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OPINIÃO

A Catalunha e os rasgos históricos


de Setembro de 1714
29 de Setembro, 2017

Luis Alberto Ferreira |


Trechos de uma crónica, recente, da jornalista e escritora espanhola Almudena
Grandes: “A memória tem que ver com o presente. O pacto constitucional de 1978 não
foi um milagre mas um salto mortal sem rede.

A quadratura do círculo, integrar a direita franquista e a esquerda retornada do exílio


num novo Estado – sem condenar a ditadura nem reivindicar a legalidade republicana
de 1931 – foi uma temeridade, não uma proeza. Sobre uma política pública de memória
encoberta repleta de mentiras e manipulações – que nunca deixarão de sê-lo por
muito boas que fossem as intenções que presumivelmente as inspiraram – levantou-se
o edifício que agora se desmorona”. Assim, a Espanha converteu-se numa colagem
dos “fachas” (fascistas), uma casa alheia para milhões de espanhóis que nunca terão
outra. A direita actua como se houvesse herdado este país de seus avôs, que para isso
ganharam a guerra, e a esquerda dá-lhe tacitamente razão aceitando sem replicar a
condição de realugada com direito a cozinha” (…). Sem o dizer, Almudena reporta-se,
também, ao bipartidismo crónico.
Uma vez mais, a prevalência do conhecimento e seus diagnósticos – fontes matriciais
da utilidade e indispensabilidade da História. Nietzche (“O Nascimento da Tragédia e
Acerca da Verdade e da Mentira”), magnifica esse princípio. A Espanha, onde vivi
quatro anos consecutivos sob a autoridade férrea do franquismo-fascismo (1955-1958),
não é explicável senão através de múltiplas incursões nas galerias do seu passado
remoto e recente. Naqueles anos da década de 1950 a Espanha languidesceu –
mordida por numerosas deserções e fugas de cérebros, um excelente colectivo de
intelectuais que se fixaram em França ou no México da época de Lázaro Cárdenas. O
país, subjugado por Franco e por “falangistas” acríticos, remanescia de uma Guerra
Civil até hoje tão mal contada quanto a da velha Castela e os engenhos pouco ou nada
ortodoxos da respectiva monarquia.
Neste processo se insere a muito melindrosa questão da Catalunha, agora reavivada
pela insólita novela de um referendo marcado para o próximo dia 1 de Outubro. Em
Barcelona, durante o franquismo fluiu sem cessar nos bastidores da Universidade a
narrativa das torturas e múltiplas represálias sofridas por professores, jornalistas e
outros profissionais que reincidiam no “crime” de escrever, falar ou cantar em catalão.
A Catalunha, como as Astúrias, como o País Valenciano, como o País Vasco, eram
“incompatíveis” com o franquismo e com o centralismo emanante de vários fluxos
atribuladores: a Coroa de Castela e a Inquisição, a Guerra Civil e o truncamento da
Segunda República, o franquismo e a tortuosidade da “Transición” espelhada no pacto
constitucional de 1978. A jornalista Almudena Grandes não faz mais do que chamar à
prestação de contas históricas o Partido Popular (PP), construído durante a “Transición
democrática” por elementos oriundos do franquismo, e o Partido Socialista Operário
Espanhol (PSOE), decapitador dos ideais republicano-socialistas dos seus fundadores.
É, contudo, noutros episódios e fenómenos geopolíticos da “confirmação” do Estado
espanhol que devemos procurar, hoje, os ditames de quem defende a realização do
referendo na Catalunha. (Um debate que não deve ser negligenciado por nenhuma das
partes). É verdade que o processo se arrasta desde há séculos. E que, no presente,
Mariano Rajoy não tem assumido, face ao mesmo, uma posição que alguém possa
louvar, pelo contrário. Tão pouco a perigosa imprensa de Madrid: nestes dois últimos
anos, o diário “El País” terá publicado, já, mais 200 (duzentos) titulares alusivos à
Catalunha, algo semelhante à campanha falaciosa e demolidora contra a Venezuela –
notícias, ensaios, artigos “de opinião” sem cessar e sempre escamoteando razões
históricas de vastíssimo alcance moral e cultural. Usar agora na Catalunha a “Guardia
Civil” criada por Franco para reprimir, ameaçar e prender pessoas – no intento de
obstar a realização da consulta popular – remete-nos não só para os 150 mil mortos do
fascismo franquista jamais condenado, até hoje, pelas maiorias parlamentares ou pelos
governos de José María Aznar e Mariano Rajoy. Remete-nos, também, para as
circunstâncias históricas de Portugal, da França, da Inglaterra, da Itália e da Holanda,
quando em 1714 a Catalunha insistiu na sua reivindicação de um estatuto próprio.
Dispensável revisitarmos a época de Isabel e Fernando, os Reis Católicos. O nervo
central é a vaga de caprichos e luxúrias das “famílias” ou “casas” da realeza da França,
Espanha, Áustria e Inglaterra. Um imperialismo disputal que apenas cedia à lei do (“no
momento”) mais forte. Enquanto as “casas reais” europeias ora se digladiavam, ora
inventavam entre si laços matrimoniais, na Península Ibérica desenvolviam-se outras
culturas e ganhavam raízes outras identidades nacionais e costumes próprios.
Justamente o caso da Catalunha, que em termos de “realeza” apenas esteve mais
familiarizada com a coroa do vizinho reino de Aragão. A Catalunha pôde elaborar, até,
um idioma próprio.
No século XVIII, a nação catalã (por isso o socialista Pedro Sánchez argumenta, para
amaciar causas, com a factualidade de “uma Espanha plurinacional”...) foi chamada
aos campos de batalha para enfrentar os exércitos franceses protegentes dos “direitos”
de Felipe V, rei de Espanha, bisneto de Felipe IV, mas nascido em Versalhes. Jogava-
se, na época, a complexa partida das hegemonias entre as “famílias” ou “casas reais”:
a de Áustria e a de Bourbon, esta última oriunda do centro de França. Já antes o “Rei
Planeta” (Felipe IV), havia sido rei de Espanha, de Portugal e dos Algarves, de
Nápoles, da Sicília e da Sardenha, e duque de Milão! O que parece ter sido uma
grande paródia iria afinal suscitar conflitos seculares... na Península Ibérica.
Na Primavera de 1714, o marechal francês James Fitz-James, duque de Berwick,
invadiu a Catalunha e sitiou Barcelona. Um serviço de guerra oferecido pela coroa de
França a Felipe V. Os catalães, dentro dos seus muros, resistiram. Contra a
humilhação: as instituições tradicionais da Catalunha seriam suprimidas e relevadas
por “leis centralistas de inspiração francesa”. Isto, enquanto Felipe V de Espanha ouvia,
da coroa de Inglaterra, a seguinte justificação para o facto de Londres ter recusado
participar no assalto a Barcelona: “Não vamos zangar-nos por causa dessa bagatela
que é a Catalunha”. Ao derrube, pela violência, também, da Primeira e da Segunda
Repúblicas de Espanha, que teriam reaberto as portas da História profunda, somar-se-
iam a Guerra Civil e o ambiente de terror em que Franco procedeu à reinstalação da
monarquia, até 1931 representada por Afonso XIII.
Não é ociosa, pois, a alusão central da jornalista e escritora Almudena Grandes aos
anos de 1931, 1939 e 1978. Franco havia morrido em 1975 e 1978 foi uma
oportunidade perdida em desfavor da geografia memorial da Península Ibérica. Ao
passado se devem muitas das tempestades que varrem, hoje, a Europa e o mundo.

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