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Do “gueto” ao mercado
Júlio Assis Simões1
Isadora Lins França2

Em 1983, Edward MacRae publicou o artigo “Em defesa do gueto”3, em que


refletia sobre a crescente visibilidade pública alcançada pela homossexualidade
durante o período final do regime autoritário e a sua relação com mudanças no
papel social do homossexual, na vivência das relações homossexuais, na
sociabilidade e na militância política. Nossa proposta é retomar o mote do artigo,
vinte anos depois, procedendo a uma breve atualização das referências
etnográficas sobre o “gueto homossexual” na cidade de São Paulo e das
observações sobre visibilidade e política, à luz do contexto recente, marcado por
uma notável ampliação e diversificação dos espaços de sociabilidade
homossexual, bem como das formas de expressão cultural e política das
homossexualidades.
“Gueto homossexual” refere-se a espaços urbanos públicos ou comerciais –
parques, praças, calçadas, quarteirões, estacionamentos, bares, restaurantes,
casas noturnas, saunas – onde as pessoas que compartilham uma vivência
homossexual podem se encontrar. No artigo original, argumentava-se que o
“gueto” é importante na medida em que proporciona um ambiente de contatos no
qual as pressões da estigmatização da homossexualidade são momentaneamente
afastadas ou atenuadas. Nessas condições, o “gueto” não somente amplia a
oportunidade de encontrar parceiros e viver experiências sexuais, mas também
pode contribuir decisivamente para reduzir os sentimentos de desconforto e culpa
em relação à própria sexualidade, reforçar a auto-aceitação do desejo e,
eventualmente, a disposição para “assumi-la” em âmbitos menos restritos.

Entende-se, assim, que o esforço de talhar e manter espaços parcialmente


protegidos não apenas resulta em novas maneiras de organizar e gerenciar

1
Professor do Departamento de Antropologia, FFLCH-USP.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, FFLCH- USP
3
Ver o texto de Edward MacRae, neste volume
2

comportamentos e identidades sexuais, mas permite também pôr em questão as


regulações dominantes de sexo e gênero – fazendo parte, assim, de uma luta
política mais ampla para a definição do que é legítimo em termos de sexualidade e
projeto de vida. Por isso, argumentava MacRae, é da maior importância a
existência do gueto (aspas?): mais cedo ou mais tarde, ele acaba afetando outras
áreas da sociedade.
É importante ressaltar que essa concepção de “gueto” enfatiza mais sua
dimensão política e cultural, de “espaço público”, do que propriamente um território
delimitado por uma forma específica de ocupação e utilização. Até porque “gueto”,
na cidade de São Paulo (como em outras grandes cidades no Brasil), não
corresponde a um espaço fixo marcadamente segregado, de freqüência exclusiva
ou predominantemente homossexual – como seria, por exemplo, o caso
paradigmático de San Francisco4. O que chamamos de “gueto” é algo que só pode
ser delimitado ao acompanharmos os deslocamentos dos sujeitos por lugares em
que se exercem atividades relacionadas à orientação e à prática homossexual5. É
preciso notar também que empreendimentos comerciais e ocupações (essa
palavra tem sentido de tomada de espaços públicos ou não por sem-tetos)
específicas de regiões da cidade estabelecem diferentes “guetos”, freqüentados
por sujeitos agrupáveis não somente pela orientação sexual, mas também por
sexo, poder de consumo, “estilo”, modo pelo qual expressam suas preferências
sexuais e assim por diante. Desse modo, categorias como “manchas” e
“circuitos”6, que procuram dar conta da lógica de implantação e utilização de
aglomerados de estabelecimentos e serviços na paisagem urbana, em diálogo
com concepções renovadas de territorialidades itinerantes e flexíveis7, parecem

4
Manuel Castells, “Cultural identity, sexual liberation and urban structure: the gay community in San
Francisco.” In: M. Castells, The city and the grassroots. Londres: Edward Arnold, 1983, p. 138-172. Sobre a
noção de “gueto gay”, elaborada a partir das formulações clássicas de Robert Park e Louis Wirth, da “Escola
de Chicago”, ver Martin Levine, “Gay ghetto”. In: M. Levine ( org.), Gay men: the sociology of male
homosexuality. Nova York: Harper & Row, 1979, p. 182-204.
5
Néstor Perlongher, O negócio do michê. São Paulo: Brasiliense, 1987.
6
José Guilherme C. Magnani, “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 49. São Paulo: Anpocs, 2002, 2002.
7
Cf. o texto de Néstor Perlongher, “Territorialidades marginais”, neste volume. Ver, também, Antonio
Augusto Arantes, Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo: Imprensa Oficial,
2000.
3

ser mais adequadas ao esforço de descrever e dar sentido ao fenômeno do “gueto


homossexual” nas grandes cidades brasileiras.
Não cabe, nos limites deste texto, uma análise detida das mudanças que
alteraram as expressões culturais, sociais e políticas da homossexualidade desde
o momento em que foi escrito o artigo de MacRae. Neste comentário introdutório,
queremos apenas assinalar dois fenômenos de alcance mais amplo. Em primeiro
lugar, o impacto social da epidemia HIV-Aids. Em que pese o rastro de morte e
violência que acompanhou seu avanço, a epidemia mudou dramaticamente as
normas da discussão pública sobre a sexualidade e deixou também, como legado,
uma ampliação sem precedentes da visibilidade e do reconhecimento da presença
socialmente disseminada do desejo e das práticas homossexuais.8 Se o HIV-Aids
propiciou uma expansão do poder médico e do projeto global de “medicalização
da vida”, apoiado na ressonância da mídia9, ele deflagrou também uma “epidemia
de informação”10 em torno de questões como sexo anal, sexo oral, doenças
venéreas e uso de camisinha – práticas e circunstâncias ligadas ao exercício e à
expressão da sexualidade deixaram a clandestinidade para adentrar o debate
público.
Sobre o impacto público mais geral da epidemia, podemos lembrar, apenas
como ilustração, a comoção pública causada com a edição da revista Veja, de 26
de abril de 1989, cuja capa estampava uma foto do famoso compositor e cantor
Cazuza, em estado bastante debilitado, com o título “Uma vítima da Aids agoniza
em praça pública”. O mesmo artista declarava, em entrevista na época, que “hoje

8
Há uma considerável bibliografia sobre o impacto da Aids no Brasil. Para referências gerais sobre os anos
1980 e 1990, ver, entre outros, Richard Parker et al. (orgs), A Aids no Brasil 1982-1992. Rio de Janeiro:
ABIA/IMS-UERJ/Relume Dumará, 1994; Jane Galvão, Aids no Brasil: a agenda de construção de uma
epidemia. Rio de Janeiro: ABIA/Editora 34, 2000. Relatos vívidos de experiências de morte e violência
associadas à Aids nos circuitos homossexuais de São Paulo nos anos 1980 podem ser encontrados na
reportagem etnográfica de Roldão Arruda, Dias de ira. São Paulo: Globo, 2001; e no romance de Alberto
Guzik, Risco de vida. São Paulo: Globo, 1995. Para uma análise de crimes de morte contra homossexuais no
Rio de Janeiro, com base em dados dos anos 1980, ver Sérgio Carrara e Adriana Vianna, “A
homossexualidade nos tribunais cariocas: gênero, sexualidade e hierarquia social.” XXV Encontro Anual da
Anpocs. Caxambu, 2001.
9
Cf. Michel Foucault, O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico. Rio de Janeiro: Forense,
1977; Michel Foucault, História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977; Néstor
Perlongher, O que é AIDS. São Paulo: Brasiliense, 1987.
10
Aexpressão é de João Silvério Trevisan, Devassos no paraíso. 3.. ed. Rio de Janeiro:, Record, 2000, p. 463.
4

já se fala de homossexualismo de uma maneira totalmente aberta”.11 De lá para


cá, mais artistas da música popular brasileira têm expressado publicamente – e de
forma ainda mais direta – sua homossexualidade, ou sua simpatia e receptividade
para com ela. Telenovelas vêm explorando com alguma regularidade o tema, seja
revisitando caricaturas e estereótipos, seja ensaiando uma aproximação a
imagens mais “modernas” de gays e lésbicas, e mesmo de travestis ou
transexuais.
Nesse percurso, a própria militância política em torno da homossexualidade
passou por muitas mudanças, mas também acabou revigorada. Em contraste com
o antiautoritarismo e o comunitarismo que marcaram a primeira onda de militância
homossexual, no final dos anos 1970, as décadas seguintes assistiram à busca de
formatos mais institucionais e ao estabelecimento de parcerias e alianças com
agências governamentais e organizações internacionais12, sobretudo em função
das respostas à epidemia.(e as não-governamentais?) Desde então, a militância
tem se engajado nas iniciativas em políticas públicas que incluem os
homossexuais como público-alvo preferencial, no campo da saúde e no combate à
violência – e sua agenda passou a adotar uma ênfase crescente em
reivindicações por direitos ligados à conjugalidade e à parentalidade.13

11
Cf. Lucinha Araújo e Regina Echeverría, Só as mães são felizes. São Paulo: Globo, 1997, p. 390.
12
Sobre a militância homossexual na virada dos 1970 aos 1980, ver Edward MacRae, A construção da
igualdade: identidade sexual e política no Brasil da abertura. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. Sobre a
militância homossexual nos anos 1980 e 1990, ver, entre outros, James Green, “More love and more desire:
the building of a Brazilian movement”. In: Barry Adam et al. (orgs.), The global emergence of gay and
lesbian politics. Filadélfia: Temple University Press, 1999; Cristina Câmara, Cidadania e orientação sexual a
trajetória do Grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002; Regina Facchini, Sopa de
letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Dissertação de
Mestrado, Unicamp, 2002.
13
Sobre interfaces e polêmicas de natureza antropológica, política e jurídica relacionadas à conjugalidade e ao
parentesco homossexual, ver Judith Butler, “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” cadernos
pagu, n. 21, Campinas: Unicamp, 2003, p. 219-260. Para pesquisas e estudos no Brasil enfocando essas
temáticas, ver, entre outros: Maria Luiza Heilborn, Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto
igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004; Roger Raupp Rios, A homossexualidade no direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado/Esmafe, 2001; Anna Paula Uziel, Família e homossexualidade: velhas
questões, novos problemas. Tese de Doutorado, Unicamp, 2002; Miriam Pillar Grossi, “Gênero e parentesco:
famílias gays e lésbicas no Brasil.” cadernos pagu, n. 21, Campinas: Unicamp, 2003, p. 261-280; Luiz Mello
de Almeida Neto, “Outras famílias. a construção social da conjugalidade homossexual no Brasil.” cadernos
pagu, n. 24, Campinas: Unicamp, 2004; Flávio Tarnovski, Pais assumidos: adoção e paternidade
homossexual no Brasil contemporâneo. Florianópolis: Cadernos NIGS, 2003:. Érica Renata de Souza,
Admiráveis famílias novas: sentidos e práticas de maternidade lésbica no Brasil e no Canadá. Relatório de
Qualificação. PPGAS –Unicamp, 2003.
5

Um segundo fenômeno a destacar é a crescente importância do mercado


na promoção e difusão de imagens, estilos corporais, hábitos e atitudes
associados à política de identidades e às emergentes culturas identitárias
homossexuais.14 Isso se nota na expansão e diversificação do “gueto”. Saunas,
bares, discotecas e casas noturnas multiplicaram-se em número e em variedade
de formatos, estilos e serviços. Nos últimos anos, apareceram várias revistas,
jornais, livrarias, editoras, agências de turismo e de namoro voltadas ao público
homossexual, assim como seções dedicadas à homossexualidade em grandes
jornais, livrarias, editoras e agências de viagem. Assiste-se também,
recentemente, ao incipiente aparecimento de uma espécie de “empresariado
homossexual” organizado. Acrescente-se, ainda, a emergência e expansão do
“gueto virtual”. A internet é hoje um importantíssimo espaço para busca de
parceiros, trocas (essa palavra não é de expressão vazia?), sociabilidade,
discussões políticas e comunicação, com suas salas de bate-papo, suas listas de
discussão e seus inúmeros e variados sítios e portais dirigidos à
homossexualidade em suas múltiplas manifestações.
Nesse movimento de orientação crescente para o mercado e a mídia, uma
das inovações marcantes dos anos 1990 foram a implantação e a difusão da
categoria GLS – sigla cunhada para designar “gays, lésbicas e simpatizantes” – a
partir da articulação do sítio Mixbrasil (criado em 1993, quando o que viria a ser a
internet ainda era a rede BBS) e do festival de cinema de mesmo nome, inspirado
no modelo do “Gay and Lesbian Film Festival” de Nova York. A agregação da idéia
de “simpatizante” teve, de um lado, um claro sentido pluralista e uma exortação à
mútua tolerância, ao estimular a reunião, no mesmo espaço físico, de pessoas de
diferentes (ou múltiplas) orientações sexuais: foi, nas palavras de João Silvério
Trevisan, uma maneira bem-sucedida de “introduzir num contexto brasileiro a idéia
americana de gay friendly, de modo simples e adequado ao nosso jeitinho”15.
Dessa óptica, o GLS contribuiu para certa flexibilização e diluição das fronteiras do

14
Para a noção de “culturas identitárias”, ver Michel Agier, “Distúrbios identitários em tempos de
globalização”. Mana. Rio de Janeiro: v.. 7, n. 2, outubro 2001.
15
João Silvério Trevisan, Devassos no paraíso. 3.. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.376. Sobre o fenômeno
GLS, ver, também, Karla Bessa, “Gente desencanada: os ambientes GLS e a construção de novas políticas do
prazer.” Trabalho apresentado no XXV Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, outubro 2001.
6

“gueto”. Mas a ênfase mercantil e abrangente do GLS também levou a outros


esforços de diferenciação – por exemplo, por parte de alguns grupos organizados
de ativistas, que passaram a se referir como GLT – T simbolizando “travestis”,
“transexuais” e, mais recentemente, “transgêneros” – como forma de distinção em
relação à sigla que consideravam “mercadológica”16.(duas intercalações deixaram
a frase meio confusa) Além disso, o GLS passou a ser fortemente associado a um
estilo de vida “moderno e descolado”, um padrão que envolve um poder aquisitivo
mais alto e um capital simbólico distintivo.17
Esses desenvolvimentos recentes parecem indicar um modo peculiar de
combinar mecanismos de diferenciação e segmentação da cena homossexual
com tendências em favor de sua massificação e integração social. Resultados
dessa mistura, que também envolve uma situação de interação mais intensa da
militância, num sentido amplo, com o poder público, tanto quanto com o mercado,
podem ser observados na Parada do Orgulho GLBT (mais conhecida como
“Parada Gay”), evento máximo do ativismo atual, integrado ao circuito globalizado
das organizações de eventos semelhantes em várias grandes cidades do mundo.
Pareceu-me que a oração Resultados dessa mistura ficou inconclusa. A Parada
de São Paulo, uma das maiores do mundo, faz parte do calendário turístico da
Prefeitura da cidade de São Paulo, da qual recebe apoio logístico para a sua
realização, e conta com a participação de estabelecimentos comerciais destinados
ao público gay: estes últimos ajudam a “puxar” os participantes, junto aos carros
(em menor número) da militância. É um momento de especial importância para
ambas as perspectivas, já que se reconhece a Parada como uma oportunidade
para maximizar a visibilidade tanto das casas noturnas – destacando-as no “gueto”
– como das reivindicações do movimento. O evento também é amplamente
divulgado entre os estabelecimentos e a mídia segmentada, que promovem festas
especiais no rastro da semana da Parada.
Pondo em prática uma espécie de “visibilidade em massa”, a Parada
também é representativa das complexidades ligadas à perspectiva da militância,

16
Regina Facchini, op. cit., p. 126.
17
José Ronaldo Trindade, De dores e amores: construção de identidades homossexuais na era AIDS.
Relatório de Qualificação. PPGAS -USP, 2002.
7

em meio à incorporação de uma linguagem globalizada de ativismo: sua


nomenclatura oficial expressa a articulação de vários recortes identitários
aparentemente segmentados – gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais
também transgêneros? –, mas a multidão nas ruas dilui a rigidez das divisões
simbólicas que separariam esses “segmentos” entre si – e todos eles dos
heterossexuais – no caráter lúdico da manifestação, mais parecida com um
carnaval fora de época (com dimensões que São Paulo jamais viu), com sua
peculiar celebração das possibilidades de convivência com a diversidade.18

Um panorama atual do “gueto” em São Paulo na cidade de?

Delineada assim a configuração mais geral na qual se apresenta


atualmente o “gueto” homossexual em São Paulo, passemos a uma descrição
breve de seus contornos no presente, explorando sua articulação a um mercado
segmentado em expansão.
A área compreendida pela praça da República, avenida Vieira de Carvalho
e largo do Arouche tem se mantido como porção inexpugnável do circuito
homossexual paulistano há várias décadas. Depois de um período de relativo
esvaziamento, no final dos anos 1980, essa área central voltou a florescer desde
meados da década passada e hoje aparece como uma “mancha19 popular” do
circuito homossexual paulistano. Ali a concentração de estabelecimentos ocupa
também as transversais da Vieira de Carvalho (ruas Aurora e Vitória) – lado a lado
com botecos, cinemas e casas de de espetáculos de sexo explícito que não foram
apropriados pelo público homossexual – e se estende para as avenidas São João
e Ipiranga, com cinemas que exibem filmes de sexo explícito entre homens; bem
como na direção dos bairros vizinhos da Vila Buarque (ruas Marquês de Itu, Rego

18
Regina Facchini, op. cit. Sobre as especificidades das “políticas de identidade” no Brasil, ver Peter Fry,
“Por que o Brasil é diferente?” Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 31, p. 178-182, junho 1996.
19
Usamos “mancha” no sentido atribuído por Magnani (op. cit.), como um aglomerado de estabelecimentos
reconhecidos por seus freqüentadores como similares do ponto de vista dos serviços que oferecem e da
sociabilidade que propiciam, e que apresentam uma “implantação mais estável tanto na paisagem como no
imaginário”.
8

Freitas e avenida Amaral Gurgel), onde se espalham garotos de programa; e do


Bexiga (ruas Martinho Prado e Santo Antônio), onde se encontram bares e
danceterias voltados para as lésbicas. Desde a década de 1970, pelo menos20,
essa “mancha” se conserva praticamente na mesma localização geográfica,
estando por assim dizer incorporada ao cotidiano do velho centro da cidade.
Muitos dos freqüentadores da porção gay dessa “mancha” central são
rapazes de classes populares, que não moram no Centro e ali se reúnem para
tomar cerveja, dançar em alguma das várias boates ou simplesmente buscar
possíveis eventuais não seria melhor? parceiros sexuais, observando o
movimento da rua. Com freqüência, esses rapazes são referidos como “bichas
qua-quá”, “bichas poc-poc”, “bichas um- real” – termos pejorativos, quase
“categorias de acusação”, que pretendem designar o jovem homossexual mais
pobre e afeminado, de comportamento espalhafatoso e menos sintonizado com
linguagens e hábitos “modernos” de gosto, vestimenta e apresentação corporal. A
porção lésbica da “mancha” perdeu seu ponto de referência mais famoso, o
“Ferro’s Bar”, mas continua abrigando estabelecimentos que atraem uma clientela
feminina em que parece continuar predominando as estilizações corporais e os
códigos eróticos que remetem a estereótipos “masculinos” ou “femininos”,
conforme o modelo do par “caminhoneira” e “lady” – termos usuais que designam
respectivamente a lésbica que cultiva um estilo ligado ao “masculino” (gostar de
jogar futebol e tomar muita cerveja, por exemplo) e a sua companheira “feminina”
– entre estas últimas, não é raro encontrar strippers e garotas de programa.
Ao lado dessas personagens, que remetem a convenções de gênero,
classe e raça de alcance mais geral e parecem repor o que Peter Fry designou

20
Não há registros de bares ou estabelecimentos comerciais exclusivos para uma clientela homossexual nas
metrópoles brasileiras antes dos anos 1960. Isso não quer dizer, porém, que anteriormente a vida homossexual
fosse invisível, nem que as pessoas com gostos homossexuais vivessem isoladas. Como mostrou James Green
(Além do carnaval, São Paulo: Ed. da Unesp, 2000), manifestações públicas da homossexualidade
expressavam-se em bailes carnavalescos, celebrações de rua, assim como adaptando o costume do footing à
paisagem urbana e dividindo os espaços da vida noturna com outros tipos de freqüentadores. No caso da
cidade de São Paulo, baseando-se em fontes do Instituto de Criminologia, Green conseguiu localizar, já nas
décadas de 1920 e 1930, pontos na região do Vale do Anhangabaú e Praça da República que seriam
caracterizados pela presença de prostitutas e de homens em busca de contatos sexuais com outros homens.
9

como modelo segregado e hierárquico21, nota-se também uma incipiente


especialização de serviços ligada à segmentação da homossexualidade em uma
variedade de estilos de vida, que contribui para a ampliação da visibilidade das
diversas populações que compõem e percorrem a área. No que se refere aos
homens mais velhos, isso parece exemplar. Antes, estes apenas se refugiavam na
ambientação escura, vidros fumês e portas fechadas, no estilo de bar quase-
clube-privê – marca do “Caneca de Prata”, na avenida Vieira de Carvalho, que
existe com essa clientela desde 1962 e é provavelmente o mais antigo espaço de
freqüência homossexual em funcionamento em São Paulo. Atualmente, vários
homens? se aglomeram na calçada defronte ao bar, numa pequena multidão que
liga o Caneca de Prata, agora menos escuro e austero, à Lanchonete Nova Vieira,
com seu aspecto de botequim popular iluminadíssimo e aberto, onde os senhores
também se espalham, ao longo do balcão em forma de W e em algumas poucas
mesinhas dispostas na calçada, mesmo em noites mais frias. Há também uma
boate nas proximidades, o “ABC Bailão”, famosa por atrair uma clientela de
homens mais velhos – e, em virtude disso, é também conhecida maldosamente
como “INPS” ou “desmanche” –, que funciona no mesmo salão ocupado pela
extinta “Homo Sapiens”, uma das casas noturnas mais famosas durante primeira
onda de visibilidade homossexual em São Paulo, nos anos 1970 e 1980
Misturados aos mais velhos estão os “ursos”. Ambos se aproximam na
ênfase comum nos sinais de apresentação e postura corporal que indicam
“masculinidade” e se opõem à afetação e à “frescura”. No caso dos “ursos”, trata-
se de valorizar gordura, barbas, bigodes e cavanhaques – em contraposição aos
torsos depilados e músculos definidos, característicos das “barbies” ou dos
“bombados”, seus antagonistas em estética, que cultivam o corpo mediante horas
de exercícios físicos e, não raro, ingestão de hormônios e anabolizantes.
Em São Paulo existem grupos de “ursos” que possuem sítios na internet,
grifes de moda próprias e promovem eventos em vários estabelecimentos
comerciais. Um desses grupos mantém uma loja e uma casa noturna no largo do

21
Peter Fry, “Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil.” In: Para
inglês ver: Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
10

Arouche, e tem como marca de identidade ou logomarca a bandeira “bear” (sob a


qual algumas dezenas de “ursos” desfilaram na Parada GLBT de 2004), a qual,
em vez ou seria no lugar dos matizes do arco-íris, usa tons de preto, marrom,
ocre, branco, gelo, cinza e prata – “cores de macho”, segundo um jovem
informante “urso” 22
A área central continua a concentrar focos de prostituição masculina:
garotos de programa espalham-se, em grupos ou sozinhos nas calçadas, pela
praça da República, ruas do Arouche e Rego Freitas, onde dividem espaço com
prostitutas e travestis, procurando se exibir a possíveis clientes que passam de
automóvel ou a pé. Garotos de programa e travestis não se limitam aos seus
pontos fixos; ao contrário, integram-se à cena, freqüentando as boates da região e
circulando em pequenos grupos, pelo burburinho da avenida Vieira de Carvalho e
transversais. Parecem mesmo ser um dos atrativos23 da “mancha”, que se destaca
também pela oferta crescente de locais que propiciam encontros sexuais entre
homens. Afora uma dezena de cinemas “de pegação”, alguns dos quais incluem
salas exibindo filmes de sexo explícito entre homens, há uma casa noturna – com
filial na mesma região – que se apresenta como “clube de sexo grupal”. Quase
todas as boates têm seu “dark room”, o quarto escuro separado que funciona
como local para práticas sexuais de todo tipo, muitas vezes anônimas.
Uma das boates mais recentes e concorridas na área, a “Planet G”,
apresenta a novidade de funcionar como uma danceteria comum, no piso térreo, e
simultaneamente manter um cinema de sexo explícito no piso superior, colado ao
seu “dark-room”. Parece ter conseguido sucesso, a julgar pelas grandes filas na
entrada da casa, que se estendem por toda a madrugada. A “Planet G” e similares
– como a “Danger”, na mesma rua - costumam desempenhar função estratégica
para muitos de seus freqüentadores, que as vêem oferecendo a possibilidade
segura de conseguir parceiros sexuais após tentativas mal-sucedidas em outros
estabelecimentos mais sofisticados do “circuito GLS”. Outro atrativo, sublinhado

22
Júlio Assis Simões, “Além da barbie: outras imagens na cena homossexual contemporânea”. Comunicação
apresentada à XXIV Reunião Brasileira de Antropologia, Olinda, 2004.
23
Guias virtuais e jornais distribuídos nas “manchas gays” costumam destacar, em suas listas de espaços de
freqüência homossexual de São Paulo, as principais ruas da cidade em que se pode encontrar michês e
travestis.
11

por uma (?) travesti que, como muitas outras, freqüenta a “Planet G”, parece
residir na possibilidade de se encontrar bons “bofes” – homens de classes
populares, muitas vezes desempregados e moradores da periferia, que não se
identificam como homossexuais e desempenham o papel de “ativos” –, cuja
presença é condicionada pelos preços baixos e pela entrada gratuita até
determinado horário.
Colado à “Planet G”, está o “Shopping Victor, Victória”. Inaugurado em
2002, é o primeiro centro de consumo GLS em São Paulo a intitular-se como
shopping, apesar de abrigar apenas estandes que comercializam roupas, livros,
acessórios, cds, produtos místicos, perfumes, lingeries e perucas; além de ter dois
cafés e oferecer serviços de estética como depilação masculina e cabeleireiros.
Um shopping center de fato que ficou conhecido pela sua ligação, não declarada,
com uma freqüência homossexual crescente, é o “Frei Caneca”, situado na rua de
mesmo nome, entre o Centro e os Jardins. O lugar também é conhecido como
“Gay Caneca” e “Gay Boneca”, entre freqüentadores do “gueto”, e foi palco de um
“beijaço”24, organizado em 2003, em protesto contra a censura feita pela gerência
do shopping a dois rapazes que se beijavam em suas dependências. O “beijaço”
foi amplamente divulgado pela imprensa, atraindo uma multidão ao
estabelecimento; este, por sua vez, preparou uma decoração especial para
receber os manifestantes, na tentativa de reverter o protesto numa grande festa e
recuperar a imagem positiva (ele a tinha antes?.
Na expansão do “gueto” em direção aos bairros de classe média alta, que
parece ter caminhado junto com a popularização da sigla GLS, a tendência é
defrontar com a adesão mais explícita a padrões elevados e sofisticados de renda,
estilo, apresentação corporal, preferências estéticas e consumo, como que
conformando um público “moderno”, sintonizado com modos e modas

24
O “beijaço” é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento homossexual desde 2002,
quando ocorreu o primeiro deles num bar do eixo Paulista-Jardins. Nos mesmos moldes do kiss-in, tática
política do movimento nos Estados Unidos e Europa, o “beijaço” consiste numa demonstração pública de
afeto entre homossexuais em locais em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público. O
kiss-in, por sua vez, foi inspirado em estratégias de ocupação presentes nos movimentos por direitos civis
desde a década de 1960, quando o movimento negro realizou os primeiros sit-ins, em que um grupo ocupava
um estabelecimento onde sua presença fosse malvista ou proibida.
12

globalizados associados à homossexualidade.25 Neste público proliferam as gírias


dos freqüentadores de clubes de música eletrônica, marcadas pelo uso de termos
em inglês e que configuram uma “linguagem própria”, inacessível aos “de fora”.
São estes essa relação anafórica cria ambigüidade estes, os de fora ou os outros,
em especial, que se valem de termos como “bichas quá-quá”, para designar ou
acusar os jovens homossexuais pobres, escandalosos e afeminados.26 São estes
também que, em contrapartida, são chamados ou acusados de “bichas finas” ou
“bichas ultralounge” – termo emprestado da casa noturna dos Jardins que virou
referência para designar a clientela homossexual composta de “finos, modernos e
bacanas”.27
A área Paulista—Jardins conta com pelo menos 20 bares e boates
destinados ao público homossexual. Nos bairros Itaim Bibi, Pinheiros, Vila
Madalena e Moema, encontram-se mais 11 casas noturnas. Pode-se incluir nesse
conjunto duas danceterias localizadas na Lapa e Barra Funda, conhecidas pela
sofisticação de sua decoração, iluminação e tecnologia de som, assim como pelo
elevado preço da entrada – ao menos cinco vezes maior, em comparação com as
boates do Centro.
Os estabelecimentos de freqüência homossexual dos Jardins concentram-
se principalmente no quadrilátero formado pelas alamedas Jaú e Tietê, avenida
Rebouças e rua Augusta. As danceterias dos Jardins, cuja clientela é
majoritariamente masculina e jovem, estendem-se ao longo do trecho estreito da
rua da Consolação e suas transversais. Um braço segue na direção do Centro,
pela rua Frei Caneca, que abriga a boate “A Lôca”, a única “casa GLS” da região a
oferecer uma noite de rock bastante concorrida. Na maioria dos estabelecimentos

25
Os trechos próximos ao cruzamento da rua da Consolação com a avenida Paulista foram marcados por uma
freqüência homossexual masculina popular, dos anos 1970 a 1990, que se movia num percurso entre a boate
“Nostromundo” e os bares e lanchonetes situados na esquina oposta, como o “Baguette”, o “Burger & Beer”,
o “Chamego” e o “Riviera” – atualmente, a maioria desses bares fechou as portas ou mudou de público, e o
movimento de rua diminuiu.
26
Veja-se como a jornalista Erika Palomino, agitadora da porção mais sofisticada da cena de música
eletrônica da cidade, emprega as gírias classificatórias quando narra um passeio por São Paulo com um
famoso DJ internacional: “quando passamos de carro em frente ao Burger & Beer, reduto quá quá quá meio
pobre de São Paulo, falei que ali estavam as bichas cheap”. Cf. Erika. Palomino, Babado forte: moda, música,
noite. São Paulo: Mandarim, 1999, p. 173.
27
Conforme o sítio http://www.glx.com.br .
13

dos Jardins, predominam as diversas modalidades de música eletrônica, ao lado


da dance music.
A presença de bares para o público feminino é significativamente menor
que os destinados ao público masculino, embora seja maior, na mesma
proporção, se comparada com a área central. Suas freqüentadoras compõem
estilos variados, incluindo uma “facção moderna”.28 A alameda Itu concentra a
maior parte desses bares e boates que, diferentemente da maioria dos
estabelecimentos destinados ao público masculino, costumam apresentar também
música ao vivo cujo estilo predominante é “MPB moderna”. Na região também se
observa um número razoável de restaurantes sofisticados que se classificam
como GLS e servem comida tailandesa e sushis.acho que é sushii
Em contraste com a “mancha” do Centro, a área Paulista—Jardins não
abriga cinemas de “pegação” (não sei se se pega, mas aquele cinema da
Brigadeiro esspecializou-se em pornô; Ulisses saberá?. Há, nas proximidades, um
famoso ponto de garotos de programa, em volta do Parque Trianon29, mas ele
parece se manter apartado da cena homossexual local. Os garotos de programa e
travestis não circulam pelas ruas de movimento da região com a mesma
freqüência e desenvoltura como os do Centro. Travestis não são vistos nos
estabelecimentos, embora seja comum às duas regiões a presença de “drag
queens” – como “promoters” ou “hostess” das casas noturnas, no caso do eixo
Paulista—Jardins, ou como apresentadoras de espetáculos breves, no caso do

28
Citando, novamente, Erika Palomino, agora descrevendo a festa semanal “Cio”, surgida em 1997: “tratava-
se das coisas mais frescas da noite de São Paulo, a primeira iniciativa para uma facção mais moderna das
meninas locais. Elas se vestem com camiseta regata branca com alça de sutiã preto e usam muito delineador
branco, hype lançado por Glaucia. São lindas e têm sempre um look. E a pegação funciona. A cada semana
mudam as DJs (nem sempre gays) e a decoração do lugar, sempre feita por uma garota, puro pussy power.”
Cf. Erika Palomino, op.cit., p. 153.
29
Lembremos do “garoto de frete do Trianon”, cantado por Caetano Veloso em sua canção “Fora da Ordem”.
E também do “maníaco do Trianon”, apelido dado pela imprensa a um garoto de programa acusado e
condenado por vários assassinatos de homossexuais ocorridos em São Paulo na segunda metade dos anos
1980. Essa história é notavelmente recuperada e devassada no livro de Roldão Arruda, Dias de ira, op. cit.
Sobre o Parque Trianon atual, veja-se a descrição contida na matéria “São Paulo à Noite, na primeira edição
da Revista Oficial da Parada do Orgulho GLBT de SP, de 2004: “No passado [sic] foi ponto de prostituição e
símbolo de decadência. Atualmente o parque foi revitalizado e conta com segurança e muita iluminação
noturna na praça externa. Como ele está no centro nervoso da cidade, é um ótimo ponto de encontro, paquera
e contato com a natureza.”(p.62-63). Mais adiante (p.68), ao comentar as opções oferecidas na “noite gay”
paulistana, a mesma Revista assinala que ao redor do Parque Trianon há uma “concentração de garotos de
programa”.
14

Centro.
As “drag queens” são um fenômeno singular no desenvolvimento do
“circuito” homossexual paulistano da última década. O termo designa homens que
criam uma personagem travestindo-se de mulheres, em determinadas ocasiões,
sem necessariamente transformar o corpo de forma definitiva e enfatizando o
exagero da composição, ao incorporar personagens femininas de forma
debochada. Alguns podem reconhecer as “caricatas” dos anos 1970 como
precursoras de algumas destas características. Seja como for, a origem recente
das “drags” remonta à segunda metade da década de 1980, quando eram
realizados concursos de “drag” em Nova York, no bairro do Harlem e em
Manhattan. A partir daí, as “drags” espalharam-se para os clubes de música
eletrônica e para a cena gay. Em São Paulo, as primeiras “drags” apareceram no
início da década de 1990, ganhando rápida popularidade no “mundo da noite” e
visibilidade na mídia. Hoje, as “drags” são atração de inúmeras casas noturnas da
cidade, e algumas têm até quadros fixos em programas de televisão de rede
nacional.
Alguns estabelecimentos nos Jardins oferecem locais para encontros
sexuais entre homens que buscam reproduzir o modelo europeu ou norte-
americano de clube fechado, voltado a um público mais elitizado. Assim, ao lado
dos infalíveis dark rooms das boates, há casas singulares, como a “SoGo”, que
funciona em três ambientes: dois são similares a qualquer outra boate, com pista
de dança e bar, e o outro é organizado para atender a encontros sexuais
específicos, com cabines reservadas e apetrechos especiais cujo acesso é
exclusivo aos homens e impõe certas exigências de vestimenta, ou “dress codes”.
– os acessórios de couro no estilo sadomasoquista já estiveram na ordem do dia,
mas um fetiche que sempre abre as portas é a básica combinação camiseta-e-
calça jeans.Esse período está imenso; vale a pena fragmentar? De funcionamento
similar à “SoGo”, existem mais duas casas denominadas de “cruising bars” na
região de Pinheiros.
As saunas destinadas a trocas sexuais entre homens são um caso à parte
na configuração territorial do mercado dirigido ao público homossexual na cidade
15

de São Paulo. Ao contrário dos demais estabelecimentos, as saunas não se


concentram majoritariamente nas “manchas gays”, espalhando-se por diferentes
pontos da cidade, no Centro e nos bairros classe-média de Higienópolis, Vila
Mariana e Pinheiros. Também há saunas na Zona Leste da cidade, como a
“Alterosas”, na Cidade Patriarca, e em municípios vizinhos como Osasco e São
Bernardo do Campo. A maioria das saunas é freqüentada também por garotos de
programa. Algumas oferecem serviço de rapazes “acompanhantes” e shows de
travestis e drag queens. As mais sofisticadas incluem cabines com vídeo e até
miniacademias de ginástica. A conta de um programa numa sauna pode ser
elevada, se o cliente incluir, além do próprio ingresso e do consumo no bar ou em
outros equipamentos, também a bebida e os demais serviços dos
“acompanhantes” à disposição. Uma das mais conhecidas saunas da cidade
costumava fazer promoções para atrair a clientela em dias da semana com menor
movimento, com ingressos mais baratos e a oferta de uma macarronada,
alegremente compartilhada pelos clientes e pelos “capetinhas de plantão” – nome
que a casa dava aos seus “acompanhantes”.
Outro espaço não integrado às “manchas” do Centro e dos Jardins é o
“autorama”, estacionamento localizado numa área do Parque do Ibirapuera pouco
movimentada durante o dia. Esse espaço, me parece, é área onde o Detran aplica
teste de direção para carteira de motociclista À noite, o estacionamento
transforma-se em um espaço de sociabilidade homossexual, figurando na maioria
dos “guias gays” como um dos lugares tradicionais de “pegação” da cidade e
ganhando um intenso tráfego de automóveis, a que se deve o nome pelo qual é
conhecido. Em 2002, foi alvo de grande polêmica, quando a Prefeitura fechou a
área sob a alegação de que era insegura e funcionava como ponto de tráfico de
psicoativos ilícitos. A proposta da Prefeitura era remodelar o “autorama”,
batizando-o de “Espaço de Convivência Homossexual” – o que gerou
controvérsias junto à militância homossexual e atraiu também a desaprovação de
associações de moradores das vizinhanças, que mantêm uma relação bastante
tensa com o local. O “autorama” foi reaberto, após entendimentos com lideranças
do movimento homossexual, com mais iluminação e com a presença eventual de
16

policiais, apesar do projeto de “espaço de convivência” não ter sido levado


adiante.
Entre os setores emergentes do mercado voltado ao consumidor
homossexual, há tambémvideolocadoras especializadas em filmes de sexo
explícito entre pessoas de mesmo sexo, e também petshops – um destes usa
como propaganda o bordão: “Traga seus ‘filhos’, eles vão amar!” Recentemente,
um discreto cartão publicitário distribuído em bares dos Jardins oferecia “Uma
concessionária moderna e de portas abertas para ouvir suas propostas!”, com um
disfarçado arco-íris de faixas verde, amarela e vermelha servindo de pano de
fundo para o bordão.30 Um segmento do mercado que parece estar em franca
expansão é o de agências de turismo GLS, que realizaram em 2004 o seu
“Primeiro Fórum Paulista”. As agências com roteiros exclusivamente
homossexuais, organizadas em torno da recém-criada ABRAT-GLS (Associação
Brasileira de Turismo GLS), perfazem o número de cinco estabelecimentos, e há
pelo menos mais duas agências especializadas nesse público na cidade de São
Paulo, espalhadas por diversos bairros. A primeira agência de turismo destinada
ao público homossexual foi a “Interrainbown”, criada há 14 anos e ainda atuante,
ajudando a compor a ABRAT-GLS. O “turismo GLS” tem sido tema de reportagens
nos cadernos especializados dos grandes jornais de São Paulo31, e cidades como
Búzios e Cabo Frio e também Paraty, no estado do Rio de Janeiro, têm
organizado festivais com a intenção de se consolidar como destinos turísticos para
o público homossexual. E o caso de Juich de Fora?
A formação de um empresariado organizado e especializado no público
homossexual é outra novidade dos últimos anos. A ABRAT-GLS é o mais recente
exemplo, mas há também o “Bureau de Negócios GLS” e a “Associação de
Empresários Gays do Brasil”, que afirmam atuar com o objetivo de estimular e

30
Diante da pergunta de qual seria a especificidade de uma concessionária GLS, a proprietária da casa, que
distribuía os cartões, respondeu que “os funcionários recebem um treinamento adequado para não discriminar
nenhum tipo de pessoa, o que não se vê sempre por aí”.
31
Ver, por exemplo, “Além do arco-íris: indústria do turismo reconhece a importância do segmento GLS -
confira a agenda das paradas e descubra serviços gay-friendly”. Folha de S. Paulo, Caderno Turismo, 26 jul
2004.
17

fortalecer o “mercado GLS” no Brasil, tendo São Paulo como principal pólo de
irradiação.
Para além do mercado de base territorial, cabe considerar a expansão da
mídia segmentada dirigida ao público homossexual. Depois do desaparecimento
do pioneiro jornal Lampião da Esquina e de sua sucessora, a revista Playguei,
de brevíssima existência, o mercado editorial movimentou-se nos anos 1990, com
o surgimento das revistas de circulação nacional G Magazine e Sui Generis. A
primeira, ao estampar nus de homens famosos, inclusive jogadores de futebol,
chegou a alcançar tiragem de 150 mil exemplares. A segunda, menos bem-
sucedida em termos de vendas, continha artigos sobre cultura, moda e
comportamento, e deixou de circular em 2000. Continuam existindo alguns
pequenos jornais em formato tablóide que trazem artigos curtos, anúncios de
estabelecimentos gays, coluna social e notícias que dizem respeito à
homossexualidade. Alguns, como o Grito G, Abalo e GenteLivreSim, são
distribuídos nas “manchas gays” das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
podendo ser também assinados pelos leitores. Há, ainda, as “Edições GLS”, com
vários títulos publicados de temática homossexual, entre romances, biografias e
livros de auto-ajuda.
Além disso, é importante ressaltar, como já dissemos, a internet, desde que
o espaço de interação social, de busca por parceiros sexuais e de ampliação da
sociabilidade deixou se ser provido exclusivamente por instituições como bares,
botequins e casas noturnas. Entre os sítios voltados ao público homossexual, o
exemplo mais bem-sucedido é o Mixbrasil, tido como o mais visitado portal de
notícias ligadas ao “mundo GLS no Brasil”32, contando também com artigos, fóruns
de discussão, bate-papo, serviço de encontros, roteiros gays das grandes capitais
brasileiras, notícias sobre a noite GLS, contos, fotos, fotonovelas e vídeos
eróticos. Como o Mixbrasil, há uma profusão de sítios comerciais destinados ao
público homossexual, como o GLX, Gaybrasil.com, Gchannel, entre outros. Há
também portais segmentados, como Grisalhos, Maduros, Crônica Bear, entre

32
Considerando dados fornecidos pelo próprio sítio, que, em sua última contagem, registrava 16 mil
usuários/dia.
18

outros. Em 2004, foi lançado o primeiro canal GLS de TV digital, a tvtudo.com.


Enquanto escrevemos, corre a notícia do futuro lançamento, pelas Organizações
Globo, de canal erótico de TV a cabo destinado ao público homossexual
masculino, intitulado “For Man”.33

Diversidades e tensões

Este sumário etnográfico evidencia a expansão, diversificação e


mercantilização dos espaços de sociabilidade homossexual na cidade de São
Paulo nos últimos anos. Acrescentamos aqui, à guisa de conclusão, algumas
observações recortadas desse breve relato da complexificação das expressões e
vivências associadas à homossexualidade.
O que nos permite falar de um “circuito” homossexual na cidade de São
Paulo é a percepção, compartilhada por seus diversos freqüentadores, de que há
similaridades e diferenças entre os serviços e equipamentos oferecidos por
determinadas “manchas”. Assim, ao percorrer essas áreas, é possível encontrar
serviços similares, ainda que com especificidades, em espaços descontínuos. São
os freqüentadores que, operando suas classificações, imprimem uma determinada
lógica ao aparente “caos semiológico”34 das configurações espaciais urbanas.
Pode-se considerar, pois, que o Centro e os Jardins configuram uma espécie de
“oposição estrutural”35 no “circuito” homossexual paulistano, tendo em vista o
contraste geral entre apresentações corporais, estilos, linguagens e personagens,
bem como nas qualidades dos serviços e equipamentos observados em cada
uma. Mas não devemos exagerar na distinção e na “identidade” específica de
cada “mancha” pois, como vimos também, há muita diversidade dentro de cada
uma, bem como considerável movimento de circulação e trocas entre elas. Além

33
“Canal gay da Globo vai se chamar For Man”. Folha de S. Paulo, Caderno Folha Ilustrada, 26 set 2004. O
canal será oferecido no sistema pay-per-view.
34
A expressão é de José Guilherme Magnani, op. cit., p. 25.
35
Para uma aplicação comparada dessa noção em referência às territorialidades urbanas homossexuais no Rio
de Janeiro, ver Fabiano Gontijo, “Carioquice ou carioquidade: ensaio etnográfico de imagens identitárias
cariocas.” In: Mirian Goldenberg (org.), Nu e vestido. Rio de Janeiro:, Record, 2002.
19

dos motivos mais fáceis de se supor para essas circulações – o dinheiro


disponível para a diversão, a avaliação dos lugares que oferecem maiores
probabilidades de se conseguir parceiros sexuais –, verifica-se também, entre um
pequeno grupo de “modernos alternativos”, a idéia de que “lixo é luxo”, o que os
faz explorar os variados lugares disponíveis do “circuito gay” da cidade.
Se, de um lado, o Centro representa a região em que tradicionalmente se
constituiu uma sociabilidade homossexual, pode-se considerar a “mancha”
Paulista—Jardins e seus pontos ou “postos avançados” para outros bairros de
classe média como fruto de uma recente expansão e diversificação do mercado
dirigido a homossexuais. De um ângulo, o desenvolvimento da área “moderna”
dos Jardins e seus pontos avançados ? parece apenas reforçar tendências
detectadas desde os anos 1970, no sentido de entronizar a imagem do
homossexual moderno como consumidor sofisticado, hedonista e individualista36 –
sendo que aos homens homossexuais em geral, independentemente do estilo ou
poder aquisitivo, continua se associando uma intensa e variada prática sexual sem
envolvimentos nem arrependimentos, em que pese toda a experiência recente da
epidemia HIV-Aids. Mas vemos também, em contrapartida, uma população muito
mais vibrante e diversificada, que nem mais pode ser caracterizada
unilateralmente por uma vivência de desarraigamento e desengajamento em
relação às parcerias duradouras e às relações familiares.
Expandido principalmente sob a bandeira do “GLS”, o “gueto” segue sendo,
de modo geral, bastante pluralista. Evidentemente, o que estamos chamando de
“pluralismo” não está isento de segmentações, tensões e conflitos. Mencionamos
algumas das classificações e categorias acusatórias que se orientam por
hierarquias à base de estilos, preferências estéticas e renda, bem como sugerem
uma possível compartimentalização entre estes. Além disso, o “gueto”, mesmo em
seus espaços mais assépticos, chiques e dourados, continua contíguo a outras
“territorialidades marginais” que envolvem diferentes modalidades de
contravenção e crime aqui você poderia iniciar outro período; está muito longo:

36
Sobre o “comportamento de consumo homossexual”, ver Adriana Nunan, Homossexualidade: do
preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003.
20

além da prostituição, e da relação ambígua, de mútua atração e estigmatização,


com os travestis e com os garotos de programa, podemos lembrar o comércio e
uso de psicoativos ilícitos. Cocaína, anfetaminas e diversos tipos de estimulantes
– do ecstasy aos seus alternativos mais baratos – são freqüentes nos espaços
“modernos” associados à cena da música eletrônica, e há pontos mais ou menos
duráveis de comércio e de uso socialmente aceitos de psicoativos ilícitos junto a
estabelecimentos conhecidos, tanto nos Jardins como no Centro. Há gírias
específicas para se referir a certas substâncias, como “padê” para a cocaína e
“macovers” para a maconha. Deve-se considerar ainda a utilização freqüente de
drogas lícitas destinadas à modelagem corporal, como os anabolizantes. A
preferência por determinadas substâncias ajuda a compor estilos diferenciados,
que podem ser reconhecidos com doses variáveis de antagonismo e tolerância37.
Ainda se observa a considerável permeabilidade e flexibilidade de
“fronteiras” entre as “manchas” e mesmo dentro delas, proporcionando “o gosto
pela aventura e pelo desconhecido” que, no mundo homossexual masculino, em
particular, continuam sendo “prezadíssimos condimentos de uma boa ‘transa’”
(como dizia MacRae em seu artigo original). Mas hoje é também muito mais
generalizado o reconhecimento de São Paulo como “uma cidade perigosa”, e as
preocupações com “segurança” são também mais evidentes e explícitas em toda
parte. “Segurança” é um termo destacado, sobretudo nas propagandas feitas por
estabelecimentos situados no Centro. O roteiro “São Paulo à noite”, incluído na
edição de 2004 da Revista Oficial da Parada do Orgulho GLBF de SP,
recomendava que se “evite transitar pelas ruas desacompanhado, principalmente
na região central da cidade”; e, ainda, que “se possível, saia sempre em turmas, e
prefira andar de carro ou de táxi, no período da noite”.
Recomendações desse tipo fazem o contraponto do sentimento de
tolerância crescente para com as manifestações públicas da homossexualidade,
expressando a consciência, sobretudo por parte dos militantes e de outros setores
organizados, em relação aos tipos de violência que atingem especificamente os

37
Ouvimos de um homem gay elegante, de classe média alta, na casa dos 40 anos, um pouco em tom de
blague, que “na Lôca vão os jovens, meio alternativos, que gostam de cocaína; na Level e na Blue Space vão
os bombados, que consomem anabolizantes; e no Bailão vão os que tomam banho, almoçam e jantam”.
21

homossexuais e que também têm recebido uma visibilidade crescente no Brasil.


Evidência disso é a repercussão alcançada por crimes com vítimas identificadas
como homossexuais, sejam atos de extorsão e chantagem, como o golpe do “boa-
noite, Cinderela”,38 ou assassinatos, mesmo que não envolvam figuras
socialmente proeminentes como vítimas – como ilustra o rumoroso caso do
assassinato do adestrador de cães Edson Neris, na praça da República, em 2001,
por um grupo de jovens classificados como “skin-heads”.
Também alcançaram maior divulgação e repercussão pública episódios
reconhecidos como discriminação sofrida por homossexuais, seja em serviços
oferecidos ao público em geral, ou em espaços de consumo e lazer – como o que
resultou no episódio do “beijaço” no Shopping Frei Caneca. Casos como esse
apontam outros efeitos de tensão decorrentes da ambivalência do rótulo “GLS”,
com que vários estabelecimentos se declaram e/ou são reconhecidos. Tais
estabelecimentos querem atrair o consumidor homossexual, mas não querem ser
rotulados como “lugares de homossexuais”, por temer que isso afugente outros
clientes. Assim, nesses espaços, nem sempre há acordo, entre proprietários,
administradores e clientes, quanto ao que deve ser a conduta publicamente
aceitável, sobretudo no que se refere às manifestações de afeto entre pessoas do
mesmo sexo. Clientes podem se considerar no direito de extravasar o que julgam
ser limites rígidos injustamente impostos, que impedem, por exemplo, que dois
homens ou duas mulheres se beijem apaixonadamente em público. Cabe notar
que desde dezembro de 2001 foi sancionada no estado de São Paulo uma lei que
pune “atos atentatórios e discriminatórios aos direitos individuais e coletivos dos
cidadãos homossexuais, bissexuais ou transgêneros”, cuja aplicação efetiva ainda
enfrenta dificuldades.
Olhando retrospectivamente o texto de MacRae, que nos serviu de
inspiração geral, gostaríamos de chamar a atenção para o modo como a ênfase
na emergência de novas identidades sexuais, capazes de promover um senso
mais elevado de auto-estima e maior tolerância e aceitação da homossexualidade,

38
Nesse golpe, as vítimas são dopadas, depois roubadas e, eventualmente, chantageadas e extorquidas sob
ameaça de outing (isto é, de se revelar publicamente a homossexualidade da vítima, para empregadores e/ou
familiares).
22

ligava-se ao esforço de evidenciar o papel positivo do “gueto” – o que depois


passou a ser chamado de “política da “visibilidade”. Essa não era uma postura
consensual na militância política homossexual nem entre os pioneiros na adoção
do estilo de vida “gay moderno” na época39.O “gueto” era também desprezado, por
seu segregacionismo, sua vulgaridade, seu comercialismo, sua abjeção. Mesmo
hoje em dia, o “gueto” (ou o “meio”, como às vezes é referido) segue alvo de
repulsa da parte dos que, pelas razões mais diversas, não querem ser
identificados com ele, mesmo que o freqüentem. Por isso, também, a “defesa” do
“gueto” continua a ser um tema candente e atual. Que os territórios reais e virtuais
aqui tratados – por mais ampliados, diversificados e pluralistas – ainda sejam
reconhecidos como “guetos” é um indicador da tensão recorrente entre os
esforços de “pluralizar o universal”40, combatendo a segregação e a
incomunicabilidade das diferenças, e a necessidade de manter espaços
protegidos diante da intolerância que persiste sob múltiplas formas e
procedências.

39
Carmen Dora Guimarães, O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004; Peter Fry,
“Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil.”,op.cit.
40
A expressão é de Hannah Arendt, e nos foi recordada em Verena Stolcke, “Posfácio: o negócio das
diferenças.” In: Heloísa B. de Almeida et al. (org.) Gênero em matizes. Bragança Paulista, EDUSF, 2002.

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