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Um estudo de testamento: a presença do catolicismo no cotidiano de afro-brasileiros

libertos no século XVIII.

Viviane da Silva Gomes da Silva1

Resumo: A leitura de testamentos redigidos na América Portuguesa nos possibilita observar


várias práticas e relações estabelecidas nestas sociedades e, principalmente a influência da
Igreja Católica sobre as mesmas. Dessa forma o objetivo deste trabalho consiste em
compreender o impacto dessas práticas na organização cultural e social local, analisando
alguns aspectos relacionados ás práticas de “bem morrer”, bem como a influência desta e de
outras práticas católicas na trajetória de afro-brasileiros libertos, no século XVIII a partir da
leitura do testamento de Manoel Barbosa Ribeiro, crioulo, morador da Freguesia de São José
das Itaporocas, que alcançou o direito à liberdade através do batismo.

Palavras-chaves: Testamento, Catolicismo, Afro-brasileiro.

Abstract: The reading of wills written in Portuguese America enables us to observe various
practices and relationships established in these societies and especially the influence of the
Catholic Church on them. In this way the objective of this work is to understand the impact of
these practices on the local cultural and social organization, analyzing some aspects related to
the practices of "well to die", as well as the influence of this and other Catholic practices in
the trajectory of freed Afro- in the eighteenth century from the reading of the will of Manoel
Barbosa Ribeiro, Creole, a resident of the parish of São José das Itaporocas, who achieved the
right to freedom through baptism.

Keywords: Testament, Catholicism, Afro-Brazilian.

1
Estudante da Licenciatura em História, do Centro de Artes Humanidades e Letras, da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia. Este trabalho é resultado da minha participação como voluntária da iniciação científica
(2017-2018), no Projeto História Social e Religiosa do Recôncavo Baiano (1781-1807): um estudo a partir dos
testamentos e inventários post mortem, coordenado pela Professora Dra. Tânia Maria Pinto de Santana.
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O presente trabalho teve como principal objetivo analisar alguns aspectos relacionados
ás práticas de “bem morrer” através dos rituais fúnebres e assim compreender a relevância dos
rituais na organização cultural e das relações sociais locais, bem como a influência desta e de
outras práticas católicas na trajetória de afro-brasileiros libertos, no século XVIII, por meio da
análise do testamento do liberto Manuel Barboza Ribeiro, destacando assim o papel central da
Igreja Católica na disseminação e influência desta prática.

No século XVIII a redação dos testamentos tornou-se uma prática comum, o requisito
para redigir testamento era a posse de bens, mesmo que algumas ordenações afirmassem que
qualquer um poderia fazê-lo. A Igreja, por sua vez, obteve resultados positivos no processo de
transmissão da doutrina do “bem morrer”, pois a morte era o momento em que o fiel estava
mais perto da probabilidade de salvar a alma ou ir para o inferno e para isso foi utilizado
como instrumento à pedagogia do medo, onde os testamentos seriam uma forma para alcançar
a salvação da alma. De acordo com Claudia Rodrigues o processo de estabelecimento da
pedagogia católica do “bem morrer” possuía duas vertentes que foram essenciais para o
controle da Igreja sobre os comportamentos dos fiéis perante a morte: de um lado a alteração
da administração do culto dos mortos familiar para a administração pública e gerida pelo clero
e do outro a construção da liturgia dos mortos no período da Idade Média, onde o clero
tornou-se um interlocutor entre vivos e mortos através das missasi. Percebe-se então a
influência do catolicismo no que diz respeito às praticas para se obter uma boa morte e a
preocupação em salvar a alma através dos testamentos quando o testador deixa evidentes as
suas últimas vontades no seu testamento: como gostaria de ser sepultado, o número de missas,
ao pedir intercessão dos santos, etc.

Além deste recurso a Igreja Católica também fez uso da propagação da ideia do
Purgatório, local situado entre o Paraíso e o Inferno, onde as pessoas ficariam por um tempo
para redimir-se dos pecados. A ideia do Purgatório contribuiu também para o
desenvolvimento rápido do medo dos “últimos instantes” tanto pelo temor de que não desse
tempo preparar-se para o trespasse, quanto pela dor que as almas sofreriam no Purgatório.
Devido à incerteza do destino da alma, a morte acarretava aflição, preocupação e desespero,
sendo assim, a partir do medo dos últimos instantes ocorreu um aumento das práticas dos
sufrágios pelas almas do Purgatório estabelecendo uma relação entre vivos e mortos, relação
essa de troca, pois os vivos rezavam pelas almas do Purgatório e as almas do Purgatório
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intercediam pelos vivos quando alcançassem o Paraíso. Dessa forma ao mesmo tempo em que
a Igreja Católica difundia o sentimento de medo e insegurança, também demonstrava um
Deus misericordioso e compassivo com aqueles que fizessem sua vontade ii.

Os testamentos eram redigidos, sobretudo, com o intuito de professar a fé em Deus,


cumprir os princípios do catolicismo e demonstrar a crença nos seus preceitos, sendo uma
importante ferramenta de salvação e demonstração de preocupação com a sorte no além-
túmulo do fiel, também como forma de redimir os pecados. O Breve aparelho e modo fácil
para ensinar o bem morrer um cristão escrito por padre Estevam de Castro, religioso jesuíta,
foi um dos manuais utilizados para escrever os testamentos. Instrua o leigo ou o sacerdote a
agir diante do momento da morte, onde anjos e demônios estariam travando uma luta pela
alma do moribundo. Este manual também era utilizado para orientar a prática de escrever o
testamento: como gostaria que fosse o funeral, a quantidade de sufrágios, para quem deixaria
a herança, se possuía filhos ou não, dividas o nome dos pais e realizava a nomeação dos
testamenteirosiii. Do ponto de vista material a redação dos testamentos tinha por objetivo
determinar os bens e instituir os herdeiros, já do ponto de vista religioso os testamentos tinha
por intuito a preparação para a morte a fim de salvar a alma e obter um lugar no Paraíso. Ao
se preocupar com a redação do testamento e a posse de bens, a Igreja estava interessada,
sobretudo, nos bens que seriam destinados ao clero.

O Recôncavo da Bahia atualmente é composto por trinta e três municípios, dentre elas
Cachoeira. No século XVIII, esta região dividia-se em oito Freguesias, dentre elas a Freguesia
de São José das Itapororocas, fundada em 1657iv. O Recôncavo baiano era entrecruzado por
rios de diversos tamanhos que ia do largo Paraguaçu, propicio a inundações frequentes, a rios
de média estatura. As vilas de Cachoeira, Jaguaripe e São Francisco foram criadas no ano de
1698, permitindo a organização de uma estrutura governamental, instaurações portuárias e
atividades agrícolas que estava em processo de estabelecimento, sendo o açúcar a principal
produção do Recôncavo, mas isso não quer dizer que a Coroa e os proprietários não
procurassem outros meios de se obter riqueza. Dessa forma a produção de fumo em Cachoeira
proporcionou uma distinção na estrutura econômica e social em todo o Recôncavo,
incentivando a colonização e o desenvolvimento do sertão ao contribuir para a economia de
Salvador, onde os senhores de engenho controlavam toda a vida social e política ao longo dos
anos. Portanto, pensar na Bahia em pensar no Recôncavov.
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O liberto Manuel Barboza Ribeiro era crioulo, filho legitimo de Agostinho Barboza
Ribeiro e Natalia de Sá, natural dos campos da Cachoeira, num local chamado “Sam Simam”,
pertencente à Freguesia de “Sam José das Itapororocas”. O testamento de Manuel Barboza
nos possibilitou observar vários aspectos importantes para se pensar a estrutura social do
período colonial e a adesão desta sociedade às práticas de “bem morrer”. No que se refere ao
motivo pelo qual redigiu o testamento ele evidenciou o medo da morte e o desejo de salvar a
alma, mesmo não estando com enfermidade alguma e em seu perfeito juízo e entendimento:

[...] eu Manuel Barboza Ribeiro estando em meo perfeito juízo e


entendimento que nosso Jezuz Christo me deo temendo-me da morte e
desejando por minha alma no caminho da salvaçãovi.

Testamento de Manuel Barboza Ribeiro

Este medo e preocupação em salvar a alma são evidentes quando o testador pede a
intercessão dos Santos e Anjos da guarda pela alma no dia de sua morte, além disso, faz a sua
profissão de fé Católica:

[...] rogo a glorioza Virgem Maria Senhora Main de Deos e a todos os


Santos da Corte Celestial, e particularmente ao meo Anjo da goarda a
Senhora Santa Ana a quem tenho devoçam queiram por mim interceder he
rogar o meo Senhor Jezuz Christo agora e quando minha alma dezte corpo
sahir, porque como verdadeiro Christam pretendo viver e morrer na Santa
fé Catholica e crer o que tem e cre na Santa Madre Igreja de Roma.vii.

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No que se refere ás práticas do bem morrer Manuel Barboza Ribeiro, demonstrou o
desejo e a forma como gostaria de ser sepultado, amortalhado e quantas missas deveriam ser
realizadas e para quem era destinada, conforme um manual instituído pela Igreja Católica,
como é possível observar no trecho abaixo:

Meo corpo será sepultado na capela de Sam Simon, amortalhada em um


lençol branco, acompanhado do meo Reverendo Vigario, ao qual le dará de
oferta o que pedir [ilegível] me dirão todas as missas de corpo prezente
[...]viii.

Outro aspecto relevante para ser destacado por meio da análise do testamento de
Manuel Barboza Ribeiro é a sua preocupação em preparar-se para a morte segundo os
preceitos determinados pela Igreja Católica, por ser um afro-brasileiro que passara a professar
a fé Católica ele dedica-se em seguir seus ensinamentos: “Primeiramente encomendo minha
alma a Santíssima Trindade que a criou rogo ao Padre Eterno pela morte e Paixam de seo
Unigenito filho [ilegível]”ix.

Um dos nossos objetivos foi destacar a influência das práticas católicas na trajetória de
afro-brasileiros libertos e Manuel Barboza Ribeiro foi um destes libertos que teve uma forte
presença do Catolicismo no que diz respeito às circunstâncias que propiciaram a sua
liberdade. Manoel alcançou a liberdade através do sacramento do batismo, sendo seu padrinho
o seu senhor Antunes da Sê, que após o ato do batismo pagou a sua liberdade: “Antunes da Sê
que me sirva de padrinho me pagou conta de liberdade imediatamente depois do ato de
baptizmo...”x.

Manuel Barboza Ribeiro também conseguiu se estabelecer economicamente e ampliar


seu status social através do sacramento do matrimônio. Percebe-se a forte presença do
catolicismo até mesmo nas questões econômicas. Ele foi casado duas vezes, a primeira com
Barbara Mendy com quem tivera um filho por nome Felipe Barboza e após o seu falecimento
casou-se pela segunda vez com Ana Maria de Jesus com quem não teve filhos. Em relação
aos bens, possuía um pouco de gados, sítios, escravos, dentre outros, e instituiu seus netos
como herdeiros legítimos.

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A análise do testamento de Manuel Barboza Ribeiro nos possibilitou observar o papel
e a influência do Catolicismo na liberdade de afro-brasileiros por meio dos sacramentos. O
testamento se constitui numa fonte importante para a compreensão da trajetória de diferentes
sujeitos da sociedade colonial, dentre eles, vários ex-escravos. Isto torna o testamento uma
fonte histórica tanto frequente e geral, quanto pessoal e precisa, que se fazia presente nos
distintos segmentos sociais.

Referências:

APMC, caixa 87, doc. 858.Inventário post mortem de Manoel Barbosa Ribeiro, com
testamento anexo.

RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro


(séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

SANTANA, Tânia Maria Pinto de. Charitas et misericordia: as doações testamentárias em


Cachoeira no século XVIII. Tese de doutorado. Programa de Pós graduação em História.
Universidade Federal da Bahia / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2016.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na colonial, 1550-1835;


tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

i
RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e
XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p.40.
ii
RODRIGUES, Claudia. Idem, p. 51-52.
iii
RODRIGUES, Claudia, Idem, p. 59-64. A obra citada por Claudia Rodrigues é: CASTRO, Estevão. Breve
aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão, com recopilação das matérias de testamento e
penitência, várias orações devotas, tiradas da Escritura sagrada e do Ritual Romano de N. S. P. Paulo V.
Lisboa: Matheus Pinheiro, 1627.

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iv
SANTANA, Tânia Maria Pinto de. Charitas et misericordia: as doações testamentárias em Cachoeira no
século XVIII. Tese de doutorado. Programa de Pós graduação em História. Universidade Federal da Bahia. 2016.
p.17.

v
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na colonial,1550-1835; tradução Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 77.

vi
Arquivo Público Municipal de Cachoeira (APMC), caixa 87, doc. 858. Testamento de Manoel Barbosa Ribeiro,
anexo ao seu Inventário post mortem.
vii
APMC, caixa 87, doc. 858. Testamento de Manoel Barbosa Ribeiro, anexo ao seu Inventário post mortem.
viii
APMC, caixa 87, doc. 858.Testamento de Manoel Barbosa Ribeiro, anexo ao seu Inventário post mortem.
ix
APMC, caixa 87, doc. 858. Testamento de Manoel Barbosa Ribeiro, anexo ao seu Inventário post mortem.

x
APMC, caixa 87, doc. 858. Testamento de Manoel Barbosa Ribeiro, anexo ao seu Inventário post mortem.

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