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Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans


Kelsen
Mauro Almeida Noleto

Publicado em 02/2002. Elaborado em 05/2001.

RESUMO

A ousadia da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, desqualificando a importância


do jusnaturalismo como teoria válida para o Direito e pretendendo dar caráter
definitivo ao monismo jurídico estatal, fez dele o alvo preferido das teorias críticas no
Direito, inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim purificado
e com o consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um Direito
atrelado a critérios de legitimidade não apenas formais. Ocorre que, atuando no marco
do paradigma positivista, não poderia ser diferente o projeto kelseneano: uma ciência
das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de neutralidade e
objetividade. Era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de valor, aliás como
já o haviam feito as demais disciplinas científicas. O plano da Teoria Pura era, assim,
atingir a autonomia disciplinar para a ciência jurídica. Essa é a grande importância de
seu pensamento, isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um
novo momento de transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as
bases desse paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto,
iremos analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e
direito, procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a
caracteriza, vislumbrar, ao final, as limitações dessa formulação, com apoio do que
denominei aqui de o viés hermenêutico.

DIREITO E CIÊNCIA NA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS


KELSEN

Uma Leitura Crítica

No início do século XX, Hans Kelsen apresenta, na sua obra Teoria Pura do Direito,
uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter alcançado,
no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com esses termos que
o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida. Para alcançar tais

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objetivos, Kelsen propõe uma depuração do objeto da ciência jurídica, como medida,
inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina jurídica, que, segundo ele,
vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos, políticos, psicológicos, filosóficos
etc.[1]

A ousadia do pensamento kelseneano, desqualificando a importância do


jusnaturalismo como teoria válida para o direito e pretendendo dar caráter definitivo
ao monismo jurídico estatal, fez de Kelsen o alvo preferido das teorias críticas no
Direito, inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim purificado
e com o consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um direito
atrelado a critérios de legitimidade não apenas formais.

Ocorre que, atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser diferente o
projeto kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos
epistemológicos de neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente
científico os juízos de valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas
científicas. O plano da teoria Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a
ciência jurídica.[2] Creio, por isso, que essa é a grande importância de seu pensamento,
isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um novo momento de
transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as bases desse
paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto, iremos
analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e direito,
procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a caracteriza,
vislumbrar as limitações dessa formulação.

NORMAS E PROPOSIÇÕES JURÍDICAS

A relação entre direito e ciência na Teoria Pura do Direito de Kelsen começa pela
definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro lugar
pelas normas jurídicas e mediatamente pelo conteúdo dessas normas, ou seja, pela
conduta humana regulada por estas. Assim, enquanto se estudam as normas
reguladoras da conduta, o Direito como um sistema de normas em vigor, fica-se no
campo de uma teoria estática do Direito. Por outro lado, se o objeto do estudo
desloca-se para a conduta humana regulada (atos de produção, aplicação ou
observância determinados por normas jurídicas), o processo jurídico em seu
movimento de criação e aplicação, realiza-se o que ele chama de teoria dinâmica do
Direito. Esse dualismo, entretanto, é apenas aparente, já que a dinâmica está
subordinada à estática por uma relação de validade formal, pois os atos da conduta
humana que desencadeiam o movimento do Direito são eles próprios conteúdo de
normas jurídicas, e só nesta medida é que interessam para o estudo da ciência jurídica.

Kelsen apresenta o ordenamento jurídico positivo - conjunto das normas válidas -


como uma pirâmide de normas, onde se articulam o aspecto estático e o aspecto
dinâmico do Direito. A noção de validade formal é o elemento que integra esses dois
aspectos, pois, nesse arranjo, cada norma retira de uma outra que lhe é superior, na

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escala hierárquica do ordenamento jurídico, a sua existência e validade. Assim, por


exemplo, no momento em que é criada ou aplicada (dinâmica), para que seja
considerada válida a norma, é preciso verificar se as condições de sua produção ou
aplicação (capacidade e/ou competência dos agentes, além do procedimento de
produção e aplicação) estão previamente contidos nos comandos de outras normas já
produzidas e integrantes do ordenamento jurídico (estática). O ponto final dessa
cadeia de validade é o que Kelsen chama de norma fundamental - pressuposto lógico
do sistema normativo. As considerações acerca desse tema demandariam um outro
esforço reflexivo que escapa aos objetivos do presente artigo.[3]

Segundo Kelsen, a ciência jurídica representa uma interpretação normativa dos fatos:
"Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que
hão-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente,
descreve as relações constituídas, através dessas normas, entre os fatos por elas
determinados"[4]. A diferença conceitual entre proposições jurídicas da ciência, que
são os juízos hipotéticos que enunciam que, de acordo com o ordenamento, sob certas
circunstâncias ali previstas, devem ocorrer certas conseqüências também previstas por
este ordenamento e normas jurídicas, que não são juízos acerca de uma realidade
externa, mas sim mandamentos que encerram comandos, permissões e atribuições de
poder ou de competência é então estabelecida pelas funções: descritiva, da ciência e
prescritiva, do Direito. É que, para Kelsen, a ciência não produz direito, não possui
essa função criadora, pois limitada ao papel de conhecimento do direito produzido
pela autoridade jurídica, isto é, por aquele a quem o ordenamento atribui capacidade
ou competência para produzir normas jurídicas, na relação entre estática e dinâmica
do Direito, que aprendemos como a teoria dogmática das fontes do Direito.

Essa distinção entre ciência jurídica e Direito, Kelsen a situa no plano da validade
formal, afastando do campo do Direito as questões relativas à veracidade ou falsidade
de seus imperativos de conduta:

"A distinção revela-se no fato de que as proposições normativas formuladas pela


ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer
deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de
dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica - e que atribuem deveres e direitos
aos sujeitos jurídicos - não são verídicas ou inverídicas, mas válidas ou inválidas, tal
como também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, quer inverídicos, mas
apenas existem ou não existem, somente as afirmações sobre esses fatos podendo ser
verídicas ou inverídicas." [5]

Ao realizar esse deslocamento, Kelsen atrai para as proposições da ciência jurídica a


aplicação dos princípios lógicos (da não-contradição, p. ex.), uma vez que não sendo as
normas jurídicas passíveis de comprovação de sua verdade ou falsidade, não se
poderia colocar diretamente relacionado a elas o problema do conflito ontológico entre
prescrições. É a ciência que se encarrega de resolver os problemas, o que lhe garante
dignidade ou utilidade prática, caso contrário, poder-se-ia atribuir-lhe um caráter
supérfluo de mera repetidora daqueles preceitos normativos.

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CAUSALIDADE (SER) E IMPUTAÇÃO (DEVER-SER)

Na modernidade, a ciência, impulsionada pelo racionalismo e pelo empirismo,


pretendeu ter emancipado o conhecimento "verdadeiro" acerca dos fatos naturais e
sociais das amarras e preconceitos místicos que caracterizavam o saber antigo. Para
tanto, invertendo a ordem do conhecimento estabelecido, que buscava a solução para
os problemas nas verdades absolutas e nos argumentos de autoridade, voltou sua
atenção para os próprios fenômenos, no sentido de identificar e descrever, em meio ao
aparente caos dos fatos, as regularidades, isto é, a verdadeira ordem das coisas. Sua
principal arma metodológica foi a aplicação do método indutivo para a elaboração de
proposições (leis e teorias) científicas fundadas no pressuposto de que a natureza
possui uma ordem que pode ser descrita em linguagem matemática. O princípio
explicativo dessa ordem natural passa a ser o princípio da causalidade, que se presta
apenas à descrição isenta, imparcial, de como as coisas realmente são, de como, sob
certas circunstâncias, determinado fato como causa será responsável
(inexoravelmente, para uns, ou estatisticamente, para outros) pela ocorrência de um
outro determinado fato, como seu efeito. Em tal concepção, não há espaço para
perguntas do tipo teleológicas, finalísticas. Essa revolução no conhecimento,
promovida pelo paradigma científico, foi assim explicada por Rubem Alves, no seu
Filosofia da Ciência, que me permito transcrever, pelo refinamento crítico e
implicitamente irônico de seu texto:

"Explicar alguma coisa em função da pergunta para quê? é compreendê-la em


função de seus propósitos, objetivos, finalidades. (...) Se o que fazemos se
explica teleologicamente, não se deverá concluir que a grande obra da
divindade, o universo, deve se explicar em função de seu propósito? É claro.
Se se admite que a natureza é um produto da ação criadora de Deus, a
expressão mais alta da sabedoria é ter consciências dos propósitos do Criador.
E foi assim que as perguntas teleológicas foram feitas à natureza e as
respostas obtidas serviram para dar sentido à vida das pessoas. Só havia um
pequeno problema com elas: belas esteticamente, fascinantes
psicologicamente, mas irremediavelmente à mercê das idiossincrasias da
subjetividade. Elas não podiam ser testadas e corrigidas.

‘O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos’ (Galileu, Il


Saggiatore). De fato, momento crucial na história da ciência. Mais do que
isso: declaração subversiva, digna da inquisição. Que afirmava Galileu? Que o
universo não tem um sentido humano. Por meio dessa afirmação, ele arranca
a natureza do quadro quente e amigo marcado pelo amor e pela sabedoria
divina, e a coloca num mundo frio em que dominam as relações entre os
números. No mundo dos números não se pode mais fazer a pergunta acerca
da finalidade do universo."[6]

De volta à Teoria Pura, segundo Kelsen, o que se denomina princípio da imputação


(responsabilização) tem, nas proposições jurídicas, função análoga à do princípio da
causalidade em relação às leis naturais. Tal qual uma lei natural, também uma

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proposição da ciência jurídica liga entre si dois elementos: se "A" é, "B" é


(causalidade); se "A" é, "B" deve ser (imputação). A diferença consiste, no entanto, no
fato de que, na proposição da ciência jurídica, a ligação entre os elementos fáticos
(conduta como pressuposto e conseqüência punitiva, permissiva ou autorizativa, como
resultado) é produzida por uma norma jurídica, isto é, por um ato de vontade
autorizado.[7] A norma jurídica, assim como qualquer norma, não tem a finalidade de
descrever os fatos sociais, no caso, as condutas humanas, pelo contrário, ela
representa uma interferência na ordem natural ou social desses fatos, qualificando
imperativamente as condutas a que se refere (atribuindo responsabilidades,
conferindo poderes, ou interditando condutas). Mesmo assim, tais relações jurídicas,
uma vez constituídas por essa imperatividade formalmente autorizada, devem ser
apenas descritas pelo cientista, na medida em que compõe uma relação de
imputabilidade.[8] O conteúdo das normas (fatos e valores) deve permanecer intocado.

Criticam-se, assim, por inviabilidade científica, as proposições de uma teoria


metafísica do Direito e afirma também o autor que, limitada às descrições normativas,
à ciência jurídica também não cabe investigar a eficácia da norma - saber se esta é ou
não vivenciada como regra social -, pois aí estaria forçada a emitir juízos da ordem do
ser, juízos sobre a realidade. Assim, segundo ele, não cabe à ciência jurídica dizer se
uma norma é ou não justa, ou se é ou não obedecida, mas sim se é válida formalmente,
se tem vigência.

Kelsen ressalva, ou alerta, que embora se utilize da expressão dever-ser, o sentido


dessa expressão traz na proposição da ciência jurídica um caráter meramente
descritivo, ainda que o objeto dessa descrição - a norma jurídica - não seja um fato da
ordem do ser, mas também um dever-ser. O jurista científico - afirma - apenas
descreve o Direito; assim como o físico em relação ao seu objeto, ele apenas afirma a
ligação entre dois fatos. E mesmo considerando que o objeto da ciência jurídica seja
constituído pelas normas e, portanto, pelos valores ali inscritos, as proposições
científicas, assim como as leis naturais - enfatiza Kelsen - são uma descrição alheia a
valores.

Ainda raciocinando analogicamente, Kelsen compara as leis naturais, elaboradas pela


Física, enquanto descrição da ordem natural (ser), com as proposições descritivas da
ordem jurídica, produzidas pela ciência jurídica, que ele então denomina leis jurídicas,
que não são propriamente as normas jurídica (dever-ser), mas apenas a sua descrição
científica.

Esse jogo de espelhos entre o Direito (objeto) e a ciência jurídica (sujeito), que resulta
da formulação positivista de Kelsen, é de fato fonte de muita confusão. Há momentos,
durante a leitura, em que não se sabe bem de que lado está o quê, principalmente
quando Kelsen recorre à analogia com as ciências naturais para justificar as funções
que reputa idênticas àquelas da ciência jurídica, ou seja, a descrição de seus
respectivos objetos de conhecimento: os fatos da ordem natural (ser) e as normas
jurídicas (dever-ser): nesse momento a norma jurídica equipara-se a um objeto
reificado, uma coisa a ser descrita, um dever-ser-que-é válido formalmente -

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ressalte-se. Mas aqui reside a primeira confusão, pois para ele, embora sejam
realidades ontologicamente diversas, prestam-se ao mesmo tipo de apreensão
cognitiva, isto é, podem ser descritas pelo conhecimento científico, desde que,
entretanto, sejam aplicados princípios explicativos diferentes: causalidade e
imputação. Portanto, são ciências diferentes, peculiares, mas comungam da mesma
metodologia positivista. Diz Kelsen:

"Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não
o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação
descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do Direito,
e não o objeto a descrever, isto é o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem que quando
tem caráter geral seja designada como ‘lei’ - não é uma lei, não é algo que, por
qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como ‘lei’. Ela não
é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreve uma ligação de fatos, uma conexão
funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se
prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que é descrita
pela proposição jurídica, como lei jurídica."[9]

A meu ver, o problema dessa epistemologia positivista, que, num esforço de abstração,
produz a sua dicotomia central entre o que é Direito (norma) e o que é Ciência
(proposição ou lei jurídica), é não considerar preliminarmente que, diferentemente da
descrição da ordem natural, que se faz em linguagem matemática, a descrição jurídica,
embora aspire ao rigor matemático e sistêmico, se faz na mesma linguagem natural
(comum) e, portanto, imprecisa com a qual se produz o seu objeto, as normas jurídicas
(gerais e individuais, conforme a competência ou a capacidade do agente produtor).
Além disso, é mais ou menos certo que, na descrição da natureza, a causalidade ocorra
indepentemente do cientista, mas na "descrição" (compreensão) da normatividade
válida formalmente, o jurista, em razão da necessária interpretação que realiza, não
raramente recompõe a imputação.

Na verdade, essa aproximação epistemológica com as ciências naturais, construídas


dentro do paradigma positivista da separação total entre sujeito e objeto, é bastante
conveniente aos pressupostos da Teoria Pura, não obstante me parece ser esse o ponto
mais contraditório desse arranjo. É conveniente porque ao estabelecer a equivalência
entre os enunciados das ciências naturais (leis naturais causais) e as proposições tidas
por meramente descritivas da ciência jurídica (leis jurídicas imputativas), Kelsen
pretende ter resolvido o problema das valorações éticas do ordenamento, afirmando
serem estas questões metajurídicas. Visto assim, o Direito, o ordenamento jurídico,
analogicamente, seria como o sistema planetário, pronto para ser descrito
objetivamente, desde que o cientista saiba manejar um outro princípio explicativo
diferente do princípio da causalidade, o princípio da imputabilidade. Mas não estaria
então a Teoria Pura correndo o risco de desaguar, nessa transposição do mundo
natural para o mundo jurídico, ainda que por caminhos opostos, no mesmo universo
abstrato dos jusnaturalistas e sua representação idealizada - pois referida a valores
universais e imutáveis - da ordem social?

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Ocorre que, havendo coincidência do veículo lingüístico pelo qual se manifestam tanto
a ciência quanto o seu objeto - a norma - já de saída torna-se muito difícil acreditar
que ambos irão se comportar sempre de maneira tão exemplar como, por exemplo, o
físico Kepler e a órbita do planeta Marte: o objeto ali, existindo (o Direito como
dever-ser, ressalte-se) e o sujeito aqui, descrevendo. Não parece suficiente, portanto,
para sustentar-se essa cisão perfeita, no terreno jurídico, o recurso ao princípio da
imputabilidade, pois sendo diferente a natureza do objeto jurídico - prescrição
normativa, dever-ser - a contaminação de ambos - sujeito e objeto - parece ainda mais
inevitável, pelo menos diante dos chamados hard cases.

Um relevante desdobramento da formulação kelseneana é assim procurar desviar do


Direito para a sua ciência as questões - tão caras aos cientistas naturais - relativas ao
controle de seus postulados, a partir de critérios de verdade e de falsidade, de
identidade e de não-contradição. E aqui transparece mais uma vez a crença do autor
na pureza de seu objeto, a norma jurídica formalmente válida, nada podendo ser dito
acerca de sua verdade ou falsidade - que no direito seria a compatibilidade dessa
normatividade com critérios valorativos -, pois este é exatamente o ônus suportado
pela ciência jurídica, eu diria, esta é, afinal, sua dignidade.

Visto de uma outra forma, portanto, mesmo no marco da teoria pura, o papel da
ciência jurídica até então passivo e descritivo revela-se muito mais justificador do que
se imagina. É que se as proposições da ciência estão sujeitas à verificação de sua
verdade ou falsidade, quando afirmam a validade ou invalidade de uma norma, ainda
que esse exame se pretenda estritamente formal, a resposta daí resultante poderá ser
aplicada ainda que indiretamente, à própria norma. A esse respeito discorre o chileno
Oscar Sarlo:

"...de tal manera, la ciencia jurídica será el conjunto sistemático de proposiciones


acerca de normas, esto es, proposiciones que afirmam la validez de las normas que
integran un sistema jurídico, y por tanto son susceptibles de los valores de
verdad/fasedad. Mediante la crucial distinción - antes no tenida en cuenta por los
juristas - entre discurso normativo de la autoridad y el discurso descriptivo de los
juristas, Kelsen logra aplicar el control racional sobre la ciencia jurídica, e
idirectamente, a los propios enunciados normativos"[10]

Essa observação parece indicar que mesmo toda a preocupação com a pureza não livra
Kelsen do envolvimento de sua concepção de ciência com o mundo essencialmente
político da produção de normas, ainda que ele ressalve que a autoridade criadora, seja
o juiz ou o legislador, deve conhecer o Direito, valendo-se, pois, do trabalho do jurista
científico, apenas como uma etapa preliminar de seu processo criativo, ou melhor,
decisório.

O VIÉS HERMENÊUTICO: CONTAMINANDO O MÉTODO JURÍDICO.

As objeções mais fortes ao relativismo axiológico de Kelsen, que acabou por reduzir a

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ciência jurídica aos estreitos limites do formalismo normativista, vêm sendo


elaboradas no bojo do chamado movimento de renascimento da filosofia jurídica,
ocorrido após a trágica experiência histórica do Estado-assassino de Hitler.[11] Além do
ressurgimento das questões axiológicas, trazidas pela urgência civilizatória do novo
pacto ético celebrado em torno da defesa intransigente dos direitos humanos, novas
abordagens epistemológicas acerca do direito e de sua ciência, com um visível acento
na hermenêutica e na argumentação jurídica, vão conduzir a um cenário hoje
denominado de pós-positivismo. Sobre essa virada, nos fala Margarida Maria
Lacombe Camargo:

"(...) Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividade e da segurança no


campo do direito, propondo a construção de uma teoria que excluísse
quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Como vimos, a idéia
era a de que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a operações lógico-
dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado
capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.

No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora


insurgem-se em opor severas críticas ao positivismo kelseneano, apontando para a
falibilidade do modelo lógico-dedutivo. Acredita-se que o direito existe concretamente
e não de forma virtual, ou melhor, que ele vale à medida que é capaz de compor
interesses, desconsiderando-se o seu valor meramente potencial, Este movimento, que
encerra o predomínio da dogmática tradicional, é denominado pós-positivismo."[12]

Segundo Camargo, destacam-se nesse universo, as contribuições teóricas da tópica de


Theodore Viehweg, a nova retórica de Chaim Perelman, a filosofia da lógica do
razoável, de Recasen Siches, etc. Não caberia, no espaço deste artigo uma discussão
mais aprofundada acerca dos desdobramentos teóricos de cada uma dessas
formulações. Portanto, elas serão apresentadas, à guisa de conclusão, apenas na
medida em que representam novos pontos de partida para a reinserção da teoria
jurídica na concretude histórica de onde foi arrancada pela pureza cética do
positivismo jurídico.

Pois bem, contra o caráter sistêmico-normativo atribuído ao Direito pelo positivismo,


Viehweg opõe a tópica como método ou estilo típico do raciocínio jurídico, que os
antigos chamavam de prudência. No prefácio à edição brasileira de Tópica e
Jurisprudência, Tércio Sampaio Ferraz Jr. assim descreve as bases da análise de T.
Viehweg:

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"Nas origens, Viehweg remonta a Aristóteles, para quem se coloca uma


diferença entre demonstrações apodíticas e dialéticas. O grego tinha um
conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas atribuível à
coisa tal como ela é (Na. Post. 1, 2, 71b). Ou seja, ao conhecimento da
causalidade, da relação e da necessidade da coisa. Nestes termos nos falava
ele em conhecimento universal. A lógica deste conhecimento é a analítica, que
constrói suas demonstrações a partir de premissas verdadeiras, por meio de
um procedimento silogístico estrito. Neste sentido, as demonstrações da
ciência são apodíticas, em oposição às argumentações retóricas, que são
dialéticas. Dialéticos são os argumentos que concluem a partir de premissas,
aceitas pela comunidade como parecendo verdadeiras. A dialética é, então,
uma espécie de arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre
elas um diálogo, confrontando-as no sentido de um procedimento crítico.
Enquanto a analítica está na base da ciência, a dialética está na base da
prudência.

É esta prudência, enquanto sabedoria, virtude de saber sopesar os argumentos,


confrontar opiniões e decidir com equilíbrio, que Viehweg investiga em seu livro,
desde a jurisprudência romana, passando pelo mos itálicos e pela Era Moderna, até a
civilística contemporânea. (...)."[13]

Viehweg parte do conceito aristotélico de tópica, estilo de pensar a partir de situações


problemáticas, e que fornece caminhos decisórios, em busca de premissas mais ou
menos aceitas, no contexto de uma disputa argumentativa e dialética, em oposição à
analítica, que se caracteriza pelo método, segundo aristóteles, propriamente científico,
dedutivo e sistemático. Assinala Viehweg:

"A tópica é um conhecimento em busca de premissas, conforme sublinhou


Cícero, ao diferenciá-la, como ars inveniendi, da lógica demonstrativa, ou ars
iudicandi. Isto tem pleno sentido. Pois é possível distinguir uma reflexão que
busca o material para pensar, de outra que se ajusta à lógica. É igualmente
claro que na prática esta última deve vir depois daquela. Vista desta maneira,
a tópica é uma meditação prológica. A tópica mostra como se acham as
premissas; a lógica recebe-as e as elabora.

O modo de buscar as premissas influi na índole das deduções e, ao contrário, a índole


das conclusões indica a forma de buscar as premissas."[14]

Segundo Viehweg, é com o racionalismo moderno - principalmente depois da


consolidação do positivismo como paradigma científico no Direito - que a cultura
jurídica moderna, pretendendo emprestar ao Direito uma estrutura lógica de sistema
de normas e conceitos, realiza a substituição do estilo tópico pelo método dedutivo, em
nome dos ideais de certeza e racionalidade. No entanto, a idéia de um sistema jurídico,
logicamente perfeito, é para este autor algo impossível de se atingir. É que, desde a
escolha dos princípios objetivos fundamentais (axiomas) que irão constituir o topo do
sistema de deduções, até propriamente a tarefa das puras operações lógico-dedutivas,
ocorrem influências ou infiltrações tópicas. Com isso, ressalta que o sistema jurídico,
isto é, o Direito efetivo - realidade normativa passível de descrição científica, como

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quer Kelsen - é algo, de saída, impuro, contaminado pela interpretação, que é um tipo
de pensamento que deve, segundo Viehweg, mover-se dentro do estilo da tópica. Parte
daí para sustentar que a jurisprudência (ou o que chamamos de ciência jurídica) é uma
disciplina essencialmente problemática, sendo que suas partes integrantes (conceitos e
proposições) "têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só podem ser
compreendidos a partir dele."[15]

O problema último, ou a aporia fundamental, que se estabelece no raciocínio jurídico e


que atribui sentido aos conceitos é, segundo Viehweg, a aporia da justiça, levando-se
em conta - contra o jusnaturalismo - as condições históricas.[16] Esse raciocínio
permite até, digamos, uma compatibilização entre a tópica e a visão sistêmica. Não
obstante, mantendo-se o foco nos problemas, os sistemas jurídicos devem conservar
uma textura aberta em torno da atualização constante das questões relacionadas à
realização da justiça.[17]

Viehweg reconhece a existência de sistemas jurídicos - assim mesmo, no plural - como


conjunto de tópicos elaborados como premissas mutáveis, permanecendo constante
apenas a pergunta fundamental em torno da justiça. Mais uma vez, permito-me citar o
texto do próprio autor tendo em vista o espaço sintético deste artigo e a necessidade de
preservar ao máximo a autenticidade de sua elaboração. Assim, conforme Viehweg:

"A estrutura total da jurisprudência, como dissemos mais acima (cf. I, 1), só pode ser
determinada a partir do problema. (...) Ao tomar posição de uma determinada
maneira frente ao problema fundamental (por exemplo, a autonomia privada parece
justa), origina-se um conjunto de questões que se pode determinar com bastante
precisão e que baliza o âmbito de uma disciplina especial, por exemplo, o do direito
privado. Toda a organização de uma disciplina jurídica se faz partindo do problema.
Quando se diferenciam certas séries de questões do modo indicado, agrupam-se ao
redor delas as tentativas de resposta do respectivo direito positivo. Naturalmente,
estes quadros de questões não devem ser sobreestimados em sua constância. Sua
formação depende de alguns pressupostos de compreensão que não são imutáveis. O
único efetivamente permanente é a aporia fundamental. Porém, isto não impede que,
com frequência, uma situação de longa duração permita formular certos complexos de
perguntas permanentes. Em suas linhas fundamentais e em suas conexões, têm
geralmente um alto grau de fixidez, do mesmo modo que as soluções. Cabe à
Sociologia do Direito a tarefa de investigar com mais detalhe as relações que aqui
existem, ainda que sem cair num sociologismo todo-poderoso e unilateral."[18]

Na esteira desse raciocínio, certeira, me parece, é a análise de Perelman, para quem


Kelsen e sua teoria pura partem de uma pressuposto equivocado que é a cisão absoluta
dos planos de ser e dever-ser. Ora, fracassado o intento de purificar o objeto, a ciência
jurídica deve, pois, atuar no desenvolvimento de uma racionalidade prática, escapando
da tentação relativista que lhe impõe o positivismo, enquanto procura de critérios e
mecanismos razoáveis de decisão. É que uma conseqüência paradoxal desse
relativismo na teoria pura é a equiparação da decisão do juiz - autorizado pela
normatividade a proferir, nos casos concretos, uma norma individual (sentença) - à

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decisão do legislador, que também autorizado pela normatividade, cria regras gerais.
Ambos participam da dinâmica do Direito, havendo entre eles apenas uma diferença
de grau. Mas aí, Kelsen é forçado a reconhecer que não é possível para a ciência
jurídica estabelecer qualquer tipo de juízo preventivo acerca das decisões judiciais,
pois o juiz assim como o legislador cria direito novo, condicionados apenas
formalmente por uma moldura normativa.[19] E aqui o paradoxo: como sustentar a
idéia de um sistema jurídico unitário e escalonado de normas em que as decisões que
realimentam esse sistema são assim incontroláveis e, portanto, em probabilidade,
contraditórias? Sabendo de antemão que, no processo criativo (ou dinâmico, como
prefere Kelsen) do Direito, a contaminação fático-axiológica típica do procedimento
hermenêutico resulta da relação constante entre autoridades competentes e cientistas,
parece mesmo vã a tentativa purificadora.

Segundo Menezes Cordeiro, diante da riqueza dos casos concretos, as posturas


positivistas e formalistas se mostram insuficientes. Expõem suas limitações diante das
necessidades de efetiva realização do Direito nas situações mais críticas, quais sejam: a
proibição do non liquet (o juiz é obrigado a decidir) diante das lacunas do
ordenamento; a ocorrência cada vez mais freqüente de conceitos indeterminados, ou
normas em branco (urgência, relevância, ordem pública, relevante valor social ou
moral, etc.); as colisões de princípios fundamentais (privacidade e direito à
informação); e, finalmente, "o juspositivismo detém-se perante a questão complexa,
mas inevitável das normas injustas".[20]

Conclui o autor português, confirmando as conseqüências paradoxais da


epistemologia positivista, quando aplicada aos processos jurídicos concretos:

"(...) obrigado, pela proibição do non liquet a decidir, o julgador encontrará sempre
uma qualquer solução, mesmo havendo lacuna, conceito indeterminado, contradição
de princípios, ou injustiça grave. Munido, porém, de instrumentação meramente
formal ou positiva, o julgador terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão.
A experiência, a sensibilidade, certos elementos extra-positivos e, no limite, o arbítrio
do subjectivo, serão utilizados. Dos múltiplos inconvenientes daqui emergentes, dois
sobressaem: por um lado, a fundamentação que se apresente será aparente: as
verdadeiras razões da decisão, estranhas aos níveis juspositivos da linguagem, não
transparecem na decisão, inviabilizando o seu controlo; por outro, o verdadeiro e
último processo de realização do Direito escapa à Ciência dos juristas: a decisão
concreta é fruto, afinal, não da Ciência do Direito, mas de factores desconhecidos para
ela, comprometendo, com gravidade, a previsibilidade, a seriedade e a própria justiça
de decisão."[21]

Mais uma vez, recorro ao texto dos autores aqui mencionados, para concluir, com
Perelman que:

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"Se se adota o dualismo kelseniano, que é também o de Hägeström, deve-se


renunciar à ilusão da razão prática em todos os domínios, e não somente em
direito. (...) Mas então, pode-se falar seriamente em uma decisão razoável, de
um julgamento bem motivado, de uma escolha fundamentada, de uma
pretensão fundamentada? E se semelhantes asserções não forem mais do que
racionalizações destinadas a enganar os ingênuos, exprimiria toda a vida
social alguma coisa que não relações de força? E a filosofia prática serviria a
outra coisa senão para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os
interesses e paixões impõem pela coerção?

Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas
as suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que
não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos
dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o
papel da argumentação. (...)

Mas, seria possível, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma
argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões, nossos
valores e normas? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência do direito e
uma teoria pura do direito, considerar como juridicamente arbitrário tudo o que só
pode ser justificado mediante semelhante argumentação?[22]

Essas ponderações questionadoras e problematizantes de Perelman conseguem


colocar em xeque os postulados kelseneanos, mas, como afirmei atrás, aqui foram
expostos apenas alguns pontos de partida para uma investigação epistemológica e seus
necessários desdobramentos. Impossível, portanto, seria a tentativa de concluir-se,
decretando o total esgotamento do legado de Kelsen para a ciência jurídica, e celebrar
o advento de um novo paradigma epistemológico marcado pelo que chamei de o viés
hermenêutico. Ora, nem aquele se esgotou, embora seja merecedor de muitas das
críticas a si direcionadas, nem este se instalou, enquanto nova matriz epistemológica
da ciência jurídica. Ademais, convém ressalvar que uma metodologia centrada na total
autonomia e no voluntarismo dos intérpretes, ou, como costumamos chamar, dos
operadores do Direito - que não é o caso, é preciso dizer, nem da tópica de Viehweg,
que nos fala em catálogos de tópicos, orientados pela realização da justiça, nem da
lógica argumentativa de Perelman, que lembra a necessidade de desenvolverem-se
mecanismos e critérios racionais de justificação das decisões que vão compor o mundo
jurídico - perderia, assim, até suas pretensões de cientificidade, posto que não se
submeteria a nenhuma espécie de controle ou de verificação.

Não obstante, esse novo viés hermenêutico reúne, a meu ver, as potencialidades para a
reconstrução das bases epistemológicas da ciência jurídica, principalmente porque a
partir dele será possível trazer para a luz aquilo que o brilho da normatividade pura
tinha ofuscado: os dados da experiência histórica, analisados sociologicamente,
relevantes para o jurista, na medida em que resultem na formulação de finalidades
éticas, que devam realizar-se normativamente, no contexto de discursos de poder que,
por sua vez, não se furtem a justificar de forma racional suas decisões.

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NOTAS

1. Machado Neto levantou razões de ordem histórico-sociológicas para explicar a


atitude do estrito formalismo de Kelsen: "Se o jusnaturalismo racionalista foi a
expressão do mundo burguês ascendente, o historicismo, a expressão da contra-
revolução, o legalismo exegético e o positivismo sociológico, as ideologias jurídicas do
mundo burguês dominante, o relativismo da teoria pura será o pensamento jurídico
solidário com o período de transição e de decadência do mundo burguês em que
vivemos. (...) Fruto de um mundo em que os totalitarismos nascentes conviviam com o
liberalismo democrático mais franco e aberto, a teoria pura do direito devia - a menos
sob pena de ser anacrônica - reconhecer a existência de direitos de diverso conteúdo
político, devia ser uma teoria da ciência jurídica que reconhecesse a existência, ao lado
do direito democrático-liberal, de um direito soviético, um direito fascista, um direito
nazista, etc. MACHADO NETO, A. L. Introdução à Ciência do Direito. 1º V. São Paulo:
Saraiva, 1960, p. 183.

2. Segundo Recasen Siches, "El punto de vista lógico-formal del método jurídico de
Kelsen no pretende llegar a la absorción de todos los estudios sobre el Derecho. El
proprio Kelsen reconoce que la posición rigorosamente normativa de su método
jurídico, es unilateral y parcial, y que, por lo tanto, no puede abarcar la totalidad de los
ingredientes del fenómeno jurídico." SICHES, Luis Recasens. Panorama del
Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Mexico: Editoria Porrua, 1963, pp. 149/150.

3. Sobre o conceito de norma fundamental, KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 5ª


ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996; para uma visão
crítica, consultar o meu Subjetividade Jurídica - A Titularidade de Direitos em
Perspectiva Emancipatória.Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 58.

4. KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 80.

5.Idem, ibidem, p. 82.

6.ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência - Introdução ao Jogo e a Suas Regras. São


Paulo: Loyola, 2000, pp. 86, 87.

7.Segundo Kelsen as relações constituídas juridicamente, embora análogas


(estabelecem uma conexão funcional entre fatos), não caracterizam a relação causal de
fatos do mundo natural. É que no mundo da natureza - explica - um determinado fato
será a causa de outro fato (efeito), que por sua vez será causa de outro fato, numa
cadeia interminável de causalidades, nos dois sentidos. Coisa diversa ocorre com a
imputação, na qual o número de elos da cadeia imputativa se esgota na realização de
cada qualificação normativa das condutas.

8.Segundo Recasens Siches: "La estructura lógica denominada imputación es el modo


de enlace típico de los hechos en la norma. Los elementos contenidos en la norma
jurídica se relacionan entre sí, no por el principio de causalidad, sino por el vínculo del
deber ser. (...) La pena es imputada al delito, y el delito a la persona castigada, porque

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la norma así lo establece. Si a este enlace de dos o más elementos en la norma


(establecido por el deber ser), lo llamamos imputación, entonces ésta viene a
constituir, en reino del sistema jurídico, el princípio análogo a la causalidad en el reino
de la naturaleza." SICHES, Luis Recasens. OP. Cit., p.155.

9.Kelsen, Hans, Op. Cit., p. 90

10.SARLO, Oscar Luis. Kelsen y Dworkin: Del Concepto a La Concepcion del Derecho
in Revista de Ciencias Sociales. Valparaiso, nº 38. Chile: Universidad de Valparaiso,
Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, 1993, pp.364/365.

11.Segundo Perelman, "(...) com o advento do Estado-criminoso que foi o Estado


nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como
Gustav Radbruch, continuar a defender a tese de que ’Lei é lei’, e que o juiz deve, em
qualquer caso, conformar-se a ela. Uma Lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao
direito." PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
95.

12.CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação - Uma


Contribuição ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 131/132.

13.FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio in VIEHWEG, Theodore. Tópica e


Jurisprudência. Brasília: Ministério da Justiça e Universidade de Brasília (co-edição),
1979, p. 5.

14.VIEHWEG, T. Op. Cit., pp.39/40.

15.Idem, ibidem, p. 89.

16.Idem, ibidem. P. 90.

17.Entre nós, vale lembar, além da famosa teoria tridimensional do direito


desenvolvida por Miguel Reale, em perspectiva culturalista, foi Roberto Lyra Filho,
hoje reconhecido como patrono da teoria crítica no Brasil, quem desenvolveu o
conceito de direito como "um processo histórico de legítima organização social da
liberdade", afirmando a necessidade de a ciência jurídica, com o apoio da sociologia e
da filosofia jurídicas, voltar-se também para a análise histórica dos processos sociais
em busca daqueles critérios de atualização dos padrões de justiça (finalidades éticas) e
de legitimidade (mecanismos razoáveis de decisão e de aplicação do direito). Sobre o
pensamento de Lyra Filho, consultar LYRA, Doreodó Araújo (org.). Desordem e
Processo - Estudos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio
Fabris, 1986; SOUSA Jr., José Geraldo de. Para Uma Crítica da Eficácia do Direito.
Porto Alegre: Sergio Fabris, 1984; NOLETO, Mauro Almeida. Op. Cit.

18.VIEHWEG, Theodore. Op. Cit. pp.91/92.

19.KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 99.

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20.MENEZES CORDEIRO, A. Introdução in: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento


Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbekian,
1989, pp. XX-XXII.

21.Idem., Ibidem. pp. XXIII/XXIV.

22.PERELMAN, Chaïm. A Teoria Pura do Direito e a Argumentação. Tradução:


Ricardo R. de Almeida. http://www.puc-rio.br/sobrepuc/dpto/direito/pet_jur
/c1perelm.html. 14/11/2000.

Autor

Mauro Almeida Noleto

mestre em Direito pela Universidade de Brasília, professor de Direito


do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e do Instituto de
Ensino Superior de Brasília (IESB)

é assessor do Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, do Supremo


Tribunal Federal. É também autor do livro "Subjetividade Jurídica: a
titularidade de direitos em perspectiva emancipatória" (Porto Alegre:
Sergio Fabris, 1998).

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.
Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/2644>. Acesso em: 10 jun. 2014.

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