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Livro aponta interseção entre a história da

medicina e a Inquisição em Portugal


Março/2014

Fernanda Marques No século XVIII, houve um aumento do número de processos da Inquisição portuguesa

contra curandeiros e esse crescimento estava associado à atuação de médicos e cirurgiões formados na

academia. A explicação constitui tese inovadora, defendida pelo historiador Timothy Walker em seu

livro Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o

Iluminismo, que acaba de ser traduzido para o português, por meio de uma parceria entre a Editora Fiocruz

e a Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa). Segundo o autor, os representantes da nova medicina

profissional se uniram ao Santo Ofício com o intuito de desacreditar e eliminar os curandeiros, considerados

fornecedores de remédios ineficazes, concorrentes no mercado e inimigos da razão científica. Nessa

entrevista para a AFN, Timothy Walker, que é professor da University of Massachusetts Dartmouth,

comenta os resultados da pesquisa, fruto de extenso trabalho realizado em arquivos.

“Passei mais de dois anos lendo mais de 400 processos da Inquisição, procurando evidências de

colaboração dos inquisidores com médicos convencionais licenciados, cirurgiões e barbeiros”, comentou

Timothy Walker (foto cedida pelo autor)

AFN: Como avalia a importância de uma edição em português do seu livro?

Timothy Walker: Meu estudo, originalmente publicado pela Brill, em 2005, traz uma contribuição

significativa para a historiografia da perseguição à “bruxaria”, bem como para a história da medicina e para

os estudos da Inquisição no mundo lusófono. Logo, é importante que esteja disponível para uma audiência

de língua portuguesa mais ampla, que não tem acesso ao texto em inglês.

AFN: A sua pesquisa se baseia em extensa documentação primária do Arquivo Nacional da Torre

do Tombo, em Lisboa, e outros arquivos. Como é esse trabalho de historiador-detetive?

TW: Passei mais de dois anos lendo mais de 400 processos da Inquisição, procurando evidências de

colaboração dos inquisidores com médicos convencionais licenciados, cirurgiões e barbeiros. Houve dias

muito longos nos arquivos. Na maioria dos dias, obtem-se apenas resultados modestos, mas, nos dias em

que um documento revela uma evidência muito forte, a sensação de descobrir uma história oculta é muito

gratificante. Este livro realmente conta várias histórias ao mesmo tempo, explicando as variadas motivações
e ações de grupos bastante distintos: médicos licenciados e cirurgiões; curandeiros camponeses; e os

inquisidores.

AFN: O tema da caça às bruxas costuma chamar a atenção, tanto de pesquisadores quanto de leigos.

Como é escrever um livro acadêmico sobre um assunto que inspira romances históricos?

TW: Eu sempre pensei, enquanto trabalhava na minha tese de doutorado (que se transformou neste livro),

que o projeto poderia se tornar um romance ou filme histórico bastante bom. Todos os componentes

dramáticos necessários estão incluídos na narrativa. Assim, a criação de uma versão popular desse material

nunca esteve longe das minhas ideias. Para mim, esses dramas muito humanos, provenientes de

acontecimentos históricos documentados, ajudaram a manter o meu interesse no projeto durante o longo

período necessário para completá-lo. Fora dos arquivos, eu podia visitar lugares em Lisboa que eram

mencionados nos documentos que eu estava examinando – bairros ou até mesmo ruas específicas onde

os médicos e curandeiros perseguidos viveram. Isso manteve o projeto muito presente e real para mim, e

ajudou a me conectar com o período que eu estava estudando.

AFN: Seus resultados apontam que, no século XVIII, houve um aumento do número de processos

da Inquisição portuguesa contra curandeiros. E os processos da Inquisição portuguesa contra

praticantes de outras heresias? De uma maneira geral, eles eram numerosos, em comparação a

outros países da Europa? Também registraram crescimento no século XVIII? Ou diminuíram,

enquanto a preocupação específica com os curandeiros aumentava?

TW: Julgamentos contra os acusados de crimes de magia, incluindo a cura supersticiosa, eram apenas

uma proporção muito pequena dos casos conduzidos pela Inquisição Portuguesa. Cerca de 95% dos casos

conduzidos pelos tribunais de Évora, Lisboa e Coimbra eram sobre Judaísmo, a preocupação principal do

Santo Ofício em Portugal. Houve períodos de intensa perseguição aos “cristãos novos” nas décadas de

1720 e 1730, mas, em geral, a segunda metade do século XVIII viu um declínio nas atividades da Inquisição.

Defendo que a expansão dos casos contra curandeiros durante a “Era Iluminista” tinha tudo a ver com os

interesses profissionais dos médicos convencionais em Portugal – eles manipularam a Inquisição em um

esforço para desacreditar e eliminar curandeiros, a quem os médicos e cirurgiões viam como concorrentes

fornecedores de remédios fraudulentos e ineficazes.

AFN: Antes do século XVIII, pode-se dizer que as elites portuguesas eram mais tolerantes em relação

aos curandeiros? Qual seria a razão dessa tolerância?

TW: Muitas elites eram clientes de curandeiros durante o período moderno; curandeiros eram o tipo mais

comum de prestadores de cuidados de saúde. Se as elites eram tolerantes, era porque elas estavam

acostumadas a frequentar os curandeiros populares. A reação contra os curandeiros no século XVIII foi

liderada por médicos e cirurgiões oriundos das classes médias escolarizadas, e não por membros da

aristocracia.
AFN: E qual a razão para o aumento da intolerância no século XVIII? Outros estudos já haviam

identificado esse crescimento do número de processos contra curandeiros em Portugal, mas não

chegaram a consolidar uma explicação para o ocorrido. A sua tese tem sido considerada bastante

inovadora nesse sentido.

TW: Como dito anteriormente, a reação contra curandeiros no século XVIII foi liderada por médicos e

cirurgiões oriundos das classes médias escolarizadas, que viam os curandeiros supersticiosos tanto como

concorrentes no mercado médico quanto como fornecedores de medicina fraudulenta e ineficaz. Muitos

praticantes da medicina convencional, licenciada, se viam como os arautos da nova medicina científica.

Eles usaram suas posições sociais para aumentar o seu status. E isso aconteceu no momento em que a

profissionalização da medicina deu a esses homens uma nova confiança e consciência em relação à sua

condição social. Para eles, os curandeiros se tornaram o símbolo do arcaico, da medicina falsa, e, assim,

os curandeiros viraram alvo de perseguição

.AFN: Embora numerosos, no período estudado, nenhum curandeiro julgado pela Inquisição

recebeu sentença de morte. Isso sugere que os julgamentos tinham como objetivo não ‘eliminar’

diretamente os curandeiros, mas desacreditá-los perante o povo, contribuindo para uma mudança

de mentalidade?

TW: Sim, precisamente. Os atos públicos de penitência e contriçaõ (autos de fé) foram projetados para

causar a vergonha e o descrédito dos praticantes de todos os tipos de crimes religiosos. O propósito de

desfilar curandeiros publicamente era a mudança do comportamento e das crenças populares, não só em

relação a conceitos espirituais ortodoxos, mas também em relação às abordagens para a cura. Execuções

da Inquisição eram raras no final do século XVIII, independentemente do tipo de crime.

AFN: Os curandeiros representavam não apenas as superstições e magias, mas também uma forma

de acesso a remédios e tratamentos para as classes mais pobres. Nesse contexto, não era difícil a

sociedade portuguesa prescindir dos curandeiros?

TW: Absolutamente. Ainda hoje, em Portugal, para muitas pessoas mais pobres, o primeiro recurso para

muitas doenças é visitar o curandeiro ou curandeira. Portugal tem enfrentado um desafio crônico de fornecer

médicos e cirurgiões treinados e licenciados em número suficiente para todas as regiões do país – este

desafio remonta ao período medieval. Considerando que a qualidade da medicina “científica” era muito

precária, até o final do século XIX ou início do XX, não é nenhuma surpresa que a maioria das pessoas (de

todas as classes) continuou a ser cliente de curandeiros.

AFN: Os processos contra curandeiros aumentavam em Portugal em um momento de expansão do

Iluminismo, justamente quando tais processos começavam a declinar em outros países. O

Iluminismo, portanto, teve efeitos diferenciados em Portugal, em relação ao restante da Europa? Ou,

em outras palavras, a Inquisição portuguesa, curiosamente, serviu a um propósito progressista?


TW: Nos domínios da educação e da ciência médica, Portugal manteve-se muito conservador até as

reformas de Pombal em 1770. Assim, o Iluminismo veio muito tarde para Portugal, e havia um grande atraso

a recuperar. Nesse contexto, a Inquisição, de fato, serviu a um propósito “progressista”, na tentativa de

desacreditar os curandeiros, mas, talvez, tal propósito não fosse totalmente intencional ou consciente –

muitos inquisidores foram manipulados por médicos e cirurgiões que trabalhavam junto ao Santo Ofício

para iniciarem investigações e processos contra curandeiros, em uma campanha de perseguição à

medicina popular.

AFN: Considerar a expansão do Iluminismo associada ao recrudescimento da Inquisição é bastante

curioso. Dos Saludadores, documento formulado pela Inquisição portuguesa, afirma que as curas

populares não eram sancionadas por Deus, enquanto a verdadeira ciência médica teria sido criada

por Deus como emprego correto da virtude natural. Conforme o senhor assinala no livro, “as ideias

do Iluminismo surgem livremente associadas a uma sensibilidade mais antiga, que acreditava que

Deus e Satanás desempenhavam um papel ativo na vida dos mortais”. Essas ideias não iriam contra

a mentalidade científica e racionalista? Como, então, se deu essa aliança entre médicos e

inquisidores?

TW: No final do século XVII e em todo o XVIII, em Portugal, os médicos convencionais licenciados e os

inquisidores combinaram seus esforços contra curandeiros. No entanto, embora compartilhassem o mesmo

objetivo (para desacreditar e eliminar a medicina popular supersticiosa), eles tinham razões muito diferentes

para fazê-lo. Os inquisidores atacavam curandeiros por motivos religiosos, enquanto profissionais médicos

e cirurgiões tinham motivações tanto econômicas quanto intelectuais e científicas. Dos dois grupos, os

profissionais médicos e cirurgiões foram os mais importantes como catalisadores para perseguir os

curandeiros; seus motivos profissionais eram mais fortes. Sem os médicos e cirurgiões, os inquisidores não

teriam atacado os curandeiros de forma independente, pois, para o Santo Ofício, havia pouco incentivo

profissional ou econômico para fazê-lo. Fonte: Agência Fiocruz de Notícias Leia em HCSM – O papel e as

práticas dos curandeiros e saludadores na sociedade portuguesa no início da idade moderna, artigo

de Timothy Walker

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