A sociologia urbana começou com a Escola de Chicago, que
consiste em três gerações de pesquisadores que produziram entre 1915 e
1940. As preocupações desses pesquisadores eram relativas a conjuntura da própria cidade em que a universidade se localizava, assim fizeram esforços para tornar o fenômeno urbano objeto sociológico. A cidade de Chicago em 1890 já era a 2ª maior cidade dos EUA, de um povoado de cerca de 200 mil habitantes no começo do mesmo século, ou seja, com um crescimento muito repentino e um grande número de migrantes, se caracterizava também como um polo industrial e importante centro comercial e financeiro. Tratava-se de uma cidade que lidava com a chegada em massa de migrantes e as implicações disso para a dinâmica urbana.
Esses cientistas se inspiraram na sociologia de Simmel, no
pragmatismo filosófico e no interacionismo simbólico, Coulon (1995) insiste no caráter multidisciplinar da escola, segundo ele “os laços entre a sociologia e outras disciplinas são múltiplos e sistemáticos: em primeiro lugar, com a antropologia (Edward Sapir e Robert Redfield), com a qual formará um único departamento até 1929” (p. 24) e acrescenta como disciplinas correlatas as ciências políticas, a psicologia e a filosofia.
A Escola de Chicago foi pioneira em vários aspectos, um deles foi
em relação a metodologia. Coulon (1995) lista como métodos originais de investigação trazidos por ela a utilização científica de documentos pessoais, o trabalho de campo sistemático e a exploração de diversas fontes documentais, além do próprio trabalho de campo. Até então a sociologia se detinha em uma metodologia rígida e posta como universal, num sentido de um molde, esqueleto onde o objeto de estudo devia ser encaixado, completamente inverso do que propõe a pesquisa empírica.
A escola estudou questões relativas ao espaço urbano, a imigração
e relações étnicas. Houve um interesse especial de seus pesquisadores pela questão da assimilação dos imigrantes a sociedade americana. Thomas e Znaniecki ao estudar a imigração polonesa trabalham a ideia organização e desorganização, a desorganização acontece quando há disparidade entre os indivíduos e as instituições, quando as últimas não estão adaptadas o suficiente aos primeiros. Coulon (1995) acrescenta que para Thomas e Znaniecki não é a imigração que primeiramente causa uma desorganização, mas que os grupos migram exatamente pelo estado de desorganização em que se encontravam em seus países de origem e que esse estado é provisório por ser seguido de um período de reorganização. Os autores diferenciavam ainda a desorganização social do que tratam como desorganização individual, onde utilizavam o termo “desmoralização”. Thomas defendia que a assimilação do migrante a sociedade americana é algo que naturalmente viria a ocorrer com o tempo e que era inclusive desejável.
Park abordando o mesmo assunto estruturou quatro etapas: a
rivalidade; o conflito; a adaptação; e a assimilação. A primeira etapa é caracterizada pela falta de contato social e se articula ao aspecto do equilíbrio econômico. O conflito já é exatamente quando a rivalidade aparece de modo consciente nos indivíduos, que se articulam para lidar com o grupo rival, engendrando uma esfera política. A terceira etapa é a adaptação, momento em que os grupos têm que se ajustar as condições existentes, dando lugar a última etapa, da assimilação, caracterizada não por uma perda das particularidades, mas por uma participação ativa no funcionamento da sociedade. Apesar de haver certa unidade em características, não se pode afirmar que se trata de uma corrente de pensamento homogênea, os pesquisadores da Escola de Chicago produziram muitas outras formulações sobre o tema, ora divergentes, se configurando assim como um grande espaço de discussão.
A escola de pensamento inaugurou a noção da cidade como um
laboratório sociológico, Park afirma que “a cidade mostra em excesso o bem e o mal da natureza humana” (s.d, p. 42) e que talvez seja isso que torne a cidade um campo tão interessante e útil a sociologia. Park foi um cientista da primeira geração da Escola de Chicago e produziu toda uma obra dedicada a levantar questões sobre o estudo do fenômeno, segundo ele “a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana” (s.d., p. 1) Até então, a antropologia não tinha se voltado para a cidade e a esse respeito o autor afirma que “o homem civilizado é um objeto de investigação igualmente interessante, e ao mesmo tempo sua vida é mais aberta à observação e ao estudo”. Também para o autor, “a cidade é o habitat natural do homem civilizado” (s.d., p.2). Foi a Escola de Chicago que trouxe a ideia de tornar objeto de estudo as dinâmicas que ocorrem ao redor da própria universidade. A Praça Leoni Ramos, conhecida como Praça da Cantareira, se localiza no bairro de São Domingos, na cidade de Niterói. Encontra-se entre os principais campi da Universidade Federal Fluminense, além do campus das Faculdades Integradas Maria Thereza, da sede da Enel e fazer parte do Corredor Cultural. O nome popular da praça se dá pelo Estaleiro da Companhia Cantareira de Viação Fluminense e a estação das barcas, ambas construções do século passado. Recentemente foi inaugurado ao lado da entrada do campus Gragoatá o Centro Petrobrás de Cinema, ou Reserva Cultural, que além de aparentar ser um espaço de cunho “elitizado” faz parte do Caminho Niemeyer, projeto que tem um papel relevante no processo de construção da identidade niteroiense juntamente a outros aspectos relativos aos processos históricos da praça e seu entorno. Me refiro principalmente ao esforço empreendido desde a década de 1960 para elevar Niterói ao status de “cidade cultural” (a exemplo do Caminho Niemeyer, o Museu do Ingá, o Janete Costa e o Solar do Jambeiro), cultivando ao mesmo tempo uma preocupação em não se tornar periferia do Rio.
A circulação de pessoas e a movimentação do lugar muda de
acordo com horário e dia da semana, sendo cenário de diversos fenômenos. A praça em questão é frequentada também pela comunidade universitária, mas atrai os mais diversos grupos. É possível encontrar diversos bares, restaurantes e outros estabelecimentos formais ao redor da praça, barracas e trailers de comida, vendedores ambulantes, pessoas em situação de rua, estudantes (não somente universitários e não apenas da UFF), sujeitos vinculados a diversas instituições (a antiga Ampla/atual Enel, a Polícia Militar, a Guarda Municipal, a Marinha são alguns exemplos mais imediatos), além de moradores dos bairros circunscritos e pessoas que por quaisquer que sejam suas razões transitam pelo espaço. Também na região é muito frequente a ocorrência de assaltos, inclusive nas quintas feiras, quando o movimento na praça Leoni Ramos é maior e nas ruas arredores do espaço em questão. Se somando ao universo das atividades ilegais há também o comércio de algumas drogas. Um outro esforço da Escola de Chicago foi em compreender questões como criminalidade e delinquência.
A praça é palco de diversas dinâmicas, que tanto engendram uma
forma de identidade da Cantareira quanto por ela são moldadas. Becker (2009) afirma que as pessoas têm palavras específicas para tratar de suas experiências e objetos e que para o pesquisador utilizá-las implica em admitir as perspectivas que vem embutidas com os termos. Uma categoria nativa gritante ao falar da Praça Leoni Ramos é a “Quintareira”, como são referenciadas as noites que fazem a fama da praça. Todas as quintas a praça lota de jovens não só de Niterói mas de toda região metropolitana. O autor trata de Goffman para exemplificar seu ponto dos termos e usos. Ele menciona a obra de Goffman sobre instituições totais e o modo como o autor redige sua descrição, abordando um universo um tanto delicado sem fazer juízos de valor, “não censura explicitamente as práticas que suas descrições nos fazem querer censurar, e seus adjetivos e advérbios tampouco trazem uma avaliação negativa delas” (p. 8), no entanto não deixando de levar a qualquer tipo de conclusão.
Becker é um autor da terceira geração da Escola de Chicago, o
autor trata no texto Goffman, Linguagem e a Estratégia Comparativa de como os termos empregados são importantes nas conjunturas e articulações, exemplifica seu ponto com sua pesquisa acerca do uso da maconha, tratada por ele por estas palavras específicas e não “dependente” não à toa. A respeito desse emprego dos termos e dessa conjuntura específica ele afirma que “o modo como objetos e atividades são nomeados sempre reflete relações de poder. As pessoas no poder chamam as coisas como querem, e como elas controlam muitas das situações de que os outros participam, estes têm de se ajustar a isso” (2009, p. 6)
Na praça Leoni Ramos também aparece o uso de drogas ilícitas,
não só na quinta feira, mas sobretudo. Essa esfera também está inclusa na representação que a praça e a Quintareira possuem. É perceptível que o local constitui uma região moral para o uso de algumas drogas, tanto lícitas quanto ilícitas. É algo perceptível não só pela constante presença durante tardes e noites de pessoas agindo de tal modo, como pelos resíduos que ficam, é comum se ver garrafas de bebida e caixas de maços de cigarro vazios pelas muretas e mesas. Park define região moral como um ponto de encontro ou local de reunião de pessoas com os mesmos gostos e temperamentos, lugares onde paixões, instintos naturais e impulsos reprimidos tem chance de aparecer e se distingue de outros pelos interesses ali serem “mais imediatos e fundamentais” naquela organização social. O autor esclarece que seu conceito não se refere apenas àquelas regiões de criminalidade, mas toda e qualquer região onde impere um código moral diferente do status quo. Na praça Leoni Ramos a moralidade se distingue fortemente de outras regiões da cidade, considerados pelo status quo fatores negativos para o local. Alguns dos fatores possíveis para uma representação negativa da praça são a esfera boêmia tida na cidade como um tanto quanto decadente e o espaço ser frequentado por universitários. Porém não somente nas quintas feiras a noite a praça se mostra uma região moral, em diferentes horários é possível observar o uso de álcool e maconha, da praça como um espaço de sociabilidade e boemia, ponto de encontro de diversos grupo dos quais seu lazer em horário comercial de alguma forma contrasta com as expectativas e fluxo da cidade moderna. Dentro da Cantareira é possível perceber alguns territórios. Nas quintas a noite ambulantes ficam espalhados por toda a praça, sendo possível ver até três ambulantes um ao lado do outro. Há uma diferença entre os ambulantes que vendem bebidas e os que vendem cigarros e balas, os primeiros apesar de usarem um carrinho com isopor em cima, não se deslocam pela praça (nem em terça feira, que a menor concentração de pessoas permitiria). Todos os ambulantes se localizavam nas passagens. Estudantes universitários, sobretudo do campus Gragoatá e IACS se concentram próximo ao parquinho existente na praça, nesse mesmo espaço é possível ver também pessoas realizando atividades circense, já no outro extremo geográfico ficam outros grupos não pertencentes a universidade que se localiza próximo a praça, inclusive com um recorte racial distinto. A sonoridades também variam, cada fatia do espaço é embalado por um gênero musical distinto.
Devido em parte a própria estrutura física da praça existem locais
de transitar e locais de permanecer, existem áreas que são circundadas por muretas (são as mesmas que possuem chão de terra), essas áreas são definitivamente de permanecer. As muretas são baixas e assim facilmente ultrapassadas, mas só o faz para se deslocar para dentro dessas áreas. Essa mesma estrutura também serve de banco e apoio para as garrafas e copos.
Park afirma que a cidade é dotada não só de organização física, mas
de uma organização moral e que ambas estão constantemente a se modificar. Os aparelhos da cidade dependem diretamente do uso que se faz deles. O mesmo espaço que durante as noites de domingo é ocupado por crianças, enquanto seus pais comem no Vestibular do Chopp por exemplo, as quintas- feiras a noite é ocupado por essa outra coisa que é a “quintareira”. As estruturas adquirem diversas funções de acordo com que grupos as utilizam, o escorregador não é apenas um escorregador quando um jovem apoia sua bebida nele ou as muretas quando pessoas dormem nela e a configuram de alguma forma como casa.
BECKER, Howard S. Falando da sociedade: ensaios sobre as
diferentes maneiras de representar o social. Zahar, 2009.
PARK, Robert E. A Cidade.
COULON, Alain. "A escola de Chicago; tradução–Tomás R.