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O Século Perdido: raízes históricas das políticas públicas para a

infância no Brasil

1. Introdução – A dimensão social da infância

Durante o séc. XIX, a criança deixa de ser objeto de interesse, preocupação e


ação no âmbito privado para tornar-se uma questão de cunho social, de competência
administrativa do Estado.

Neste período, surgem novas teorias de fundamentação científica, e o interesse


pela infância reflete os contornos das novas ideias. A criança deixa de ocupar uma
posição secundária na família e na sociedade e passa a ser percebida como valioso
patrimônio da nação, “chave para o futuro” e um ser “dúctil e moldável”, que pode ser
transformado em um “homem de bem” ou um “degenerado”.

Assim, zelar pela criança corresponde a um gesto de humanidade a parte da


religião, uma ação que transcende o âmbito das relações privadas da família e da
caridade para significar a garantia da ordem e da “paz social”.

(Marcílio (1999) discorre sobre assistência à infância desvalida sob a ótica de duas principais
fases, sendo a primeira a caritativa, que compreende o período colonial até meados do século
XIX, e a segunda, filantrópica, que abrange o período posterior ao século XIX e que se estendeu
até meados do século XX. A fase caritativa é marcada pelo sentimento de fraternidade humana e
de inspiração religiosa, sem a pretensão de se promover efetivas mudanças sociais. Ademais, as
ações preconizadas durante esta fase eram caracterizadas pelo imediatismo, tendo como agentes
primários os indivíduos ricos e poderosos da sociedade, que buscavam, através de esmolas e de
boas ações, minimizar o sofrimento dos desvalidos)

A lógica evolucionista e positivista desta época trazia a ideia de que era preciso
vigiar a criança para evitar que ela se desviasse, e faz parte de uma missão eugênica
para recuperar a raça humana.

A prática comum na Europa Medieval, de abandonar os filhos ou não lhes prestar


maiores cuidados, passa a ser condenável e intolerada. A autoridade paterna passa
a ser regulada pelo poder público e perde seu caráter de intocabilidade.
Com o estabelecimento de uma concepção higienista e saneadora da sociedade,
busca-se atuar sobre os focos da pobreza e da desordem, ou seja, sobre o universo
da pobreza.

A degradação das classes inferiores passou a ser vista como um problema de


ordem moral e social.

Logo, passa a ser obrigação do Estado garantir a saúde do corpo social, sendo a
criança a base desse investimento, se constituindo como um dos principais
instrumentos de intervenção do Estado na família.

No Brasil, essas mudanças chegam ao final do século XIX. O clima de mudança


no país (emancipação, busca pela nacionalidade) suscitou a possibilidade de
(re)formar o país, o que logo adquiriu a dimensão de uma ampla “missão saneadora
e civilizatória”.

O ideal dessa época era salvar o Brasil do atraso, da ignorância e da barbárie,


para transformá-lo numa nação culta e civilizada.

(A medicina higienista atuará no âmbito doméstico, sendo eficaz ao educar


famílias a exercerem a vigilância sobre seus filhos. As famílias consideradas
incapazes ou indignas, e que não pudessem educar seus filhos, os deixariam sob
tutela do Estado.)

Se por um lado a criança simbolizava esperança – o futuro da nação, quando


devidamente educada ou, se necessário, retirada de seu meio e reeducada, sendo
útil para a sociedade, por outro também representava uma ameaça e duvidava-se de
sua inocência – descobrem-se na alma infantil elementos de crueldade e perversão.
A criança passa a ser representada como delinquente e deve ser afastada do caminho
que a leve à criminalidade, dos ambientes viciosos, em especial das ruas e das casas
de detenção.

A visão ambivalente da criança (em perigo vs perigosa) se torna dominante no


contexto das sociedades modernas.

No Brasil, no final do séc. XIX, identifica-se a criança, filha da pobreza (moral e


materialmente abandonada) como um problema social gravíssimo. Cria-se, a partir
de referencial jurídico associado ao problema, a categoria do menor, dividindo a
infância em duas, e simboliza aquela que é pobre e potencialmente perigosa,
abandonada e/ou pervertida ou que possa vir a ser um ou outro.

Em função do menor, cria-se um aparato médico-jurídico-assistencial de metas


definidas de prevenção, educação, recuperação e repressão.

Na dualidade de defesa, ora em função da criança, ora em função da sociedade,


estabelecem-se objetivos para as funções de:

- Prevenção: vigiar a criança, a fim de evitar sua degradação;

- Educação: educar o pobre, moldando-o para o habito do trabalho e para observar


as regras do “bem viver”;

- Recuperação: reeducar ou reabilitar o menor vicioso através do trabalho e da


instrução, retirando-o do crime e o tornando útil para a sociedade;

- Repressão: conter o menor delinquente, impedindo que cause outros danos e


visando sua reabilitação para o trabalho.

(A medicina tem o papel de diagnosticar na infância possibilidades de recuperação


e formas de tratamento; a justiça regulamenta a proteção da criança e da sociedade,
prevalecendo a educação sobre a punição; a filantropia substitui a caridade e tinha a
missão de prestar assistência aos pobres e desvalidos)

A composição desses elementos resultou na organização da justiça e da


Assistência (pública e privada) nas 3 primeiras décadas do séc. XIX.

Cuidar da criança e vigiar sua formação moral era salvar a nação. Logo, salvar a
criança era salvar a nação. Houve uma mudança na percepção que se tinha da
infância e o investimento feito tinha o objetivo de moldá-la para o futuro.

Menor – estereótipo da criança-alvo da ação civilizatória.

Código de menores de 1927: (Em 1927, foi aprovado o Código de Menores, considerado,
por muitos, um marco na história da assistência à infância, uma vez que esta passou a ser um
atributo do Estado. O discurso da assistência e o Código de Menores definiam um novo projeto
jurídico-institucional voltado para menores, de caráter não punitivo, mas recuperador, tutelar e
paternal (MARCÍLIO, 1999). Apresentava discurso ambíguo. A criança deveria ser
protegida, mas contida, a fim de não causar danos à sociedade. Essa ambiguidade
se relaciona à percepção de infância da época (em perigo vs perigosa) e estava
atrelada aos estratos sociais, onde geralmente a criança perigosa vinha de camadas
populares.

A imagem da criança ao final do séc. XIX entrava em contraste com a imagem


herdada da cultura cristã europeia, de pureza e inocência. A imagem da criança
“anjinho” será substituída por outra, produto de uma concepção científico-racional do
mundo, a partir da qual a “célula do vício” podia lhe ser transmitida antes mesmo de
nascer.

Apesar do discurso de educar a criança para o futuro da nação, cabia a ideia de


moldá-la para submissão.

O país, assim, optou por investir numa política predominantemente jurídico-


assistencial de atenção à infância, ao invés de uma política nacional de educação de
qualidade, ao acesso de todos.

Dicotomizou-se a infância: de um lado, a criança mantida sob os cuidados da


família e para a qual reservava-se a cidadania, e do outro lado o menor, sob a tutela
vigilante do Estado, objeto de lei, onde estava reservado para ela a “estadomia”.

A estadomia é, segundo José Murilo de Carvalho, um termo que se refere à ação


paternalista do Estado em composição à participação de cidadãos ativos no processo
político.

Vale ressaltar também que, no período ao qual este estudo se refere (de 1870 a
1930), “ser civilizado” era tido como um estado.

O RJ era cidade modelo nessa época, se assemelhando ao estereótipo de cidade


modelo europeia civilizada, singularizando sociedade urbana da época. É também no
RJ que são gestadas as principais ideias abordadas no livro.

O “estilo metropolitano de vida” modificou a vida mental do homem moderno. O


ritmo de vida urbana, suas construções e estilo estimulavam os perigos na crescente
população nas ruas.

A cidade propiciava uma mistura populacional desconhecida, assustadora. Em


meio à fervilhante ostentação da riqueza, também circulavam pela cidade
trabalhadores, pobres, vagabundos, mendigos, etc. Crianças e jovens eram figuras
sempre presentes no cenário de pobreza e abandono.

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