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O que a nossa educação superior tem a aprender com o Relatório de Yale de 1828?

Parece uma conversa atrasada buscar em um relatório da primeira parte do século XIX
considerações importantes acerca do rumo que a nossa educação tem tomado na atualidade.
Todavia, pretende-se com este texto situar o leitor aos acontecimentos da Faculdade de Yale
(EUA) em 1828 e como eles tocam diretamente as demandas da educação superior brasileira.
Alguns pontos do relatório serão destacados e ampliados para melhor compreensão do leitor.

A educação na Faculdade de Yale nos EUA de 1828 tendia a ser uma educação abrangente e
“não profissional”. No entanto havia uma pressão do movimento industrial crescente para que
a educação atendesse diretamente as demandas deste crescimento. A educação com foco no
desenvolvimento integral humano estava sendo posta em xeque, pois buscava-se que ela
atendesse ao espírito da época, isto é, uma educação para o trabalho. Isso motivou a
solicitação ao Comitê formado por pessoas do alto escalão da Faculdade de Yale, a avaliar a
possibilidade de exclusão do estudo dos clássicos, em especial, o estudo das línguas antigas:
grego e latim. O Comitê, então, muito sabiamente, pediu ao Corpo Docente da faculdade que
expressasse a sua opinião a este respeito. Destarte, o Corpo Docente elaborou um relatório
que tratou desta temática em duas partes: a apresentação de uma visão concisa do programa
de ensino da faculdade e a análise da pertinência em se manter o estudo das línguas clássicas.

A primeira parte do relatório inicia com a avaliação da necessidade de mudanças na educação


com vistas a acompanhar os “avanços da época”. Alguns afirmaram de forma equivocada que
a Faculdade não se prestava a mudanças significativas e que havia estacionado no tempo. É
provável que tal afirmação adviesse daqueles cujo espírito revolucionário pretendia perverter
a ordem presente, jogando todo o arcabouço teórico clássico fora para, ainda que com boas
intenções, inserir um conteúdo desconhecido e perigoso em seu lugar. Por mais que a
motivação da revolução dos EUA tenha sido diferente da revolução francesa, havia certa
influência do espírito revolucionário francês na mente de alguns que buscavam, em nome de
um futuro incerto, desfazer-se da sabedoria antiga acumulada.

Na verdade, havia a clara constatação de que mudanças substanciais ocorriam desde a


fundação da Faculdade. Os aperfeiçoamentos eram constantes, porém, sem o risco de perder
aquilo que já havia sido conquistado em troca de ajustes de caráter empresarial. O relatório
chamou a atenção inicialmente para o objetivo adequado de uma faculdade, qual seja, “o de
lançar os alicerces de uma educação superior com uma educação meticulosa e completa de
natureza ampla, sólida e profunda”. A educação que alguns estavam propondo ao Comitê,
pelo contrário, era parcial e superficial com conteúdos menos rígidos e estudos mais
apressados. Se esqueceram de que a educação clássica – cultura intelectual – fornecia, pelo
menos, duas grandes qualidades aos que a ela se dedicavam: a disciplina e o aparato da
mente.

O que estava em jogo de forma direta era a cultura do desleixo com a vida
acadêmica/intelectual em contraponto a diligência nos estudos. Como é dito no relatório: “Os
hábitos de pensamento devem ser formados por dedicação prolongada, contínua e minuciosa.
As jazidas da ciência precisam ser escavadas até muito abaixo da superfície para que comecem
a revelar seus tesouros”.
As faculdades da mente como o raciocínio, imaginação, eloquência, memorização, etc., são
vigorosamente exercitadas pelo estudo da ciência e da literatura clássica visando manter um
adequado equilíbrio de caráter. Estas formas de ensino e de exercício das faculdades mentais
eram alvo do que se chamava educação liberal. Geralmente o termo educação liberal possui
uma compreensão inadequada por boa parte das pessoas, inclusive, do meio acadêmico,
confundindo-o com liberalismo econômico, liberalismo moral, etc. Falaremos mais
detidamente sobre isso na segunda parte do texto.

O objetivo da educação superior proposto no relatório poderia ser alcançado por meio de
aulas expositivas e avaliações (sabatinas orais e exames) consistentes. Estas avaliações
ajudavam na verificação se os alunos estavam apenas se aproveitando das demasiadas
explicações dos professores sem que exercitassem o seu intelecto, ou se de fato estavam se
esforçando mentalmente por aprender o conteúdo passado. Ao sair da faculdade, o aluno
estaria apto a conhecer outras áreas e assuntos com maior visão e desenvoltura. Isso só era
possível a partir do ensino das bases comuns a todas as profissões e não o ensino de uma
profissão apenas. Afinal de contas, “tudo lança luz sobre tudo”. Ao conhecer apenas a ciência
ou a área específica de sua profissão o homem torna-se limitado e com opiniões que não
passam de sacos vazios, ou seja, que não se sustentam. Já aquele que possui conhecimento
amplo sobre as ciências e a literatura, transita com tranquilidade entre os sábios de diversas
áreas, além de obter elevação e dignidade de caráter, cujo poder de influência é notório por
onde passa.

Contudo, nem todos possuem condições financeiras e de tempo para se lançar a uma
educação meticulosa. Neste caso, a educação parcial pode ser uma saída, pois uma educação
imperfeita é melhor que nenhuma educação. Essa educação ainda é preferível à educação
superficial que se propõe a ensinar de tudo em pouco tempo. Quem estuda desse modo acaba
por ter sua vaidade inflada achando que sabe de tudo, quando, na verdade, sabe pouquíssimo
acerca das coisas tornando-se alvo de chacota e vergonha pública diante dos homens de
erudição e sabedoria. O contexto educacional brasileiro de educação superficial normalmente
tem formado pessoas com esse tipo de comportamento. Acham que sabem e podem opinar
inequivocamente sobre tudo.

Outra questão daquele tempo que tem sido levantada atualmente em nosso contexto, se
refere ao aluno escolher as disciplinas (do Ensino Médio) que entende ser mais úteis para a sua
vida profissional ou aquilo que lhe desperta maior interesse. De certo modo isso tende a ser
um equívoco, pois a programação da escola deve capacitar seus ingressantes em uma
educação abrangente, sólida, profunda e ampla dando maiores condições de escolha e de
aprofundamento em qualquer ciência ou área profissional. Porém, naquele contexto a
formação visava ao desenvolvimento integral do homem, hoje, nosso contexto de educação é
quase que totalmente voltado para o trabalho.

O corpo docente da faculdade de Yale temia que o padrão de qualidade da educação superior
fosse rebaixado enquanto o padrão das academias e escolas profissionalizantes era elevado e
ampliado. Outra preocupação era a de que alunos que se dispunham a ter uma educação
parcial ou superficial queriam apenas ter seu nome vinculado a uma faculdade de renome.
Acerca disso, não é difícil perceber que uma parcela significativa de alunos das grandes
universidades brasileiras passa boa parte do tempo em atividades extraclasse, isto é, em bares
e festas, alguns chegando a dizer explicitamente que seu objetivo é o de apenas “conseguir o
canudo”.

Havia outro dilema enfrentado pela faculdade que se tratava da redução dos pré-requisitos
para entrada de alunos, de forma que a renda da faculdade aumentaria, mas, por outro lado, a
sua qualidade educacional, bem como sua reputação diminuiriam consideravelmente. Este é
sem dúvida um dos maiores desafios do nosso tempo: elevar os requisitos para entrada de
alunos sem, contudo, perder candidatos e, consequentemente, a renda para mantença da
instituição. Abaixo, segue um trecho do relatório que aponta para um triste quadro de
competição por números da educação brasileira: “A competição entre faculdades pode
promover os interesses da literatura: se essa for uma competição antes por excelência que por
números; se cada uma delas buscar sobrepujar as outras não em ostentação imponente, mas
no valor substancial de sua educação. Quando a rivalidade se transforma em mera disputa por
números, um hábil programa de medidas para recrutar mais alunos que as demais, o padrão
de mérito cairá cada vez mais, até que as faculdades desçam ao nível de academias comuns. É
apropriado aos patronos e guardiões do aprendizado sólido ceder a essa influência triste e
decadente?”.

Os obstáculos da insistência na educação meticulosa à época eram o crescimento industrial e a


demanda empreendedora que exigia uma educação parcial e mais rápida que atendesse aos
anseios econômicos vigentes. Para isso pensava-se em aumentar o numero de faculdades,
porém, sem o mínimo de recursos necessários à manutenção do padrão de qualidade. Era o
prenúncio de derrocada na certa. O aprendizado superficial na educação superior iria afetar as
escolas inferiores, reduzindo a qualidade na formação de professores e, consequentemente,
na educação dos alunos destas escolas. Não seria este um dos problemas centrais da educação
brasileira? Ou, dito de outro modo, a má formação de professores e o enviezamento político
das grades curriculares não tem tornado a educação brasileira um círculo vicioso sem fim,
cujos resultados têm ficado abaixo da média internacional? A preocupação com o
esmagamento da tradição acumulada, da priorização de anseios voltados a políticas de
identidade e a formação do ideal revolucionário do homem utópico, denunciam
veementemente a “educação” do nosso tempo. Por fim, diz ainda o relatório na conclusão
desta primeira parte: “Onde um governo livre dá plena liberdade para o intelecto humano
expandir-se e atuar, a educação deve ser proporcionalmente liberal e ampla”.

A segunda parte do relatório inicia tratando do valor singular da educação liberal e seus
benefícios àqueles que a ela se dedicam. As faculdades da mente são ampliadas e seus
benefícios práticos sentidos no cotidiano dos alunos. Por outro lado, uma educação de
formação profissional apenas visava direcionar a prática profissional sem levar em conta o
desenvolvimento pleno do aluno. A esta altura é bom que o conceito de educação liberal seja
adequadamente entendido por todos. O termo liberal nada tem a ver com os significados
político e econômico utilizados hoje, mas, antes de tudo, resumidamente remonta a ideia de
artes liberais, a arte do homem livre (trabalhos da razão) com um nível maior de consciência
da realidade que o cerca em oposição às artes manuais e servis (trabalhos do corpo).
A grande questão de que se ocupavam naquele momento era se o plano de ensino da
faculdade estava ajustado em relação à literatura clássica e à ciência ou se havia a necessidade
de mudança tal que excluísse o ensino dos clássicos, em especial, das línguas antigas para
obtenção do diploma nas artes liberais. Havia a desculpa de que caso alguém quisesse saber
de um conhecimento mais específico o mesmo deveria perguntar a quem se formou nesta
área do conhecimento ou buscar tal informação em algum almanaque. Mesmo com o advento
da internet e das avançadas ferramentas de busca, ainda hoje a Faculdade de Yale mantém o
estudo meticuloso das artes liberais e ciências.

Havia um receio de que as instituições acadêmicas que insistissem no ensino meticuloso


acabariam sendo abandonadas. No entanto, este receio era logo aplacado quando se
observava que o saber em literatura clássica e ciência eram fundamentais para que o aluno
recém-saído da faculdade tivesse maior autonomia e possibilidade de atuação segura ao se
lançar na continuidade dos estudos em qualquer área do conhecimento. A mente do aluno era
melhor estimulada e preparada pelo conhecimento das artes liberais para lidar com os
desafios intelectuais que estavam por vir. Por exemplo: o estudo de grego e hebraico era
fundamental para a ocupação do teólogo. Hoje em dia, dá para contar nos dedos os seminários
que ainda se lançam a estudar estas línguas bíblicas de forma consistente e exaustiva.

Não somente naquela época, mas, principalmente hoje em dia o estudo da literatura antiga,
dos grandes nomes da filosofia antiga: Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles
são apenas vistos minimamente na grande maioria das faculdades de Filosofia pelo país. Estes
foram substituídos pelo estudo de filosofias rasas depositárias de um grande otimismo na
natureza humana e de relativização do conceito tradicional de verdade. O aluno tem sido
estimulado a apenas obter um diploma e nada mais. Conforme diz o relatório: “Mas, se se
busca a substância em vez da sombra, a coisa significada, e não o signo apenas, ainda resta a
seguinte questão a ser analisada: essas estradas diferentes não levariam a regiões
completamente diferentes aqueles que as percorrem?”.

Atualmente, tem sido ensinado que tudo que é antigo é errado e deve ser descartado, e tudo o
que é novo é certo e deve ser assimilado. Ledo engano. Se satisfazer com atalhos de ordem
educacional com uma educação parcial ou superficial apenas fará com que a instituição perda
a sua qualidade educacional e, consequentemente, o seu prestígio. A acusação infundada de
possíveis revolucionários sobre o caráter estático da faculdade era, em verdade, contraposto
pelo Corpo Docente. Sobre isso, diz o relatório: “[...] as acusações de que a faculdade é
estacionária, de que nenhum esforço é feito para adequá-la às necessidades da época, que
tudo o que se faz é com o propósito de se perpetuar abusos e que a faculdade continua
praticamente igual ao que era ao tempo de sua fundação são totalmente injustificadas”.

O parecer do comitê após a avaliação do relatório feito pelo Corpo Docente foi deveras
positivo, pois reafirmou a importância e necessidade da manutenção do estudo da literatura
clássica, em especial, das línguas antigas, uma vez que a sua relação com os demais
conhecimentos é notória e fundamental. Evocou-se, inclusive, o exemplo da França que
durante e logo após a Revolução optou por não estudar as línguas clássicas o que resultou no
baixo nível de erudição e de moral. Sua fama literária foi substancialmente diminuída. A este
respeito, o parecer da corporação ainda diz: “Diminua-se o valor de uma educação acadêmica,
e a difusão de conhecimento entre as pessoas cessaria, o nível geral de valor intelectual e
moral cairia, e nossa liberdade civil e religiosa seria colocada em risco por causa da
desqualificação última de nossos cidadãos para o exercício do direito e do privilégio da
democracia”. O comitê entendeu “que o minucioso estudo das línguas antigas, em especial o
latim e o grego, não só antes como após a admissão na faculdade, é, em muitos aspectos,
decididamente e positivamente útil ao aluno”.

Assim, o comitê emitiu o seguinte parecer: “As considerações especificadas de forma sucinta
no exame necessariamente rápido que fez do assunto que lhe foi encaminhado levaram o
comitê à conclusão de que é desaconselhável alterar o ensino regular nesta faculdade, de
modo a excluir do mesmo o estudo das línguas antigas”.

Diante desse breve resumo dos polêmicos acontecimentos da Faculdade de Yale em 1828,
passados dois séculos, fica a lição para nós de que uma educação superficial, cujo conteúdo e
método não se atenham ao pleno exercício das faculdades mentais do aluno e da melhoria do
seu caráter, continuará nos levando a bancarrota intelectual confirmada pelas últimas
colocações em testes internacionais, a exemplo dos recentes resultados do PISA – Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes.

Temos não apenas um problema de método e de conteúdo no que concerne a educação


brasileira, mas, antes de tudo, a que tipo de homem pretendemos formar. Esta questão
remete ao rumo atrapalhado que a nossa embarcação chamada educação, navegando pelas
turvas águas revolucionárias e progressistas, tem seguido nas últimas décadas. Ou procuramos
rever em caráter urgente o ideal de ser humano que temos formado em nossas escolas e
universidades ou continuaremos amargando as últimas colocações nos testes internacionais
de educação, além de contribuir com a deficiência intelectual de boa parte dos estudantes
recém-saídos das universidades do nosso país.

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