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RESUMO
No início do século XX, Hans Kelsen apresenta, na sua obra Teoria Pura do Direito,
uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter alcançado,
no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com esses termos que
o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida. Para alcançar tais
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objetivos, Kelsen propõe uma depuração do objeto da ciência jurídica, como medida,
inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina jurídica, que, segundo ele,
vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos, políticos, psicológicos, filosóficos
etc.[1]
Ocorre que, atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser diferente o
projeto kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos
epistemológicos de neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente
científico os juízos de valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas
científicas. O plano da teoria Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a
ciência jurídica.[2] Creio, por isso, que essa é a grande importância de seu pensamento,
isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um novo momento de
transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as bases desse
paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto, iremos
analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e direito,
procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a caracteriza,
vislumbrar as limitações dessa formulação.
A relação entre direito e ciência na Teoria Pura do Direito de Kelsen começa pela
definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro lugar
pelas normas jurídicas e mediatamente pelo conteúdo dessas normas, ou seja, pela
conduta humana regulada por estas. Assim, enquanto se estudam as normas
reguladoras da conduta, o Direito como um sistema de normas em vigor, fica-se no
campo de uma teoria estática do Direito. Por outro lado, se o objeto do estudo
desloca-se para a conduta humana regulada (atos de produção, aplicação ou
observância determinados por normas jurídicas), o processo jurídico em seu
movimento de criação e aplicação, realiza-se o que ele chama de teoria dinâmica do
Direito. Esse dualismo, entretanto, é apenas aparente, já que a dinâmica está
subordinada à estática por uma relação de validade formal, pois os atos da conduta
humana que desencadeiam o movimento do Direito são eles próprios conteúdo de
normas jurídicas, e só nesta medida é que interessam para o estudo da ciência jurídica.
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Segundo Kelsen, a ciência jurídica representa uma interpretação normativa dos fatos:
"Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que
hão-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente,
descreve as relações constituídas, através dessas normas, entre os fatos por elas
determinados"[4]. A diferença conceitual entre proposições jurídicas da ciência, que
são os juízos hipotéticos que enunciam que, de acordo com o ordenamento, sob certas
circunstâncias ali previstas, devem ocorrer certas conseqüências também previstas por
este ordenamento e normas jurídicas, que não são juízos acerca de uma realidade
externa, mas sim mandamentos que encerram comandos, permissões e atribuições de
poder ou de competência é então estabelecida pelas funções: descritiva, da ciência e
prescritiva, do Direito. É que, para Kelsen, a ciência não produz direito, não possui
essa função criadora, pois limitada ao papel de conhecimento do direito produzido
pela autoridade jurídica, isto é, por aquele a quem o ordenamento atribui capacidade
ou competência para produzir normas jurídicas, na relação entre estática e dinâmica
do Direito, que aprendemos como a teoria dogmática das fontes do Direito.
Essa distinção entre ciência jurídica e Direito, Kelsen a situa no plano da validade
formal, afastando do campo do Direito as questões relativas à veracidade ou falsidade
de seus imperativos de conduta:
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Esse jogo de espelhos entre o Direito (objeto) e a ciência jurídica (sujeito), que resulta
da formulação positivista de Kelsen, é de fato fonte de muita confusão. Há momentos,
durante a leitura, em que não se sabe bem de que lado está o quê, principalmente
quando Kelsen recorre à analogia com as ciências naturais para justificar as funções
que reputa idênticas àquelas da ciência jurídica, ou seja, a descrição de seus
respectivos objetos de conhecimento: os fatos da ordem natural (ser) e as normas
jurídicas (dever-ser): nesse momento a norma jurídica equipara-se a um objeto
reificado, uma coisa a ser descrita, um dever-ser-que-é válido formalmente -
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ressalte-se. Mas aqui reside a primeira confusão, pois para ele, embora sejam
realidades ontologicamente diversas, prestam-se ao mesmo tipo de apreensão
cognitiva, isto é, podem ser descritas pelo conhecimento científico, desde que,
entretanto, sejam aplicados princípios explicativos diferentes: causalidade e
imputação. Portanto, são ciências diferentes, peculiares, mas comungam da mesma
metodologia positivista. Diz Kelsen:
"Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não
o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação
descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do Direito,
e não o objeto a descrever, isto é o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem que quando
tem caráter geral seja designada como ‘lei’ - não é uma lei, não é algo que, por
qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como ‘lei’. Ela não
é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreve uma ligação de fatos, uma conexão
funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se
prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que é descrita
pela proposição jurídica, como lei jurídica."[9]
A meu ver, o problema dessa epistemologia positivista, que, num esforço de abstração,
produz a sua dicotomia central entre o que é Direito (norma) e o que é Ciência
(proposição ou lei jurídica), é não considerar preliminarmente que, diferentemente da
descrição da ordem natural, que se faz em linguagem matemática, a descrição jurídica,
embora aspire ao rigor matemático e sistêmico, se faz na mesma linguagem natural
(comum) e, portanto, imprecisa com a qual se produz o seu objeto, as normas jurídicas
(gerais e individuais, conforme a competência ou a capacidade do agente produtor).
Além disso, é mais ou menos certo que, na descrição da natureza, a causalidade ocorra
indepentemente do cientista, mas na "descrição" (compreensão) da normatividade
válida formalmente, o jurista, em razão da necessária interpretação que realiza, não
raramente recompõe a imputação.
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Ocorre que, havendo coincidência do veículo lingüístico pelo qual se manifestam tanto
a ciência quanto o seu objeto - a norma - já de saída torna-se muito difícil acreditar
que ambos irão se comportar sempre de maneira tão exemplar como, por exemplo, o
físico Kepler e a órbita do planeta Marte: o objeto ali, existindo (o Direito como
dever-ser, ressalte-se) e o sujeito aqui, descrevendo. Não parece suficiente, portanto,
para sustentar-se essa cisão perfeita, no terreno jurídico, o recurso ao princípio da
imputabilidade, pois sendo diferente a natureza do objeto jurídico - prescrição
normativa, dever-ser - a contaminação de ambos - sujeito e objeto - parece ainda mais
inevitável, pelo menos diante dos chamados hard cases.
Visto de uma outra forma, portanto, mesmo no marco da teoria pura, o papel da
ciência jurídica até então passivo e descritivo revela-se muito mais justificador do que
se imagina. É que se as proposições da ciência estão sujeitas à verificação de sua
verdade ou falsidade, quando afirmam a validade ou invalidade de uma norma, ainda
que esse exame se pretenda estritamente formal, a resposta daí resultante poderá ser
aplicada ainda que indiretamente, à própria norma. A esse respeito discorre o chileno
Oscar Sarlo:
Essa observação parece indicar que mesmo toda a preocupação com a pureza não livra
Kelsen do envolvimento de sua concepção de ciência com o mundo essencialmente
político da produção de normas, ainda que ele ressalve que a autoridade criadora, seja
o juiz ou o legislador, deve conhecer o Direito, valendo-se, pois, do trabalho do jurista
científico, apenas como uma etapa preliminar de seu processo criativo, ou melhor,
decisório.
As objeções mais fortes ao relativismo axiológico de Kelsen, que acabou por reduzir a
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quer Kelsen - é algo, de saída, impuro, contaminado pela interpretação, que é um tipo
de pensamento que deve, segundo Viehweg, mover-se dentro do estilo da tópica. Parte
daí para sustentar que a jurisprudência (ou o que chamamos de ciência jurídica) é uma
disciplina essencialmente problemática, sendo que suas partes integrantes (conceitos e
proposições) "têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só podem ser
compreendidos a partir dele."[15]
"A estrutura total da jurisprudência, como dissemos mais acima (cf. I, 1), só pode ser
determinada a partir do problema. (...) Ao tomar posição de uma determinada
maneira frente ao problema fundamental (por exemplo, a autonomia privada parece
justa), origina-se um conjunto de questões que se pode determinar com bastante
precisão e que baliza o âmbito de uma disciplina especial, por exemplo, o do direito
privado. Toda a organização de uma disciplina jurídica se faz partindo do problema.
Quando se diferenciam certas séries de questões do modo indicado, agrupam-se ao
redor delas as tentativas de resposta do respectivo direito positivo. Naturalmente,
estes quadros de questões não devem ser sobreestimados em sua constância. Sua
formação depende de alguns pressupostos de compreensão que não são imutáveis. O
único efetivamente permanente é a aporia fundamental. Porém, isto não impede que,
com frequência, uma situação de longa duração permita formular certos complexos de
perguntas permanentes. Em suas linhas fundamentais e em suas conexões, têm
geralmente um alto grau de fixidez, do mesmo modo que as soluções. Cabe à
Sociologia do Direito a tarefa de investigar com mais detalhe as relações que aqui
existem, ainda que sem cair num sociologismo todo-poderoso e unilateral."[18]
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decisão do legislador, que também autorizado pela normatividade, cria regras gerais.
Ambos participam da dinâmica do Direito, havendo entre eles apenas uma diferença
de grau. Mas aí, Kelsen é forçado a reconhecer que não é possível para a ciência
jurídica estabelecer qualquer tipo de juízo preventivo acerca das decisões judiciais,
pois o juiz assim como o legislador cria direito novo, condicionados apenas
formalmente por uma moldura normativa.[19] E aqui o paradoxo: como sustentar a
idéia de um sistema jurídico unitário e escalonado de normas em que as decisões que
realimentam esse sistema são assim incontroláveis e, portanto, em probabilidade,
contraditórias? Sabendo de antemão que, no processo criativo (ou dinâmico, como
prefere Kelsen) do Direito, a contaminação fático-axiológica típica do procedimento
hermenêutico resulta da relação constante entre autoridades competentes e cientistas,
parece mesmo vã a tentativa purificadora.
"(...) obrigado, pela proibição do non liquet a decidir, o julgador encontrará sempre
uma qualquer solução, mesmo havendo lacuna, conceito indeterminado, contradição
de princípios, ou injustiça grave. Munido, porém, de instrumentação meramente
formal ou positiva, o julgador terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão.
A experiência, a sensibilidade, certos elementos extra-positivos e, no limite, o arbítrio
do subjectivo, serão utilizados. Dos múltiplos inconvenientes daqui emergentes, dois
sobressaem: por um lado, a fundamentação que se apresente será aparente: as
verdadeiras razões da decisão, estranhas aos níveis juspositivos da linguagem, não
transparecem na decisão, inviabilizando o seu controlo; por outro, o verdadeiro e
último processo de realização do Direito escapa à Ciência dos juristas: a decisão
concreta é fruto, afinal, não da Ciência do Direito, mas de factores desconhecidos para
ela, comprometendo, com gravidade, a previsibilidade, a seriedade e a própria justiça
de decisão."[21]
Mais uma vez, recorro ao texto dos autores aqui mencionados, para concluir, com
Perelman que:
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Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas
as suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que
não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos
dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o
papel da argumentação. (...)
Mas, seria possível, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma
argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões, nossos
valores e normas? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência do direito e
uma teoria pura do direito, considerar como juridicamente arbitrário tudo o que só
pode ser justificado mediante semelhante argumentação?[22]
Não obstante, esse novo viés hermenêutico reúne, a meu ver, as potencialidades para a
reconstrução das bases epistemológicas da ciência jurídica, principalmente porque a
partir dele será possível trazer para a luz aquilo que o brilho da normatividade pura
tinha ofuscado: os dados da experiência histórica, analisados sociologicamente,
relevantes para o jurista, na medida em que resultem na formulação de finalidades
éticas, que devam realizar-se normativamente, no contexto de discursos de poder que,
por sua vez, não se furtem a justificar de forma racional suas decisões.
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NOTAS
2. Segundo Recasen Siches, "El punto de vista lógico-formal del método jurídico de
Kelsen no pretende llegar a la absorción de todos los estudios sobre el Derecho. El
proprio Kelsen reconoce que la posición rigorosamente normativa de su método
jurídico, es unilateral y parcial, y que, por lo tanto, no puede abarcar la totalidad de los
ingredientes del fenómeno jurídico." SICHES, Luis Recasens. Panorama del
Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Mexico: Editoria Porrua, 1963, pp. 149/150.
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10.SARLO, Oscar Luis. Kelsen y Dworkin: Del Concepto a La Concepcion del Derecho
in Revista de Ciencias Sociales. Valparaiso, nº 38. Chile: Universidad de Valparaiso,
Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, 1993, pp.364/365.
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Autor
NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.
Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/2644>. Acesso em: 10 jun. 2014.
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