira, Paim e fértil para a consolidação do ideário e
Vilasboas (1998), o sistema de saúde princípios do Sistema Único de Saúde
brasileiro após a constituição de 1988 (SUS). Apoiada no conceito positivo
vem buscando construir modelos de do processo saúde-enfermidade, ela
atenção que respondam de forma efi- desloca radicalmente o olhar sobre o
caz e efetiva às reais necessidades da objeto da saúde pública – da doença
população brasileira, seja em sua tota- para o modo de vida (as condições e
lidade, seja em suas especificidades lo- estilos de vida) das pessoas. Entendi-
cais. Os modelos hegemônicos atuais da como uma ‘proposta de ação’ e uma
– o médico-assistencial, pautado na as- ‘área de práticas’, a ‘vigilância em saú-
sistência médica e no hospital, e o de’ apresenta as seguintes característi-
modelo sanitarista, baseado em cam- cas: intervenção sobre problemas de
panhas, programas e em ações de ‘vi- saúde que requerem atenção e acom-
gilância epidemiológica’ e ‘sanitária’ – panhamento contínuos; adoção do
não conseguem mais responder à com- conceito de risco; articulação entre
plexidade e diversidade dos problemas ações promocionais, preventivas, cura-
de saúde que circunscrevem o cidadão tivas e reabilitadoras; atuação
comum nesse início de século. intersetorial; ação sobre o território; e
A busca por modelos alternativos intervenção sob a forma de operações
que, sem negar os anteriores, conju- (Paim & Almeida Filho, 2000).

474
Vigilância em Saúde A

Fundamentada em diferentes dis- Para Carvalho (2005), embora a C


ciplinas (epidemiologia, geografia crí- corrente da ‘vigilância em saúde’ venha
tica, planificação em saúde, ciências so- contribuindo para a consolidação do D
ciais, pedagogia, comunicação etc.), a SUS e aponte corretamente para a re-
‘vigilância em saúde’ recorre a uma ‘as- organização do modelo assistencial, é
E
sociação de tecnologias’ (materiais e preciso indicar suas debilidades teóri-
F
não materiais) para enfrentar proble- cas e práticas. A ‘vigilância em saúde’
mas (danos e riscos), necessidades e tenderia a desconsiderar a importância
G
determinantes sócio-ambientais da saúde. do saber clínico acumulado ao longo da
Como combinação tecnológica história, dando ênfase demasiada ao H
estruturada para resolver questões postas papel da epidemiologia e do planeja-
pela realidade de saúde, a ‘vigilância em mento na determinação das necessida- I
saúde’ tem sido reconhecida como um des de saúde. O autor assinala ainda a
‘modelo de atenção’ ou como um ‘modo subordinação do universo do sofrimen- N
tecnológico de intervenção em saúde’ to à lógica dos fatores e condições de
(Paim & Almeida Filho, 2000) ou uma via risco presente na proposta da ‘vigilân- O
para a construção e a implementação da cia em saúde’. Em nome do coletivo,
diretriz da integralidade. esta tenderia a desconsiderar os planos P
O pensar sistemático sobre o co- do desejo e do interesse individual que
nhecimento, o objeto e o trabalho em conformam o sujeito. Por fim, à ênfase Q
saúde dá suporte para a operacio- dada ao método epidemiológico na
nalização do trinômio ‘informação- priorização dos problemas de saúde põe R
decisão-ação’, dimensões estratégicas em questão a afirmação de que a ‘vigi-
para o planejamento. Esta reflexão lância em saúde’ teria como objeto a S
coloca tanto para o diagnóstico quan- saúde e não a doença.
to para a ação a importância do olhar Outra vertente de crítica diz res- T
de cada ator social sobre o seu cotidia- peito à intersetorialidade. Para Lefévre
no. Portanto, os processos de trabalho e Lefévre (2004), ao afirmar que a saú- U
da ‘vigilância em saúde’ apontam para de é responsabilidade de todos setores
o desenvolvimento de ações (habitação, emprego, renda, meio am-
V
intersetoriais, visando responder com biente etc), a ‘vigilância em saúde’ esva-
A
efetividade e eficácia aos problemas e ziaria a ação específica do setor saúde
necessidades de saúde de populações em detrimento de ações políticas glo-
A
e de seus contextos geradores. bais com alto grau de generalidade.

475
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

A Área de Educação Profis- “a revisão e o desenvolvimento


sional em Vigilância em curricular podem ser medidas ne-
Saúde cessárias para a reatualização das
instituições de ensino face à reor-
A crescente responsabilização ganização das práticas de saúde,
dos municípios na organização das porém insuficientes para alterar o
ações básicas de ‘vigilância em saú- modo de produção dos agentes”.
de’, conforme disposto no Pacto de A formação para o trabalho na
Gestão (Brasil, 2006), vem indican- ‘vigilância em saúde’ deve ter a pes-
do ao sistema de saúde a necessida- quisa como eixo central para a reali-
de de formação dos trabalhadores zação da prática estratégica – infor-
desta área. A constituição e a conso- mação/decisão/ação, através do re-
lidação pró- conhecimento do território/popula-
prias de cada uma das estruturas ção, do domínio do planejamento
operacionais da ‘vigilância em saú- como ferramenta capaz de mobilizar
de’ (epidemiológica, sanitária e os diversos atores na resolução dos
ambiental) têm como legado a frag- problemas identificados e da ação
mentação institucional das ações e comunicativa (Paim & Almeida Fi-
dos processos formativos. Quando lho, 2000).
organizadas em bases de conheci-
Do mesmo modo, é importante
mentos e de práticas aparentemente
adotar como referência para o proje-
independentes, as ‘vigilâncias’ des-
to educativo o conceito de prática de
perdiçam um extraordinário poten-
saúde, o que significa privilegiar, num
cial analítico e de intervenção sobre
primeiro momento, as dimensões ob-
os condicionantes da produção so-
jetivas do processo de trabalho (ob-
cial de saúde e doença.
jetos, meios e atividades), valorizan-
A for mulação de propostas
do as relações técnicas e sociais que
para a educação profissional em
permeiam tais práticas assim como os
saúde, muito embora possa repre-
aspectos simbólicos e as representa-
sentar importante colaboração para
ções embutidas na interação dos
as mudanças almejadas, sempre en-
agentes entre si, destes com segmen-
contrará limitações dadas pela pró-
tos da população e de ambos com as
pria cultura institucional e a orga-
organizações e instituições (Paim &
nização das práticas de saúde. Para
Almeida Filho, 2000).
Paim & Almeida-Filho (2000, p. 81),

476
Vigilância em Saúde A

Se o propósito for transformar as EPSJV. Laboratório de Educação Profissional C


práticas de saúde mediante a em Vigilância em Saúde: projeto político
redefinição de políticas e a reorgani-
pedagógico. Rio de Janeiro: Escola D
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
zação dos processos de trabalho, não 2002. (Termo de Referência para a
se pode subestimar a questão pedagó- Educação Profissional em Vigilância em E
gica. Cumpre assim aproveitar as opor- Saúde)
tunidades de mudança no modo de FOUCAULT, M. O nascimento da
F
produção desses agentes, surgidas na medicina social. In: FOUCAULT, M.
conjuntura, buscando constituir novos A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: G
sujeitos-agentes ético-políticos. Graal, 1982.
FREITAS, M. B. & FREITAS, C. M. A H
vigilância da qualidade da água para
Para saber mais: consumo humano – desafios e I
perspectivas para o Sistema Único de
BRASIL. Projeto VIGISUS – Estruturação Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 10(4): 993- N
do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde. 1004, out./dez., 2005.
Brasília: Ministério da Saúde: Fundação
Nacional de Saúde, 1998. 203p.
LEFÉVRE, F. & LEFÉVRE, A. M. C. O
Promoção de Saúde: a negação da negação. Rio
de Janeiro: Vieira e Vent, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria P
de Vigilância em Saúde. Curso Básico de MONKEN, M. & BARCELLOS, C.
Vigilância Epidemiológica. Brasília:
Ministério da Saúde. 2005.
Vigilância em saúde e território utilizado: Q
perspectivas teóricas. Cadernos de Saúde
Pública, Vol. 21, n.3. Rio de Janeiro: mai/
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria
jun, 2005 p. 898-906.
R
Executiva. Departamento de Apoio à
Descentralização. Coordenação-Geral PAIM, J. S. & ALMEIDA FILHO, N.
S
de Apoio à Gestão Descentralizada. de. A Crise da Saúde Pública e a Utopia da
Diretrizes Operacionais dos Pactos da Vida, Saúde Coletiva. Salvador : Casa da
em Defesa do SUS e de Gestão. 76p. (Série Qualidade, 2000. T
A. Nor mas e Manuais Técnicos).
ROSEN, G. Uma História da Saúde
Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
Pública. São Paulo/Rio de Janeiro:
U
CARVALHO, S. R. Saúde Coletiva e Hucitec/Unesp/Abrasco, 1994.
Promoção da Saúde: sujeito e mudança. São V
ROUQUAYROL, M. Z. & ALMEIDA
Paulo: Hucitec, 2005. FILHO, N. (Orgs.) Epidemiologia e Saúde.
5.ed. Rio de Janeiro: Medsi, 1999. A
CZERESNIA, D. & FREITAS, C. M. de.
(Orgs.). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, SCLIAR, M. Do Mágico ao Social: trajetória
tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. da saúde pública. São Paulo: Senac, 2002.
A

477
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

TEIXEIRA, C. F., PAIM, J. S. & WALDMAN, E. A. Vigilância em Saúde


VILASBOAS, A. L. SUS: modelos Pública. São Paulo: Faculdade de Saúde
assistenciais e vigilância da saúde. Informe Pública da Universidade de São Paulo,
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TEIXEIRA, C. (Org.) Promoção e
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478

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