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UNIVERSIDADE SALVADOR - UNIFACS
COMUNICAÇÃO SOCIAL COM HABILITAÇÃO EM
PUBLICIDADE E PROPAGANDA

THIAGO DAVID RAMOS DE NOVAES

ESCAPISMO NO CINEMA DE WOODY ALLEN:


Uma Análise Do Filme Neblina e Sombras

Salvador
Dezembro de 2013
 

Thiago David Ramos de Novaes

ESCAPISMO NO CINEMA DE WOODY ALLEN:


Uma Análise do filme Neblina e Sombras

Monografia apresentada ao curso de


Comunicação Social com ênfase em
Publicidade e Propaganda da
Universidade Salvador - UNIFACS como
requisito parcial para obtenção do título
de graduação.

Professora Orientadora: Dra. Vanessa


Brasil Campos Rodriguez.

Salvador
Dezembro de 2013
 

Thiago David Ramos de Novaes


ESCAPISMO NO CINEMA DE WOODY ALLEN:
Uma Análise do filme Neblina e Sombras

Monografia apresentada ao curso de


Comunicação Social com ênfase em
Publicidade e Propaganda da
Universidade Salvador - UNIFACS
como requisito parcial para obtenção do
título de graduação.

________________________________________
Vanessa Brasil Campos Rodríguez (Orientadora) - UNIFACS

_________________________________________
Paula Corrêa Menezes Leitão - UNIFACS

_________________________________________
Ederval Marques Miranda - UNIFACS

Salvador, 02 de Dezembro de 2013


 

Ao acaso,
Pelo suor e pela sorte.
 

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai agradeço com um yippie kay yay

À minha mãe agradeço letra por letra.

Ao Meu irmão agradeço em melodias.

À Tainá agradeço até que adormeça.

Ao David David agradeço com risadas.

À Vanessa Brasil agradeço além do espelho.

À Paula Corrêa agradeço um pouco solto.

Ao Ederval Marques agradeço com loucura.

À Gritto agradeço mais maduro.

À Vera agradeço porque sinto.

Aos meus amigos agradeço esquecido.

Aos familiares agradeço pelo sangue.

Ao Rio agradeço com sotaque.

À Salvador agradeço enquanto sigo.


 

Oriente

Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração

Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação

Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Adão

Gilberto Gil
 

RESUMO  

O presente trabalho tem como objetivo esclarecer o que é escapismo,


pontuar como o escapismo se manifesta no cinema de Woody Allen e
analisar o escapismo no filme Neblina e Sombras (Shadows and Fog, 1991).
O projeto se baseia na concepção dada pelo Geógrafo PhD Yi-Fu Tuan em
seu livro Escapism (1998), complementado pelo O mal-estar na civilização
(1931) de Sigmund Freud e na metodologia de análise semiótica baseada
nos Três Registros de Gonzalez Requena (2007). Este trabalho é dividido em
três capítulos de fundamentação teórica, nos quais respectivamente se
tratam de Cinema clássico, maneirista e pós-clássico; Escapismo; e Cinema
de Woody Allen. A análise busca dissecar os elementos escapistas do filme
através de seus aspectos metafóricos, cênicos e narrativos, pontuando as
similaridades entre a teoria de Tuan e a produção de Woody Allen. A questão
principal que motivou esta pesquisa foi “o que é o escapismo na obra de
Woody Allen?”

Palavras chave: Escapismo. Woody Allen. Cinema. Neblina e Sombras.


Análise
 

ABSTRACT

This research has the purpose of unveiling what is escapism, of


understanding how does it appear in the films of Woody Allen and also has
the purpose of analyzing escapism in Shadows and fog (1991). This project is
based on the conceptions presented in the book Escapism (1998) by the PhD
Geographer Yi-Fu Tuan and is complemented by Civilization and its
discontents (1931) written by Sigmund Freud. The Analyzing methodology is
based on the three registers of Gonzales Requena (2007). This present work
is divided in three chapters of theoretical base in which are respectively about
Classical cinema, mannerist and post-classical; Escapism; and the cinema of
Woody Allen. The analysis means to dissect the film’s escapist elements by
its metaphors, narratives and scenic aspects while marking the similarities
between the theories of Tuan and the productions of Woody Allen. The main
question of this research was “what is escapism in the work of Woody Allen”?

Key-words: Escapism, Woody Allen, Movies, Shadows and Fog, Analysis


 

LISTA DE FIGURAS
F. 1  ..................................................................................................................................  81  
F. 2  ..................................................................................................................................  81  
F. 3  ..................................................................................................................................  81  
F. 4  ..................................................................................................................................  82  
F. 5  ..................................................................................................................................  82  
F. 6  ..................................................................................................................................  83  
F. 7  ..................................................................................................................................  83  
F. 8  ..................................................................................................................................  83  
F. 9  ..................................................................................................................................  84  
F. 10  ...............................................................................................................................  86  
F. 11  ...............................................................................................................................  86  
F. 12  ...............................................................................................................................  88  
F. 13  ...............................................................................................................................  88  
F. 14  ...............................................................................................................................  88  
F. 15  ...............................................................................................................................  89  
F. 16  ...............................................................................................................................  92  
F. 17  ...............................................................................................................................  93  
F. 18  ...............................................................................................................................  93  
F. 19  ...............................................................................................................................  95  
F. 20 – Detalhe da mão  ................................................................................................  95  
F. 21  ...............................................................................................................................  96  
F. 22  ...............................................................................................................................  97  
F. 23  ...............................................................................................................................  97  
F. 24  ...............................................................................................................................  98  
F. 25  ...............................................................................................................................  98  
F. 26  .............................................................................................................................  101  
F. 27  .............................................................................................................................  102  
F. 28  .............................................................................................................................  102  
F. 29  .............................................................................................................................  103  
F. 30  .............................................................................................................................  103  
F. 31  .............................................................................................................................  105  
F. 32  .............................................................................................................................  107  
F. 33  .............................................................................................................................  107  
F. 34  .............................................................................................................................  109  
F. 35  .............................................................................................................................  109  
F. 36  .............................................................................................................................  110  
F. 37  .............................................................................................................................  110  
F. 38  .............................................................................................................................  110  
F. 39  .............................................................................................................................  111  
F. 40  .............................................................................................................................  111  
F. 41  .............................................................................................................................  112  
F. 42  .............................................................................................................................  112  
F. 43  .............................................................................................................................  113  
 

F. 44  .............................................................................................................................  113  
F. 45  .............................................................................................................................  113  
F. 46  .............................................................................................................................  114  
 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 16

2 CINEMA CLÁSSICO, MANEIRISTA E PÓS-CLÁSSICO ......................... 19

2.1 Cinema Clássico .............................................................................. 19

2.2 Cinema Maneirista ........................................................................... 21

2.3 Cinema Pós-Clássico ...................................................................... 22

3 ESCAPISMO. ............................................................................................ 23

3.1 Introdução ao Mal-estar, de Freud. ................................................ 23

3.1.1 Três construções auxiliares ...................................................... 23

3.1.2 O sofrimento e a infelicidade .................................................... 24

3.1.3 A felicidade e o equilíbrio .......................................................... 25

3.1.4 Os benefícios da civilização ..................................................... 25

3.1.5 Liberdade e instinto. .................................................................. 26

3.1.6 Conflitos na civilização e a superação do instinto. ................ 27

3.2 O Escapismo de Yi-fu Tuan. ........................................................... 27

3.2.1 Terra ............................................................................................ 29

3.2.1.1 A incapacidade de lidar com os fatos ............................... 29

3.2.1.2 A natureza e o real .............................................................. 30

3.2.1.3 A natureza e a sociedade ................................................... 30

3.2.1.4 Escape para a natureza e da natureza .............................. 32

3.2.1.5 Civilização como natureza. ................................................ 32

3.2.1.6 Escape para o real .............................................................. 33

3.2.2 Animalidade ................................................................................ 34

3.2.2.1 O escape da condição animal. ........................................... 34

3.2.2.2 Os pecados da animalidade ............................................... 35

3.2.2.3 Ressignificação da animalidade ........................................ 36


 

3.2.2.4 A morte como afirmação da animalidade ......................... 37

3.2.3 Pessoas ....................................................................................... 38

3.2.3.1 Pertencimento e desconexão ............................................ 39

3.2.3.2 O peso da cultura ................................................................ 40

3.2.3.2.1 A guerra .......................................................................... 40

3.2.3.2.2 A identificação ............................................................... 41

3.2.3.2.3 O idioma comum............................................................ 41

3.2.3.3 A solidão, a erudição e o pertencimento .......................... 42

3.2.4 Inferno ......................................................................................... 43

3.2.4.1 O vazio corrosivo ................................................................ 44

3.2.4.2 Os monstros ........................................................................ 45

3.2.4.3 Crueldade ............................................................................ 45

3.2.4.4 Submissão ........................................................................... 46

3.2.4.5 Necessidades imediatas .................................................... 47

3.2.5 Céu .............................................................................................. 47

3.2.5.1 Conhecer o mundo ............................................................. 47

3.2.5.2 Facetas da realidade ........................................................... 49

4 O CINEMA DE WOODY ALLEN ............................................................... 50

4.1 Apenas Allan .................................................................................... 50

4.2 De Allan a Allen ............................................................................... 51

4.3 O começo de um comediante ........................................................ 51

4.4 O que é que há gatinha? ................................................................. 52

4.5 O que há tigresa? ............................................................................ 53

4.6 Cassino Royale ................................................................................ 53

4.7 Um assaltante bem trapalhão – Estreando como diretor ............ 54

4.8 Bananas e o encontro com Diane Keaton .................................... 54

4.9 Tudo o que você queria saber sobre sexo (...) ............................. 55
 

4.9.1 Cinema de autor ......................................................................... 56

4.10 O dorminhoco .................................................................................. 56

4.11 A vida e morte de Boris Grushenko. ............................................. 57

4.12 Noivo neurótico e noiva nervosa ................................................... 58

4.13 Interiores .......................................................................................... 59

4.14 Manhattan ........................................................................................ 60

4.15 Memórias .......................................................................................... 61

4.16 Sonhos eróticos de uma noite de verão e Mia Farrow ................ 62

4.17 Zelig .................................................................................................. 62

4.18 Broadway Danny Rose ................................................................... 63

4.19 A Rosa púrpura do Cairo ................................................................ 63

4.20 Hannah e suas irmãs ...................................................................... 64

4.21 A era do rádio .................................................................................. 64

4.22 Setembro .......................................................................................... 65

4.23 A outra .............................................................................................. 65

4.24 Crimes e pecados ............................................................................ 66

4.25 Alice .................................................................................................. 67

4.26 Neblina e sombras .......................................................................... 68

4.27 Maridos e esposas .......................................................................... 68

4.28 Tiros na Broadway .......................................................................... 70

4.29 Poderosa Afrodite ........................................................................... 70

4.30 Todos dizem eu te amo ................................................................... 71

4.31 Desconstruindo Harry ..................................................................... 71

4.32 Celebridades .................................................................................... 72

4.33 Poucas e boas ................................................................................. 72

4.34 Trapaceiros ...................................................................................... 73

4.35 O escorpião de Jade ....................................................................... 73


 

4.36 Dirigindo no escuro ........................................................................ 74

4.37 Igual a tudo na vida ......................................................................... 75

4.38 Melinda e Melinda ............................................................................ 75

4.39 Match point ...................................................................................... 76

4.40 Scoop ............................................................................................... 76

4.41 O sonho de Cassandra ................................................................... 77

4.42 Vicky Cristina Barcelona ................................................................ 77

4.43 Tudo pode dar certo ........................................................................ 78

4.44 A brilhante ilusão ............................................................................ 78

5 ANÁLISE DO FILME NEBLINA E SOMBRAS ......................................... 80

5.1 Apresentação ................................................................................... 80

5.2 A Neblina e a sombra ...................................................................... 84

5.3 Baixo/Alto contraste e o Preto e branco ...................................... 86

5.4 A cidade ........................................................................................... 88

5.5 Kleinman (o ser humano) ............................................................... 89

5.6 A morte ............................................................................................. 91

5.6.1 A expectativa da morte .............................................................. 94

5.6.2 A mão contorcida ....................................................................... 94

5.6.2.1 A morte do primeiro homem .............................................. 96

5.6.2.2 A morte do médico ............................................................. 97

5.6.2.3 A morte da pobre mulher ................................................... 98

5.6.2.4 A morte de Hacker .............................................................. 99

5.7 O plano ........................................................................................... 100

5.7.1 Polícia ........................................................................................ 100

5.7.2 Facções ..................................................................................... 101

5.7.3 Clarividente ............................................................................... 102

5.8 O universitário ............................................................................... 103


 

5.9 O circo ............................................................................................ 104

5.9.1 A fuga para o Circo .................................................................. 105

5.9.2 O circo como escape para a fantasia ..................................... 106

5.9.3 O circo como o real .................................................................. 106

5.10 A mágica ........................................................................................ 108

5.10.1 O salto para o espelho e a prisão da morte – O ponto de


ignição ................................................................................................ 109

6 CONCLUSÃO .......................................................................................... 115

REFERÊNCIAS TEÓRICAS ........................................................................ 122

 
 

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho foi escrito, inicialmente, na busca de compreender o


escape em um sentido poético, onde diante de um situação de sofrimento se
busca alguma alternativa imediata como alívio, como por exemplo: ficar
invisível. Woody Allen foi a primeira e única opção para análise deste tema
justamente por ser capaz de criar escapes lúdicos com primor. O termo
inicialmente proposto para a pesquisa era “realismo fantástico”, onde seria
estudada essa quebra da realidade que gera alívio. Porém, em uma
entrevista o diretor aponta que suas produções podem ser entendidas como
escapistas (Lax, 2010 p.468). O termo escapismo se mostrou de extrema
pertinência para a pesquisa. A etimologia de escape (do latim Excappare),
define que a palavra provém do ato de “livrar-se de sua capa (ex-capar)
enganando o perseguidor ao se desfazer de suas vestes” (Folk-Etymology,
1882, p.262, tradução nossa). Esta definição, a princípio, parecia ser ideal
para a pesquisa. O ato de livrar-se da capa indicava ser justamente o
desprendimento que era procurado na quebra com a realidade opressora.
Mas a busca por uma bibliografia, que aprofundasse o sentido de escape,
levou este trabalho ao encontro de Yi-Fu Tuan, um geógrafo PhD, que ao
tratar de geografia humanística, elabora seu pensamento através da
antropologia, da filosofia e da arte. Seu livro Escapism (1998) consegue
explicar toda a construção social por trás do escape e, consequentemente,
evidencia como o escapismo, trabalhado por Woody Allen, está, não só na
quebra para uma “realidade fantástica”, mas também na compreensão de
uma realidade opressora. Além do mais, é possível compreender o fantástico
como um recurso escapista, mas não como o escape em si. Ao procurar
entender melhor os motivos de escape, o texto O mal-estar na Civilização
(1930) de Freud serviu como um alicerce para fundamentar a teoria de Tuan
argumentando que o escape provém da busca por prazer e de que vivemos
com uma constante sensação de incômodo.
De acordo com Aumont “Entre todas as artes ou todos os modos de
representação, o cinema aparece como um dos mais realistas, pois tem
capacidade de reproduzir o movimento e a duração e restituir o ambiente
sonoro de uma ação ou de um lugar.” (1995, p. 134).
 

Sendo assim, o cinema é um meio mais do que adequado para o


estudo das experiências escapistas, tanto no sentido de que o espectador
imerge no filme, mas também pelo fato de poder concretizar uma situação
escapista da forma mais realista possível.
Além de Woody Allen ser um diretor escapista, é importante ressaltar
que sua filmografia é rica e extensa. Conhecido por ter dirigido dezenas de
filmes de gêneros e estilos variados, em quase cinco décadas de trabalho,
ele já foi prestigiado com diversas premiações internacionais e é conhecido
por trabalhar com grandes elencos de atores de peso. Seu primeiro Oscar foi
conquistado em 1978 com Noivo neurótico e noiva nervosa (Annie Hall, 1977)
como melhor filme, melhor roteiro original e melhor diretor. E o último foi em
2011 com Meia noite em Paris (Midnight in Paris, 2010) por melhor roteiro
original. Woody ainda se mantém ativo e produz em média um filme por ano
como roteirista e diretor.
A escolha pelo filme Neblina e sombras (Shadows and fog, 1991) para
esta pesquisa foi feita após a análise primária de todos as produções
lançadas até 2012 pelo diretor. Foi necessário estabelecer paralelos com as
teorias de Tuan e Freud sobre o escapismo e o mal-estar e determinar
parâmetros que permitissem a escolha de um objeto de estudo ideal. Para
que o filme fosse escolhido, ele precisava de um contexto que tivesse o peso
da vida real cotidiana, ter um personagem que não se adequasse a esta
realidade, desenvolver o rompimento com esta realidade, concluir a busca
por uma nova realidade aparentemente ideal e, enfim, apresentar o início de
um novo contexto de peso. Neblina e Sombras se encaixou em todos estes
parâmetros, principalmente por construir uma realidade de peso de uma
forma mais alegórica em relação a sociedade que vivemos, permitindo uma
análise mais completa. Diante de todas estas reflexões, um problema nos
interroga desde o início: o que é o escapismo na obra de Woody Allen?
Através de Neblina e Sombras e da bibliografia escolhida, busca-se
compreender de que maneira, através de quais metáforas, recursos cênicos
e narrativos, o escapismo foi construído por Woody Allen e também
esclarecer o significado e a complexidade do escape.
 

Para alcançar o objetivo proposto, o presente trabalho baseou-se no


método qualitativo, através do estudo teórico, exploratório do tema escolhido
e utilizando a análise do discurso. A análise do filme foi fundamentada nos
Três Registros propostos por Jesús González Requena, descritos por
Rodríguez (2003) através dos quais se busca compreender o registro
Semiótico, levando em consideração aquilo que pode ser compreendido e
interpretado através dos símbolos. O registro do Imaginário, levando em
consideração as analogias antropomórficas que não são explícitas, mas que
podemos reconhecer como imagem. Enfim, o registro Real que está além da
imagem e da forma. Ele está em si, ele “é uma construção que leva ao
desaparecimento da imagem, ao término dos signos reconhecíveis.”
(RODRÍGUEZ, 2003, p.61) é algo que se inscreve no final do relato, sem ser
explícito, mas com significado.
É importante ressaltar que nesta pesquisa foram trabalhados dois
conceitos de real. O primeiro Real, com o “r” maiúsculo, é este explicado
acima, relacionado à analise e compreensão dos símbolos do filme. O
segundo real, com “r” minúsculo, é o real tratado por Tuan na compreensão
de escape, dentro da dualidade de escape para o fantástico e o escape para
o real explicado no capítulo sobre escapismo.
Ao estudar Neblina e sombras e analisar o filme, através dos Três
Registros, foi reconhecido no texto fílmico o ponto de ignição, que, segundo
González Requena, é um ponto ardente na produção para onde todos os
significantes apontam, onde se centraliza a grande interrogação do sujeito.
Rodríguez argumenta que “O texto artístico existe não para ser entendido,
ser decodificado, ou ser objeto de uma operação comunicativa, mas para
manifestar-se na experiência da interrogação do sujeito, para localizar seu
próprio sujeito.” (RODRÍGUEZ, 2004, p.38). Ao estabelecer as relações entre
os elementos e as conexões com outros textos, pode-se assinalar um ponto
de ignição onde o escapismo, o Woody Allen e a análise se fundiram e
fizeram sentido.
 

2 CINEMA CLÁSSICO, MANEIRISTA E PÓS-CLÁSSICO

Os diferentes períodos do cinema definem, ao longo de sua história,


momentos distintos da trajetória da imagem fílmica. Essa trajetória divide-se,
segundo González Requena (2007), em três momentos, que podem ser
percebidos através das manifestações dos registros: simbólico, imaginário e
real. Cada um destes registros tem um período característico no qual
predominam. O período do cinema clássico é predominantemente simbólico,
o maneirista, mais representativo do imaginário e o pós-clássico, seria aquele
onde abundariam os elementos explícitos e onde prevalece o Registro do
Real.

2.1 Cinema Clássico

O cinema clássico americano, de acordo com Rodríguez (2003), é o


período áureo da história cinematográfica, marcado por textos fílmicos, de
diretores americanos e europeus residentes nos EUA. Esses filmes foram
produzidos entre os anos 1920 e 1950, sendo marcados por consistirem
principalmente em construções simbólicas e míticas.
“No cinema clássico tudo é exato” (RODRÍGUEZ, 2003) e não há
espaço para ambiguidades. Nele, um texto mitológico não responde a
critérios de verossimilhança, mas sim à exatidão simbólica. É preciso
compreender que há uma diferença importante entre esses dois critérios, pois
a exatidão simbólica “toca precisamente a experiência do espectador”
(RODRÍGUEZ, 2003), e é nesta experiência que ocorre a identificação da
narrativa. Esta construção é o que faz chorar, não só pela concepção
sentimentalista, mas também por uma reação emocional direta, precisa e
profunda, através do qual o desejo do sujeito, representada, com exatidão, o
seu universo simbólico.
Segundo Rodríguez, baseando-se em González Requena, a ausência
de cenas explicitas de sexo, violência ou morte são representadas por elipses
similares aos lapsos e atos falhos da linguagem, onde, no caso do filme, o
Real aparece em um momento justo, quando ele acaba sendo interrompido e
 

intercalado pela ausência de signos reconhecíveis. O exemplo dado por


Rodríguez (2003) é tirado do filme Mogambo (Mogambo, 1953) do diretor
americano John Ford:

Em um dos momentos mais intrigantes de “Mogambo” (...) o


caçador Victor (Clark Gable) dispara sobre uma pantera negra que
cai em uma armadilha na qual também já havia precipitado, Linda
(Grace Kelly). (...) neste momento a câmera só capta uma mancha
negra que se desloca em direção ao interior do buraco. Em
seguida, o herói Victor se aproxima e dá a mão a Linda para
resgatá-la. Vale ressaltar que o corpo da pantera e o de Linda
compartilhando a mesma armadilha não são mostrados. A mancha
que escreve a fera em sua queda e a elipse de seu corpo
coabitando com o de Linda no fundo da armadilha, marcam um
ponto de angústia, o contato com o real. Desconhecemos o tempo
justo no qual Linda e a fera compartilharam o mesmo núcleo
escavado na terra. Instante oculto ao olhar, mas nem por isto
carente de inscrição no relato. Um momento que faz ressoar à
distância. (RODRÍGUEZ, 2003, p.63)

Outros exemplos assinalados argumentam que após a cena de um


longo beijo apaixonado não vemos cenas de sexo, mas sim uma série de
metáforas que subentendem o ato sexual. O exemplo dado por Rodríguez
(2003) é retirado de Casablanca (Casablanca, 1943) do diretor Michael
Curtiz, onde depois de um longo beijo entre Lisa (Ingrid Bergman) e Rick
(Humphrey Bogart), são inseridas as imagens documentárias dos canhões
nazistas avançando o território francês. Uma das mais belas metáforas da
história do cinema sobre a intimidade dos sujeitos: a relação sexual.
“O real no cinema clássico é este lugar inevitável que ao final nos
aguarda, além do horizonte das imagens” (RODRÍGUEZ, 2003). O Real está
inscrito no final do relato, num beijo ou numa morte, possuindo um valor
simbólico. É onde convergem os acontecimentos, dando-lhes sentido,
convertendo desejo em lei e cristalizando os atos dos heróis.” (RODRÍGUEZ,
2003, p.63) Enfim, podemos concluir que no cinema clássico, seu texto se
desenvolve em momentos justos e com cenas que, ao invés de serem
explicitas, são significadas.
 

2.2 Cinema Maneirista


 

Considerado como o período imediatamente seguinte ao clássico, o


cinema maneirista, ainda segundo González Requena (2007), trata de
assuntos como morte e sexo através do prisma do imaginário ou da farsa,
onde o olhar do espectador é enganado. Um dos grande exemplos
apontados por Rodríguez (2003) é o emblemático Alfred Hitchcock 1 ,
conhecido por utilizar a câmera para desviar a atenção do espectador do que
realmente interessa.
O uso da câmera subjetiva é uma forma de fundição entre o olho do
espectador e a lente. Os personagens passam a não ser mais bravos heróis,
como durante o período clássico, e sim mais “débeis, fracos, personagens
cuja identidade aparece como farsa” (RODRÍGUEZ, 2003, p.64). O
protagonista não realiza feitos simbólicos, ele apenas se manifesta para
satisfazer o espectador que passa a ocupar uma posição cada vez mais
reconhecível como a de um voyeur. Ao citar Freud, Rodríguez (2003) explica
que esta condição de observador alimenta um instinto primário e incontrolável
chamado “pulsão escópica”, onde é identificado o prazer de olhar e de exibir.
Neste caso, o olho passa a não ser mais apenas uma fonte de visão, mas
sim uma fonte de libido, sendo uma forma de pulsão.
Rodríguez (2003) descreve duas cenas de Psicose (Psycho, 1960)
para pontuar exemplos deste olhar que atravessa os limites, que vai além da
forma e além da tela. Um de seus exemplos é:

Na impressionante sequência do chuveiro, que precede o


assassinato de Marion Crane (Janet Leight), Norman Bates
(Anthony Perkins) se dirige ao escritório contíguo à habitação da
mulher, retira um quadro da parede, de onde surge um grande
buraco e dentro deste, um outro menor. Aproxima-se e olha a
mulher se despindo. Um plano detalhe do ocular em perfil aparece
ocupando metade da tela, enorme, devorador. O buraco irregular,
uma fissura na parede, ocupa a outra metade do plano. Este
imenso olho famélico que brilha sobre o fundo negro absorve a
imagem da mulher. (RODRÍGUEZ, 2003, p.64)

                                                                                                                       
1
Cineasta inglês (1899-1980) conhecido por Psicose (Psycho, 1960) e A Janela Indiscreta
(Rear Window, 1954) entre outros.
 

2.3 Cinema Pós-Clássico

Ainda, seguindo o rastro dos autores acima citados, o espectador, que


começou a ver cada vez mais nos filmes maneiristas, passa a querer ver
mais ainda nos filmes pós-clássicos. Este prazer ocular é o caminho do gozo
que o olho faz e que se defronta com um terreno que é tanto de fascinação
quanto de horror. Nesta circunstância, surge a concepção do Real
aparecendo como sinistro.
O sinistro pode ser identificado, através do olhar, como

Um olho que clama por ver cada vez mais, que penetra lugares
nunca antes penetrados, que vai além do visível, descobre-se no
umbral do sexo e da morte. Imagens pornográficas, sexo explícito e
corpos em putrefação sobre a mesa são oferecidos aos olhos
ávidos dos sujeitos diante das telas. (RODRÍGUEZ, 2003, p.65)

Em relação ao sinistro, o filme pós-moderno está todo dominado pelo


registro Real (onde há ausência da dimensão simbólica), deixando o gozo do
espectador sem uma localização específica. Os corpos são mostrados de
maneira nua e crua, como se fosse um objeto de constante profanação
visual. É uma espécie de império da transparência, onde não há limites nem
lugar para a intimidade.
“Nestes filmes, onde impera o sinistro, não existe quase nada para
alimentar nosso desejo imaginário.” (RODRÍGUEZ, 2003, p.66). O Real,
desta maneira, perde a possibilidade de ser configurado simbolicamente. O
discurso é ocupado pela violência. “Ao mostrar demais, ao enfocar demais, a
câmera acaba por negar uma visão. Quanto mais se mostra, menos se vê.”
(RODRÍGUEZ, 2003, p.66). Sendo assim, a resultante é um imenso borrão,
um vazio, pois ao mostrar tudo, o espectador se vê de um imenso nada.
 

3 ESCAPISMO.

3.1 Introdução ao Mal-estar, de Freud.

“Não podemos pular para fora deste mundo” (FREUD, 1996, p.74). Em
seu livro O Mal estar na civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930),
Freud aponta que esta afirmação trata de “um sentimento de um vínculo
indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo” (FREUD, 1996,
p.76). Este mundo exterior é percebido através, inicialmente, do seio da mãe
que só reaparece por meio do choro, e posteriormente, pelas “frequentes,
múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo
afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer2, no exercício
de seu irrestrito domínio.” (FREUD, 1996, p.76). A busca pelo prazer tende a
isolar o ego das possíveis fontes de desprazer, consolidando a ideia de um
exterior estranho e ameaçador. Porém, o autor afirma que “certos sofrimentos
que se procura extirpar, mostram-se inseparáveis do ego por causa de sua
origem interna.” (FREUD, 1996, p.76). Portanto, Freud afirma que primeiro o
ego “inclui” tudo para depois separar de si o mundo externo.
Freud, ao citar Theodor Fontane3, escreve

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;


proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas
impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as
medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções
auxiliares. (FREUD, 1996, p.83)

3.1.1 Três construções auxiliares

Para lidar com essas dificuldades encontradas na vida, Freud (1996)


aponta três caminhos em que essas construções auxiliares passam a ter
vazão: Por derivativos poderosos, por satisfação substitutivas e por
substâncias tóxicas. Os derivativos “nos fazem extrair luz de nossa desgraça”
                                                                                                                       
2
É o desejo de gratificação imediata. Tal desejo conduz o indivíduo a buscar o prazer e
evitar a dor.
3
Escritor alemão, considerado por muitos o mais importante do realismo alemão. (1819 -
1898)
 

(FREUD, 1996, p.83), dando o exemplo de Voltaire que apontava dois tipos
derivativos: a cultivação de um jardim próprio e a atividade científica. As
satisfações substitutivas, diminuem a desgraça. Elas são “oferecidas pela
arte, são ilusões em contraste com a realidade.” (FREUD, 1996, p.83), como
se a fantasia assumisse a vida real. Por fim, as substâncias tóxicas que
“influenciam nosso corpo e alteram a sua química.” (FREUD, 1996, p.83).

3.1.2 O sofrimento e a infelicidade

Existem três direções possíveis que podem partir o sofrimento,


argumenta Freud (1996): do nosso próprio corpo, condenado à dissolução;
do mundo externo, com sua força de destruição esmagadora; e de nossos
relacionamentos com outros homens. A partir dessas afirmações, o autor
aponta que o ‘princípio da realidade’ se baseia na ideia de se sentir feliz por
ter escapado a infelicidade ou por ter sobrevivido o sofrimento.
As maneiras que o indivíduo pode escapar da infelicidade, de acordo
com Freud (1996), variam. Pode-se ir ao extremo do isolamento para não ter
que lidar com os conflitos humanos ou, no caso de conflitos com a natureza
(o mundo externo), se tornar membro da comunidade humana e a partir das
técnicas estabelecidas pela ciência, atacar a natureza e sujeitá-la à vontade
do grupo, para o bem de todos. O autor também aponta o deslocamento da
libido como uma alternativa para o prazer através do trabalho intelectual,
onde se reorienta “os objetivos instintivos de maneira (que eles possam
eludir) a frustração do mundo exterior”. (FREUD, 1996, p. 87) Para tal, se faz
necessária a sublimação dos instintos. A sensação de satisfação por este
meio pode ser encontrada em “artistas ao dar corpo à suas fantasias ou a do
cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades” (FREUD, 1996, p.
87). Porém, são pouco intensas em comparação com os prazeres instintivos
e primários. A fruição das obras de arte, por sua vez, são apontadas como
uma “suave narcose”, onde ocasiona-se um afastamento passageiro das
pressões e das necessidades vitais, mas que não é forte o suficiente como
escape para alcançar o esquecimento da aflição real. Para Freud, o processo
que se mostra mais energético e completo se dá através da consideração de
que a realidade é “a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é
 

impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes,


temos que romper todas as relações com ela” (FREUD, 1996, p.88). Esse
quadro possibilita a tentativa de recriar o mundo, onde os seus aspectos mais
insuportáveis podem ser eliminados e substituídos por outros que agradem
aos próprios desejos. Porém, o autor ressalta que este caminho tende a não
chegar a nada, pois “A realidade é demasiada forte para ele. Torna-se um
louco.” (FREUD, 1996, p.89).

3.1.3 A felicidade e o equilíbrio

O amor, afirma Freud (1996), é possivelmente o meio mais eficaz de


alcançar a meta da felicidade (para aquele que põe o amor no centro de
tudo). O amor sexual proporciona a mais intensa experiência de prazer
“transbordante”, porém a intensidade desta felicidade é equivalente à do
sofrimento quando este sentimento finda. “Nunca nos achamos tão indefesos
contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente
infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor.”
(FREUD, 1996, p.90).
Freud (1996) aponta que não é aconselhável buscar a totalidade da
satisfação de uma só maneira, pois o êxito é incerto. Mas também não se
deve desistir de tentar. É importante considerar que nenhum dos caminhos
escolhidos para a felicidade (ou para evitar o sofrimento) alcança seu objetivo
de uma forma completa.

É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do


mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente
dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para
alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. (FREUD, 1996,
p.90).

3.1.4 Os benefícios da civilização

Ao levantar as críticas à civilização, Freud (1996) aponta que a crença


de que ela é a grande responsável pela nossa desgraça, que seríamos muito
mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas,
 

é “espantoso”. Para o autor, o fato de a civilização ter sido desenvolvida


justamente para nos proteger das ameaças da natureza deveria ser crucial
para sensação de segurança, porém ele ressalta que seu espanto provém
principalmente da constatação de que a civilização proporciona a mesma
espécie de ameaça e sofrimento. A ideia de que em uma sociedade primitiva
se é mais feliz, ilustra o autor, vem do julgamento precoce que acredita que a
maneira primitiva de viver é mais simples, com uma ausência de exigências
culturais complicadas, em harmonia com a natureza e com facilidade de
suprir as necessidades humanas. Esta concepção é aparentemente
inatingível em comparação com a civilização complexa. Portanto, Freud
aponta que
Uma pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar a
frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus ideais
culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas
exigências resultaria num retorno a possibilidades de felicidade.
(FREUD, 1996, p.94)

3.1.5 Liberdade e instinto.

Ao tratar da liberdade, Freud (1996) expõe que a busca por alcançá-la


é dirigida contra formas e exigências específicas da civilização. A tendência é
que se lute pela liberdade individual sobre as vontades do grupo. Porém,
“Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa
única de encontrar uma acomodação conveniente.” (FREUD, 1996, p. 102). A
questão que o autor levanta é se esta acomodação pode ser alcançada ou se
este conflito é irreconciliável.
“A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente
evidente do desenvolvimento cultural.” (FREUD, 1996, p.103). Esta
sublimação permite o desenvolvimento intelectual e artístico, fundamentais
para a construção de uma civilização e por possibilitar a convivência entre
grandes quantidades de pessoas, mas a concepção da renúncia do instinto
pressupõe a não-satisfação de instintos poderosos. Essa “frustração cultural”
domina de forma geral os relacionamentos sociais entre os indivíduos da
sociedade, podendo causar grandes hostilidades. Enfim, Freud (1996)
argumenta que
 

Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e


que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar
em conta uma poderosa quota de agressividade. (FREUD, 1996,
p.116)

3.1.6 Conflitos na civilização e a superação do instinto.

A sociedade civilizada, afirma, Freud (1996) se vê permanentemente


ameaçada de desintegração em consequência desta hostilidade primária. “As
paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis.” (FREUD,
1996, p.117). Ele argumenta que comunidades com territórios adjacentes, e
mutuamente relacionados, tendem a manter rixas constantes. Por exemplo,
os espanhóis e os portugueses, os ingleses e os escoceses, e os alemães do
sul com os do norte.
A civilização, descreve Freud (1996), impõe sacrifícios grandes à
sexualidade e também à agressividade dos seus habitantes, o que justifica
porque é difícil se manter feliz enquanto inserido nela. Mas dentro de uma
lógica própria, é afirmado que “o homem civilizado trocou uma parcela de
suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.” (FREUD,
1996, p. 119). Por fim, o autor conclui que o significado da evolução da
civilização é a luta entre o instinto de vida contra o instinto de destruição.

3.2 O Escapismo de Yi-fu Tuan.

De acordo com Yi-Fu Tuan (1998), a vontade de escapar faz parte da


vida de todos, relacionada a vontade de estar em algum outro lugar, em
tempos de incerteza ou estresse. Entretanto, as questões são “Escapar de
quê?” e “Para onde?”. O autor aponta que questão não é somente para onde
escapar, mas também o que fazer após alcançar o escape, argumentando
assim que a tendência é de buscar um outro escape, ou ainda, de querer
voltar para onde se partiu.
Ao observar lugares como a Disneylândia ou shopping centers, Tuan
(1998) conclui que estes estabelecimentos são facilmente reconhecidos
 

como um “Éden” escapista, principalmente por ter, respectivamente, uma


concepção fantasiosa e por incitar o consumo impulsivo. Em outras palavras,
são lugares que, do ponto de vista crítico e intelectual, faltam peso. Como se
a alegria e o fantasioso fossem menos válidos do que o sério e o real. Porém,
do ponto de vista de escape, a cidade (séria e real) nada mais é, também, do
que um escape da natureza.
Seguindo esta lógica, Tuan (1998) aprofunda a concepção de escape
como sendo uma consequência do desenvolvimento da cultura humana,
argumentando que fazendeiros, por mais que estejam ligados ao campo,
utilizam ferramentas e luz elétrica e mesmo caçadores-coletores são capazes
de alcançar uma realidade complementar através da linguagem. Portanto,
pode-se concluir que a cultura é um meio de escape da natureza, do meio
ambiente, de suas incertezas e de suas ameaças.
Porém, o autor problematiza a concepção de natureza ao lembrar que
o corpo humano é natural. Por mais que o mesmo interfira em sua estrutura
ou use sua imaginação para que, mesmo em pensamento, de maneira
limitada, não esteja mais em si, de forma concreta, ele não é capaz de fugir
de seu próprio corpo animal. Tuan trata esta questão como o desejo de
escapar da animalidade, onde ele compara um animal que come, que tem
impulsos sexuais e, mais cedo ou mais tarde, morrerá, com uma pessoa que
janta, ama e deseja ser imortal. Sendo assim, o autor atribui à cultura, a
totalidade da capacidade de escape do estado animal de ser.
Ao se aprofundar um pouco mais nas questões culturais, Tuan (1998)
investiga a relação entre o indivíduo e o grupo, onde, ao mesmo tempo em
que ser único e diferente é um valor reconhecido e almejado, ser diferente
demais causa à pessoa, as sensações de vulnerabilidade, solidão,
desconexão e insignificância. Portanto, por mais que haja a necessidade de
escape, o individuo ainda assim buscará a estabilidade do grupo, pois, no
grupo há, não somente a impressão de pertencimento e de valores em
comum, mas também a de segurança e de ordem. O que é, em essência, o
que está por trás do que fundamenta a cultura.
Tuan (1998) explica que a cultura é conduzida pela imaginação. A
ambivalência da divagação é capaz de guiar o pensamento tanto para o
fantástico e o irreal quanto para o grotesco e o maléfico. Ao mesmo tempo
 

em que a mente é capaz de encontrar beleza em uma paisagem, e de, a


partir das paisagens, elaborar pinturas que mostram o mundo como um lugar
encantador, através das loucuras pessoais, de poderes e de retóricas
ardilosas é capaz (também) de instaurar um verdadeiro inferno na terra.
O autor argumenta que o escapismo é uma condição humana
inescapável. Ao longo de seu livro “Escapism” (1998), ele analisa o escape
através de cinco pilares: Terra, Animalidade, Pessoas, Inferno e Céu sobre a
ótica da cultura e da relação histórica do ser humano com a natureza e sua
própria natureza. Buscando entender a relação do ser humano com a
natureza e cultura (terra), consigo (animalidade), com o Grupo (pessoas) e
com a imaginação (inferno) e com o real (céu).

3.2.1 Terra
 

3.2.1.1 A incapacidade de lidar com os fatos

Tuan (1998) discorre que “escapismo” é uma palavra que tem uma
conotação negativa em muitas sociedades e indica uma incapacidade de lidar
com fatos do mundo real. Uma maneira de ilustrar essa tendência do ser
humano de escapar em comparação com o mundo animal é a inclinação do
mesmo de fechar os olhos diante do perigo esperando que este passe, ao
invés de manter seus olhos bem abertos e músculos tencionados para um
possível embate. Este escape, baseado no pensamento positivo, é único e
cabível somente à humanidade e é também um argumento fundamental para
a definição de cultura dada pelo autor. Para ele, cultura é a união dos hábitos
adquiridos com o tempo, da criação e o uso de ferramentas, do mundo dos
pensamentos, das crenças e dos costumes, todos vinculados à tendência dos
humanos de não conseguirem encarar os fatos. Ele aprofunda seu
argumento ao definir o ser humano como “um animal congenitamente
indisposto a aceitar a realidade tal como ela é.” (Tuan, 1998, p.6, tradução
nossa), cabendo a ele a habilidade de se transformar de acordo com um
plano preconcebido, o que lhe dá capacidade de ver aquilo que quer alcançar
antes mesmo de sua execução. Para Tuan, este ato de “ver” o que não está
 

lá é a base de toda a cultura humana.

3.2.1.2 A natureza e o real

Os “fatos” e o “real”, de acordo com Tuan (1998), são os atos da


natureza em forma de impacto. A chuva, o vento frio, a erva venenosa que
irritará a pele, são forças indiferentes às vontades e necessidades de
indivíduos e grupos. Desta forma, enfrentar a realidade, seria aceitar a
impotência de ter que se adaptar às forças do meio ambiente e de ter que se
abrigar de acordo com o padrão do clima local. Todavia, o senso comum
tende a contrapor esta afirmativa através de uma outra definição de realidade
que compreende como real tudo aquilo que se opõe aos acontecimentos
frustrados e inconclusivos da vida cotidiana, como uma história bem contada,
o evidente, o espaço arquitetônico bem definido, o ritual sagrado... ou seja,
tudo aquilo que leva a uma sensação elevada de pertencer e de estar vivo.
Tuan (1998) explica que vida real está na Terra. O planeta que é
chamado de casa, mas que simultaneamente abriga sonhos de humanos que
esperam habitar a lua ou algum outro corpo celeste. O pensamento de que o
paraíso está em algum outro lugar é comum em muitas culturas, tão comum
quanto o sentimento de inquietude que mantém a humanidade em um
constante descontentamento em relação a onde se está. As migrações e a
transformação do ambiente local, são as duas grandes características da
geografia humana que expõem o desejo contínuo por escape, vide os
imigrantes dos Estados Unidos e o escape das condições intoleráveis do
velho continente em busca da promessa do novo. Esta concepção de um
“novo” “melhor” em comparação com a dura realidade faz parte da
capacidade de simplificação do distante e de sua idealização como um real
melhor. Os motivos que levam os indivíduos a almejarem a mudança podem
ser sociais, políticos, econômicos ou ambientais.

3.2.1.3 A natureza e a sociedade

A natureza, de acordo com Tuan (1998), pode ser percebida de forma


ambivalente. Ela é casa e tumba, Éden e floresta, mãe e ogra. Sua face
 

violenta, indiferente e incerta são as maiores razões para que os seres


humanos alterem tanto sua estrutura e se distanciem tanto de suas raízes.
Esta é forma que foi viável para estabelecer um mundo próprio que seja mais
estável e seguro.
Tuan (1998) argumenta que o ser humano, mesmo fugindo da
violência da natureza e criando sua própria estrutura habitacional, não
escapa de uma outra fonte imprevisível de violência, isto é, a própria
sociedade. Ele ressalta que as duas formas de violência estão
correlacionadas e podem ser justificadas de acordo com acontecimentos
históricos. Como exemplo, ele cita as grandes secas e grandes dilúvios que
assolaram por anos as plantações na França, ao longo do Séc. XVII. A
destruição foi tamanha, que houve uma migração do campo para as cidades
por parte dos fazendeiros esfomeados. Não bastando o sofrimento advindo
da natureza, os cidadãos, incomodados com os imigrantes, criaram milícias
para expulsá-los a força de volta para suas terras improdutivas.
Ao tratar sobre o caos na Terra, Tuan (1998) discorre sobre a relação
do homem com a natureza e do homem com o homem, que está sempre por
um triz, seja por guerra ou por fome. A solução para esse caos, muitas vezes,
foi direcionada aos céus, em busca de uma resposta divina, embora, através
do pensamento pragmático, aqueles que foram mais realistas e que se
prenderam mais às circunstâncias terrenas, acabaram alcançando uma vida
notavelmente melhor. Isto porque o pensamento racional foi responsável pelo
desenvolvimento científico da agricultura que permitiu, a longo prazo, o
domínio de grandes plantações e da fartura de alimentos, afastando mais um
pouco a humanidade da sua vulnerabilidade diante da natureza.
Uma vez que a natureza passa a ser mais maleável, Tuan (1998)
ressalta que a reação das gerações que nascem na abundância dos
supermercados apresenta um novo vetor de escape. O que antes era apenas
o escape da natureza, realizado em conjunto pela humanidade através do
desenvolvimento filosófico e tecnológico, ganha nova significação pois

As realidades já criadas, não produzem necessariamente o


contentamento. Elas podem ao contrário do esperado, gerar
frustração e inquietação. Consequentemente as pessoas buscarão,
 

desta vez, o escape – “de volta para a natureza” (TUAN, 1998, p.17,
Tradução nossa)

3.2.1.4 Escape para a natureza e da natureza

Para compreender a ideia de escape para a natureza, Tuan (1998)


argumenta que o pensamento de arrependimento de uma vida na cidade em
comparação a uma vida no campo é recorrente na literatura, como uma ideia
de liberdade e alívio. Outro exemplo é do povo Lele da savana africana, que,
mesmo com uma sociedade modesta e sem cidades, também tem a
necessidade de sair de seu povoado e ir para uma floresta densa em busca
de frescor e alimentos, como se lá fosse a fonte de todas as coisas boas,
como um presente de Deus. O autor estabelece uma escala de três níveis de
escape para a natureza. O escape mais brando é equivalente a um passeio
de fim de semana para o campo, o mediano é equivalente a de ir morar em
uma comunidade rural e o mais extremo é equivalente à imigração para um
lugar desconhecido. Porém, existe uma dependência crucial entre o escape
da natureza e o escape para a natureza, pois para escapar para a natureza,
deve haver, a priori, alguma construção social. Sendo assim, Tuan explica
que

O que nós queremos, não é escapar para a “natureza”, mas para


uma concepção sedutora da mesma. Essa concepção é
necessariamente um produto da experiência e a história da pessoa –
da cultura. Pode soar paradoxal, mas “escapar para a natureza” é
uma tentativa cultural, uma espécie de tentativa disfarçada de
“escapar para a natureza”. (TUAN, 1998, p.19, Tradução nossa)

3.2.1.5 Civilização como natureza.

A ideia, por trás do conceito de civilização, argumentada por Tuan


(1998) é de uma autodesignação que reivindica a oposição a tudo o que é
bruto e cru, ou seja, passa a ser a afirmação do que é puro e beatífico.
Porém quando ele argumenta sobre a dicotomia entre o que é cultural e o
que é natural, uma outra relação se estabelece. É considerado como cultural
 

tudo aquilo que faz parte de uma construção mental, cabendo a essa
edificação tudo aquilo que é percebido e significado, enquanto que à
natureza resta somente aquilo que é completamente desconhecido. A partir
desta percepção, pode-se afirmar que cultura está em toda a parte. Contudo,
distante de se sentir triunfante, os homens e mulheres da atualidade se
sentem órfãos. Uma realidade que é apenas um mundo (em inglês, no
original, World, derivado da palavra wer, do inglês antigo, que significa
homem) aparenta ser irreal. A partir deste pensamento, o autor encontra-se
em uma encruzilhada: enquanto argumenta que o real é aquilo que causa
impacto, que não tem definição e que é natural, ele aponta que o oposto
aparenta ser ainda mais real. O que é cultural aparenta ser mais do que algo
feito pelos homens, é como fruto de um ato divino, transformando, assim, a
cidade em algo mais real que a floresta, o poema mais real que o sentimento
e o ritual mais real do que o cotidiano. Isso ocorre, de tal forma, que essas
construções passam a ser indícios de uma lucidez. Sendo assim, aquilo que
se analisa sobre algo ocorrido aparenta ser mais real do que a experiência
em si e através dessa racionalização se escapa para o real. Shakespeare
apud Tuan ratifica em Como gostais (As you like it, 1623) “sopros e brisas [de
vento] sobre meu corpo... comoventemente induzem-me ao que sou”.

3.2.1.6 Escape para o real

O escape para o real, de acordo com Tuan (1998), é diferente do


escape do real que, por sua lógica, segue para alguma forma de fantasia,
como alguém que vive em um lugar de frio, neve e de trabalho pesado e
segue de férias para o Havaí. Pode ser também comparado à leitura de um
bom livro ou filme e à ida para um shopping ou a um parque de diversões. A
relação que se estabelece para compreender se o escape foi para o real ou
para a fantasia está na finalidade da relação do sujeito com o lugar para onde
se está indo. Ou seja, se é uma interação que alcança uma claridade/lucidez
(real) ou se alcança alguma forma de simplificação (fantasia).
A partir desta compreensão de real e de fantasia, Tuan (1998)
exemplifica três situações: o acadêmico que, em uma busca pela lucidez,
embarca em uma fuga para o real; um viajante que, por passar um tempo
 

limitado em algum lugar distante das frustações diárias, escapa para a


fantasia; um amante da vida natural que, ao escapar para a natureza, escapa
para o real, pois está disposto a compreender a realidade em que ele está se
envolvendo.

3.2.2 Animalidade

“E se o ‘lugar’ do qual uma pessoa deseja escapar é seu próprio


corpo?” (TUAN, 1998, p.31, Tradução nossa). O autor argumenta que por
mais que essa ideia pareça ficção científica, é possível compreender a
distração de estar sonhando de olhos abertos ou com a atenção em uma
pessoa, objeto ou acontecimento como uma forma de fuga através da mente.
Ele também aponta como alternativa à fuga do corpo, as tentativas de
reconstrução do mesmo, através das cirurgias plásticas e das cirurgias de
transplante e reparo de órgãos.
Ao se focar mais detalhadamente na questão do corpo, Tuan (1998)
levanta a hipótese de que talvez o corpo, em si, não seja o cárcere, e sim
suas imperfeições agravadas com o tempo. Ele aponta como uma razão mais
profunda para este desconforto o fato de que o corpo é animal4 e, sendo
animal, exala odores fortes, expele fluidos, sofre variação de humor e tem
uma demanda constante em relação às suas obrigações biológicas. Esta
condição animal, de acordo com o autor, serve como uma lembrança
contínua de que, mesmo que se auto inflija, o status diferencial de Humano
ou até de ter um espírito mais elevado, ainda haverá a flatulência para
rebaixar esta percepção. Paradoxalmente, saber-se animal, torna o ser
humano em ser humano, já que animais não são autoconscientes de sua
animalidade.

3.2.2.1 O escape da condição animal.

Para escapar de sua condição animal, o ser humano foi capaz de se


encobrir em um mundo cultural de criações que servem para afirmar esta

                                                                                                                       
4
Grifo do autor
 

condição de excepcionalidade. Os três itens que Tuan (1998) ressalta como


fortes indícios de animalidade que o homem busca superar são: a comida e o
comer; o sexo e a procriação; e o ato de morrer e a morte.
Embora o ser humano tenha a habilidade de mastigar e digerir quase
qualquer coisa, Tuan (1998) afirma que toda a sociedade determina alguma
comida como tabu. Esta é uma forma de, simultaneamente, diferenciar
membros de uma mesma cultura e de se afirmar como menos animal e mais
espiritual. Uma forma de elevar o ato de comer é de torná-lo um ritual social.
Para comer, usa-se garfo e faca para não tocar a comida, mastiga-se de
boca fechada, não se cospem os ossos no chão. A própria comida passa a
ser mascarada de sua origem. Animais não são postos inteiros, eles são
escondidos como se fossem materiais de uma construção, igualando, desta
forma, a culinária a uma espécie de arte, assim como arquitetura.
Semanticamente, deixa-se de comer porcos e vacas e se passa a comer
presuntos e bifes. A decisão de jejuar também se apresenta como um
afastamento da animalidade ao longo da história da humanidade, sendo visto
como algo divino e transcendente, como se não comer purificasse a alma e
deixasse o indivíduo mais próximo do divino.

3.2.2.2 Os pecados da animalidade

A gula, de acordo com Tuan (1998), é considerada como um dos


pecados mais brandos entre os sete pecados capitais. Ele argumenta que as
fantasias de grandes jantares são, diante da sociedade, algo sem muita
importância e possivelmente desprezíveis, porém quando contrastado com as
fantasias sexuais (que podem ser vistas como um ato mais espiritual do que
o ato de comer), é capaz de desencadear conflitos homéricos na alma, assim
como também é capaz de produzir terríveis tragédias. O autor indica que
ambos os atos envolvem certo teor de violência e de prazer, porém quando
se considera alguém comendo de maneira grosseira em público, ela é
julgada como nojenta, mas quando se considera um casal fazendo amor em
público, obsceno.
Insaciabilidade, crueldade e violência são singularmente humanos.
Igualmente como o erotismo e o amor em todas suas formas mais
discretas e passionais. Eles são singularmente humanos porque,
 

para o bem ou para o mal, a imaginação está trabalhando guiando,


moderando e intensificando os impulsos e propensões animais.
(TUAN, 1998, p.56, Tradução nossa).

3.2.2.3 Ressignificação da animalidade

Tuan (1998) aponta como a imaginação é importante para o ato de


comer, pois este processo exige uma teatralidade que é usada como um
artifício para o afastamento da sua proximidade com a animalidade, mas o
sexo tende a negar esta inclinação. O toque humano, a mão e a pele
responsiva incitam a carícia curiosa que descobre todas as variações do
corpo como as diferentes texturas da cútis e as suas distintas temperaturas.
O toque eleva a sensação de prazer e de desejo mútuo. Ser capaz de
participar deste processo é uma exclusividade singularmente humana, mas a
consumação em si transcorre idêntica à natureza.
Considerando o amor, Tuan (1998) escreve que a priori este
sentimento é muito mais conceitual do que instintivo, baseando-se no fato de
que os indivíduos são condicionados desde jovens a predisporem esta
inclinação a se apaixonar por alguém. Porém, em contrapartida, quando uma
pessoa se apaixona, ela teoricamente passa a estar suscetível a sentir
simultaneamente reações dicotômicas como a vulnerabilidade e a destreza.
Ela experimenta sensações que emanam impressões que beiram a
satisfação do esplendor do real. Essa experiência pode ser descrita como
uma forma de encontro com o divino. Para muitos, relata o autor, o êxtase
sexual é grande parte do contato que muitos terão em relação à união mística
e transcendência. O amor, conclui, é uma união entre os conceitos do corpo
e da alma. O corpo gera sentimentos que ascendem ao campo do espirito
sem esforço.
Diferente do sentimento negativo de ser observado durante o ato
sexual ou durante uma refeição, Tuan (1998) argumenta que o processo de
falecimento, culturalmente, impõe a necessidade de alguma forma de vigília
que acompanhe o indivíduo até a sua morte. O fim sumário da vida pode ser
visto por espectros bem diferentes, dependendo da cultura que se utiliza
 

como filtro. Ao mesmo tempo que pode ser visto como algo que dá sentido à
vida, também pode ser uma assombração que obscurece uma vida inteira.

3.2.2.4 A morte como afirmação da animalidade

“Morte e vida são inseparáveis.” (Tuan, 1998, p.64, Tradução nossa).


Tuan (1998) expõe que, no nascimento de uma pessoa, normalmente, não há
luto sobre o fato de que o recém-nascido agora está vulnerável a morrer a
qualquer instante, pelo resto de sua vida, nem há luto pela comida diária, que
ampara e mantém a vida, não passando de um composto saboroso de morte.
O ciclo da vida, a partir de Tuan (1998), estabelece para o ser humano
um período de crescimento/desenvolvimento e outro de decadência. Ao tratar
da segunda parte do ciclo da vida, o autor aponta ao tempo uma posição
impositiva, sendo através dele a catarse evidente, onde a liberdade se contrai
gradativamente, como através do afastamento de lugares e pessoas. A
morte, a partir desta premissa, se demonstra como uma experiência de
abandono e isolamento, podendo causar grande apreensão naquele que a
imagina.
A característica de regeneração do corpo, argumenta Tuan (1998),
permite que o ser humano consiga sair de um estado de dor e sofrimento
para um de saúde, porém por ter conhecido o mal-estar, mesmo em
condições ideais e confortáveis de vida, a imaginação ainda será capaz de
lembrar do potencial de agonia que o corpo carrega consigo, sendo uma
espécie de memento mori5. Esta capacidade, quando revivida ao longo de
uma vida, tende a afastar o significado de finitude do falecimento, dando
apenas a impressão de que a morte é puro sofrimento.
Tuan (1998) ainda ressalta que a passividade da vida em relação à
morte indica uma analogia com a ideia de acidente, como se o natural fosse
estar e se manter vivo e a morte fosse um erro de percurso, negando a
inevitabilidade biológica.
Por mais que seja comum a ideia de tentar de escapar à morte, Tuan
(1998) cita casos em que a valorização da morte se materializa. Diante de

                                                                                                                       
5
Expressão latina que significa algo como "Lembre-se de que você é mortal".
 

dores agonizantes, uma pessoa pode querer escapar para a morte, sendo o
fim da vida um alivio. Também é possível ter a percepção de que a morte é
uma forma de agregar um valor infinito à vida, levando em consideração que
viver uma eternidade inteira seria enfadonho. Por fim ele argumenta que a
morte traz a certeza que nenhuma pessoa maléfica viverá para sempre.
Talvez, pondera Tuan (1998), o maior medo entre os humanos seja a
da inexistência. Onde a morte não é nenhuma forma de sonho, mas sim a
não existência completa. Levando ao extremo do pensamento, argumenta-se
que é melhor viver em dor do que não existir. Uma forma de escape desta
aniquilação se manifesta no conceito de céu e inferno. A existência de um
lugar após a morte é um trabalho de imaginação que não encontra uma
definição absoluta, porém sempre se relaciona com o mundo terreno que se
vive. O autor cita o Alcorão6 como exemplo: “Os benditos reclinar-se-ão em
sofás macios, serão servidos em cálices abastecidos em fontes... e sentar-
se-ão com tímidas virgens de olhos castanhos”(TUAN, 1998, p.72, Tradução
nossa).
Os avanços tecnológicos, segundo Tuan (1998) e as tentativas de
estender a longevidade dos indivíduos configuram, não só uma tentativa de
escape da morte pela imortalidade, mas também busca encontrar um escape
biológico que nega as dores e os odores animais que acompanham e
condicionam a vida humana.

3.2.3 Pessoas

De acordo com Tuan (1998), a singularidade de cada ser humano é


capaz de proporcionar uma sensação de solidão ou de desconexão, que
pode ser menos relacionada à indiferença do mundo, mas essencialmente
relacionada à percepção de alteridade. Ser único é uma questão
problemática em muitas partes do mundo. Embora seja um estímulo para o
ego, é simultaneamente cansativo e estressante, pois o individuo passa a ser
alvo de críticas, de inveja e pode ser excluído das práticas e dos valores do

                                                                                                                       
6
Livro sagrado islâmico.  
 

grupo, podendo ocasionar ataques de melancolia e uma sensação de


insignificância.

3.2.3.1 Pertencimento e desconexão

O grupo, expõe Tuan (1998), estabelece uma atmosfera de


tranquilidade e bem-estar. Causa um relaxamento frente a alguma ameaça e
permite a construção da ideia do “nós” em “Eu posso ser fraco, mas nós
somos fortes”. O “nós” agrega um sentimento de união como em “nós
americanos”, “nós, o povo” e “nós, ambientalistas”, que geram uma sensação
confiante de justiça e honra. Freud (1996) exemplifica bem a relação entre o
grupo e o indivíduo, explicando a tentativa de regulação dos relacionamentos
sociais:
Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam
sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer
que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no
sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos. Nada se
alteraria se, por sua vez, esse homem forte encontrasse alguém
mais forte do que ele. A vida humana em comum só se torna
possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer
indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos
isolados. (FREUD, 1996 p.101)

A relação entre pertencimento e desconexão, de uma forma geral, se


mostra evidente desde fatores biológicos até fatores sociais. Tuan (1998)
argumenta que, embora o corpo humano aparente ser estruturalmente
idêntico, ao se pesquisar os detalhes dos indivíduos, encontram-se
variedades de todos os tipos. Desde os mais óbvios como tonalidade da pele,
estatura, tipo de cabelo, até outros mais específicos, como quantos ramos
tem uma aorta sobre o coração e qual é a sensibilidade térmica da pele. Os
fatores sociais variam entre idade, gênero, habilidade, temperamento... Até
dentro de uma mesma casa, os membros da mesma família se diferenciam.
Por exemplo, a relação de uma criança e sua mãe. Ela pode se sentir como
parte da família, feliz e segura, ao brincar no colo de sua progenitora, porém,
ela é capaz de se sentir igualmente excluída e desconectada quando a
mesma estiver trabalhando em um projeto pessoal e ela, a criança, quiser
mostrar um desenho e acabar sendo ignorada.
 

Não ter uma expectativa social realizada é um acontecimento


cotidiano, porém opressor, afirma Tuan (1998). Diante da ideia de que as
relações humanas são o que realmente importa e da noção de que é preciso
se esforçar para manter uma relação viva, deve-se considerar que mesmo
havendo simpatia e carinho em ambas as partes, sempre haverá algo
interessante acontecendo que acomode a distância. E a distância quando
mantida, tende a levar ao esquecimento. Portanto, a máxima “quem não é
visto, não é lembrado”, de certa forma se mostra verídica e
consequentemente leva o ser humano a uma busca constante por se manter
a vista dos demais.

3.2.3.2 O peso da cultura

Tuan (1998) determina a cultura como peça chave entre a variação de


conexão e desconexão e também entre a atenção e indiferença. Seus
exemplos de conexão são: o contato corporal, que estabelece a sensação de
união, como em um abraço; o canto, que estabelece uma “bolha ressonante”
em volta do grupo, construindo uma harmonia; e a percepção de um Outro –
algo ou alguém diferente e hostil – por exemplo, um oponente comum, que
por estabelecer o diferente, aumenta a solidariedade e a sensação de união
do grupo como meio de fortalecimento e defesa.

3.2.3.2.1 A guerra

“A guerra é a perdição do homem” (TUAN, 1998, p.92, Tradução


nossa). A sensação de pertencimento durante conflitos acontece com grande
eficiência. O treinamento militar providencia todos os ingredientes
fundamentais para escapar dos estresses derivados da individualidade. Um
inimigo comum, a padronização do grupo, a obediência irrefutável e os
cantos de guerra. O soldado deixa para trás sua condição de individuo, é
liberado do fardo das escolhas pessoais e acima de tudo, ganha a liberdade
de ser de um grupo com liberdade e força para alcançar um objetivo. Sendo
que, ainda há a influencia psicológica de acreditar que se estar lutando pelo
lado certo. Na guerra, o inimigo deixa de ser uma pessoa e passa a ser a
 

personificação do mal, completamente ausente de uma individualidade e de


qualquer qualidade humana. Outros grupos que passam por sensações
similares são atletas em competição e passeatas que antecedem algum
confronto.

3.2.3.2.2 A identificação

A divisão entre “nós” e “eles”, argumenta Tuan (1998), é crucial para a


construção de uma unidade. No sentido de uma casa, seus habitantes podem
ser heterogêneos e podem estar vivendo momentos diferentes de suas vidas,
mas ainda assim existe uma noção de família e uma noção de dentro e fora
da casa. Todos são indivíduos, mas fazem parte de um mesmo grupo
delimitado. Este conceito pode ser ampliado para bairros, cidades e regiões.
Todos são capazes de se diferenciar a partir de algum ponto, seja pela
arquitetura, por monumentos, qualquer forma de simbologia que tenha a
capacidade de representar e delimitar um grupo em comparação com o outro.
Por esta lógica, pode-se situar a linguagem como sendo a essência da
cultura humana. Sem a linguagem não haveria meios para que qualquer
sociedade fosse capaz de construir, transformar, mascarar e escapar de
qualquer coisa com eficiência.

3.2.3.2.3 O idioma comum

Utilizar as mesmas palavras, argumenta Tuan (1998), oferece a


sensação de certeza de habitar um mundo comum com outra pessoa. Para
que a crença deste universo comum se sustente e se diferencie dos demais
grupos, o vocabulário conversacional tende a estabelecer limitações. Assim
como cientistas com suas terminologias, gangues com suas gírias e amigos
com seus jargões. Para compreender a importância da linguagem em escala
mundial basta observar que o número de línguas e dialetos na Terra
ultrapassa os milhares. Portanto, pode-se considerar, ainda segundo Tuan,
que a comunicação verbal é uma forma de “ponte de isolamento” que une e
separa os povos.
 

Os poderes da fala não só unem as pessoas, afirma Tuan (1998), mas


também unem os indivíduos com o ambiente não humano que as cerca. Por
exemplo, através de metáforas: “Eu sou uma raposa e você, um porco” ou
então “boca do rio e pé da montanha”. Estes artifícios linguísticos atribuem
alguma correlação de identidade, como uma forma de ilusão tranquilizadora
de que tudo é uno e coetâneo. Esta construção de significados também tende
a mascarar a indiferença do mundo como um todo, tornando-o menos hostil.

3.2.3.3 A solidão, a erudição e o pertencimento

Tuan (1998), quando analisa a solidão, aponta o egotismo como o


“coração” do problema, pois independentemente da capacidade de uma
pessoa de falar, mesmo dentro de um grupo coeso, se a outra não é capaz
de se afastar de seus pensamentos para escutar o que está sendo dito, o
diálogo não será estabelecido. Como o encontro entre uma pessoa que está
feliz e uma que está triste, onde pode haver uma tentativa de diálogo, mas o
estado de espírito dos indivíduos tende à indiferença, onde o triste
permanece triste e o alegre segue alegre. Deve-se levar em consideração
que isolamento referente ao discurso independe da capacidade verbal do
indivíduo. Ironicamente, aqueles com um vocabulário restrito e com o uso
constante de clichês conseguem obter um grande alcance de compreensão
dentro de seu grupo, enquanto que a sofisticação verbal/intelectual alcança
justamente o oposto. Portanto, o conhecimento e a erudição podem se tornar
grandes causas da solidão.
Tuan (1998) argumenta que muitas sociedades percebem que o
pensamento sem finalidade tende a causar infelicidade ou que ele é uma
razão da própria infelicidade. Algumas chegam a afirmar que não há razão
para pensar, pois é melhor viver. Até nos Estados Unidos contemporâneo o
pensamento pode ser visto como subversivo aos valores estabelecidos, como
um enfraquecedor da coerência comum e promotor do individualismo. Porém
os indivíduos pensantes questionam o que o autor aponta ser uma espécie
de “cobertura cultural”, que pode ser compreendida como dissimulações
normalmente aceitas e reproduzidas pelos membros da sociedade sem
 

grandes questionamentos e sem resultar em grandes danos, como exemplo,


a dança da chuva. Esse questionamento levanta dilemas de como reagir a
estas situações aparentemente infundadas. Este conflito determina dois
caminhos possíveis como solução: o primeiro é o de ser construtivo e
enriquecer a cobertura desta cultura; o segundo é o de usar o pensamento
critico e tentar desconstruir esta ideia em público. Para entender a
profundidade da (des)construção da cultura, o autor explicita a ideia de que a
cultura não é só o que as pessoas fazem, mas sim o que elas acreditam que
deve ser feito. Tuan estabelece uma relação de flexibilidade e improvisação
dos seres humanos diante de um mundo caótico. Dentro dessa noção de
desordem, ele aponta que os rituais não são poderes místicos voltados ao
exterior para influenciar a natureza, mas sim uma maneira de lidar
internamente com problemas insolvíveis, sem enlouquecer. Por fim, o autor
conclui questionando a importância das construções culturais ideológicas
sobre as físicas, explicitando que dentro da possibilidade da destruição dos
bens materiais ou dos bens conceituais, a tendência da humanidade é livrar-
se do material. Uma casa pode ser reconstruída, porém uma ideologia não se
reergue com a mesma facilidade. Portanto, indivíduos pensantes, que
enxergam as falhas de sua cultura e não a atacam, estão respeitando o
escape que foi criado para lidar com tais circunstâncias da natureza e estão
evitando possivelmente serem excluídos das mesmas por serem dissonantes
do grupo.

3.2.4 Inferno

“Imaginação é nossa forma singular de escapar. Escapar para o que e


para onde? Para um lugar considerado ‘bom’- para uma vida melhor e um
lugar melhor.” (TUAN, 1998, p.113, Tradução nossa). Tuan (1998) aponta
que o senso comum, define o “bom” (bom, bem, boa)7 historicamente como
aquilo que excede o básico para a sobrevivência. São os pastos verdes, as
grandes colheitas, uma casa resistente, posses, muitas crianças... Ele indica
que esta definição de “bom” (good em inglês) se confunde com “bens” (goods
                                                                                                                       
7
A amplitude da tradução da palavra “good” é importante para não restringir o sentido da
afirmação do autor.
 

em inglês) dando a entender que muito da vida seria a busca por bens
materiais. Porém, questiona o autor, o indivíduo, por mais que esteja imerso
em abundâncias, se está isolado, está vulnerável. Portanto, a segurança
pode ser encontrada a partir da participação em um grupo onde a ajuda é
mútua e o indivíduo se mantém anônimo ou pelo caminho oposto, onde
através do poder e do prestígio, alcança o apoio de um grupo, que por
acreditar que ele é importante, garante sua segurança. “O prestígio é medido
em o quanto acima (da vida animal) uma pessoa consegue alcançar.” (TUAN,
1998, p.114, Tradução nossa).

3.2.4.1 O vazio corrosivo

A sensação humana de vulnerabilidade está ligada a algo mais do que


os temores relacionados às dores e à morte, indica Tuan (1998). Ela também
advém de uma sensação corrosiva de vazio que se aloja no âmago do ser.
Esta sensação é combatida por meio de drogas, álcool, cigarro e também
pelo envolvimento com o trabalho, com projetos pessoais, por meios de
entretenimento... mas, principalmente, através da companhia de outro ser
humano. Essa dependência à companhia de outra pessoa, ao mesmo tempo
em que permite uma grande sensação de prazer e plenitude, também
possibilita a desilusão e a auto-desilusão. Nestes momentos de encontro com
outras pessoas, é que a imaginação pode afundar o ser no inferno ou fazê-lo
voar para o céu.
Tuan (1998) argumenta que a imaginação é capaz de ser a raiz de
grande parte da ansiedade e da tristeza sentida pelos seres humanos. Por
mais cruel que seja a realidade, aquilo que a mente concebe tende a ser
mais temido. Ele afirma que “a mente – ou a psique – sofre com uma série
de distorções e limitações que tem a capacidade de levar-nos para os
lugares, em que, lucidamente, não iríamos.” (TUAN, 1998, p.114, Tradução
nossa). Ele também afirma que ao longo da vida vive-se poucos momentos
genuínos de felicidade.
 

3.2.4.2 Os monstros

Como se o os perigos da própria vida não bastassem, a imaginação


humana, disserta Tuan (1998), ainda é capaz de criar personagens
aterrorizantes como monstros, demônios, bruxas e fantasmas que tendem a
ocupar a mente de crianças e mantê-las amedrontadas por parte de seu
amadurecimento. Porém, existe uma ironia quanto à relação do indivíduo
com o medo causado pela imaginação, pois este, crescendo em um ambiente
seguro e controlado, se afasta de tais personagens e tende a sentir falta de
excitações e estímulos mais intensos. Desta forma, nasce o conceito de
montanha russa, onde se cria um meio para contrastar ao lado maçante da
vida concreta e segura.

3.2.4.3 Crueldade

Tuan (1998) aponta toda criatura viva como destrutiva por natureza, já
que, para se manter vivo, precisa ingerir algo. Porém, os seres humanos
levam a destruição um pouco além. Suas habilidades permitem transformar
um ovo em uma omelete, uma floresta em livros, terra em edifícios e muito
mais. Todavia, existe uma atração pela destruição que vai além do prazer de
ver algo se transformar. Existe uma sedutora afirmação de poder. O autor
ressalta que a crueldade não está entre os sete pecados capitais, o que para
os tempos atuais, é aparentemente uma grande omissão. Porém, ele
argumenta que o cruel é resultado de uma falta de refinamento, falta de algo
que tire a essência “crua” da ação de crueldade. Ele aponta as ações de
crianças como exemplo desta falta de refinamento, onde não há intenção de
crueldade quando se enfia o anzol em uma minhoca e a joga na água para
usá-la como isca. Mas, já que comer é preciso, mesmo alcançando o
refinamento com o tempo, ainda sim é necessário sacrificar as minhocas de
forma cruel para que se adquira comida.
Porém uma criança que, ao invés de usar uma minhoca como isca,
brinca arrancando as pernas de um gafanhoto, é comparada pelo autor
(TUAN, 1998) como alguém que busca a afirmação de poder. Esta afirmação
de poder, que existe em todas as sociedades, tanto entre os seus membros
 

quanto para com os animais, é relatada pelos inúmeros casos de


assassinatos grotescos cometidos pelos nazistas nos campos de
concentração. O autor resume que “todas as sociedades contêm fortes e
fracos, porém, os fracos estão inevitavelmente à mercê dos fortes, a menos
que os fracos se unam.” (TUAN, 1998, p.122, Tradução Nossa). Mas ele
conclui afirmando que a crueldade em muitos casos é visto como uma forma
de entretenimento.

3.2.4.4 Submissão

A “natureza”, indica Tuan (1998), do ponto de vista das elites


poderosas, é definida como tudo aquilo que não contém dignidade. Frente à
humanidade que é reduzida a um status animal, ela passa a ser vista como
um recurso natural e, a partir de então, pode ser usada e aproveitada pelos
outros, como através da exploração econômica. Ela pode ir ao extremo da
exploração sexual e do uso de pessoas como animais de estimação 8 .
Quando é levantado o questionamento de como as pessoas se subjugam
passivamente a uma situação como essa, o autor afirma que isso se dá
através do sentimento de desespero, ressentimento e aceitação, sendo o
mais comum dos comportamentos, a aceitação. Ela é uma forma de lidar com
a falta de alternativa diante da percepção de uma força implacável e também
como o único meio de suprir suas necessidades diante da realidade. Um
exemplo concreto é dado na divisão de castas na Índia, onde quem nasce
nas camadas inferiores aceita como natural e justa sua condição social. Esta
premissa inflexível de estado de submissão, por mais difícil que seja aceitar,
para o autor, pode ser visto como uma garantia de ter um lugar no mundo, ou
seja, se existe um ranking social, ao menos se está no ranking. Este
pertencimento, de certa forma preenche a sensação de vazio do indivíduo. A
acomodação à submissão pode chegar ao caso extremo da total extirpação
da liberdade, o que significa a liberdade de jamais ter que pensar de novo e
de nunca mais ter que tomar qualquer decisão. Concluindo, Tuan afirma que

                                                                                                                       
8
Entre os anos 1500 e 1700 os anões eram usados em dúzias como bichos de estimação.
Eles eram bem alimentados, vestidos e passados de colo em colo para a diversão de seus
donos.
 

a aceitação da submissão como escape é a busca por segurança dos perigos


e incertezas da natureza, portanto, em uma sociedade dinâmica, escapar
pode ser justamente o refúgio na estabilidade.

3.2.4.5 Necessidades imediatas

Ao citar Orson Welles 9 , Tuan (1998) aponta que existem duas


condições para que a vida seja tolerável: a primeira é que não se deve ter
família nem responsabilidades e a segunda é ter chegado ao fundo do poço.
Ele explica que uma pessoa com algumas centenas de francos pode entrar
em um estado de pânico, porém aquele que tem somente três francos pode
ter a certeza que terá comida até amanhã, consequentemente não estará
pensando em nada além desta data. O autor conclui que “A busca sem fim
por comida e refúgio, sem dúvidas, complica a vida, mas mesmo assim a
simplifica, pois a mente focará somente nas necessidades mais urgentes e
imediatas” (TUAN, 1998, p.146, Tradução nossa).

3.2.5 Céu

A humanidade, aponta Tuan (1998), se orgulha de ter alcançado a


façanha do desenvolvimento de ideais morais, das filosofias inspiradoras, das
grandes percepções religiosas e também de sistemas de pensamento. Mas
ele questiona “Seriam elas fantasias supremas ou o real supremo?” (TUAN,
1998, p.153, Tradução nossa).

3.2.5.1 Conhecer o mundo

Para responder a esta pergunta, Tuan (1998) aponta a imaginação


não só como uma fonte de ilusão e erro, mas também como a forma singular
de os seres humanos alcançarem o conhecimento. Apontando o uso da

                                                                                                                       
9
Cineasta, ator, produtor e roteirista. Dirigiu Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) dentre
outros. (1915-1985)
 

palavra “Deus” por cientistas como Albert Einstein10 e Stephen Hawking11,


não como a concepção “de divindades moralmente ambivalentes, passionais
e partidárias de mitos e de contos populares” (TUAN, 1998, p.154, Tradução
nossa), mas sim como um criador que imparcialmente gera o sol para brilhar
sobre o justo, o injusto, o sublime e o inefável. O autor também cita Einstein
como o descobridor de que os seres humanos só conseguem lidar com fatos
através de fantasias (teoria da relatividade). Ao tentar compreender a
dinâmica da ciência, Tuan aponta que ela é a combinação de extremos:
austeridade e esplendor, o microscópico e o gigantesco. Elementos dispostos
de uma forma tão plausível, que transformam a percepção dessa realidade
em algo que poderia ser nomeada como Deus.
Entre os elementos relacionados ao crescimento do indivíduo, Tuan
(1998) indica que a perda da inocência e da curiosidade é inevitável, porém,
na medida em que a pessoa amadurece, o autor considera inaceitável que
ela não ocupe sua mente com sabedoria. Mas seria o amadurecimento uma
mudança necessária da fantasia para o real? Em resposta, ele afirma que “A
fantasia das crianças não é um escape da realidade, mas sim o meio natural
em que eles a exploram e passam a entendê-la” (TUAN, 1998, p.162,
Tradução nossa). Na medida em que as pessoas amadurecem, elas devem
ser capazes de ir de um encantamento para outro e nunca perder sua
capacidade de imaginação. A ciência moderna conseguiu simultaneamente
extirpar alguns demônios do imaginário popular e prover com uma infinidade
majestosa e cativante de questões entrópicas sobre o universo. Porém,
diante deste avanço evidente, se levanta o questionamento “Por que (...)
existe a sensação universal de que uma mortalha cinzenta está sobreposta à
terra e que a ciência é a culpada?” (TUAN, 1998, p.164, Tradução nossa). A
resposta é dada em dois pontos. O primeiro indica que a longa história de
subserviência à natureza fez com que a liberdade dada em relação a ela seja
desnorteante, pois se passa a existir o sentimento de falta daquele estado em
que, embora tudo fosse mais duro, havia mais excitação e também a ilusão
da existência de alguma forma diálogo com o meio. O segundo ponto indica o
                                                                                                                       
10
Físico e teórico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos dois pilares
da física moderna. 1979-1955
11
Físico teórico e cosmólogo britânico e um dos mais consagrados cientistas da atualidade.
(1942)  
 

reducionismo da ciência, onde, para entender algo, se exclui tudo aquilo que
não é relevante, por exemplo, a afirmação de que uma mesa nada mais é do
que um amontoado de átomos, como uma maneira de acabar com os
mistérios dos detalhes da vida.

3.2.5.2 Facetas da realidade

Tuan (1998) conclui que não há como compreender o real em sua


totalidade, e sim, sua facetas. A ciência descobre somente aquilo que ela é
capaz de perceber sobre determinada ótica. Essas facetas se multiplicam e
se relacionam na medida em que a sensibilidade humana cresce e se
aprofunda. Ele aponta o grande escape através de uma parábola sobre
Thales de Mileto12, onde o filósofo caiu em um poço por estar olhando para
cima, estudando astronomia, e uma jovem tráica13 que passava, o caçoou
apontando que, ele, tão ávido por conhecer as coisas dos céus, deixou de
perceber aquilo que estava próximo de seus pés. Tuan interpreta que Thales
experimentou tanto as alturas quanto as profundidades, enquanto a tráica se
manteve estável no plano horizontal. Para o autor, o grande escape acontece
independente de talento ou das circunstâncias socioeconômicas do indivíduo,
e sim por uma disposição a olhar na direção certa. Ou seja, Thales alcançou
o grande escape por seguir sua vontade de conhecer melhor o mundo, e
acabou conhecendo.

                                                                                                                       
12
Filósofo da Grécia Antiga, o primeiro filósofo ocidental de que se tem notícia. (624 a.C –
546 a.C)
13
Os Tráicos foram um povo indo-europeu, habitante da Trácia.
 

4 O CINEMA DE WOODY ALLEN

4.1 Apenas Allan

Nascido no dia 1o de dezembro de 1935, em um hospital no Bronx em


Nova York, Allan Stewart Königsberg, conta Colombani (2010) foi o
primogênito do casal Judeu, Martin e Nettie Königsberg, que mais tarde
vieram a ter, em 1943, uma filha chamada Letti. A Família Königsberg passou
por grande dificuldade financeira em consequência da depressão econômica
de 1929. Nos primeiros sete anos de Allan, eles se mudaram mais de doze
vezes dentro do condado de Brooklyn, em Nova York. A casa vivia cheia de
familiares, artistas falidos e imigrantes judeus. Era um ambiente tumultuado,
com uma atmosfera ansiosa e constantes brigas por falta de dinheiro. Martin
vivia entre trabalhos temporais como vendedor de joias por correio, garçom e
motorista de taxi. Sua estabilidade financeira só foi alcançada quando
começou a trabalhar em um grande teatro em Manhattan. Nettie se tornara
uma esposa ressentida por ter largado os estudos para cuidar da casa e não
escondia suas críticas ao marido por sua falta de ambição profissional.
Por volta dos cinco anos de idade, narra Colombani (2010), Allan
passou a manifestar sinais de depressão e, na ausência de livros em casa,
encontrou refúgio no cinema. Durante as ferias de verão, o jovem rapaz
chegava a ir mais de seis vezes por semana às salas de cinema para assistir
os clássicos da era dourada. Quando o jovem Königsberg não estava nas
escuras salas de projeção, escapava do mundo real através de truques de
mágica que aprendeu depois que ganhou um kit no seu décimo aniversário.
Seus estudos nunca foram prioridades na sua vida. Seu desempenho
acadêmico pode ser considerado medíocre e sua aversão pela escola
Midwood High, o menino deixou sempre evidente. Antes mesmo de se
formar, Allan teve algumas piadas publicadas nos jornais de Nova York e
rapidamente conquistou o gosto do público. Foi contratado por um agente de
Relações Públicas para utilizar suas frases humorísticas para melhorar a
imagem de alguns de seus clientes.
 

O tímido rapaz de dezesseis anos não queria que seus colegas de


classe pegassem os jornais e vissem o nome dele (...) e, além
disso, achava que todo mundo no show business mudava de nome;
queria um que fosse leve e parecesse adequado a uma pessoa
engraçada. (LAX, 2010, p.14)

4.2 De Allan a Allen

Colombani (2010) conta que O nome “Allen” foi escolhido por ser a
forma mais comum de se escrever Allan e “Woody” foi decidido de forma
arbitrária. Lax (2010) explica que o estudante fazia todos os dias uma viagem
ao centro de Manhattan para escrever piadas por três horas ganhando o
equivalente a 20 dólares (o que na época era bom). Colombani (2010)
complementa que Allan chegou a estudar na Universidade de Nova York,
mas em menos de dois anos desistiu, para o descontentamento de seus pais.
Nesse período, um grande evento aconteceu em sua vida: Seu primeiro
“encontro” com diretor Ingmar Bergman14, ao ver o filme Monika e o desejo
(Sommaren med Monika, 1953). Para Allen, o filme era uma obra prima e se
mostrava muito mais maduro que o cinema americano por ter uma estrutura
confrontante e adulta.

4.3 O começo de um comediante

Aos 19 anos, afirma Colombani (2010), foi contratado pela NBC para
participar de seu programa de treinamento de novos roteiristas e logo foi
enviado para Hollywood para trabalhar no programa Colgate Comedy Hour,
um show popular com grandes nomes da comédia onde ele escreveu por
poucos meses até o cancelamento do programa. Lá, casou-se com a sua
namorada de 17 anos de idade, Harlene Rosen. Aos 22, novamente em Nova
York, passou a escrever para o comediante Sid Caesar, um conhecido judeu
nova-iorquino que tinha grande interesse em agregar novos talentos para o
seu time de roteiristas. Em parceria com Larry Gelbart, um comediante mais
experiente que mais tarde veio a criar as series antimilitares MASH, escreveu
sketches para o Sid Caesar’s Chevy Show que acabou ganhando um
                                                                                                                       
14
Dramaturgo e cineasta sueco. Diretor de “O sétimo selo” e “Gritos e sussurros”. 1918 -
2007
 

aclamado Sylvania Award e nominações para o Emmy, uma premiação


equivalente ao Oscar para a Televisão. Essa visibilidade levou Woody a
trabalhar para o The Garry Moore Show na rede de televisão americana CBS.
Embora o salário fosse muito bom, o cotidiano da televisão mostrou-se duro e
Allen logo passou a odiar esta realidade.
Na mesma época, Woody conheceu Jack Rollins e Charles H. Joffe,
dois agentes que trabalhavam com novos talentos promissores, e mostrou
interesse em fazer comédia de Stand-up. Eles deram uma chance para testar
o potencial de Allen. Ao longo de dois anos ele se manteve apresentando
suas próprias piadas no Duplex em Nova York e com seu estilo único,
ansioso e frágil acabou se tornando um dos comediantes mais populares da
cena da cidade. Durante suas apresentações no Duplex, conheceu uma atriz
aspirante chamada Louise Lasser o que levou seu casamento com Harlene
ao fim em 1962. Woody, neste ponto de sua carreira passou a fazer turnês
por todos os Estados Unidos, alcançando grande sucesso. Longas matérias
sobre ele foram publicadas no The New York Times 15 e Newsweek 16 .
Acreditando estar com o sucesso do seu lado, Woody acreditou ser a hora de
tentar fazer seu primeiro filme, descreve Colombani (2010).

4.4 O que é que há gatinha?

O primeiro projeto de Woody Allen para o cinema, narra Colombani


(2010), foi O que é que há, gatinha? (What’s new pussycat?, 1965), no qual
ele escreveu o roteiro e participou com um papel coadjuvante. O produtor
Charles K. Feldman foi muito inflexível com os pedidos constantes de
alteração no roteiro, tornando a experiência muito desgastante para o jovem
roteirista. Por mais que o filme fosse uma compilação de grandes estrelas,
como o comediante Peter Sellers, a Bond Girl Ursula Andress e o eterno
Lawrence da Arábia, Peter O’Toole, o filme era em essência uma obra
comercial e isso não o agradava. Assim como esperado pelo produtor, o filme
foi um grande sucesso e mesmo com todo o desprezo e insatisfação com o
processo e com o resultado final, Woody acabou assinando o contrato para
                                                                                                                       
15
Jornal diário publicado em Nova Iorque desde 1914
16
Revista semanal publicada em Nova Iorque desde 1933
 

um novo filme. Pode-se assumir que neste processo tenha nascido a


necessidade de ter o controle criativo de todo o processo de suas criações.

4.5 O que há tigresa?

Seu próximo filme, O que há tigresa? (What’s up Tiger Lily? 1966), em


que trabalhou também como roteirista, Woody teve um desafio bem diferente.
A proposta do filme era de reescrever todas as falas de um filme japonês
(Kagi no Kagi) para uma dublagem cômica que não precisaria
necessariamente seguir a lógica do filme. Esse projeto se revelou como um
desafio em que ele poderia ser engraçado e inventivo. Allen não gostou do
resultado final e até quis evitar que o filme fosse divulgado. Para seu
espanto, foi mais um grande sucesso de bilheteria, conta Colombani (2010).

4.6 Cassino Royale

Colombani (2010) discorre que o mesmo produtor de O que é que há


gatinha?, Feldman, após comprar os direitos do livro Cassino Royale de Ian
Fleming, o criador do notório espião Britânico, James Bond, contratou Allen e
mais nove outros roteiristas conhecidos para fazer do romance, uma paródia.
Não bastasse os dez roteiristas, havia simultaneamente cinco diretores
incluindo John Huston, ganhador do Oscar de melhor filme com O tesouro de
Sierra Madre (The treasure of the Sierra Madre, 1948). O elenco estava
recheado de personalidades consagradas como o comediante Peter Sellers,
o famoso diretor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) Orson Welles e David
Niven, conhecido por ter atuado no filme A pantera cor de rosa (The Pink
Panther, 1963) entre outras celebridades. Woody confessou que não faz ideia
de quem escreveu o roteiro e que algumas de suas falas foram improvisadas,
mas deixa claro que ele não participou de sua criação. Ele afirma também
que nunca se interessou pelo filme e que achava toda a iniciativa um
“empreendimento imbecil”. Allen nunca viu o filme acabado. Seu agente
Charlie Joffe dizia “Cala a boca e faz o filme. Você está tentando entrar no
negócio do cinema. Vai ser um grande filme e você vai estar nele junto com
 

uma porção de estrelas, então vai te ajudar a se lançar no cinema” (LAX,


2010, p.426). Colombani (2010) descreve que Allen era o vilão do filme, um
sobrinho de James Bond chamado Jimmy Bond que tinha o plano maligno de
livrar o mundo de todas as mulheres feias e todos os homens mais altos do
que ele. Pode-se considerar que este projeto foi determinante para que
Woody tivesse o controle total dos filmes que ele fosse fazer futuramente.

4.7 Um assaltante bem trapalhão – Estreando como diretor


 

Com trinta e três anos e uma carreira sólida como comediante já


construída, afirma Colombani (2010), Woody finalmente tornou-se diretor de
um filme cujo roteiro foi escrito por ele e seu amigo de infância, Mickey Rose,
chamado Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969).
Seus agentes, Rollins e Joffe tornaram-se produtores e financiaram o projeto.
No estilo de um documentário falso, Allen atuou como Virgil Starkwell, um
criminoso trapalhão obcecado por mulheres e dinheiro, especialista em
assalto e fugas. Montado com inserções de imagens de arquivo e falsos
depoimentos, com referências a Charlie Chaplin17 e Groucho Marx18, Allen
esboçou o início de um estilo próprio. O filme foi sucesso de crítica e público.

4.8 Bananas e o encontro com Diane Keaton

Colombani (2010) conta que Woody, no ano seguinte conheceu Diane


Keaton, uma jovem e ainda desconhecida atriz, que o ajudou a pôr um ponto
final em seu casamento com Lasser, que estava em crise após o suicídio de
sua mãe. Por mais que o casamento tivesse terminado, sua ex-mulher
chegou a atuar em Bananas (Bananas, 1971), o segundo filme de Allen como
ator, roteirista e diretor, também produzido por Joffe e Rollins e co-escrito
com Mickey Rose. Filmado em Porto Rico e inspirado em um texto de Woody

                                                                                                                       
17
Ator, diretor, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino, roteirista e
músico britânico. (1889-1977)
18
Comediante famoso pela combinação de seus óculos, bigode volumoso e charuto.
Considerado um dos mestres do humor e grande influência para Woody. (1890-1977)  
 

publicado na revista Evergreen Review 19 intitulado “Viva Vargas”, o filme


narra a história de Fielding Mellish (Woody Allen) e sua paixão repentina por
uma ativista política de uma revolução de um país latino-americano
imaginário. A comédia se sustenta em piadas constantes e paródias de O
Encouraçado Potenkin (Броненосец Потёмкин, 1925) de Sergei Eisenstein
e de varios filmes de Luiz Buñuel, diretor, produtor e roteirista espanhol
conhecido por suas criações surrealistas. O humor político do filme é também
mais uma das características que Woody manteve ao longo dos anos.

4.9 Tudo o que você queria saber sobre sexo (...)

Após assistir na televisão com Diane Keaton na televisão, uma


entrevista do Dr. David Reuben, autor do livro best-seller intitulado Tudo que
você queria saber sobre sexo (Everything you ever wanted to know about
sex), Joffe e Rollins compraram os direitos do livro para que este se tornasse
o terceiro filme de Allen com a adição de “mas tinha medo de perguntar”
discorre Colombani (2010). A comédia foi financiada pelo Estúdio United
Artists com um orçamento generoso. Dividida em sete sketches, Woody
trabalhou com narrativas e atores completamente distintos. Desde uma
história sobre uma frígida mulher italiana e as tentativas de seu marido para
levá-la a alcançar o orgasmo, parodiando o cinema italiano de Michelangelo
Antonioni20 e Frederico Fellini21, até uma doce história de amor entre um
médico e uma ovelha. O sucesso do filme foi tanto que acabou, nos Estados
Unidos, entre os dez filmes mais rentáveis de 1972. A retrospectiva dos
primeiros anos de trabalho de Woody Allen e seu vertiginoso sucesso foram
cruciais para que ele alcançasse a tão sonhada carta branca do estúdio
United Artists para suas criações. Posição inédita no cinema americano.
Liberdade ainda alvejada por famosos diretores de Hollywood como Steven
Spielberg, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola.

                                                                                                                       
19
Revista norte americana sobre artes e política, fundada em 1957.
20
Diretor e roteirista Italiano, autor de Depois daquele beijo (1966), dentre outros 1912-2007
21
Diretor e roteirista Italiano, autor de A doce vida (La Doce Vita 1966), dentre outros 1920-
1993
 

4.9.1 Cinema de autor

A liberdade criativa alcançada por Woody Allen faz parte de um


contexto da história do cinema que deve ser aprofundado para que sua
trajetória seja entendida de forma mais inteiriça. Ao se enquadrar no contexto
maneirista, citado no capítulo anterior, onde é evidenciado o cinema de
Hitchcock como exemplo, o olhar do diretor passa a protagonizar a
construção do filme. Truffaut (2000), ao evidenciar a importância da autoria
do diretor sobre sua obra escreve que

Um filme vale o que vale quem o faz (...) Um filme identifica-


se com seu autor, e compreende-se que o sucesso não é a
soma de elementos diversos – boas estrelas, bons temas,
bom tempo – , mas liga-se exclusivamente à personalidade
do autor. (TRUFFAUT, 2010, p.17)

Truffaut ainda argumenta que “um filme é uma etapa na vida do diretor
e como o reflexo de suas preocupações no momento”. (TRUFFAUT, 2010,
p.17) O que é uma constante característica na filmografia de Allen. Torres
(2012) aponta que os franceses Truffaut22, Bazin23 e Rivette24 defendem a
ideia de que no cinema existe uma estética da expressão pessoal do diretor e
que as obras devem ser reconhecidas assim como são para romancistas,
poetas e pintores. Cabendo ao diretor mostrar a película não como um
resultado de um trabalho coletivo, mas como a expressão de uma
subjetividade poderosa.

4.10 O dorminhoco

O seguinte projeto de Allen, narra Colombani (2010), é O dorminhoco


(Sleeper, 1973), escrito com a parceria de Marshall Brickman (um jovem
rapaz do Brooklyn também agenciado por Joffe e Rollins) foi uma tentativa de
diversificar o estilo de humor, em comparação com seus últimos filmes. A

                                                                                                                       
22
Diretor e roteirista francês e um dos fundadores do movimento cinematográfico Nuvelle
Vague. 1932-1984
23
Renomado e influente crítico de cinema e teórico do cinema. 1918-1958
24
Realizador de cinema francês, parte do grupo de críticos da revista Cahiers du Cinéma.
1928 -
 

proposta era a de elaborar um roteiro bem amarrado, com uma história clara,
ao invés de ser uma apenas uma narrativa preenchida e sustentada por
piadas. Woody interpreta Miles Monroe, um homem que ao tomar uma
anestesia em 1973, acorda em 2173 em um Estados Unidos ditatorial. Neste
mundo futurístico, Miles conhece Luna (Diane Keaton) e juntos se unem à
resistência para tentar derrubar o ditador. O longa se inspirou na estética dos
filmes Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451, 1966) de François Truffaut e 2001 -
Uma odisseia no espaço (2001: Space odyssey, 1968) de Stanley Kubrick25.
Assim como suas comédias anteriores, esta também foi um sucesso.

4.11 A vida e morte de Boris Grushenko.

Seu próximo projeto, conta Colombani (2010), A última noite de Boris


Grushenko (Love and Death, 1975) foi seu primeiro filme como único
roteirista. Woody pôde criar uma comédia mais intelectual, explorando seu
conhecimento sobre a literatura russa. Com um orçamento bastante
generoso, investiu-se em locação, levando a produção a filmar na França e
na Hungria e ainda com o apoio do renomado diretor de fotografia Ghislain
Cloquet, conhecido por ter trabalhado no filme Noite e Neblina (Nuit et
brouillard, 1955). A trama se desenvolve na Rússia, em plena guerra
napoleônica, onde Boris (Woody Allen) vai à guerra e acaba transformando-
se em um herói nacional. Após casar-se com sua prima Sonja (Diane Keaton)
os dois partem em uma missão para assassinar Napoleão. Este filme é
considerado a melhor de suas comédias até então, mesmo não fazendo tanto
sucesso quanto O dorminhoco, sendo ele, uma afirmação de seu
amadurecimento como diretor.

(...) não quero fazer comédias de piadas a vida inteira. Quero


começar a fazer filmes mais interessantes, e começar fazendo
filmes mais bonitos e mais bem montados; não apenas a piada
reinando suprema, mas tirar mais vantagem do cinema. (LAX,
2010, p.452)

Colombani (2010) conclui que é possível perceber que Woody, a cada


filme que dirige, se afastava um pouco mais da comédia pura e começava a
                                                                                                                       
25
Diretor e roteirista americano. 1928-1999
 

buscar uma maturidade cinematográfica própria. A comédia para ele era um


gênero menor do cinema.

Se eu sou um gênio, o que são o Shakespeare, o Mozart, o


Einstein? Comigo sempre foi depreciativo – “Um gênio da
comédia”. Eu diria que um gênio da comédia está para um gênio de
verdade assim como o presidente da sociedade beneficente Moose
Lodge está para o presidente dos Estados Unidos. (LAX, 2010,
p.463)

4.12 Noivo neurótico e noiva nervosa

Sua vontade de parar de “brincar por aí” e fazer algo mais complexo
chegou ao ponto de levá-lo a um divisor de águas chamado Noivo neurótico e
noiva nervosa (Annie Hall, 1977), afirma Colombani (2010).
Diane Keaton é um nome artístico. Seu nome verdadeiro é Diane Hall
e seu apelido, Annie Hall. Ela e Woody viveram um relacionamento breve
porém inspirador, conta Colombani (2010). Com uma essência
profundamente autobiográfica, o filme, estrelado pelo próprio casal Alvy
(Woody) e Annie (Diane Keaton), conta a história de como foi o inicio e fim do
relacionamento dos dois, mantendo algumas semelhanças com a vida real.
No caso de Annie, o gosto pela fotografia, o sonho de ser cantora e sua
vontade de ir para Hollywood e no caso de Alvy, os mais de 15 anos de
psicanálise e duas ex-mulheres. Embora Marshall Brickman tenha sido
coautor do roteiro, é evidente a relação entre o roteiro e a história real de
Keaton e Allen. Esta similaridade é o que dá ao filme uma irresistível
impressão de que já conhecemos os personagens. A produção se tornou
marcante por sua liberdade de tom e estrutura flexível. No filme os
personagens falam com a câmera, os subtítulos revelam os pensamentos
secretos dos atores, pode-se viajar no tempo para um reencontro com a
família de Woody, o faz o filme a ter uma leveza dentro de sua seriedade.
Filmado por dez meses com o diretor de fotografia Gordon Willis, de O
poderoso chefão (The godfather, 1972) e editado por Ralph Rosenblum, o
mesmo de Bananas, O dorminhoco e A última noite de Boris Grushenko, o
filme foi um sucesso imediato. Foi considerado pela imprensa americana
como uma pequena pérola, revelando um grande diretor. O sucesso do filme
rendeu quatro Oscars: o de melhor atriz, melhor roteiro, melhor diretor e
 

melhor filme. Woody não foi à cerimônia, pois tinha o compromisso com sua
banda, como em toda segunda-feira, de tocar o jazz de Nova Orleans no
Michael’s Pub. Allen, começou a se afastar de entrevistas e dos holofotes.
Quando foi perguntado sobre a importância dos prêmios, o diretor respondeu:

(...) os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua
vida não afetam sua saúde, de forma positiva, nem sua
longevidade ou a sua felicidade emocional. Os lugares que você
quer consertar na sua vida, ou ajudar, o ajuste e o conforto que
você precisa, não são tocados pelas grandes honras do mundo.
(LAX, 2010, p.164)

4.13 Interiores

Seu próximo projeto, aponta Colombani (2010), foi talvez um dos que
requereu mais coragem. Diante de seu maior sucesso, Woody quis seguir
suas aspirações artísticas e fazer um drama, completamente diferente de
tudo que ele havia feito até então. Influenciado pela peça As três irmãs (Три  
сeстры, 1900) composta pelo escritor Russo Anton Tcheckov e pelo filme
Gritos e sussurros (Viskningar och rop, 1972) de Bergman, nasce Interiores
(Interiors, 1978). Allen chegou a dar uma entrevista para o The New York
Times, antes de começar a filmar, afirmando que seus próximos passos
seriam dados “no tato”. Com um roteiro autoral, o filme trata sobre o divórcio
dos país de três filhas adultas onde a mãe ocupa um lugar dominante e seu
suicídio, embora triste, leva a família a uma forma de alívio. A figura da mãe e
de uma das irmãs foram inspirados na história de vida de sua segunda
mulher. Este foi o primeiro de seus filmes em que Allen não atuou e o
primeiro que foi um fracasso de bilheteria.
Colombani (2010) narra que ao mesmo tempo em que seu filme não
foi bem aceito, sua distribuidora, a United Artists, vivia uma crise interna e
seu maior apoiador dentro da empresa acabou fundando a distribuidora
chamada Orion. Diante dos fatos, Woody viu a possibilidade de perder sua
liberdade artística, mas contratualmente ainda tinha três filmes a serem feitos
antes de uma possível mudança. Foi no meio desta crise que nasceu seu o
projeto: Manhattan (Manhattan, 1979).
 

4.14 Manhattan
 

Escrito novamente com a parceria de Marshall Brickman e com a


direção de fotografia de Gordon Willis, descreve Colombani (2010), a estética
em preto e branco da cidade acompanhada pelo jazz misturado com música
erudita de Rhapsody in Blue escrita por George Gershwin, permitiram o que o
filme se tornasse um clássico do cinema. Marcado pela cena em que Isaac
(Woody Allen) e Mary (Diane Keaton) assistem o sol nascente sentados em
um banco diante do East River, o filme conta a história de um homem dividido
entre Mary, uma pseudointelectual esnobe e a jovem Tracy (Mariel
Hemingway) de 17 anos e também a relação com sua ex-mulher interpretada
por Maryl Streep. A produção que condensou o mundo de Woody Allen,
misturando humor com sua ansiedade existencial, foi nomeada a dois Oscars
(melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro) e ganhou nove outros em
premiações pelo mundo. Embora o filme tenha sido bem recebido, os tempos
de unanimidade frente à grande mídia chegaram ao fim e as críticas ao
diretor começaram a aflorar. O New Yorker criticou relação de um quarentão
com uma menina tão jovem e o The New York Review of Books publicou uma
longa matéria sobre o “egotismo hermético” de Woody e seus personagens
que fazem longas caminhadas e almoços em restaurantes apenas para se
questionar com perguntas cada vez mais ardilosas. Até Maryl Streep chegou
a criticar os métodos de direção de Allen, por ser distante e pouco
comunicativo. O diretor se defendeu afirmando que:

Anos atrás, quando Manhattan estreou em Nova York – foi muito


divulgado antes de estrar -, não fui na première, no Ziegfeld
Theater, nem depois na grande festa no Whitney [Museum of
American Art], entrei num avião uns dias antes e fui para Paris.
Então as pessoas pensam, ele não liga, ou é muito indiferente, ou é
metido, arrogante, mas como eu disse, não é nada disso. Não é
arrogância, é mais ausência de alegria. Não me emociona. Não
quer dizer nada [sorri]. Mas Paris me emociona. (LAX, 2010 p. 162)

O The New York Times, conta Colombani (2010) chegou a publicar um


artigo criticando que a realidade de Woody nos filmes era bem diferente
 

daquela que ele vivia fora da tela. Levando em consideração que Woody
estava vivendo momentos financeiros de fartura e nos filmes era sempre
alguém com pouco ou não muito dinheiro.

4.15 Memórias

Em Memórias (Stardust Memories, 1980) mais uma vez Allen


apresentou uma nova estética e narrativa para seu filme, inspirado
parcialmente em Fellini, conta Lax (2010). Desta vez, descreve Colombani
(2010), com uma exposição como nunca antes havia feito, onde o
protagonista Sandy, interpretado pelo próprio diretor se materializa como uma
versão sua mais amargurada e como alguém incapaz de amar e ser amado.
Seu refúgio se faz através da mágica como recurso para escapar da dor de
estar vivo. O loga conta a história de um cineasta que sente que o peso de
ser uma celebridade é grande demais e que seu sonho, em essência, é de
ser somente um artista. Porém, seu público insiste em justamente o contrário.
Eles querem o retorno das suas antigas e saudosas comédias. A partir de
Memórias, Woody passou a contar primordialmente com a fidelidade do
público europeu conquistado com Manhattan.
Os personagens fellinianos, representando o público e os críticos,
usados no filme, discorre Lax (2010), causaram um grande sentimento de
ofensa no público real. Muitos assumiram que o diretor realmente via seus
admiradores como seres estranhos. Woody, em uma entrevista, explicou sua
intenção (mal interpretada) do filme.

Eu queria fazer um filme estiloso. O Gordon e eu gostávamos de


trabalhar em preto e branco, e eu queria fazer um filme sobre um
artista que teoricamente deveria ser feliz. Ele tem tudo na vida –
saúde, sucesso, riqueza, fama -, mas na verdade não tem nada, é
muito infeliz. A questão central da história é que ele não consegue
se acostumar com a ideia de que é mortal, e que a riqueza, a fama
e a bajulação em torno dele não vão preservá-lo de forma
significativa: ele também vai envelhecer e morrer. No começo do
filme, ele é visto dando uma declaração séria, embora seja um
cineasta de comédias. Claro, essa parte é naturalmente identificada
comigo, muito embora a história seja totalmente inventada. Eu
nunca tive os sentimentos do protagonista na vida real. (LAX, 2010,
p. 303-304)
 

O diretor assumiu que Memórias decepcionou as pessoas e que ao


longo dos anos o seu público ficou gradualmente mais incomodado com o
que ele criava, conta Lax (2010). Como os espectadores não sabiam direito o
que esperar de seus próximos filmes, acabaram tendo cada vez menos
certeza de que gostariam ir assisti-lo.

4.16 Sonhos eróticos de uma noite de verão e Mia Farrow

Em novembro de 1979, aponta Colombani (2010), Allen foi


apresentado à uma atriz chamada Mia Farrow que havia atuado como
protagonista em O bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) e O grande
Gatsby ( The great Gatsby, 1974). Mãe de seis filhos (três adotivos) e ex-
mulher do famoso cantor imortalizado por sua interpretação de “New York,
New York”, Frank Sinatra, Ela e Woody logo começaram um relacionamento.
Ao cumprir seu contrato com a United Artists, conta Colombani (2010),
Allen assinou com a Orion Pictures já com dois projetos prontos para filmar.
O primeiro foi Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer night’s
sex comedy), uma paródia adaptada da peça Sonho de uma noite de verão
(Midsummer’s night dream, 1595) de Shakespeare 26 . Trata-se de uma
história sobre três casais que vão passar o final de semana em uma cabana,
onde Ariel (Mia Farrow) vai acompanhada por seu noivo Leopold (José
Ferrer, famoso ator dos anos 1950), mas se apaixona por Andrew (Woody), e
acaba ficando com Maxwell (Tony Roberts). Este foi o segundo filme de
época de Woody e acabou se transformando em um pequeno sucesso.

4.17 Zelig

Zelig (Zelig, 1983) foi o segundo roteiro que Allen apresentou para a
Orion Pictures, narra Colombani (2010). Uma proposta audaciosa e criativa
de um falso documentário sobre um homem camaleão. Trata-se de um ser
humano que, por querer ser aceito, muda sua personalidade para que ele
possa ser parte do grupo, podendo mudar também sua aparência de homem
                                                                                                                       
26
Poeta e dramaturgo inglês, considerado um dos maiores do mundo. 1564-1616
 

branco judeu para índio, quando rodeado de índios, para gordo, quando
rodeado de gordos... É o primeiro filme em que ele tratou, de alguma forma,
de sua identidade judaica com mais profundidade, onde sua busca por ser
aceito serve como uma metáfora do Judeu Errante27. Outra grande marca do
filme foi sua complexidade técnica no qual se fez uma mistura de imagens de
arquivo, entrevistas com personalidades como Susan Sontang 28 e Bruno
Bettelheim29, cenas fictícias convincentes (fazendo jus ao conceito de falso
documentário) e até filmagem com uma câmera de 1920 foram recursos
utilizados para atingir a autenticidade estética.

4.18 Broadway Danny Rose

Continuando com a tendência de inserir elementos de sua vida em


seus filmes, conta Colombani (2010), em Broadway Danny Rose (Broadway
Danny Rose, 1984), Woody escreveu mais um trecho de seu passado, dessa
vez dos tempos como comediante de stand-up. Seu personagem é o próprio
Danny Rose, um agente de comediantes medíocres que se apaixona por
Tina (Mia Farrow), uma viúva de um “mafioso com voz aguda e cabeça de
vento”. (COLOMBANI, 2010, p.60)

4.19 A Rosa púrpura do Cairo

A Rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985) destaca


Colombani (2010). Foi o terceiro filme protagonizado por Mia Farrow e a
terceira personagem completamente distinta em que ela personifica. Nesta
produção, seu papel é de Cecília, uma garçonete dos anos 1930, que escapa
de sua tristeza assistindo filmes. Tom Baxter (Jeff Daniels) é o personagem
de um filme que ela assiste cinco vezes, até e que ele acaba fugindo da
projeção para viver com ela um romance impossível e maravilhoso entre a
ficção e a realidade. A história contada se relaciona com o passado de Allen

                                                                                                                       
27
Um personagem mítico da tradição oral cristã amaldiçoado a vagar pelo mundo sem nunca
morrer.
28
Escritora e crítica de arte. 1933-2004
29
Psicólogo Judeu e escritor, autor de Psicanálise dos Contos de Fadas. 1903-1990
 

e sua relação apaixonada pelo cinema que era produzido durante a grande
depressão americana. O filme foi um sucesso entre os críticos, mas não
chamou a atenção do público estadunidense, ao contrário do público europeu
que o recebeu muito bem. Woody comentou que “A minha percepção é que
você é forçado a escolher a realidade em vez da fantasia, e que a realidade
acaba por machucar a gente, e que a fantasia não passa de loucura.” (LAX,
2010, p.143).

4.20 Hannah e suas irmãs

No ano seguinte, discorre Colombani (2010), foi lançado Hannah e


suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), agora com um novo diretor de
fotografia, conhecido por seu trabalho em parceria com Antonioni, chamado,
Carlo Di Palma. Ele mantém a tradição de Woody de mostrar Nova York em
toda sua glória. O roteiro, mais uma vez com toques autobiográficos, como
sua hipocondria e seu medo de ter filhos, foi filmado na casa de Mia Farrow,
e inclui seus legítimos dois filhos gêmeos. Ele tem uma seriedade e uma
densidade típica de um romance literário, porém, com uma terna delicadeza.
A história narra a vida de Hanna (Mia Farrow), e sua relação de amor e
rivalidade com suas irmãs Holly (Diane Wiest) e Lee (Barbara Hershey),
simultaneamente com as histórias de seus pais e cônjuges. Incluindo Woody
que interpreta Mickey, ex-marido de Hannah. Esta produção foi o primeiro
sucesso comercial de Allen em cinco anos e teve sete indicações para os
Oscars, no qual ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante (Diane Wiest),
melhor ator coadjuvante (Michael Caine) e melhor roteiro.

4.21 A era do rádio

Um de seus filmes mais autobiográficos, frisa Colombani (2010), A era


do rádio (Radio days, 1987) é um escape para um passado mágico, na era
dourada do rádio de Brooklyn em 1940. Com mais de 200 personagens,
somos levados às histórias divertidas e melancólicas através do olhar do
pequeno Joe (Seth Green). Com uma construção mais próxima de Bergman,
 

o filme tem uma apresentação estética cuidadosa. Woody, ao assumir que,


realmente, esse é um filme autoindulgente, explica que sua vontade era de
narrar cenas baseadas nas músicas de sua infância, mesmo não sendo sua
infância exata. “Eu me apoiei em informações da minha vida, mas é por isso
que eu digo que não é autobiográfico. É muito mais exagerado, para
melhorar a história” (LAX, 2010, p.66). Ele ainda disse que não é um grande
filme com uma história de peso, escreve Lax (2010) e sim um filme de
anedotas, com a atmosfera infantil da época, como por exemplo ficar na praia
procurando por navios alemães.

4.22 Setembro

No mesmo ano, afirma Colombani (2010), Allen produziu mais um


filme, completamente diferente da leveza de Era do Rádio. Setembro
(September, 1987) é um longa que se desenvolve entorno da melancolia de
Lane (Mia Farrow), uma filha que enquanto adolescente foi sacrificada em um
escândalo público para salvar a carreira da mãe, uma estrela de 1950 que ao
assassinar seu amante, a usou como defesa argumentando que ela era
quem havia sido violentada e que atirará em legitima defesa. Levando-a a
uma vida traumatizada. A intenção do diretor neste projeto, conta Lax (2010),
era fazer uma obra de câmara “realista” sem artifícios de magia nem
fantasmas. Filmado todo dentro de uma casa construída, sem nenhuma
externa30 , em quatro atos e com apenas seis personagens, Setembro se
propôs a seguir a estrutura de uma peça teatral.

4.23 A outra
 

Enquanto grávida de seu filho com Woody, escreve Colombani (2010),


Mia fez o papel de Hope em A outra (Another Woman, 1988), uma jovem
gestante que durante suas seções de análise, acaba sendo escutada na
surdina por Marion (Gena Rowland), uma escritora tentando compor seu
próximo livro. Ao romper com seu realismo psicológico, Allen constrói o que é
                                                                                                                       
30
Termo cinematográfico referente a cenas filmadas em ambientes abertos.
 

considerado um filme intimista “e cria um dos seus melhores retratos


femininos, dando a atenção devida às dores de sua heroína” (COLOMBANI,
2010, p.65). Logo no início do da história, escutamos a locução de Marion
que disserta sobre a falta de sentido na vida, e exprime que “É engraçado –
você sabe que não tem propósito, e no entanto, para viver, é forçado a
enganar-se a si mesmo”. (LAX, 2010, p.108) Para o diretor, este era um tipo
de drama estranho, poético e metafórico.

uma mulher fria que não queria encarar nada de ruim em sua vida,
ou não queria ouvir nada de ruim, e evitava tudo até chegar, enfim,
a um ponto onde não conseguia mais evitar isso e começava a
ouvir tudo o que vinha da parede (LAX, 2010, p.455)

4.24 Crimes e pecados

Considerado o seu melhor filme da década de 80, escreve Colombani


(2010), Crimes e pecados (Crimes and misdemeanors, 1989) é uma história
que se desenvolver em torno de dois pares de irmãos. O filme conta a
história de um famoso oftalmologista Judah (Martin Landau) e seu irmão, o
gangster Jack (Jerry Orbach) e o produtor leviano, Lester (Alan Alda) com
seu irmão, o rabino Ben (Sam Waterson), que está ficando cego. Cada um
enfrenta um dilema moral que permeia religião deixando-os frente à
descoberta de suas próprias solidões. Woody, como alívio cômico do filme,
representa o papel de Cliff, um documentarista que se apaixona por Halley,
uma produtora de TV. O projeto revela a filosofia existencialista31 que fez
parte da juventude de Allen em confronto com sua criação em uma família
religiosa, tendo, como parte do filme, o debate sobre se é plausível acreditar
em Deus após o ocorrido no holocausto. Um drama amargo onde, vemos o
crime não ser castigado e o rabino, fiel, não escapar da cegueira. O filme
termina com uma locução de um filósofo que Cliff entrevistou ao longo do
filme e que havia se matado deixando apenas o recado “Pulei pela janela” em
um papel. Esta locução dizia:

                                                                                                                       
31
Existencialismo é um termo filosófico que abrange a ideia que o indivíduo é o único
responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada.
 

Durante toda a nossa vida, enfrentamos decisões penosas,


escolhas morais. Algumas delas têm grande peso. A maioria não
tem tanto valor assim. Mas definimos a nós mesmos pelas
escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total das
nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão
injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no
projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar,
que atribuímos um sentido a um universo indiferente. Assim
mesmo, a maioria dos seres humanos, parece ter a habilidade de
continuar lutando, e até de encontrar prazer nas coisas simples
como sua família, seu trabalho, e na esperança que as futuras
32
gerações alcancem uma compreensão maior.

Woody, ao analisar seus filmes para Eric Lax, chegou na seguinte


conclusão:
Uma porção de ideias minhas, se você juntar todas, vão parecer
pessimistas. Crimes e pecados , você pode cometer um crime e se
safar porque o universo não tem deus. Se você não se policia,
então ninguém vai te policiar. Em A rosa púrpura do Cairo a minha
sensação era, como eu já disse antes, de que você tem que
escolher entre a realidade e a fantasia e, é claro, é forçado a
escolher a realidade, ela sempre te mata. Em Interiores havia muita
coisa sobre quanto somos frios e pouco comunicativos uns com os
outros, e como a vida é uma coisa aterrorizante, e a morte é
aterrorizante, e nada ajuda. (LAX,2010, p.459)

4.25 Alice

Em uma Manhattan muito luxuosa, conta Colombani (2010), Alice Tate


(Mia Farrow) protagoniza o próximo filme de Woody, nomeado como
Simplesmente Alice (Alice, 1990), que não distante de sua homônima narrada
por Lewis Carroll33 em seu país da maravilha, também vive transformações
físicas até descobrir-se a si mesma. Numa compilação de construções
recorrentes de sua própria filmografia, Allen utiliza mágica (Sonhos eróticos
de uma noite de verão), mistura ficção com realidade (A rosa púrpura do
Cairo), visita o passado (Noivo neurótico e Noiva nervosa) e desenrola
conflitos internos (A Outra), tudo em forma de uma boa comédia. A história se
desenvolve quando Alice vai à Chinatown para tentar se tratar de uma
indisposição, lá ela é medicada com algumas ervas mágicas que a levam a

                                                                                                                       
32
CRIMES e pecados. Direção: Woody Allen. [S.l.]: Orion Pictures, 1989. 1 DVD (104 min),
NTSC, color. Título original: Crimes and misdmeanors
33
Romancista, poeta e matemático britânico, autor de Alice no País das Maravilhas. (1832-
1898)
 

olhar para questões além de sua integridade física, através da qual ela
redireciona sua vida para uma que de fato a deixasse satisfeita.

4.26 Neblina e sombras

Visto por Colombani (2010) como uma interpretação expressionista do


mundo de Franz Kafka34, Neblina e sombras (Shadows and Fogs, 1991) é um
exercício estilístico, em preto e branco, que conta a história de uma noite
sombria vivida por Kleinman (Woody) e sua fuga de um estrangulador
misterioso. Lax (2010) conta que feito todo em um estúdio de Nova York, com
o maior cenário construído até então na cidade, foram ocupados quase oito
mil metros quadrados. Sob a direção artística de Santo Loquasto, foi montado
em um ambiente escuro e melancólico, projetado para parecer uma cidade
do antigo leste europeu de paralelepípedos molhados e sinistros becos sem
saída, assemelhando-se também a filmes de terror clássicos de Hollywood. A
produção tentou alcançar certa qualidade clássica, aproveitando do efeito
cinemático de ameaça e perseguição. Uma adaptação de uma peça escrita
pelo próprio diretor chamada Morte (Death, 1975), onde o contador,
Kleinman, assim como no filme, é acordado durante a noite por um grupo de
justiceiros à procura do serial killer. A diferença está que na peça, o
assassino se revela como a morte em si. Woody previa que o longa não seria
muito rentável, e, depois de ser lançado, como ele mesmo pontua “Ninguém
gostou do filme”. (LAX, 2010, p.176).

4.27 Maridos e esposas

Logo antes de seu turbulento divórcio com Mia Farrow, que tomou
proporções midiáticas equivalentes ao escândalo sexual do presidente
americano, Bill Clinton e sua estagiária, Monica Lewinski, por estar se
relacionando com a filha adotiva de Mia, Soon-Yi de dezoito anos, escreve
Colombani (2010), Woody já estava filmando Maridos e esposas (Husbunds
and Wives, 1992) que havia sido escrito dois anos antes do escândalo. Nele,
                                                                                                                       
34
Escritor tcheco, autor de “Metamorfose”. (1883-1924)
 

vemos o desenvolvimento da história de um casal de intelectuais nova-


iorquinos em sua vida confortável, Gabe (Woody Allen) e Judy (Mia Farrow),
que entram em crise após um casal de amigos, Sally (Judy David) e Jack
(Sydney Pollack), decidirem se divorciar. Essa notícia evidencia a fragilidade
do casal que eventualmente se separa também. Cada personagem vive um
drama e um amor distinto. Gabe, ironicamente, se envolve com uma jovem
aluna. Inspirado em Cenas de um casamento (Scener ur ett äktenskap, 1973)
de Bergman, Woody atacou a covardia e hipocrisia de casais com uma
violência incomum. O filme todo foi montado com longos takes de plano-
sequência e com cortes bruscos se tornando muito tenso.

Maridos e esposas não passou de uma experiência divertida. Foi


um filme que eu queria que fosse feito. Não queria que nada
combinasse, ou fosse refinado, ou bem montado. Queria que fosse
um filme desagradável de assistir. (LAX, 2010, p.285)

A câmera na mão acompanha a ação dando ao filme a sensação


inquietante de um documentário, o que é realçado pela narração,
feita por um observador invisível, e por entrevistas do que se toma
por um diretor do filme dentro do filme. (LAX, 2010, p.83)

Independente de sua vida pessoal, narra Colombani (2010), Woody


continuou produzindo filmes anualmente. Seu próximo projeto, inspirado em
A janela indiscreta (Rear window,1954) de Hitchcock, em coautoria com seu
antigo parceiro, Marshall Brickman e com sua musa dos seus primeiros
filmes, Diane Keaton, Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan
Murder Mistery, 1993) foi considerado uma de suas comédias mais bem
feitas, porém foi mal recebida pelo público em consequência de sua imagem
desgastada frente a mídia. Ele contava, escreve Lax (2010), a história de
Larry Lipton (Woody Allen) e Carol Lipton (Diane Keaton), um casal de meia
idade que se envolve na investigação do desaparecimento de uma mulher
que Carol acreditar ter sido assassinada.
 

4.28 Tiros na Broadway

Tiros na Broadway (Bullets over Broadway, 1994) foi o primeiro filme


em que a irmã caçula de Allen passou a trabalhar como produtora, aponta
Colombani (2010). Uma comédia sobre o roteirista David Shayne (John
Cusack) que descobre o mafioso Cheech (Chazz Palminteri) como um melhor
escritor que ele durante a produção de um espetáculo de Broadway. “Tiros na
Broadway mostra que artistas nascem artistas, não se constroem” (LAX,
2010, p.137). A história se desenvolve quando a namorada sem talento
(Jennifer Tilly) de um chefão da máfia (Joe Viterelli) o convence de investir na
produção de uma peça para ela estrelar. Ao longo dos ensaios, o capanga
Cheech que é responsável por vigiá-la, apesar de todas as aparências, se
revela como o verdadeiro talento autoral através de sugestões que fazem a
peça funcionar. No final da história, ele acaba matando a namorada do chefe
para que sua má atuação não estrague o espetáculo. Em um ambiente retrô,
conta Colombani (2010), Diane Weist atuou com um brilhantismo que foi
consagrado com o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

4.29 Poderosa Afrodite

Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995), escreve Lax (2010), conta


a história do jornalista esportivo, Lenny (Woody Allen), sua mulher, Amanda
(Helena Bonham Carter) e seu filho adotivo Max, que se demonstra muito
agradável e esperto. Lenny fica curioso em descobrir quem são os pais do
menino, e, embora as interrupções por um coro grego alertando os perigos
de tal busca, ele segue e encontra a mãe biológica, Linda (Mira Sorvino) uma
atriz pornô e prostituta, que apesar de tudo, é uma mulher muito doce. Sem
falar sobre Max, ele tenta fazer com que ela mude de vida, e numa ocasião,
após brigar com sua esposa, passa uma noite com ela. Porém seu
casamento volta ao normal e Linda decide tentar mudar de vida. Os dois
perdem contato até que um dia, em uma loja de brinquedos, os dois se
encontram casualmente com seus respectivos filhos trocados. Lenny com
Max e Linda com sua adorável recém-nascida, filha da noite em que
 

passaram juntos. O coro grego foi filmado na Sicília, na cidade de Taormina


em um anfiteatro. Colombani (2010) ressalta que foi um filme marcado como
uma comédia menor e como um sinal da fadiga das piadas de Woody. Lax
(2010) aponta que o papel de Linda rendeu para Mira um Oscar de melhor
atriz coadjuvante.

4.30 Todos dizem eu te amo

Ao assinar com uma nova produtora, narra Colombani (2010), Allen


perdeu algumas liberdades artísticas e teve que, por corte de gastos, abrir
mão de uma equipe que já o acompanhava há vinte anos, como o produtor,
Robert Greenhut, o assistente de direção, Thomas Reilly, o figurinista, Jeffrey
Kurtland e sua editora, Susan E. Morse. Seu primeiro filme pela Sweetland
Films foi Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996). Um
encantador musical que se desenvolve em Veneza, Paris e Nova York com
as histórias de amor de uma família singular. Misturando grandes nomes,
destaca Lax (2010), como Goldie Hawn, Alan Alda, Natalie Portman, Julia
Roberts, entre outros, que eventualmente cantam, de forma encantadora,
como quem canta no chuveiro a ideia para o filme foi alimentada pela paixão
do diretor, que se mantém desde sua juventude, pelos grandes musicais da
Broadway.

Queria fazer um musical sobre gente rica do e o Upper East Side


de Manhattan, e queria que fosse um daqueles musicais antigos,
com famílias, mas no Upper East Side de hoje seria muito
diferente: Uma família composta de casais divorciados, maridos e
esposas anteriores. Queria que fosse descaradamente sobre os
ricos do Upper East Side, porque achava que daria uma boa
atmosfera para um musical. (LAX, 2010, p. 273)

4.31 Desconstruindo Harry

Em 1997, ressalta Colombani (2010), Woody retoma a sua veia mais


sombria, como em Memórias, e desenvolve um projeto intitulado
Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997) que é marcado por sua
cronologia descontinuada, trocas de tom, visões de pesadelos e até uma
 

visita ao inferno. O protagonista Harry Block (Woody Allen) é um artista em


crise, obcecado por prostitutas e marcado por seu narcisismo destrutivo. É
como se ele fosse uma catástrofe humana. Com três ex-mulheres, dezenas
de ex-amantes, seis psiquiatras, descreve Lax (2010) o filme mostra como a
arte pode ser transcendente, mas também, o artista que a cria, pode ser
desastrosos para todos em sua vida. O final do longa, aponta Colombani
(2010), aparentou ser uma despedida do cinema, ou ao menos do seu
passado cinematográfico.

Conheço gente que acha que o filme é sobre mim, e acho isso
engraçado, porque o filme não é nem de longe sobre mim. (...) Não
sou eu, não é o jeito como eu trabalho, nunca fiquei travado, nunca
sequestrei o meu filho, não teria coragem de agir assim, não fico
sentado em casa bebendo nem recebo prostitutas em casa toda
noite. (LAX, 2010, p.82)

4.32 Celebridades

Numa tentativa frustrada de reatualizar Manhattan, argumenta


Colombani (2010), um dos fiascos de Woody é Celebridades (Celebrities,
1998), com uma história em preto e branco de um homem que não consegue
encontrar seu lugar em círculos sociais em que ele se encontra em
decorrência de sua carreira como escritor profissional, no qual sua redenção
é encontrada em uma relação com uma jovem moça.

Esse filme foi um olhar sobre a celebridade na nossa sociedade: a


obsessão pela fama, a celebridade, as poses que ela produz, o
poder que ela produz e toda a obsessão pela maneira como as
pessoas vão reagir a ela, e como ela leva a uma vida massacrante.
A fama também leva a algumas coisas incômodas, mas minha
opinião é que os benefícios são maiores que as coisas negativas
(LAX, 2010, p.245)

4.33 Poucas e boas

Baseado em um de seus roteiros escritos na década de 1970, afirma


Colombani (2010), Poucas e Boas (Sweet and lowdown, 1999) é uma
biografia fictícia de um guitarrista de jazz interpretado por Sean Penn. Com
 

uma semelhança musical aparente ao Django Reinhardt 35 , aponta Lax


(2010), seu personagem é reconhecido por tocar uma música celestial e por
ter uma personalidade doce e discreta, porém com uma grande absorção por
si e sua própria genialidade. Para ele a melhor mulher do mundo é uma
mulher chamada Hattie (Samantha Morton), que é uma muda muito
sofredora, com quem ele mantém um relacionamento, mas que não dá certo.
O filme é uma agradável imersão no mundo do Jazz. “Sempre quis fazer
alguma coisa sobre um violonista genial, autocentrado egoísta, altamente
neurótico” (ALLEN apud LAX, 2010, p 180)

4.34 Trapaceiros

Trapaceiros (Small time crooks, 2000) conta a história de Ray (Woody


Allen), descreve Lax (2010), um ex-presidiário que bola um esquema de
enriquecimento rápido através da construção de um túnel a partir da loja
vizinha. Para manter aparências, sua esposa, Frenchy (Tracey Ullman) utiliza
o espaço da loja para produzir e vender cookies. Porém os biscoitos fazem
um grande sucesso e o assalto fracassa. Com as vendas dos doces eles
acabam ficando muito ricos, porém, também acabam sendo enganados por
um marchand (Hugh Grant) e voltam para a sua pobreza de origem e com
seu amor renovado. Colombani (2010) aponta que esta produção é inspirada
livremente no filme Os eternos desconhecidos (I soliti ignoti, 1958) de Mario
Monicelli36.

4.35 O escorpião de Jade

Mais um filme que utiliza o recurso da mágica, é O escorpião de jade


(The curse of the Jade Scorpion, 2001) que de acordo com Colombani
(2010), é inspirado em Pacto de sangue (Double indemnity, 1944) e Se meu
apartamento falasse (The apartment, 1960) de Billy Wilder 37 que conta a
história de C. W. Briggs (Woody Allen), um autoconfiante investigador de
                                                                                                                       
35
Guitarrista e compositor francês
36
Roterista, diretor e ator italiano. 1915-2010
37
Roterista, cineasta e produtor estadunidense. 1906-2002
 

seguros cheio de frases inteligentes que, sob o poder de um hipnotizador,


pratica uma serie de roubos, dos quais não se lembra, e acaba sendo o
investigador de seu próprio crime. Um filme com Helen Hunt, Dan Aykroyd,
David Ogden Stiers, Elizabeth Berkley entre outros, e que na opinião do
diretor, foram mal utilizados. Ele afirma que o filme afundou por sua culpa,
ocupando o papel de protagonista quando deveria ser outra pessoa mais
durona (que não foi encontrada). Woody apud Lax assumiu que “do ponto de
vista pessoal, sinto que pode ser – e existem muitos candidatos para isso – o
pior filme que fiz.” (ALLEN apud LAX, 2010, p.85). O filme fez sucesso na
Europa, mas não tanto nos EUA.

4.36 Dirigindo no escuro

Sua próxima comédia, aponta Lax (2010), foi Dirigindo no Escuro


(Hollywood ending, 2002), contando a história de Val Waxman (Woody Allen),
um diretor que foi importante, mas que atualmente não tem mais prestígio.
Sua ex-mulher, Ellie (Téa Leoni) convence seu noivo, o executivo de um
estúdio, a deixá-lo dirigir um melodrama nova-iorquino. Porém antes das
filmagens começarem, Val fica cego de histeria e acaba tendo que fingir que
está tudo bem para continuar no projeto. Quando o filme é lançado, todos os
críticos americanos arrasam com ele, mas em Paris, é saudado como uma
obra-prima. O filme foi um fiasco de público nos EUA e ironicamente fez
sucesso na França.

Eu tinha as ideias de Trapaceiros, O escorpião de jade e Dirigindo


no escuro, as três em cima da mesa. E disse “Ei, eu gostaria de
fazer essas três comédias e tirar de cima de minha mesa” E fiz as
três, uma depois da outra. Tinha gente que dizia “Xi, ele está
fazendo um filme trivial. Está fazendo essas comédias ligeiras” Mas
não acho isso. Acho simplesmente que quero fazer aquela porque
está em cima da minha mesa. Essa era a ideia que eu queria fazer
naquela hora. (ALLEN apud LAX, 2010, p. 457)
 

4.37 Igual a tudo na vida

Igual a tudo na vida (Anything else, 2003), afirma Colombani (2010),


pode ser visto como uma série de reaparições de personagens reciclados de
sua própria filmografia como o comediante neurótico de Noivo neurótico e
noiva nervosa e o agente de péssimos comediantes como em Broadway
Danny Rose. Jason Biggs interpreta Jerry Falk, um roteirista de comédia que
namora Amanda (Christina Ricci), uma mulher encantadora, inteligente,
emocionalmente espontânea, mentirosa, manipuladora e infiel, descreve Lax
(2010), não por maldade, mas por não conseguir evitar. O relacionamento
dos dois não vai bem e só piora com a chegada da mãe de Amanda com um
piano para morar com eles no apartamento. Jerry se vê incapaz te obter
ajuda tanto de seu terapeuta quanto de seu agente e acaba seguindo David
Dobel (Woody Allen), um velho e paranoico professor e escritor de comédia
que acaba ajudando-o a sair de sua crise emocional e aumentando sua
autoconfiança. Igual a tudo na vida foi mais um dos filmes de Allen que
ninguém foi ver.
Um cara mais velho que é realmente maluco e tem uma visão de
mundo maluca e aconselha um jovem sobre a vida, e o rapaz
idolatra o cara mais velho, aceita muitos conselhos dele. Mas o
cara mais velho acaba se revelando praticamente um psicopata.
(LAX, 2010, p. 458)  

4.38 Melinda e Melinda

Em 2004, Woody lançou Melinda e Melinda (Melinda and Melinda,


2004) que, assim como os filmes anteriores, de acordo com Colombani
(2010), proporcionam muitas piadas, mas deixa a desejar quanto ao diálogo
que uma vez marcou sua carreira. Lax (2010) conta que esta produção é uma
ideia que o diretor sempre quis fazer. Juntar a versão cômica e séria da
mesma história e intercalar como ela se desenvolveria em cada uma das
suas realidades. As narrativas contam a história de Melinda que em cada
história desenvolve uma trama distinta relacionada ao adultério. Na comédia,
ela é uma solteira de espírito jovial e no drama uma esposa entediada de um
médico, que depois de um ataque de depressão acaba lutando com a vida.
 

Para Allen apud Lax, o filme foi uma brincadeira bonitinha que não foi um
grande sucesso, mas que também não deixou a produtora com prejuízo.
Woody comentou “Eu me diverti fazendo o filme, mas, pensando bem, eu
teria gostado de fazer um filme só com a parte séria. Exatamente a mesma
sensação que tive depois de ver Crimes e pecados” (ALLEN apud LAX, 2010,
p.91).

4.39 Match point

Depois de quase meia década de filmes que não foram tão bem
recebidos, discorre Colombani (2010), Woody embarcou para Inglaterra,
financiado pela BBC e realizou o que ficou marcado como o seu grande
retorno: Ponto final - Match point (Match point, 2005). Contando a história de
Chris (Jonathan Rhys Meyers), um irlandês sem dinheiro que decide ir à
Londres para tentar alcançar o sucesso. Ele acaba seduzindo Chloe (Emily
Mortimer), a filha de um homem muito rico e entrando na alta sociedade ao
se casar com ela. Porém ao se deixar ser seduzido por Nola (Scarlet
Johansson), a namorada de seu cunhado, quase perde tudo, mas acaba se
safando ao cometer o crime perfeito. A amoralidade deste filme é facilmente
comparável com a de Crimes e pecados.

4.40 Scoop

Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), conta Lax (2010), se


desenvolve em torno de Sid Waterman (Woody Allen) conhecido como o
mágico Splendini e a jovem Sondra Pransky (Scarlet Johansson) jornalista
americana novata, que ao participar de um dos truques do mágico, encontra
o fantasma de Joe Strombel (Ian McShane) um aclamado repórter recém-
falecido que conseguiu escapar da barca da morte para avisá-la sobre o
possível furo sobre um assassino em serie, o aristocrata Peter Lyman (Hugh
Jackman). Ela vai atrás dele com a ajuda de Splendini e vive uma aventura
divertida em busca dos fatos. Em pelo menos dois de seus filmes, Woody
 

inseriu um truque de mágica mal executado para trazer um toque surreal a


uma narrativa realista.

4.41 O sonho de Cassandra

Em seu terceiro filme britânico, O sonho de Cassandra (Cassandra’s


dream, 2007), escreve Lax (2010), Woody conta com os atores Colin Farrow
e Ewan McGregor para narrar a história de dois irmãos. Um é mecânico de
automóveis e jogador compulsivo, que aposta cada vez mais alto, e o outro,
tentando encontrar uma alternativa ao restaurante popular do pai, quer
investir em um esquema hoteleiro na Califórnia. Os dois, em um ato de
impulso, compram juntos um barco chamado “O sonho de Cassandra” com o
pouco dinheiro que têm. Eventualmente, a sorte de Farrow acaba e ele fica
seriamente endividado. Na busca por uma solução financeira, os dois
recorrem a um tio solícito que, desta vez, pediu um favor em retorno: que os
dois matassem um de seus sócios. O drama se desenvolve ficando cada vez
mais obscuro na medida em que matam o sócio do tio e a consciência de
Colin gradativamente o enlouquece.

4.42 Vicky Cristina Barcelona

Embora Scoop – O grande furo e O sonho de Cassandra não tenham


tido tanta repercussão, argumenta Colombani (2010), Woody continuava com
grande aceitação geral, em decorrência de O ponto final – Match point. Esse
sentimento do público com o diretor só foi fortalecida com o lançamento de
Vicky Cristina Barcelona (Vicky Cristina Barcelona, 2008). Contando a
história de Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlet Johansson), duas
estadunidenses que vão à Europa experimentar os charmosos prazeres
corruptores do velho continente. Lá elas encontram Juan Antonio (Javier
Barden) um pintor espanhol que abertamente explicita seu desejo pelas duas
jovens. O romance se desenvolve com as duas, porém Cristina e Antonio
acabam se envolvendo mais e com a chegada da ex-mulher do pintor, a
neurótica pintora María Elena (Penelope Cruz), nasce o único relacionamento
 

a três bem sucedido de Allen. O filme é considerado um retorno ao estilo


mais leve e agradável do diretor.

4.43 Tudo pode dar certo


De volta a Manhattan, ressalta Colombani (2010), com um roteiro
guardado desde 1977, Tudo pode dar certo (Whaterver works, 2009) é um
filme que ressuscita os velhos diálogos inteligentes e afiados de Woody, que
conta a história de Boris (Larry David) e sua relação com uma jovem moça do
interior dos EUA, Melody (Evan Rachel Wood) e seus pais: o religioso,
apaixonado por armas, e a conservadora Marietta (Patricia Clarkson).
Embora o filme seja divertido, sente-se que Woody não se empenhou mais
tanto com a estética do filme, como em A última noite e Boris Grushenko e
Tiros em Broadway. Vale ressalta que o filme volta a três temas recorrentes
como: o absurdo que é a existência humana, a tentação constante que é o
suicídio e por fim a esperança de felicidade personificado em uma jovem
moça.

4.44 A brilhante ilusão

Allen apud Lax (2010) assumiu que não há razões para que ele tenha
feito grandes filmes, pois em todos os seus anos de carta branca, essa nunca
foi sua intenção. Nunca quis ir para os extremos da terra, trabalhando noites
a fio. Em um comentário debochado Woody afirma “Eu gostaria de fazer um
grande filme, desde que isso não atrapalhe a minha reserva para o jantar.“
(ALLEN apud LAX, 2010, p.329). Lax (2010) descreve que a motivação de
Allen é de fazer filmes que expressam os seus sentimentos pessoais sobre a
falta de sentido da vida e o horror da existência. O diretor segundo Lax afirma
que não é nem artista nem comercial o suficiente. Dependendo do público, a
percepção sobre seus filmes acaba variando entre esses dois pólos. Para
uma pessoa mediana, seus filmes parecem mais artísticos, mas para uma
pessoa que conhece arte, não. Então de certa forma suas produções
permanecem em um estranho limbo, onde alguns deles, por acidente, são
considerados bons e até conseguem ser rentáveis. Em uma autoanálise
 

crítica, Woody apud Lax se questionou em como foi capaz de durar tanto
tempo, principalmente com todos seus defeitos e limitações, tanto artísticas
como pessoais, com suas fobias, idiossincrasias, pretensões e exigências
artísticas absolutas em uma indústria venal tendo apenas um talento menor.
Ele acredita que só foi capaz de tudo isso, pois quando era criança, adorava
mágica, o que resultou no desenvolvimento de uma capacidade sutil de
subterfúgios, habilidades manuais, dissimulações e talento cênico que o
permitiram produzir uma brilhante ilusão que já dura quase cinquenta anos.

Quando eu era menino, sempre corria para o cinema em busca de


um escape – às vezes doze ou catorze filmes por semana. E,
adulto, consegui viver a minha vida de forma um tanto quanto
autocomplacente. Consigo fazer os filmes que quero, e então,
durante um ano, posso viver naquele mundo irreal de mulheres
bonitas e homens interessantes, situações dramáticas, figurinos,
cenários e realidade manipulada. Sem falar em toda a maravilhosa
música e em todos os lugares aonde me levou. Ah, e às vezes eu
consigo sair com uma das atrizes. O que poderia ser melhor?
Escapei para uma vida no cinema do outro lado da câmera, mais
que para o lado da plateia. É irônico eu fazer filmes escapistas,
mas não é o público que escapa, sou eu. (LAX, 2010, p.468)

 
 

5 ANÁLISE DO FILME NEBLINA E SOMBRAS

5.1 Apresentação

Neblina e Sombras (Shadows and fog, 1991) é, entre os mais de


quarenta filmes dirigidos por Woody Allen, o que melhor consegue apresentar
os elementos escapistas identificados nesta pesquisa. Embora seja possível
imaginar que filmes mais leves ou mais lúdicos seriam mais escapistas, como
Meia noite em Paris (Midnight in Paris, 2011) e A rosa púrpura do Cairo (The
Purple rose of Cairo, 1985), deve-se considerar que o escape, a partir de
Tuan (1998), é feito entre contextos: de onde se está para onde se vai.
Embora os três filmes utilizem uma mesma estrutura, onde há inicialmente
um mal-estar e posteriormente um escape lúdico para uma alternativa mais
prazerosa, em Neblina e Sombras, a construção da realidade geradora do
mal estar, o ato de escape e o lugar para onde se escapa se constrói de uma
forma mais precisa, abrangente e completa. Meia noite em Paris e A rosa
púrpura do Cairo, tratam da sociedade em que se busca escapar de uma
forma mais superficial, o que tornaria esta análise mais vaga, uma vez que é
crucial compreender os elementos da sociedade e da cultura que são
geradoras do não pertencimento e também da necessidade de busca por
uma alternativa.
Esta análise desconstrói o sentido de mágica e de morte que o autor
desenvolve em seu filme, demonstrando os seus significados escapistas
intrínsecos. Cabe ressaltar que estes dois elementos são tratados por óticas
bem distintas em sua filmografia. Por exemplo, a figura da morte, de forma
personificada, aparece em quatro filmes: Em A última noite de Boris
Grushenko (Love and death, 1975), o personagem da morte veste um capuz,
uma capa branca e acompanha os que já morreram não de forma sombria,
mas transmitindo leveza, se comunicando com um tom de voz humano,
chegando a dançar com o protagonista (F.1).
 

F. 1

Em Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997), ela surge, em


uma cena, vestida de capuz e capa preta, usando uma voz aterrorizante.
Busca um rapaz em um apartamento que afirma que não é ele quem ela
procura (F.2).

F. 2

Em Scoop – O grande furo (Scoop, 2006) a morte, que também se


veste de capuz e capa preta, desta vez é um personagem mudo e indiferente.
Ela se posiciona na frente de um barco levando os mortos por um mar escuro
e repleto de neblina (F.3).

F. 3
 

Em Neblina e sombras, a morte se apresenta com uma aparência mais


antropomórfica, através da imagem de um assassino em série pálido e alto,
com uma face inexpressiva, fria, vestindo um sobretudo preto e com um
andar rígido e lento. A morte aparece não como uma figura que leva os
defuntos, mas sim como uma que mata os vivos (F.4). Pode-se afirmar que,
na medida em que Woody envelhece, a morte gradualmente vai perdendo
sua comunicabilidade e leveza.

F. 4

Já em relação à mágica, esta se materializa como um escape lúdico


que é apresentada, não como um truque, mas como algo real. Em Memórias
(Stardust Memories, 1980) a magia aparece pela primeira vez de forma
bastante autobiográfica. O personagem assume que fazia truques quando
era criança e realiza uma demonstração de levitação em uma moça (F.5).

F. 5
 

Em Contos de Nova York (New York Stories, 1989) a mágica é crucial


para o desenvolvimento da história, onde a mãe do protagonista, após um
truque em um espetáculo, se desmaterializa e passa a se manifestar como
uma figura gigantesca sobre o céu de Manhattan (F.6 e F.7).
 

F. 6

F. 7

Já em O escorpião de Jade (The curse of the Jade Scorpio,2001)


acontece pelas mãos de um criminoso que hipnotiza um investigador
particular para roubar as joias que o mesmo havia escondido (F.8)

F. 8
 

Em Neblina e sombras, o mágico Almstead usa um truque de espelhos


para escapar da morte e acorrentá-la, salvando a si e a Kleinman (F.9)
 

F. 9

Embora em seus outros filmes também seja possível pontuar


momentos de morte, como: assassinatos, acidentes, doenças e mortes
naturais e também momentos pós-morte, como através de representações de
fantasmas e cenas no céu e no inferno, a personificação da morte como ente,
como um personagem na história, permite que ela seja pensada de uma
forma ainda mais profunda, principalmente no caso de Neblina e sombras,
onde a morte ocupa um papel central. O mesmo ocorre com os elementos
fantásticos relacionados à mágica ou esoterismo. Não faltam exemplos de
acontecimentos completamente surreais que negam as leis da física e da
lógica: ervas do amor e da invisibilidade, penetrar em um filme de cinema,
voltar no tempo casualmente em um carro de passeio, metamorfoses,
levitações. Mas em Neblina e sombras, a mágica ganha um aspecto que vai
um pouco além do sentido de truque, alcançando o patamar de uma
alternativa de vida. Estas manifestações mais profundas destes elementos
permitem que seja possível analisar, de forma mais rica, as concepções
escapistas apontadas no capítulo quatro desta monografia. E para que seja
possível compreender os escapes de Woody, é preciso compreender o
mundo criado por ele nesta ficção, pois só após entender do que este mundo
é composto, é que realmente se pode dar sentido a qualquer forma de
escape do mesmo.

5.2 A Neblina e a sombra

Para começar a entender o filme, partiremos do seu título. Com a


tradução idêntica ao original, Neblina e sombras, nos deparamos com dois
 

elementos ligados à percepção visual. O primeiro que nos tira a nitidez e a


capacidade de enxergar distâncias e o segundo, de acordo com o dicionário
Aurélio, significa a interceptação da luz por um corpo opaco, ou seja, a
sombra evidencia a ausência de luz onde a mesma poderia estar incidindo.
Além da percepção visual, a combinação dos dois elementos constroem um
ambiente sombrio, indicando o incerto. A neblina é uma cegueira branca,
uma cortina de fumaça, uma barreira feita de dúvidas à incerteza do que está
logo à frente. A sombra, dissimula, assusta, aumenta, deforma qualquer
forma que estiver entre um anteparo e a luz. De acordo com Jung (2005) a
sombra traz em si um significado de medo, de desconhecido e de escuridão.
Quando o autor considera a sombra em um sonho, ela é percebida como
uma figura escura, primitiva, hostil ou repelente. Ele argumenta que “A
sombra representa aquilo que consideramos inferior em nossa personalidade
e também aquilo que negligenciamos e nunca desenvolvemos em nós
mesmos.” (JUNG, apud BALLONE, 2005).
O cartaz do filme (F.10) evidencia a sombra do assassino/morte em
uma proporção evidentemente maior do que a real e do que a imagem do
personagem principal Kleinman (Woody Allen). Ao considerar que o
assassino é a personificação da morte, esta construção evidencia o papel da
morte frente à humanidade representada pelo protagonista. A morte é uma
sombra gigante de um assassino indeterminado e indiferente que aterroriza o
imaginário dos vivos. Sua forma pode variar, mas ela, assim como a sombra,
invariavelmente persegue a todos e não oferece escape. A neblina por sua
vez, representa o incerto em relação àquilo que é inevitável para todos os
vivos, ela representa a dúvida de quando se vai morrer e para onde se vai
depois da morte.
 

F. 10
 

Uma das relações famosas entre sombra e morte pode ser encontrada
na história de Peter Pan. No filme, o menino da Terra do Nunca é capaz de
se desvencilhar de sua sombra ao mesmo tempo em que é incapaz de
envelhecer. (F.11)

F. 11

5.3 Baixo/alto contraste e o preto e branco

Um elemento que não pode ser ignorado é a escolha estética pelo o


preto e branco. Além de ter sido uma escolha ponderada, diante da
 

possibilidade de ser um filme colorido, o preto e branco utilizados se mostram


particularmente peculiares por serem de baixíssimo contraste. Como o filme
se desenvolve todo em uma noite, a ausência de luz faz com que a
visibilidade fique bastante comprometida. Como agravante, está a neblina,
que se opondo ao breu, estende sua cortina de fumaça branca sobre os
nossos olhos. Primeiramente podemos estabelecer esta mistura de cegueiras
como relacionados aos significados de neblina e a sombra explicados no item
anterior, porém, existe a possibilidade de designar outro significado a esse
baixo contraste apresentado por Woody.
O baixo contraste prevalece nas cenas externas, se mostra
intermediário nas cenas internas em geral (F.12), mas quando entramos no
prostíbulo(F.13), temos um altíssimo contraste e nitidez. Lá vemos o filme
com maior facilidade. Consequentemente, temos os momentos mais
descontraídos da história. Lá é onde os personagens sorriem, falam sobre
seus desejos, realizam seus desejos e falam abertamente sobre seus medos
e suas ideias relacionados ao amor, à vida e à morte. Este momento de
clareza, ou iluminado, justamente em um lugar onde as pessoas vão para
satisfazerem suas vontades mais primitivas, se relaciona com a ideia de Tuan
que relaciona o sexo à transcendência ou à Freud com a ideia do sexo como
um gerador de uma experiência de prazer transbordante. Freud também
escreveu sobre a renúncia do instinto como consequência do
desenvolvimento cultural, que se considerarmos em relação com à afirmação
de Tuan de que a cultura é o principal escape do animalismo, ao juntarmos
estes dois pensamentos, podemos afirmar que no prostíbulo há a negação da
cultura, há a afirmação da animalidade e enfim, há luz. Lá está o único
diálogo do filme que leva em consideração a morte como algo natural. Onde
as pessoas apontam a forma em que prefeririam morrer. No prostíbulo está a
afirmação da animalidade e consequentemente o escape para o real. Pois lá
não se pensa sobre o que fazer para evitar a morte (que é inevitável), e sim o
que fazer enquanto se está vivo. Pois sobre a vida, sim, se tem algum
controle. Ela é uma realidade que se pode lidar.
 

F. 12

F. 13

5.4 A cidade

Além de ser obscura, fria e nebulosa, essa cidade aparenta uma


característica peculiar e crucial para a interpretação do filme. Embora ela se
apresente como um lugar onde todos se conhecem, como se fosse uma
cidade não muito grande, tanto o Kleinman quanto o Médico se perdem nela.
A cidade é, de certa forma, um labirinto onde em uma das saídas está o circo
e na outra a morte. Ela é o palco sombrio onde os homens vivem até seu fim.
Citando os Mutantes, este é um lugar onde as pessoas “são ocupadas de
nascer e morrer.” (F.14)

F. 14
 

Toda cidade é uma construção arquitetônica, com pessoas que falam


o mesmo idioma, que dividem os mesmos hábitos, que se vestem de forma
similar, assim como assinalado no tópico “pessoas” de Tuan (1998). Esta
cidade do filme é uma metáfora para a cultura e tudo o que foi criado pelo
homem e que se mostra incapaz de ser o abrigo ideal contra as mazelas da
natureza e sua indiferença implacável, ressaltadas no tópico “terra”.
No sentido de um labirinto, uma de suas saídas é através da morte,
pois uma vez que o indivíduo é inserido em uma cultura, dificilmente ele será
capaz de se desprender de suas construções. E independente do quão
avançada seja a cultura, ela não será capaz de evitar o falecimento de seus
membros. A outra saída é através do circo, pois ele se apresenta,
concretamente, como a alternativa de realidade para a cidade. Portanto,
quem não se adapta àquela cidade, pode optar por uma vida de nômade com
outras regras e outros costumes.

5.5 Kleinman (o ser humano)

A figura de Kleinman é particularmente interessante quando


contrastado com os outros indivíduos e instituições inseridas no filme. Ele é,
ao contrário dos demais, um homem magro, pequeno, medroso, fraco,
solitário, que não pertence a nenhum grupo, que se subjuga em seu trabalho,
que não tem nenhuma grande crença e que não sabe onde ele se encaixa na
sociedade (apresentada através da ideia de “O Plano” que ele nunca
descobre qual é nem sua participação nele).

F. 15

Na primeira cena em que aparece (F.15), enxergamos Kleinman com


as barras da cabeceira da cama no fundo da cena. Embora seja uma
 

passagem rápida, o significado desta apresentação é de suma importância


para a compreensão da condição de prisioneiro que o personagem se
encontrava em relação a sua cultura e sociedade. Podemos perceber ao
longo do filme sua relação de subjugado, visto no tópico “inferno” de Tuan,
como se ele fosse um refém desta condição de vida.
Em um trecho do filme, onde ele se mostra particularmente medroso,
um personagem o indaga “Você é o que dizem de você? Um covarde, um
inseto, um amarelão.” E sua resposta reafirma sua condição sub-humana
“Não, mas sou algo por aí”. Sua maior preocupação ao longo da história
(além da de não morrer) é a de conseguir uma promoção. Mas ao encontrar
seu chefe pela rua ele é descrito com novos termos pejorativos como:
simplório e verme viscoso e pegajoso. Ou seja, para essa sociedade ele não
é considerado um humano, do ponto de vista da importância.
Ao descontruirmos este personagem, podemos identificar muitas das
aflições humanas que são pontuadas por Freud e Tuan no capítulo quatro.
Encontramos a necessidade de pertencer a um grupo, o medo da morte, a
vulnerabilidade de ser só um diante da sociedade e da natureza e a busca
pelo prazer/felicidade.
Ao longo de uma narrativa que dura uma noite, observamos uma via
crucis que leva Kleinman ao inevitável encontro com a morte. Neste seu
percurso, ele busca diversas formas de deter a morte com grupos e
organizações diferentes. Em ordem cronológica, ele primeiro faz parte do
grupo do Hacker (uma espécie de grupo de vigilantes), mas é abandonado.
Em seguida vai de encontro ao médico/cientista, mas este está repleto de
questões e também não sabe como escapar da morte. Logo em seguida,
Kleinman vai em direção à delegacia de polícia, que seria a protetora da
sociedade, mas que se mostra igualmente desnorteada. Então ele segue
para uma igreja, cujos representantes se mostram mais preocupados com
burocracias do que com qualquer ritual simbólico. Enfim, ele reencontra os
vigilantes que agora se tornam dissidentes e conflituosos. Estes, ao mesmo
tempo que ignoram Kleinman, buscam seu apoio. Sua presença se mostra
importante dentro de uma noção de “ou você está conosco, ou contra nós”.
Enfim, ele é acusado por um clarividente de ser o assassino/morte, e
justamente por não ser parte de nenhum grupo, ele passa a ser visto como
 

um inimigo comum a todos. A realidade da qual ele fazia parte se mostrou


hostil demais e o levou a buscar refúgio no circo. Lá, ele finalmente enfrentou
a morte, que nessa altura do relato, pode ser lida como uma metáfora para a
sua “morte social”, consolidada através do seu completo ostracismo em
relação à sua sociedade originária.
Kleinman renasce/reencarna/ressurge como um ajudante de mágico.
Ele passa a ser um homem, numa nova sociedade, com novas regras, onde
ele supostamente pertence, onde ele enfim pode ser parte do grupo e
também onde ele acredita ter encontrado um refúgio da morte.

5.6 A morte

Para considerar o assassino como uma figura representativa da morte,


temos que atentar para o fato de que dentro das ideias de falecimento, está
aquela que julga a morte como um acidente, apontada por Tuan no capítulo
sobre escapismo. O autor demonstra que a vida muitas vezes é
compreendida como se fosse uma propriedade eterna, como se fossemos
imortais, mesmo não sendo. Portanto, podemos considerar que a morte,
quando nos tira de nossa suposta imortalidade, ela está agindo conforme
uma assassina. E como a morte é o estado onde se encontram aqueles que
não estão mais vivos, para que seja possível apontá-la como uma culpada, é
necessária a sua personificação. Muito conhecida pela imagem de capuz e
foice, e também por uma estrutura esquelética, a figura da morte já ocupou
outras formas na arte, como o exemplo de O sétimo selo (Det sjunde inseglet,
1956) de Bergman, onde ela possui uma cara humana, pálida e inexpressiva,
vestindo uma manta negra. Uma vez que o estado de morte se transforma
em um ser assassino, cria-se um ente a ser combatido.
No primeiro diálogo de Kleinman com o Grupo de Hacker, um de seus
membros afirma que eles estão em busca de um estrangulador, o que nos
roubaria o argumento de ser uma entidade de morte, e sim um assassino em
série, porém, logo em seguida, se discute um outro assassinato em que a
vítima foi degolada. Quando Kleinman pondera “degolou? Mas não era um
estrangulador” a resposta imediata é “importa como ele mata?” Ou seja, a
questão que se levanta é de como é que se detém aquilo que faz morrer.
 

Uma outra evidência de que o assassino é a personificação da morte


está em um diálogo entre ele e o cientista. No fotograma F.16 vemos
exatamente este momento de enfrentamento. A morte, com sua cara
sombreada, encara com apatia sua vítima que tem sobre sua cabeça uma
lâmpada formando uma aureola e em sua frente um esqueleto, deixando
claro simbolicamente que naquele momento não haveria escape possível
para a morte. Inescapavelmente aquela era uma morte anunciada. O diálogo
entre os dois personagens ocorre da seguinte maneira:

F. 16

Cientista – Como você conseguiu entrar?


Assassino – Você pensou que conseguiria me manter do lado de fora?
Cientista – Então sou o próximo da sua lista?
Assassino –Que lista?
Cientista – Não consigo ver seu rosto.
Assassino – E isso faz diferença?
Cientista – Você pensa que tenho medo de você, isso te dá prazer?
Embora eu admita que você me pegou de surpresa – Vejo que você é
muito determinado. E mesmo assim não sinto medo, apenas sinto
pena por você.
Assassino – Você quis dizer por você.
Cientista – Por que você faz isso? – oh que pergunta absurda feita
para uma mente irracional...
Assassino – O que você sabe sobre a minha mente?
Cientista – Eu sei que se eu pudesse examinar o interior de seu
cérebro eu encontraria o caos. E mesmo assim, estou ansioso para
saber onde a insanidade termina e o mal começa.
 

Assassino – Tantas perguntas...

Em seguida, o cientista corre, mas é capturado e acaba sendo


estrangulado pelo assassino. Este diálogo deixa claro que a figura não se
trata de um ser humano e sim de uma forma de entidade, por pontuar que:
ela entra onde está trancado, ela não tem lista (não tem razão nem motivo de
ser), não tem rosto (não é uma pessoa), não tem pena e é uma fonte de
incertezas (ela jamais responderá uma pergunta relacionada a ela). Ou seja,
o personagem pode ser considerado como uma representação da morte pois
ele é desenhado como uma força indiferente que promove o falecimento sem
premeditação. Essa é a mesma indiferença que Tuan (1998) ressalta no
capítulo “terra” ao descrever a reação da natureza com os homens.
Quanto à sua forma humana, pode-se considerar que esta é uma
homenagem a O Sétimo selo, de Bergman, um dos grandes diretores que
influenciou Woody Allen. As figuras de morte que aparecem em ambos os
filmes são pálidas, inexpressivas e carecas. (F.17 e F.18)

F. 17

F. 18
 

 
 

5.6.1 A expectativa da morte

A morte é certa para todos os vivos. Sua forma e hora permanecem


um mistério ao longo da totalidade da vida. A consciência desta condição
carrega em si um peso, acarretando as mais variadas consequências. Pode-
se tentar compreender os motivos da morte para poder evitá-la ou controlá-la
como faz o cientista, através da racionalização; pode-se temer covardemente
como Kleinman; pode-se usufruir de suas incertezas apresentando ideias de
paraíso e inferno, como os representantes da igreja, através da fé. Mas
independentemente de como se lida com a sua concepção, somente quando
se defronta com a morte é que realmente se pode concluir qual é a reação
que se tem frente ao inevitável.
A morte é tudo aquilo que não somos enquanto vivos. Por mais que
possamos ter uma ideia do que é não existir, pois compreendemos que antes
de nascer não éramos nada, após estarmos vivos, passamos a perceber tudo
através da ótica da consciência. Então tudo que sabemos faz parte da nossa
experiência como forma viva. Consequentemente, a morte se apresenta
como negação daquilo que somos e o ato de morrer, esta transição, este
momento transitivo entre a vida e a morte que nós sabemos que nos
aguarda, é em si o grande terror. Os exemplos que acumulamos em vida
desta transição através do relato de enfermos ou acidentados é a pior
possível. O frio do pós parto jamais se comparará à dor que precede a morte.
Este momento do estar morrendo, da concretização da finitude, se apresenta
tão angustiante, tão sufocante, tão agonizante que pode, de fato ser, pior do
que estar morto em si.

5.6.2 A mão contorcida

Woody Allen deixa claro sua visão sobre o ato de estar morrendo. Até
aqueles que não conhecem sua biografia38 podem chegar a esta conclusão

                                                                                                                       
38  Woody
Allen é conhecido por sua hipocondria e sua vontade de não morrer. No filme
Memórias, em uma de suas falas autobiográficas, ele afirma que abriria mão de seu Oscar
por um segundo a mais de vida. Em Hannah e suas irmãs, após descobrir que não tinha um  
 

sem grande esforço ao assistirem este filme. Isso, pois existe um elemento
que exemplifica com clareza toda a agonia que o diretor enxerga neste
fatídico momento. Na cena em que Kleinman conversa com o médico, vemos
um laboratório com alguns cadáveres cobertos. Entre eles, existe um que
desvela uma parte de seu corpo. De todas as partes possíveis para serem
mostradas, um olho arregalado, uma cara contorcida, que podem ser
atribuídos a uma pessoa, ou partes mais inassimiláveis como órgãos vitais
explícitos, Woody escolheu uma parte que pode ser assimiladas por todos
como própria: a mão. A tão expressiva e universal mão, contorcida ao
máximo numa expressão de desespero, agonia e dor. (F.19)

F. 19

F. 20 – Detalhe da mão

Esta mão simboliza o medo que é propagado pela visão da morte. A


mão é a materialização daquilo que se sente ao estar morrendo. Aos olhos
de um cético, como Allen, onde a comunicação entre um morto e um vivo é
absolutamente impensável, é possível compreender que esta é a última

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
câncer, ele comemora por pouco tempo ao constatar que ele só não vai morrer agora, mas
sim um dia.  
 
 

mensagem que o vivo pode mandar antes de falecer. Neste caso, a última
expressão de um homem antes da morte é de que esta experiência é o
cúmulo do sofrimento.
Ao longo do filme, ocorrem quatro mortes: duas visíveis e duas
assinaladas. Elas todas podem ser relacionadas à dor exprimida pela mão
contorcida do cadáver coberto.

5.6.2.1 A morte do primeiro homem

O primeiro homem serve como a apresentação da morte. Ele aparece


saindo de um possível escritório à noite. Em seguida, anda pelas ruas
escuras e enevoadas da cidade. A câmera foca em uma escadaria. Da
branca e densa neblina se materializa o anjo da morte, com sua longa capa
preta e seu andar enrijecido, descendo dos céus em direção aos homens
para cumprir com seu dever de tornar os vivos em mortos. (F.20)

F. 21

Um homem para e acende um cigarro. Ele não percebe o perigo


eminente. Sua caminhada continua noite adentro, atravessando a neblina
quando uma sombra passa por sua frente e ele logo percebe que sua hora
chegou. Paralisado, sua luta é em vão frente à força implacável da morte.
(F.21)
 

F. 22

Assim podemos assinalar que a morte, embora robusta, é sorrateira.


Suas vítimas não são avisadas sobre quando serão atacadas e nem por quê.
Não há luta que resista, nem maneira adequada de enfrentá-la. Embora
todos saibamos que um dia ela atacará, não existe a possibilidade de manter-
se alerta de forma suficiente para evitá-la. E o homem, sem ter cometido
qualquer crime evidente, nem ter agido de forma suspeita ou mal
intencionada, simplesmente por ser homem e ter nascido, é vítima da
indiferença da força da natureza, como afirma Tuan (1998).

5.6.2.2 A morte do médico

F. 23

Como representante da razão, o médico/cientista encontrou a morte


no único lugar possível: no trabalho (F.22). E sem fugir de sua função de
pesquisador, quando frente a frente com ela, questionou o que pode até
perceber que não haveria pensamento que evitasse seu fim. Diante desta
constatação, percebe-se que o instinto prevalece sobre a razão, assim como
afirma Freud (1996) e Tuan (1998) na qual a vontade de viver é muito maior
do que a de conhecer o que de fato seja a morte. O cientista, buscando
 

defender sua vida, corre por entre as ruas escuras e repletas de neblina,
desnorteado, até ser encurralado. Ele não foi capaz de evitar a morte por
meio da razão. Morreu gritando “não”, contrariado por estar com medo e por
ser vítima de seu objeto de estudo.

5.6.2.3 A morte da pobre mulher

Uma mulher, visivelmente desamparada, vaga pela noite nebulosa,


com fome e com frio carregando seu bebê. Seu olhar é opaco, como quem já
não vê nada. Sua voz é fraca e pede ajuda. Sua face não tem mais forças
para qualquer expressão (F.23 e F.24). Ela diz frases que mostram seu
completo estado de vulnerabilidade: “Me ajudem”, “Tenho fome”, “Preciso
comprar comida e leite”, “Meu marido está morto”, “Estou sozinha”.

F. 24

F. 25

Seu abandono é fatal. Por mais que ela tenha recebido alguma ajuda,
sua condição marginal é tão intensa que não há subsídio que salve sua
exclusão da sociedade e consequentemente sua exclusão da vida. Tuan
ressalta que um indivíduo sem grupo, além de se sentir insignificante e
 

solitário, está significativamente mais vulnerável às mazelas da sociedade e


da natureza. Portanto, pode-se observar que ela era vítima da indiferença da
natureza, que não se importa com o fato de ela ser mãe, ao mesmo tempo
que a sociedade se mostra também indiferente aos excluídos (os não
pertencentes a um grupo organizado).
Sua morte não precisava ser filmada. Nos casos de morte “morrida” e
morte “matada”, pode-se categorizar como “matada” aquela que é
responsável por tirar a vida de quem não está para morrer e a morte
“morrida”, como aquela que vem quando esperada. No caso deste
personagem, é um claro caso de morte morrida. Portanto, não cabe a figura
assassina da morte. Ela morreu em vida.

5.6.2.4 A morte de Hacker

A única aparição de Hacker se dá no inicio do filme, mas sem atribuir


destaque ao personagem. Tudo que se sabe é que ele tem um plano para
capturar o assassino e todos têm uma participação nesta confabulação.
Neste universo em que todos os personagens são tão viscerais e afirmativos,
ser líder de um grupo demonstra grande poder e destaque, pode-se somente
visualizar Hacker como um grande estrategista e negociador. Um escolhido.
O grupo de Hacker acaba sendo taxado pela polícia como uma entre
várias “gangues de rua”. Só então passamos a perceber que existem mais
grupos pela rua em busca do assassino. Quando é revelado que Hacker
morreu, imediatamente é possível afirmar que ele foi pego pelo assassino,
porém, ao contrário do que se imagina, é revelado que ele foi morto por
alguém de outra gangue por discordar de seu plano.
Neste caso não era necessária a figura da morte/assassina, pois os
homens se encarregaram desta tarefa, como elucidado por Freud ao
comentar a violência dos seres humanos como instintiva. Este assassinato
pode ser compreendido como uma parábola voltada às guerras religiosas,
onde se acredita em algum plano que se mostre mais adequado para lidar
com a vida e a morte através do pertencimento a um grupo com crenças
comuns. E por razões variadas de divergências, Tuan, no capítulo sobre
escapismo aponta que, principalmente entre as crenças mais parecidas, os
 

conflitos entrem teologias/ideologias tendem a ser particularmente violentos.


Tão irônico quanto morrer lutando pela paz, é morrer por tentar escapar a
morte.

5.7 O plano

Ao longo do filme somos apresentados a diversas teorias de como


lidar com o assassino/morte, o que pode ser compreendido como uma reação
natural a um momento de maior estresse. Freud, como citado no capítulo
sobre escapismo, deixa claro que o ser humano busca evitar o sofrimento,
como forma de alcançar a felicidade. Tuan, no mesmo capítulo, explicita que
o desenvolvimento da cultura é uma forma de escape da animalidade (na
qual a morte uma de suas características básicas). Sendo assim, pode-se
concluir que as facções, a polícia, o clarividente e o médico/cientista ocupam
o espaço representativo deste contexto de fuga do sofrimento, onde a morte
é o motivo do sofrimento, e onde a racionalização do fim deste sofrimento é a
cultura que se desenvolve na tentativa de escape.
É possível também considerar que o plano (ou sua ausência) é uma
metáfora quanto aos homens e sua busca incessante por significado e
propósito na vida. Por mais que a humanidade se pergunte “como viemos
para cá?”, “Por que estamos aqui?”, “Qual é o sentido da vida?” e “para onde
vamos quando morremos?”, suas respostas são uma equivalência à
confusão entre teorias arbitrárias dos personagens do filme.

5.7.1 Polícia

Frente ao assassino/morte, a polícia ocupa o seu papel esperado,


representando a sociedade organizada. Ela faz investigações, analisa os
crimes, e procura por evidencias e culpados. Frente à animalidade, ela é um
avanço em questão de ordem, porém, diante da animalidade íntima que é o
falecimento, esta instituição se mostra completamente incapaz. Por mais que
ela possa evitar que os homens se matem uns aos outros, ela é impotente
quando comparada à inevitabilidade da morte do homem. A polícia jamais
 

será capaz de impedir a morte. Ou seja, o escape que ela oferece da


natureza é somente contra a desordem, não contra a mortalidade.
A sociedade, ao observar essa incapacidade, busca criar sua própria
solução. No filme um personagem deixa claro que a polícia teve sua chance
de parar o assassino/morte, porém, como não conseguiu, tinha chegado a
vez de seguir o plano de Hacker.

5.7.2 Facções

Ao longo do filme são identificadas três facções que determinam três


planos distintos contra o assassino/morte: o plano do Hacker, do Miller e do
Vogel (F.25). Nenhum destes planos é explicado para o público. Cabe a
interpretação de que, frente à morte, os homens criam espontaneamente
formas de encará-la. Se examinarmos que primeiro veio o plano de Hacker e
só depois ocorreram as dissidências de Miller e Vogel, é possível estabelecer
um claro paralelo com o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Onde,
embora todas as três tenham raízes em comum, suas dissidências evoluíram
para grandes conflitos teológicos. Cabendo mais uma vez o argumento de
Tuan, onde ele aponta que há uma tendência a haver rivalidades entre
grupos mais próximos geograficamente e com menor diferença entre si.

F. 26

Estas facções são baseadas em escolhas de fé, daquilo que se


acredita ser mais eficaz contra a morte. Consequentemente, os homens se
organizam para lutar contra algo que eles não conhecem e que não surte
nenhum efeito. Pelo prisma de Tuan, onde se pode fugir para a realidade ou
para a fantasia, este é um claro exemplo de fuga para a fantasia. Pois, os
 

planos são superficiais e não tratam com objetividade aquilo que se está
sendo combatido. Ou seja, frente à morte, tentar capturá-la não surte efeito.
Com ela se lida, se evita, mas não se combate.

5.7.3 Clarividente

Diante o desespero de todos, dos combates entre estas diferentes


facções, da incapacidade da polícia e da omissão da igreja, surge o
clarividente (F.26 e F.27) que resolve casos através de um poder olfativo
divino. Ele unifica as facções e a polícia contra Kleinman, como se ele fosse
o motivo de todas as mortes.

F. 27

F. 28

Esta construção elucida de forma ácida e irônica, a predisposição da


humanidade em atribuir valores a crenças não relacionadas à ciência. Sendo
possível, mais uma vez, relacionarmos a Tuan, quando o mesmo argumentou
que povos executam rituais não pelo resultado (por exemplo uma dança da
chuva com o objetivo de fazer chover), mas sim para lidar com o desespero
 

da seca. Ou seja, é melhor acreditar que o clarividente está certo, pois assim,
momentaneamente, se sente que o assassino/morte foi detido.
De acordo com a definição do dicionário Houaiss, um clarividente é
aquele que “vê com clareza” ou então aquele que é “capaz de prever
acontecimentos”. A partir destes esclarecimentos, é possível destacar que
diante do cenário nebuloso em que se passa o filme, aquele que vê com
clareza é aquele que é capaz de prever a morte. Sendo assim, pode-se
também categorizá-lo como um mensageiro da morte. Sua aparência similar
a da morte (Careca, rígido, sombrio) apenas fortalece este laço entre os dois
personagens e serve como uma anunciação do encontro inevitável de
Kleinman com o Assassino/morte.

5.8 O universitário

F. 29

F. 30

Não é dito o que ele estuda, nem onde, nem há quanto tempo. O
universitário ocupa o papel de um jovem rapaz crítico, deprimido e
apaixonado (F.28). Ele é a representação do indivíduo em formação, ainda
no processo de aculturamento. Sua primeira aparição ocorre no prostíbulo
 

após uma partida de pôquer na qual ele ganhou 700 dólares. Ele entra como
quem já é da casa e se apaixona justamente pela Irmy (Mia Farrow), que está
lá só para passar a noite em segurança. A moça reluta quanto a se prostituir,
mas ao serem oferecidos insistentemente os 700 dólares, ela acaba
cedendo. As cenas subsequentes são de sua extrema satisfação com Irmy,
sem nenhum arrependimento pelo dinheiro gasto, seu estado contemplativo
pós coito, enquanto sozinho no bar (F.29). Por fim, volta ao prostíbulo para
contemplar seu ceticismo.
Esta maneira impulsiva de se portar transparece uma animalidade
típica daquele que não está completamente formado por uma cultura. Sendo
ele uma metáfora para o ser em formação, sua atitude completa o quadro
que evidencia a distinção entre o culto do aculturado. Ele, por não ser
formado, expressa sua opinião com paixão e vive de acordo com seus
instintos. Parte de seu discurso demonstra tanto o medo da liberdade, a
vontade de se matar quanto o desejo intenso de querer seguir vivendo. Uma
de suas frases mais marcantes é “Eu sempre escuto o meu sangue” e uma
afirmação quanto a sua predileção por estar no bordel ao invés de na
universidade, por achar o ambiente mais estimulante. Neste espaço, ele é
livre para tratar de tabus, como perversão, prazer, impulsos, quando
argumenta o quanto a lógica é deprimente. Esta satisfação, que ele sente
neste ambiente, pode ser lida através do pensamento de Tuan, que afirma
que o prazer intelectual é muito menos intenso do que os prazeres instintivos.

5.9 O circo

Em oposição à cidade, o circo (F.30) se estabelece como uma


estrutura itinerante de entretenimento. De acordo com as definições de
escape estabelecidas por Tuan, assistir a uma apresentação circense por
diversão seria, para um cidadão comum, o escape para o fantástico, onde ele
estaria fugindo de sua realidade cotidiana para participar de um evento sem
peso/superficial. A vida de circo é vista como uma de nômade, onde quando
comparada à da cidade, aparenta ser uma alternativa de liberdade.
 

F. 31

5.9.1 A fuga para o Circo

Kleinman ao longo do filme demonstra que é um mágico amador e que


admira profundamente o grande mágico Almstead, que acompanha o circo.
Quando ele se viu perseguido por grupos de homens ensandecidos, de sua
própria cidade, e querendo enforcá-lo por crimes que não cometeu, a fuga
era para qualquer lugar. Primeiramente ele correu para a casa de sua ex-
noiva que o expulsou a tiros de casa, depois ele seguiu para o prostíbulo,
onde ele teve que sair às pressas e por fim, chegou ao circo onde ele não foi
mais encontrado. O circo, que partiria no dia seguinte, ofereceu uma vaga de
assistente de mágico para ele. Dividido, Kleinman, inicialmente nega, mas ao
comparar as duas circunstâncias, ele preferiu seguir com o circo. De um lado
existia uma cidade que fazia com que ele se reconhecesse como um verme e
que o queria morto. De outro, um mundo que aparenta ser encantado, onde
ele poderia fazer o que sonha. Esta mudança total de vida pode ser
relacionada ao pensamento que Tuan dirige aos colonizadores ingleses em
busca do Novo Mundo, no qual o escape é baseado na simplificação do
destino final. Por não conhecer direito a realidade de onde se vai, acredita-se
que lá será melhor do que a realidade que se está vivendo.
 

5.9.2 O circo como escape para a fantasia

A escolha por seguir com o circo é claramente uma decisão escapista.


Mas, como o escape pode ser definido de formas distintas, é preciso
identificar as circunstâncias de seu escape. Quando se pensa em escapar
deve-se considerar se é do real para o fantástico ou do fantástico para o real.
No caso do Kleinman, quando ele decide abrir mão da cidade, podemos
avaliar que ela representa o real. Nela está inserida toda sua relação com o
mundo por meio de trabalho, de relações sociais e amorosas. Lá está sua
cultura, sua comida, toda a forma como ele encara e se relaciona com a vida.
Portanto, a decisão de ir para o circo pode ser vista como uma mudança para
o desconhecido, onde ele acredita que viverá realizando um sonho. O mágico
Almstead aponta que no mundo real se usa o “Chapéu cinza dos
compromissos” enquanto o dono do circo explica que trabalhar com ele
significa viajar, beber e conhecer mulheres bonitas. Enfim, para Kleinman as
suas duas opções eram ou voltar para uma cidade que o crucificava, onde
ele estava desempregado e possivelmente casaria com a sua inquilina ou
então fugia com o circo para viajar, beber, conhecer mulheres bonitas e fazer
mágica. Claramente sua escolha foi de escapar do real para o fantástico.

5.9.3 O circo como o real

No momento em que Kleinman aceita escapar do real para o fantástico


e anuncia sua decisão para Almstead, a primeira resposta do mágico é um
baque de realidade: “O pagamento é muito baixo”. Kleinman ainda
embriagado com a ideia de trabalhar com algo que ele ama, diz não se
importar. Almstead é enfático ao dizer que o pagamento é realmente muito
baixo, mais baixo do que ele pode estar imaginando. Mas Kleinman está
determinado a escapar para o mundo fantástico do circo.
O longa apresenta alguns argumentos, ao longo de sua trama, para
explicitar o quanto o circo é tão real quanto a cidade. Além do fato de ser
uma estrutura física, uma empresa, e uma pequena sociedade, as relações
humanas não se dão em atos artísticos, como durante as apresentações e
sim de acordo com o que seria num cotidiano qualquer. Existem problemas
 

quanto ao salário, a vontade de construir uma família, projetos pessoais,


relacionamentos afetivos, traições, embriaguez... Um fragmento do filme que
mostra essas duas facetas do circo, a fantástica e a real, no primeiro
momento em que Irmy é apresentada, onde ela primeiramente está usando
peruca morena e em seguida ela a retira de sua cabeça e revela seu cabelo
loiro. (F.31 e F.32)

F. 32

F. 33

Em seguida conversa com seu parceiro sobre como foi a


apresentação. Esta sequencia em que ela “retira sua máscara” e passa a
racionalizar sobre o espetáculo, temos uma clara desmitificação do
espetáculo. Passamos a entender que o circo também é vida real. A
conversa se aprofunda ao ponto de o casal discutir o plano de ter um filho.
Enfim, a conclusão que se tem é que para montar uma família, é necessário
escapar do circo para uma cidade, onde a criança possa ter uma educação.
Esta conversa evidencia o circo como o real e a cidade como o fantástico.
Cabendo a ela o espaço das oportunidades, onde eles possam se casar, ter
estabilidade e poder dar educação para um futuro filho. Como se a cidade
 

fosse dar norte para a vida deles e oferecer a estrutura necessária para uma
vida equilibrada.
Portanto, Kleinman ao pensar em estar escapando para o fantástico,
ele está de fato alternando realidades. Ele agora fará parte de uma outra
sociedade que terá sua própria densidade, suas próprias regras, seus
próprios problemas e seus próprios costumes cabíveis à uma estrutura
artística/nômade.

5.10 A mágica

A mágica por si só já é a negação da realidade. Quando vemos um


mágico cortar alguém no meio, fazer desaparecer algo, ou até materializar
coelhos de cartolas, estamos diante da negação da lógica e das leis básicas
da física. Frente à realidade, é impensável a possibilidade de partir alguém
no meio sem que a mesma venha a falecer ou que ao menos haja um
perceptível derramamento de sangue. A mágica também é conhecida por
seus truques que desafiam a morte, como a dos famosos escapistas que se
soltam de correntes e cadeados no fundo de um aquário, ou de qualquer
outra situação de alta periculosidade em que qualquer erro seria fatal.
Através da mágica se estabelece um estado de exceção onde o impossível
passa a ser viável e o inacreditável, crível. É nessa exceção que Woody
amarra o que seria o grande escape de seu filme.
Na realidade que vivemos, é notório que a mágica não passa de
truques explicáveis realizados através de técnicas de ilusionismo bem
pensadas e executadas. Porém, no cinema as leis da física e da lógica não
funcionam da mesma maneira e a mágica, como ela se propõe a ser, se
torna completamente viável. Nesta brecha cinematográfica, Allen assume seu
filme como uma ficção escapista. A realidade de Neblina e sombras, para que
ela alcançasse seu auge escapista, precisava ser construída com o peso da
realidade e de todos os conflitos do cotidiano. Somos expostos a diversas
situações que cabem à realidade humana, como: “Será que Deus existe?”,
“Quando vamos nos casar?”, “Você está no nosso grupo?” ou até questões
relacionadas a salário e necessidades básicas como a de comer para não
morrer de fome. São 75 minutos de realidade árida até o grande e libertador
 

escape através da mágica. Como o filme todo é realista, a mágica é


percebida, não como ficção, mas como uma realidade dentro da
verossimilhança da história.

5.10.1 O salto para o espelho e a prisão da morte – O ponto de ignição

Levando em consideração que o grande vilão do filme é a figura da


morte e o vilão coadjuvante é a sociedade que hostiliza Kleinman, temos dois
geradores de sofrimento que estimulam o desejo por alguma forma de
escape. É razoável acreditar que contra uma sociedade, o escape através da
emigração é uma possibilidade, mas contra a morte, o próprio filme mostra
que não há. Quando Kleinman está no ápice de sua fuga, quando a morte o
persegue e quando a sociedade inteira quer sua cabeça, ele penetra as lonas
escancaradas do circo buscando refúgio e encontra o seu salvador, o mágico
Almstead, o “imortal”. (F.33)

F. 34

F. 35
 

A sombra da morte (F.34) mostra que ela está a caminho do circo e


entra no picadeiro, ela caminha em direção a Kleinman com seu andar
implacável e em plena arena circense o grande Almstead chama Kleinman
para sua ilusão do espelho. Ele acende as luzes em volta do espelho mágico
e após um som ininteligível e um movimento ensaiado com as mãos, ele
entra no espelho. (F.35 e F.36)

F. 36

F. 37
 

F. 38
 

F. 39

Kleinman, perplexo, se vê entre a morte e a mágica. Almstead estica o


braço para fora do espelho e puxa Kleinman para dentro (F.37 e F.38). Neste
momento podemos ler que o excluído e renegado Kleinman finalmente foi
quisto em algum lugar. Ao escapar para o espelho ele passou a pertencer à
mágica e consequentemente ele deixou de pertencer à sua realidade.
Portanto, em relação a sua antiga sociedade, ele estava apenas
consolidando seu completo ostracismo.
Porém a morte não desistiu de Kleinman. Ele podia ter escapado da
sociedade, mas a morte ainda era uma realidade evidente. Ela vai até o
espelho perplexa e não entende o que está acontecendo (F.39). Os dois se
olham através do espelho, onde podemos interpretar que além de Kleinman
estar olhando a morte nos olhos, ele está também sendo seu reflexo. Desta
maneira, por mais que ele tenha escapado momentaneamente, podemos
compreender que seu reflexo, sua sombra e sua condição humana ainda está
presa a sua mortalidade. O Assassino/morte, com sua determinação
implacável, encontra um pedaço de madeira e quebra o espelho mágico,
negando sua condição de impotência e se frustrando por não encontrar nem
Kleinman nem Almstead. (F.40)

F. 40
 

F. 41

Os dois se materializam em outro espelho e o mágico faz com que


uma gaiola caia sobre a desnorteada morte. (F.41) Neste momento, é
possível estabelecer um paralelo entre o início do filme, quando Kleinman
acorda com as grades da cabeceira de sua cama no fundo do
enquadramento (F.15), com esta situação da morte ao ser presa. Kleinman
que era a vítima hostilizada da sociedade, ao entrar no espelho e assumir a
mágica como realidade, de certa forma, fez com que sua grade (sua cama,
sua casa) deixasse de existir, e a morte, que perseguia aquele homem,
daquela cidade, com aqueles costumes, agora se vê diante de uma nova
composição social, mostrando que aquele Kleinman preso, morreu, e que
agora vive o Kleinman livre, que renasceu através da mágica. Logo eles
cobrem a gaiola com um pano mágico (F.42) e fazem sua prisioneira
desaparecer e se materializar em uma cadeira completamente acorrentada
(F.43 e F.44). Neste momento Kleinman e Almstead provam que a mágica é
real e realizam o impossível a todos, eles sobreviveram um confronto com a
morte. Eles realizam o escape máximo.

F. 42
 

F. 43

F. 44

F. 45

Se analisarmos a morte como causa de morte, não como um


personagem antropomorfo, podemos constatar que a ideia de dela escapar e
de prendê-la seriam completamente absurdas. Porém, é justamente através
desta construção que Allen consegue ao mesmo tempo provar a mágica
como real e a morte como escapável. Seu escape é completo.
Para defender a tese de que a figura da morte é de fato a morte e não
um assassino em serie, podemos analisar a cena em que ela foge de suas
amarras, pois em um momento de distração, quando os demais membros do
circo adentravam o picadeiro, ela “magicamente” sumiu (F.45). As correntes
de Almstead foram defendidas como inescapáveis, mas o mesmo argumento
 

é válido para a morte (sendo também inescapável). Esta cena permite que
interpretemos que a morte se deixou ser capturada pois Kleinman havia
alcançado com êxito seu escape para uma nova dinâmica de vida.

F. 46
 

6 CONCLUSÃO

Este trabalho visou entender o que é o escapismo e a forma como é


tratado por Woody Allen, com foco no filme Neblina e Sombras. Acreditava-se
que o escape era somente o momento em que o perseguidor era deixado
com a capa do seu perseguido na mão. Como se a essência do escape fosse
se des-capar em direção ao alívio. O fato de Kleinman escapar da morte ao
entrar no espelho mágico, aparentava ser imaginário o suficiente para
justificar esse filme como escapista. A lógica está completa, porém a teoria
foi capaz de aprofundar o entendimento do escape para além da execução
momentânea da fuga, pois ele é muito mais que um momento, é uma
construção. Para compreender os elementos do escape foi preciso
destrinchar o que causou a necessidade de escape e para onde se foi. Nesta
pesquisa, foram encontrados diversos elementos que contextualizavam o
escape neste sentido, deixando claro que Kleinman não fugia só da morte,
mas ele se desvencilhava de sua cultura. Ao entrar no espelho, ele assumiu
outra realidade oposta àquela que ele vivia e escapou do real para o que
aparentava ser o fantástico: o mundo do circo. Era possível acreditar que a
pesquisa pudesse ser concluída aí, onde a realidade triste se tornava uma
outra feliz, mas a compreensão do escape, arguida por Tuan, explicita que
para o escape ser para o fantástico, é necessário conhecer pouco de onde se
vai e não ficar lá por muito tempo, pois o peso do real dominará o que era
aparentemente fantástico. Sendo assim, é possível compreender que o
escape de Kleinman é para o real, pois sua mudança para o circo apresenta
ser duradoura. Lá, ele passará a fazer parte de um novo contexto social e
terá que lidar com novas adversidades próprias desta realidade. Portanto, ele
não escapa para uma realidade feliz, mas sim para uma outra que é
supostamente mais tolerável.
Em Neblina e Sombras, os fatores que determinaram a construção da
realidade fílmica como escapista foram analisados a partir do estudo de
metáforas, recursos cênicos e narrativos identificados. O que permitiu,
através dos textos de Freud e Tuan, a compreensão do que é o escapismo e
também como ele é identificado na obra de Woody Allen.
 

Tuan divide seu livro Escapism em cinco capítulos (Terra,


Animalidade, Pessoas, Inferno e Céu) e cada parte trata de uma faceta do
escape. Para relacionamos a teoria apresentada por esse livro com a
narrativa do filme Neblina e sombras não foi preciso muito esforço.
No capítulo Terra, abordam-se aspectos relativos à natureza e cultura,
o que para o filme fica transposto como as instituições: polícia, trabalho,
prostíbulo, igreja, médico, esposa, que é o contexto em que Kleinman está
inserido. Neste capítulo, o autor constrói a ideia de que casa é a “natureza”
que edificamos e que nos protege e aflige, simultaneamente. No filme, ao
mesmo tempo em que a cidade e a sociedade são referências para
Kleinman, ou seja, onde ele mora, trabalha e se relaciona com os demais, é
também onde ele é desprezado e eventualmente caçado por seu estilo de
vida.
No capítulo sobre Animalidade encontramos o esforço do ser humano
para se tornar civilizado em contrapartida aos seus instintos e a sua condição
animal. No filme, o próprio embate contra a morte faz parte desta vontade do
homem de se distanciar de sua animalidade. Vemos isso no conflito do
universitário (o homem em formação) frente aos prazeres do prostíbulo em
contraposição à rigidez do conhecimento.
No capítulo Pessoas, Tuan trata dos conceitos de grupo, tanto em
termos de pertencimento como de isolamento. No filme, esses conceitos
aparecem de forma significativa nos grupos de vigilantes, na força da
multidão e na impotência de Kleinman diante de todos, como um ser solitário.
No capítulo sobre o inferno, o autor trata da imaginação e dos temores
dos seres humanos de suas incertezas e do vazio da solidão e da impotência
frente à indiferença. Em Neblina e sombras, o inferno é representado através
do tema central da narrativa, que é o medo da morte e a presença do
misterioso assassino que tira a vida de suas vitimas indiscriminadamente e,
no caso de Kleinman, da solidão por demonstrar não pertencer àquele grupo
e sua busca por abrigo (que acaba sendo o circo).
Por fim, no capítulo Céu, Tuan indica que através do conhecimento se
escapa para o real, que é, em suma, onde se vive. Ao se aprofundar em
alguma faceta da realidade, o inferno, que é a imaginação, o indeterminado,
o violento e o impessoal, passa a desaparecer e a fazer sentido a partir de
 

uma ótica, portanto, passa a ser passível de enfrentamento e


consequentemente, também de ter uma solução. Ao analisar o filme por esse
viés, compreendemos que, quando Kleinman imerge no espelho e assume a
vida de circo, ele escapa para o real, que é o circo, a partir do seu
conhecimento de mágica. Portanto, pode-se afirmar que Kleinman
compreende e enfrenta o mundo através da ótica da mágica e somente
através dela ele é capaz de escapar de fato para uma vida suportável.
O Mal-estar na civilização de Freud complementa o pensamento de
Tuan e enriquece a análise do Neblina e sombras através da compreensão
da relação do indivíduo com sua sensação de pertencer, de sofrer e de ser
feliz. O autor argumenta que não existe meio de fugir deste mundo, portanto,
confirmando a ideia de Tuan, o escape deste mundo se faz através da sua
compreensão. Freud, ao deixar claro que sua percepção de mundo é árdua,
aponta três construções auxiliares (derivativos, substitutivos e substâncias
tóxicas) para lidar com a vida, e que também foram encontradas no filme. Os
derivativos são as atividades mentais, como a ciência ou um hobby que, no
caso do filme, pode ser visto como a mágica para Kleinman ou como a
ciência para o médico/cientista. Os substitutivos são as ilusões em contraste
com a realidade, como se a fantasia assumisse a vida real. No filme, esses
substitutivos podem ser imediatamente associadas ao clarividente, à mágica
e à igreja.
Freud também aponta que o sofrimento pode partir do próprio corpo,
do mundo externo e do relacionamento com outros homens. Todos esses
motivos de sofrimento foram encontrados no filme: A morte como
consequência inevitável da dissolução do corpo, a fome da mendiga como
consequência do mundo externo e por fim a ira dos grupos de homens que
acabam matando uns aos outros.
A partir deste paralelo entre Woody, Freud e Tuan, através do prisma
do escapismo, é possível sinalizar as metáforas utilizadas no filme que
evidenciam esta ideia de escape.
O personagem da morte, quando apresentado antropomorfizado em
forma de assassino, concretiza a ideia abstrata e imaterial de morte. Desta
forma, passa a ser possível para Woody desenvolver uma trama que permita
o escape da morte. A neblina e a sombra também serviram para aprofundar
 

simbolicamente o significado da morte, onde a neblina, que é de onde


primeiro aparece a morte/assassino, evidencia o quão turva, inesperada e
imprevisível ela é. A sombra é ao mesmo tempo um elemento de mistério, de
anonimato e também de perseguição silenciosa, cabível igualmente a todos
os seres humanos e, como a morte, inescapável.
A violência dos homens, exposta através das diversas facções,
ressalta a brutalidade da humanidade na sua relação com seus semelhantes,
evidenciando que o conflito faz parte da humanidade e das diferenças
culturais. Desta forma, mostra, com certa ironia, que o homem se une em
grupos para se proteger inicialmente da natureza, mas passa a ter que se
defender da própria humanidade o que transforma a ideia de escape para
segurança em apenas uma fantasia.
As instituições apresentadas no filme, representadas pela polícia, a
igreja e a ciência, carregam um valor simbólico que são cruciais para a
compreensão da relação entre a sociedade e o escapismo. Tuan argumenta
que o homem, ao se refugiar da natureza, escapa para uma estrutura própria
que visa a segurança e o bem-estar. Esta estrutura é a resposta do homem
para aquilo que o persegue, como afastamento de sua animalidade. Sendo
assim, a polícia visa manter a ordem, a igreja visa dar sentido para o que não
tem sentido e a ciência visa compreender e dominar a natureza. No caso do
filme, em relação a morte como afirmação da animalidade de todos, a polícia
criada para ordem se mostra ineficaz, a religião indiferente e a ciência
indefesa. Sendo assim, o escape da natureza se mostra frágil frente à morte
e a sociedade acaba sendo tão hostil que cabe ao Kleinman buscar outra
sociedade que seja capaz de mostrar uma alternativa mais eficaz à natureza.
Os adjetivos que descrevem Kleinman são metáforas que apontam o
que ele é e onde ele está nesta sociedade. Ao ser chamado de verme,
Kleinman não retruca e se reconhece como algo parecido. Ele mostra que
não se sente um membro da sociedade, que não pertence a nenhum grupo
de fato e que está abaixo de todos, nesta conjuntura. Portanto, ele ocupa o
lugar do excluído nessa sociedade na qual ele está inserido, mas não se
sente pertencente. Sendo assim, o escape para uma sociedade mais
adequada seria a única solução viável para seu bem-estar.
 

Os recursos cênicos apresentados em Neblina e Sombras, que


ajudam a construir a ideia de escape no filme, fazem parte de uma
aclimatação simbólica que dão suporte tanto a ideia de que Kleinman estava
em uma realidade opressora, quanto a que o circo era uma alternativa de
escape para o real.
A escolha de Woody Allen por um longa em preto e branco e com
baixo contraste serve como um recurso cênico para ilustrar que a civilização
pode ter edificado cidades, mas o escuro da noite e o turvo da neblina ainda
são imponente sobre os homens e que eles ainda são reféns da natureza. A
mistura entre o escuro e a neblina cria uma atmosfera de baixo contraste no
filme que fortalece a sensação de vulnerabilidade e incerteza. Os ambientes
de maior clareza e consequentemente maior contraste ocorrem em espaços
fechados, principalmente no prostíbulo, onde existe a maior liberdade e
clareza entre os personagens, inclusive para se pensar sobre a morte.
Portanto, em termos de escape, a rua é onde se nega a animalidade e se
busca prender a morte e o prostíbulo é onde se assume a animalidade e se
lida com a ideia de morte como inevitável.
A cidade cenográfica se desenvolve como uma forma de labirinto
escuro, tortuoso, rochoso, úmido, onde os personagens se perdem
constantemente. Essa construção cenográfica apresenta a civilização como
confusa e aparentemente inescapável. O que por um olhar pode aparecer
como um forte, também é prisão. E nela está preso Kleinman, o verme
asqueroso que todos desprezam. O escape dele é da cidade concreta, rígida
e complexa para a leveza da lona do circo, que é aparentemente mais
maleável.
De todos os truques de mágica que Woody poderia escolher para
concretizar o escape de Kleinman para a realidade circense, foi justamente
através do truque do espelho que ele realizou sua fuga. Não foi uma caixa,
não foi em um tanque de água, foi por um espelho com seu reflexo invertido
do mundo que ele vinha. O escape pelo espelho é a busca por uma realidade
diametralmente oposta. Aparentemente o espelho, no seu papel de oposição,
é o fantástico, porém o filme mostra que ele é só uma outra faceta do real.
Dentro dos recursos narrativos analisados, dois grandes aspectos
foram fundamentais para a elaboração deste trabalho, o primeiro foi a
 

construção da realidade fílmica da cidade e do circo e a outra foi o


desenvolvimento alegórico da história de Kleinman.
Embora essas narrativas se fundam, é importante assinalar como elas
são individualmente valiosas para a análise. A construção da realidade
fílmica da cidade e do circo foram fundamentais para que ambas pudessem
ser consideradas reais no sentido de peso na hora do escape. A cidade se
apresenta através de seus habitantes e suas funções. Vemos como as
relações são complexas e que a sociedade, como Freud indica, está sempre
beirando o caos. Pessoas sendo presas arbitrariamente, uma mulher
morrendo de fome, gente bebendo, gente traindo, gente matando... Todas
evidências de uma sociedade real, distante das utopias. O circo é mostrado
igualmente complexo através de diferentes relações tais como: de um casal
com planos para um filho, de questões de salário, de embriagues, da
administração do circo, da resposta da plateia... Essas são questões que são
ignoradas, quando se pensa em circo. Portanto, Woody focou em mostrar o
lado complexo da sobrevivência e da convivência por trás do espetáculo,
evidenciando que o circo não é uma fantasia e sim algo tão real quanto a
cidade, portanto, torna o escape de Kleinman como para o real, sendo assim,
um escape eficaz.
Por sua vez, a construção da história se utiliza dos aspectos de peso
da realidade, explicados no parágrafo acima, e destrincha a relação do
Kleinman em cada ambiente, com cada personagem evidenciando o quanto
aquela realidade que ele vivia era destrutiva. Ele passou por todos os
grandes símbolos da sociedade, numa espécie de via crucis para poder
chegar no circo, desprendido de sua sociedade, e se entregar para a outra
realidade que supostamente será menos hostil. Portanto, ao longo do filme
são dadas as razões para seu escape e é construído o lugar para onde ele
escapa, para termos a certeza de que o circo não é um conto de fadas, e que
é uma alternativa para a realidade sem deixar de ser real.
Através deste estudo foi possível compreender que o escapismo de
Woody Allen está além do entretenimento e da ilusão cinematográfica, se
mostrando entranhado no desenvolvimento dos personagens e da trama. Ele
trata do escapismo do início ao fim e acima de tudo, respeitando o peso do
real. Portanto, o escapismo em Neblina e Sombras se legitima quando
 

Kleinman, ao escolher trabalhar no circo descobre que o salário é baixo.


Sendo assim, o escape se completa quando acaba. Quando a realidade
volta. Em outras palavras, o escapar não é somente desprender-se da capa,
mas sim lembrar que vai fazer frio. Ou seja, é fugir para o circo, mas
continuar trabalhando. No caso de A rosa púrpura do Cairo é sair de dentro
do cinema e voltar para a vida de desempregada e no caso de Meia noite em
Paris é voltar ao tempo presente, se divorciar e buscar uma nova
companheira. Enfim, pode-se concluir que escapismo, independentemente de
querer fugir, é conseguir enfrentar a realidade, pois ela nos acompanha onde
quer que se esteja e é com ela que temos que lidar. Apenas quando se
encara o problema é que se alcança o escape. Ou seja, perde-se uma
realidade para entrar em outra. Não tem escape.
 

REFERÊNCIAS TEÓRICAS

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<http://www.psiqweb.med.br/>, revisto em 2005.

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RODRÍGUEZ, Vanessa Brasil C. A trajetória da Imagem cinematográfica.


Do simbólico ao sinistro. Revista Cógito (ISSN 1519-9479). Nº. 05,
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sob o ângulo da autoria. Revista e-com V.5 n.1 2012
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modos del relato en el cine de Hollywood. Valladolid: Ed. Castilla, 2007.  

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