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Em Tempos de Necropolítica Reinventamos a Necropoética.

A 22a. Mostra de Cinema de Tiradentes começou no dia 17 de janeiro de 2019, ou seja,


começou dois dias depois que o atual desgoverno assinou seu primeiro decreto que facilita a posse
de arma. Mas qual seria a relação entre arma e cinema? A diretora negra Ava Duvernay no
documentário A 13a. Emenda faz uma relação interessante: o capitalismo estadunidense se apóia
nas indústrias armamentista e do entretenimento. A maior indústria nos Estados Unidos é a que
mais mata a negritude à queima-roupa ou a que mais invizibiliza e estereotipa esta população nas
telas?

A abertura da Mostra de Tiradentes destacou o argumento de que cada um real investido


em cultura rende quatrocentos reais. Ou seja, cultura é negócio. Mas o desgoverno aposta em
armamento e extingue o Ministério da Cultura. Nas mesas de debates da Mostra de Tiradentes uma
pergunta tem sido recorrente: o que será da nossa indústria cinematográfica nestes tempos
distópicos? Quais os impactos para a realizadores negros/as, historicamente tão alijados/as do
acesso a recursos?

Trata-se de enfrentar questões mercadológicas fulcrais, de pensar estratégias para


competir com a indústria da violência e do retrocesso, que mata física e simbolicamente a
população negra. Melvin Van Peebles, o diretor expoente do Movimento Blaxplotation dos anos 70,
estabeleceu os postulados: “Regra número um: Não haverá meio termo. Eu farei um filme sobre o
negro real. Quero um filme que faça os negros saírem do cinema orgulhosos ao invés de temerosos.
Regra dois: Esse filme tem que entreter como o Diabo. Regra três: Cinema é negócio.”

Sim, cinema é negócio. Um estudo publicado em 2017 pela Creative Artists Agency
(CAA) apontou que há o crescimento de uma plateia mais diversa que se interessa por filmes que
apresentam diversidade de raça, gênero e orientação sexual, incidindo diretamente na arrecadação.
Dentre os incontestes sucessos de bilheteria que ressaltam a diversidade racial dentro e fora das
telas, figuram Moonlight de Barry Jenkins, Corra!, de Jordan Peelan, Estrelas Além do Tempo, de
Theodore Melfi, O despertar da força, protagonizado por John Boyega, ator negro, bateu o record
de bilheteria absoluta que pertencia a Avatar e o Pantera Negra, de Ryan Cooler, que foi o filme de
melhor desempenho produzido pela Marvel em 18 anos de existência.

Apesar da primorosa formação de profissionais negros no audiovisual, bem como o


acesso ao mercado, o quadro é bem mais complexo, pois a indústria cinematografaica opera numa
lógica bélica na construção de imaginários raciais que não se restringem às fronteiras norte-
americanas.
Em tempos de necropolítica reinventamos a necropoética. É a proposta da atriz Grace
Passô, a grande homenageada nessa edição do Festival de Cinema de Tiradentes. Na noite de
abertura fomos agraciados com a exibição de Vaga Carne, que marca a estréia da Grace na direção
do seu primeiro filme juntamente com Ricardo Alves Jr.. Adaptação da peça homônima, Vaga
Carne traz para as telas a encarnação da voz que se descobre num corpo negro de mulher. A voz que
provoca, a voz entidade que não admite ser interrompida. A voz que satiriza, que invade nossa
carne, a voz (im)própria, a voz de Exú que matou um pássaro ontem, com uma pedra que atirou
hoje. A voz suicida que rasga a carne para se libertar. A voz do chiste que ri de tanto chorar. A voz
do gozo e do lamento. A voz do breu, do inconfessável. A voz que não respira, a voz
(des)humanizada.

Em Vaga Carne Grace Passô traz o teatro para o cinema para justamente sair do teatro.
Nesta metalinguagem, a câmara está apontada para o racismo próprio dos palcos e dos bastidores da
indústria do entretenimento. E assim conhecemos a alma da resistência de dentro e a partir de seus
próprios arsenais. Desse modo a atriz, dramaturga, escritora e agora diretora de cinema Grace Passô
torna-se uma testemunha vocal que transita entre mundos de diferentes telas. Lembrando que
James Baldwin aponta que as fronteiras entre testemunhar e atuar são finas, porém reais; e que parte
da responsabilidade das testemunhas é movimentar com a maior liberdade possível para escrever a
história. E assim, uma câmara em mãos negras pode se mostrar um armamento poderoso no
enfrentamento às violências e alienações raciais com o simples disparar de um flash.

Mas ao mesmo tempo em que Grace Passô mira, é também mirada. A platéia entra em cena
para atuar. No elenco estão nomes fundamentais da cena cultural e negra de Belo Horizonte, pois
além de Grace Passô, Vaga Carne atravessa os corpos de Zora Santos, Dona Jandira, André Novais,
Sabrina Hauta, Hélio Ricardo, Aline Vila Real, Tásia d’Paula, Valéria Aissatu Sane, Ronaldo Coisa
Nossa. E considerando a assunção do olhar na hierarquia dos sentidos, tem-se a miragem como
posição de poder.
Assim busca se aniquilar uma história da colonização evidencia que a branquitude sempre
teve o poder da mira, de apontar pra matar, caçar ou expoliar. Na frente ou atrás das câmeras o
corpo negro assume importante posição de conhecimento, de saberes localizados, a partir dos quais
novos projetos de representações simbólicas se tornam possíveis. Em Vaga Carne nossas vozes e
corpos estão dentro do olho do furacão, resistindo para não se deixar engolir. Vaga Carne é um
filme sobre a negritude real, que nos faz sair da sala de cinema com orgulho e não com temor.
Diante disso, a emergência de diretores/as negros/as é fundamental para a existência de um
“cinema do real” onde não há manipulação das aparências para colocar o espectador em um estado
passivo de identificação acrítica.”, como indica o negro cineasta, escritor, teórico cultural e
historiador do Mali Manthia Diawara. Manthia Diawara. Assim, Grace Passô nos traz uma saborosa
vertigem de cinéfila, aquele torpor que experimentamos ao ler Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Alice Walker, Maya Angelou, Toni Morrison, bell hooks e tantas
outras. Como é bom citar nossa intelectualidade! E por falar nisso, necropoética foi um termo
cunhado pelo crítico negro Juliano Gomes na mesa de debate sobre o filme Vaga Carne que
aconteceu no dia 19 de janeiro na programação da 22a. Mostra de Cinema de Tiradentes, que está
reluzindo negritude e afrontamento. Por estas e outras, o festival, que é a primeira grande janela
anual do nosso cinema está imperdível. Edição histórica!
Viviane Pistache é psicóloga, roteirista e crítica de cinema. Preta das Gerais com
mania de ter fé na vida.

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