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Reitor Roberto Leal Lobo c Silva FiU1o
Vice-reitor Ruy Laurcnti
Nelson 8aldanha
Copyrighl © 1993 by NeIson Saldanha
P 'bl" I. Antropolo•c"
· 1-.,1osofica
. I Tilulo.
u •co ""Vida Social e Histórica . 11. Titulo: O Privado e o
93-1454 .
---~----------~COD-128
I An Índic:es para c a til ogo SJ•tcmatico·
.
· tropologia filosefica 128 ·
~ N ~Q)jg_1Q5103
Universidade Federal de PernambuCO
BlBUOTECA CENTRAL I CIDADE UNIVERSITÁRIA
CEP 50.67()..901 - Recife - Pernambuco - Srasi\
Reg. n° 2036 • 2610112000
Titulo: O JARDIM EA PRAÇA
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Av Prof L · da Uni vers•dade
- Editora . de São Paulo
. . Ed
6' andar- uc•ano
d Gua lberto, Travessa J, 374
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I 818-4Fax
160 (011) 211--6988 f_x:. .2.0 3GOO
Para
João
li /dAlexandre Ba1·IJOSa
ua o Coutinho
':;aldemar Lopes
Zdenlfh Knurún
-~- Brasil
'11 a 4o
-r 06
SUMÁRIO
Nota do autor . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
GEOilG SI~I~!E L
prosaicas e dema- das que devem demarcá-los. No mesmo sentido valeria aludir ao
~ que há jardins de jardim do Luxemburgo, em Paris, celebrado inclusive em sentido
:: ir.clusive variáveis erótico pelos franceses elo século passado.
Em contrapartida a idéia de praça vai indicar a qui o espaço
púb lico, com específico desligamento em relação à moradia pri-
vada. As praças, nas cidades construídas em todos os quadrantes
c em todos os âmbitos culturais, se ligam a finalidades mais
____,é~ e ao mesmo tempo "genéricas": ligam-se ao espaço comum - no sentido "comunitá-
ãmbito edificado da rio" do termo -, ao âmbito político, à finalidade econômica, à
-.:-.se no conjunto (pe- dimensão religiosa ou m ilitar da vida social. Poderia lembrar as
:az parte daquilo que praças sagr adas dos aztecas ou os terraços votivos dos incas; a
:n::J. que é a Poética do ágora grega, arqui-exemplar, e sua continuação o forum romano
-ambos mistura de mercado e local de encontros, inclusive para
meetings políticos. A óbvia extensão espacial da praça não é
apenas extensão espacial: ela corresponde a um significado so-
cial, correlato do próprio espírito da cidade onde se insere.
Podemos deste modo dizer que a distinção entre as duas
dimensões pode dflr-se no sentido quantitat ivo e no qualitativo.
Sob ·o primeiro aspecto temos um problema de extensão espacial:
no caso da casa (e do jardim) um espaço menor, com coisas
ajuntadas, âmbito elo viver e sobretudo do viver noturno das
pessoas; no da praça, um espaço maior, que revela a cidade e
tende a confundir-se com ela. Sob o segundo aspecto, ocorre um
problema de caracterização e de conteúdo. E então temos o
espaço privado com um sentido de reduto, portanto algo "irredu-
tivelmente" preso ao existir mais íntimo do ser humano; ou
temos o espaço público como obra do viver social e do estender-se
e pertence a casas dns relações que perfazem este viver, e qu e se desdobram em
~ções específicas: termos de produção econômica, ordem política, criação cultural.
~-Têm s ido excepcio- Este segundo é o espaço mais amplo e mais problemático do
::- :Ee podem enquadrar humano, no qual se acha o pensar em geral, com heranças
bem como exemplos históricas e "ismos" modernos, um espaço dentro de cujas ocor-
nestes casos, é em rências se inventaram a geografia e a história.
:-:: ,-ezes chamam-se Aliás Aristóteles, expondo as idéias de Hipódamo de Mileto,
·--~~- públicos, que em relatara que o famoso arquiteto projetara uma cidade com três
partes distintas: uma sagrada, ligada aos cultos; outra pública,
ligada aos militares; e outra privada, ligada sobretucl0 aos agri-
cultores. Obviamente a lguns conteúdos da utopia de Platão
provieram deste es quema, mas isto é outra história.
2. SOBRE OS ESPAÇOS NA HISTÓRIA
conw re dimension conslilutiuede la sociélé bow gcoise- Paris, Payo l, 1D78. par;:e em que ::oe
SODRE OS ESPAÇOS Ni\ EIISTÓ/1/i\ 19
langes em sua~
r eligião, com se...s
dário; a famHia ·
fogo sagrado s.:,~:::
lo, contradição _
família (e não era
parte da cidade,
plementaridade.
gentes, ficou cc::::.._
possuímos da-~
3. "'A i\ ldcia Tnalca llçávcl", e 111 1\ncontros lnlcmaciorwis da UnB, Tirnsilin, 1080. sentido geral de
cr1se da
casa de moradia" c o
·am sobreviver um sem
Aludimos acima ao desdobramento desses dois planos, dir--
sc-ia dois momentos, do viver (o público e o privado) dentro das
organizações grupais mais recuadas. Agora nos referiremos às
, recentes, das formas culturas "clássicas", especialmente à greco-romana. Há uma
mdui o fim do "espaço série de temas um tanto conjecturais a considerar, inclusive em
- "noções de casa de famí- torno de dados já registrados pelos estudos históricos: por exem-
a antiga e fundamental plo a dualidade de cultos, que ocorreu tanto na Grécia quanto na
Roma antigas, o culto público e o culto privado. O tema foi, desde
1867, tratado com erudição e persuasividade por Fustel de Cou-
langes em sua sempre notável Cité Antique. A cidade tinha a sua
religião, com seus ritos e seus símbolos, suas festas, seu calen-
dário; a família tinha seu culto, com sua alusão aos mortos, seu
fogo sagrado, seus altares. Não havia, e é interessante assinalá-
lo, contradição entre os dois planos: o indivíduo integrava a
família (e não era imaginável sem isso), e ao mesmo tempo fazia
parte da cidade, cuja razão de ser eram os cidadãos . Esta com-
plementaridade, característica dos próprios conceitos então vi-
gentes, ficou como elemento essencial dentro da imagem que
possuímos da "antigüidade", constituindo um elos traços daquele
- l:'z:D, BrJ.Silia, J!JSO. sentido geral de equilíbrio que atribuímos ao mundo clássico.
22 O JARDIM E A PRAÇA
com terraços e páLios, porões, desvãos, andares superiores, pin- (inclusive a plaza .,...
turas n as paredes, colunatas e cavalariças (o pátio, la cour, afim Latina), entendida
ao dos conventos, fazendo pendant com o jardim). Trata-se da
casa cuja figura, por vezes pouco definida e também pouco Quanto aos :a::
esbelta, mas expressiva, aparece caracteristicamente na pintura elas - ao século :x=':
dos séculos XVII a XIX, tanto nos ambientes rurais - aquele europeus (refiro-r:::.e
ambiente inconfundível dos desenhos franceses, bem como do Comilança), certo;;
Moulin de Pontoise de Corot - quanto nos urbanos . No ambiente século passado, ou
urbRno há variáveis que vão das empertigadas fachadas de e as ironias dos ~
Canaletto às casas ditas normandas. De qualquer m a neira a V ai aqui out!"a
presença dessas casas nos perímetros urbanos denota, durante de jardim" foi sub
ccrLa fase sobretudo, a residência de senhores de terra que Viena Fin-de-Siec
possuem propriedades no campo mas mantêm um imóvel à sua Ao mencionar o rc
di sposição na cidade. o historiador se - -
Este tipo de edificação se acha magnificamente descrito no destacan do o confr-
Gattopardo de G. Tomasi di Lampedusa, justamente o palácio e a que se aprese~::
da família Salina em Donnafugata, que possuía "sete janelas personagem princi
sobre a praça" e que por dentro apresentava uma enormida de ele havia um jardim
quarlos, escadarias, salões e tudo o mais. Aliás o livro começa de tr::tnqüilo d o
com a descrição ele um jardim muito característico, e por sua vez estético raciona: e _
a praça de Donnafugata, mencionada no capítulo li ("vasta,
sombreada por plátanos poeirentos"), aparece como a lgo melan-
colicamente provinciano, algo ancorado no tempo como um espa-
ço romanesco perdido sem remissão.
Ainda a propósito das grandes residências das famílias da
nobreza, seria interessante observar que o absolutismo europeu
condicionou um emprego correlato do termo casa, na acepção de
dinastia (casa elos Áustria, casa de York, casa dos Bourbon), uma
acepção evidentemente muito antiga, herdeira de todas as lin-
guagens palacianas da história. O termo foi u sado também para
aludir às Casas do Parlamento inglês, a dos Comuns e a dos
L ordes. E com isso se teve um curios o entrelaçamento d a dimen-
s ão pública (política) com o plano privado: o reinado de tal ou
qual casa, na pessoa de tal ou qual governante, era um d ado
""... institucional e entretanto consagrava a eficiência do matrimônio
monárquico.
Por outro lado, àquele tipo de casa (correspondente às
m ansões da nobreza urbanizada), a ela e ao s eu jardim se
contrapôs, no mundo barroco, a praça principal das cidades 1. 'l'rad. Denise Botun-.
AIND,\ SOBRE OS ESPAÇOS NA H!S1'6RIA 25
.:: andares superiores, pin- (inclusive aplaza mayor trazida pelos espanhóis para a América
-:ças (o pátio, la cour, afim Latina), entendida como centro do recinto urbano .
.x- o jardim). Trata-se da
de5n.ida e também pouco Quanto aos jardins dessas vastas casas, eles chegam- com
;e~_sticamente na pintura elas - ao século XX, copiados ou conservados. E em certos filmes
_"T.bientes rurais - aquele europeus (refiro-me inclusive ao Jardim dos Finzi Contini e à
,. i"ranceses, bem como do Comilança), certos ângulos de velhos jardins de casas do fim do
:::.:üs urbanos. No ambiente século passado, ou do começo do nosso, sublinham as nostalgias
H:i:ipertigadas fachadas de c as ironias dos diretores.
" De qualquer maneira a Vai aqui outra anotação. A importância de uma "vivência
urbanos denota, durante ele jardim" foi sublinhada por Carl Schorske em seu belo livro
-<= senhores de terra que Viena Fin-de-Siecle 1, no capítulo "A Tansformação do Jardim".
~ mantêm um imóvel à sua Ao mencionar o romance Der Nachsommer, de Adalbert Stifter,
o historiador se detém sobre alguns elementos ela narrativa,
destacando o confronto entre a educação burguesa, ali retratada,
-...sa, justamente o palácio e a que se apresenta em Flaubert. Alude então ao encontro do
_e possuía "sete janelas personagem principal com a herdade chamada Rosenhaus, onde
:....-.-a uma enormidade de havia um jardim bastante significativo, oferecendo a impressão
ele tranqüilo domínio da natureza, ordenada segundo um plano
estético racional e pedagógico.
~o absolutismo europeu
~o casa, na acepção de
- casa dos Bourbon), uma
herdeira de todas as lin-
_-o foi usado também para
.:_• a dos Comuns e a dos
E'ill-:!"elaçamento da dimen-
do: o reinado de tal ou
~ (correspondente às
_ e!a e ao seu jardim se
=;xz principal das cidades 1. Trnd. Denise l.luLLmunn, Campinas, Siio Paulo, ~d. Unicrunp - Compnnhia das Lclrus,1988.
4. ACASA COMO TEMA HISTÓRICO
-·
#'
Pode-se, estando em casa, desempenhar uma tarefa com sentido (um tanto em contlõ
público, como se pode defender interesses privados atuando em cação espacial ou-.
recinto público. pela nobreza dom·
Deixamos de lado o problema grave e nebuloso de saber se Sobre o prob: ..
a vida pública surgiu "depois" da vida privada, ou se ambas necessariamente ao·
resultam de um desdobrar-se de formas; se primeiro foi o todo, instituições, nas p:-
o conjunto, e depois o espaço pessoal. livros de orientaçã o
Sobre a temática da casa anotou Gastou Bachelard, em seu Regis Debray, O E
livro J1 Poética do Espaço!, a analogia entre a casa e o cosmos, Morin, O Paradig~
não apenas quanto à estrutura, portanto ao aspecto espacial, influências marxis: _
mas também quanto ao problema temporal: inclusive porque a dindo inclusive à ;-
carga de tempo que passa por uma casa se integra na própria iniciais, onde pro-..·a
imagem que dela possuem seus habitantes. sua grande casa, em
Este é de fato um tema rico de sugestões. Os arquétipos e crescentement e al
as exemplaridades legados pelas diversas civilizações, sobretudo os escravos. No see
pelas épocas aristocráticas cle cada uma delas (admitindo que a serviço da indag
em cada grande ciclo cultural tenha havido uma época, geral- de sociedades se S'
mente inicial, dominada pela nobreza), ficaram como marcas por con1eços, n1as a h i"' •
assim dizer definitivas. Sabe-se que Édipo foi castigado inclusive dos, que eran1 org -
por haver violado a ordem das coisas, o equilíbrio elo mundo, e o Certo que n ãc e
que certos autores enxergam no conflito entre Creonte e Antígo- lógicos, fundamer.- -
na é que a legislação daquele desrespeitava a "natural" correla- se encaixam, com -
ção entre as leis do cosmos e as normas ela coneluda humana. testemunhos. Deve·
Entretanto, a idéia de casa não configura apenas o lugar físico
do morar, idéia fixada a parLir da morada das grandes famílias ter havido, nas m on.
iniciais, mas também os conceitos específicos de "berço" e de grandes realeza s ::--;::,
"teto". São conceitos vinculados aos valores feudais, ou seja, fundou muitas cal"'~
vinculados à imagem do sangue e também à noção de "origem": ao seguinte: temos
ter teto e berço, ou por outra ter eira e ter beira, foram sempre clássicas do pensa=
marcas de nobreza dentro dos contextos feudais ou para-feudais. que os grupos h um-
Marcas qualificadoras, fora das quais, como algo excluído, fica-
vam os plebeus, os não-patrícios. Observemos outra coisa: como
a casa é o pouso, e ter casa sempre significou possuir um espaço
definido, as épocas aristocráticas sempre desconfiam do homem
errante. Ele é um marginal, a não ser que seja um santo.
Compreende-se então que a "burguesia", que em seus inícios
revelava certas forn1as erradias de viver, ou ao menos de vender
2. O l!:scríb<l - Gên ese do
I. 'I'rud. brus., llio de Jnnciro, Livrariu Eldorado 'l'ijuca, s.d.
il CIISJ\ COMO TEMA JIJSTÓRJCO 29
-::bar uma tarefa com sentido (um tanto em contradição com o fundamental sentido de demar-
cação espacial ou "urbana" que lhe correspondia), fosse mal vista
pela nobreza dominante.
Sobre o problema das "primeiras formas urbanas", qu e
necessariamente acode quando se coloca o tema das origens das
instituições, nas primeiras culturas, vale registrar aqui dois
livros de orientação distinta mas ambos interessantíssimos: o de
Gaston Bachelard, em seu Regis Debray, O Escriba - Gênese do Político, e o de Edgard
~ en t re a casa e o cosmos, Morin, O Paradigma Perdido2 • O primeiro, baseado sobre certas
um.t o ao aspecto espacial, influências marxistas, coloca questões muito provocativas, alu-
:e,....,por a l: inclusive porque a dindo inclusive à possível disposição espacial d as estruturas
casa se integra na própria iniciais, onde provavelmente o senhor habitava o Centro, com
sua grande casa, em redor da qual se achavam, como em círculos
sugestões . Os arquétipos e crescentemente alargados, as famílias nobres, os homens livres,
as civilizações, sobretudo os escravos. No segundo temos a antropologia (física e cultural)
t=ma delas (admitindo que a serviço da indagação sobre origens: para Morin diversos tipos
ha\ido uma época, geral- ele sociedades se sucederam como camadas formativas desde os
z:.>. ficaram como marcas por começos, mas a história propriamente dita surgiu com os Esta-
Edipo foi castigado inclusive dos, que eram. organizações específicas.
' o equilíbrio do mundo, e o Certo que não é fácil, em termos antropológicos ou arqueo-
--~entre Creonte e Antígo- lógicos, fundamentar ele modo positivo estas alusões; mas elas
~:~ava a "natural" correla- se encaixam, com sentido bastante inteligível, em uma série de
::zn:as da conduda humana. t estemunh.os . Deve ter havido, com efeito, a presença ela casa no
:ig"".n-a apenas o lugar físico m eio elas formas iniciais: a casa maior c as casas menores . E eleve
:rada das grandes famílias ter havido, nas monarquias primordiais, que se prolongaram nas
E.Epecíficos de "berço" e de grandes realezas pos teriores, um conteúdo de significações que
:; valores feudais, ou seja, fundou muitas coisas, desde então permanentes. O que equivale
.-:.::lbém à noção d e "origem": ao seguinte: temos ele reconhecer que a m aioria elas categorias
e ::er beira, foram sempre clássicas elo pensamento c da organização provém do t empo em
"feudais ou para-feudais. que os grupos humanos possuíam reis c rainhas.
""• como algo excluído, fica-
~ervemos outra coisa: como
- .,..., .ficou possuir um espaço
e desconfiam do homem
ser que seja um santo.
-~-ia·', que em seus inícios
... er, ou ao menos de vender
2. () I~Rcriba- Gênese do l'olitico. Tn"l. M. de Cns lro, n io dc:.Jandro, T!ctour, 1983. Lc Paradigme
perdu, lutwlur e Jw maine, Seu i I, Paris, 1973.
5. VIDA PúBLICA E VIDA PRIVADA
I. A ~ll!gia E rólim Uomana. O Amor. a l'oesia. e o Ocid.enle, Siio Paulo, Brasiliense, 1085, p. 252
c ss.
2 . Trad. Lnts . Salânicos e Visionários, Rio de J aneiro, American a , 1075. 3. 'l'rad. T•. W•tlnnabe. S.:..-
VlD11 PÚBLTC11 E VIDA PRIVADA 33
IF=~ma. !915. 3. 'l'rnd. L. W"t.11nnbc, São Pnnlo, Companhia das Letras, 1988, cap. 8.
6. DOS JARDINS À ORDEM PúBLICA
....,.
J6 O ,JJIIIDJM E 11 l'Ri1Çt1
o jardim corresponde à mesmos serão os "l ivres", sendo que com isso Lomnm plena consciência do que
rept·cscnta para eles o privilégio de intervir nos negócios da comunidade'.
~-~----f.ri\'1H1o, no conLt-rtstc em
• que é pal'l.c de scns ben~ c
l. 'l'rnrlu ~i mo.s parafraoli~.;<JHH.:ntc segundo n vcr~õo francc~o <lc ~J. Coffinct., J~a T..i lX!rlá Grccque,
foi a reunião de servidores Pnris, Pnyol. 1050, p. 18.
os homens CJII C ngcm por si 2. r.e Afytlw de l'elcrnel relour, Paris, Gallimard, 197S, Cfl]l. I.
40
~ -.;os", que não os gregos Será truístico, portanto, dizer que o emergir ela noção de
lica e vida privada não "coisa pública" implicou o mundo clássico a valorização da vida
~n;.ações axiológicas tão pública. A casa se alarga e dá (liLeralmente) lugar à cidade:
3-e ü:r existido a diferença "cidade", na cultura clássica, significando a própria sociedade
política. Os romanos, que tiveram para tudo isto uma profunda
e eficiente sensibilidade, completaram aquela noção com a de
42 O .!t\HJJIM E 11 PRAÇA
ordem, pública, correia La da idéia do direito, o jus que é também a utores mais r ecen•
função da cidade. xistência ele um - .:_
nos estenderemos s.
Ainda uma anotação histórica. A v1gencia da dicÇ~tomia O problema ci_
direito público-direito privado varia conforme os contex tos his· gregos e rom.ano.s ~
tóricos. Certos autores têm observado que na Idade Média euro- Primeira: entre os:'
péia, vale dizer durante os séculos em que prevaleceu o punha, pois, a não-
feudalismo, aquela dicotomia praticamente inexistiu. Teria ha- não conseguiam
vido então um predomínio das estruturas privadas - laços pes- ela polis e das ciL·i
soais, fidelidades pessoais -, ou então uma espécie de misto ou gener alizações, m
meio t ermo, em que o poder do "senhor" feudal, com sua família matizar o tema). S
e seu entourage privado, era ao mesmo tempo um poder genérico porânea enxergo·.r
e institucional. O crescimento elo pensar secularizado, com o considerar minori: ~
racionalismo e o iluminismo (que inclus ive delineou com nitidez clade pessoal - :::...
a diferença entre política antiga e política moderna), consolidou aligeirada por sua ~
dentro do liberalismo uma visão renovada da antiga dicotomia, non e p elas alusc ,
vindo a Revolução Francesa a configurar em seus resultados pesado e duro co~
legislativos uma cluplicidade de planos: no plano do dir eito E s tado e a fam.í::ia
público as constituições, no do direito privado as codificações.
Enqua nto isso, o senLimento de "modernidade", que surgiu
nos intelectuais do Ocidente a partir do século XVII mais ou
menos, e que incluía a consciência ele "posterioridade" em relação
aos "antigos", ressoaria na querela elo tempo de Perrault e
também, muito depois, na famosa conferência de Benjamin u da privacidade, a
Constant sobre a liberdade dos antigos e a dos modernos. A e outras mais. Tal-..·ezr
partir de certos dados, e ele certas motivações, reforçou-se a idéia r as", n1as que sem. ~
de uma diferença muito grande entre o homem moderno e o vida e com impo
antigo. A Cité Antique, de Fustel ele Coulanges, trazia em certos De fato as a;
tópicos a noção de que aos antigos faltava de fato a plena liter almente, per..l-
dimensão ela individualidade, noção aparentemente estranha, substituição da resi
mas não tanto: o grande historiador se referia ao caráter peculiar
da "liber dade greg::t", que era mais uma adesão do cidadão à sua por mais seguros e
polis do qu e uma contraposição em face dela. D e qualq uer sorte aumentos ele popU::!
Fustel ressaltou o império das instituições sobre o arbítrio pri- cidades, cada co~·
• .t v::tdo, inclusive no plano da família e do "amor", onde não parece cada bairro tinham :..
ter havido a larga parte ele opção c fruição que a culLura contem- O mundo de hoje ~
poriinea confere aos indivíduos. Como se sabe, o problema de ter b erto Eco dividem
ou não havido em plenitude a consciência da individualidade (e
da subjetividade), entre os antigos, foi já debatido por diversos
DOS JARDINS À ORDEM PÚJJL!Ct\ 43
ée!:.o~ o jus que é também autores mais recentes, inclusive com extensão ao tema da ine-
xistência de um "direito subjetivo" entre os romanos; mas não
nos estenderemos sobre isso.
- 'rig-ência da dicotomia O problema ela limitação ela idéia ele subjetividade entre os
~~e os contextos his- gregos e romanos nos levaria entretanto a duas ponderações.
ç:xe na Idade Média euro- Primeira: entre os povos elo Oriente antigo o problema sequ er se
em que prevaleceu o punha, pois, a não ser em pequena medida, as individualidades
-....;;õOK~e.u""-e inexistiu. Teria ha-
não conseguiam con trapôr -se ao peso elas instituições . No caso
-~ priYadas - laços pes- da polis e das civitas é qu e as questões emergem (passem estas
- ~a espécie de misto ou generalizações, merecedoras de ressalvas, como modo de esque-
fe-..1dal com sua família matizar o tema). Segunda: o que a m entalidade liberal contem-
~po um poder genérico
porânea enxergou mais no panorama antigo, de modo a
~ secularizado, com o
considerar minoritária a presença do indivíduo - e de sua liber-
-==~'\"e delineou com nitidez dade pessoal - foi o vulto do Estado: tanto na polis grega,
_-._.....L4 moderna), consolidou aligeirada por sua correlação com as esbeltas colunas do Parte-
da antiga dicotomia, non e pelas alusões dos filósofos, como no imperium romano,
- -.2al' em seus resultados
pesado e duro como os bronzes das estátuas dos Césares. O
-~---~~ .co plano do direito Estado e a família primavam sobre o indivíduo, e este valia
;:..-.n-ado as codificações. m enos por si do que como elo ele uma cadeia, dentro da família,
- ._ ;!enidade", que surgiu ou como um componente condicionado, dentro do Estado.
século XVII mais ou
"'~.e!"iorida de" em relação Mas pRsscmos outra vez ao tema ela casa. A crise da casa, nas
do tempo de Perrault e cidades do século XX, tem sido correlata de várias outras crises, como
mc!lferéncia de Benjamin a da privacidade, a elo liberalismo, a ela família, a das "humanidades"
--== e a dos modernos. A e outras mais. Talvez, crise de coisas que hoje parecem "conservado-
·ões, reforçou-se a idéia ras", mas que sempre tiveram o que ver com uma certa imagem ela
~ o nomem moderno e o viela c com importantes realizações históricas.
~an.;es, trazia em certos
De fato as casas se extinguem, ou, quando isto n ão ocorre
fZ:.a··a de fato a plena literalmente, perdem seu velho sentido ele "morada". Refiro-me à
.-'"e.ctemente estranha, substituição d a residência em casas pela r esidência em apartamen-
~ia ao caráter peculiar tos, a princípio preferidos por mais práticos e mais baratos, depois
a.rl:esào do cidadão à sua por m ais seguros, e afinal impostos a quase todos pelos enormes
d1:.a. De qualquer sorte aumentos de população, nas décadas mais recentes. Outrora, nas
t;::::~-~- sobre o arbítrio pri-
cidades, cada coisa tinha seu lugar, sem muitas mudanças, e em
amor'', onde não parece cada bairro tinham seu lugar a igreja, a escola, a casa de Beltrano.
<f'.le a cullura contem- O mundo de hoje, invadido pelas comunicações que segundo Um-
sabe, o problema ele ter bcrto Eco dividem os homens em "apocalípticos e integrados"", é
<ia individualidade (e
.. • debatido por diversos
•J. t\J!fKX!IÍpliros c Tnleyrados, Siio Paulo, Pcrspccl ivn, I DR7.
·14 O ,JJ\TWIIlf E A PR.1lÇA
5. I lcrtwutll llcllet·, l?scrilos Po/(ticos, trad. cs p. S. de Arlechc, Madrid, 1\liunza E ditorial, 1!)85, 7.
pp. 2•11 c ss. 8. 'l'r ad . francesa , J: t:spact!
DOS JA RDINS ,i ORDliM PÚJJDTCII 45
e:=: que n a da é duradouro. Coisas vindas de um longo e profundo processo histórico, descon-
e ~ elas o espírito de tínuo e fragmentário mas expressivo e inteligível, e que inclui
conflitos e fundamentações, mitos e imagens, dados e teorias. O
em casa: correm cada
--....::..= que uns tantos apontam como melhor, festejando a crise e até
~ de_as, auxiliadas pelos saudando o que alguns chegam a chamar de "derrota da inteli-
... o b:;mem do novecentos gência"6, é sempre algo vago, algo indefinido e no fundo d epen-
mr.a compulsão. Alguém dente de elementos hermenêuticas que se acham dentro do
--.:-..abilismo espacial de hoje próprio processo histórico hoje entrado em crise.
~er nômade e errático de
~oxo do jardim coletivi- Falei do humano, pouco acima. Em 1958, a grande pensa-
de lazer" das vilas popu- dora (os que chamam as poetisas de poetas deverão escrever "o
11-....,;;__:s - ipo classe média, temos
grande pensador") H annah Arendt publicava seu notável livro
~-"-~~ cheia, com excesso de
The Human Condition, baseado em uma visão histórico-antro-
::. rompendo com a dispo- pológica da evolução ela própria experiência humana7 . Detendo-
:::-.:I.e sempr e foi própria da se sobre os est::lgios dessa evolução, Arcndt analisa ali as
implicações da disLinção entre vida pública e vida privada, que
~e de cen a s imagens tradi- se relaciona com problemas histórico-sociais muito relevantes.
pelo humanismo greco-ro- E ao aludir a o problema da sociedade de massas, observa que
e ..e com a burguesia dos esta chega a d estruir a ambas as esferas, a pública e a privada,
- r-.9 conceito de "cidadão" pois "priva os homens de seu lugar no mundo e também do seu
em um processo de lnr privado": a complementação ideal entre as duas dimensões,
--=:::.....n era correlato do ideal a privada em conexão com o trabalho e a pública em conexão com
a ação, depende d e certas estruturas que, se não mantidas,
tendem a elimim1.r o equilíbrio das coisas.
E videntem ente t udo isso soa a liberalismo. Mas não ao
liberalismo ele certos "liberais" de hoje, dispostos a aplaudir
ditaduras e a apoiar regimes militares, e sim ao liber a lismo
clássico, que em nosso século inclui também o nome sério de Leo
da imagem da crise pode Strauss e que remonta às fórmula s pedagógicas do iluminismo,
- r que poderá ou deverá com a apologia do cives latino e da praça popular.
di5so ou daquilo se pode
Trata tamb ém do tema - o da coisa pública - o d enso e difícil
- coisas a serem substi- livro de Jürgen Habermas, de 1962, Strukturwandel der Offent-
,.......~.--.- quas e nada para além
lichheit8, que já referimos. Partindo d a distinção grega entre
- JUStamente coisas que coisas comuns e coisas privadas, Habermas menciona a ágora e
~ homem e do "humano".
. ..
~-
Macedônia, no fim
grega, e com ela a
arengas: acabou-se
homem público po:-
do domínio maced-
7. PRIVATISMO E PUBLICISMO
es::e :r=.::rl.e:o veio a manter-se
.:±it:::'E:n::!a.S- o conceito feudal de
E:::::l re!ação às categorias
--~~~ realmente, é que se
es:!er:a pública: a burguesia,
C::.fl'Ca.dorias e t ambém na
I " - - - - ' essa ~oção, vinculando-a
~i-·e a ""opinião pública".
crenças gregas (e aqui o termo pode entender-se no sentido com rever proble
orteguiano da distinção entre idéias e crenças). Restava o cos- do mundo. Isto é, :~
mos, inacessível aos golpes dos hoplitas e abrigo maior da razão; A historio
e restava a vida privada. Quase uma antecipação da frase de estoicismo e o epi
Kant sobre o céu estrelado e a lei moral. idéia sempre tr
Na verdade o afundamento da experiência política atenien- logos e suas leis
se - que aparece implícita ao falar-se padronizadamente da identificação com- -
"grega" - ocorreu aos poucos, no meio de coalisões militares e sempre se destacou.
confrontos internos, inclusive o confronto entre lideranças inte- como "refúgio do
lectuais. O ideal clássico de liberdade perdeu-se no tempo de estilo antigo. Aos •
Demóstenes, quando a autonomia das cidades helênicas se tor- político da Grécia e
nou inviáveF. A "política", que um historiador autorizado como acompanhou, se!!lk"-
Finlay considera uma invenção dos gregos, ou talvez dos gregos mas na verdade h.,.
e dos etruscos separadamente 2 , terá sido engulida naquela fase, epicurista, que Yal
dentro de coordenadas desfavoráveis. Em troca, surgia (talvez De qualquer
ressurgisse) a vida individual. que a polis, mediJa
Ressurgia ou cobrava novo destaque. Aqui entra um tema soberania e sua fo
histórico-clouLrinário específico, o da evolução elo pensamento
antigo sobre a liberdade humana. Ou aludindo-se, um tanto éticas e com os "p.
tardiamente, ao fato ele que nos próprios escravos a alma é livre, era duplo: por um
ou discutindo-se a condição do indivíduo diante dos "liames absoluto em que se
sociais" - como parece ter ocorrido em torno de Sócrates e ele valorizara o saber _
Diógenes-, chegou-se ao problema da dimensão pessoal, senão que se tinha agor-..l
mesmo "interior", da liberdade, pensada em gerações anteriores "República" (Poli;.. -
como condição externa do homem, ou antes: de determinados camente renuncia· -
hom ens. No sistema ~e
Se, como anotamos acima, o que restou depois de certos
fracassos foram o cosmos e a vida privada, entende-se- e isso se clagógica e aclm>n : :
encontra fácil nos compêndios - que as duas grandes filosofias levado a um pont.o
do período final da cultura helênica Gá paralela ao a largamento que depois se ch
da presença de Roma) tenham sido o estoicismo e o epicurismo. a uma existência !!!-
Na fase pós-aristotélica o pensamento grego se concentrou sobre e privada. Talvez:·
certos temas, em particular o reexame do problema do conheci- totélicos terão sid"'
mento e a construção do "ideal do sábio". Vieram também as separação entre '-:
• '!- cosmologias e filosofias da natureza (há uma ampla filosofia da tradição oriental
n atureza na obra de Epicuro), e as pequenas escolas preocupadas lectual e vida poE~·
dali em diante, nas
I. :vi. G. L.llammond, i\ llistoi)'O{Greece, to 322 BC, Oxford, 195!J, cap. VI, fina l. lando entre formas
2. M. I. l-'inlay, A Polltioo110 Mundo Antigo, Rio de Janeiro, Zahnr, J985, p. G9.
ou coisa p arecida. e
I'RIVA1'ISMO E PUBLTCJSMO 49
...
1'
~o à sabedoria e ao gover-. anos ou mais antes de Cristo, se instalou o poder político, com
- e àos interesses particulares, sua armação de hierarquias, correlatas da ordem religiosa; ins-
- · educa das . talou-se também a organização do conhecimento, que no início
- E:rn.est Barker, Platão viu deve ter sido menos crítico, e que também assumiu desde as
e dos sentimentos egoístas; origens um sentido específico em face dos afazeres "normais" do
• · ·e de rival do Estado, fonte viver. Assim imaginamos os sacerdotes e os magos, tal como os
da ,.ida da cidade 1• É fácil monarcas responsáveis por decisões que não se tomam à mesa
' . '
junto com mulher e filhos: rostos antiquíssimos, entre a~~lqUlS-
simas pedras palacianas, insones diante de problemas m1htares,
.;:,._,......_.:1..1grega , e o racionalismo - pragas misteriosas ou latentes conspirações. Assim o sábio da
fo....;.li~IU - foi também um produto República platônica, exercendo o governo longe do povo e da
· ·e!, de resto, que ao tempo família - longe da praça e do jardim-, solitário em relação às
· amen t e nítidas na memó- vidas r ealmente "pessoais" dos homens comuns. Solitário intelec-
::.:2. epoca em que o panorama tualmente dado o nível demasiado "alto" do pensar que cultiva,
~ por grandes famílias, que '
e que o qualifica, - que
e politicam en te, dado o caráter das decisoes
de t ipo feudal e que se tem de tomar e que não competem ao homem comum.
~o cr iticada pelo filósofo), Convenhamos em que o intelectual é realmente um clérigo,
Também em Rousseau- cujo e sua condição específica não configura uma "profissão" determi-
:::e e:::n diversos aspectos aná- n ada, m esmo quando o intelectual exerça esta ou aquela profis-
-=:ades "particul ares" corre são. O político t ambém não representa uma "profissão" em sentido
~o-....;.;,..(..-u definitiva, uma ordem próprio (a não ser na acepção de professio, testemunho, correlata
ve arrastava Jean-Jacques de BeTU{ e com significação peculiar). A condição do político, nos
-.iemocracia totalitária". países capitalistas, atravessa outras condições profissionais mas
-..são u t ópica, que confir- não se identifica com elas, ou não deve idenLificar-se.
- -..... agens centrais da meu- Se por um lado as diversas profissões, que são afaze~es
cLaro ULn traço comum ao socialmente caracterizados, possuem concretamente um sentido
:::::-;. fa:o de que ambos corres- p ú blico, elas em geral permitem ao "profissional" u m tipo_normal
(ou cuja plenitude) parece de vida privada: horários, convívio de família, ocupaçoes pes-
·no!"Illalidade" da existên· soais. Mas na vida política plena, bem como na vida intelectual,
a n ecessidade d e dedicação ou de concentração dificulta o cum-
crrganização urbana - as
=:E pr imento dos afazeres privados. O que nos faz lembrar as obser-
., !..agash- apresentam em vações d e Bernard Shaw, no primeiro ato de Homem e
~a! er e o poder, que parece Super-Homem, ao afirmar que o verdadeiro artista, dedicado que
~as utopias (dos intelec- est eja por inteiro à sua arte, termina por descurar dos laços de
~~'""dos e cortes de dois mil família e até do amor pessoal ("feneçam mil mulheres, se o
sacrifício permite representar melhor o H a mlet ou pintar um
quadro m ais belo"). Só que no caso já entraria a que~t~o do
egoísmo, não dentro da família mas fora d ela; e do narc1s1smo,
posto entre devoção pública e ocupação priva da, ou antes fora de
54 O JARDIM E A l'Ri\Ç!l
ambas, como em um limbo. Aliás Francis Bacon, em seu ensaio Mas voltando
"Of Marriage anel Single Life", já havia dito que os grandes atos niclacle (no sentido
e as grandes obras sempre cabem aos homens descasados e sem temos que nos séc::
filhos, embora os que têm mulher e família sejam em princípio categorias histó~ca,
melhores súditos 2 • rias predominantes'
E aqui uma anotação sobre o intelectual moderno. No caso, civilizações, incl -·
onde os exemplos se acham obviamente mais próximos pa~a nós "militar" e "político
ele hoje, parece aguçar-se aquele conflito latente, que se arma Pode-se obse_
entre a condição elo intelectual, ou elo político, c o viver elos no sacerdote ocorri:'
homens "não especiais" que exercem as profissões especiais. poder político. E!:l
Aquilo que os românticos (sem aludirem ao depois chamado fator existência privada
econômico) designavam como "burguês", constituía na verdade to, senão m esmo--
uma alusão ao prosaísmo elo homem privaclamente ajustado em relação aos afaz
(horários, afetos, obrigações), em contraste com o comportamen- da sociedade e de:;~
to do escritor (aliás parece vir desta visão romântica um certo sões. No caso elo ::L.li..!
conceito que equivocadamente encara o intelectual como "eles- mente um aias-
programado" e boêmio). latentemente o he ~
Nietzsche, em carta de março de 1887 a sua irmã Elizabeth, épica antiga e na-:::::.
falou da hipótese de casar-se, ou de ter-se casado. Dizia: "Se eu exernplaridade,se~
me casasse agora, isto seria apenas uma asneira, que me faria dos e constranged~- ~
perder uma independência que conquistei a preço de meu san- dote teve-se semp_
gue.( ... ) Antes viver miserável, doente e temido em algum canto sagrado; e o sagra
do que arregimentado e situado dentro da mediocridade moder- mundo antigo. ::\Ias
na":3 . a vida entregue à pa
Ou então o conhecido trecho ele Fernando Pessoa, no poema código de n ormas. c_.
"Lisbon Revisited" de 1923: o princípio, vigen:.e
Queriam-me casado, fútil, cotidiano e tributável? a ser exigente cons:,.
fechamento para o_..,.
U ma elas primeiras expressões, vinda aliás do pensamento
social româ ntico, da saturação do existir moderno em t ermos de
espaços e relações, terá sido a obra maior de Toennies, onde se
descreve a sociedade como modo de agrupaçào mais amplo porém conceitos, e não à e
artificial, fundado sobre a "vontade reflexa", e a comunidade corresponcle basi~
como modo mais concreto, mais estreito, fundado sobre a "von- ra. Corresponde -
tade essencial". Desta se passaria àqu ela, como tendência evo- capitalist a. O idea:
lucional genérica. Seria um trânsito do privado ao público?
2. The Moral anel !Tislorical Worhs of LordBacon, Londres, George 13cll, 1890, pág. 19.
3. F. Nietzsche, Lettres Choisies, Librairic S!.ock, Paris, 1931, p. 213.
PLATÃO E O INTELECTUAL MODERNO 55
---5 Bacon , em seu ensaio Mas voltando ao tema do intelectual moderno, e da moder-
«E~ que os grandes atos nidade (no sentido amplo do termo) como gestadora de crises,
- -:::ens descasados e sem temos que nos séculos ditos burgueses entram em crise certas
categorias históricas, entre elas o militar e o sacerdote. Catego-
rias predominantes nas épocas aristocráticas da história das
.... - .
~moderno. No. caso' civilizações, inclusive registrando-se que, em certos contextos,
~ mE.s próximos para nós "militar" e "político" se identificavam.
Pode-se observar que tanto no militar (o "guerreiro") quanto
y.::..:!ico, e o viver dos no sacerdote ocorreu sempre, ele algum modo, a participação no
z: profissões especiais. poder político. Em ambos ocorreu sempre a ausência ele uma
ao depois chamado fator existência privada em sentido pleno. Em ambos um afastamen-
constituía na verdade to, senão mesmo uma posição de real ou pretensa superioriclacle
p~vadamente ajustado em relação aos afazeres comuns, ligados à manutenção material
~.e com o comportamen- da sociedade e definidos depois - ou desdobrados - como profis-
:são romântica um certo sões. No caso do militar, cuja atuação mais específica é social-
~:electu al como "eles - mente um afastamento (estar "em campanha"), teve-se
latentemente o herói, o vencedor armado, cantado sobretudo na
_-:~ - a sua irmã Elizabeth épica antiga e na medieval; o herói com seu distanciamento e sua
-~ ::asado. Dizia: "Se eu
' exemplaridade, sem as contingências nem os compromissos miú-
- a.:::.~eira, que me faria dos e constrangedores do cotidiano doméstico. No caso elo sacer-
~ e: a preço de meu san- dote teve-se sempre a respeitabilida de do homem ligado ao
e ;.enlldo e m algum canto sagrado; e o sagrado sempre esteve nas fundações, dentro do
da mediocridade moder- mundo antigo. Mas a ambos sempre se atribuiu algo ele sacrifício:
a vida entregue à pátria, ou dada à religião. E t a mbém um severo
_,__.ndo Pessoa, no poema código de normas, cujo cumprimento dá direito à reverência (daí
o princípio, vigente nas aristocracias, segundo o qu a l o primeiro
re &ributável? a ser exigente consigo mesmo é o mais nobre: noblesse oblige). O
fechamento para o mundo, para o sexo- no caso do religioso e ao
~ a:iás do pensamento menos em certas religiões-, enfim para a normalidade privada.
...:: moderno em termos de A queda do prestígio do sacerdote e do militar, nos séculos
de Toennies, onde se mais recentes - r efiro-me à vigência histórica de determinados
~o mais amplo porém conceitos, e não à eventual ocorrência de gover nos militares -,
t:xa. , e a comunidade corresponde basicamente ao p rocesso de secularização da cultu-
fm:dado sobre a "vou- ra. Corresponde também ao desenvolvimento da mentalidade
como t endência evo- capitalista. O ideal do progresso, com suas utopias e seu peda-
pivado a o público? gogismo, lançou as linhas d e uma sociedade onde a ciência
conduzisse as crenças, e o domínio do dinheiro (uma realidade
antiplatônica) entronizou o pragmatismo, complementado pelo
tecnicismo, pelo cientificismo e pela especialização. O ideal do
56 OJAIWJM E i\ PRAÇA
Retomo agora
acima, ao epicur::~
gar a frase "de
privada, os r om
singelo ao Impér.o
ritoriais e pela a<i
ft
Nem sempre, por outro lado, o limite entre a esfera pública e Além desta
a esfera privada é bastante firme. O termo latino fornm, que se constituíram er:::
designa algo historicamente correlato à ágora grega e que se feudal na época de
associa para nós à idéia de um espaço público, designou primeiro este sentido misto
o terreno fechado em torno de uma casa, e somente depois é que das signorie itali -
passou a denominar a área de fora das casas, nomeadamente a primórdios: e em à.:=-
praça do mercado 1 • va-se o gosto dos:
Por sinal, ficou constando de um registro de Plínio que o da uilla laurentina
termo hortus, no tempo das Doze Tábuas, era utilizado para o Jovem, que elog:i
aludir às propriedades rurais, passando depois, como se sabe, a sentido as uillae r.e.:
significar "jardim", justamente por conta do conteúdo central da varAm, nos séculos -
palavra hortus: um terreno fechado 2 de dark ages - , o ess
Na variedade de formas espaciais existentes na experiência mundo clássico. E
social romana, cabe aliás destacar o caso das uillae, que repre- paredões pintado:: e
sentou uma outra experiência no tocante aos espaços e às formas. e se perpetuou o m
De certa maneira a uilla, edificação ou conjunto de edificações filhos, modo de com
que servia de centro a uma empresa rural ou a uma propriedade conjunto de elem ~·
"de lRzer" (algo ao modo das "granjas" de hoje), constituía uma ao ntcnos, até o ·-
esLruLura intermediária entre o público e o privado. Nem foi por ocidental do h ab:: a!"
acaso que de certas grandes uillae partiu em alguns lugares a
o:rgRnização do feudalismo. Residência de campo, podendo ser de
tipo propriamente "rústico" ou de Lipo mais urbano, com freqüên-
resultado do esv
cia a uilla incluía um pátio central, misto de praça e de cour;
preservou-se nela o sentido romano da vida agrária, que para
antigo, com asa~
Roma ficou representando as origens, e ao mesmo tempo o
da democracia em
sentido do luxo, Lendo havido uillae imperiais que chegaram a
vivemos t ambém
ser verdadeiros palácios . Dentro do forum romano, perto do Arco
tempo d e Ortega.
de Tito, tive uma vez a emoção de ver os restos de uma uilla
tipo. Os regimes ;::
construída no século XVI por um cardeal, imitando em seus par-
qualidades intr -
ques com larAnjeiras o arranjo das villae do tempo de Horácio.
"informação" e dos
Estou mencionando o tempo de Horácio para citar o conhe-
além de conotare:::::::.
cido estudo de Gastou Boissier sobre a casa ele campo do poeta,
to de persua são p~
que lhe foi presenteada por Mecenas e que ficava perto de Tívoli,
escrito - além dos::-
no vale de Licenza3 .
. ~
bee e tantos mais-
tem seus pessimi:::·
ses têm trazido fo_
L F. Marlin, Les Moto lalins, Ed.llachclle, Paris, W76, pp. 86 c 87.
2. Picrre C ri mal, J.a CiuilisalioJL romaine, Paris, A•·lhaud, 1000, p. 207.
3. G. Boissier, "La Maison de campngne d'IIo race", "''P· I das NouuellesprOIILcnadesarchéologi- '1. André Bcreoff, Mam:.cl -
ques. Ilomcccl Virgile, Paris, llachcttc, 1886. HJ85; i\lain f.'inkiclkr.
OUTRt\ V/!:7. PR/VATJSMO E PUBLJC!SMO 59
- ;.e e!ltre
a esfera pública e
Além desta característica econômico-social das villae, que
~o latino forum, que
se constituíram em núcleos de produção e de aglutinação pré-
• ágora grega e que se
feudal na época de declínio do mundo antigo, há nelas também
~-O::co, designou primeiro
este sentido misto, meio público meio privado, meio prefiguração
e somente depois é que
das signorie italianas, meio repetição das grandes casas dos
....
d'
- - ::asas, nomeadamente a
primórdios: e em algumas delas, as de maior extensão, conser-
registro de Plínio que 0 va-se o gosto dos jardins (é Grimal quem o anota), como no caso
- ih-nas. era utilizado para da villa laurentina, propriedade de um romano amigo de Plínio,
depois, como se sabe, a o Jovem, que elogiava nela a "presença da natureza". Neste
sentido as villae terão s ido um elemento estabilizador. Preser-
- do conteúdo central da
varam, nos séculos iniciais elo medievo- chamados pelos ingleses
de darh ages-, o essencial do acervo ele hábitos e de conceitos do
~ exis:entes na experiência
mundo clássico. E creio que foi no recesso das villae, com seus
!:aS6as villae, que repre-
paredões pintados e seus utensílios domésticos, que se refugiou
-- acs espaços e às formas.
e se perpetuou o modo de vida privado romano: modo de educar
~ con;unto de edificações
filhos, modo ele comer e de dormir, hierarquia familiar etc. Um
ou a uma propriedade
de:: hoje), constituía uma conjunto ele elementos que veio perdurando, fragmentariamente
E o privado. Nem foi por
ao menos, até o início de nosso século, dentro ela concepção
ocidental do habitar e do viver privado.
~.J em alguns lugares a
dr campo, podendo ser de
=ais urbano, com freqüên - De novo sobre o epicurismo. Ele não foi "somente" um
C:SL.O de praça e de cour· resultado do esvaziamento da vida pública grega, dominada pela
- • .. , • J
v1aa agrana, que para vasta onda macedônica: foi um fenômeno elo declínio do mundo
~ e ao mesmo tempo 0 antigo, com a saturação da vida urbana e com a transformação
~r:ais que chegaram a da democracia em utilitarismo e em latente massificação. Hoje
- - r"mano, perto do Arco vivemos também (os que somos, como diriam certos autores do
~s :restos de uma villa tempo de Ortega, "hombres de las postrimerías"), coisas deste
im.:tando em seus par- tipo. Os regimes políticos dependem às vezes m enos de suas
dn ~mpo de Horácio. qualidades intrínsecas do que da viabilidade das técnicas de
"informação" e dos programas econômicos que os acompanham,
além de conotarem estruturas militares, que formam um apara-
to de persuasão paradoxal mas evidente. Vários escritores têm
escrito- além dos pensadores já clássicos como Spengler, Toyn-
bee e tantos mais - sobre o declínio da civilização. Cada geração
tem seus pessimistas, e recentemente alguns escritores france-
ses têm trazido fortes achegas à retórica do pessimismo4 • Este
1. i\nrlr(: llcrcoiT, Manuel d 'Tnslnlclion Ciuique fiOIJr Temps in/.!OUl'ernablrs, Paris, 13. CrnsHCt,
1ml5; i\lain Fil>kiclkrnut, Ln T)1i(a ile de /a J!I!IIS<Íe, cil.
60 OJARDifl.f B A PIIAÇA
2. Domcnico Fisichella. 11
l. A Cu ltura das Ciwdes. t.rad. Nci l Silva, Belo Horizont e, Itatiaia, 19Gl. pas si m.. Scient.ifica, 1987.
ALGUMAS DIGJIESSÕES HTSTÓRICAS 67
3. S ociétéet Communcwté, trad. J. Lcif, Paris, PUP, HJ41, Livro !li, item XIX, p. 201.
ALGUMAS DIGRESSÕES HISTÓRICAS 69
~"-----"""~'"'~
seguinte: o próprio
n
a:..: ~ exemplarmente no
~--rro'' ao direito legis-
Cme::lSão púb lica sobre
--= c ·:-erbo habeo, com
_:::.:~~a raiz que habitare e
Bll!'e o morar, ou seja o
se desdobra em costume.
1. O l'oâer em Cena, trad. Luiz Mourn, 13rasílin, UnB, I!)82. origens, ao menos
OUTRAS DIGRESSÕES ... 7:3
:"~uica dos homens e das Quando se menciona a dimensão privada do viver, está-se
'espaços em Les Mots et colocando o tema da família (e das estruturas de parentesco), que
..---~...~
. . . do neste a
implacável sempre constituiu, em qualquer sociedade, o marco básico da
:oi vigente em escolas J
vida das pessoas. Com isso se coloca, por extensão, o tema do ser
-- o iluminismo. das pessoas, dado em sua existência concreta e em suas conota-
~';O e hierarquia, e com ções mais estreitas. Dispensável porém será, ao m enos no mo-
..... durante decênios "dis~ mento, desdobrar daí o problema da distinção entre pessoa e
('OeS. indivíduo, inclusive porque no caso a individualidade e a "pes-
~ =stituições sociais têm soa lidade" se encontram em um mesmo plano.
~--i.-'icações) específicas, O que se denomina indivíduo, em sentido :mtes psicológico
2!rr:gar), em seus insubs- do que propriamente ético (neste seria realmente mais cabível
-E correspondem à domi~ empregar o termo pessoa) e o que se denomina coletividade são
...::~ unais, os teatros, as coisas que possuem diferentes estruturas. Na estrutura daquilo
- ::mção das partes, na que se conceitua como indivíduo, ou como individualidade, acha~
recesso. ou seja o interior se um conjunto de elementos do viver, que se desenvolvem, quer
- das diversas secções corporal quer animicamente (esta palavra vai no sentido de
rer:-esentação das várias Jung), a partir de experiências que se ligam ao "mundo circun-
-~do juiz, ou dos juízes, dante", ou seja a um contexto caracterizado. Este contexto cor-
do público para quando responde por sua vez, e isto explica e complica, à noção corrente
pa!oo, que é um espaço ele "sociedade", ou por outra, à coletividade tomada em uma
~...:a ;..y,aginária, coloca~se acepção global, específica e provida de conteúdos peculiares. A
..... ~~(outro problema, o coletividade terá então de ser entendida como oposta aos indiví-
~onne a visibilidade, duos, mas também composta por eles, sendo o "social" evidente-
., a:::.r:!gas, o estrado para mente uma condição e um r esultado em relação ao núcleo pessoal
, _-:a c: para os aiunos o do viver, este de resto não totalmente isolável.
as mas tendendo a ser ' Habitualmente pensa-se, ou afirma-se, que os indivíduos
~e!laçào espacial. estão dentro do social, como se este se encont rasse "fora" c1os
111'-"P<::::n<'lndem à representa~ indivíduos . Sempre o uso das a lusões espaciais. Pois bem: a
de cênico, como perce- partir da correlação entre os binômios pessoa/privado e socieda-
cabe pensar, qual fazem de (ou coletividacle)/público, a utilização da metáfora se revela
:..cedoras da his tória, imperfeita: o público se concebe em geral como algo que está fora,
~- da sociedade "bur- ou para fora, e o privado como algo que se acha dentro ou para
:!da.de todos os contextos dentro, mas este não se acha propriamente dentro daquele. Mais:
..,.. este caráter, com o a ambas as noções é cabível atribuir um dentro e um fora, o que
r=ponência do poder e complica o lance.
Contudo, a permanecermos com esta metáfora, valerá ob-
viamente perguntar: o "privado" e o ''público" correspondem ao
dentro e ao fora de quê? Talvez ela casa: a experiência das
origens, ao menos em alguns contextos, avaliza a metáfora. A
71 O JARDIM E A PRAÇA
ce ronstituições, estas der-se dentro do Ocidente a partir dos fins do medievo, modificou
., do lado publicizan- as estruturas do pensar, as do poder, as da economia e também
,parece tão óbvio, como as do existir privado. Com ele a burguesia se consolidou, e com
~ apenas tendências ela o capitalismo; implícita ou explicitamente se consagrou a
:::::encionamos, situou noção de ordem pública. As revoluções "burguesas" (liberais)
_ =-s a estruturação de entronizaram a praça como lugar e fonte, ou símbolo, de decisões
pa:c.~';ar "publicidade". históricas . O iluminismo, que Kant em ensaio famoso vinculou
' !!!'g"'Jês-leigo -racional, à divisa sapere aude, estabeleceu o princípio segundo o qual o
~cada grande contex- conhecimento deve ser público: contra o saber oculto e esotérico
~ dimensão pública e que tin ha sido em parte o da Idade Média. No fundo uma atitude
utópica, no sentido da absoluta difusão das "luzes", e consoante
'E"" concentração e ao com o ideal pedagogista do século XVIII, que pretendia que o
- passou a ser um progr esso - destino inexorável dos povos levasse todos os
__e e.::.-ra formalização homens à plena posse da ciência .
= ::::=ft :Oi obra do libera-
,...._:~-.._.do indivíduo dian-
Detenhamo-nos por um pouco sobre a imagem, sempre
discutível, do trânsito do medieval ao moderno. Esta imagem,
_=atião'" e a este em oriunda do humanismo e de seus prolongamentos- inclusive com
=.:.c::; :ustamente pela os termos empregados por Cellarius -, veio sendo mantida até
nosso século apesar do desgaste da expressão "moderno", e com
ela vieram mantendo-se velhos clichês, alguns verdadeiros ou-
tros nem tanto.
Certos estudiosos têm, como já dissemos, difundido a idéia
-::~ que consiste em ele que na Idade Média teria prevalecido o aspecto privado das
- a.r~o muito uniforme relações e das estruturas. Garcia-Pelayo chegou a adiantar que
"'_ea.:dades pessoais, nos séculos feudais a única coisa realmente "pública" teria sido
Estado por perto. a Igreja. Entretanto, como as imagens referentes a d eterminado
~n e como laicismo contexto são mais isso ou mais aquilo em comparação com as de
-;ão dos contratos, algum outro, o que ocorre é que a p resença do Estado nos séculos
...-:s dentro de uma finais da história romana, repetida de certo modo a partir do
absolutismo "moderno" n as grandes nações européias, faz com
que se veja o longo trecho medieval (confuso e variado mas com
alguns traços constantes) como um tempo onde houve "menos"
"" sucessivas, pois presença de estruturas estatais, e mesmo de espaços públicos no
são variações de sentido moderno. Além disso a configuração do privatismo me-
3a!lio é certo que em dieval se corrobora com o localismo ou "part icularismo", que foi
_ _-.. ::.. ., e elementos que naqueles séculos o complemento dos vínculos p essoais e da
-s:::.am, no contexto mar ca da terr a sobre os valores sociais. Não é por acaso que o
-:: será válido falar trânsito ao "mode rno" envolveu entre outras coisas o advento de
- ge..-lli que, ao esten- um novo sentido de vida urbana, aderido a o crescente papel da
78 O JARDIM/:: 1l PRt\ÇJ\
realmen te encon trar, do espaço público terá tido, no século XX, sua "esquerda" e sua
E5'p:a.ÇO bastante distinto "direita": assim a Praça Vermelha em Moscou com suas monu-
- e i: interessante aludir mentalidades, assim o tema do Lebensraum (espaço vital) no
""'---~. sobr e a relação entre nazismo, assumido inclusive por Carl Schmitt, que publicou em
_...::. 5e acham estudadas 1950 seu livro sobre o "Nomos da Terra" (Der Nomos der Erde)
.:"::"!"am, dos séculos XVI e em 1958 seus concisos "Diálogos sobre os novos Espaços"
e de poder: cidades com (Gespraeche über den neuen Raum).
- r::en:::alidade. Quanto à idéia iluminista, mencionada linhas acima, se-
gundo a qual o saber tende a (ou deve) tornar-se algo público,
:;.c.:-:a ''geral", se refletiu vale acentuar a lgumas de suas correlações históricas. Ela se
,tória divina, heróica e situa dentro da luta ent r e a concepção hermetizante e esotérica
l"~~·~.;;a. metafísica e positiva), elo saber, o saber como uma r evelação a que poucos têm a cesso,
.......zaçào) e também no de e a concepção "aberta", latentemente racionalista (e cientificis -
....s::::.~ feudalismo e capita- ta). Esta luta, que na Grécia antiga ocorreu ao tempo ela sofística,
En:retanto a diferença no século V a.C. , com o cultivo elo debate e com o r e lativismo
==demo t em dois aspectos. epistemológico, reaparece no Renascimento onde certos restos
c.A;:~=:e. uma continuidade, de ocultismo coexistem com os começos ela metodologia científi-
• outro eles representam co-natural moderna. Aliás Marguerite Yourcenar acenou com
-E;;.in:os, e neste sentido o alguns lances do tema em passagens de seu romance histórico A
- ou sociedade moderna, ou Obra em Negro. No fundo, a concepção que aqui chamamos
o que pode existir entre aberta - à falta ele melhor termo - vai desdobrar-se, do século
- no :i.mdo res ultantes do XIX p ara o XX, em um largo processo de ampliação de informa-
ções, ele debates e ele formas de expressão, processo que corres-
ponderá à democratização dos produtos culturais e também à
difusão das "comunicações". Embora que por outro lado as com-
plicações da ciência possam estar levando a um outro modo de
:::e a convenção cronoló- "fechamento", com o saber privativo de poucos - refiro-me às
do século XVIII ao XIX), ciên cias naturais, sobretudo.
"Estado" em diversas Sobr e a democratização elos produtos culturais, Karl Man-
:.GS políticos, com osten- nheim escreveu em 1933 um sugestivo ensaio, com o título de
:nclusive sua presença Demokratisierung des Geistes, que o tradutor espanhol preferiu
rersistência do padrã o verter para Democratización de la Cultura, evitando a tra dução
'i'::ld:)s da antigüidade clás- ele Geist por "espírito", mais correta mas no contexto inviável:
~a. m esa , aniversários, trata-se, no estudo de Mannheim, da influência da democracia,
!:!::! ~empre representa at ri- como fenômeno histórico abrangente, sobre expressões culturais.
~e:nboca em nosso século. Pois naquele ensaio3 o autor tenta estudar a cultura democráti-
-- e os \'alores domésticos ca, que veio crescendo com a própria presença histórica da
-- ~ios reforça m aspa-
:s;e torna geral. A figura 3. Inserido em E nsa)·os de Sociologia de la Cullura, lrnd. M. Snlirez, Mnclricl, 1\guillar, J057.
80 O JARDIM E A 11/lAÇA
os homens e apelam para o Estado (ou para um governo absoluto) redução do indivíduo
com o fim de organizar definitivamente as coisas. Geralmente as mente predatória de
utopias são uma construção a -histórica; suas descrições não modo um tanto ób"-io
incluem a a lusão às "origens", e se mantêm num presente do também ao inaudito
indicativo mais ou menos abstrato. Vejam-se por exemplo as . tais, mesmo nos re.,
explanações do Genovês n a Cidade do Sol de Tommaso Campa- primeiro aspecto g"..ra..
nella (talvez a mais utópica das utopias e a meu ver a mais como as reflexões ex
infantil e mais absurda); vejam-se as de Rafael Hitlodeu na continuações, no t
Utopia de Morus. rede de complicações
Deixemos de lado certas classificações (Ernst Bloch por exem- de fruir com plenitu-
plo falava em utopias da ordem e utopias da liberdade) e tentemos passagem o livro de H
manter uma visão unitária. Há em geral um temp o utópico que não monde moderne1, qui:
é histórico, nem sequer empírico: algo como wna dimensão isenta de mo", o de William ·
mutações. Reflexo, na verdade, do ilustre modelo platônico, onde as focaliza os efeitos do -
reHlidades concretas se entendem - refiro-me à Politeia, que a e o clássico A Mut;; -
tradução habitual chama "República"- como expressão empobrecida colaboração com Na~~
de um paradigma, isto é, de um ideal. Por outro lado as utopias são ondas de Toffler, de-
uma imagem anti-sociológica das coisas, quase como se repudiassem estudos sobre o "pós-
auant la lettre a visão sociológica que ainda estava por vir (falo das
utopias dos séculos XVI, XVII e XVIII). Configuram sociedades onde
nada muda, onde não há "processos sociais".
apontar-lhes a con-:ra
Nas utopias clássicas o poder público é totalitário e é padro-
sões estatais, que co~
nizador. Campanella pretendeu regulamentar comidas e vestuá-
grupos e das p essoas
rio bem como casamento e vida sexual. Também Morus pensou
vida destes grupos do
n~a padronização do sexo e da procriação, chegando a exageros governismo tremen '-
ingênuos, ou mesmo grotescos (extremo oposto da desordem e da
de com as tendências
procriação irracional, que ocorre nos países subdesenvolvidos).
vida privada, esta ~
O modelo de Esparta, tomado como algo positivo por Platão,
são das comunicações
perpetuou-se através dele nas utopias clássicas. Nas utopias do
residência como -.;-á:id
século XX, em especial o Braue New World de Huxley e o 1984 ele
engrenagem meio pe
Orwell atua com sentido negativo um outro modelo, o das
sidade de saber coisas
ditadu;as das décadas trinta c quarenta: a de Stalin, a ele Hitler,
"celebridades" (inclu.s_
a de Mussolini. Sem a mediação histórica do iluminismo e do
O tema da pad-::.
liberalismo, dos estudos antropológicos e do relativismo, não se
em t odos os tempos -
teria chegado a uma visão crítica do modelo utópico, nem ao seu
uso para fins de advertência: advertência contra a padronização
1. Col. Jdt)""• Gallimard, :-:R:"
e o esmagamento do ser humano pelo poder sem limites. 2. N. York, Doubled.ay Ano ~ p
Esta advertência, como se sabe, tem sido feita em outros 3. São Paulo, Perspectiva. 1 9õ~
4. Sobre o problema, Cels-"
moldes e por outras formas de expressão, em nosso século. A l'ensam.enlo de llannah .l
SOBRE AS UTOPIAS 85
(hoje tão pouco citado) chamou lei de imitação-, e que aparece diferentes - , probl -
como algo valioso nas utopias clássicas, ou na maioria delas,
parece assumir um aspecto ostensivo no século XX, justo porque camente, ao conturba
resulta da massificação e do burocratismo-con sumismo (deca- A estas alt uras
dência do Ocidente?); e também porque contradiz o quinhão de entre os diversos co::.
consciência histórica que vem aumentando no homem, ou pelo me ao fato de que o _
menos em alguns homens. Sabemos da grande variedade de a -histórico e n e gado::.-
formas correspondente aos diversos contextos em que vei<;> ocor- d'iniquités), segue
rendo a experiência cultural, mas temos de nos ater a uns poucos e de que ent retanto o
e obrigatórios figurinos no tocante ao pensar, ao vesLir e ao agir. tendência geral é o ·
Seria o caso de entender, com cético desespero ou mórbida e
outro sentido at é
satisfação, que ocorre um retorno aos moldes primitivos (ou pelo imediatismo é capit
menos "arcaicos") de vida, com a a bsorção de ca da um pelo todo. apesar disso ele se ::.
Jean Baudrillard caracterizou como um "confuso amontoado do quase todos os qua
social" a realidade das massas, como força de inércia6 •
O esquem a simplificador, que sempre tenta as mentes (mes-
mo as que se dedicam ou deveriam dedicar-se ao trabalho de veis e no uso gera: do
pensar), ocorre no caso de certos marxistas como uma visão sempre é agradávei. l
linear da história, redutora e maniqueísLa, da qual tem resulta- de é que a humanidad
do a acusação, sem rnais, de conservadores, aos pensadores que suas conquistas em -
vêem de modo negativo a ascensão das massas ou que de algum fonte dessas coisas ~
modo consideram os tempos correntes (isto é , o século XX da
primeira guerra em diante, mais ou menos) como tempos ele
crise: Max Weber, Alfred Weber, Mannheim, Jaspers, Ortega,
Huizinga. O a ssunto, por outro viés, foi colocado por Umberto
Eco em seu Apocalípticos e Integrados, distinguindo entre os que as pós-renascentis tas
dissentem, e falam de decadência , e os que n ão dissentem , e se talidacle que sobrepõe
integram t r anqüilamente à nova cultura de massas. Seria inter- pensamento utópicc "
minável e impertinente arrolar aqui as obras tematizando e que praça, e isto deve ter
vêm teorizando a crise, desde Comte e outros do oitocentos até existe nas utopias. n
Spengler e os que se lhe seguiram, com a contrapartida dos misto de narrativa m:
otimistas (socialistas ou capitalistas) que enxergam na confusão algo mórbido, e isto ">
de hoje o desenlace de um prefixado script histórico ou então ereto-existente, ao q~e
. ,_.....
_
saídas (issues!) muito pragmáticas para a prosperidade social.
Bem assim mencionar os graves proble~as éticos tratados por
precariedades a u topia
nizador, encaixado e -
um Bloch ou por um Gehlen - para citar autores de posições a apagar diferenciaçõ.:;.s:
(ou "fabuladora") se -
5. À l'ombre des majorilés si/endeuses, ou: la {indu social, lrad. bras., São Pnulo, IJrasiliense,
que alimentam o totà.:::
1985.
SOBRE i\S UTOPIAS 87
G. \Vomall i11 lhe Past_ Preselll Glui Future, trnd. A. Walther, 3• ed., Londres W. Rccves, s. ri., p.
221.
13. ABURGUESIA, OLIBERALISMO E
0 PROBLEMA DO EQUILÍBRIO ...
#'
. ""--
desempenha e que inclui seus ídolos (no sentido baconiano), liberalismo iluu~""""'
destacando-se os idola fori, as representações inerentes a cada Francesa e pelos :-·
contexto social (ou profissional). experiência histór!
tativa de equilibra-
1. Séncqnc, Lcllres à Lucillius, trad. F. c P. Richa rei, cd. hilingiic, Paris, Carnicr, s.d., passim; P. pública - cargas e e
Cluwron, De la Sabidurla, lrad. Elza Fabcrnig, D. i\ ires, Losadn, 19~8, caps. L c LI.
A 13URGUESJA, O LIBERALISMO... 91
2. "Vie publique- Vie privéc", con Diogéne, Paris, n. G!.l, jan.-mar., 1.970. 3. Cf. L. llcynolds e N. Wilson , &
•
A BURGUESIA, O LllJERJ\LISMO. .. 93
3. Cf. 1•. n cynnld• ,, N . Wilson, Scribes and Scholors, :t' e<.l., Oxforc.l, 1!)8•1, jJUSSi lll .
94 O JARDIM E A PRAÇA
:ório", que Foucault do trabalho atende a todos. Esta idéia contudo revela, mesmo
que era a inda um uso tendo algo de ilusório, aquela tendência básica a que aludimos.
...5!:10 até o pensar tipo- Um dos equívocos mais insistentes em torno da idéia de
cia faculdade de julgar. burguesia vem sendo o de considerá-la como uma classe social
que "sucedeu" à nobreza como grupo dominante, e que vem assim
'""'à - incluindo nela as dominando o operariado, que por sua vez lhe sucederá. Trata-se
~ b~T·aristas -, vai aqui de um eco elas visões triáclicas que sempre fascinaram os ho-
:; Sempre ocorreu na mens, e dos específicos triadismos que o século XIX formulou
~as, entre a educação para esquematizar a evolução. E este e quívoco se articula com
principalmente pela vários outros. Marx entretanto tratou de pelo menos três modos
escola pública. Em um diferentes o problema de como enumerar e caracterizar as clas-
T"o.ume coletivo sobre ses, e a sociologia posterior situ ou o fenômeno "classe" como um
-:: ~udiu de modo muito dos modos de dar-se a estratificação social.
;:.a::n a priori a noção de Historicamente, a burguesia não "sucedeu" à nobreza (aris-
f: manismo, que segundo tocracia) como "classe dominante": até porque es ta nunca foi
das gerações e dentro classe no sentido restrito do t ermo. Não houve "dominação" da
:l.ade. Os séculos onde nobreza sobre a burguesia, e sim sobre a p lebe - tanto na
~de cidades peque- antigüidade quanto na Europa ocidental - , o que é outra coisa.
e ·e:mpo para a leitura1 . O chamado mundo burguês, cujo início correspondeu ao declínio
_...:.c:sismo, permanece elo feudalismo e cuja ascensão fo i paralela à do capitalismo, vem
- ~~s expressar; pois sendo o mundo ela cultura urbana e clessacralizacla. Somente o
· -e~te e perceber que economicismo que se instaurou na vida contemporânea (na vida
:ecunda nos tempos e na m entalidade), permitiria p ensar-se no capitalismo como
"' "'.sLabilidades sociais centro e causa geral ele fenômenos como "burguesia", "laicização"
e outros. Vem daí a acepção ele burguês como sinônimo ele
tendência do espírito capitalista. De sorte que noções como burguesia e capital foram
:1 vem exis tindo) ao criação elo próprio "mundo burguês", ou seja, o mundo elo racio-
nalismo moderno. Do mesmo modo as versões modernas ela
E.âo é o mesmo que dialética, e os conceitos ele revolução e de proletariado.
-= ""Tõente esparsa e em Hegel tratou da famüia e ela viela p rivada nos §§ 158 e
IE":TT relação aos textos seguintes da Filosofia do Direito (de Berlin, ou seja: as Grundli-
..ro. Yaleria também nien d e 1821). O fato de t er o filósofo mencionado a família como
falar em e quihbrio, "substancialidade imediata d o espírito" n ão o impediu de, no
2'l1:Wiar em Aclam Smith concernente ao Estado (§§ 258 e segs.), repelir todo privatismo,
... e os da coletividade inclusive criticando na teoria política de Rousseau a presença do
=edida em que a divisão componente contratual, a seu ver privatizante. De qualquer
sorte H egel h erdou ele Rousseau a questão ela dualidade existen-
te entre o indivíduo (o "burguês") e o cidadão, correspondent e ao
- s,Riode Janeiro, ~a har, 19G5. dilema entre pertencer à dimensão privada e à pública. O pen-
!)(i OJARDIM EA PRAÇA
sarnento de Hegel vai aqui referido porque, de certa maneira, a e que, ao menos em_
dialética das relações entre o espírito objetivo e o espírito subje- Ortega, o n obre é se
tivo, dentro do sistema hegeliano, poderia comparar-se a uma nos revelam o contra_,
teoria da dimensão pública e da dimensão privada, pois o Direito o nobre atribui (ou
e o Estado são, para Hegel, manifestações da Idéia objetiva. Mas quando, referindo-se
não nos estendamos sobre isto: vale remeter, de passagem, a gostava de piadas c.:.
uma nota muito interessante do livro de Gérard Lebrun, O Hamlet, no monólo-g-
Avesso da Dialética5 • nobre", enfrentar am
Com freqüência se exagera ao acentuar certos aspectos da a esta por uma atiru
época moderna e dos séculos ditos burgueses. É como se o mundo (a velha hybris greg::.
medieval tivesse sido carente de "espaços", de "racionalidade" e Este desdém d:; ~
de outras coisas. Há entretanto alguns traços que caracterizam da, embora se tra:e
o advento da racionalidade pós-renascentista, coligada à secula- romanos mais aust.e.::
rização e a uma idéia peculiar de Estado: acaba-se inclusive o ças, pelas festas e pê
sistema oficial de privilégios, e com ele a educação aristocrática,
islo é, a educação dos aristocratas. Mencionamos acima o am-
biente burguês-comercial, que foi o de Vien a em meados (ou na ções como o do nobre
segunda metade) do século XIX e que vem referido no capítulo VI Eco, logo no prefác~o
do livro Viena Fin-de-Siecle de Carl Schorske (aliás intitulado, a lusão ao cont raste ~
sintomaticamente, A Transformação do Jardim) : um ambiente líptico, a referênc!a
mais prosaico e menos hierático- ou menos vertical- do que os imperante, a recusa e
contextos aristocráticos, mas povoado de vivências novas, inclu- de certas n obrezas .i
sive de novos espaços. o sentiram os româ!:-
De qualquer sorte os modos nobre e burguês, tornados, sou Vigny no verso:
através dos processos históricos, modelos genéricos (que no caso
Seul le silence "'
do nobre tem sentido quase arquetípico), podem encontrar-se,
fragmentariamente ou em forma de detalhes, expressados em
diversos pontos da vida contemporânea, através de valores, Mas r etornem«E
padr ões e atitudes que não se reduzem ao conceito de classe. brio, próprio do laic• ,
A noção paradigmática e arquetípica de nobre continua em Ocidente a presença
vigência dentro das formas de estimação e de linguagem, desig- rece como algo dema.s_
nando atitudes e qualidades: caráter nobre, gesto nobre, inten- aperceb ido aqueles q
ção nobre. A noção se acha penetrada por conotações como os burgueses de care,..
-
"' "desinteresse", "altaneria", "retidão", "altivez" e outras. Entre-
tanto há, na configuração da idéia do nobre - ou do aristocrata,
bém, de certo m odo
contabilidade empr~
que aqui usamos como sinônimo - um aspecto que Ortega fixou
6.
que os rotnanos teriam s ·
5. 'l'rad. 11. J . Ribeiro, São Pau lo, Companhi" da~ Lctrns , ID88, p. 311. Sobre Hegel, v. também
,José Guilherme Mcrquior, O Argumento L iberal, Hio dc J nnciro, Nova Fronteira, Hl83,passím.
•
ll BURGUESIA, O LTDERALTSMO... 97
_~.. de certa maneira, a e que, ao menos em parte, talvez corresponda à realidade. Para
:u.vo e o espírito subje- Ortega, o nobre é sempre "duro, sombrio, caçador". Estes traços
:::a comparar-se a uma nos revelam o contraste com a "frivolidade" e a flexibilidade que
- privada , pois o Direito o nobre atribui (ou atribuía) ao plebeu. Recordemos Hamlet,
da Idéia objetiva. Mas quando, referindo-se a Polonius, dizia ser este um velho tolo, que
;:er , de passagem, a gostava de piadas chulas e de gigas grotescas. Aliás o próprio
de Gérard Lebrun, O Hamlet, no monólogo famoso, refletia sobre o que seria "mais
nobre", enfrentar o mundo e vencer a adversidade ou sobrepor-se
certos aspectos da a esta por uma atitude indiferente, que não permitisse mistura
(a velha hybris grega!) com coisas inferiores.
de "racionalidade" e Este desdém do nobre pelas garrulices "plebéias" nos recor-
~sque caracterizam da, embora se trate de outro plano, o desdém com que certos
~~.coligada à secula- romanos mais austeros aludiam ao amor dos gregos pelas dan-
acaba-se inclusive o ças, pelas festas e pela alegria: greculus histrio6 •
De todos os modos parece comum, em certas épocas, o
_..__O!lamos ac1ma o am- conflito entre atitudes (ou entre Weltanschaungen) gerar posi-
.:::na em meados (ou na ções como o do nobre "sombrio". Assim encontramos em Umberto
referido no capítulo VI Eco, logo no prefácio de Apocalípticos e Integrados, junto com a
~ke a liás intitulado, alusão ao contraste entre a cultura de massa e o crítico apoca-
-~tsrdim) : um ambiente
líptico, a referência à atitude deste, que "opõe, à banaHdade
- vertical - do que os imperante, a recusa e o silêncio" . Silêncio que terá sido, por parte
de certas nobrezas destronadas, a resposta à adversidade, como
o sentiram os românticos desde a primeira hora e como expres-
oe burguês, tornados, sou Vigny no verso famoso:
~ =enéricos (que no caso
Seulle silence est grand, tout le reste est faiblesse.
podem encontrar-se,
tai:..es, expressados em
::.:.ravés de valores, Mas retornemos outra vez ao tema da tendênci a ao equilí-
conceito de classe. brio, próprio do laicismo a cujo processo histórico corresponde no
de nobre continua em Ocidente a presença do burguês. Este equilíbrio por vezes apa-
e de linguagem, desig- rece como algo demasiado prosaico, algo insípido, e disso se terão
t:?e .;esto nobre, inten-
apercebido aqueles que no come ço do século passado acusaram
por conotações como os burgueses de carentes de espírito. E a isso corresponde tam-
vez' e outras. Entre- bém, de certo modo, o fato de a economia burguesa ter criado a
:::re - ou do aristocrata, contabilidade empresarial e as técnicas orçamentá r ias: o modo
-" que Ortega fixou
6. D.ll. Lawrence, uus pti.ginus sobre sua vingCln o os s ítios arqueológicos de Ccrvctcrl, observou
quo os romanos tcrio m sido urna espécie de "prussiAnos" da nntigüidade, a os quais desagradava
• p. i i. Sobro llc{;'cl, v. t.nmhém (com o aos h istoriadores tipo Mommscn) a vida "vício.n" dos etruscos: D. II. Laummcc a11dituly,
~ .1 Fronteira, 1983, JXIBSÍm. Pcnguin Books, 1972, parte 3, " J,;trnsctln Placcs"
!18 O JARDIM e A PIIAÇA A
de viver dito burguês seria no caso um constante evitar riscos, e em Rousseau, coma
como a .vida é feita de riscos ela perde em substância com os que em Platão, e de
excessos de cautela. Agostinho. Não se~~
Uma via)ante, Karen Blixen, refletindo sobre os africanos, radicais e criadoras
observou certa vez que a compreensão do trágico só existe nas montaram esquemas
autênticas aristocracias e no verdadeiro proletariado: o trágico estes esquemas n~
aparece, para este e para aquelas, como parte da vida e até como combinar-se com form
parte de Deus, enquanto que para a burguesia o trágico é algo subseqüentes, dota
des~gradável, algo a ser evitado. Encontrei isto citado em um maior adaptabilidade
livro de Guillermo Floris Margadane. Se afastarmos da obser-
vação o equívoco esquema "nobreza-burguesia-prol etariado", po-
deremos aceitar o registro como basicamente válido e
surpreendentemente interessante. Na verdade, o que ocorre é observar que o pleito
que a secularização da cultura veio a apagar nas sociedades o de coadunar-se com a
patlws aristocrático-religioso, que é requisito do trágico (e que o sentido do "público
foi concretamente no caso dos gregos), trazendo crescentemente lução Francesa se :
o predomínio das formas menos "heróicas" de vida- isso pionei- clássica divisão r om -
ramente Vico percebeu - e entronizando a padronização cultural, do-se este sobre o :~
jurídico-política e econômico-social. Padronização que acarreta- sobre o Direito Nat..
ria o pragmatismo, o utilitarismo e o imediatismo do mundo de vez à tendência do ..
hoje. pressaria inclusiYe
Feitas ou admitidas estas ressalvas, mantemos todavia o sempre alegado "ind!
mérito da valorização do equilíbrio, existente no "espírito" bur- através dos modelos
guês na medida em que tal espírito é uma realidade histórica. estéticos no tocante
Muitos autores, que sem mais aquela combatem a burguesia, sentidodo espaço pú'
confundem o seu conceito com o dos freqüentadores de café-con- inclusive ao processo
certo do século XIX, ou o dos que iam ao jardim do Luxembugo o advento da democ:-
procurar grisettes e lorettes 8 • Estes segmentos da sociedade con- administração racio~
temporânea participam entretanto do modo laico-burguês de Ainda dentro do
vida do mesmo modo que o trabalho científico, cujo mérito nin- demasiado amena p
guém nega, ou os progressos da higiene, dos quais se beneficiam os autoritaristas de ·
os próprios detratores da burguesia. que viria eclodir sob~
a planificação. Den:!"C
É certo, entretanto, que o padrão burguês de pensar, mesmo
• 4
capitalista, privatiz
se o entendemos em sentido positivo, corresponde sempre a algo
keynesiana que tento.u
"não extremado". Assim o teríamos mais em Montesquieu do que
e o capitalismo, bu.s
planos, adotados na::-
7. lntmducciónalallistoria UniuersaldelDerccho, Xalapa, México, Ed. U ni v. Vcracruzana, 107•1,
p. 4G5.
discutir e refazer a.s
8. Cf. Cuide eles Plaisirs de l'aris, l"ouvcllc Eclition, Paris, s.J., pp. 210 c ss.
11 BURGUESIA. O Lll3ERALTSMO. .. 99
nalmente existente e que toda estabilidade deve ter limites, inclusive os limites que
lhe atribuem a consciência ética e o pensar crítico, que são
~l"Íam entre outras obviamente variáveis no tempo e no espaço. Mas é que um dos
-. destacou-se pela
~.grande pensador
aspectos mais dignos de registro, dentro do que se chama de crise
do mundo moderno (ou do "contemporâneo"), é a condição da
,. .
_e!:: to") a o qual certos autoimagem do homem, formada através de séculos ou de milê-
:r:rismo mal digerido nios, dentro do quadro de instabilidades hoje existente. A maio-
posições "conserva- ria das representações fundamentais, algumas mesmo
- das cidades no Oci- arquetípicas, que vieram perfazendo a quela a utoimagem, foi
-e!:!.te uma vasta rede elaborada em épocas em que (ao menos segundo nos parece,
=:JS em cuja estrutura vistas de hoje) predominaram certos traços estáveis: a casa, a
_:,:r. o a dvento de con-
família, as relações de paternidade, a diferença entre velho e
::-=:m o indivíduo solto moço, enfim uma série de imagens, valores e preceitos .
..?-..ililico". O inverso, Ainda até duzentos anos atrás, mais valores e mais pre cei-
Daí a preocupação tos vieram agregando-se. O passar do tempo certamente afeta
~ da planificação
as formas de vida, através dos contextos culturais e das organi-
1las a:terações sofridas zações de poder; mas uma relat iva continuidade pareceu vir
..edades planificadas. acumulando-se, feita ele denominadores comuns vindos das mo-
- entre economia e narquias antigas e da Europa cristã. Coisas contrastantes vie·
e que em cada grande ram coabitando dentro dessa continuidade, confirmando a
-r personalidade, bem autoimagem do homem. Garantia-a, a esta, a noção l atina ele
~enar a sociedade, Humanitas e questionava-a, explorando-a, a legião de a rqueólo·
,.--::ea.....-á portanto algo gos e filólogos que a erudição ocidental produ ziu . Valores novos,
fabricados pelo mundo pós-renascentista, e preceitos novos se
"3" no mundo de hoje, agregaram ao conjunto. Mas depois de certo tempo os questiona-
:-..e das organizações mentos se tornaram maiores, o niilismo tomou corpo, e entroni·
a:::.as demarcações na· zou-se a noção de crise. Decadência elo Ocidente, s aturação elo
-;.e extremo - embora espírito secular, crise da burguesia e elo capitalismo ou o que
õ-=:'l;"esse latente nos seja, para quase todos há algo de podre no reino dos seres
humanos.
Voltando aos séculos pós-renascentistas, valerá anotar isto .
-~m m ais centrais, Entre os séculos XV e XVII, quando certas formas do mundo
:::Z.Ze!!! a fisionomia do antigo parecem r epetir-se - sem entretanto abolição total das
- das estabilidades. criações m edievais-, e quando s e consolidam dentr o de vigências
-.::..-.s:ormações histó- estáveis certos u sos, inclusive os que definem paradigmatica-
s.sem inquebráveis, mente o lado privado e o l ado público da vida, é que se iniciam
a s grandes movimentações que alterarão os mapas e os usos:
Huu:.ana'', em Ensuyos sobre n avega ções, alterações culturais, colonia lismo econômico. Toda
uma nova Voelkerwanderung, com suas conseqüências no plano
102 O JARDIM E A PRAÇA
nial pelos espaços públicos, pelo que não fosse o específico recinto
da casa de moradia e suas adjacências imediatas: inclusive no lhismo político, pa:'"
plano da higiene, vez que o lixo - inclusive algumas formas sa e descontínua p
terríveis de lixo - era jogado à rua (ou ao rio) sem nenhuma como tal.
cerimônia e sem nenhum respeito ao que fosse público, comunal, Por outro lado.
de todos. No capítulo II de Sobrados e Mocambos, o grande Brasil, uma vida p1i?_
escritor caracterizou entretanto o lento trifundo da praça, no se ocorrido a verte::::-
sentido ela viela urbana, sobre o engenho ou sobre a viela ele mos vivido a order::
engenho. O triunfo da praça, isto é, da vida urbana, foi correla- menos no sentido de
iivamente o d a rua, isto é, da viela em espaço público: a rua teria duas carências, de
inexistido dentro do engenho, isto é, dentro da área específica de colonização e no p.:>""
dominação da família patriarcaL A este fenômeno, próprio do Há de qualque
século XIX, teria porém corresponcliclo, segundo Gilberto Freyre, privatismo (o giga!"
a existência (em contrapartida) de um viver mais de casa do que outra coisa), al
de rua no sentido da concentração ele elementos culturais pecu- exemplo este para.d.
liares. tante a violência pri
O tema é vasto, e com ele navegaríamos por águas antropo- semana, assassma·
lógicas, sócio-históricas, histórico-políticas. Imaginamos a figu- violento), e que en_
ra dos heróis fundamentais ele outros contextos, inclusive os Não o tem em ge:- ·
fundadores de cidades- ou ele comunidades nacionais- e encai- aqui e ali ocorrente~
xamos sobre o modelo nossos figurantes históricos, a ver se tamento com a m.J.::
resulta algo no sentido clássico de transcender a privacidade. O nária (que ele resuc
combate contra a concepção elo "herói na história", empreendido especiais).
por certos entusiastas elo coletivismo, despercebeo fato de que o Podemos evide
herói, n este sentido "fundante" (como Numa, como Meroveu, privado, no p aís- _
como Bolívar), se identifica justamente com os traços mais gené- se - , com a perm~-6
ricos e mais "públicos" ela comunidade. E por isso mesmo não ria social: ainda ho:;
exclui o lado social, grupal, do processo histórico; antes existe largas partes do •
com ele. reforma agrária,
Pois encaixamos sobre esses modelos clássicos, carregados manipulam eleiç~
de exemplaridade, os nossos Bonifácios e os nossos Canecas: eles ma se liga inclus;~:
são certamente admiráveis, mas não convencem de todo como instituições com pe.s
criadores de um ethos político, porque o palco é vasto demais (um difundido equívoco
país enorme e heterogêneo) e porque o movimento cênico é que os adotam, is· ft
que pensam que democracia e socialismo significam uma iguali- ram escandalosame •
tarização absoluta no plano privado, quando o problema da além do muito m arc-
igualdade tem outro sentido (alguns parecem crer que a "demo- clero, que teria sido
cratização" consiste em andarem todos de calçajeans e sandálias gerou uma deforma -
de borracha, de preferência os homens com barba para ninguém ladas de uma orden:
resultar diferente). de si, na colônia, um.a
Foi com as estruturas ainda feudais e com o sentido perso- "nobreza" sempre :o:
nalista das coisas que, no Brasil, esbarrou o ideal iluminista do (o adjetivo é de Síb""!~
cidadão, oriundo da conversão do "súdito" em contribuinte e em teve semelhanças co
eleitor. Um ideal cujo alcance estaria em ver em cada indivíduo Europa medieval - .
sua dimensão pública. Um ideal, aliás, basicamente leigo e histórico-social.
urbano; e ao anotar isto passamos a outra reflexão. Estas carências
A distinção entre vida urbana e vida rural, configurada há cultar a estruturat;M
milênios, vigorou na antigüidade e na Idade Média. As primeiras a correlação ent re •
civilizações foram (ou giraram em torno de) cidades, e o urbano política e uma elite '
em sentido específico correspondeu a um padrão qualitativo de Retomando po:!'
vida ("urbanidade" e "modos urbanos"), sendo o viver no campo, faltado aos brasile·
ao n1enos em certos casos, considerado algo negativo ("rusticida- institucional) da v·!o. -
de", "vilão"), isto apesar do perpétuo fascínio do bosque e dos possibilidade conc!"e-
prados sobre a mente humana, e até da imagem do camponês •
um pa1s .... •
cuJa 1
popwa -
como gente pura e ainda não corrompida. A partir do surgimento br adoras, a consciêr:
elas grandes cidades, as pessoas se educam para viver de modo !ativamente. Com o E.:.:!
"urbano" (por ou para viver na cidade). Mas no Brasil aquela política, inclusive ec
distinção milenar vem sendo desfeita, sobretudo em certas áreas nos dezoito anos de
-o Nordeste inclusive-, onde o empobrecimento e as migrações densidade dos cleba::.e,
c arreiam para as cidades levas de pessoas que não têm condições popular. Com o golpe
ele viver adequadamente em um perímetro urbano. O problema se fizeram diversas ~
não é propriamente ele classe, nem ele pobreza material apenas, rep ressão e a clesin:"'c~
pois numa cidade como o Rio os sambistas do começo do século debates v em enseja!:
já tinham comportamento urbano (como os fadistas de Lisboa ao são entre as linhas _
tempo de Eça ou os tocadores ele tango em Buenos Aires antes com os sindicatos o~
mesmo de Gardel). lamentar e m anter ::.
idéia ele revolução ora,
Não sei até que ponto terão sido estudadas e compreendidas ao conceito de "ocu._
as razões pelas quais teria faltado ao Brasil, desde cedo, o continua pensando n
sentido daRes pública, seja em que medida isto de fato ocorreu.
Em outros países latinoamericanos a imprensa e a Universidade Um privatismo _
surgiram bastante cedo; entre nós (que entretanto tivemos ve- leiro. Sem jardins ::::--:!!
reanças municipais durante a colônia) estas duas coisas tarda- influências aclequaG.::.
&
-=:i!cam uma iguali- ram escandalosamente. Talvez tenhamos tido, além disso, e
!> o problema da além do muito marcado feudalismo, um excessivo predomínio do
clero, que teria sido normal em outro contexto e que entre nós
gerou uma deformação das hierarquias eclesiásticas, desarticu-
ladas de uma ordem política correlata. O clero não tinha junto
de si, na colônia, uma aristocracia verdadeira, originária. Nossa
"nobreza" sempre foi uma casta de senhores rurais truculentos
(o adjetivo é de Sílvio Romero), cujo poder, se no sentido formal
teve semelhanças com o de toda outra nobreza - inclusive a da
Europa medieval-, era totalmente distinto quanto ao significado
histórico-social.
Estas carências e estas deformações convergem para difi-
cultar a estruturação daquilo que foi modelar na antiga Roma:
a correlação entre um povo com presença contínua na vida
política e uma elite (inclusive a do Senatus) séria e levada a sério.
Retomando por um instante a referência ao fato de haver
faltado aos brasileiros o hábito (e por assim dizer o sentido
institucional) da violência pública, vale reiterar que o sentido da
possibilidade concreta da luta tem com freqüência faltado. Em
um p·aís cuja população vem crescendo em proporções desequili·
bradaras, a consciência de povo não se tem desenvolvido corre-
lativamente. Com o Estado Novo o "povo" foi um lance de retórica
política, inclusive ecoando nas canções "patrióticas" dos anos 40;
nos dezoito anos de duração da constituição de 1946, a pouca
:i' e as migrações densidade dos d ebates tornou como que desnecessária a pressão
-~ não t êm condições popular. Com o golpe de 1964, o povo foi um conceito sobre o qual
ano. O problema se fizeram diversas colagens, com slogans oficiais recobrindo a
" ll!aterial apenas, repressão e a desinformação. E de 1980 para cá a reabertura dos
começo do século d ebates vem en sejando vários equívocos, inclusive com a confu-
~:as de Lisboa ao são entre as linhas ideológicas (o Pl' dividido, o PC dividido) e
com os sindicatos oscilando entre ascender à representação par-
lamentar e manter a atividade pedestre: de todos os modos a
idéia de revolução ora está com a extrema esquerda ora dá lugar
"' e compreendidas ao conceito de "ocupar espaços", enquanto a extrema direita
d esde cedo, o continua pensando no putch como sempre.
_s:<f de fato ocorreu.
e a Universidade Um privatismo sem jardins: dir·se-ia ser este o caso brasi-
_ ;.anto tivemos ve- leiro. Sem jardins pelo fenômeno da pobreza ou por falta de
duas coisas tarda- influências adequadas. Os jardins dos subúrbios das cidades do
108 OJ;\RDIM 1.; 11 1'/li\ÇA
-.::~ à ambigüidade
____....;;a,:rrente extenso, e
~.. -::inar comunida-
....s e e erro em que
=::-*"'..!ttU-a s sócio-polí-
~ do p assado; nem
- 2~ é realmente
--- sócio-político)
:a ~:1e se formulem
e .:":exú-el caiba a
2estroncar-se do
~ado em termos
------------~-----~---------·__j
110 O JARDIM E A PRAÇA
Mas ela sempre constituiu correlativamente uma imagem sen- é que a família não e
sível (se não me engano Jung escreveu que as representações que em contextos ou
fundamentais são simultaneamente idéias gerais e imagens (tem sido moda citar
sensíveis), sobretudo se se tem em conta o seu "forro": a noção lhia os chefes, bem
de humano. A consciência que os homens possuem de fazer parte onde as mulheres f ->7
d e uma espécie, com caracteres tais e com tal ou qual situação refiro ao que ficou cc
no mundo, é fruto (mas ao mesmo tempo condição) deste perpe- co-romano e també::::J.
tuar-se da imagem do homem, que veio das mais velhas culturas presença o elemento
e vem atravessando épocas e contextos. As alterações históricas equilíbrio - mesmc
se inscrevem sobre - ou dentro de - um conjunto de traços, nos aparência, e a s m ull:.
quais se delineiam constâncias e inconstâncias. Nesses traços se em certas ocasiões.
entrevê o ser-do-homem, e aquelas alterações são correlato de Os igualitaris~~~
uma série de paradoxos e antinomias que terminam por ser minismo" - em alg' -
constitutivos do humano. Assim o homem se apresenta sempre ensejaram a partic!
colocado entre isto e aquilo: entre o passado e o futuro, entre ca. Só que, de certo-=.
projetos e lembranças, entre ir e voltar, entre tempo e espaço, Mas voltemos :::.~
nascer e morrer, pequeneza e grandeza, bem como entre paz e
guerra, masculino e feminino , uno e múltiplo, renovação e ruína.
Do mesmo modo entre a casa e o mundo, entre côncavo e convexo,
entre o jardim e a praça. "Colocado", mas por si mesmo, visto que
todas estas são coisas que ele mesmo p1·oduz . Deste modo o un1 nasce na casa.
homem se reconhece em seus próprios dualismos, em seus para· situação social: eis .._
doxos e suas contradições; ele toma estas coisas como demarca- pode ser hermenêut:.:::a..
ções necessárias à compreensão de si mesmo.
Insistamos n a i:
Menciono estas dualidades constitutivas, integrantes do ser riência dos parques p ....
do homem (do s er c do estar), para destacar esta bipartição- de jardins, mas alguns
que este texto vem tratando - entre o viver privado e o viver
público. O viver "consigo m esmo" (ou com os seus, como se diz), ria: o dos passeios aJ
e o viver com o grupo, ou no grupo, aliás os grupos: obviamente edificações caracter:su
o homem é o cria dor da vida social c os homens são obra dela ticular, questionado
(saiamos assim, p or um pouco, da pergunta circular). em contraste com os-
Para a experiência clássica, isto é, a dos "antigos" e de até (certos historia dor es
umas tantas gerações, o equihbrio entre esfera pública e esfer a pela Via Sacra)2 .
privada se dava mais ou menos deste modo: da famHia partici-
Portanto a ses
pavam tanto a mulher como o homem, mas somente os homens
participavam do "povo" e da vida pública. Poderia pensar-se, pelo
fato de a mulher "governar" a casa, na expressão romana, sendo
a vida militar e administrativa coisa de homens, que o lado
I.
privado é mais feminino (e o público, masculino), mas a verdade 2.
O IIOMEM: CONSTANTES E DUIILIDIIDES 111
>::::!na imagem sen- é que a família não existiria sem o pater. Sabe-se evidentemente
a3 representações que em contextos outros as mulheres tiveram presença política
: erais e imagens (tem sido moela citar tribos onde o conselho das mulheres esco-
seu ~forro" : a noção lhia os chefes, bem como o caso de certos grupos germânicos,
em de fazer parte onde as mulheres faziam parte do conselho de guerra), mas me
ou qual situação refiro ao que ficou como imagem clássica dentro elo legado gre-
~.-õi.L;...,.a- o deste perpe- co-romano e também posterior. O fato é que com sua dupla
presença o elemento masculino teria tido a incumbência do
equilíbrio - mesmo que isso em certos casos tenha sido só
aparência, e as mulheres tenham exercido influência informal
em certas ocasiões.
Os igualitarismos contemporâneos, trazendo consigo o "fe-
minismo" - em alguns casos ligado ao próprio socialismo -,
ensejaram a participação das mulheres no povo e na vida públi-
ca. Só que, de certo modo, a troco da crise da família.
Mas voltemos aos dualismos. Casa e "mundo" são em ver-
dade espaços, são lugares onde se esLá, são p lanos do comprome-
timento do homem consigo mesmo e com seus símbolos. Planos
da ação e da linguagem, embora o termo ação caiba melhor, como
bem viu Hannah Arendt, ao plano público. A linguagem de cada
um nasce na casa, mas a linguagem da casa nasce de uma
situação social: eis uma circularidade que pode ser dialética e
pode ser hermen êutica.
Insistamos na alusão ao mundo clássico. Em Roma a expe-
mregrantes do ser riência dos parques públicos, apesar de certa ambigüidade (eram
e:;ta b1partição- de jardins, mas alguns eram propriedade privada do imperador)
privado e o viver ensejou a consagração de um modelo de."lazer" que se perpetua-
se. .s, como se diz), ria: o dos passeios ao longo de vastos jardins, vastas áreas com
grupos: obviamente edificações características 1 • O conceito de donws como casa par-
_en.s são obra dela ticular, questionado por certos autores, prevaleceu precisamente
em contraste com o sentido público das áreas abertas ao passeio
(certos historiadores citam o gosto de Horácio em deambular
pela Via Sacra?.
Portanto as estampas provindas da antigüidade assinalam
dois componentes característicos: o irredutivelmente privado e
- pensar-se, pelo o necessariamente público.
-sãü romana, sendo
c;::ens, que o lado 1. l .éon Homo, Nome Império,/~ ~t l'urlmnisme rlons l'nntiquité, Paris, AlLiu :\1ichcl, 1071, p. 400.
---~ . mas a verdade 2. Lc.:-ou 1Tomo, op. cit., passim.
112 OJARDJM E A PRAÇ1l
o
Referimos, acima, a possível correlação entre o dualismo
Podemos lemo-
dimensão pública/dimensão privada e a diferença, aliás sempre
igualdade se comp"!'EI
meio imprecisa, entre o "objetivo" e o "subjetivo". Não é uma
contextos históricos
correlação plena, mas os dois dualismos parecem corresponder-
ceituais. Em algun.s 1
se em parte. Toda a extensa região da subjetividade, indefinível
acha ligado à visão _
em suas lindes mas inteligível como alusão, com seu conteúdo de
cita: assim qu ando :..
imagens e de sentimentos, símbolos e representações, pode ser
distinguir ent r e o _
creditada ao lado "privado", se o tomarmos como recinto funda-
na cabeça a conce~
mental das relações que criam a consciência. Há porém que noção laico-mode~
dar-se um desconto, pois essas relações se ligam ao âmbito
Tais problem~
extra-casa, e porque neste âmbito vigoram também símbolos e
O tema veio desde a
representações . Para citar ainda uma vez Platão, aquela corre-
político" e chegou a
lação foi uma das coisas que percebeu o autor do Timeu . Ele quis
onde Marx tiraria ~
cancelar as oscilações da subjetividade (e da opinião, doxa),
segundo a qual o h..
eliminando, para os sábios ao menos, a vida privada. Com isso
verdade o pr oble:ma
resguardava a ciência e a política, resguardando a objetividade
trar as variáveis ~s-
e a coisa pública.
0 que s ignifica q~r
mat erial empírico.
Tudo isso leva a lembrar que, para aludir à "condição" do
Entret anto, a ='
homem não basta mencionar o seu estar no mundo (o sempre
manos, cabe recon}r
citado i'n-der-Welt sein, de Heidegger). É preciso dizer de seus
eis os. Em E l Ho11';
enraizamentos e de suas constantes universais; da ligação dos
homens a contextos e a urdiduras institucionais: família ou clã,
vago permanece, ;.,.
Igreja ou Guilda, partido ou clube, empresa ou o que for. As
dade". Preferiu e:e::
referências que se têm como "valores sociais" c01·respondem sem
lei, estado, a falar de
dúvida à imagem que o homem tem, em cada época ou contexto,
guês (como "people
de si m esmo e da sociedade. Isto é mais ou menos evidente, mas
embora possamos e
há que ser sublinhado. Dir-se-á que aquela imagem depende
diz, toda a gente s
muito do poder, e portanto corre por conta dos homens que
Gabriel Mareei em -
dominam, mas aqui se trata de r epresentações muito genéricas:
"o homem" abrange tais e tais homens, tais e tais situações, tais
isto é, nas coleti·-!
e tais estimações sobre dominação e formação de imagens.
classe, Volksgeisr =-
Há valores sociais cuja variabilidade histórica tem que ver
será sempre o poss~
com as alterações ocorr idas no espaço público, e também com o
definida. P or certo -
sentido das relações entre a vida pessoal e as instituições . Há
válida: não devemcs
períodos históricos em que uma estrutura político-social comple-
sociologias realmen-
xa, mas flexível, propicia uma vida institucional estável: foi o
gir o humano ao qü.e
que ocorreu em Roma nas melhores fases do Império.
no" está também n.os
Ortega exager a-\·a - _
O 110MEM: CONSTANTES E D UALIDADES 113
é um processo de
~ga sucessão das
- c!.:- equilíbrio. Nas
~ =por um pouco
':: persas, gregos),
_ =~be conhecido, Pensar no "ser humano" não deve ser apenas pensar em sua
~. e equilibrando figura específica, mas também nos complementos e implementes
,.,_~ca simbológica. que, com o passar do tempo, se incorporaram a ela. Eles repre-
de diversos lega- sentam coisas que os homens, em grupo ou individualmente,
irOCO de deforma- fazem, ou coisas em que crêem: pensamos a figura do homem
~ que integram e com indicações referentes ao tempo, às paixões, ao trabalho.
;e::1os dizer então Deste modo pensamo-la com armas e vestes, barcos e casas.
..:a::.::do. vem sendo Pensamo-la sobre paisagens ou entre paredes, com ou sem árvo-
-~. ora por um ora
res, com ou sem instrumentos, inclusive estes instrumentos do
-"e o compõem; mas viver que são os "móveis" da casa .
..::c•en~ado, e do que Mas deixemos de lado por um momento os estereótipos das
-:o a Yida interior estampas - o intelectual com livros, o militar com a espada - , e
fixemos a alusão à paisagem, que aqui vai entendida em sentido
amplo, como o fundo sobre o qual se desenha a imagem: claro ou
escuro, rio ou mar, parede urbana ou bosque rural. Quero dizer
o seguinte: há em cada época uma correlação entre a concepção
dominante a respeito do homem (e do mundo) e a estética de sua
figura, que se representa em ligação com determinado tipo de
paisagem. No caso egípcio todos recordam a combinação entre as
ccn.,.-eniências par- figuras de perfil e as colunas hieráticas, com base em forma de
-=-~ado ponto. lótus. Nos r elevos assírios, a presença ele árvores perto dos heróis
116 OJ,\RDIM E A PRAÇ;\
- a nda e com a pendor metafísico tende sempre aos dualismos, os dualismos que
~ in.t.eligível. No
_:a._.-am a m edicina
....::::.. Fizeram colu-
- toda cosmologia filosófica atribui ao "mundo" são correlatos
daqueles que se podem atribuir a o "homem" quer por conta de
uma visão essencialista quer à b ase de uma reflexão histórica e
.L.idade aos bos - empírica. Com isso reiteramos a a lusão aos dualismos constitu-
3 :!euses, sobre a tivos, de que falamos acima e que integram a imagem do homem,
-E .suerras.
recheada de binômios e atravessada de paradoxos .
~" ;unto ao qual O humano é certamente a lgo unitário, visto no tempo como
se '"acrescenta" ao constante e constatado dentro dos quadrant es do mundo através
e !ronta cidades; de uns tantos "denominador es comuns". E ntretant o ele é com-
- ::?.L~za, reduzida, plexo, variável e formado de ant agonismos. À medida que a
,.. ~o na estru t ura consciência filosófica se convence disso, ela deve tender ao rela-
sobreposição ao tivismo e à aceitação das diversidades, que diferem do uno mas
~- -gas e nos retra- acabam revelando-o: daí que seja perfeitam ente legítimo admitir
a: ~exto de Spen- o pluralismo das interpretações, podendo-se acolher cada inter-
e o retrato"). O pretação do homem (e de sua história) naquilo que enriquecer
Ee est.ende, como coerentemente a compreensão de seu ser. P arece -nos inclusive
- à transcendên · que uma das tarefas da filosofia, neste segundo t om o do século
::1ra se acha solta corrente, e que não foi entretanto cumprida (embora a chamada
· Acha -se posta teoria hermenêutica tenha fornecido alguns elementos para tan-
poh:rona: dimen- to), teria sido o esforço no sentido de ent ender a própria possibi-
depois do essor lidade de diversificação das interpretações como correlato da
,.... ~:o em s eu entu- diversificação real do humano, refratado entre suas finitudes e
3-e retratarem os fragmentado entre pendores opostos.
-~~cia arrumados A reconciliação do "homem moderno" com o homem genéri-
co, que é histórico sendo t rans-histórico, dependerá da superação
re~resentada em de alguns reducionismos, e da recondução de certos dualismos-
:res.5am sua relação não todos - às sínteses positivas que lhes correspondem. As
-.o. Isto inclui o sínteses não fundem: reúnem, mantendo distinções. A diferença
-e cem rios, e tam- en tre as fissuras destrutivas e as cont radições fecundas caberá
:;:-e pedra, o Fausto a uma teorização que não seja unilateral e que ilumine a autoi-
estadista do oito- magem do homem de modo ao mesmo tempo crítico e criador. As
-.: ::::.ossos dias que contradições fecundas são as que cabem dentro do ser do homem
como complementa ridades, e ao compreendê-las veremos que
1relha e inegligen· algumas dualidades se tocam e se completam, conforme o mo-
es:e\·e em tantas mento e a perspectiva : assim se tocam os começos e os fins, as
reapareceu em causas e os efeitos, as teses e as antíteses, o sagrado e o profano,
~dado que r equer as essências e as existên cias . A liberdade pode ser disciplina, a
pensamento de autoridade p ode ser o diálogo, o poder pode ser justiça; o público
120 O Ji\RDJM E A PRAÇA
9 7 88531 4016 33