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Tempo Universitário
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BmLIOTECA TEMPO UNIVEBSIT.ARIO - .. n MiCHEL f"OUCAULT

Coleção airigida por EDUARDO PORTELLA Professor da


Universidade FeinaJ do Rio àe ]:::::neiro

Tradução de
L!LIAN ROSE SHALDER.S

Revisão Técnica de
CHAIM SAMUEL 'KJl.TZ DOENCA
. MENTAL
capa de
MAURICIO JOSÉ MARCHEVSKY
E
PSICOLOGIA
TRADUZIDO DO ORIGINAL FRANCtS
MALADTE MENT ALE ET PSYCHOLOGIE
d~ PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE, Paris

Dínlitos em lingua portuguéea reservados ài;


EDIÇôES TEMPO BRASILEIRO LTDA.
Rua Gago Coutinho, 61 Laranjeiras - ZC 01 - Te!.:225-8173
Caixa Postal n.Y 99 - End. Telegráfico: TEMBRAS
tem!! brasileiro
.... 'll<naen t n '7c.
SUMÁRIO

Pág .
Introdução .. .. . .. .. . .. . .. . .. .. .. . . . . . .. . .. .. . . . 7

Capitulo I - Medicina mental e medicina or-


gânica .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

PRIMEIRA PARTE

y.
AS DIMENSÕES PSICOLóGICAS DA DOENÇA
<

Capitulo Il - A doença e a evolução . . . . . . . . . . 23


Capitulo III - A doença e a história indivü:lual .. 39
Capitulo IV - A doença e a existência ......... 55
-····. '... ·------
.

DOAÇÃO PARA
'
UNIRIO-Biblioteca V&H
Nº Registro:_A1.4_2.._,,,;;c_,__
SEGUN'OA PARTE

LOUCURA E CULTURA
Preço: 10,00 RECON
Data: 20/08/2010 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
-···--···--·-·--·'"'·-------___!
c.t!>.1.~353 Capítulo . V - A constituição histórica da doença
mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '7 5
capítulo Vl -- A loucu1a, e:$trutura global . . . . . . 8"1
l
' l
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Alg?lmas datas na história da psiquiatria . . . . . . . . 99
INTRODUÇÃO

Duas questões se colocam: sob que condições po-


de-se falar de doença no domínio psicológico? Que rela-
ções podem definir-se entre os fatos da patologia mental
e os da patologia orgânica? Tôdas as psicopatologias or-
denaram-se segundo êstes dois problemas: há as psico-
logias da heterogeneidade que se recusam, como o f êz
Blondel, a ler as estruturas da consciência mórbida em
têrmos de ps:cowgia normal; e, ao contrário, as psico-
logias, analíticas ou fenomenológicas, que procuram
apreender a inteligibilidade de tôda conduta, mesmo
demente, nas significações anteriores à distinção do
normal e do patológico. Uma divisão análoga se faz
igualmente no grande debate da psicogênese ·e da orga-
nogênese: busca da etiologia orgânica, desde a desco-
berta da paralisia geral, com sua etiologia sifilítica; ou
análise da causalidade psicológica, a partir das pertur-
bações sem fundamento orgânico, definidas no fim do
século XIX como síndrome histérica.

Tantas vêzes retomados, êstes problemas, hoje, de-


sagradam, e não haveria vantagens em resumir os deba-
tes que suscitaram. Mas podemos perguntar-nos se a
confusão não provém do fato de que se dá o mesmo
sentido às noções de doença, de sintomas, de etiologia
nas patologias mental e orgânica. Se parece tão difícil
definir a doença e a saúde psicológicas, não é porque se
tenta em vão aplicar-lhes maciçamente conceitos desti-
nados igualmente à medicina somática? A dificuldade
em reencontrar a unidade das perturbações orgânicas e
das alterações da personalidade não provém do fato de
se acreditar que elas possuem uma estrutura de mes-

7
mo tipo? Para além das patologias mental e orgdnica
há uma patologia geral e abstrata que as domina, im~
pondo-lhes, à maneira de prejuízos, os mesmos concei-
tos, e indicando-lhes os mesmos métodos à maneira de
postulados. Gostaríamos de mostrar que a raiz da pato-
logia mental não deve ser procurada em uma "meta- Capitulo I
patologia". qualquer, mas numa certa relação, históri-
camente situada, entre o homem e o homem louco e o
homem verdadeiro.
MEDICINA MENTAL E
Entretanto, um balanço rápido é necessário, ao MEDICINA ORGÂNICA
mesmo tempo para lembrar como se constituíram as
psicopatologias tradicionais ou recentes, e para mostrar Esta patologia ,geral de que acabamos de falar de-
de que preliminares a medicina mental têm que estar senvolveu-se em duas etapas principais.
consciente para encontrar um nôvo rigor.
Como a medicina orgânica, a medicina mental ten-
tou, inicialmente, decifrar a essência da doença no
agrupamento coerente dos sínais que a indicam. Cons-
tituiu uma sintomatologia na qual são realçadas as cor-
relações constantes, ou somente freqüentes, entre tal
tipo de doença e tal manifestação mórbida: a aluci-
nação auditiva, sintoma de uma estrutura delirante; a
confusão mental, sinal de tal forma demente. Consti-
tuiu, por outro lado, uma nosografia onde são analisa-
das as próprias formas da doença, descritas as fases de
sua evolução, e restituídas as variantes que ela pode
apresentar: haverã as doenças agudas e as crônicas;
descrever-se-ão as manifestações episódicas, as alternân-
cias de sintomas, e sua evolução no decorrer da doença.
Pode ser útil esquematizar estas descrições clãssi-
cas, não só a título de exemplo, mas também para fixar
o sentido originãrio de têrmos clàssicamente utilizados.
Tomaremos, das obras antigas do comêço dêste século,
descrições cujo arcaísmo não deve fazer esquecer que
elas foram resultado e ponto de partida.
Dupré definia assim a histeria: "Estado no qual
o poder da imaginação e da sugestibilidade, unido a
esta sinergia particular do corpo e do espírito que de-
9
nominei psicoplasticidade, resulta na simulação mais caracterizada pela verborragia, a rapidez das associa-
ou menos voluntária de síndrome~ patológicas, na orga- ções e a fuga das idéias. A depressão, ao contrário,
nização mitoplástica de perturbat;ões funcionais, im- apresenta-se como uma inércia motora tendo c o m o
possíveis de distinguir das dos simuladores ( 1 ) • " Esta fundo humor triste, acompanhada de hipo-atividade
definição clássica designa então como sintomas supe- psíquica. As vêzes isoladas, a mania e a depressão estão
riores da histeria, a sugestibilidade, e o aparecimento ligadas mais freqüentemente por um sistema de alter-
de perturbações como a parai sia, a anestesia, a· anore- nância regular ou irregular, do qual Gilbert-Bane·t tra-
xia, que não têm, na ocorrência, fundamento orgânico, çou os diferentes perfis (3 ) .
mas uma origem exclusivamente psicológica.
A paranóia: num fundo de exaltação passional (or-
A psicastenia, a partir dos trabalhos de Janet, é gulho, ciúme), e de hiperatividade psicológica, vê-se
caracterizada pelo esgotamento nervoso com estigmas desenvolver-se um delírio sistematizado, coerente, sem
orgânicos (astenia muscular, perturbações gastro-intes- alucinação, cristalizando numa unidade pseudo-lógica
tinais, cefaléias); uma astenia mental (fatigabilidade, temas de grandeza, perseguição e reivindicação.
impotência diante do esfôrço, desespêro em face do obs-
táculo; inserção difícil no real e no presente: o que A psicose alucinatória crônica é, também, uma
Janet chamava 'a perda da função do real'); enfim psicose delirante; mas o delirio é mal sistematizado,
P.erturbações ?ª emotividade (tristeza, inquietude, an- freqüentemente incoerente; os temas de grandeza aca-
siedade parox1stica) . bam por absorver todos os outros numa exaltação pueril
do personagem; enfim e sobretudo, êle é sustentado por
As obsessões: "aparecimento num estado mental alucinações.
habitual de indecisão, dúvida e inquietação, e sob a for-
ma de acessos paroxísticos intermitentes, de obsessões- A hebefrenia, psicose da adolescência, é clàssica-
impulsões diversas" (2). Distinguem-se da fobia, carac- mente definida por uma excitação intelectual e motora
terizada por crises de angústia paroxística diante de (tagarelice, neologismos, trocadHhos; maneirismo e im-
objetos determinados (agorafobia diante dos espaços pulsos) , por alucinações e um delirio desordenado, cujo
vazios), a neurose obsessiva, na qual estão sobretudo polimorfismo empobrece paulatinamente.
marcadas as defesas que o doente cria contra sua an- A catatonia é reconhecida devido ao negativismo
gústia (precauções rituais, gestos propiciatórios). · do sujeito (mutismo, recusa de alimento, fenômenos
chamados por Kraepelin "barreiras de vontade"), à
Mania e depressão: Magnan denominou "loucura sua sugestibilidade (passividade muscular, conservação
intermitente" esta forma patológica, na qual vêem-se das atitudes impostas, respostas em eco), enfim às rea-
alternar, a intervalos mais ou menos longos, duas sín- ções estereotipadas e aos paroxismos impulsivos (des-
dromes entretanto opostas: a síndrome maníaca, e a cargas motoras brutais que parecem extravasar tôdas
depressiva. A primeira compreende a agitação motora, as bàrrelras instauradas pela doença).
um humor eufórico ou colérico, uma exaltação psíquica

(1) DUPRt, La Constitution Emotive 0911) . <3> G. BALLET, La psychose pértodique, Journaz de Psycho-
(2) DELMAS, La pratique psychiatrique (1929). logte, 1909-1910.

10 11
(
i
1
_Obser~ando que estas 3 últimas formas patológicas, tulado naturalista, que considera a doença como uma
que mtervem bastante cedo no desenvolvimento, tendem espécie botânica; a unidade que se supõe em cada gru-
para a demência, isto é, para a desorganização total po nosográfico por detrás do polimorfismo dos sinto-
da vida psícológica (o delírio se esboroa, as alucinações mas seria como a unidade de uma espécie definida por
tendem a serem substituídas por um onirismo desor-
de~ado, a personalidade soçobra na incoerência), Krae-
seus caracteres permanentes, e diversificada em seus
pelm agrupou-as sob a denominação comum de Demên- sub-grupos: assim a Demência Precoce é como uma es-
cia Precoce (4). ~ esta mesma entidade nosográfica que pécie caracterizada pelas formas últimas de sua evolu~
Bleuler retomou, alargando-a no sentido de certas for- ção natural, e que pode apresentar as variantes hebe-
mas de paranóia (5); e deu ao conjunto o nome de es- frênicas, catatônicas ou paranóides.
quizofrenia, caracterizada, de um modo geral, por uma
perturbação na coerência normal das associacões - Se se define a doença mental com os mesmos mé-
como um fracionamento do fluxo do pemaménto - todos conceituais que a doença orgânica, se se isolam
e por outro lado, por uma r.uptura do contato afetivo e se se reúnem os sintomas psicológicos como os sin-
com o meio ambiente, por uma impossibilidade de en- tomas fisiológicos, é po!ICJ.ue antes de tudo se considera
trar em comunicação espontânea com a vida afetiva a doença, mental ou orgânica, como uma essência natu-
do outro (autismo). ral manifestada por sintomas específicos. Entre estas
Estas análises têm a mesma estrutura conceituai duas formas de patologia, não hâ então unidade real,
que as da patologia orgânica: em ambas, mesmo méto- mas somente, e · por intermediário dêstes dois postula-
dos para distribuir os sintomas nos grupos patológicos, dos, um paralelismo abstrato. Ora o problema da uni-
e para definir as grandes entidades mórbidas. Ora, o dade humana e da totalidade psicossomática perma-
que se encontra por detrás dêste método único são nece inteiramente aberto.
dois postulados que concernem a natureza da do~nça.
Postula-se, inicialmente, que a doença é uma es- *
sência, uma entidade específica indicada pelos sintomas É o pêso dêste problema que fêz derivar a pato-
que a manifestam, mas anterior a êles, e de um certo logia para novos métodos e novos conceitos. A noção
modo independente dêles; descrever-se-á um fundo es-
quizofrênico oculto sob sintomas obsessivos· ialar-se-á de uma totalidade orgânica e psicológica faz tábula
de delírios camuflados; supor-se-á a entidade de uma rasa dos postulados que consideram a doença uma enti-
loucura maníaco-depressiva por detrás de uma crise dade especifica. A doença como realidade independente
maníaca ou de um episódio depressivo. tende a desaparecer, e renunciou-se a fazê-la desempe-
nhar o papel de uma espécie natural com relação aos
Ao lado dêste preconceito de essência, e como para sintomas, e, com relação ao organismo, o de um corpo
compensar a abstração em que éle. implica. há um pos- estranho. Privilegiam-se, pelo contrário, as reações glo-
bais do individuo; entre o processo mórbido e o funcio-
namento geral do organismo, a doença não se interpõe
(4) KRAEPELIN - Lehrbuch der Psychiatrie (1889). mais como uma realidade autônoma; não se a concebe
(5) E. BLEULER - Dementta praecox oder Gruppe der Sch1- mais senão como um corte abstrato no devir do indi·
eophrenten <1911) . -vi.duo doente.
12
No domínio da patologia orgânica, lembremo-nos singularidade de sua experiência alucinatória que tem
do papel desempenhado atualmente pelas regulações para êle valor de evidência);
hormonais e suas perturbações, a reconhecida impor-
tância dos centros vegetativos, como a região do 3.º 2) nas neuroses, pelo contrário, somente um se-
ventrículo que comanda estas regulações. Sabe-se tor da personalidade é atingido: ritualismo dos obse-
quanto Leriche insistiu sôbre o caráter global dos pro- dados com respeito a um objeto, angústias provocadas
cessos patológicos, e sôbre a necessidade de substituir por tal situação na neurose de fobia. Mas b fluxo do
uma patologia celular por uma patologia textrina. pensamento permanece intacto na sua estrutura, mes-
Selye, por seu lado, descrevendo as "doenças da adap- mo se é mais lento nos psicastênicos; o contato afetivo
tação", mostrou que a essência do fenômeno patológico subsiste, chegando a ser exagerado até à suscetibilida-
devia ser procurada no conjunto das reações nervosas de nos histéricos; enfim, o neurótico, mesmo quando
e vegetativas que são como que a resposta global do or- apresenta obliterações de consciência como o histérico,
ganismo ao ataque, ao "stress", proveniente do mundo ou impulsos incoercíveis como o obsedado, conserva a
exterior. lucidez critica com relação a seus fenômenos mórbidos.

Na patologia mental, dá-se o mesmo privilégio à Classificam-se, geralmente, entre as psicoses, a pa-
noção de totalidade psicológica; a doença seria altera- ranóia e todo o grupo esquizofrênico, com suas síndro-
ção intrínseca da personalidade, desorganização inter- mes paranóides, hebefrênicas e catatônicas; entre as
na de suas estruturas, desvio progressivo de seu desen- neuroses, a psicastenia, a histeria, a obsessão, a neu-
volvimento: só teria realidade e sentido no interior de rose de angústia e a de fobia.
uma personalidade estruturada. Neste sentido tentou- A personalidade torna-se, assim, o elemento no
se definir as doenças mentais, segundo a amplitude das qual se desenvolve a doença, e o critério que permite
perturbações da personalidade, e daí chegou-se a dis- julgá-la; é ao mesmo tempo a realidade e a medida da
tribuir as perturbações psíquicas em 2 grandes cate- doença.
gorias: as neuroses e as psicoses.
Viu-se neste resumo da noção de totalidade um
1) As psicoses, perturbações da personalidade glo- retôrno à patologia concreta, e a possibilidade de de-
bal, comportam: um distúrbio do pensamento (pensa- terminar como um único domínio o campo da pato-
mento maníaco que foge, flui, deslisa sôbre associações logia mental e o da orgânica. Não é, na verdade, ao
de sons ou trocadilhos; pensamento esquizofrênico, que mesmo individuo humano na sua realidade que ambas
salta, ultrapassa os intermediários e procede por saltos se dirigem por vias diferentes? Através desta localiza-
ou por contrastes); uma alteração geral da vida afetiva '.~ão da noção de totalidade não convergem, ao mesmo
e do humor (ruptura do contato afetivo na esquizo- k\npo, pela identidade de seus métodos e unidade de
frenia; coJ.orações emocionais. maciças na mania ou ;,eu objeto?
na depressão); uma pe~'turbação do contrôle da cons-
ciência, da perspectivação dos diversos pontos de vis- A obra de Goldstein poderia testemunhá-lo. Estu-
ta, formas alteradas do senso crítico (crença delirante )
dando, nas fronteiras da medicina mental e orgânica,
na paranóia, na qual o sistema de interpretação ante- uma síndrome neurológica como a afasia, êle recusa
cipa as provas de sua exatidão, e permanece impermeá- tanto as explicações orgânicas por urna lesão local,
vel a qualquer discussão; indiferença do paranóide· r. · quanto as interpretações psicológicas pór um deficit
g-1,obal da ,iD:tcligêncía. Mostra que uma lesão cortical Gostaríamos de mostrar, pelo contrário, que a pato-
pos:tra_u:natica pode modificar o estilo das respostas logia mental exige métodos de análise diferentes dos
do i:i~1y1duo a seu meio; um dano funcional limita as da patologia orgânica, e que é somente por um artifí-
poss1b1llda?es ~le adaptac;ão ~o organismo e suprime cio de linguagem que se pode emprestar o mesmo sen-
do compo1 tam~!1t_o a c_:·cntualldade de certas atitudes. tido às "doenças do corpo" e às "doenças do espírito".
Quando urn a1as1co nao pode nomear um objeto que Uma patologia unitária que utilizasse os mesmos mé-
lhe e . most:act?, apesar de poder reclamá-lo, se dêle todos e os conceitos nos domínios psicológico e fisio-
nec~ssita, na~ e .Pº~' causa de um deficit (supressão or- lógico é, atualmente, da ordem do mito, mesmo que a
gâmca º1: ps1co10g1ca), que se poderia descrever como unidade do corpo e do espírito seja da ordem da rea-
uma real1dact: em ~i; é que êle não é mais capaz de lidade.
u:rr..a certa_ ati~ude face ao mundo, de uma perspectiva
?e denommaç~o que, ~o invés de aproximar-se do ob- 1) A abstração - Na patologia orgamca, o tema
Jeto .Pª~ª, pega-lo (gre1fen), distancia-se para mostrá- de um retôrno ao doente para além da doença não
lo e mdlca-lo (zeigen) (6). exclui a perspectivação rigorosa que permite isolar, nos
fenômenos patológicos as condições e os efeitos, os pro-
Quer ~u~s designações primeiras sejam psicológi- cessos maciços e as reações singulares. A anatomia e a
cas ou _orga121cas, a doença concerniria de qualquer mo- fisiologia propõem justamente à medicina uma análise
do à situaçao global do indivíduo no mundo· em vez que autoriza abstrações válidas sôbre o fundo da tota-
de s~r uma essência fisiológica ou psicológic~ é uma lidade orgânica. Certamente, a patologia de Selye in-
re~ça~ ~eral ~~ ii;id_ivíduo tomado na sua to'talidade siste, mais que qualquer outra, na solidariedade de cada
ps1colog1c:i. e fis:o1?g1ca. Em tôdas estas formas recen- fenômeno segmentário com o todo do organismo; mas
ti:s d~ 3;llallse medica, pode-se, então, ler uma significa- não é para fazê-los desaparecer em sua individua.lidade,
ça<? umca: quanto mais se encara como um todo a nem para denunciar nêles uma abstração arbitrária.
umdade do ser humano, mais se dissipa a realidade É para permitir, pelo contrário, ordenar os fenômenos
d; uma . doen~a gue seria unidade específica; e tam- singulares numa coerênc,a global, é para mostrar, por
bém mais se impoe, para substituir a análise das for- exemplo, como lesões intestinais análogas às da tifóide
~as naturais da doença, a descrição do individuo rea- ocorrem num conjunto de perturbações hormonais, do
gmdo a sua situação de modo patológico. qual um elemento essencial é um distúrbio do funcio-
namento córtico-suprarrenal. A importância atribuída
Pela. unidade qu~ ela assegura, e pelos problemas em patologia orgânica à noção de totalidade não exclui
q_u: _suprime, esta noçao de totalidade tem tôdas as pos- nem a abstração de elementos isolados, nem a análise
s~b11Idade~ para trazer à patologia um clima de eufo- causal; ela permite, pelo contrário, uma abstração mais
ria conceitua!. É dêste clima que quiseram aproveitar- válida e a determinação de uma causalidade mais real.
se ?s que, de. perto ou de longe, inspiraram-se em Gold-
stem. Mas a mfelicidade quis que a euforia não estivesse Ora, a psicologia nunca pôde oferecer à psiquiatria
do mesmo lado que o rigor. o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de
análise que, delimitando o distúrbio, permitisse enca-
rar a relação funcional dêste dano ao conjunto da per-
sonalidade. De fato, a coerência de uma vida psicológica
parece assegurada de maneira diversa que não a coesão
(6) GOLDSTEIN - Journal de Psychologf,e (1933).
do organismo; a integração dos segmentos tende, neste
16 ....
...-----
caso, a uma unidade que torna cada um dêles possi-
vel mas resume-se e recolhe-se em cada um: é o que
os 'psicólogos chamam, no seu vocabulário tomado à.
T normal e o pat<?lógico. Bleuler, por exemplo, tinha
opos~o com.o 2 polos da pato10gia mental, 0 gru 0 das
esqmzofremas, com a ruptura do contato com a1! reali-
da?e, e o g~upo das loucuras maníaco-depressivas, ou
fenomenologia a unidade significativa das condutas, psicoses ciclic~s, com o exagêro das reações afetivas.
que encerra e.:n cada elemento - sonho, crime, gesto Ora, esta ~nálise pareceu definir tanto as personalida-
gratuito, associação livre - o comportamento geral, des ll:ºri:iais quanto as mórbidas; e Kretschmer ôde
o estilo tôda a anterioridade histórica e as implica- constituir, neste espírito, uma caracteriologia bi~lar
ções ev~ntuais de uma existência. A abstr~ção .não com~rtando 8: esquizotimia e a ciclotimia, cuja acen:
pode, então, fazer-se do mesmo modo em psicologia e tuaça~. P.atológi~a ,,apresentar-se-ia como esquizofrenia e
em fisiologia; e a delimitação de um distúrbio pato- com<! c1clofrema . Mas, desde logo, a passagem das
lógico exige na patologia orgânica métodos diversos dos reaçoes n?rmais !18 formas mórbidas não depende de
da patologia mental. uma anál~e precisa .dos processos; permite somente
um~ aprec1açao qualitativa que ocasiona tôdas as con
2) o normal e o patológico - A medicina viu fusoes. -
esfumar-se progressivamente a linha de separação en-
tre os fatos patológicos e os normais: ou melhor· ela ~nquB:Ilt? q~e a idéia de solidariedade orgânica
apreendeu mais claramente que os quadros clínicos não permite distinguir e unir dano mórbido e resposta
eram uma coleção de fatos anormais, de "monstros" ad~ptada, o exame da personalidade antecede, em pato-
fisiológicos, mas sim constituídos em parte pelos me- logia mental, a análises semelhantes.
canismos normais e as reações adaptativas de um or-
ganismo funcionando segundo sua norma. A hiper- 3) O ~oente e o meio - Finalmente, uma terceira
calciuria, que segue uma fratura do fêmur, é uma res- diferença rmpede ".J.Ue se tratem com os mesmos méto-
posta orgânica situada, como diz Leriche, "na linha das dos e que s~ ~nallsem com os mesmos conceitos a to-
possibilidades textrinas" (7) : é o organismo reagindo talidade orgamca e a personalidade psicológica Ne-
de um modo ordenado ao dano patológico, e como para nhuma doe~ça, se~ dúvida, pode ser separada d~s mé-
repará-lo. Mas, não o esqueçamos: estas considerações todos de diagnóstico, dos procedimentos de isolamen-
repousam numa planificação coerente das possibilida- to, dos instrumentos terapêuticos com os quais a cerca
des fisiológicas do organismo; e a análise dos mecanis- a prática. médica. Mas a noção de totalidade orgânica
mos normais da doença permite, de fato, melhor dis- ressa;Ita, mdepe~d.entemente destas práticas, a indivi-
cernir o impacto do dano mórbido, e, com as virtuali- d~a~1da~e do SUJeit~ doente; ela permite isolar na sua
dades normais do organismo, sua capacidade de cura: ongmal1dade _mórbida, ~ determinar o caráter próprio
do mesmo modo que a doença está inscrita no interior de suas reaçoes patológicas.
das virtualidades fisiológicas normais, a possibilidade
da cura está escrita no interior dos processos da doença. _ Do la~o da patologia mental, a realidade do doente
nao .perrmte ,un;a abstração semelhante e cada indivi-
Em psiquiatria, ao contrário, a noção de perso:na- d.ualidade m?rb1da deve ser entendida através das prá-
lidade torna singularm~nte dificll a distinção entre o ticas do meio a se·~ respeito. A situação de interna-
mento e de tutela rmposta ao alienado desde 0 fim d
século XVIII, sua dependência total com rela ão ~
decisão médica contribuíram, sem dúvida, para çfixar,
\, <1l LERICHE - Phllosophle de la Chfrurgt,.
no fim do século XIX, a personagem do histérico. Des- mas de doença é sàmente artificial; quer· dizer que ela
pojado de seus direitos pelo tutor e pelo conselho de depende de um fato histórico, do qual já escapamos.
família, recaindo pràticamente no estado de menori-
dade jurídica e moral, privado de sua liberdade pelo _l!: preciso, ell!ão, ?a:ndo crédito ao próprio homem,
médico todo-poderoso, o doente tornava-se o centro de e. z;iao às abstraçoes sobre a doença, analisar a especi-
tôdas as sugestões sociais: e no ponto de convergência f1c1dade da doença mental, buscar as formas concretas
destas práticas, apresentava-se a sugestibilidade, como que a ps~cologia pôde atribuir-lhe; depois determinar
i"
11
síndrome maior da histeria. Babinsk1, impondo de fora as condiçoes que tornaram possível êste estranho sta-
a sua doente o domínio da sugestão, a conduzia a tus da loucura, doença mental irredutível a qualquer
êste ponto de alienação no qual, destruída, sem voz e doença.
sem movimento, estava preparada para receber a efi-
cácia da palavra milagrosa: "Levanta-te e anda". E o A estas questões pro,curam responder as 2 partes
médico encontrava o sinal da simulacão no sucesso de desta obra:
sua paráfrase evangélica, já que a doente, seguindo a
injunção irônicamente profética, levanta-se realmente 1) as dimensões psicológicas da doença mental;
e realmente andava. Ora, naquilo que o médico denun- 2) a psicologia como fato de civilização.
ciava como ilusão, êle esbarrava de fato com a reali-
dade de sua prática médica: nesta sugestibilidade, êle
encontrava o resultado de tôdas as sugestões, de tôdas
as dependências às quais estava submisso o doente. O
fato das observações hoje não apresentarem mais mila-
gres semelhantes, não anula a realidade dos sucessos
1 i· de Babinski, mas prova sàmente que o rosto do histé-
rico tende a desvanecer-se, à medida que se atenuam
as práticas da sugestão que constituíam antigamente o
meio do doente.
A dialética das relações do indivíduo e seu meio
não se faz, então, no mesmo estilo em fisiologia patoló-
gica e em psicologia patológica.

*
Não se pode, então admitir prontamente nem um
paralelismo abstrato, nem uma unidade maciça entre
os fenômenos da patologia mental e os da orgânica; é
impossível transpor de uma para outra os esquemas
de abstrações, os critérios de normalidade ou a defini-
ção do indivíduo doente. A patologia mental deve liber-
tar-se de todos os postulados de uma "metapatologia":
a unidade assegurada por esta entre as diversas for-
') 1
PRIMEIRA PARTE

AS DIMENSÕES PSICOLôGICAS DA DOENÇA

Capitulo II

A DOENÇA E A
EVOLUÇÃO
Diante de um doente atingido profundamente,
tem-se a impressão primeira de um deficit global e
maciço, sem nenhuma compensação: a incapacidade
de um sujeito confuso de localizar-se no tempo e no
espaço, as rupturas de continuidade que se produzem
incessantemente na sua conduta, a impossibilidade de
ultrapassar o instante no qual estâ enclausurado para
atingir o universo do outro ou para voltar-se para o
passado e futuro, todos êstes fenômenos levam a des-
crever sua doença em têrmos de funções abolidas: a
consciência do doente está desorientada, obscurecida,
limitada, fragmentada. Mas êste vazio funcional é, ·ao
mesmo tempo, preenchido por um turbilhão de rea-
ções elementares que parecem exageradas e como tor-
nadas mais violentas pelo desaparecimento das outras
condutas: todos os automatismos de repetição são acen-
tuados (o doente responde em eco às perguntas que
lhe são feitas, um gesto desencadeado susta-se e rei-
tera-se indefinidamente), a linguagem interior invade
todo o domínio de expressão do sujeito que prossegue
à meia-voz um monólogo desordenado sem endereçar-
se jamais a alguém; finalmente, por instantes, surgem
reações emocionais intensas.
23
Não se deve então ler a patologia mental no texto tencionalidade voluntária estão incessantemente com-
prometidas por fenômenos tão freqüentes quanto o
1 demasiado simples das funções abolidas: a doença não
é sómente perda da consciência, entorpecimento de tal sono, tão difusos quanto a sugestão, tão costumeiros
função, obnubilação de tal faculdade. No seu corte quanto o sonho. As condutas acentuadas pela doença
abstrato, a psicologia do século XIX incitava esta des- têm uma solidez psicológica que não apresentam as
crição puramente negativa da doença; e a semiologia estruturas abolidas. O processo patológico exagera os
de cada uma era muito fácil: limitava-se a descrever fenômenos mais estáveis e só suprime os mais lábeis.
as aptidões desaparecidas; a enumerar, nas amnésias
as lembranças esquecidas, a pormenorizar nos desdo~ Finalmente as funções patolôgicamente acentuadas
bramentos de personalidades as sínteses tornadas im- são as mais involuntárias: o doente perdeu tôda ini-
possíveis. De fato, a doença apaga, mas sublinha; abole ciativa, ao ponto de que a própria resposta induzida
de um lado, mas é para exaltar do outro; a essência da por uma pergunta não lhe é mais possível: êle só pode
doença não está somente no vazio criado mas também repetir as últimas palavras de seu interlocutor; ou
na plenitude positiva das atividades de su'.bstituição que quando consegue fazer um gesto, a iniciativa é tão logo
vêm preenchê-lo. substituída por um automatismo de repetição que a
interrompe e sufoca. Digamos, então, resumindo, que
Que dialética vai explicar ao mesmo tempo êstes a doença suprime as funções complexas, instáveis e
fatos positivos e os fenômenos negativos de desapareci- voluntárias, exaltando as 'funções simples, estáveis e
mento·? automáticas.

Inicialmente, pode-se notar que funções desapa- Ora, esta diferença de nível estrutural é duplicada
recidas e funções exaltadas não sáo de mesmo nível: o por uma diferença no nível evolutivo. A preeminência
que desapareceu, são as coordenações complexas é a das reações automáticas, a sucessão sempre interrom-
consc~ência _.com suas aberturas intencionais, seu' jôgo pida e desordenada das condutas, a forma explosiva das
de orientaçao no tempo e no espaço, é a tensão volun- reações emocionais são características de um nível ar-
tária que retoma e ordena os automatismos. As con- caico na evolução do indivíduo. São estas condutas que
dutas, ~onsen:adas e acentuadas são,· ao inverso, seg- dão seu estilo às reações da criança: ausência das con-
mentarias e snnples; trata-se de elementos dissociados dutas de diálogo, amplitude dos monólogos sem inter-
que se liberam num estilo de incoerência absoluta A locutores, repetições em eco por incompreensão da dia-
síntese complexa do diálogo é substituída pelo moi:ió- lética pergunta-resposta; pluralidade das coordenadas
logo fragmentário; a sintaxe através da qual se cons- espaço-temporais, o que permite condutas ilhadas, nas
tituí um sentido é quebrada, e só subsistem elementos quais os espaços estão fragmentados e os momentos
verbais, d~s quais e~capam sentidos ambíguos, polimor- independentes, todos êstes fenômenos que são comuns
fos e labe1s; a coerenc1a espaço-temporal que se ordena às estruturas patológicas e aos estágios arcaicos da
no aqui e agora desmoronou-se, e só subsiste um caos evolução designam na doença um processo regressivo.
de aqui sucessivos e de instantes insulares. Os fenô-
menos positivos da doença se opõem aos negativos co- Se então, num só movimento, a doença ocasiona si-
mo o simples ao complexo. ' nais positivos e negativos, se ela suprime e exalta, ao
mesmo tempo, é na medida em que, retornando a fases
Mas também como o estável ao instável. As sínte- anteriores da evolução, faz desaparecerem as aquisições
ses espaço-temporais, as condutas intersubjetivas, a in- recentes. e redescobre as formas de condutas normal-

24 25
mente ultrapassadas. A doença é o processo ao longo vante uma das dimensões através das quais tem-se aces-
do qual se desfaz a trama da evolução, suprimindo ini- so ao fato patológico.
cialmente, e nas suas formas mais benignas, as estru-
turas mais recentes, atingindo em seguida, no seu tér- Tôda uma parte da obra de Freud é comentârio
mino e no seu ponto supremo de gravidade, os níveis das formas evolutivas da neurose. A história da libido,
mais arcaicos. A doença não é então um deficit que de seu desenvolvimento, de suas fixações sucessivas é
atinge cegamente esta faculdade ou aquela; hã no ab- como a compilação das virtualidades patológicas do
surdo do mórbido uma lógica que é preciso saber ler; indivíduo: cada tipo de neurose é um retôrno a um
é a própria lógica da evolução normal. A doença não é estãgio de evolução libidinal. E a psicanãlise acredi-
uma essência contra a natureza, ela é a própria natu- tou poder escrever uma psicologia da criança, fazendo
reza, mas num processo invertido; a história natural uma patologia do adulto.
da doença só tem que restabelecer o curso da história
natural do organismo são. Mas nesta lógica umca, 1) Os primeiros objetos procurados pela criança
cada doença conservará seu perfil singular; cada en- são os alimentgs, e o primeiro instrumento de prazer,
tidade nosográfica encontrarã seu lugar, e seu conteú- a bôca: fase de erotismo bucal durante a qual as frus-
do será definido pelo ponto onde pãra o trabalho da trações alimentares podem estabelecer os complexos de
dissociação; às diferenças de essência entre as doenças, desmame; fase também de ligação quase biológica com
é preciso preferir a análise segundo o grau de profun- a mãe, na qual todo abandono pode provocar os defi-
didade da deterioração, e o sentido de uma doença po- cits fisiológicos analisados por Spitz (2), ou as neu-
derá ser definido pela estiagem em que se estabiliza roses descritas por Gueux como sendo especificamente
o processo de regressão. neuroses de abandono (3 ). Sechehaye chegou até a ana-
lisar uma jovem esquizofrênica na qual uma fixação
* nestes estágios muito arcaicos de desenvolvimento tinha
conduzido, por ocasião da adolescência, a um estado de
"Em tôda loucura'', dizia Jackson, "existe um dano estupor hebefrênico no qual o sujeito vivia, destruído,
mórbido de um número mais ou menos grande de cen- na consciência ansiosamente difusa de seu corpo esfo-
tros cerebrais superiores, ou, o que é sinônimo, do nível meado.
de evolução mais elevado da infra-estrutura cerebral,
ou, o que é ainda sinônimo, do substrato anatômico da 2) Com a dentição e o desenvolvimento da mus-
base física da consciência. . . Em qualquer loucura, culatura, a criança organiza todo um sistema de defesa
grande parte d~ centros cerebrais superiores é colo- agressiva, que marca os primeiros momentos de sua
cada fora de funcionamento de um modo temporãrio independência. Mas é também o momento no qual as
ou permanente, por algum processo patológico" ( 1 ) . disciplinas - e, num grau maior, a disciplina esfincte-
Tôda a obra de Jackson tendeu a dar importância ao riana - se impõem à criança, tornando-lhe presente
evolucionismo em neuro e em psico-patologia. A partir a instância paterna sob sua forma repressiva. A ambi-
das-croonian Lectures (1874), não é mais possível omi- valência se instala, como dimensão natural da afeti-
tir os aspectos regressivos ~a doença; a evolução é dora- vidade: ambivalência do alimento que só satisfaz na

<n Facteurs de la Folie, Selected Papers, II. p. 411.


(2) SPITZ - o hospttaZ1smo.
f3l G. GUEUX. - Les Névroses d'abandott.

26 27
medida em que se o destrói no modo agressivo da mor- meriino de 4 anos no qual o mêdo dos cavalos ocultava
dida; ambivalência do prazer que é tanto de excreção o pavor da castração) (4 ).
quanto de introjeção; ambivalência das satisfações ora
p2rmitidas e valorizadas, ora interditas e punidas. É 4) Finalmente faz-se a "escolha objetal'', ao tér-
no cerne desta fase que se dá o aparecimento do que mino desta primeira infância: escolha que deve impli-
Melanie Klein ch:::.ma os "bons" e os "maus objetos"; car, com uma fixação heterossexual, numa identifica-
mas a ambigüidade latente de uns e de outros não está ção com o pai do mesmo sexo. Mas a es;:;a diferenciação,
dominada ainda, e a fixação neste período descrita por e à assunção de uma sexualidade normal se opõem a
atitude dos pais e a ambivalência da afetividade infan-
Freud como "estágio sádico-anal" cristaliza as síndro- til: ela é, na realidade, nesta época ainda, fixada no
mes obsessivas: síndrome contraditória de dúvida, de modo de um ciúme inteiramente mesclado de erotismo
interrogação, de atração impulsiva incessantemente e de agressividade, a uma mãe desejada que se tecusa
compensada pelo rigor da proibição, de precauções con- ou pelo menos divide-se; e ela se decompõe em ansie-
tra si-mesmo, sempre voltada, mas sempre recomeçada, dade diante do pai cuja rivalidade triunfante suscita,
dialética do rigor e da complacência, da cumplicidade com o ódio, o desejo amoroso de identificação. É o fa-
e da recusa, onde se pode ler a ambivalência radical do moso complexo de Édipo, no qual Freud acreditava
objeto desejado. ler o enigma do homem e a chave de seu destino; no
qual é preciso sem dúvida encontrar a análise mais
. 3) Ligada às primeiras atividades eróticas, ao refi- compreensiva dos conflitos vividos pela criança em suas
namento das reações de equilíbrio, e ao reconhecimento relações com seus pais, e o ponto de fixação de muitas
de si no espelho, constitui-se uma experiência do "cor- neuroses.
po próprio". A afetividade desenvolve então como tema Em resumo, todo estágio libidinal é uma estrutura
11

maior a afirmação ou a reivindicação da integridade patológica virtual. A neurose é uma arqueologia espon- li
corporal; o narcisismo torna-se uma estrutura da se- tânea da libido.
xualidade, e o corpo próprio um objeto sexual privile-
giado. Qualquer ruptura, neste circuito narcisista, per- Janet retoma, êle também, o tema jacksoniano,
turba um equilíbrio já difícil, como testemunha a an- mas num horizonte sociológico. A queda de energia psi-
gústia das crianças diante das fantasias castratórias das cológica que caracteriza a doença tornava impossíveis
ameaças paternas. É nesta desordem ansiosa das expe- as condutas complexas adquiridas no decorrer da evo-
lução social, e descobriria, como uma maré que se :retira,
riências corporais que se precipita a síndrome histérica: comportamentos sociais primitivos, ou mesmo reações
desdobramento do corpo, e constituição de um alter ego pré-sociais.
no qual o sujeito lê, como espelho, seus pensamentos,
desejos e gestos cujo duplo demoníaco o desapossa ante- Um psicastênico não chega a acreditar na reali-
cipadamente; fracionamento histérico que subtrai da dade do que o cerca; é uma conduta, para êle, "dema-
siado difícil". O que é uma conduta difícil? Essencial-
experiência global do corpo elementos anestesiados ou mente uma conduta na qual uma análise ver_tical mos-
paralisados; angústia de fobia diante de objetos cujas tra a superposição de várias condutas simultâneas.
ameaças fantasmâticas visam para o doente à integri-
dade de seu corpo (Freud analisou assim a fobia de um (4) FREUD, Cinq Psychanalyses (p. llll.

28
1\1'.atar um animal na caça é uma conduta; contar, de- presença; falar-ser falado, na linguagem; crer-ser acre-
pois do fato, que se matou um animal, é uma outra ditado, na narrativa) porque são condutas que se des-
conduta. Mas no momento em que se espreita, em que f
dobram num horizonte social. Foi preciso tôda uma
se mata, contar-se a si mesmo que se mata, que se per- evolução social para que o diálogo se tomasse um mo-
segue, que se espreita, para poder, em seguida, contar do de relação inter-humano; só tornou-se possível pela
a epopéia aos outros; ter simultâneamente a conduta passagem de uma sociedade imóvel em sua hierarquia
real da caça e a virtual do relato, é uma dupla operação, do momento, que só autoriza a pa!avra de ordem, a
muito mais complicada do que cada uma das duas ou- uma sociedade na qual a igualdade das relações permite
tras, e que só é mais simples aparentemente: é a con- e garante a troca v:rtual, a fidelidade ao passado, o en-
duta do presente, germe de tôdas as condutas tempo- gajamento do futuro, a reciprocidade dos pontos de
rais na qual se superpõem e se imbricam o gesto atual vista. É tôda esta evolução social que restabelece o
e a' consciência de que êste gesto terá um futuro, isto doente, incapaz de diálogo.
~ que mais tarde poder-se-á narrá-lo como um aconte-
cimento passado.·. Pode-se então medir a dificuldade de eada doença, segundo sua gravidade, abole certas
uma ação de acôrdo com o número de condutas elemen- condutas que a sociedade em sua evolução tinha tor-
tares em que implica a unidade de seu desenvolvi- nado possíveis, e as substitui por formas arcaicas de
mento. comportamento:
Tomemos por sua vez esta conduta do "relato aos
outros", cuja virtualidade faz parte das condutas do 1) ao diálogo, como forma suprema da evolução da
presente. Contar, ou mais simplesmente falar, ou de um linguagem, substitui uma espécie de monólogo no qual
modo mais elementar ainda, dar uma ordem não é tam- o sujeito conta a si próprio o que faz, ou então no qual
pouco algo simples; significa, inicialmente, referir-se a êle trava, com um interlocutor imaginário, um diálogo
um acontecimento ou a uma ordem de coisas, ou a um que êle seria incapaz de travar com um parceiro real,
mundo ao qual não tenho acesso, mas que pode ser atin- como o professor psicastênico que só podia proferir sua
gido por outro em meu lugar; é-me necessário então conferência diante do espêlho. Torna-se para o doente
reconhecer o ponto de vista do outro, e integrá-lo ao demasiado "difícil" agir sob os olhares do outro: eis
meu; preciso então duplicar minha própria ação (a or- porque tantos sujeitos, obsedados ou psicastênicos, apre-
dem dada) com uma conduta virtual, a do outro que sentam, quando se sentem observados, fenômenos de
deve executá-la. Mais ainda: dar uma ordem supõe liberação emocional, como os tiques, as mímicas, as
sempre o ouvido que a perceberá, a inteligência que a mioclonias de tôda espécit;
compreender~. o corpo que a executará; na ação de 2) perdendo esta virtualidade ambígua do diálogo,
comandar está implícita a virtualidade de ser obedeci- e não mais a:greendendo a palavra senão pela face esque-
do. Isto quer dizer que estas condutas aparentemente mática que ela apresenta ao sujeito falante, o doente
tão simples que constituem a atenção no presente, o perde o domínio de seu universo simbólico; e o conjunto
relato, a palavra implicaln tôdas numa certa dualidade, das palavras, dos signos, dos ritos, em resumo de tudo
que é no fundo a dualidade de tôdas as condutas sociais. o que há de alusivo e referencial no mundo humano, ces-
Se, então,. o psicastênico acha tão árdua a atenção no sa de integrar-se num sistema de equivalências signifi-
presente, é devido às implicações sociais que obscura- cativas; as palavras e os gestos não constituem mais o
mente ela encerra; tornaram-se difíceis para êle tôdas domínio comum no qual se encontram as intenções de
estas ações que têm um contrário (olhar-ser olhado, na si próprio e dos outros, mas significações existindo por
lise das condutas, e não a interpretação pela fôrça psi-
si mesmas, de uma existência maciça e inquietante; cológica: os psicanalistas rejeitam cada vez mais a no-
o sorriso não é mais a resposta banal a uma saudação ção bio-psicológica de libido); o outro, pelo contrário,
cotidiana; é um acontecimento enigmático que nenhu- ético, porque justifica mais do que explica, p?rmanecL>
ma das equivalências simbólicas da polidez pode redu- vivo ainda.
zir; no horizonte do doente êle se destaca, então, como
o símbolo de não se sabe que mistério, como a expres- Entretanto, não hã quase sentido em restituir
são de uma ironia que se cala e ameaça. O universo uma identidade entre a personalidade mórbida do
da perseguição brota de todos os lados; doente e a normal, da criança ou do primitivo. Das
3) êste mundo que vai do delírio à alucinação duas uma, com efeito:
parece depender inteiramente de uma patologia ·da
crença, como conduta inter-humana; o critério social - ou admite-se rigorosamente a interpretação de
da verdade ("acreditar no que os outros crêem") não Jackson: "Imaginarei que os centros cerebrais dispõern-
tem mais valor para o doente; e neste mundo que a se em quatro camadas, A, B. C, D,"; a primeira forma
ausência do outro privou de solidez· objetiva, êle faz da loucura, a mais benigna, será - A + B + C +D;
penetrar todo um universo de símbolos, de fantasmas, "a totalidade da personalidade é de fato + B + C +D;
de pavores; êste mundo no qual apagou-se o olhar do o têrmo - A é dado só para mostrar em que a nova
outro torna-se permeável às alucinações e aos delírios. personalidade difere da anterior" (ü); a regressão pa-
Assim, nestes fenômenos patológicos, o doente é reme- tológica é assim sómente uma operação subtrativa;
tido a formas arcaicas de crença, quando o homem pri- mas o que se subtrai nesta aritmética, é justamente o
mitivo não encontrava em sua solidariedade com o ou- têrmo último, que promove e arremata a personalidade;
tro o critério da verdade, quando projetava seus desejos quer dizer que "o resto" não serã urna personalidade
e temores em fantasmagorias que teciam com o real anterior, mas abolida. Como, por meio disto, identifi-
as meadas indissociáveis do sonho, da aparição, e do car o indivíduo doente às personalidades "anteriores"
mito. do primitivo ou da criança?
*
- ou, então, estende-se o jacksonismo, admitindo
No horizonte de tôdas estas análises, há, sem dúvi- uma reorganização da personalidade; a regressão não
da, temas explicativos que se situam por si mesmos
nas fronteiras do mito: o mito, inicialmente, de uma se contenta com suprimir e liberar, ela ordena e coloca
certa substância psicológica ("libido", em Freud, "fôrça no lugar; como o diziam Monakow e Murgue a propó-
psíquica", em Janet), que seria a matéria bruta da sito da dissolução neuro-lógica: "A desintegração não
evolução, e que, progredindo no decorrer .. do desenvol- é a inversão exata da integração. . . Seria absurdo dizer
vimento individual e social, sofreria uma espécie de que a herniplegia é um retôrno ao estãgio primitivo da
recaída, e voltaria, devido à doença, a seu estado ante- aprenàizagem da locomoção. . . A autoregulação tem
rior; o mito também de uma identidade entre o doente, um papel aqui, de maneira que a noção de desintegra-
o primitivo e a criança, mito através do qual se tranqüi- ção pura não existe. ~te processo ideal estã camuflado
liza a consciência escandalizada diante da doença men-
tal, e consolida-se a consciência prêsa a seus precon-
ceitos culturais. Dêstes dois mitos, o primeiro, porque. (5) C. JACKSON - Facteurs de la folte, trad. franc., p. 30.
científico, logo abandonado (de Janet, retém-se a anã-
33
pela tendência criadora do organismo incessantemente 2) na paranóia, o distúrbio geral do humor libera
em ação a restabelecer o equilíbrio perturbado (ª) ." uma estrutura passional que não é senão o exagêro dos
Então, não se trata mais de p ·r.sonalidades arca,cas; é comportamentos costumeiros da person~lidade; mas
p:eciso admitir a especificidade da personalidade mór- nem a lucidez, nem a ordem, nem a coesao do. fundo
bida; a estrutura patológica do psiquismo não é origi- mental estão ainda atingidos;
nária; é rigorosamente original.
Não se trata de invalidar as análises da regressão 3) mas com os estados onirói~es, . atingim~s u_m
patológica, mas é preciso somente libertá-las dos mitos nivel no qual as estruturas da consciência j.á estao d!-8-
dos quais nem Janet n~m Freud souberam d~cantá-las. sociadas; o contrôle perceptivo e a coerên~ia do racio-
Ser~a inútil, sem dúvida, dizer, numa perspectiva expli- cínio desapareceram; e nesta fragmf'ntaçao da esfera
cativa, que o homem, adoecendo, volta a ser uma crian- consciente, vêem-se infiltrar as estruturas do soz:ho que,
ça: mas do ponto de vista descritivo, é exato dizer que geralmente, são liberadas apenas no ~ono. Ilusoes, alu-
o doente manifesta, na sua personalidade mórbida, con- cinações, reconhecimentos falsos mamfestam no .estado
dutas segmentárias, análogas às de uma idade ante- de vigília a desinibição das formas da consciência oní-
rior ou de uma outra cultura; a doença descobre e rica;
p_:ivil~gia condu_tas normalmente integradas. A regres-
sao so deve entao ser entendida como um dos aspectos 4) a dissociação chega, nos es~ados maní~~os e
descritivos da doença. melancólicos à esfera instintivo-afetiva; a puerilldade
emocional d~ maníaco, a perda da consciência do corpo
Uma descrição estrutural da doença deveria, então, e das condutas de conservação, no melancólico, repre-
para cada síndrome, analisar os sinais positivos e nega- sentam o lado negativo .. Quarto às formas positivas da
tivos, isto é, detalhar as estruturas abolidas e as estru- doença, elas aparecem neste~ pa:oxismos de agitação
turas realçadas. Não significaria explicar as formas pa- motora ou de explosões emoc1~nais duran~e os quais .º
tológicas, mas somente colocá-las numa perspectiva que melancólico afirma seu desespero, o mamaco sua agi-
tornasse coerentes e compreensíveis os fatos de regres- tação eufórica;
são individual ou social relevados por Freud e Janet.
Podem-se resumir assim as grandes linhas de uma des- 5) finalmente, nos estados confusos e esquizofrê-
crição semelhante: nicos a deterioração toma o aspecto de um deficit ca-
pacitário; num horizonte no qual as r~fere~c1as e~pa-
' A •

1) o desequilíbrio e as neuroses são apenas o pri- ciais e temporais tornaram-se demasiado 1mprec1Sas
meiro grau de dissolução das funções psíquicas; o dano para permitir a orientação, o pensamento, dividido,
só atinge o equilíbrio geral da personalidade psicoló- procede por fragmentos isolados, esconde um mundo
gica, e esta ruptura freqüentemente momentânea libe-
ra apenas os complexos afetivos, os esquemas emocio- vazio e negro de "síncopes psíquicas", ou fecha-se no
nais inconscientes, constituídos no decorrer da evolu- silêncio de um corpo cuja própria motricidade é tolhi-
ção individual; da pela catatonia. Sómente continuarão a emergir, co-
mo sinais positivos, as estereotipias, as alucinações, os
esquemas verbais cristalizados em silabas incoerentes,
(6) MONAKOW & MURGUE, Introduction biologtque d la
neurologíe (p. 178) .
e bruscas irrupções afetivas atravessando como meteo-
ros a inércia demente;
34
6) e é na demência que se fecha o ciclo desta dis- senvolvimento humano. Mas a noção abstrata de re-
solução patológica; a demência onde pululam todos os gressão não pode dar conta do fato de que uma pessoa
sinais negativos dos deficits, e onde a dissolução tor- esteja doente, e esteja doente, neste mon:ento, desta
nou-se tão profunda que não há mais instância algu- doença, que suas obsessões ~enh~n:i d~ter~_runado tema,
ma para desinibir; não há mais personalidade, mas que seu delírio comporte tais ren·1i:id.1caGoes, ou que
somente um ser vivo. suas alucinações se extasiem no umv~rso de certas fo_r-
mas visuais. Na perspectiva evolucionista, a doenç~ nao
Mas uma análise dêste tipo não poderia esgotar o tem outro status senão o da virtuaLdade geral; nao fo-
conjunto do fato patológico. Ela é duplamente insufi- ram ainda distinP-uidas
o
nem a causalidade que' a. torna
ciente: necessária nem a que dá a cada quadro cllmco s~ia
coloração singular. Esta necessidade e su2s for~as m-
a) neglig·encia a organização das personalidades dividuais não devem ser exigidas de uma evoluçao sem-
mórbidas nas quais sã.o determinadas as estruturas pre específica, mas da história pessoal do doente.
regressivas; por mais profunda que seja a dissolução É então necessário conduzir a análise aJém; e com-
(excetuando-se o caso da demência), a personalidade pleta; esta dimensão evolut~va, vi~·tual e estrutural da
nunca pode desaparecer completamente; o que a re- doença, pela análise desta dunensao que a torna neces-
gressão da personalidade encontra, não são elementos sária, significativa e histórica.
dispersos - pois êles nunca o foram - nem perso-
nalidades mais arcaicas - pois não há retôrno no
desenvolvimento da personalidade, mas somente na
sucessão das condutas. Por mais simples e inferiores
que sejam, não se podem omitir as organizações atra-
vés das quais um esquizofrênico estrutura seu uni-
verso; o mundo fragmentado que êle descreve está de
acôrdo com sua consciência dispersa, o tempo sem
futuro nem passado no qual êle vive é o reflexo de
sua incapacidade para se projetar num futuro, e para
reconhecer-se num passado; mas êste caos encontra
seu ponto de coerência na estrutura pessoal do doente
.que assegura a unidade vivida de sua consciência e de
seu horizonte. Por mais doente que esteja, êste ponto
de coerência não pode deixar de existir. A ciência da
patologia mental só pode ser a ciência da personali-
dade doente;
b) a .análise regressiva descreve a orientação da
doença, sem determinar seu ponto de origem. Se ela
fôsse apenas regressão, a doença seria como uma vir-
tualidade arrancada, em cada indivíduo, pelo próprio
movimento de sua evolução; a loucura somente seria
uma eventualidade, o tributo sempre exigido pelo de-
V1
36
Capitulo III

A DOENÇA E A
HISTóRIA INDIVIDUfi.L

A evolução psicológica integra o passado ao pre-


sente numa unidade sem conflito, nesta unidade orde-
nada que se define como uma hierarquia de estruturas,
unidade sólida que apenas uma regressão patológica
pode comprometer; a história psicológica, pelo contrá-
rio, ignora uma junção semelhante do antsrior e do
atual; ela os situa um em relação ao outro, colocando
entre êles esta distância que suscita normalmente ten-
são, conflito e contradição. Na evolução, é o passado
que promove o presente e o torna possível; na história,
é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um
sentido e torna-o inteligível. O devir psicológico é, ao
mesmo tempo, evolução e história; o tempo do psi-
quismo deve ser analisado, concomitantemente, segun-
do o anterior e o atual - isto é, em têrmos evolutivos
- mas também segundo o passado e o p:·esente - quer
dizer em têrmos históricos. Quando no final do século
XIX, depois de Darwin e Spencer, ficou-se maravilhado
em descobrir, no seu devir de ser vivo, a verdade do
homem, imaginou-se que era possível escrever a his-
tória em têrmos de evolução, ou ainda confundir am-
bas em benefício da segunda: encontrar-se-ia, aliás, o
mesmo sofisma na sociologia da época. O êrro origi-
nário da. psicanálise, e depois dela da maioria das psi-
cologias genéticas, é, sem dúvida, não ter apreendido
estas duas dimensões irredutíveis da evolução e da
39
história na unidade do devir psicológico (1 ) • Mas o peitas se reforçam; seu ciúme cristalizou-se paradoxal-
gênio de Freud está no fato de ter podido, bastante mente em tôrno da certeza de não ser enganada. En-
cedo, ultrapassar êste horizonte evolucionista, definido quanto o ciúme mórbido, sob sua forma clássica de
pela noção de libido, para aceder à dimensão histórica paranó~a. é uma convicção imp::metrável que vai pro-
do psiquismo humano. curar sua justificação nas formas mais extremas do
raciocínio, tem-se, nesta observação de Freud, o exem-
De fato, na psicologia analítica. é sempre possível plo de um ciúme impulsivo que se contesta incessante-
separar o que vem de uma psicologia da evolução (co- mente seu fundamento, que tenta, a cada instante,
mo os Três ensaios sôbre a sexualidade) e do que re- negar-se, e vive no modo do remorso; eis aí um caso
sulta de uma psicologia da história individual (como muito curioso (e relativamente raro) de ciúme obses-
as Cinco psicanálises e os textos que com elas se rela- sivo.
cionam). Falamos acima da evolução das estruturas
afetivas tal como é detalhada pela tradição psicanalí- Na análise, ·revela-se que esta mulher está apai-
tica. Tomaremos agora da outra vertente da psicaná- xonada por seu genro; mas experimenta tais sentimen-
lise o necessário para definir o que pode ser a doença tos de culpa, que não pode suportar êste desejo, e trans-
mental quando se a encara sob a perspectiva da histó- fere para seu marido o êrro de amar uma pessoa muito
ria individual ( 2 ) . mais jovem. Uma investigação mais profunda mostra,
aliás, que mesmo êste amor pelo genro é ambivalente,
* e que esconde uma hostilidade ciumenta, na qual o
Eis uma observação que Freud cita na Introduction objeto da rivalidade é a filha da doente: no cerne do
à la psychanalyse ( 3 ) : uma mulher de seus cinqüenta fenômeno mórbido encontra-se, pois, uma fixação ho-
anos suspeita que seu marido a engana com sua jovem mossexual com relação à filha.
secretária. Situação e sentimentos de uma extrema
banalidade. Entretanto, êste ciúme tem ressonâncias Metamorfoses, simbolismos, transformação dos
singulares: foi suscitado por uma ·carta anônima; co- sentimentos em seu contrário, disfarces das persona-
nhece-se o seu autor que só agiu por vingança e que gens, transferência de culpa, inversão de um remorso
apenas alegou fatos inexatos; o suieito sabe tudo isto, em acusação, eis todo um conjunto de processos que se
reconhece de bom grado a injustiça de suas acusações denunciam como traços da fabulaçâo infantil. Poder-
com relação a seu marido, fala espontâneamente do se-ia fàcilmente aproximar esta projeção ciumenta da
amor que êle sempre lhe dedicou. E, contudo, seu descrita por Wallon nas Origines du caractere (4): ê1e
ciúme não chega a dissipar-se; quanto mais os fatos cita de Elsa Kohler o exemplo de uma menina de 3 anos
proclamam a fidelidade de seu marido, mais suas sus- que bate na sua companheirinha, e, desfazendo-se em
lágrimas, corre para sua babá para ser consolada por
ter apanhado. Nesta criança, como na obsedada da qual
(1) Em Minha vtda e a 11stcanálise, FREUD cita a influência falávamos, encontram-se as mesmas estruturas de con-
de Darwin na primeira orientação de seu pensamento. duta: a indiferenciação da consciência em si imped~
(2) Só falaremos brevemente da teoria psicanalítica, que deve a distinção entre o agir e o sofrer (bater - apanhar;
ser exposta no seu conjunto por Boutonier numa obra des-
ta mesma coleção. (Refere-se à coleção do original fran-
cês - N. do T.)
(3) lntroduction d la PB11ChanaZ11se, p. 2'70. i (4) Les Orlgtnea du caractere ehez l'enfant, p 217.

40
enganar - ser enganado); a ambivalência dos senti- imaginários de seus primeiros fantasmas; e o mundo
mentos permite, por outro lado, uma espécie de reversi- parece abrir-se para os objetos arcaicos, as personagens
bilidade entre a agressão e a culpa. Tanto num caso reais desvanecerem-se diante dos fantasmas paternos;
como no outro encontram-se os mesmos traços de ar- como acontece com êstes doentes fóbicos que se cho-
caísmo psicológico: flu.dez das condutas afetivas, habi- cam, diante de. cada conduta, contra os mesmos mê-
lidade da estrutura pessoal na oposição eu-outro. Mas dos ameaçadores; a personagem mutiladora do pai, ou
não se trata de confirmar mais uma vez o aspecto a mãe captadora delinea-se sob a imagem estereotipada
regressivo da doença. do animal terrificante, por detrâs do fundo difuso de
angústia que submerge a consciência.
O importante aqui é que esta regressão tem n;;i
doente de Freud um sentido bastante preciso: trata-se Todo êste jôgo de transformações e repetições ma-
para ela de escapar a um sentimento de culpa; .foge nifesta que, nos doentes, o passado só é invocado para
de seu remorso de amar demasiadamente sua filha for- substituir a situação atual; e que só é realizado na me-
çando-se a amar seu genro; e escapa da culpa que êste dida ·em que se trata de irrealizar o presente.
nôvo amor ocasiona, reportando sôbre seu marido, por
uma espécie de projeção em espelho, um amor para- *
lelo ao seu. Os processos infantis de metamorfose do Mas que vantagem pode haver em repetir urna
real têm, então, uma utilidade: constituem uma fuga, crise de angústia? Que sentido há em reencontrar os
uma maneira vantajosa de agir sôbre o real, um modo fantasmas terrificantes da vida infantil, em substituir
mítico de transformação de si mesmo e dos outros. A os distúrbios maiores de uma afetividade ainda mal
regressão não é uma queda natural no passado; é uma regulada pelas formas atuais de atividade? Por que
fuga intencional fora do presente. É mais um recurso fugir do presente, se é para reencontrar tipos de com-
do que um retôrno. Mas só se pode escapar do presente portamento inadaptados?
colocando outra coisa em seu lugar; e o passado que
vem à tona nas condutas patológicas não é o solo ori- Inércia patológica das condutas? Manifestação de
giná.rio ao qual se retorna como a uma pâtria perdida, um princípio de repetição que Freud extrapola na rea-
é o passado fatício e imaginário das subst~ tuições. lidade biológica de um paradoxal "instinto da morte",
que tende ao imóvel, ao idêntico, ao monótono, ao inor-
- Ora uma substituição das formas de compor- gânico, como o instinto da vida tende à mobilidade
tamento: as condutas adultas, desenvolvidas e adapta- sempre nova das hierarquias orgânicas? Isto significa,
das, se desvanecem diante das condutas infantis, sim- sem dúvida, dar aos fatos um nome que, unindo-os,
ples e inadaptadas. Como com a famosa doente de Ja- recusa qualquer forma de explicação. Mas há no tra-
net: à idéia de que seu pai possa ficar doente, ela mani- balho de Freud e da psicanálise com que explicar esta
festa as formas paroxfsticas da emoção infantil (gritos, irrealização do presente de modo diverso que o da repe-
explosão motora, queda), porque recusa a e o n d u ta tição pura e simples do passado.
adaptada que seria encarar o fato de cuidar dêle, pre- O próprio Freud têve oportunidade de analisar um
ver os meios de uma cura lenta, organizar-se uma exis- sintoma em formação. Tratava-se de um garôto de 4
tência de enfermeira;

l
anos, o pequeno Hans (6 ) , que tinha um mêdo fóbico
- ora uma substituição dos próprios objetos: à.a
formas vivas da realidade, o sujeito substitui os temas <5) Ctnco ps1canálises .
\

t
de cavalos. Mêdo ambíguo, já que êle procurava tôdas defende contra seu desejo de morte e dêle afasta a
as oportunidades para vê-los e corria à janela logo que culpa, vivendo-o no modo de um mêdo equivalente ao
ouvia uma carruagem; mas, terrificado, gritava de pa- que sente por si mesmo; receia por seu pai o que teme
vor logo que percebia o cavalo que viera olhar. Mêdo para si; mas seu pai só tem que recear o que êle receia
paradoxal, além disso, já que temia ao mesmo tempo desejar contra êle. Vê-se, então, que o valor expressivo
que o cavalo o mordesse, e que o animal, caindo, mor- da síndrome não é imediato, mas que se constitui atra-
resse. Desejava ou não ver cavalos? Receava por si pró- vés de uma série de mecanismos de defesa. Dois dêstes
prio ou por êles? As duas coisas, sem dúvida. A aná- mecanismos participaram neste caso de fobia: o primei-
lise mostra a criança no ponto nodal de tôdas as situa- ro transformou o mêdo por si mesmo em desejo assas-
ções edipianas: seu pai empenhou-se em prevenir nêle sino contra aquêle que suscita o mêdo; o segundo trans-
uma fixação demasiado forte pela mãe; mas o àgarra- formou êste desejo em mêdo de vê-lo realizar-se.
mento com ela só se tornou mais violento exasperado
ainda mais pelo nascimento de uma irmã, se bem que o A partir dêste exemplo, pode-se então dizer que a
pai tenha sido sempre para o pequeno Hans um obstá- vantagem encontrada pelo doente em irrealizar seu
culo entre sua mãe e êle. É neste momento que se forma presente na sua doenca tem por origem a necessidade
a síndrome. O simbolismo mais elementar do material de se defender contra êste presente. A doença tem como
onírico permite adivinhar, na imagem do cavalo, um conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa
substituto da "imagem" paterna; e na ambigüidade dos através das quais o doente responde à situação na qual
pavores da criança, é fácil reconhecer o desejo da morte se encontra; e é a partir dêste presente, desta situação
do pai. O sintoma mórbido é, de modo imediato, satis- atual que é preciso compreender e dar sentido às regres-
sões evolutivas que surgem nas condutas patológicas·
fação de um desejo; não tendo consciência de que deseja a regressão não é somente uma virtualidade da evolu:
a morte de seu pai, o menino vive esta morte no modo ção, é uma conseqüência da história.
imaginário da morte de um cavalo.
Esta noção de defesa psicológica é capital. É em
Mas êste simbolismo, e aí está o ponto importante, tôrno dela que girou tôda a psicanálise. Investigação do
não é sómente a expressão mítica e figurada da reali- inconsciente, p~squisas dos traumatismos infantis, libe-
dade; desempenha um papel funcional em relação a ração de uma libido suposta por detrãs de todos os
esta realidade. Indubitàvelmente, o mêdo de ser mor- fenômenos da vida afetiva, esclarecimento das pulsões
dido pelo cavalo é uma expressão do receio de uma cas- místicas como o instinto da morte, a psi.canálise foi
tração; êle simboliza a interdição paterna de tôdas as apenas isto durante muito tempo; mas ela tende cada
atividades sexuais. Mas êste mêdo de ser ferido é dupli- vez mais a conduzir sua pesquisa em direção aos meca-
cado pela obsessão de que o cavalo possa cair, ferir-se nismos de defesa, e a admitir finalmente que o sujeito
e morrer: como se a criança se defendesse de seu pró- só reproduz sua história porque responde a uma situa-
prio mêdo, pelo desejo de ver seu pai morrer, e cair ção presente. Anna Freud fêz um inventário dêstes
assim o obstáculo que o separa de sua mãe. Ora, êste mecanismos de defesa (G): além da sublimação consi-
derada como uma conduta normal, ela encontra nove
desejo assassino não aparece imediatamente como tal
no fantasma da fobia: êle só se apresenta aí sob a for-
ma disfarçada de um mêdo; a criança teme tanto a
morte do cavalo quanto seu próprio ferimento. Ela se 16> Anna FREUD. Le moi et les mécanisme.s de defense. p. 39.

i /li:'.
procedimentos com os quais o doente se defende, e que . - deliran~o, ao mesmo tempo perseguido e perse-
definem por suas combinações os diferentes tipos de g~1dor, d~nunciando no coração dos outros seus pró-
neurose, recalque, regressão, formação reativa, isoJa- p_r~os deseJos e ódios,
amando o que quer destruir, iden-
mento, anulação retroativa, projeção, introjeção, auto- tificando-se com o que odeia, o paranóico caracteriza-
referência, transformação no seu contrãrio. se sobretud? p~los mecanismos de projeção, introjeção
e_~uto-refere~?1a. É Freud o primeiro (') a mostrar no
- O histérico usa sobretudo o recalque; êle sub- cmme P~_ran01co o conjunto dêstes processos. Quando
trai ao consciente tôdas as representações sexuais; rom- o paran01co reprova seu companheiro por enganá-lo
pe por medida de proteção a continuidade psicológica, e quando . sistematiza em tôrno desta infidelidade tod~
nestas "síncopes psíquicas" aparecem a inconsciência, um conJunto de interpretações, não faz senão censurar
o esquecimento, a indiferença que constituem seu apa- no outro o que censura em si mesmo; se acusa sua
rente "otimismo"; rompe também a unidade do corpo amante d~ enganá-lo com um amigo, 6 qee êle próprio
para dêle apagar todos os símbolos. e todos os substitu- sente prec sarnente êste desejo; e se defende dêste desejo
tos da sexualidade: dai as anestesias e as paralisias homossexual transformando-o em relação heterosse-
pitiáticas; xual, e_ projetando-o no outro, sob a forma de uma re-
pr_ovaçao de infidelidade .. Mas por uma projeção simé-
- ao contrário, o obsedado defende-se sobretudo tr1c~, que tem, ela ta:'.nbém, o sentido de uma justifi-
pelo "isolamento"; separa a comoÇão conflitual de seu caçao e de Auma catarse, é~e acusará de desejo homos-
contexto; dá-lhe símbolos e expressões sem relação apa- s~xual aquele mesmo que ele deseja, e por uma inver-
rente com seu conteúdo real; e as fôrças em conflito s~? do afeto, vangloríar-se-á de um ódio mítico que jus-
fazem surgir bruscamente condutas pulsionais, rígidas tificam a seus olhos as assiduidades do seu rival. Não
e absurdas, no interior de um comportamento adapta- sou eu q~eA te engano, és tu. que me trais: não sou eu que
do: testemunha disto aquela doente de Freud (7), que o amo, e e}e que me deseJa e me persegue; não tenho
sem saber porque, sem que pudesse justificar-se a si amor por ele, mas sómente ódio: tais são os mecanis-
própria por nenhum sentimento de precaução ou de mos com os .quais um paranóico, defendendo-se de sua
avareza, não podia deixar de anotar todos os números homossexualldade, constitui um delírio de ciúme.
de cédulas que lhe passavam pelas mãos. Mas esta con-
duta, absurda no seu isolamento, tinha um sentido se A it~ração _patológi~a do pasrndo tem. então, agora
fôsse recolocada no seu contexto afetivo: ela correspon- um se~tid~; nao é o peso de um "instinto da morte"
dia ao desejo que a doente tinha experimentado de que a impoe; a regressão faz parte dêstes mecanismos
assegurar-se do amor de um homem confiando-lhe co- de _?ef~~a ou melh~r é o recurso aos conjuntos de pro-
mo garantia uma moeda; mas tôdas as moedas se pare- t~çao, Jª estabelecidos. A forma iterativa do patoló-
cem ... ; se, pelo menos, ela tivesse podido dar-lhe uma gico e. apenas segunda em relação a sua signüicação
cédula que pudesse ser reconhecida pelo seu número ... defensiva.
E ela tinha-se defendido dêste amor que julgava culpado
isolando a conduta de suas justificações sentimentais; *
O problema nodal permanece: de que se defende
o doente quando, criança, instaura formas de proteção

(7)

At::.
Introduction à la psychanal11se, p. 286.

! (8) Cinq psychanalyses: "Le Président Bchreber'', p. 301.


que fará ressurgi.r nas repetições neuróticas de sua vida longe de ser uma soluçã?, é em última ins~ância um
a~ulta? Qual é êste perigo permanente que, tendo sur-
aprofundamento do confllto. Quando uma criança rou-
gido na aurora de sua vida psicológica, delinear-se-á ba para recuperar uma afeição perdida, ~ acalma seus
constantemente no seu universo, ameaça de mil aspec- escrúpulos deixando se surpreender, esta claro que o
tos de um perigo que permanece idêntico? resultado de seu gesto, trazendo a punição desejada,
retirar-lhe-á mais ainda a afeição que êle lamentfl, au-
. Ainda ~este caso a análise de um sintoma pode ser- mentará nêle os desejos captadores que seu roubo sim-
vir-nos de f10 condutor. Uma garôta de 10 anos comete boliza e satisfeito um instante, aumentará conseqüen-
um furto ( 9 ) : apodera-se de uma barra de chocolate temen'.te os sentimentos de culpa. Experiência de frus-
tração e reação de culpa estão assim ligadas, não .como
sob os olh?s ?~ v~nd:_dora que a repreende e ameaça duas formas de conduta divergentes que se partilham
~ontar. a h1s~oria a mae da menina. Roubo cuja forma
o comportamento, mas como a unidade contraditória
impulsiva e madaptada denuncia logo como neurótico que define a dupla polaridad~ .de u~a ,única e .mesma
A hist~ria do sujeito mostra claramente que êste sin~ conàuta. A contradição patolog1ca nao e o confllto. r:or-
toma situa-se no ponto de convergência de duas con- mal · êste devasta do exterior a vida afetiva do su1eito;
dutas: o desejo de ~eav_er · uma afeição materna que susdita nêle condutas opostas, o faz oscilar; provoca
l~~ é recusada, e CUJO s1mbolo é, aqui, como bem fre-
ações, depois ocasiona o remorso;. pode, ex::i-ltar a cm:-
que~temente, o objeto alimentar; e por outro lado, 0
tradicão até à incoerência. Mas a mcoerencia normal e.
conJuI?-to das reações de culpa que seguem o esfôrço a rig,or, diferente do absurdo pa~o!ógico. Êst; é. ani-
agressivo para captar esta afeição. Entre estas duas mado interiormente pela contrad1çao; a coerenc1a do
co:iduta~, o sinton;a vai ap~recer como um compromis-
ciumento para convencer sua mulher de infidelidade é
so, . a_ criança dara curso llvre a suas necessidades de perfeita; perfeita também a coerên<;:ia .do, obsedado nas
afeiçao cometendo o furto, mas liberará suas tendências precauções que toma. Mas esta coerencia e absu;.·C!.a por-
à. culpa, cometendo-o de maneira a que seja surpreen- que ela aprofunda, desenvolvendo-se, a contrad1ç~o que
dida. O comportamento de roubo inábil revela-se como tenta superar; quando uma doente de Freud retira ,de
uma destreza da conduta; sua imperfeição é um estra- seu quarto, numa preocupação obsessiva, todos os pen-
t~g.ema; compromisso entre duas tendências contradi- dulos e relógios cujos tique-taques possam perturbar s.eu
t~nas, e uma maneira de dominar o conflito. o meca-
sono, defende-se, ao mesmo. tempo, contra se~s deseJOS
msmo patológico é, pois, proteção contra um conflito sexuais e os satisfaz miticamente: afasta de s1 todos os
defesa diante da contradição que suscita. ' símbolos da sexualidade, mas também da regularidade
fisiolóp;ica que poderia perturbar ~ maternidade q~e ela
. Mas tod~ conflito não provoca uma reação mór- deseja: ao mesmo tempo que satisfaz seus deseJOS de
b~d~ e ª· tensao que ocasiona não é forçosamente pato- modo mágico, aumenta realmente seus sentimentos de
lo~ica~ : mesmo provàvelmente a trama de tôda vida culpa (1''). Até onde o indivíduo nori;:al . experime~t,a
psicolog~a. .O . conflito que o comprom1sso neurótico contradicão, o doente faz uma expenenc1a contrad1to-
revel~ na~ é. simplesmente contradição externa na si- ria; a experiência de um abre-se sôbre a, contradição,. a
t~1açao ob3et1ya; mas contradição imanente, na qual os do outro fecha-se sôbre ela. Em outros termos: confllto
termos se. misturam de tal forma que o compromisso,

flO) Intro<luction à la ~Jsyclwnalyse, p. 287.


(9) A. FREUD, O tratamento psicanalítico das crianças.
49
48
n~rmal, ou ~mb!g~dade da si_tuação; conflito patoló- canismos de defesa repetindo ao longo de uma vida seus
gico, ou amb1valenc1a da experiência. (11) ritos, precauções, suas manobras rígidas logo que a
angústia ameaça reaparecer.
;\s~im com.o o ~êdo é ~eação ao perigo exterior, a
angustia é a. d~ensao afetiva desta contradição inter- Pode-se, então, dizer, de certo modo, que é atra-
na. Desorgamzaçao total da vida afetiva ela é a expres- vés da angústia que a evolução psicológica transforma-
sá? maior da ambi~alê~cia, a forma na qual se termir{~, se em história individual; de fato, é a angústia que
pois 9ue é a exper1ênc1a vertiginosa da contradição si- unindo o passado e o presente situa-os um em relação
multanea, a prova de um mesmo desejo de vida e ao outro e confere-lhes uma comunidade de sentido; a
m?rte~ ~mor e ó?io,. a apoteose sensível da contradição conduta patológica tinha-nos parecido ter, paradoxal-
p~1colog1ca: ang:ustia da criança que descobre pela mor-
dida que o erotismo da absorção estâ carregado de mente, um conteúdo arcaico e uma inserção significa-
agressividade destrutiva, angústia ainda do melancó-- tiva no presente; é que o presente, prestes a suscitar a
l~c? que, para arrancar da morte o objeto amado, iden-
A
ambivalência e a angústia, provoca o jôgo da proteção
tiflc~-se co:r~ el~, t?rna-se o que êle foi, mas acaba por neurótica; mas esta angústia ameaçadora, e os mecanis-
sentir-se a s1 proprio na morte do outro, e só pode reter mos que a afastam foram há muito tempo fixados na
o outro na sua própria vida reunindo-se a êle na morte história do sujeito. A doença desenvolve-se, então, no es-
Com ,a .angústia estamos no cerne das significaçõe~ tilo de um circulo vicioso: o doente se protege por meio
P.atolog1~as. Sob todos os mecanismos de proteção que de seus atuais mecanismos de defesa contra um passado
singularizam a doença, revela-s~ a angústia e cada tipo cuja presença secreta faz surgir a angústia; mas, pÇ>r
de doença define uma maneira especifica de reagir a
ela: o histérico recalca sua angústia e a oblitera en- outro lado, contra a eventualidade de uma angústia
c:arnando-~ num sintoma corporal; o obsedado ritua- atual, o sujeito se protege apelando para proteções ou-
llza, em. torno de um símbolo, condutas que lhe permi- trora instauradas no decorrer de situações anâlogas. O
tem satISfazer os dois lados de sua ambivalência; quan- doente defende-se com seu presente contra seu passado,
to ao paranóico, êle se justifica mlticamente atribuin- ou protege-se de seu presente com a ajuda de uma his-
do aos outro~ projetiva~ente tod~s _os sentimentos que tória finda? É preciso dizer, sem dúvida, que é neste
trazem em s1 sua própria contrad1çao; distribui para o circulo que reside a essência das condutas patológicas;
outr~ ~s elementos de sua ambivalência, e mascara sua
a_ngustia ,sob as formas de sua agressividade. É a angús- se o doente estã doente, é na medida em que a ligação
tia tambem, como prova psicológica da contradição inte- do presente com o passado não se faz no estilo de uma
rior, 9,Ue ~erv_e de denominador comum e que dâ uma integração progressiva. Certamente, todo indivíduo sen-
signif1caçao unica ao devir psicológico de um indiví- tiu angústia e erigiu condutas de defesa; mas o doente
duo: ela foi experimentada pela primeira vez nas con- vive sua angústia e seus mecanismos de defesa numa
trad~ções da vida in_fantil e na ambivalência que elas circularidade que o faz defender-se contra a angústia
suscitam; e sob seu rmpulso latente erigiram-se os me- com os mecanismos que lhe estão ligados histórica-
mente, que, por isso, exaltam-no ao mãximo, e amea-
çam incessantemente fazê-la ressurgir. Em oposição à
On É esta unidade contraditória da conduta e da vida afeti- história do individuo normal, esta monotonia circular
va que se chama, a partir de Bleuler, "ambivalência". é o traço da história patológica.
50 Sl
A psicologia da evolução, que descreve os sinto- estilo ele experiência que marca os traumatismos, os
mas como condutas arcaicas, deve, entãa, ser comple- mecanismos p.sicoió[;icos que éles desencadeiam, as for-
tada por uma psicologia da gênese que descreve, numa mas ele repetiçüo que êlcs afetam no decorrer elos epi-
história, o sentido atual destas regressões. É preciso sódios patológicos: ela é como um a priori de existência.
encontrar um estilo de coerência psicológica que auto-
rize a compreensão dos fenômenos mórbidos sem tomar A análise da cvolucão situava a cloenca como uma
virtualidade; a história ,individual permite 'encará-la co-
como modêlo de referência estágios descritos à manei- mo um fato do devir psicológico. Mas é preciso agora
ra de fases biológicas. É necessário encontrar o centro compreendê-la na sua necessidade existencial.
das significações psicológicas a partir do qual, históri-
camente, ordenam-se as condutas mórbidas.
Ora, êste posto para o qual convergem as signifi-
cações, acabamos de vê-lo, é a angústia. A história psi-
cológica do doente constitui-se como um conjunto de
condutas significativas, que erigem mecanismos de de-
fesa contra a ambivalência das contradicões afetivas.
Mas na história psicológica o status da angústia é am-
bíguo: é ela que se encontra sob a trama de todos os
episódios patológicos de um sujeito; ela os apavora
incessantemente; mas é porque já se encontrava aí que
êstes episódios sucederam-se, como tentativas para
escapar-lhe; se ela os acompanha, é porque os precedeu.
Por que tal indivíduo só encontra, numa situação, um
conflito superável, e tal outro uma contradição na qual
se _encerra de modo patológico? Por que a mesma ambi-
güidade edipiana será ultrapassada por um, enquanto
que desencadeará no outro a longa seqüência dos me-
canismos patológicos? Eis aí uma forma de necessidade
que a história individual revela como um problema,
mas não chega a justificar. Para que uma contradição
fôsse vivida no modo ansioso da ambivalência, para que,
a propósito de um conflito, um sujeito se encerrasse na
circularidade dos mecanismos patológicos de defesa, foi
preciso que a angústia já estivesse presente, angústia
esta que transformou a ambigüidade de uma situação
em ambivalência das reações. Se a angústia preenche a
história de um indivíduo, é porque ela é seu princípio
e seu fundamento; logo de início, ela define um certo
Capítulo IV

A DOENÇA E A EXIST{:NClA
A aná.Use dos mecanismos da doença pára diante ·
de uma realidade que os ultrapassa, e que os constitui
na sua natureza patológica; por mais exaurida que seja,
ela leva a encarar a angústia como o elemento mórbido
último, e como que o cerne da doença. Mas para com-
preendê-la um nôvo estilo de análise se impõe: forma de
experiência que vai além de suas próprias manifesta-
ções, a angústia não pode nunca deixar-se reduzir por
uma análise de tipo naturalista; consolidada no cerne
da história individual, para dar-lhe, sob suas peripécias,
uma significação única, ela também não pode esgotar-se
numa análise de tipo histórico; mas a história e a natu-
reza· do homem só podem ser compreendidas tendo-a
como referência.
É preciso, agora, colocar-se no centro desta experi-
ência; é somente compreendendo-a do interior que será
possível enquadrar no universo mórbido as estruturas
naturais constituídas pela evolução, e os mecanismos in-
dividuais cristalizados pela história psicológica. Méto-
do que nada deve tirar das "Naturwissenschaften"(*),
de suas análises discursivas e sua causalidade mecânica;
método que não deverá também jamais voltar-se para a
história biográfica, com sua descrição dos encadeamen-
tos sucessivos e seu determinismo em séries. Ao con-
trário, deve apreender os conjuntos como totalidades

<•> Ciências de. natureza. No alemão, no original. (N. do T.)

55
cujos elementos não podem ser dissociados, por mais dis- pode estender-se muito além das fronteiras do normal
persos que estejam na história. Não basta dizer que o e que a compreensão intersubjetiva pode atingir o mun-
mêdo da criança é a causa das fobias no adolescente, do patológico na sua essência.
mas é preciso reencontrar ,sob êste mêdo originário e ,,
sob êstes sintomas mórbidos, o mesmo estilo de angústia Indubitàvelmente, há formas mórbidas que ainda i
que lhes confere sua unidade significativa. A lógica são e permanecerão opacas à compreensão fenomenoló-
discursiva não cabe aqui: ela se embaraça nos labirintos gica. São os derivados diretos dos processos cujo pró-
do delírio e esgota-se seguindo os raciocínios do para- rrio movimento é desconhecido da consciência normal,
nóico. A intuição vai mais depressa e mais adiante como as irrupções na consciência de imagens provocadas
quando consegue restituir a experiência fundamental por intoxicações, como êstes "meteoros psíquicos" que
que domina todos os processos patológicos (por exem- só podem explicar-se por uma ruptura do tempo da
plo, no caso da paranóia, a alteração radical da relação consciência, pelo que Jaspers denomina uma "ataxia psí-
viva com o outro). Ao mesmo tempo que desdobra sob quica"; finalmente são estas impressões que parecem
uma única visão as totalidades essenciais, a intuição re- tomadas de uma matéria sensível totalmente estranha
duz, até extenuá-la, esta distância de que é feito todo a nossa esfera: sentimento de uma influência por cam-
conhecimento objetivo: a análise naturalista encara o pos de fôrças ao mesmo tempo materiais e misteriosa-
doente com o distanciamentõ de um objeto natural; a mente invisíveis, experiência de uma transformação
reflexão histórica guarda-o nesta alteridade que permite aberrante do corpo.
explicar, mas raramente compreender. A intuição, pe-
netrando na consciência mórbida, procura ver o mundo Mas aquém dêstes limites longínquos da compreen-
patológico com os olhos do próprio doente: a verdade são, a partir dos quais abre-se para nós o mundo estra-
que busca não é da ordem da objetividade, mas da in- nho e morto do insano, o universo • órbido perma-
tersubjetividade. nece penetrável. E por esta compreensãó, trata-se de
restituir, ao mesmo tempo, a experiência que o doente
Na medida em que compreender quer dizer, ao mes- tem 4e sua doença (a maneira pela qual êle se vive
mo tempo, reunir, apreender de pronto, e penetrar, esta como indivíduo doente, anormal, ou sofredor), e o uni-
nova reflexão sôbre a doença é, antes de tudo, "com- verso mórbido para o qual se abre esta consciência de
preensão": foi êste o método usado pela psicologia feno- doença, o mundo a que visa e que ao mesmo tempo cons-
menológica. titui. Compreensão da consciência doente, e reconsti-
tuição do seu universo patológico, tais são as duas ta-
Mas será possível compreender tudo? A caracterís- refas de uma fenomenologia da doença mental.
tica da doença mental, em oposição ao comportamento
normal, não é exatamente de poder ser explicada, mas
resistir a qualquer compreensão. O ciúme não é nor-
mal mesmo quando compreendemos seus exagêros, e A consciência que o doente tem de sua doença é
não é mórbido quando "não compreendemos mais" suas rigorosamente original. Nada mais falso, sem dúvida,
reações mesmo as mais elementares? Deve-se a J as- que o mito da loucura, doenc;a que se ignora; o distan-
pers (1) o mérito de ter mostrado que a compreensão ciamento que separa a consciência do médico da do do-
ente não é medido pela distância que separa o conhe-
cimento da doença e sua ignorância. O médico não está
(1) K. JASPERS, Psicopatologia geral. do lado da saúde que detém todo o conhecimento sôbre
r::.7
a doença; e o doente não está do lado da doença que ente e na maneira pela qual êle apreende sua doença
tudo ignora sôbre si mesma, até sua própria existência. que constitui a gama dos sinais histéricos (paralisias
O doente reconhece sua anomalia e dá-lhe, pelo menos, ou anestesias psicógenas), sintomas psicossomáticos, ou
o sentido de uma diferença irredutível que o separa d~
consciência e do universo dos outros. Mas o doente, por
mais lúcido que seja, não tem sôbre seu mal a perspec-
tiva do tnédico; não toma jamais êste distanciamento
especulativo que lhe permitiria apreender a doença co-
l finalmente preocupações hipocondríacas que se encon-
tram tão freqüentemente na psicastenia ou em certas
formas de esquizofrenia. Elementos da doença, estas
formas orgânicas ou pseudo-orgânicas ·são, para o su-
jeito, modos de apreensão da sua doença.
mo um processo objetivo desenrolando-se nêle, sem êle;
a consciência da doença é tomada no interior da do- 2) Na maior parte dos distúrbios obsessivos, em
euça; está consolidada nela, e, no momento em que a muitas paranóias e certas esquizofrenias, o doente reco-
percebe, exprime-a. A maneira pela qual um sujeito nhece que o processo mórbido incorpora-se à sua perso-
aceita ou recusa sua doença, o modo pelo qual a inter- nalidade. Mas de um modo paradoxal: êle reencontra
preta e dá significação a suas formas mais absurdas, na sua história, nos conflitos com seu ambiente, nas
tudo isto constitui uma das dimensões essenciais da do- contradições de sua situação atual, as premissas da do-
ença. Nem destruição inconsciente no interior do pro- ença; descreve sua gênese; mas, ao mesmo tempo, vê
cesso mórbido, nem consciência lúcida, objetiva e desin- no comêço da doença a explosão de uma existência nova
serida dêste processo, mas reconhecimento alusivo, que altera profundamente o sentido de sua vida, com o
percepção difusa de um cenário mórbido no fundo do risco de ameaçá-la. Disso são testemunhas os ciumentos
qual se destacam os temas patológicos, tal é o modo de que justificam sua desconfiança, suas interpretações,
consciência ambígua, cuja reflexão fenomenológica deve suas sistematizações delirantes com uma gênese minu-
analisar as variações (2) . ciosa de suas suspeitas e que parecem diluir seus sinto-
mas ao longo de sua existência; mas reconhecem que
1) A doença pode ser percebida com um_ status de desde tal aventura ou tal ressalto de sua paixão, sua
objetividade que a coloca a uma distância máxima da existência fica inteiramente transformada, sua vida fica
consciência doente. No seu esfôrço para vencê-la e não envenenada e não podem mais suportá-la. Vêem no seu
se reconhecer nela, o doente lhe confere o sentido de ciúme mórbido a verdade mais profunda de sua existên-
um processo acidental e orgânico. É nos limites de seu cia e também a infelicidade mais radical. ~les a norma-
corpo que o doente mantém sua doença: omitindo ou lizam referindo-a a tôda sua vida anterior; mas dela se
negando qualquer alteração da experiência psicológica,
êle só dá importância e, finalmente, só percebe e tema- destacam isolando-a como uma desordem brutal. Apre-
tiza os conteúdos orgânicos da sua experiência. Longe endem a doença como um destino; ela só termina sua
de ocultar sua doença, êle a exibe, mas somente nas suas vida rompendo-a.
formas fisiológicas; justifica-se aí o médico ver, na obje- 3) Esta unidade paradoxal não pode ser sempre
tividade que o doente confere a seus sintomas, a mani- mantida: os elementos mórbidos destacam-se então de ·
festação de distúrbios subjetivos. É esta preeminência seu contexto normal, e, fechando-se sôbre si mesmos,
dos processos orgânicos no campo de consciência do do- constituem um mundo autônomo. Mundo que tem para
o doente muitos sinais da objetividade: é promovido e
(2) Foi nesta perspectiva. que WYRSCH estudou a esquizofre- freqüentado por fôrças exteriores cujo mistério faz com
nia <Dte Person de8 Schizophrenen) . que escapem a qualquer investigação; êle se impõe à
C'.O
evidência, resiste ao esfôrço. As alucinações que o as- sua doença. Está submerso pelo universo mórbido e tem
saltam lhe dão a riqueza sensível do real; o delírio que consciência disto; e, pelo que se pode supor segundo o
une os elementos dêste assegura-lhe uma coerência qua- !elato elos doentes curados, a impressão permanece sem-
se racional. Mas a consciência da doença não se des- pre presente na consciência do sujeito, tanto que a rea-
vanece nesta quase objetividade; permanece presente, lidade só é apreendida disfarçada, caricaturada e me-
pelo menos de maneira marginal: êste mundo de ele- tamorfoseada, no sentido restrito do têrmo, no modo do
','I
mentos alucinatórios e de delírios cristalizados só faz sonho. Séchehaye, que cuidou e curou uma jovem es-
justapor-se ao mundo real. O doente jamais confunde a quizofrênica, recolheu as impressões que sua doente ex-
voz de seu médico e as vozes alucinatórias de seus perse- perimentara no decorrer de seu episódio patológico:
guidores, mesmo quando seu médico não é para êle se- "ter-se-ia dito, narra ela, que minha percepção do mundo
não um perseguidor. O delírio mais consistente só apa- me fazia sentir de um modo mais agudo a estranheza
rece, no máximo, ao doente tão real quanto o próprio das coisas. No silêncio e imensidade, cada objeto delinea-
real; e neste jôgo de duas realidades, nesta ambigüidade va...se nitidamente, destacado no vazio, no ilimitado, se-
teatral, a consciência da doença revela-se como consci- parado dos outros objetos. Por ser sozinho, sem ligação
ência de uma outra realidade. com o que o cercava, êle se punha a existir ... Eu me
sentia rejeitada pelo mundo, fora da vida, espectadora
Esta oposição ao mundo real, ou melhor, a irredutí- de um filme caótico que se desenrolava incessantemente
vel justaposição dêstes dois mundos reais, o doente está ante meus olhos, e do qual não conseguia participar".
pronto para reconhecê-la: um alucinado pergunta a seu E um pouco mais adiante, acrescenta: "As pessoas me
interlocutor se êle não ouve, como êle, as vozes que o aparecem como num sonho; não consigo mais distinguir
perseguem; intima-o a render-se a esta evidência sen- seu caráter particular·· (3). A consciência de doença só
sível; mas se lhe é oposta uma negação ou uma igno- é então um sofrimento moral imenso, diante de um
rância maciça dos fatos que invoca, êle acomoda-se bas- ., mundo reconhecido como tal por referência implícita a
tante bem, e declara que, nestas condições, é o único a uma realidade tornada inacessível.
ouvi-las. Esta singularidade da experiência não inva-
lida para êle a certeza que o acompanha; mas êle reco- A doença mental, quaisquer que sejam suas formas,
nhece, aceitando-o, afirmando-o mesmo, o caráter es- os graus de obnubilação que comporta, implica sempre
tranho e dolorosamente singular de seu universo; admi- numa consciência da doença; o universo mórbido não é
tindo dois mundos, adaptando-se tanto ao primeiro jamais um absoluto no qual se aboliriam tôdas as refe-
quanto ao segundo, êle manifesta no fundo de sua con- rências ao normal; pelo contrário, a consciência doente
duta, uma consciência específica da sua doença. desdobra-se sempre, por si mesma, numa dupla referên-
cia, quer ao normal e ao patológico, quer ao familiar e
4) Finalmente, nas formas últimas àa esquizofre- ao estranho, seja ainda ao singular e ao universal, seja,
nia e nos estados de demência, o doente é absorvido pelo finalmente, à vigília e ao onirismo.
mundo da doença. Apreende, entretanto, o universo * ~:: *
que deixou como uma realidade longínqua e velada. Mas esta consciência doente não se resume na cons-
Nesta paisagem crepuscular, na qual as experiências

l
ciência que ela tem da sua doença; dirige-se também a
mais reais - os acontecimentos, as palavras ouvidas, o
ambiente - tomam um aspecto fantasmático, parece
que o doente conserva ainda um sentimento oceânico da (3) SÉCHEHAYE. Jozmzal à'une schizophrene, p. 50 e 56.

c.n 1'
um mundo patológico, cujas estruturas teriam de ser saltos, ora por repetições. :t sôbre o fundo da tempora-
estudadas agora, completando assim a análise noética lidade assim perturbada que se deve compreender a
pela análise noemática. ''fuga das idéias", com sua alternância característica de
repetições temáticas, e de associações descontinuas e
1) Minkowski estudou as perturbações nas formas ilógicas . O tempo do esquizofrênico é, êle também, irre-
temporais do mundo mórbido. Analisou, em particular, gular, mas é rompido pela iminência do Repentino e do
um caso de delírio paranóide, no qual o doente sente-se Terrificante, à qual o doente só escapa através do mito
ameaçado por catástrofes que nenhuma precaução pode àe uma eternidade vazia; a temporalidade do esquizo-
conjurar: a cada instante a iminência renova-se, e o frênico se divide, assim, entre o tempo fragmentado da
tato de que a infelicidade apreendida não se tenha ja- angústia e a eternidade, sem forma sem conteúdo, do
mais produzido não pode provar que não se produzirá delírio (5) .
durante os instantes seguintes. Ora, a catástrofe pela
qual êle se sente ameaçado é de perecer esmagado por 2) O espaço, como estrutura do mundo vivido, po-
tudÓ o que no mundo é resíduo, cadáver, detrito. Entre de prestar-se· às mesmas análises .
êste conteúdo do delírio e o tema ansioso da iminência
catastrófica, é fácil ver uma relação significativa: o As vêzes, as distâncias desmoronam-se, como no
pavor dos "restos" manifesta, no sujeito, uma incapa- caso dos delirantes que reconhecem aqui pessoas que sa-
cidade de conceber como uma coisa pode desaparecer, bem estar em outra parte, ou os alucinados que ouvem
como o que não é mais pode não permanecer ainda. suas vozes, não no espaço objetivo no qual situam-se as
A acumulação do passado não pode mais, para êle, li- fontes sonoras, mag num espaço mítico, numa espécie
quidar-se; e, correlativamente, o passádo e o presente de quase-espaço onde os eixos de referência são fluidos
não conseguem antecipar o futuro; nenhuma segurança e móveis: êles ouvem aqui perto dêles, em volta dêles,
adquirida pode servir de garantia contra as ameaças que uêles, as vozes dos perseguidores, que êles situam, ao
êle contém; no futuro, tudo é absurdamente possível. mesmo tempo, para além das paredes, bem para lá da
No seu entrelaçamento delirante, êstes dois temas reve- cidade e das fronteiras. Ao espaço transparente no qual
lam assim uma perturbação maior na temporalidade; o cada objeto tem seu lugar geográfico, e onde as perspec-
tempo não se projeta mais nem passa; o passado se tivas articulam-se, substitui-se um espaço opaco no qual
acumula; e o único futuro que se abre só pode conter os objetos misturam-se, aproximam-se e distanciam-se
como promessa o esmagamento do presente pela massa numa mobilidade imediata, deslocam.:.se sem movimento
incessantemente mais pesada do passado (4) . e ligam-se finalmente num horizonte sem perspectiva;
romo diz Minkowski, "o espaço claro" esfuma-se num
Cada distúrbio comporta assim uma alteração espe- "espaço obscuro", o do mêdo e da noite, ou antes, mis-
cifica do tempo vivido. Binswanger, por exemplo, defi- turam-se no universo mórbido, ao invés de se distribuí-
niu, na ldeeuflucht, a perturbação temporal da existên- rem, como o fazem no mundo normal (6) .
cia maníaca: o tempo aí torna-se, por fragmentação,
momentâneo; e, sem abertura sôbre o passado e o fu-:
turo, êle turbilhona sôbre si próprio, procedendo ora por
(5) BINSWANGER, .Der Fali Jurg Zund, Schweizer Archiv. F.
Neur., 1946.

(4) MINKOWSKI, O tempo vivido. (6) MINKOWSKI, O tempo vivido.

1
tranheza diante da linguagem, o sistema de expressão,
Em outros casos, o espaço torna-se insular e rígido. o corpo do outro; dificuldade em aceder até à certeza
Os objetos perdem o índice de inserção que marca tam- da existência do outro; pêso e distanciamento de um
bém a possibilidade de utilizá-los; oferecem-se numa p~e­ universo inter-humano no qual as coisas expressas con-
nitude singular que os destaca de seu contexto, e afir- gelam-se, onde as significações têm a indiferença maci-
mam-se no seu isolamento, sem vínculo real nem virtual ça das coisas e os símbolos adquirem a gravidade dos
com os outros objetos; as relações instrumentais desa- enigmas: é o mundo rígido do psicastênico e da maior
pareceram. Roland Kuhn estudou, neste sentido, os de- parte dos esquizofrênicos. A doente de Séchehaye des-
lírios .de "limites" em certos esquizofrênicos: a impor- creve assim um de seus primeiros sentimentos de irrea-
tância dada aos limites, às fronteiras, aos muros, a tudo
o que enclausura, fecha e protege é função da ausência lidade: '"Encontrava-me no Patronato; vi subitamente a
de unidade interna na disposição das coisas; é na me- sala tornar-se imensa, como iluminada por uma luz ter-
dida em que estas não "se mantêm" ligadas que é pre- rível ... Os alunos e as professôras pareciam marionetes
ciso protegê-las do exterior e i~antê-las numa unidade que evoluíam sem razão, sem objetivo. . . Ouvia as con-
que não lhes é natural. Os obJetos perderam sua coe- versas, mas não apreendia as palavras. As vozes pare-
são e o espaço, sua coerência; como no caso do d?ente ciam-me metálicas, sem timbre e sem calor. Volta e
que desenhava inces~8:nte:r:.1en~e .ºplano, de um~ cidade meia uma palavra destacava-se do conjunto. Ela se re-
fantástica cujas fortif1caçoes mfm1tas so protegiam um petia' no meu cérebro, como ressaltada, absurda". A
aglomerado de edifícios sem significação. O sentido da criança tem mêdo, a monitora intervém,. tranqüiliza-a:
"utensilidade'' desapareceu do espaço; o mundo dos "Ela me sorri gentilmente. . . Mas seu sorriso em vez de
"Zuhandenen" (*), como diria Heidegger, não é mais, me tranqüilizar, aumenta ainda mais minha angústia
para o doente, senão um mundo dos '·Vorhande- e minha confusão, pois percebo seus dentes brancos e
nen" (**) . regulares. 1!:stes dentes cintilavam sob o brilho da luz,
e, logo, embora sempre semelhantes a si próprios,
3) Não só o meio espaço-temporal, o "Umwelt" ocuparam tôda a minha visão, como se tôda a sala só
(***) é perturbado, nas suas estruturas existei:ciais, fôsse .dentes, sob uma luz implacável (7) ".
pela doença mas também o "Mitwelt" (****), o umverso E no outro pólo da patologia, há o mundo infinita-
social e cultural. O outro deixa de ser para o doente o mente fluido do delírio alucinatório: tumulto sempre re-
parceiro de um diálogo eA o c~operador de uma. tar~fa; começado por pseudo-reconhecimentos, no qual cada
não mais se apresenta a ele sobre o fundo das impllca- um dos outros não é um outrc, mas o Outro maior, in-
ções sociais, perde sua realidade de "socius", e torna-se, cessantemente reencontrado, incessantemente procura-
neste universo despopulado, o Estranho. É a esta alte- do e achado; presença única de mil rostos do homem
ração radical que se refere a síndrome tão freqüente da Odiado que engana e que mata, da mulher devoradora
"desrealização simbólica do outro": sentimento de es- que trama a grande conjuração da morte. Cada rosto,
estranho ou familiar, é somente uma máscara, cada pro-
(*) "Zuhandenen": "utensílios"; '<**) "Vorhandenen": "o
pósito, claro ou obscuro, esconde somente um s~~tido: a
simplesmente dado"; ( * * ") "Umwelt": "~undo ,, cir- · máscara do perseguidor e o sentido da persegwçao.
cundante"· (****) "Mitwelt": "mundo part1c1pante -:--
Em alemão no original - têrmos técnicos di:t filos~f1a
heideggeriana, tradução de Emmanuel Carneiro Leao.
(N. do T .) (7)
,· .
Joumal à'une schtzophrene, p. 6 e 7.

65
Máscaras da psicastenia, máscaras do delírio aluci- Binswanger observou uma doente, Ellen West, em
natório: é na monotonia das primeiras que começa a se quem se pode e!lcontrar esta perturbação do Eigenwelt,
perder a variedade dos rostos humanos; é sob os perfis e em quem se ve, ao mesmo tempo, desfazerem-se as for-
inumeráveis das segundas que se encontra, única, está- mas de inserção no mundo. Ela não reconhece mais êste
vel e carregada de um sentido implacável, a experiência modo de existência que, no interior do mundo, se orienta
delirante do alucinado. e se move segundo os caminhos virtuais que são traça-
4) Finalmente, a doença pode atingir o homem na dos no espaço; não sabe mais estar "em equilíbrio no
esfera individual onde se desdobra a experiência de seu chão";. el3; é !oma~a entre o desejo de voar, de planar
corpo próprio. O corpo deixa, então, de ser êste centro numa JUb1laçao eterea, e a obsessão de ficar cativa de
de referência em tôrno do qual os caminhos .ao mundo uma. ~erra lamacenta que a oprima e paralise. Entre a
abrem suas possibilidades. Ao mesmo tempo a presença rnob1lldade alegremente instantânea e a angústia que
do corpo no horizonte da consciência altera-se. As vê- enterra, o espaço sólido e firme do movimento corporal
zes, espessa-se até tornar-se como pêso e imobilidade de desapareceu; o mundo tornou-se "silencioso glacial e
m~rt.º " ; a d oente sonha seu corpo, como uma , fluiaez
uma coisa; tende a uma objetividade na qual a consci-
ência não pode mais reconhecer seu corpo; o sujeito não grac1l e etérea, cuja inconsistência libera de tôda mate-
~e sente apenas como cadáver ou máquina inerte, cujos
rialidade. É sôbre êste fundo que se manifesta a psicose
impulsos emanam de uma exterioridade misteriosa. Eis e q~e ~e ~estacam os ~intomas (mêdo de engordar, ano-
r~xia, ~nd~ferença afetiva) que a levarão, por uma evolu-
o que declarava uma doente, observada por Minkowski: çao morb1da de mais de treze anos, ao suicídio (9).
"Um dia em cada dois, meu corpo fica duro como ma-
deira. Hoje, meu corpo está espêsso como esta parede;
ontem, a todo instante, tinha a impressão de que meu
corpo era água preta, mais preta que esta chaminé ... Poder-se-ia ser tentado a reduzir estas análises a
Tudo é negro em mim, de um negro espumoso como análises históricas, e a perguntar-se se o que chamamos
sujo ... Meus dentes são de uma espessura, como' o lado o universo do doente não é apenas um corte arbitrário
de uma gaveta ... Dir-se-ia que meu corpo é espêsso em sua história, ou, pelo menos, o estado último no qual
colado e deslizante como êste soalho (8)." ' culmina seu devir. De fato, se Rudolf, um doente de Ro-
As vêzes, também a consciência plena do corpo, com land Kuhn, ficou durante muitas horas junto ao cadá-
~e~ de s~a mã~, q.u:ind~ ainda era apena~ uma criança, ·
sua espacialidade e esta densidade onde se inserem as e ignorava a s1g~1f1caçao da morte, não e esta a causa
experiências proprioceptivas, acaba por extenuar-se até d~ sua doença; estes longos contatos com um cadáver
só ser consciência de uma vida incorporal, e crença deli- nao puderam entrar em comunidade de sentido com
rante numa existência imortal; o mundo do corpo pró- uma necrofilia ulterior e finalmente uma tentativa de
prio, o "Eigenwelt", parece esvaziado de seu conteúdo, assassinato, que na medida em que se constituiu um
e esta vida, que não é mais do que consciência de imor- mundo onde a.morte, o cadáver, o corpo rígido e frio, 0
talidade, esgota-se numa morte lenta que ela prepara º!har gla?co tmham um status e um sentido; foi pre-
pela recusa de qualquer alimento, de qualquer cuidado ClSO que este mundo da morte e da noite tivesse um Iu-
corporal, de qualquer preocupação material.
( li) BINSWANGER, Der Fall Ellen West, Archiv. Schw. f.
(8) ln AJURIAGUERRA e HECAEN, As alucinações corporais. Neur., 1943.

t~7
gar privilegiado em face do mundo do dia e da vida, e sem coerência, vê-se a marca de uma destruição que
que a passagem de um a outro, que provocara nêle ou- abandona o sujeito ao mundo como a um destino ex-
trora tanto pasmo e tantas angústias, o fascine ainda terior. O processo patológico é, como diz Binswanger,
ao ponto de que queira forçá-lo pelo contato com cadá- l<m ''Verweltlichung''. Nesta unidade contraditória de
veres e pelo assassinato de uma mulher (10). o mundo um mundo privado e de um abandono à inautenticidade
mórbido não é explicado pela causalidade histórica (re- do mundo, está o cerne da doença. ou, para empregar
firo-me à da história psicológica), mas esta só é possível um outro vocabulário, a doença é, ao mesmo tempo,
porque êste mundo existe: é êle que promove o vínculo retirada da pior das subjetividades, e queda na pior das
do efeito e da causa, do anterior e do ulterior. objetividades.

Mas ser!a preciso interrogar-se sôbre esta noção de Mas seria, talvez, tocar aí num dos paradoxos da
"mundo mórbido" e sôbre o que o distingue do universo doença mental que forçam a novas formas de análise:
constituído pelo homem normal. Sem dúvida, a análise se esta subjetividade do insano é, ao mesmo tempo,
fenomenoló~ica recusa uma distinção a prioi:i entre o
·.:ocação e abandono no mundo, não é ao próprio mun-
normal e o patológico: "A validade das descrições feno- do que seria preciso perguntar o segrêdo de seu status
menológicas não está limitada por um julgamento sô- enigmático? Não há na doença todo um núcleo de sig-
bre o normal e o anormal (11)." Mas o mórbido mani- nificações que releva do domínio no qual ela apareceu
festa-se no decorrer da investigação, como caráter fun- - e inicialmente o simples fato de que ela aí é caracte-
damental dêste universo. É na realidade, um mundo rizada como doenc;:o~. '?
cujas formas imaginárias, e até oníricas, sua opacidade
a tôdas as perspectivas da intersubjetividade, demin-
ciam como um "mundo privado", como um idionkós-
mon; e ;Binswanger lembra a propósito da loucura, o
dito de Heráclito a propósito do sono: "Os que estão
acordados têm um mundo único e comum (ena kai koi-
non kósmon) ; o que dorme volta-se para seu próprio
mundo (eis idion apostrefe sthai)" (12). Mas esta exis-
tê~cia m?rbida é marcada, ao mesmo tempo, por um
estilo mmto particular de abandono ao mundo: perden-
do as significações do universo, perdendo sua tempora-
lidade fundamental,· o sujeito aliena esta existência no
mundo onde resplandece sua liberdade; não podendo
deter-lhe o sentido, abandona-se aos acontecimentos·
neste tempo fragmentado e sem futuro, neste espaç~

(10) R. KUHN, Mordversuch eines depressiven Fetichisten,


Monatschrift für Psychiatrie, 1948.
(11) R. KUHN, tbid.
(12) BINSWANOER, Traum und Exlstenz, Neue Schwetzer
Runschau, 1930.
l .\

SEGUNDA PARTE
.,
',
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LOUCURA E CULTURA ':! .


/.1.
,/ '!;

lrrfr;dução
As análises precedentes fixaram as coordenadas
com as quais as psicologias podem situar o fato patoló-
gico. Mas se mostraram as formas de aparecimento da
doença, não puderam demonstrar-lhe as condições de
surgimento. O êrro seria crer que a evolução orgânica,
a história psicológica, ou a situação do homem no mun-
do pudessem revelar estas condições. Sem dúvida, é ne-
las que a doença se manifesta, é nelas que se revelam
1 suas modalidades, suas formas de expressão, seu estilo.
Mas é noutra parte que o desvio patológico tem, como
tal, suas raízes. ~--·

Boutroux dizia, no seu vocabulário, que as leis psi-


cológicas, mesmo as mais gerais, são relativas a uma
"fase da humanidade". Um fato tornou-se, há muito
tempo, o lugar comum da sociologia e da patologia
mental: a doença só tem realidade e valor de doença
no interior de uma cultura que a reconhece como tal.
A doente de Janet que tinha visões e apresentava estig-
mas, teria sido, sob outras condições, uma mística visio-
nária e taumaturga. O obsedado, que se move no uni-
verso contagioso das simpatias, parece, nos seus gestos
propiciatórios, reencontrar as práticas do mágico primi-
1 •
tivo: os ritos com que cerca o objeto de sua obsessão ad-
quirem um sentido, para nós, mórbido nesta crença no
.. tabu com-cuja pótência equívoca o primitivo quer, nor-
r '71
malmente, conciliar-se e assegurar-se a cumplicidade des intelectuais levavam-no a ser encarado como um
perigosamente favorável. irresponsável, um incompetente e finalmente um do-
ente." "Assim como são favorecidos", diz Benedict,
Entretanto esta relatividade do fato mórbido não é "aquêles cujos reflexos naturais são mais próximos dês-
imediatamente ' clara. Durkheim pensava explicá-la te comportamento que caracteriza sua. sociedade, encon-
com um1 concepção, ao mesmo tempo, evol~cionista e tram-se desorientados aquêles cujos reflexos naturais
\estatística: considerar-se-iam como patológicos, numa caem neste arco de comportamento que não existe na
1sociedade os fenômenos que, afastando-se da média,
sua civilização". A concepção de Durkheim e· a dos psi-
marcassem as etapas superadas de uma evolução ante- cólogos americanos têm em comum o fato de que a do-
rior, ou anunciassem as próximas fases de um desen- ença é encarada sob um aspecto ao mesmo tempo nega-
volvimento que mal se esboça. "Se se concorda em de- tivo e virtual. Negativo, já que é definida em relação a
nominar tipo médio o ser esquemático que se constitui- uma média, a uma norma, a um "pattern'', e que neste
ria reunindo num só todo, numa espécie de universali- afastamento reside tôda a essência do patológico: a do-
dade abstrata os caracteres mais freqüentes da espé- ença seria marginal por natureza, e relativa a uma cul-
be ... , poder-se-á dizer que qualquer afastamento dês te tllra somente na medida em que é uma conduta que a
1
plano da saúde é um fenômeno mórbido"; e completa ela não se integra. Virtual, já que o conteúdo da doença
' êste ponto de vista estatístico, acrescentando: "Um fato \ é definido pelas possibilidades, em si mesmas não mór-
social só pode ser dito normal para uma determinada .bidas, que nela se manifestam: para Durkheim, é a vir~
sociedade em relação a uma fase igualmente determi- tualidade estatística de um desvio em relação à média,
nada do seu desenvolvimento" (Regras do método socio- para Benedict, a virtualidade antropológica da essência
lógico). Apesar das implicações antropológicas muito humana; nas duas análises, a doença ocorre entre as
diferentes, a concepção dos psicólogos americanos não i:irtualidade que servem de margem à realidade cultural
está afastada da perspectiva durkheimiana. Cada cul- de um grupo social.
tura segundo Ruth Benedict (1), elegeria algumas das
virt~alidades que formam a constelação antropológica É deixar de lado, sem dúvida, o t{Ue há de positivo
do homem: tal cultura, a dos Kwakiutl, por exemplo, e de real. ria. doença, .talcomo se apresenta numa socie-
toma por tema a exaltação do eu individual, enquanto dade. Há, de fato, doenças que são reconhecidas como
que a dos Zuni o exclui radicalmente; a agressão é uma tais, e que têm, no interior de um grupo, status e fun- ·.1
conduta privilegiada em Dobu, reprimida entre os Pue- . ção; o patológico não é mais então, em relação ao tipo
blo. :Oaí cada cultura formará da doença uma imagem cultural, um simples desvio; é um dos elementos e urna
J das manifestações dêste. tipo. Deixemos de lado o caso
cujo perfil é delineado pelo conjunto das virtualidades
antropológicas que ela neglig~ncia ou :eprime. "Lowi~, célebre dos Berdache, entre os Dakota da América do
estudando os índios Crow, cita um deles que possma Norte; êstes homossexuais têm um status religioso de
um conhecimento excepcional das formas culturais de sacerdotes e mágicos, um papel econômico de artesãos
sua tribo· mas era incapaz de enfrentar um perigo fí- e criadores, ligados à particularidades de sua conduta
sico· e n~sta forma de cultura que só oferece possibili- sexual. Mas nada indica que haja a seu respeito, no
dad~ e valoriza apenas condutas agressivas, suas virtu- grupo, uma consciência clara da doença. Pelo contrá-
'. rio, encontra-se esta consciência ligada a instituições so- ·
ciais muito precisas. Eis, segundo Callaway, como se
( 1) Padrões de êultura. chega a xamã. entre os Zulu: "no comêr.o", aquêi.e que
72
-------- -- -------~---------

está em vias de tornar-se xamã "tem aparência robusta,


mas com o tempo torna-se cada vez mais delicado ... ;
não pára de se queixar. . . Sonha com tôdas as espécies
de coisas e seu corpo está enlameado ... Tem convulsões
que cessam durante algum tempo quando é borrifado Capitulo V')
com água. A primeira falta de atenções, verte lágrimas,
em seguida. chora ruidosamente. Um homem prestes a /'
/
tornar-se adivinho é uma grande causa de distúrbios". .,...,,,"'"'"'

Seria, então, falso dizer que as condutas características A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA


do xamã são virtualidades reconhecidas e validadas en- DA DOENÇA MENTAL ,
tre os Zulu, qualificadas, ao contrário, como hipocon- 1 ,
dria ou histeria entre os Europeus. Aqui, não só a cons-
ciência de doença não é exclusiva do papel social, mas Foi numa época relativamente recente que o Oci-
ainda o requer. A doença, reconhecida como tal, vê-se ;~ dente concedeu à loucura um status de doença mental.
conferir um status pelo grupo que a denuncia. Disso, Afirmou-se, afirmou-se até demais que o louco era
encontrar-se-iam também outros exemplos no papel de- considerado até o advento de uma medicina positiva co-
sempenhado, ainda. recentemente, nas nossas socieda- mo um ;'possuído". E tódas as histórias da psiqu_ia~ria
des, pelo idiota da aldeia e pelos epiléticos. até então quiseram mostrar no louco da Idade Media e
do Renascimento um doente ignorado, prêso no interior
Se Durkheim e os psicólogos americanos fizeram do da rêde rigorosa de significações religiosas e mágicas.
desvio e do afastamento a própria natureza da doença, Jissim, teria sido necessário esperar a objetividade de
é, sem dúvida, por uma ilusão cultural que lhes é co- um olhar médico sereno e finalmente científico para
r.mm: nossa socie.c!_ade não quer reconhecer-se no doente c!escobrir a deterioração da_ natureza lá onde se decifra-
que ela persegue. ou que encerra; n~ instante mesmo ~rp vam apenas perversões sobrenaturais. Interpretação
que ela diagnostica a doença, exclm o doente. As anall- que repousa num êrro de fato: que ?S l~ucos eram con-
seã" de nossos psicólogos e sociólogos, que fazem do do· siderados possuídos; num preconceito mexato: que _as
ente um desviado e que procuram a origem do mórbido pessoas definidas como possuídas eram doentes mentais;
no anormal, são, então, antes de tudo, uma projeção de finalmente, num êrro de raciocínio: deduz-se que se os
temas culturais. ~~ realidade. uma sociedade se exI?ri- possuídos eram na verdade loucos, os loacos eram trata-
me ositiva ent nas doenças ais anifestam dos realmente como possuídos. De fato, o complexo pr.o-
seus membros; e isto, qua er que seja o status que e a blema da possessão não releva ~ir~t~rnente. d_~ uma. h~s­
ãa a estas formas mórbidas: que os coloca no centro de tória da loucura, mas de uma historia das ideias rel1g10-
sua vida religiosa como é freqüentemente o caso dos pri- sas. Por duas vêzes. antes do século XIX, a medicina
mitivos, ou que procura expatriá-los si~uando-os no ex- interferiu no problema da possessão: uma primeira vez
terior da vida social, como faz nossa cultura. de J. Weyçr a Duncan (de 1560 a 1640), e isto a p~dido
Duas questões se colocam então: como chegou nos- dos Parlamentos, dos govêrnos ou mesmo da hierar-
sa cultura a dar à doença o sentido do desvio, e ao quia católica, C?~tra certas or~~n~ monásti,c3:s que pros·
1 •
doente um status que o exclui? E como, apesar disso, ( seguiam as praticas da Inqws1çao; os med1cos foram,
; nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas então encarregados de mostrar que todos os pactos e
quais recusa reconhecer-se? ritos diabólicos podiam ser explicados pelos podêres de

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uma imaginação desregrada; uma segunda vez, entre para manter os 1uriosos). Mas isto era :;omente um se-
1680 e 1740, a pedido de tôda a Igreja católica e do tor restrito, limitado às formas da loucura que se julga-
govêrno contra a explosão de misticismo protestante e vam curáveis (frenesis, episódios de violencia, ou acessos
jansenista, desencadeada pelas perseguições do final do '·melancóI5cos .. ). De todos os lados, a loucura tinha
reinado de Luís XIV; os médicos foram então convoca- uma grande extensão, mas sern suporte médico.
dos pelas autoridades eclesiásticas para mostrar que to- ~ Esta extensão, entretanto, não provém de medidas
dos os fenômenos dú êxtase, da inspiração, do profetis- estáveis; varia com as épocas, pelo menos em suas di-
mo, da possessão pelo Espírito-Santo eram devidos só- mensões visíveis: ora permanece impiícita e como à tona
mente (no caso dos heréticos, é claro) aos movimentos ou, ao contrário aparece, emerge largamente e integra~
violentos dos humores ou dos espíritos. A anexação de se sem dificuldade a tõda a paisagem cultural. O fim
todos êstes fenômenos religiosos ou parareligiosos pela do século XV é certamente mna destas épocas em que
medicina é, assim, apenas um episódio lateral em rela- a loucura renova-se com os podêres essenciais da lin..,
ção ao grande trabalho que definiu a doença mental; e guagem. ) .. s últimas manifestações da idade gótica fo-
sobretudo, ela não é resultante de um esfôrco essencial ram, alternadamente e num movimento contínuo do-
para o desenvolvimento da medicina; é a própria expe- minadas pt:io pavor da morte e da loucura. A d~nça
riência religiosa que, para se apoiar, apelou, e de modo :uacabra representada no cemitério dos Inocentes ao
f ecundário, para a confirmação e a crítica médicas. Es- Triunfo da morte cantado nos muros do Campo S~nto
tava escrito que uma critica semelhante seria, mais tar- de Pisa, sucedem as inumeráveis danças e festas dos
de, feita pela medicina a todos os fenômenos religiosos, Loucos que a Europa celebrará de tão bom grado du-
e voltada, às custas da Igreja católica que a tinha, en- r~mte todo o Re:iascimento. Há as festas populares em
tretanto, solicitado, contra tôda a experiência cristã: torno dos espetaculas dados pelas "associações de lou-
pi:ira mostrar ao mesmo tempo, e de modo paradoxal, cos··, como o Navio Azul em Flandres; há tôda uma ico-
que a religião depende dos podêres fantásticos da neu- nografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breu-
rose, e que aquêles que a religião condenou eram víti- ghel e a i'Harg-ot a Louca; há também os textos sábios,
mas, concomitantemente, de sua religião e de sua neu- as obrns de filosofia ou crítica moral, como a Stultifera
rose. Mas esta reviravolta data apenas do século XIX, Navis de Brant ou o Elogio da loucura de Erasmo. Have-
isto é, de uma época em que a definição da doença men- rá, finalrr1ente, toda a literatura da loucura: as cenas
tal em estilo positivista já tinha sido alcançada. de demência no teatro elizabetümo e no teatro fran-
cés pré-clássico participam da arquitetura dramática,
De fato, antes do século XIX, a experiência da lou- como os sonho3 e, um pouco mais tarde, as cenas de
cura no mundo ocidental era bastante polimorfa; e sua confissão: elas conduzem o drama da ilusão à verdade
confiscação na nossa época no conceito de ;'doença" não da falsa rn:ução ao verdadeiro desfêcho. São um~
deve iludir-nos a respeito de sua exuberância originária. das molas essenciais dêste teatro barroco, como certos
Sem dúvida, desde a medicina grega, uma certa parte no romances que lhes são contemporâneos: as grandes
domínio da loucura já estava ocupada pelas noções de aventuras das narrativas de cavalaria tornam-se volun-
patologia e as práticas que a ela se relacionam. Sempre tàriamente as extravagâncias de espíritos que não mais
houve, no Ocidente, curas médicas da loucura e os hos- dominam suas quimeras. Shakespeare e Cervantes no
1• pitais da Idade Média comportavam, na sua maior par- fim elo Renascimento são testemunhas do grande pres-
te, como o Hôtel-Dieu de Paris, leitos reservados aos lou- tígio desta loucura cujo reinado próximo tinha sido
Ci)S (freqüentemente feitoo fechados. espécies de jaulas 1 anunciado, cem anos antes, por Brant e Bosch. ,, r
1
Isto não quer dizer que o Renascimento não cuidou Estas casas não têm vocação médi_ca_a,lgl1ma; não
dos loucos. Pelo contrário, foi no século XV que se viu se é admitido aí para ser tratado, mas porque iião se
abrirem-se na Espanha inicialmente (em Saragossa), pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade. O
depois na Itália, os primeiros estabelecimentos reserva- internamento que o louco, juntamente com müifos ou-
dos aos loucos. São aí submetidos a um tratamento, tros, recebe na época clássica não põe em questão as
sem dúvida, em grande parte inspirado da niéàfoíria relações da loucura com a doença, mas as relações da
árabe. Mas estas práticas são localizadas. A loucura~ sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou
no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela não na conduta dos indivíduos. O internamento é, sem
circula, ~ª9__parte do cenário e da linguagem comuns, dúvida, uma medida de assistência; as numerosas fun-
é para cada um uma experiência cotidiana que se pro- <la~ões de que êle se beneficia provam-no. Mas é um
cura mais exaltar do que dominar. Há na França, no sistema cujo ideal seria estar inteiramente fechado sô-
comêço do século XVII, loucos célebres com os quais o bre si mesmo: no Hospital geral, como nas Workhouses,
público, e o público culto, gosta de. se divertir; alguns ;1a Inglaterra, que lhe são mais ou menos contemporâ-
como Bluet d' Arbere escrevem livros que são publicados neas, reina o trabalho forçaqo; fia-se, tece-se, fabri-
e lidos como obras de loucura. Até cêrca de 1650, a cul:- cam-se objetos diversos que são lançados a preço baixo
tura ocidental foi estranhamente hospitaleira a esfas no mercado para que o lucro permita ao hospital fun-
formas de experiência . cionar. Mas a obrigação do trabalho tem também um
** :~
papel de sanções e de (!O_~t_r§l_~J11QJ:al. É que, 110 mun-
do burguês em processo de constituíÇão, um vício maiõr,
Nos meados do século XY.U, brusca mudança; o o pecado POL~Ç~lêÍÍçia no mundo do corrtéfcio, aéáóa
mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. de ser definido; não é mais o orgulho nem a avidez co- ...
Criam-se (e isto em tôda a Europa) estabelecimen- mo na Idad~ M~dia; é a ociosidade. A categoria comum · ·
tos para internação que não são simplesmente destina- que grupa todos aquêles que residem nas casas de inter-
dos a receber os loucos, mas tôda uma série de indiví- namento, é a incapacidade em que se encontram de to-
duos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos se- mar parte na produção, na circulação ou .no acúmulo
gundo nossos critérios de percepção: e11ç_~:r_Iª111-se os in- das riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente).
válidos pobres, os velhos na miséria, os- mendigos, os A exclusão a que são condenados está na razão direta
desempregados opiniáticos, os portadores de doenças ve- desta incapacidade e indica o aparecimento no mundo
néreas, libertinos de tôda espécie, pessoas a quem a fa- moderno de um corte que não existia antes. O interna-
mília ou o poder real querem evitar um castigo público, mento foi então ligado nas suas origens e no seu sentido
pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, primordial a esta reestruturação do espaço social.
em resumo todos aquêles que, em relação à ordem da
.--razãô, <ia rriõral e _da sociedadef dãG mostra~ de ...altera- 11::ste fenômeno foi duplamente importante para a
ção". É com êste espírito que o govêrno abre, em Paris, constituição da experiência contemporânea da loucura.
o Hospital geral, com Bicêtre e la Salpêtriêre; um pouco Inicialmente, porque a loucura, durante tanto tempo
antes são Vicente de Paula tinha feito do antigo lepro- manifesta e loquaz, por tanto tempo presente no hori-
sário de Saint-Lazare uma prisão dêste gênero, e logo zonte, desaparece. Entra num tempo de silêncio do
depois Charenton, inicialmente hospital, alinhar-se-á qual não sairá durante um longo período; é despojada
nos modêlos destás novas instituições. Na França, cada de sua linguagem; e se se pôde continuar a falar dela,
grande cidade terá seu Hospital geral. ser-lhe-á impossível falar de si mesma. Impossível, pelo
menos até Freud que, pioneiro, reabriu a possibilidade Os reformadores de antes de 1789 e a própria Revo-
para a razão e a desrazão de comunicar no perigo de . lução quiseram ao mesmo tempo suprimir o interna-
uma linguagem comum, sempre prestes a romper-se e a mento como símbolo da antiga opressão e restringir na
desfazer-se no inaccessível. Por outro lado, a loucura, medida do possível a assistência hospitalar como sinal
no internamento, criou parentescos novos e estranhos. ua existência de uma classe miserável. Procurou-se de-
:H.fste espaço de exclusão que agrupava, com os loucos, finir urna fórmula de socorros financeiros e de cuidados
os portadores de doenças venéreas, os libertinos e muitos médicos com os quais os pobres pudessem beneficiar-sj;l'
criminosos maiores ou menores provocou uma espécie de na sua própria casa, escapando assim ao pavor do hos-
assimilação obscura; e a loucura estabeleceu com as cul- pital. Mas os loucos têm isto em particular: restituídos
pas morais e sociais um parentesco que não estâ talvez à liberdade, podem tornar-se perigosos para sua família
prestes a romper. Não nos espantemos que se tenha ~ o grupo no qual se encontram. Daí a necessidade de
desde o século XVIII descoberto uma espécie de filiaçãq contê-los e a sanção penal que se inflige aos que deixam
entre a loucura e todos os "crimes do amor", que a errar "os loucos e os animais perigosos''.
loucura tenha-se tornado, a partir do século XIX, a her-
deira dos crimes que encontram, nela, ao mesmo tempo x É para resolver êste problema que as antigas casa;:;
sua razão de serem, e de não serem crimes; que a lou- de internamento, sob a Revolução e o Império, foram
cura tenha descoberto no século XX, em seu próprio paulatinamente reservadas aos loucos, mas desta vez
centro, um núcleo primitivo de culpa e de egressão. Tu- aos loucos apenas. Os que a filantropia da época liberou
do isto não é a descoberta progressiva daquilo que é a são então todos os outros, exceto os loucos; êstes encon-
loucura na sua verdade de natureza; mas sómente a se- trar-se-ão no estado de serem os herdeiros naturais do
dimentação do que a história do Ocidente fêz dela em internamento e como os titulares privilegiados das ve-
300 anos. A loucura é muito mais histórica do que se Jhas medidas de exclusão. x·
acredita geralmente, mas muito mais jovem também.
Indubitàvelmente o internamento toma então uma
*** nova significação: torna-se medida de caráter médico.
~ O internamento não conservou mais do que um sé- Pinel na França, Tuke na Inglaterra e na Alemanha
culo sua função primeira de manter silenciosa a lou- Wagnitz e Riel ligaram seus nomes a esta reforma. E
cura. A partir do meio do século Ã"VIII, a inquietude nf.o há história da psiquiatria ou da medicina que não
renasce. O louco faz sua reaparição nas paisagens mais descubra nestes personagens os símbolos de um quplo
familiares; novamente, é encontrado fazendo parte da advento: o de um humanismo e o de uma ciência final-
vida cotidiana. O Neveu de Rarneau é testemunha dis- mente positiva.
to. :i;: que nesta época, o mundo correcional no qual a
loucura, esta prêsa no meio de tantos erros, pecados e As coisas foram inteiramente diferentes. Pinel,
crimes começa a se deslocar. Denúncia política das se- Tuke, seus contemporâneos e sucessores não romperam
qüestrações arbitrârias; critica econômica das funda- com as antigas práticas do internamento; pelo contrá-
ções e da forma tradicional da assistência; pavor po- rio, êles as estreitaram em tôrno do louco. O asilo ideal
pular por estas casas, como Bicêtre ou Saint-Lazare, que 1 que Tuke montou perto de York é considerado como a
adquirem o valor de focos do mal. Todo o mundo recla- reconstituiGão ern tôrno do alienado de uma quase-famí-
ma a abolição do internamento. Restituída a sua antiga lia onde êle deverá sentir-se em casa; de fato, êle é sub-
liberdade, que vai tornar-se a loucura? / J metido. por isso mesmo. a um contrôle social e moral
ininterrupto; a cura significará reinculcar-lhe os senti- Ora, estas técnicas que a fisiologia da época justi-
mentos de dependência, humildade, culpa; reconheci- ficava foram retomadas por Pinel e seus sucessores nu:n
mento que são a armadura moral da v;da familiar. Uti- contexto puramente. repr:ssivo e mor~l. A. d~ch:i nao
liza1:-se-ão P.ara _conse~ui-lo meios tais como as ameaças, refrescava mais, puma; nao se deve mais aplica-la quan-
castigos, pnvaçoes allmentares, humilhações, em resu- do o doente está "excitado", mas quando cometeu um
mo, tudo o que poderá ao mesmo tempo infantilizar e êrro; em pleno século XIX ainda, Leuret submeterá seus
culpabilizar o louco. Pinel, em Bicêtre, utiliza técnicas doentes a uma ducha gelada na cabeça e empreendera
semelhantes, depois de ter "libertado os acorrentados" neste momento, com êles, um diálogo durante o qual
que aí se encontravam ainda em 1793. Certamente êle forçá-los-á a confessar que sua .crença é apenas ~elir_io;
fêz ruir as ligações materiais (não tôdas entretan'.to) O século XVIII havia também mventado uma maquma
que reprimiam fisicamente os doentes. Mas reconstituil~ rotatória onde se colocava o doente a fim de que o curso
em tôrno dêles todo um encadeamento moral, que trans- de seus espíritos demasiado fixo numa idéia delirante
~orma va o asilo numa espécie de instância perpétua de fôsse recolocado em movimento e reencontrasse seus cir-
Julgamento: o louco tinha que ser vigiado nos seus ges- cuitos naturais. O século XIX aperfeiçoa o sistema dan-
tos, rebaixado nas suas pretensões, contradito no seu de- do-lhe um caráter estritamente punitivo: a cada mani-
lírio, ridicularizado nos seus êrros: a sanção tinha que festação delirante faz-se girar o doente até desmaiar, se
seguir imediata.mente qualquer desvio em relação a uma ele não se arrependeu. Emprega-se também uma g~io­
conduta normal. E isto sob a direção do médico que está Ia móvel que gira sô?re si mesma seg1:1nd? um eixo
encarregado mais de um contrôle ético que de uma in- horizontal e cujo movimento é ta~to ~ais vivo qu~nto
tervençào terapêutica. i!:le é, no asilo, o agente das sín- esteja mais agitado o doente que a1 é preso .. Todos e~tes
teses morais. jogos médicos são as versões asilares de antigas técmcas
fundadas numa fisiologia atualmente abandonada. O
Mas há mais. Apesar da extensão muito grande das essencial é que o asilo fundado na época de Pinel para
medidas de internamento, a idade clássica tinha deixado o internamento não representa a "medicalização" de
subsistirem e desenvolverem-se até um certo ponto as um espaço social de exclusão; mas a confusão no inte-
práticas médicas referentes à loucura. Havia nos hospi- rior de um regime moral único cujas técnicas tinham
tais ordinários seções reservadas aos loucos, era-lhes algumas um carâter de precaução social e outrás um
ri.plicado um tratamento, e os textos médicos dos séculos caráter de estratégia médica.
~XVII e XVIII procuravam definir, sobretudo com a
grande multiplicac;ão dos vapores e das doenças nervo- Ora, é a partir dêste mo~ento que a loucu~a dei-
sas, as técnicas mais apropriadas para a cura dos insa- xou de ser considerada um fenomeno global relativo, ao
nos. li:stes tratamentos não eram nem psicológicos nem mesmo tempo, por intermédio da imaginação e do delí-
fisicos: eram ambos ao mesmo tempo - a distinção car- rio, ao corpo e à alma. No nôvo mundo asilar, neste
tesiana da extensão e do pensamento não tendo afetado mundo da moral que castiga, a loucura tornou-se um
a unidade das práticas médicas; submetia-se o doente à fato que concerne essencialmente à alma human~, sua
ducha ou ao banho para refrescar seus espíritos ou suas culpa e liberdade; ela inscreye-se dorava~te. na dimen-
fibras; era-lhe injetado sangue fresco para ·renovar sua são da interioridade; e por isso, pela primeira vez, no
circuJ2_ção perturbada; procurava-se provocar nê1e im- mundo ocidental a loucura vai receber status, estru-
pressões vivas para modificar o curso da sua imagi- tura e significação psicológicos. Mas esta psicologiza-
nação. ção é apenas a conseqüência superficial de uma opera-

82
ção mais surda e situada num nível mais profundo - são e do castigo, e pela dimensão interior da hipoteca
uma operação através da qual a loucura encontra-se in- moral e da culpa. Situando a loucura em relação a
serida no sistema dos valôres e das repressões morais . êstes dois eixos fundamentais, o homem do comêço do
Ela está encerrada num sistema punitivo onde o louco, século XIX tornava possível uma tomada sôbre a lou-
minorizado, encontra-se incontestàvelmente aparentado cura e através dela uma psicologia geral.
eom a criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se
originàriamente ligada ao êrro. Não nos surpreenda- Esta experiência ela Desrazão na qual, até o século
mos, conseqüentemente, se tôda a psicopatologia - a XVIII, o homem ocidental encontrava a noite da sua
que começa com Esquirol, mas a nossa também, fôr co- verdade e sua contestação absoluta vai tornar-se, e per-
mandada por êsl~s três temas que definem sua proble- manece ainda para nós, a via de acesso à verdade natu-
mática: relações da liberdade com o automatismo; fenô- ral do homem. E compreende-se, então, que esta via de
menos de regressão e estrutura infantil das condutas; acesso seja tão ambígua e que, ao mesmo tempo, enseje
agressão e culpa. O que se descobre na qualidade de reduções objetivas (segundo a inclinação de exc~usão)
"psicologia" da loucura é apenas o resultado das opera- e solicite incessantemente a chamada para si (segundo a
ções com as quais se a investiu. Tôda esta psicologia inclinação da hipoteca moral) . Tôda a e :;trutura epis·
não existiria sem o sadismo moralizador no qual a "fi- temológica da psicologia contemporânea consolida-se
Jantropia" do século XIX enclausurou-a, sob os modos neste acontecimento que é aproximadamente contempo-
hipócritas de uma "liberação". râneo da Revolução, e que concerne à relação do homem
consigo próprio. A "psicologia" é somente uma fina pe-
* * * lícula na superfície do mundo ético no qual o homem
moderno busca sua verdade - e a perde. Nietzsche, a
Dir-se-á que todo saber está ligado n fO!'PUs essen- quem se fêz dizer o contrário. tinha-o visto muito bem.
ciais de crueldade. O conhecimento da loucura não
constitui exceção·. Mas, sem dúvida, esta relação é no Conseqüentemente, uma psicologia da loucura pode
seu caso singularmente importante. Porque foi ela ini- ~er apenas derrisória, e entretanto toca no essencial.
cialmente que tornou possível uma análise psicológica Derrisória pois que, querendo fazer a psicologia da lou-
da loucura; mas sobretudo, porque foi ela que secreta- cura, exige-se da psicologia que ela atente contra suas
mente fundou a possibilidade de tôda psicologia. Não próprias condições, que retorne ao que a tornou possível
se deve esquecer que a psicologia "objetiva", "positiva" e que contorne o que é para ela, e por definição, o insu-
ou "científica" encontrou sua origem histórica e seu perável. Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sô-
fundamento numa experiência patológica. Foi uma bre a loucura, já que é esta que detém a verdade da
análise dos desdobramentos que ocasionou uma psicolo- psicologia. E, contudo, uma psicologia da loucura nãc
gia da personalidade; uma análise dos automatismos e pode deixar de ir ao essencial, já que se dirige obscura-
do inconsciente que fundou uma psicologia da consciên- mente para o ponto onde suas possibilidades se estabele-
cia; uma análise dos deficits que desencadeou uma psi- cem; quer dizer que ela sobe sua própria corrente e en-
cologia de inteligência. Ou seja, o homem só tornou-se caminha-se para estas regiões onde o homem relaciona-
uma "espécie psicologizável" a partir do momento em se consigo próprio e inaugura a forma de alienaç:fo que
que sua relação com a loucura permitiu uma psicologia, o faz tornar-se homo psychologicus. Levada até sua raiz,
quer dizer a partir do momento em que sua relação com a psicologia da loucura, seria não o domínio da doença
a loucura foi definida pela dimensão exterior da exclu- mental f' conseqüentemente a possibilidade de seu desa-

14
parecimento, mas a destruição da própria psicologia e o
reaparecimento desta relação essencial, não psicológica
porque não moralizável, que é a relação da razão com
a desrazão.
~ esta relação que, apesar de tôdas as misérias da
Capitulo VI
psicologia, está presente e visível nas obras de Hülderlin,
Nerval, Roussel e Artaud, e que promete ao homem que•
um dia, talvez, êle poderá encontrar-se livre de tôda psi-
cologia para o grande afrontamento trágico com a lou- A LOUCURA, ESTRUTURA
cura. GLOBAL

O que acaba de ser dito não vale como crítica a


'/)Tiori de qualquer tentativa para cercar, os fenômenos
da loucura ou para definir uma tática de cura. Trata-
va-se sómente de mostrar entre a psicologia e a loucura
uma relação tal e um desequilíbrio tão fundamental que
tornam vão cada esfôrço para tratar o todo da loucura,
sua essência e natureza em têrmos de psicologia. A
própria noção de "doença mental" é a expressão dê<;te
esfàrço condenado de início. O que se chama "doença
mental" é apenas loucura alienada, alienada nesta psi-
cologia que ela própria tornou possível.
Será preciso um dia tentar fazer um estudo da lou-
cura como estrutura global - da loucura liberada e de-
salienada, restituída de certo modo a sua linguagem de
origem.
Pareceria, sem dúvida, inicialmente que não existe
cultura que não seja sensível, na conduta e na lingua-
gem dos homens, a certos fenômenos com relação aos
quais a sociedade toma uma atitude _particular: êstes
homens não são tratados nem completamente como do-
entes, nem completamente como criminosos, nem feiti-
ceiros, nem inteiramente também como pessoas comuns.
Há algo nêles que fala da diferença e chama a diferen-
ciação. Evitemos dizer que é a primeira consciência, obs-
cura e difusa, daquilo que nosso espírito científico reco-
11hecerá como doença mental; é sómente o vazio no in-
terior do qual se estabelecerá a experiência da loucura.

86 87
Mas sob esta forma puramente negativa trama-se já
uma relação positiva, na qual a sociedade engaja e ar- 1
1
aceitação e recusa que concernem às experiências de
que acabamos de tratar. Está claro que o século XVI
risca seus valôres. Assim o Renascimento, depois da valorizou positivamente e reconheceu o que o XVII ia
grande obsessão da morte, o mêdo dos Apocalipses, e as menosprezar, desvalorizar e reduzir ao silêncio. A lou-
ameaças do outro mundo, experimentou neste mundo cura no sentido mais amplo situa-se ai: neste nivel de
um nôvo perigo: o de uma invasão surda, vinda do inte- sedimentação nos fenômenos de cultura em que começa
rior, e, por assim dizer, de uma fenda secreta da terra; a valorização negativa do que tinha sido apreendido ori-
esta invasão, é a do Insano que coloca o Outro mundo ginalmente como o Diferente, o Insano, a Desrazão.
no mesmo nível que êste e de modo chão; de tal maneira Ai, as significações morais se engajam, as defesas
que não se sabe mais se é o nosso mundo que se des- atuam; barreiras elevam-se, e todos os rituais de exclu-
dobra numa miragem fantástica, se é o outro, ao contrá- são organizam-se. Estas exclusões podem ser segundo
rio, que toma posse dêle, ou se finalmente o segrêdo de as culturas de diferentes tipos: separação geográfica
nosso mundo era de já ser, e sem que o soubéssemos, o (como nas sociedades indonésias onde o homem "dife-
outro. Esta experiência incerta, ambígua, que faz habi- i-ente" vive só, às vêzes, a alguns quilômetros do povoa-
tar a estranheza no próprio seio do familiar, toma em do), separação material (como nas nossas sociedades
Bosch o estilo do visível: o mundo povoa-se em todos os que praticam o internamento) ou simplesmente separa-
seus moluscos, em cada uma de suas ervas, de monstros ção virtual, apenas visível do exterior (como no comêço
minúsculos, inquietantes e derrisórios que são, ao mes- do século XVII na Europa) .
mo tempo, verdade e mentira, ilusão e segrêdo, Mesmo
e Outro. O Jardim das Delícias não é a imagem simbó- Estas táticas de partilha servem de quadro à per-
lica e composta da loucura, nem a projeção espontânea cepção da loucura. O reconhecimento que permite di-
de uma imaginação em delírio; é a percepçãQ. de um zer: êste é um louco, não é um ato simples nem ime-
mundo suficientemente próximo e distante de si para diato. Repousa, de fato, num certo número de opera-
ser aberto à absoluta diferença do Insano. Diante ções prévias e sobretudo neste recorte do espaço social
desta ameaça, a cultura do Renascimento experimenta segundo as linhas da valorização e da exclusão. Quan-
seus valôres e os engaja no combate de um modo mais do o médico acredita diagnosticar a loucura como um
irônico que trágico. Também a razão se reconhece como fenômeno de natureza, é a existência dêste limiar que
desdobrada e desapossada de si mesma: ela se acreditava permite portar o julgamento de loucura. Cada cultura
sábia, é louca; acreditava saber, ignora; acreditava-se tem seu limiar particular e êle evolui com a configura-
escorreita, delira; o conhecimento introduz-se nas trevas ção desta cultura; a partir dos meados do século XIX,
e no mundo interdito, quando se pensava ser conduzido o limiar de sensibilidade à loucura baixou consideràvel-
por êle à luz eterna. Esboça-se todo um jôgo que domi- mente na nossa sociedade; a existência da psicanálise é
nará o Renascimento: não jôgo cético de uma razão que o testemunho dêste abaixamento na medida em que ela
reconhece seus limites, mas jôgo mais duro, mais arris- é tanto o efeito quanto a causa do fato. 1: preciso notar
cado, mais seriosamente irônico de uma razão que joga que êste limiar não está necessàriamente ligado à acui-
sua partida com o Insano. dade da consciência médica: o louco pode ser perfeita-
No fundo destas experiências muito gerais e primi- mente reconhecido e isolado, sem receber por isso um
tivas, formam-se outras já mais articuladas. Trata-se status patológico preciso, como foi o caso na Europa an-
das valorizações positivas e negativas, das formas de tes do século XIX ..

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Finalmente, ligada no nível do limiar, mas relati- dade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal;
vamente independente dêle, a tolerância à própri :t exis- em resumo, todo um conjunto que define numa cultura
tência do louco. No Japão atual, a proporção de loucos dada a vida concreta do louco.
reconhecidos como tais por seu ambiente é sensivelmen-
te a mesma que nos Estados Unidos; mas aqui a intole- * * *
rância é grande, no sentido de que o grupo social (es3en-
cialmente a familia) não é capaz de integrar ou sim- Mas isto é ainda apenas a medida de tôdas as dis-
plesmente aceitar a pessoa desviada; a hospitalização, a tâncias tomadas por uma sociedade com relação a esta
estada numa clínica ou simplesmente a separação da experiência maior do Insano que, progressivamente
família são logo necessárias. Ao contrário, no Japão, o e graças a divisões sucessivas, torna-se loucura, doença
meio é muito mais tolerante e a hospitalização está lon- e doença mental. Seria preciso também mostrar o mo-
ge de ser a regra. Uma das numerosas razões que fazem vimento contrário; isto é, aquêle através do qual uma
baixar o número de entradas nos asilos europeus duran- cultura chega a exprimir-se, positivamente, nos fenôme-
te as guerras e crise~ graves, é o fato de que o nível das nos que rejeita. Mesmo silenciada e excluída, a loucura
normas integradoras do meio sofre uma forte baixa, e tem valor de linguagem e seus conteúdos adquirem sen-
êste torna-se naturalmente mais tolerante do que ordi- tido a partir daquilo que a denuncia e repele como lou-
nário, quando é mais coerente e menos acossado pelo cura. Tomemos o exemplo da doença mental com as
acontecimento. estruturas e perfis que nossa psicologia acredita reco-
nhecer nela.
É no solo constituído por êstes quatro mve1s que
A doença mental situa-se na evolução, como uma
uma consciência médica da loucura pode finalmente perturbação do seu curso; por seu aspecto regressivo.
desenvolver-se. A percepção da loucura torna-se, então, ela ocasiona condutas infantis ou formas arcaicas da
reconhecimento da doença. Mas nada a engaja ainda personalidade. Mas o evolucionismo engana-se ao ver
necessàriamente a ser diagnóstico da doença "mental". nestes retornos a própria essência do patológico, e sua
Nem a medicina árabe, nem a da Idade Média, nem origem real. Se a regressão à infância se manifesta
mesmo a medicina pós-cartesiana admitiam a distinção nas neuroses, é somente como um efeito. Para que a
entre as doenças do corpo e as do espírito; cada forma conduta infantil seja para o doente um refúgio, para
patológica referia-se ao homem na sua totalidade. E a que seu reaparecimento seja considerado como um fato
organização de uma psicopatologia supõe ainda tôda patológico irredutível, é preciso que a sociedade instaure
:nna série de operações que, por um lado, permitem a entre o presente e o passado do indivíduo uma margem
divisão entre a patologia orgânica e o conhecimento das que não se pode nem se deve transpor; é preciso que a
duenças mentais, e, por outro lado, definem as leis de cultura somente integre o passado forçando-o a desa-
uma "metapatologia" comum aos dois domínios cujos parecer. E nossa cultura tem bem esta marca. Quan-
do o século XVIII, com Rousseau e Pestallozzi, preo-
fenômenos ela rege abstratamente. Esta organizaç'.io cupou-se sem constituir para a criança, com regras pe-
t,eórica da doença mental está ligada a todo um sistema ãagógicas que seguem seu desenvolvimento, um mundo
tie práticas: organização da rêde médica, sistema de de- que e·steja a sua altura, êle permitiu que se formasse em
tecção e profilaxia, forma da assistência, distribuição tôrno das crianças um meio irreal, abstrato e arcaico,
dos cuidados, critérios de cura, de.finição da incapaci- sem relação com o mundo adulto. Tôda a evolução da
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pedagogia contemporânea, com o irrepreensível objetivo cultura: a religião pode ser o objeto de crença delirante
de preservar a criança dos conflitos adultos .acentua ~ '· na medida em que a cultura de um grupo não mais per-
distância que separa, para um homem, sua vida de cri- mite assimilar as crenças religiosas ou místicas ao con-
ança de sua vida de homem feito. Isto significa que, teúdo atual da experiência. A êste conflito e à exigên-
para poupar à criança conflitos, ela a expõe a um con- cia de superá-lo, pertencem os delírios messiânicos, a
flito maior, à contradição entre sua infância e sua vida experiência alucinatória das aparições, e as evidências
real (1). Se se acrescenta que, nas suas instituições pe- do apêlo fulminante que restauram, no universo da lou-
dagógicas, uma cultura não projeta diretamente a sua cura, a unidade destruída no mundo real. O horizonte
realidade, com seus conflitos e suas contradições, mas histórico das regressões psicológicas está então num
que a reflete jndiretamente através dos mitos que a per- conflito de temas culturais, marcados cada um por um
doam, justificam-na e idealizam-na numa coerência qui- indice cronológico que denuncia suas diversas origens
mérica; se se acrescenta que numa pedagogia uma so- históricas .
ciedade sonha com sua idade de ouro (lembrem-se da- A história individual, com seus traumatismos, e seus
quelas de Platão, Rousseau, da instituição republicana mecanismos de defesa, sobretudo com a angústia que a
de Durkheim, do naturalismo pedagógico da República obseda, pareceu formar uma outra dimensão psicológica
de Weimar), compreende-se que as fixações ou regres- da doença. A psicanálise colocou na origem dêstes con-
sões patológicas só são possíveis numa certa cultu.r~; flitos um debate "metapsicológico", nas fronteiras da
que se multiplicam na medida em que a.s f.o~mas soc1a1s mitologia ("os instintos são nossos mitos" dizia o pró-
não permitem liquidar o passado, e ass1mlla-lo ao co~- prio Freud), entre o instinto da vida e da morte, entre
teúdo atual da experiência. As neuroses de regressao o prazer e a repetição, entre Eros e Tanatos. Mas é
não manifestam a natureza neurótica da infância, mas erigir em forma de solução o que se afronta no proble-
denunciam o caráter arcaizante das instituições que lhe ma . Se a doença encontra um modo privilegiado de ex-
concernem. O que serve de paisagem a estas farmas pa- pressão neste entrelaçamento de condutas contraditó-
tológicas, é o conflito, no seio de uma sociedade, entre rias,. não significa que os elementos da contradição se
í ' as formas de educação da criança, onde ela esconde seus justapõem, como segmentos de conflitos, no inconsci-
sonhos, e as condições que faz aos adultos, onde se lêem ente humano, mas somente que o homem faz do homem
pelo contrário seu presente real, e suas misérias. Poder- · uma experiência contraditória. As ~elações sociais que
se-ia dizer o mesmo para o desenvolvimento cultural: os uma cultura determina, sob as formàs da concorrência,
delírios religiosos, com seu sistema de asserções e o hori- exploração, rivalidade de grupos ou lutas de classe, ofe-
zonte mágico em que. sempre implicam, oferecem-se c~- recem ao homem uma experiência de seu meio humano
mo regressões individuais em relação ao desenvolvi- que obseda incessantemente a contradição. O sistema
mento social. Não é que a reHgião seja por natureza das relações econômicas liga-se aos outros, mas pelos vín-
delirante, nem que o indivíduo re?-na-se! para a!ém, d~ culos negativos da dependência; as leis de coexistência
religião atual às suas mais suspeitas origens ps1colog1- que o unem a seus semelhantes num mesmo destino
cas. Mas o delírio religioso é função da laiciza:ção da opõem-no a êles numa luta que, paradoxalmente, é ape-
nas a forma dialética destas leis; a universalidade dos
(1) lt talvez· nesta heterogeneidade, e na margem que separa vínculos econômicos e sociais permite-lhes reconhecer
estas duas formas de vida, que se encontra ~ r11;i21 do ~enô­ no mundo uma pátria e ler nma significação comum no
meno descrito por Freud, como fase de latenc1a, e ligado olhar de todo homem, mas esta significação pode ser
por êle a' uma suspensão mítica da libido.
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também a da hostilidade, e esta pátria pode denunciá-lo esta projeção contraditória seria um dos movimentos es-
como um estrangeiro. O homem tornou-se para o hO·· senc ·ais da doença. Mas esta forma patológica é ape-
mem tanto a imagem de sua própria verdade quanto a
eventualidade de sua morte. Só no imaginár'.o pode en-
'· nas secundária em relação à contradição real que a
smcita. O determinismo que a subentend~ não é a cau-
contrar o status fraternal onde suas relações sociais en- salidade mágica de uma consciência fascinada por seu
contrarão sua estabilidade e coerência: o outro se ofe- mundo, mas a causalidade efetiva de um universo que
rece sempre numa experiência que a dialética da vida não pode, por si mesmo, oferecer uma solução às contra-
e da morte torna precária e perigosa. O complexo de dições que suscitou. Se o mundo projetado na fantasia
~dipo, centro das ambivalências familiares, é como que de um delírio aprisiona a consciência que o projeta, não
a versão reduzida desta contradição: êste ódio amoroso significa que ela própria se deixe prender aí, não signi-
que a liga a seus pais, a criança não o traz como um fica que ela se despoje de suas possibilidades de ser;
equívoco de seus instintos; ela o encontra somente no mas é que o mundo, alienando sua liberdade, não pode
universo adulto, especificado pela atitude dos pais que reconhecer sua loucura. Abrindo-se sôbre um mundo
descobrem implicitamente na sua própria conduta ove- delirante, não é por um co:qstrangimento imaginário
lho tema que a vida das crianças é a morte dos pais . que a consciência mórbida se liga; mas sofrendo o cons-
E muito mais: não foi por acaso que Freud, refletindo trangimento real, ela escapa para um mundo mórbido
sôbre as neuroses de guerra, descobriu para duplicar o no qual encontra, mas sem reconhecê-lo, êste mesmo
instinto da vida, no qual se exprimia ainda o velho oti- constrangimento real: pois não é querendo escapar-lhe
mismo europeu do· século XVIII, um instinto da morte, que se ultrapassa ·a realidade. Fala-se muito da lou-
que introduzia pela primeira na psicologia o poder do cura contemporânea, ligada ao universo da máquina, e
negativo. Freud queria explicar a guerra; mas é a ao esmaecimento das relações afetivas diretas entre os
guerra que se sonha neste redemoinho do pensamento homens. J!:ste vínculo não é falso, sem dúvida, e não é
freudiano. Ou melhor, nossa cultura fazia, nesta época, por acaso que o mundo mórbido toma tão freqüente-
de um modo claro para si mesma, a experiência de suas mente, hoje em dia, o aspecto de um mundo ondeara-
próprias contradições: era preciso renµ.nciar ao velho cionalidade mecanicista exclui a espontaneidade con-
sonho da solidariedade e admitir que o homem podia e tínua da vida afetiva. Mas seria absurdo dizer que o
devia fazer do homem uma experiência negativa, vivida homem doente maquiniza seu universo porque projeta
no modo do ódio e da agressão. Os psicólogos deram a um universo esquizofrênico no qual se perde; falso mes-
esta experiência o nome de ambivalência e viram ai um mo pretender que êle é esquizofrênico porque ai está,
conflito de instintos. Mitologia sôbre tantos mitos para êle, o único meio de escapar ao constrangimento
mortos. do seu universo real. De fato, quando o homem perma-
Finalmente, os fenômenos mórbidos pareceram, na nece estranho ao que se passa na sua linguagem, quan-
sua convergência, designar uma estrutura singular do do não pode reconhecer significação humana e viva nas
mundo patológico: e êste mundo ofereceria, ao exame produções de sua atividade, quando as determinações
do fenomenólogo, o paradoxo de ser, ao mesmo tempo, o econômicas e sociais o reprimem, sem que possa encon-
"mundo privado", inacessível, para o qual o doente se trar sua pátria neste mundo, então êle vive numa cul-
retira para uma existência arbitrária de fantasias e de- tura que torna possível uma forma patológica como a
lírio - e, ao mesmo tempo, o universo de constrangi- esquizofrenia; estranho num mundo real, é enviado a
mento ao qual êle estii dedicado no modo do abandono; um "mundo privado'', que objetividade nenhuma pode
O.d tlC'.
mais garantir; súbmetido, entretanto, ao constrangi-
mento dêste mundo real, êle experimenta êste universo
para o qual foge, como um destino. O mundo contem-
porâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus
acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas por-
que nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o
próprio homem não pode mais reconhecer-se aí. So-
mente o conflito real das condições de existência pode CONCLUSÃO
servir de modêlo estrutural aos paradoxos do mundo
esquizofrênico. Propositalmente, não evocamos os problemas fisio-
lógicos e anátomo-patológicos que concernem à doença
Resumindo, pode-se dizer que as dimensões psico- mental; como também os das técnicas de cura. Não
lógicas da doença não podem, sem algum sofisma, ser significa que sua análise psicopatológica sejaj de fato
encaradas como autônomas. Certamente, pode-se si- ou de direito, independente; as descobertas recentes sô-
tuar a doenca mental ent relação à gênese humana, em bre a fisiologia dos centros diencefálicos e seu papel re~
relação à hlStória psicológica ·e individual, em relação gulador na vida afetiva, as luzes trazidas sem cessar des-
às formas de existência . Mas não se deve fazer dêstes de as primeiras experiências . de ~reuer ~ Freud p~los
diversos aspectos da doença formas ontológicas se não desenvolvimentos da estratégia ps1canalitica bastariam
se quer recorrer a explicações míticas, como a evolução para provar o contrário. Mas nem a fisiologia nem a
das estruturas psicológicas, a teoria dos instintos ou terapêutica podem tornar-se os pontos de vista absolu-
uma antropologia existencial. Na realidade, é sómente tos a partir dos quais a psicologia da doença mental
na história que se pode descobrir o único a priori con- possa transformar-se ou suprimir-se. Desde que há 140
creto, onde a doença mental toma, com a abertura vazia anos Bayle descobriu as lesões específicas da paralisia
de sua possibilidade suas figuras necessárias. geral e encontrou muito constantemente um delírio de
grandeza nas fases iniciais de sua sintomatologia, não se
sabe porque é precisamente uma exaltação hipomaníaca
que acompanha semelhantes lesões. E se o sucesso da
intervenção psicanalitica faz apenas uma única e mes-
ma coisa com a atualização da "verdade" da neurose,
ela só a descobre no interior do nôvo drama psicológico
~m que a engaja.

As dimensões psicológicas da loucura não podem


então ser reprimidas a partir de um principio de explica-
ção ou de redução que lhes seria exterior. Mas elas de-
vem situar-se no interior desta relação geral que o ho-
mem ocidental estabeleceu há pràticamente dois séculos
consigo mesmo. Esta relação vista sob o ângulo mais
agudo, é esta psicologia na qual êle colocou um pouco
J de seu espanto, muito do seu argulho, e o essencial de
(

seus podêres de esquecimento; sob um ângulo mais am-


plo, é a emergência, nas formas do saber, de um homo
psychologicus, encarregado de deter a verdade interior,
descarnada, irônica e positiva de qualquer consciência
de si e de todo conhecimento possível; finalmente reco-
locada na abertura mais ampla, esta relação é a que o
homem substituiu à sua relação com a verdade, alienan-
do-a neste postulado fundamental que é êle próprio a ALGuMAS DATAS NA HISTóRIA DA PSIQUIATRIA
verdade da verdade.
1793: PINEL é nomeado diretor das Enfermarias de
Esta relação que funda filosoficamente tôda psico- Bicêtre.
logia possível só pode ser definida a partir de um mo- 1822: Te8e de BAYLE, Recherches sur les maladies
mento preciso na história de nossa civilização: o mo- mentales (definição da paralisia geral).
mento em que o grande confronto da Razão e da Des- 1838: Lei sôbre os alienados.
razão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em 1843: BAILLARGER funda as Annales médico-psycho-
que a razão deixou de ser para o homem uma ética para logiques.
tornar-se uma natureza. Então a loucura tornou-se na- 1884: JACKSON, Croonian Lectures.
tureza da natureza, isto é processo alienando a natureza
1889: KRAEPELIN, Lehrbuch der Psychiatrie.
e encadeando-a no seu determinismo, enquanto que a
liberdade tornava-se, ela também, natureza da natureza, 1890: MAGNAN, La folie intermittente.
mas no sentido de alma secreta, de essência inalienável 1893: BREUER e FREUD, Estudos sôbre a histeria.
e da natureza. E o homem, em vez de ser colocado diante 1894: JANET, L'automatisme psychologique.
da grande divisão do Insano e na dimensão que êle 1909: FREUD, Análise de uma fobia num menino de
imagina, tornou-se no nível de seu ser natural, isto e 5 anos.
aquilo, loucura e liberdade, recolhendo, pelo privilégio 1911: FREUD, Observações psicanalíticas sôbre uma
de sua essência, o direito de ser natureza da natureza autobiogr~ de um caso de paranóia.
e verdade da .verdade. 1911: BLEULER A' demência precoce ou o grupo das
esqui.~nias.
Há uma boa razão para que a psicologia não possa 1913: JASEERS, Psicopatologia geral.
jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no 1921: FREUD, Para além do princípio do prazer.
nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída 1926: PAVLOV, Lições sôbre a atividade do córtex ce-
do drama. E quando, através de clarões e gritos, ela
reaparece como em Nerval ou Artaud, em Nietzsche ou rebral.
1928: MONAKOW e MURGUE, Introdução biohígica à
Roussel, é a psicologia que se cala e permanece sem pa-
neurologia e à psicopatologia
lavras diante desta linguagem que toma o sentido das
suas palavras desta dilaceração trágica e desta liberdade 1933: L. BINSWANGER1 ldeenflucht.
de que somente a existência dos "psicólogos" sanciona 1936: Egas MONIZ pratica as primeiras lobotomias.
para o homem contemporâneo o pesado esquecimento. 1938: CERLETTI começa a praticar o eletrochoque.
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