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pollyanna a pequena Órfã

eleanor h. porter
editorial publica, lisboa, 1990.
infanto-juvenil.
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sintra
para a editorial publica, lda. com sede na avenida poeta
mistral, 6-b - 1000 lisboa
tradução e adaptação de joão sargaço
capa de josé antunes
ilustrações de c. labey
editorial publica

digitalização e correcção:
dores cunha

1. miss polly
naquela manhã de junho, miss polly harrington entrou na sua
cozinha um pouco apressada. miss polly nunca fazia
movimentos precipitados; tinha mesmo muito orgulho dos seus
modos pausados. mas hoje estava com pressa, muita pressa.
nancy que lavava a loiça olhou para ela surpreendida.
trabalhava em casa de miss polly apenas há dois meses mas
já conhecia suficientemente a patroa para saber que ela
nunca tinha pressa.
- nancy!
- sim, senhora - respondeu nancy alegremente, mas
continuando a lavar a loiça.
- nancy! - a voz de miss polly soava agora mais severa. -
quando eu falar contigo deves parar de trabalhar e ouvir o
que eu tenho para dizer.
nancy ficou com um ar infeliz. largou imediatamente o que
estava a fazer, cabisbaixa.
- sim, senhora - disse ela, virando-se apressadamente. -
continuei a trabalhar porque me disse para despachar a
loiça.
a patroa impacientava-se.
- basta, não te pedi explicações. só quero que prestes
atenção.
- sim, senhora. - titubeou nancy, enquanto pensava como era
difícil contentar aquela mulher.
nancy nunca tinha trabalhado fora de casa. a sua mãe, que
era doente, enviuvou, vendo-se desamparada com três filhos
ainda crianças, para além de nancy. foi então obrigada a
pôr a jovem a trabalhar para ajudar ao sustento da casa.
ficou satisfeitíssima ao saber de um lugar na cozinha do
solar, no alto da colina. nancy era de corners, uma aldeia
a 9 quilómetros dali. antes de começar a trabalhar sabia
apenas que miss polly harrington era a dona do velho solar
harrington, e uma das pessoas mais ricas da cidade. foi
apenas há dois meses. sabia agora que miss polly era uma
senhora de poucos sorrisos, sempre pronta a zangar-se se
alguma faca caía ou alguma porta batia.
- quando acabares o trabalho da manhã, limpas o quartinho
do sótão, ao cimo das escadas, e fazes a cama de lavado.
tira de lá os caixotes e limpa-o.
- e onde ponho as coisas que lá estão?
- na parte da frente do sótão - miss polly hesitou,
continuando: - a minha sobrinha, miss pollyanna whittier
vem viver comigo. tem onze anos e vai dormir naquele quarto.
- vamos cá ter uma menina, miss harrington? que bom que vai
ser! - exclamou nancy pensando na alegria que as suas
irmãzinhas, em casa, transmitiam.
- sim? não tenho a certeza - disse miss polly secamente. -
no entanto, tenciono fazer o melhor que puder. sou boa e
conheço o meu dever.
nancy corou que nem um tomate.
- com certeza senhora, estava só a pensar como uma menina
aqui lhe podia trazer um pouco de alegria.
- obrigada - disse a senhora com secura -, mas não vejo que
haja alguma necessidade disso.
- mas, certamente que há-de estar contente por a sua
sobrinha vir para cá - atreveu-se nancy a dizer,
achando que devia de algum modo preparar as boas vindas à
orfãzinha que estava prestes a chegar.
miss polly ergueu altivamente o queixo.
- É justamente por ter tido uma irmã suficientemente parva
para casar e dar à luz uma criança que não fazia falta
nenhuma neste mundo já superpovoado, que não vejo por que
razão terei de ser eu a tomar conta dela. no entanto, como
já disse, sei quais são os meus deveres. vê se limpas bem
os cantos do quarto, nancy!
- terminou ela rudemente deixando a cozinha.
- sim, senhora - respondeu nancy retomando o seu trabalho.
no seu quarto, miss polly pegou mais uma vez na carta que
tinha recebido há dois dias da longínqua cidade do oeste e
que tanto a tinha surpreendido. a carta estava dirigida a
“miss polly harrington, bel dingsville, vermont” e dizia o
seguinte:
“ cara senhora,
“lamento informá-la de que o reverendo john whittier morreu
há duas semanas, deixando uma menina com onze anos de
idade. não deixou praticamente nada para além de alguns
livros pois, como certamente sabe, era pastor nesta pequena
paróquia e tinha um magro salário.
“suponho que ele era marido da sua falecida irmã. antes de
falecer, ele deu-me a entender que o relacionamento entre
as duas famílias não era o melhor. pensou, no entanto, que,
em atenção à memória da sua irmã, talvez quisesse tomar
conta da criança e educá-la no seio dos seus outros
parentes do este. É por isso que lhe estou a escrever.
“quando receber esta carta, a menina estará pronta a partir
e se puder ficar com ela agradecíamos que nos respondesse
manifestando o seu acordo, visto que há um casal que
seguirá em breve para este e que a pode levar até boston,
de onde ela poderá seguir de comboio para beldingsville. a
senhora será então informada do comboio em que irá
pollyanna. sem outro assunto de momento, apresento os meus
respeitosos cumprimentos.
jeremia o. white”
com um gesto brusco, miss polly dobrou a carta e meteu-a no
envelope. no dia anterior tinha respondido dizendo que
ficava, naturalmente, com a criança. era, para ela, uma
situação desagradável mas sabia quais eram os seus deveres.
estava agora sentada pensativamente com a carta nas mãos e
as suas reflexões recuaram até à sua irmã jenny, a mãe da
criança e até à época em que jenny com vinte anos tinha
teimado em casar com o jovem pastor, apesar da oposição da
família. havia um homem abastado que a pretendia, e a
família preferia este ao pastor. mas jenny não cedera. o
homem embora tivesse mais dinheiro, era mais velho,
enquanto o pastor tinha apenas entusiasmo e ideais, bem
como um coração cheio de amor. jenny tinha preferido estes
atributos, muito naturalmente, aliás. casou, então, com o
pastor e foi para o sul como esposa de missionário.
pouco mais souberam dela. miss polly lembrava-se bem,
apesar de ter apenas quinze anos. era a mais nova. a
família pouco mais soube da esposa do missionário. jenny
tinha escrito algum tempo depois, comunicando o nascimento
do seu bebé pollyanna, assim chamado em honra das suas
irmãs polly e anna. tinha tido outros bebés que morreram.
foi a última
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vez que jenny escreveu e há alguns anos tinha chegado
a notícia do seu falecimento através de uma carta
lacónica do próprio pastor, com origem numa cidadezinha
do oeste.
entretanto, o tempo não tinha parado para os moradores
do solar da colina. miss polly, com os olhos postos no
vale, reflectiu nas mudanças ocorridas durante
aqueles 25anos.
agora tinha 40anos e estava completamente só no
mundo. o pai, a mãe e as irmãs, tinham todos morrido. desde
há uns anos a esta parte, era ela a única
dona dos milhares de dólares deixados pelo pai.
algumas pessoas tinham abertamente lamentado a sua vida
solitária, aconselhando-a a cultivar amigos e companhias,
mas ela rejeitou todos os conselhos. não se sentia sozinha.
gostava de estar assim. gostava de tranquilidade. e,
agora...
miss polly ergueu-se de sobrolho franzido, reflectindo.
claro que estava satisfeita, considerava-se uma
mulher de bem e não só conhecia o seu dever como também
tinha suficiente força de carácter para o cumprir.
mas, pollyanna! que nome tão ridículo!

2. nancy e o velho tom


no pequeno quarto do sótão, nancy varria com vigor,
prestando atenção especial aos cantos. por vezes, o vigor
que punha no seu trabalho era mais para desabafar do que
por zelo. nancy, apesar da sua submissão receosa à patroa,
não era nenhuma santa.
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- só queria poder varrer os cantos da alma dela!
- murmurou entre dentes, marcando bem as sílabas com golpes
de vassoura. - bem precisavam de limpeza! que ideia esta de
pôr a criança aqui em cima onde faz calor no verão e frio
no inverno, com tantos quartos à escolha neste casarão!
crianças que não fazem falta! como pode ela dizer uma coisa
destas?
durante algum tempo trabalhou em silêncio. tendo concluído
o seu trabalho, olhou tristemente para o quartinho quase nu.
- bom já está, pelo menos da minha parte. ao menos já não
está sujo, embora pouco mais haja. pobre criança! que belo
lugar para pôr uma criança só e desamparada! - concluiu ela
saindo e fechando a porta com estrondo. - ai, o que eu fiz!
- exclamou, mordendo os lábios. logo de seguida pensou
resolutamente:
- não me ralo, espero que tenha ouvido a porta a bater!
no jardim, nessa tarde, nancy dispôs de alguns minutos para
conversar com o velho tom que há muitos anos tratava do
jardim.
- mr. tom - começou nancy, lançando um olhar rápido sobre o
ombro para se certificar de que não estava a ser observada
-, sabe que vem uma menina viver com miss polly?
- quem? - perguntou o velhote endireitando-se com
dificuldade.
- uma menina. vem viver com miss polly.
- está a brincar - disse o velhote descrente. porque não me
diz antes que o sol amanhã se vai pôr no oriente?
- mas é verdade, ela disse- me. É a sobrinha dela e tem
onze anos.
o homem ficou boquiaberto.
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- deve ser a filhinha de miss jenny! todos os outros
morreram. louvado seja deus!
- quem era miss jenny?
- era um anjo caído dos céus - disse o homem com fervor. -
era a filha mais velha dos falecidos patrões. tinha vinte
anos quando se casou e partiu daqui. todos os filhos dela
morreram, excepto a última e deve ser essa que vem agora.
- tem onze anos.
- deve ser isso - assentiu o homem.
- e vai dormir no sótão, parece impossível! desabafou nancy
olhando de novo sobre o ombro para a casa atrás de si.
o velho tom resmungou, mas logo a seguir surgiu um sorriso
curioso nos seus lábios.
- estava a pensar no que vai fazer miss polly com uma
criança em casa.
- pois eu pergunto antes o que vai fazer uma criança com
miss polly nesta casa - exclamou nancy.
o velhote riu.
- parece que não gosta de miss polly.
- como se alguém pudesse gostar dela! o velho tom sorriu de
modo estranho e continuando a trabalhar disse vagarosamente:
- se calhar não conhece o caso amoroso de miss polly.
- caso amoroso, ela? não, e creio que ninguém sabe!
- sim, sabem - disse o velhote. - e o sujeito ainda vive
nesta cidade.
- quem é ele?
- isso não posso dizer.
o velhote endireitou-se de novo. sentia o orgulho de ser,
há tantos anos, um leal servidor da família.
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- mas parece impossível. ela e um amante - voltou nancy à
carga.
o velho tom abanou a cabeça.
- você não conheceu miss polly como eu. era muito bonita e
se não se desleixasse, ainda poderia sê-lo.
- bonita! miss polly!
- sim, se ela soltasse o cabelo e o penteasse, e se
voltasse a usar aqueles vestidos lindos cheios de laçarotes
havia de ver como é bonita! a miss polly não é velha, nancy.
- se não é, imita muito bem!
- sim, eu sei, isso começou com o problema do seu caso
amoroso. desde então parece que destila veneno. É por isso
que é tão difícil lidar com ela.
- É verdade, por mais que se tente não conseguimos agradar-
lhe! se não precisasse de ganhar dinheiro por causa da
família que tenho em casa, não ficava aqui. mas um dia
farto-me e digo adeus.
o velho tom disse que sim com a cabeça.
- eu sei, já senti isso. e retomou o trabalho.
- nancy! - ouviu-se gritar.
- sim, senhora! - respondeu nancy apressando-se para a casa.

3. a chegada de pollyanna
finalmente chegou o telegrama anunciando a chegada de
pollyanna a beldingsville, no dia seguinte, 25 de junho, às
quatro horas da tarde. miss polly leu o
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telegrama, franziu o sobrolho e subiu as escadas até ao
quarto do sótão. continuou de sobrolho franzido enquanto
olhava em redor.
o quarto dispunha de uma pequena cama que estava muito bem
feita, dois cadeirões, um lavatório, uma pequena cómoda sem
espelho e uma mesinha. não tinha cortinados nem quadros nas
paredes. durante todo o dia, o sol tinha ali batido e o
quartinho parecia um forno. como não havia redes nas
janelas, estas tinham que se conservar fechadas. ouvia- se
uma grande mosca a zumbir desesperada para sair.
miss polly matou a mosca e atirou-a pela janela. deu um
jeito numa cadeira e carrancuda abandonou o quarto.
- nancy! - chamou ela minutos depois, à porta da cozinha. -
encontrei uma mosca lá em cima no quarto de miss pollyanna.
a janela deve ter estado aberta. já mandei vir
mosquiteiros, mas até que cheguem vê se manténs as janelas
fechadas. a minha sobrinha chega amanhã às quatro da tarde.
quero que a vás esperar à estação. timothy leva-te na
charrete. o telegrama diz que ela tem o cabelo claro, traz
um vestido vermelho e um chapéu de palha. É tudo o que sei,
mas creio que é o suficiente.
- sim, senhora, mas.
miss polly percebeu o que ela queria dizer pois franziu
logo o sobrolho e disse asperamente, não admitindo qualquer
réplica:
- não, eu não vou. acho que não é preciso. É tudo, por
agora.
e foi-se embora. os preparativos de miss polly para a
chegada da sua sobrinha pollyanna estavam completos.
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na cozinha, nancy assentou com força o ferro de engomar e
pensou com os seus botões:
“cabelo claro, vestido vermelho e chapéu de palha! É tudo o
que ela sabe! eu tinha vergonha se não fosse eu própria
esperar a minha única sobrinha que chegasse depois de ter
atravessado um continente inteiro!
no dia seguinte, timothy e nancy partiram na charrete para
a estação. timothy era filho do velho tom. na cidade dizia-
se que se o velho tom era o braço direito de miss polly,
então timothy era o braço esquerdo. era um bom rapaz e além
disso bem parecido. apesar de nancy estar há pouco tempo
naquela casa, já eram bons amigos. hoje, porém, nancy
estava demasiado compenetrada na sua missão para conversar
como de costume e foi quase em silêncio que se dirigiram à
estação para aguardar o comboio.
repetia para si vezes sem conta: “cabelo claro, vestido
vermelho e chapéu de palha”. não conseguia deixar de
interrogar-se sobre o género de criança que esta pollyanna
seria.
- espero que seja calma e sensível e não deixe cair facas
nem bata com as portas - disse ela para timothy.
- se não for, sabe-se lá o que nos vai acontecer -
resmungou timothy. - imagina miss polly com uma criança
barulhenta! era o fim do mundo!
- oh, timothy, acho que ela fez mal em me mandar a mim -
disse nancy enquanto se precipitava para um sítiò onde
pudesse observar os passageiros no apeadeiro.
não demorou muito a que nancy a visse. era uma rapariguinha
esguia com um vestido vermelho e duas tranças que pendiam
ao longo das costas. sob o chapéu, uma carinha ansiosa
olhava para a esquerda e para a direita à procura de alguém.
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nancy identificou logo a criança, mas, durante algum tempo,
não conseguiu controlar suficientemente os joelhos trémulos
para se dirigir a ela. finalmente, aproximou-se.
- É miss pollyanna?
logo de seguida sentiu dois braços vestidos de vermelho à
volta do pescoço.
- oh, estou tão contente por a ver! - gritou-lhe uma voz ao
ouvido. - claro que sou pollyanna e estou tão contente por
ter vindo esperar-me! estava à espera disso.
- estava? - interrogou nancy, perguntando a si própria como
pollyanna poderia conhecê-la. - estava à minha espera? -
repetiu enquanto tentava endireitar o chapéu.
- sim, durante todo o tempo procurei imaginar a sua cara -
gritava a menina em bicos de pés, enquanto mirava a
embaraçada nancy dos pés à cabeça. agora, estou muito
contente por ser assim.
nancy estava aliviada por timothy ter vindo com ela. as
palavras de pollyanna tinham-na confundido.
- este é timothy. traz alguma mala?
- sim, trago, tenho uma nova. as senhoras da caridade
compraram-me uma, foi muito simpático da parte delas. trago
uma coisa que o senhor grey disse ser um cheque e devo
entregar-lho antes de ir buscar a minha mala. mr. grey é o
marido de mrs. grey. são primos da mulher do clérigo carr.
viajei para este com eles, são simpatiquíssimos! aqui está
ele! - disse ela, enquanto apresentava o cheque depois de
revolver o saco.
nancy respirou fundo. depois olhou para timothy. os olhos
de timothy estavam deliberadamente orientados para outro
lado.
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finalmente partiram os três com a mala de pollyanna na
retaguarda e a própria pollyanna encolhida entre nancy e
timothy. a rapariguinha falava ininterruptamente, fazia
perguntas e comentários, e nancy tinha grande dificuldade
em acompanhá- la.
- É longe daqui? adoro andar de charrete, mas também estou
desejosa de chegar. que linda rua! eu sabia que ia ser
bonito, o pai contou-me.
parou então de falar com um soluço. nancy olhou
apreensivamente e viu que o queixo dela tremia e os olhos
estavam marejados de lágrimas. mas num instante recompôs-se.
- o pai contou-me tudo. ah, é verdade! tenho que lhe
explicar. trago este vestido vermelho e não venho de negro
porque não existia roupa negra nas coisas da última
colecta. só havia um vestido de senhora que a mulher do
clérigo disse que não era próprio para mim, além de que
estava gasto nos cotovelos e tinha nódoas brancas. algumas
das senhoras da caridade queriam comprar- me um vestido
negro e um chapéu, mas as outras acharam que o dinheiro
devia ir para o tapete vermelho que elas queriam comprar
para a igreja. mrs. white disse que estava bem, pois de
qualquer maneira ela não gostava de ver crianças de negro.
ela gostava de crianças, claro, mas não vestidas de negro!
pollyanna parou um pouco para respirar e nancy conseguiu
dizer:
- vem muito bem!
- ainda bem que acha isso. era muito mais difícil estar
contente vestida de negro.
- contente! - disse nancy surpreendida, aproveitando uma
pausa.
- sim, por o pai ter partido para o céu para ir ter com a
mãe e os meus irmãos. ele disse que eu devia ficar feliz.
mas mesmo assim é um pouco difícil, mesmo vestida de
vermelho, porque eu precisava muito dele, principalmente
depois da mãe e os irmãos terem ido para o céu. enquanto
que eu não tinha mais ninguém a não ser as senhoras da
caridade. mas, agora tenho a certeza de que será mais fácil
porque a tenho a si, tia polly. estou tão feliz por a ter a
si!
os sentimentos de compaixão de nancy em relação à
rapariguinha transformaram-se em sobressalto.
- mas está enganada menina. eu sou a nancy. não sou a sua
tia polly!
- não é? - perguntou a criança quase desmaiando.
- não, sou a nancy. nunca pensei que pudesse tomar-me por
ela. não somos nada parecidas!
timothy sorriu ligeiramente, mas nancy estava demasiado
perturbada para responder ao seu olhar divertido.
- mas quem é você? não parece nada uma empregada!
desta vez timothy não conteve um riso.
- sou nancy, a empregada da sua tia. faço tudo menos lavar
a roupa. isso é o trabalho de miss durgin.
- mas existe uma tia polly? - perguntou a criança
ansiosamente.
- disso pode estar certa - disse timothy. pollyanna ficou
mais descansada.
- ah, então está bem - seguiu-se um momento de silêncio,
depois ela prosseguiu alegremente. sabem? apesar de tudo
estou contente por ela não me ter vindo esperar porque,
assim, além de vos ter a vocês, ainda a vou conhecer a ela.
nancy assoou-se. timothy olhou para ela com um sorriso de
admiração.
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- isso é muito simpático da sua parte. não achas que deves
agradecer à menina, nancy?
- estava a pensar nisso... sim, é muita gentileza sua -
titubeou nancy.
pollyanna fez um sinal de contentamento.
- estou tão ansiosa por a ver. É a única família que me
resta e durante muito tempo não sabia que ela existia.
depois o pai disse-me que ela vivia numa casa grande e
bonita no cimo de uma colina.
- É verdade, e já a pode ver daqui - disse nancy.
- É aquela casa branca, grande com as persianas verdes, em
frente.
- mas que bonita! e tem tantas árvores e relva à volta!
nunca vi tanta relva. a minha tia polly é rica, nancy?
- sim, miss.
- ainda bem. deve ser óptimo ter muito dinheiro. nunca
conheci ninguém rico. com algum dinheiro, só conheci os
white. tinham tapetes em todas as salas e gelados ao
domingo. a tia polly tem gelados ao domingo?
nancy abanou a cabeça, enquanto cerrava os lábios e lançava
um olhar a timothy.
- não, miss. creio que a sua tia não gosta de gelados. pelo
menos nunca vi nenhum à mesa.
no rosto de pollyanna espelhou- se uma expressão triste.
- mas que pena, não percebo como é que ela não gosta de
gelados. bom, de qualquer maneira talvez seja preferível
porque os gelados em grande quantidade podem fazer dores de
barriga. talvez a tia polly tenha tapetes em casa?
- sim, ela tem tapetes.
- em todas as salas?
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- em quase todas - respondeu nancy lembrando-se, que o
quartinho do sótão não tinha tapete.
- ainda bem, adoro tapetes! nós não tínhamos quase nenhuns.
apenas dois pequenos e que tinham duas nódoas de tinta. e
quadros, gosta de quadros?
- não sei - respondeu nancy meio encabulada.
- eu gosto. nós não tínhamos quadros. só quando timothy
descarregou a mala é que nancy teve uma oportunidade para
lhe segredar ao ouvido:
- nunca mais fales em ir-te embora thimothy durgin!
- ir embora! claro que não - respondeu o jovem.
- agora vai ser muito mais divertido com essa miúda a
rondar por aí!
- divertido! - repetiu nancy indignada. - acho que, para
essa pobre criança, não vai ser nada disso quando as duas
tiverem que viver juntas. acho que ela vai precisar de um
refúgio. e eu tenciono ser esse refúgio - disse ela,
virando-se em seguida para pollyanna e conduzindo-a pelas
escadas acima.

4. o quarto do sótão
miss polly harrington não se levantou para ir ao encontro
da sobrinha. quando nancy e a menina entraram na sala, ela
limitou-se a erguer os olhos do livro que estava a ler e a
estender a mão num gesto formal.
- como estás, pollyanna? - mas não teve tempo para
continuar. pollyanna tinha já atravessado a sala a correr
atirando-se para o colo da tia surpreendida.
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- oh, tia polly, tia polly! estou tão contente por me ter
deixado vir viver consigo - disse ela soluçando.
- não imagina como é bom tê-la a si e à nancy, e tudo isto
depois de ter tido apenas a ajuda das senhoras da caridade!
- acredito. embora eu não tenha tido o prazer de conhecer
as tuas senhoras da caridade - respondeu miss polly
rigidamente, tentando libertar-se dos dedos que a agarravam
e dirigindo um olhar severo a nancy que se encontrava ainda
à porta da sala. - nancy, já chega. podes ir. pollyanna, vê
se te portas bem e se tens termos. ainda não olhei bem para
ti.
pollyanna afastou-se um pouco, rindo nervosamente.
- não, mas também eu não tenho muito para ver. tenho que
lhe explicar porque razão trago este vestido vermelho.
- isso não interessa - interrompeu miss polly rudemente. -
trazes alguma mala, calculo?
- sim, sim, tia polly. as senhoras da caridade deram-me uma
linda mala mas trago pouca coisa. vêm também uns livros do
pai, pois a mrs. white disse que eu devia conservá- los. o
pai...
- pollyanna - interrompeu a tia de novo. - há uma coisa que
eu te quero dizer, já. não quero que estejas sempre a falar
do teu pai.
a pequena ficou atrapalhada e surpreendida.
- mas porquê, tia polly?
- vamos lá acima ver o teu quarto. a tua mala já lá deve
estar. eu disse a thimothy para a levar. segue-me,
pollyanna.
em silêncio pollyanna seguiu a tia, saindo da sala. tinha
os olhos inundados de lágrimas mas mantinha o queixo
erguido.
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“afinal, acho que é melhor que a tia não queira que eu fale
do pai - pensou pollyanna. “será mais fácil para mim não
falar nele. “
convencida de novo sobre a bondade” da tia, pollyanna
disfarçou as lágrimas e olhou para ela com enlevo.
iam agora a caminho das escadas. À frente, ouvia-se o
restolhar do vestido negro da tia. por detrás dela
conseguiu ver, através de uma porta aberta, belos tapetes
com bonitos motivos e cadeirões forrados a cetim. sob os
seus pés, um tapete maravilhoso dava uma sensação de musgo.
por todos os lados se viam belos quadros e o sol a passar
através de finos cortinados.
- oh, tia polly, tia polly! - disse a menina reconfortada.
- mas que bela casa tem! deve ser muito feliz por ser tão
rica!
- pollyanna! - respondeu a tia com severidade, virando-se
abruptamente ao chegar ao cimo das escadas. - parece
impossível que me fales desse modo!
- mas porquê, tia polly, não é rica?
- claro que não, pollyanna. até agora nunca cometi o pecado
de me orgulhar dos bens que o senhor me concedeu - declarou
a senhora.
miss polly virou-se e percorreu o corredor em direcção à
porta das escadas que conduziam ao sótão. agora, sentia-se
satisfeita por ter posto a criança no quarto do sótão.
inicialmente a sua ideia tinha sido a de pôr a sobrinha tão
longe quanto possível de si ao mesmo tempo que tomava
precauções para que a criança, com a sua leviandade
natural, não estragasse algum móvel valioso. assim, com
toda esta vaidade a manifestar-se tão cedo ela sentia-se
ainda mais satisfeita por o quarto que lhe estava destinado
estar tão pobremente mobilado.
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pollyanna seguiu ansiosamente os passos da tia. os seus
grandes olhos azuis tentavam, ainda com maior ansiedade,
olhar em todas as direcções ao mesmo tempo para que nada de
bonito ou interessante nesta casa maravilhosa ficasse sem
ser visto. o que mais a excitava era a expectativa de saber
qual daquelas fascinantes portas ocultava o seu quarto. o
belo quarto cheio de cortinas, tapetes e quadros que seria
o seu. a tia abriu, então, com brusquidão uma porta e
começou a subir outras escadas.
ali, pouco havia para ver. dos lados eram só paredes nuas,
cor-de-rosa. no cimo das escadas era apenas um espaço
sombrio onde, nos cantos, o telhado quase chegava ao chão,
e onde estavam empilhados inúmeros malões e arcas. estava
quente e abafado. instintivamente, pollyanna levantou mais
a cabeça. ali sentia-se dificuldade em respirar. viu,
depois, que a tia tinha aberto uma porta, à direita.
- aqui é o teu quarto, pollyanna. como vês já cá está a tua
mala. tens a chave?
pollyanna disse, tristemente, que sim com a cabeça. estava
um pouco assustada.
a tia fez uma expressão severa.
- quando te faço uma pergunta, pollyanna, quero que me
respondas em voz alta e não te limites a fazer movimentos
com a cabeça.
- sim, tia polly.
- obrigada. assim é melhor. penso que tens aqui tudo o que
precisas - acrescentou ela, deitando um olhar ao toalheiro
do lavatório. - vou mandar a nancy cá acima para te ajudar
a desfazer a mala. o jantar é às seis horas - concluiu,
enquanto deixava o quarto e descia as escadas.
durante alguns momentos, depois de a tia se ter ido embora,
pollyanna manteve-se de pé, quieta, olhando
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para a porta. depois virou os seus olhos grandes para as
paredes nuas, para o chão sem tapetes e as janelas sem
cortinados. finalmente, pousou a vista na pequena mala que
ainda não há muito tempo estava naquele quartinho da
longínqua casa do oeste. a seguir, deixou-se cair de
joelhos, tapando o rosto com as mãos.
nancy encontrou-a nesta posição quando chegou, alguns
minutos depois.
- bem receava encontrá-la assim, pobre criança!
- lamentou ela inclinando-se para o chão e segurando a
menina nos braços.
pollyanna sacudiu a cabeça.
- mas eu sou má, nancy, sou muito má - soluçou ela. - só
não percebo porque é que deus e os anjos precisavam mais do
meu pai do que eu.
- claro que não - disse nancy para a consolar.
- oh nancy - no rosto de pollyanna as lágrimas tinham
secado, ao mesmo tempo que surgia uma expressão
horrorizada. nancy procurou sorrir atrapalhada, enquanto
enxugava os seus próprios olhos.
- não era bem isso que eu queria dizer - tentou ela
emendar. - vamos abrir a mala e arrumar os seus vestidos.
ainda triste, pollyanna foi buscar a chave.
- mas não há aí grande coisa.
- então fica tudo arrumado num instante - disse nancy.
pollyanna fez um grande sorriso.
- É isso! posso ficar contente com isso, não posso?
- gritou ela. nancy olhou espantada.
- sim, claro - respondeu, um pouco confusa.
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as mãos competentes de nancy num instante retiraram da mala
os livros, as roupas interiores e os poucos vestidos sem
graça de pollyanna. esta, sorrindo agora corajosamente,
começou, numa roda-viva, a pendurar os vestidos no armário,
a empilhar os livros em cima da mesa e a arrumar as roupas
interiores nas gavetas.
- tenho a certeza de que vai ser um quarto muito agradável,
não acha?
nancy não respondeu. estava aparentemente muito ocupada com
a cabeça metida na mala. pollyanna de pé, junto à cómoda,
olhava um pouco desconsoladamente para as paredes nuas.
- e, ainda bem que não há nenhum espelho, pois assim não
vejo as minhas sardas.
nancy fez um ruído estranho com a boca. mas, quando
pollyanna se voltou, ela continuava com a cabeça dentro da
mala. alguns minutos depois, junto a uma das janelas,
pollyanna deu um grito de alegria, batendo as palmas.
- oh nancy, ainda não tinha visto. olhe! ali, aquelas
árvores, as casas e aquele lindo campanário da igreja e o
rio a brilhar como um fio de prata. com coisas tão bonitas
para ver não são precisos quadros nenhuns. ainda bem que
ela me deu este quarto!
para grande surpresa de pollyanna, nancy desatou a chorar.
a menina correu para ela.
- nancy, o que foi? - depois, receosamente, perguntou: -
este não era o seu quarto, pois não?
- o meu quarto? não - exclamou nancy com veemência,
procurando refrear as lágrimas. - a menina é como um lindo
anjinho vindo do céu e que certas pessoas não merecem. oh,
lá está ela a chamar!
- nancy correu para fora do quarto e desceu apressadamente
as escadas.
25
agora sozinha, pollyanna voltou para o seu “quadro”, como
ela chamava à bela vista que se disfrutava da janela.
passado um bocado tentou abrir a vidraça. parecia-lhe que
não ia conseguir aguentar mais tempo aquele calor
insuportável. felizmente conseguiu abri-la. mais um esforço
e a janela ficou completamente aberta. pollyanna debruçou-
se na janela e respirou aquele ar fresco e puro.
correu depois para a outra janela que, em breve, também
cedeu aos seus dedos ansiosos. uma mosca passou-lhe debaixo
do nariz, zumbindo pelo quarto. depois entrou outra, e mais
outra. mas pollyanna pouco se ralou. tinha feito uma
descoberta maravilhosa. junto à janela uma árvore enorme
alargava os grandes ramos. para pollyanna pareciam braços
esten didos que a convidavam. riu alto.
“acho que consigo”, disse ela para si própria. logo em
seguida, trepou para o parapeito da janela. dali era fácil
saltar para o ramo mais próximo. depois, baloiçando como um
macaco, passou de ramo para ramo até atingir o mais baixo.
o salto para o chão era, mesmo para pollyanna, habituada a
trepar às árvores, um pouco assustador. no entanto, ela lá
se decidiu, sustendo a respiração, dependurada nos seus
bracinhos e aterrando de gatas na relva macia. levantou-se
e olhou ansiosamente em redor.
estava nas traseiras da casa. diante dela, estendia-se um
jardim, onde trabalhava um velhote curvado. para lá do
jardim um carreiro através de um campo aberto conduzia a um
morro no cimo do qual se erguia um pinheiro junto a um
enorme rochedo. para pollyanna, naquele momento, parecia
existir apenas um lugar no mundo onde valia a pena estar -
o alto daquele grande rochedo.
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numa corrida e dando uma volta rápida, pollyanna contornou
o velhote curvado, abriu caminho por entre as filas de
plantas e, já um pouco ofegante, chegou ao carreiro que
percorria o campo aberto. depois, com determinação, começou
a trepar. naquela altura, já começava a achar o rochedo
longe, embora parecesse tão perto visto da janela!
quinze minutos mais tarde, o grande relógio do corredor do
solar de harrington bateu as seis horas. precisamente à
última badalada, nancy tocou o sino para jantar.
passaram um, dois, três minutos. miss polly carrancuda
batia com o pé no chão. um pouco desajeitadamente pôs-se de
pé, percorreu o corredor e olhou para cima impaciente.
durante um minuto, escutou atentamente. depois, dirigiu-se
para a sala de jantar.
- nancy - disse ela decididamente logo que a criada
apareceu -, a minha sobrinha está atrasada. mas não quero
que a chames - acrescentou apressadamente quando nancy
esboçou um movimento no sentido da porta. - eu disse-lhe a
que horas era o jantar, agora tem que sofrer as
consequências. pode começar imediatamente a aprender a ser
pontual. quando descer, podes dar-lhe pão e leite na
cozinha.
- sim, senhora.
logo que pôde, a seguir ao jantar, nancy subiu
precipitadamente as escadas para o sótão.
- pão e leite. francamente! coitadinha, deve ter
adormecido! - logo que abriu a porta deu um grito de susto.
- onde está? onde se terá metido? - perguntava ela enquanto
procurava dentro do armário, debaixo da cama e até dentro
da mala e na bacia de água. logo a seguir, correu escada
abaixo e foi ter com o velho tom ao jardim.
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- mr. tom, mr. tom, a menina desapareceu! deve ter subido
para o céu de onde veio, pobre cordeirinho! e a tia que me
disse para lhe dar pão e leite na cozinha. neste momento
deve estar a comer o manjar dos anjos, garanto-lhe eu!
o velhote endireitou-se.
- partiu? para o céu? - repetiu ele com ar estupefacto,
olhando inconscientemente para o céu azul onde já se punha
o sol. - bom, nancy, parece-me que ela tentou realmente
chegar tão alto quanto pôde - disse ele apontando com o
dedo retorcido para uma figurinha esguia que se erguia no
cimo do grande rochedo.
- não. se depender de mim ela não vai para o céu esta noite
- declarou nancy, decididamente. - se a senhora perguntar
diga-lhe que eu não me esqueci da loiça mas que fui passear
- disse ela dirigindo-se para o carreiro que conduzia ao
campo aberto.
4. o jogo de pollyanna
- mas que susto me pregou, miss pollyanna - gritou nancy
enquanto corria em direcção ao rochedo ao longo do qual
pollyanna tinha acabado de deslizar.
- assustou-se? ah, desculpe, mas não precisa de se
preocupar comigo, nancy. o pai e as senhoras da caridade
também se preocupavam, até que se convenceram de que eu
voltava sempre bem.
- mas eu nem sabia que se tinha ido embora! - exclamou
nancy, enquanto agarrava na mão da
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menina, apressando-se a descer o morro. - não a vi sair,
nem ninguém viu. até parece que voou do telhado.
- É verdade, quase que voei, desci pela árvore! nancy parou
bruscamente.
- desceu por onde?
- desci pela árvore, junto à minha janela.
- minha nossa senhora! - exclamou nancy, recomeçando a
correr. - nem imagino o que a sua tia dirá quando souber!
- não faz mal, eu digo-lhe - prometeu a menina alegremente.
- por favor, não lhe diga nada!
- porquê, não me diga que ela se preocupa com isso! -
respondeu pollyanna imperturbável.
- não... sim. não importa. estou muito preocupada com o que
ela possa dizer - disse nancy determinada a evitar que
pollyanna fosse repreendida. mas é melhor despacharmo-nos,
tenho que lavar a loiça.
- eu ajudo - prometeu logo pollyanna.
- oh, miss pollyanna! não pense nisso. por momentos, fez-se
silêncio. o céu escurecia rapidamente. pollyanna agarrou-se
com mais firmeza ao braço da sua amiga.
- apesar de tudo, acho que estou contente por você se ter
assustado, porque assim veio à minha procura.
- pobre cordeirinho! e deve estar cheia de fome. receio que
tenha de comer apenas pão e leite na cozinha comigo. a sua
tia não gostou nada que não tivesse descido para o jantar.
- mas eu não podia. estava lá em cima.
- sim, mas ela não sabia isso - observou nancy.
- tenho pena que tenha de ser pão e leite.
- não faz mal. eu estou contente.
- contente? porquê?
29
- porque gosto de pão e de leite e gosto de comer consigo.
não tenho dificuldade nenhuma em estar contente com isso.
- a menina parece que não tem dificuldade em ficar contente
seja com o que for - respondeu nancy, recordando as
tentativas de pollyanna para ficar contente com o quartinho
do sótão.
pollyanna sorriu docemente.
- pois o jogo é mesmo isso.
- o. jogo?
- sim, o “jogo do contentamento”.
- mas de que está a falar?
- É um jogo. o pai ensinou-mo e é muito giro - respondeu
pollyanna. - sempre o jogámos, desde que eu era pequena.
ele ensinou-o também às senhoras da caridade e algumas
delas também o jogavam.
- mas o que é? não sou muito de jogos. pollyanna riu de
novo mas à luz do crepúsculo o rosto dela parecia tristonho.
- começámos a jogá-lo quando recebemos umas muletas na
colecta da missão.
- muletas?
- sim. eu queria uma boneca e o pai escreveu-lhes, pedindo-
a. mas, quando a encomenda chegou, não tinham mandado
nenhuma boneca e sim umas muletas de criança. uma senhora
enviou-as pensando que elas podiam ser úteis a alguma
criança. e foi assim que começámos.
- mas não consigo perceber que jogo é que pode haver nisso
- disse nancy quase irritada.
- o jogo era exactamente encontrar alguma coisa com a qual
estar contente, não importa o quê - respondeu pollyanna com
ar sério. - e começámos naquela altura, com as muletas.
30
- meu deus! não vejo nada para estar contente. recebeu um
par de muletas quando queria uma boneca!
pollyanna bateu as palmas.
- É isso - gritou ela -, eu também não percebi logo. teve
que ser o pai a dizer-me.
- bom, então espero que também me diga - retorquiu nancy
impaciente.
- pois o jogo é ficar contente por não precisarmos delas! -
exclamou pollyanna triunfante. - vê, é muito fácil quando
sabemos como fazer!
- mas que coisa estranha! - exclamou nancy, olhando
pollyanna com ar receoso.
- não é engraçado? É giríssimo - continuou pollyanna
entusiástica. - desde então passámos a jogá-lo sempre. e
quanto mais difícil é, mais divertido se torna resolvê-lo.
só que, por vezes, custa muito. como, por exemplo, quando o
meu pai foi para o céu e não ficou mais ninguém senão as
senhoras da caridade.
- ou quando a metem num quartinho no sótão quase sem nada
lá dentro - resmungou nancy.
pollyanna disse que sim com a cabeça.
- essa foi um pouco difícil ao princípio - admitiu ela. -
especialmente quando eu estava tão só. não me apetecia
continuar a jogar e naquela altura estava à espera de
coisas boas! lembrei-me, então, de como detestava ver as
minhas sardas no espelho e vi aquela linda vista da janela.
percebi logo que tinha descoberto coisas para ficar
contente. quando estamos à procura de coisas boas para
ficarmos contentes esquecemo-nos das outras. como da boneca
que eu queria.
- estou a perceber - respondeu nancy, engolindo em seco.
- mas normalmente não leva muito tempo. e muitas vezes já
penso nelas quase sem pensar. habituei-me
a fazer este jogo. eu e o pai gostávamos muito dele. se
calhar agora vai ser um pouco mais difícil porque eu não
tenho ninguém com quem jogar. talvez a tia polly jogue
comigo - acrescentou ela pensativa.
- minha nossa senhora! - murmurou nancy entre dentes.
depois disse mais alto: - ouça, miss pollyanna, eu não sei
se consigo jogar bem mas, se quiser, posso tentar jogar
consigo!
- oh, nancy! - exultou pollyanna. - isso é esplêndido,
vamos divertir-nos imenso.
- sim, talvez - condescendeu nancy com algumas dúvidas. -
mas não deve depositar grandes esperanças em mim. nunca fui
muito boa em jogos, mas vou fazer o possível. há-de ter
alguém com quem jogar - concluiu ela enquanto entravam as
duas juntas na cozinha.
pollyanna comeu o seu pão e bebeu o seu leite com muito
apetite. depois, por sugestão de nancy, dirigiu-se à sala
de estar onde a tia estava sentada a ler. miss polly
levantou os olhos com firmeza.
- já comeste o teu jantar, pollyanna?
- sim, tia polly.
- tenho muita pena de me ter visto obrigada a mandar-te
para a cozinha comer pão e leite.
- não faz mal, estou muito contente com isso, tia polly.
gosto muito de pão e leite e também da nancy. não se
preocupe.
a senhora endireitou-se mais na cadeira.
- pollyanna, já devias estar na cama. tiveste um dia muito
fatigante. amanhã temos que fazer planos para a tua vida e
ver que roupas é preciso comprar. a nancy dar-te-á uma
vela. tem cuidado com ela. o pequeno-almoço é às seis e
meia, vê se estás cá em baixo a essa hora. boa-noite.
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com naturalidade, pollyanna dirigiu-se à tia e deu-lhe um
abraço afectuoso.
- até aqui tem sido muito bom - disse ela feliz.
- tenho a certeza de que vou gostar muito de viver consigo.
aliás já sabia isso antes de vir para cá. boa-noite - disse
alegremente enquanto saía da sala. “mas que criança
extraordinária”, pensou miss polly. “ela está contente por
eu a ter castigado e diz que não devo estar preocupada com
isso e que vai gostar de viver comigo! ora esta! “,
exclamou miss polly de novo, enquanto retomava o livro.
quinze minutos depois, no quarto do sótão, a menina
soluçava com a cara metida nos lençóis:
- pai que estás junto dos anjos, agora não consigo fazer o
jogo. não acredito que conseguisses encontrar alguma coisa
para estar contente se tivesses de dormir sozinho no
escuro. se ao menos estivesse ao pé da nancy ou da tia
polly, seria mais fácil!
lá em baixo, na cozinha, nancy procurava despachar o
trabalho atrasado enquanto murmurava:
- se fazer aquele jogo disparatado é ficar contente por
receber muletas quando se quer bonecas ou ir para aquele
rochedo à procura de um refúgio, então eu também sei jogar!

6. uma questão de dever


eram quase sete horas quando pollyanna acordou no primeiro
dia a seguir à sua chegada. as janelas do seu quartinho
davam para sul e para oeste, de modo
33
que não conseguia ver o sol, mas via o azul do céu que
prenunciava um belo dia.
o quarto estava agora bastante frio e o ar entrava pelas
frinchas. lá fora, os pássaros chilreavam alegremente e
pollyanna correu à janela para conversar com eles. viu que
lá embaixo, no jardim, a sua tia já estava no meio das
roseiras. apressou-se a ir ter com ela.
pollyanna correu escada abaixo, deixando as portas abertas.
atravessou depois o corredor e saiu pela porta da frente em
direcção ao jardim.
a tia polly tratava de uma roseira, junto do velhote,
quando pollyanna, cheia de alegria, se atirou a ela.
- tia polly, tia polly, estou tão contente esta manhã, só
por estar viva!
- pollyanna! - admoestou a senhora com gravidade,
endireitando-se tanto quanto conseguia com aquele peso de
trinta e tal quilos pendurado ao pescoço.
- É assim que costumas dar os bons-dias? a menina
largou-a e começou a saltitar.
- não, só quando gosto muito das pessoas e não posso deixar
de o fazer! eu vi-a da minha janela, tia polly, e comecei a
pensar que não era uma das senhoras da caridade, e que era
de facto a minha tia. e pareceu-me tão boa que tive que vir
a correr dar-lhe um abraço!
o velhote curvado virou de repente as costas. miss polly
tentou ficar carrancuda, mas desta vez não teve tanto
sucesso.
- pollyanna tu... eu... thomas, por hoje basta. acho que
compreendeu o que eu lhe disse sobre as roseiras - disse
ela com ar sério. depois voltou-se e afastou-se rapidamente.
- o senhor trabalha sempre no jardim? - perguntou pollyanna
interessadamente.
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o homem voltou-se. tinha os lábios crispados e parecia
haver lágrimas nos olhos.
- sim, miss. sou o velho tom, o jardineiro - respondeu ele.
timidamente, como que impelido por uma força irresistível,
estendeu a mão trémula e pousou-a, por momentos, no cabelo
claro da menina. - parece-se tanto com a sua mãe! eu
conheci-a quando ela era ainda mais pequena do que a
menina. nessa altura eu já trabalhava no jardim.
pollyanna susteve a respiração.
- trabalhava? conheceu mesmo a minha mãe quando ela era
ainda um anjinho da terra e não um anjo dos céus? oh,
conte-me coisas dela! - pediu pollyanna, saltando para o
lado do velhote.
na casa soou uma campainha. logo a seguir viu-se nancy a
sair pela porta das traseiras.
- miss pollyanna, esta campainha é a do pequeno- almoço -
gritou ela, enquanto puxava a menina para casa. - quando
toca às outras horas são as outras refeições. mas tem
sempre que se despachar quando a ouvir, senão terá de se
esforçar para encontrar alguma coisa para ficar contente! -
concluiu ela enxotando pollyanna para dentro da casa como
faria com uma galinha fugida.
durante os primeiros cinco minutos, o pequeno-almoço foi
comido em silêncio. depois, miss polly seguindo com um
olhar reprovador duas moscas que pousavam aqui e ali, sobre
a mesa, disse grave mente:
- nancy, donde vieram estas moscas?
- não sei, miss polly. na cozinha não vi nenhuma - nancy
estivera demasiado excitada para reparar nas janelas que
pollyana tinha deixado abertas na tarde anterior.
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- se calhar as moscas são minhas, tia polly - observou
pollyana amistosamente. - esta manhã havia muitas lá em
cima.
nancy abandonou precipitadamente a sala, levando consigo os
pães quentes que trazia da cozinha.
- são tuas? - perguntou a tia polly. - que queres dizer? de
onde vieram?
- devem ter vindo lá de fora, pelas janelas. eu vi algumas
entrar.
- viste-as! queres dizer que abriste as janelas que não têm
mosquiteiros?
- sim, realmente não tinha mosquiteiros, tia polly. naquele
momento, nancy entrou de novo com os pães. vinha com uma
expressão muito séria e estava corada.
- nancy - disse a senhora gravemente -, podes deixar aqui
os pães e ir já ao quarto de miss pollyanna fechar as
janelas. fecha também as portas. depois de teres feito as
tarefas da manhã vai a todos os quartos com o mata-moscas.
vê tudo com cuidado, não deixes escapar nenhuma.
dirigindo-se à sobrinha disse:
- pollyanna, já encomendei mosquiteiros para as janelas. É
claro que eu sabia que as janelas estavam a precisar. mas
parece-me que esqueceste do teu dever.
- o meu dever? - os olhos de pollyanna abriam-se de espanto.
- com certeza. eu sei que está calor, mas considero que é
teu dever manter as janelas fechadas até chegarem as redes.
as moscas não são só uma porcaria, como também são
incomodativas e perigosas para a saúde. depois do pequeno-
almoço vou dar-te um prospecto para leres sobre este
assunto.
- para ler? muito obrigado, tia polly. adoro ler!
36
a tia polly inspirou fundo, com os lábios cerrados,
pollyanna ao ver a expressão séria da tia mudou também a
sua.
- com certeza que peço desculpa por ter esquecido o meu
dever, tia polly - desculpou-se ela timidamente.
- não volto a abrir as janelas.
a tia não respondeu. não voltou a falar até a refeição
terminar. depois, levantou-se, dirigiu-se à enorme estante
na sala de estar, retirou de lá um pequeno prospecto e
atravessou de novo a sala em direcção à sobrinha.
- eis o artigo de que te falei, pollyanna. quero que vás
para o teu quarto imediatamente e o leias. daqui a meia
hora vou lá para ver as tuas coisas.
pollyanna com os olhos postos na imagem da cabeça de uma
mosca ampliada, gritou alegremente:
- oh, muito obrigada, tia polly! - no momento seguinte saiu
saltitante da sala, atirando com a porta atrás de si.
miss polly fez-se carrancuda, hesitou, depois atravessou a
sala e abriu a porta. pollyanna, no entanto, já tinha
desaparecido, subindo rapidamente as escadas para o sótão.
meia hora mais tarde, quando miss polly com uma expressão
muito séria subiu as escadas e entrou no quarto de
pollyanna, foi recebida com uma explosão de entusiasmo.
- oh, tia polly, nunca vi nada tão engraçado e interessante
na minha vida. ainda bem que me deu isto para ler. nunca
pensei que as moscas pudessem transportar tantas coisas más
nas patas e.
- já chega! - observou a tia polly com um ar digno.
- pollyanna, traz as tuas roupas para eu ver. aquilo que
não for apropriado para ti darei aos sullivans.
37
com evidente relutância, pollyanna pôs de parte o prospecto
e virou-se para o armário.
- receio que ache as minhas roupas piores do que as
senhoras da caridade achavam. elas disseram que eram uma
vergonha. mas nas colectas da missão só havia coisas para
rapazes e para pessoas mais velhas. já alguma vez assistiu
a uma colecta de roupas para os pobres, tia polly?
vendo a expressão chocada e zangada da tia, pollyanna
corrigiu imediatamente.
- claro que não, tia polly! já me esquecia que as pessoas
ricas não vão a essas coisas. mas sabe, aqui neste quarto,
às vezes, esqueço- me que a senhora é rica.
miss polly ficou indignada, mas não pronunciou uma palavra.
pollyanna, sem consciência do que tinha acabado de dizer,
despachava-se com as roupas.
- estava eu a dizer que não há nada de mal nas colectas de
roupa para os pobres excepto que não encontramos nunca
aquilo de que estamos à espera, ainda que o saibamos de
antemão. era nessas colectas que o pai tinha mais
dificuldade em jogar o jogo e.
pollyanna acabara de se lembrar que não se devia referir ao
pai diante da tia. voltou-se de novo para dentro do armário
e, apressadamente, retirou de lá os seus vestidinhos velhos.
- não são nada bonitos e deviam ter sido pretos se não
fosse por causa do tapete vermelho para a igreja. mas são
tudo o que tenho.
com as pontas dos dedos, miss polly mexeu naqueles trapos
que não se adequavam nada a pollyanna. a seguir, muito
sisuda, prestou atenção à roupa interior arrumada nas
gavetas da cómoda.
- trouxe as melhores roupas que tinha - confessou pollyanna
ansiosamente. - as senhoras da caridade
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compraram-me um conjunto completo. mrs. jones, que é a
presidente, disse às outras que se calhar, por causa disso,
iam ter que caminhar toda a vida pelo chão nu das naves da
igreja. mas não têm. mr. white não tolera barulho. fica
cheio de nervos, diz a mulher dele. mas é rico e elas estão
a contar que ele dê o dinheiro para o tapete, por causa dos
nervos.
miss polly parecia não a ouvir. a inspecção às roupas
interiores tinha terminado e ela voltou-se para pollyanna
com uma certa brusquidão.
- tens ido à escola, pollyanna?
- sim, tia polly. além disso o meu pai... quer dizer, em
casa, também me ensinaram.
miss polly franziu o sobrolho.
- muito bem. no outono vais recomeçar a escola aqui. mr.
wall, o mestre-escola há-de determinar em que ano deverás
ficar. entretanto, quero ouvir-te ler alto meia hora, todos
os dias.
- adoro ler, mas se não me quiser ouvir, fico muito
contente por ler para mim própria. a sério, tia polly. e
nem preciso de fazer qualquer esforço para ficar contente
porque o que eu gosto mais é de ler para mim mesma, por
causa das grandes palavras.
- não duvido - respondeu miss polly. - estudaste música?
- não muito. não gosto da minha música. mas gosto da música
dos outros. aprendi a tocar um pouco de piano. miss grey,
que toca na igreja, ensinou-me. mas eu preferia deixar isso
de parte, tia polly.
- acredito - observou a tia polly com as sobrancelhas
ligeiramente levantadas. - no entanto, penso que é meu
dever dar-te uma instrução adequada, pelo menos em relação
a alguns rudimentos de música. e sabes, evidentemente,
costurar?
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- sim, tia - respondeu pollyanna. - as senhoras da caridade
ensinaram-me isso, mas foi muito difícil. elas tinham
opiniões contraditórias sobre a maneira de me ensinar.
- não faz mal. aqui não terás problemas desses. eu própria
te vou ensinar a costurar. calculo que não saibas cozinhar.
pollyanna riu, subitamente.
- elas começaram a ensinar-me este verão mas não fomos
longe. estavam ainda mais divididas sobre isso do que sobre
a costura. iam começar com o pão, mas todas o faziam de
modo diferente. assim, depois de discutirem numa reunião,
decidiram que eu iria um dia de semana à cozinha de cada
uma delas. aprendi a fazer doce de chocolate e bolo de
figo, quando tive de parar.
- doce de chocolate e bolo de figo! - troçou miss polly. -
em breve remediaremos isso. - fez uma pausa e depois
continuou. - Às nove horas, todas as manhãs vais ler alto
para mim, durante meia hora. antes disso, deverás arrumar o
teu quarto. Às quartas-feiras e aos domingos à tarde,
depois das nove e meia, irás para a cozinha aprender a
cozinhar com a nancy. nas outras manhãs, vais costurar
comigo. À tarde, vais dedicar-te à música. vou já procurar
um professor para ti - terminou ela decididamente, enquanto
se levantava.
pollyanna gritou desanimada.
- mas, tia polly, não me deixa tempo nenhum para
viver!
- para viver, menina! que queres dizer? como se não
vivesses durante todo o tempo!
- sim, eu respiro durante todo o tempo em que estiver a
fazer essas coisas, tia polly, mas não estarei a viver.
também se respira enquanto se dorme, mas não
41
estamos a viver. eu quero dizer viver, fazer as coisas que
gostamos de fazer: brincar ao ar livre, ler para mim
própria, subir pelos montes, conversar com mr. tom no
jardim e com a nancy, conhecer tudo sobre as casas e as
pessoas, e tudo o que há nas lindas ruas por onde ontem
passei. É isso que eu chamo viver, tia polly. respirar não
é viver!
miss polly levantou a cabeça irritada.
- pollyanna, és a criança mais extraordinária que eu já vi!
evidentemente que hás-de ter algum tempo para brincar. mas
se eu cumpro o meu dever zelando para que tu tenhas uma
instrução adequada e sejas tratada como deve ser, tu também
deves estar disposta a cumprir o teu, fazendo com que a
dedicação e a instrução que te são oferecidas não sejam
ingratamente desperdiçadas.
pollyanna olhava chocada para a tia.
- oh, tia polly, como se eu pudesse ser ingrata para
consigo! como, se eu a amo, e nem sequer é uma das senhoras
de caridade, é minha tia!
- muito bem, então vê se não ages com ingratidão -
vociferou miss polly, enquanto se dirigia para a porta.
já ia a meio da escada quando uma voz fraca e insegura
chamou por ela:
- por favor, tia polly, não me chegou a dizer quais das
minhas coisas queria dar.
a tia polly emitiu um suspiro de fastio que chegou aos
ouvidos de pollyanna.
- esqueci-me de te dizer, pollyanna. thimoty, esta tarde, à
uma e meia leva-nos à cidade. nenhuma dessas roupas é
apropriada para a minha sobrinha vestir. estaria, decerto,
muito longe de cumprir o meu dever se te deixasse aparecer
em público com alguma delas.
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foi agora a vez de pollyanna suspirar. parecia-lhe que ia
detestar aquela palavra: dever.
- tia polly, por favor - disse ela em voz baixa
-, não será possível encarar com mais alegria toda essa
coisa do dever?
- o quê? - miss polly olhou para cima boquiaberta; depois,
repentinamente, muito corada, virou as costas, desceu as
escadas muito zangada e disse: - não sejas impertinente,
pollyanna!
no seu quartinho do sótão, pollyanna deixou-se cair num dos
cadeirões. a existência aparecia-lhe como um caminho
interminável para o dever.
“não vejo o que houve de impertinente no que eu disse” -
suspirou ela. “só lhe estava a pedir para me dizer se não
encontrava nada que a satisfizesse em toda aquela questão
do dever. “
durante alguns minutos, pollyanna manteve-se sentada em
silêncio, com os olhos fixos nas roupas estendidas na cama.
depois, vagarosamente, levantou-se e começou a pôr os
vestidos de parte.
- não vejo nada para estar contente - disse ela alto -, a
menos que se deva ficar contente quando o dever está
cumprido! - e com isto deu uma gargalhada.

7. os castigos e pollyanna
À uma e meia, thimoty conduziu miss polly e a sobrinha a
quatro ou cinco das principais lojas da cidade que ficavam
a cerca de um quilómetro do solar. a compra de um novo
enxoval para pollyanna veio a
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verificar-se uma experiência excitante para todas as
pessoas envolvidas. quando as compras acabaram, miss polly
experimentou uma sensação de descontracção que uma pessoa
sente quando finalmente encontra terreno firme, depois de
uma caminhada perigosa sobre a crosta fina de um vulcão. os
diversos empregados que atenderam as duas, concluíram o seu
trabalho com os rostos afogueados e bastantes histórias
sobre pollyanna para contar aos amigos, durante o resto da
semana. a própria pollyanna ficou muito satisfeita e
radiante com tudo aquilo porque, como ela explicou a um dos
empregados, “quando nunca se teve mais nada para além das
dádivas da caridade, é formidável entrar nas lojas e
comprar roupas novinhas que não precisam de ser remendadas
ou postas de parte por não servirem. a visita às lojas
durou a tarde inteira. depois foi o jantar e uma agradável
conversa com o velho tom, no jardim, e outra com nancy, no
pátio das traseiras, depois de esta ter lavado a loiça e
enquanto a tia polly visitava um vizinho.
o velho tom contou a pollyanna coisas maravilhosas sobre a
mãe, que ela gostou muito de ouvir e nancy contou-lhe tudo
sobre a sua pequena quinta a nove quilómetros dali, na
aldeia dos cantos, onde vivia a mãe e os seus queridos
irmãos. ela prometeu também que, se miss polly deixasse,
pollyanna podia ir visitá-los.
- e eles também têm bonitos nomes. há-de gostar dos nomes
deles - disse nancy. - chamam-se algernon, florabelle e
estelle. não gosto nada do meu nome, nancy!
- oh, nancy, isso não se diz! porque não?
- não é bonito como os outros. eu fui a primeira e a minha
mãe não tinha ainda lido histórias com nomes bonitos.
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- mas eu gosto muito de nancy, quanto mais não seja por ti
- declarou pollyanna.
- ah, então também podia gostar de clarissa mabel -
respondeu nancy -, e eu ficava muito mais contente. acho
que é um lindo nome!
pollyanna riu.
- de qualquer maneira, deves estar contente por não ser
hephzibah.
- hephzibah!
- sim, é assim que se chama a mrs. white. o marido chama-
lhe hep e ela não gosta. ela diz que quando ele a chama
“hep-hep” lhe parece que ele a seguir vai dizer “hurra”! e
ela detesta isso.
a expressão triste de nancy transformou-se num grande
sorriso.
- depois de ter ouvido essa sobre hep-hep já não me importo
de me chamar de nancy - ela olhou com olhos bem abertos
para a rapariga. - diga lá miss pollyanna, estava a brincar
àquele jogo quando me disse isso da hephzibah?
pollyanna franziu o sobrolho e depois riu.
- É verdade, eu estava a jogar ao jogo, mas foi uma das
vezes em que o fiz sem pensar. faço-o tantas vezes que me
habituo e procuro sempre uma coisa que me dê contentamento.
e há sempre alguma coisa que nos deixa contentes se
pensarmos bem.
- bom, talvez - respondeu nancy com algumas dúvidas.
Às oito e meia, pollyanna foi deitar-se. os mosquiteiros
ainda não tinham chegado e o quartinho parecia um forno. de
olhos tristes pollyanna olhou para as duas janelas fechadas
mas não as abriu. despiu-se, dobrou as roupas, rezou as
suas orações, apagou a vela e meteu-se na cama.
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ela não soube quanto tempo esteve sem conseguir dormir,
virando-se de um lado para o outro cheia de calor. pareceu-
lhe que tinham passado horas até que se levantou,
atravessou o quarto e dirigiu-se para a janela onde ficou a
contemplar o céu estrelado.
esperava que o sono não tardasse.
esperava que a frescura da manhã chegasse rapidamente.

8. pollyanna retribui uma visita


não demorou muito até que a vida no solar harrington
entrasse mais ou menos na ordem, embora não fosse
exactamente a ordem que miss polly tinha inicialmente
previsto. pollyanna costurava, praticava música, lia alto e
aprendia a cozinhar. tudo isto é verdade, mas não dedicava
a cada uma destas coisas tanto tempo quanto a tia planeara.
acabava por ter mais tempo para “viver” como ela dizia,
pois quase todas as tardes, das duas às seis da tarde
dispunha de tempo livre para fazer o que bem entendia desde
que não fizesse certas coisas que a tia lhe proibira.
resta saber se pollyanna dispunha de todo esse tempo livre
para descanso dos seus deveres ou se seria antes para
descanso da própria tia. surgiram muitas ocasiões, durante
esses dias de julho, em que a tia exclamou: “que criança
extraordinária! e as leituras, bem como as lições de
costura, deixavam a tia perfeitamente exausta.
nancy ia bem na cozinha. não se cansava nada. era por isso
que gostava tanto das quartas e sábados.
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nas vizinhanças do solar harrington não havia crianças com
que pollyanna pudesse brincar. aliás, o solar encontrava-se
nos arredores da cidade e embora existissem outras casas
próximo não moravam lá rapazes nem raparigas da idade de
pollyanna. porém, isso não parecia preocupá-la muito.
- não, não me importo nada - explicava ela a nancy -, gosto
muito de passear, ver as ruas e as casas, e observar as
pessoas. gosto muito das pessoas. tu não gostas nancy?
- não posso dizer que gosto de todas elas - respondeu nancy.
quase todas as tardes, pollyanna dava um grande passeio e
era nesses passeios que ela encontrava frequen temente o
“homem”.
o homem vestia normalmente um sobretudo e um chapéu alto de
seda, duas coisas que os homens normais nunca usam. tinha a
face escanhoada, muito pálida, e o cabelo que aparecia pela
parte de trás do chapéu era grisalho. caminhava muito
depressa e empertigado, e estava sempre sozinho, o que
fazia pena a pollyanna. talvez tenha sido por isso que ela
um dia lhe falou.
- como está, senhor? que belo dia está hoje, não é verdade?
- disse ela aproximando-se dele.
o homem deitou-lhe um olhar rápido e depois parou, na
dúvida se seria com ele.
- está a falar comigo? - perguntou ele com voz ríspida.
- sim, senhor - respondeu pollyanna. - perguntei se não
achava que estava um dia bonito.
- ah, sim, sim - respondeu ele laconicamente. pollyanna
riu. era um homem curioso, pensou ela. no dia seguinte viu-
o de novo.
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- hoje, não está tão bonito como ontem, mas mesmo assim
está um dia bonito - disse ela alegremente.
- eh? eh, oh! hummm! - resmungou o homem como já fizera da
outra vez, e, mais uma vez, pollyanna riu alegremente.
da terceira vez que pollyanna o abordou da mesma forma, o
homem parou abruptamente.
- olha cá menina, quem és tu? porque me falas todos os dias?
- sou pollyanna whittier e achei que parecia muito
solitário. ainda bem que parou. agora, estamos
apresentados, eu é que não sei o seu nome.
- mas que. - o homem não acabou a frase e recomeçou a andar
depressa.
pollyanna olhou para ele desapontada.
- talvez não me tivesse compreendido. assim, foi só meia
apresentação. não sei ainda o nome dele - murmurava ela
enquanto prosseguia o caminho.
pollyanna levava hoje geleia de pé de vaca para mrs. snow.
miss polly mandava sempre alguma coisa todas as semanas a
mrs. snow. ela dizia que isso era seu dever porque mrs.
snow era pobre e doente, e pertencia à mesma paróquia.
naturalmente que era o dever de todos os membros da
paróquia olhar por ela. miss polly costumava cumprir o seu
dever em relação a mrs. snow nas quintas-feiras à tarde.
não ia pessoalmente, mas mandava nancy. hoje, pollyanna
tinha pedido para ter esse privilégio e nancy concedeu-lho
imediatamente depois de ter pedido autorização a miss polly.
- ainda bem que me vi livre daquilo - declarou nancy mais
tarde a pollyanna, em privado. - embora seja uma vergonha
ter passado o trabalho para si, minha pobre cordeirinha!
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- mas eu gosto de ir lá, nancy.
- vai ver que não, depois de lá ter estado pela primeira
vez.
- mas por que não?
- porque ninguém gosta. se as pessoas não tivessem pena
dela nunca ninguém lá punha os pés. É insu portável, tenho
pena da filha que tem de tratar dela.
- mas porquê, nancy?
nancy encolheu os ombros.
- olhe, em palavras simples, o que acontece é que aos olhos
de mrs. snow tudo o que acontece está mal. nem sequer os
dias da semana estão bem para ela. se é segunda- feira, diz
que preferia que fosse domingo, se lhe levar geleia, diz
que lhe apetecia galinha, mas se lhe levar galinha, diz que
lhe apetecia outra coisa!
- que mulher tão engraçada - riu pollyanna. acho que vou
gostar de a visitar. ela deve ser diferente das outras
pessoas e eu gosto muito de pessoas diferentes.
- ah, lá isso é. É bastante diferente - concluiu nancy.
pollyanna reflectia sobre esta conversa, enquanto abria o
portão da modesta casa da senhora. os olhos brilhavam-lhe
ante a expectativa de conhecer esta “diferente” mrs. snow.
foi uma rapariga pálida e de ar cansado que lhe abriu a
porta.
- como está? - cumprimentou pollyanna educadamente. - venho
da parte de miss polly harrington e gostava de ver mrs.
snow, por favor.
- se assim quer, você é a primeira pessoa que diz que
gostava de a ver - resmungou a rapariga. mas pollyanna não
a ouviu. a rapariga já se tinha virado e conduziu-a para o
quarto da senhora.
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já no quarto e depois da rapariga ter saído e fechado a
porta, pollyanna piscou os olhos até se habituar à
semiobscuridade que ali reinava. viu então, a silhueta de
uma mulher meio sentada na cama. pollyanna avançou logo
para ela.
- como está, mrs. snow? a tia polly espera que se sinta
melhor e mandou-lhe um boião de geleia.
- o quê, geleia? - murmurou uma voz sumida.
- claro que estou muito agradecida, mas hoje, estava a
contar que me trouxessem caldo de carneiro.
pollyanna franziu um pouco o sobrolho.
- ah sim? pensava que dizia que lhe apetecia galinha quando
lhe traziam geleia - disse ela.
- o quê? - respondeu a doente asperamente.
- nada, nada - disfarçou pollyanna apressadamente. - não
tem importância, mas a nancy disse que quando lhe trazíamos
geleia dizia que lhe apetecia galinha e quando lhe traziam
galinha que lhe apetecia caldo de carneiro. talvez tivesse
sido assim da outra vez e nancy esqueceu-se.
a doente endireitou-se mais na cama, coisa pouco habitual
nela, embora pollyanna não soubesse.
- pois bem, miss impertinente, quem é você? perguntou ela.
pollyanna riu.
- não é assim que me chamo, mrs. snow. e ainda bem que não!
isso seria pior do que “hephzibah, não era? chamo-me
pollyanna whittier, sou sobrinha de miss polly harrington e
vim viver com ela. É por isso que estou hoje aqui com a
geleia.
durante a primeira parte da frase, a doente sentou-se muito
direita, manifestando muito interesse, mas com a referência
à geleia voltou a abater-se sobre a almofada.
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- muito bem, agradeço-lhe muito. a sua tia é muito
simpática mas esta manhã não estou com apetite e estava-me
a apetecer caldo de carneiro. - parou subitamente de falar
depois retomou o discurso bruscamente, mudando de assunto.
- não consegui pregar olho esta noite!
- não me diga, isso gostava eu que me acontecesse
- suspirou pollyanna, colocando a geleia na mesa de
cabeceira e sentando-se confortavelmente na cadeira mais
próxima. - perdemos tanto tempo a dormir! não acha?
- perder tempo a dormir! - exclamou a senhora doente.
- sim, é uma pena que não possamos também viver de noite.
a senhora voltou a endireitar-se na cama.
- mas que menina espantosa! - exclamou ela. olhe, vá até à
janela e levante as cortinas - ordenou ela. - quero ver a
sua cara!
pollyanna levantou-se e riu divertida.
- mas assim vai ver-me as sardas todas - disse ela enquanto
se dirigia para a janela. - e eu estava tão satisfeita por
estar escuro e a senhora não as poder ver. mas ainda bem
que me quer ver porque assim também a posso ver a si! não
me tinha dito que era tão bonita!
- eu, bonita? - desabafou a mulher com amargura.
- sim, não sabia? - perguntou pollyanna.
- não, não sabia - retorquiu mrs. snow secamente. tinha
quarenta anos e, desses, quinze tinha-os perdido a desejar
coisas diferentes das que tinha.
- os seus olhos são grandes e negros e o seu cabelo é
escuro e encaracolado - elogiou pollyanna. - gosto muito de
caracóis negros. essa é uma das coisas que
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eu hei-de ter quando chegar ao céu. e tem duas manchinhas
vermelhas na cara. É verdade, mrs. snow, a senhora é muito
bonita! pensava que sabia, depois de se ter visto ao
espelho.
- o espelho - suspirou a mulher doente voltando a abater-se
sobre a almofada. - não me tenho visto muito ao espelho
ultimamente. você também não se preocuparia muito com isso
se tivesse de estar sempre deitada como eu!
- não, claro que não - concordou pollyanna com simpatia. -
mas deixe- me mostrar-lhe - exclamou ela dirigindo-se à
cómoda e trazendo um espelho pequeno.
ao regressar à cama, parou olhando com olhar crítico para a
senhora.
- deixe-me só arranjar-lhe um pouco o cabelo, antes de lhe
dar o espelho - propôs ela. - deixa-me arranjar-lhe o
cabelo?
- bom, se quer, está bem - condescendeu mrs. snow. - mas
não se aguenta.
- obrigada, gosto muito de pentear as pessoas - exultou
pollyanna, pousando cuidadosamente o espelho e indo buscar
um pente. - claro que não vou poder fazer grande coisa pois
tenho pressa de que veja como é bonita; mas um dia
desmancho-o todo e vai ver como fica linda - exclamou ela
enquanto a penteava.
durante cinco minutos, pollyanna fez o melhor que pôde.
entretanto, a mulher que se esforçava por ficar carrancuda
e troçava daquilo tudo, começava, apesar de tudo, a sentir-
se um bocadinho entusiasmada.
- já está! - exclamou pollyanna retirando uma rosa da jarra
mais próxima e colocando-a no cabelo negro, no ponto onde
fazia melhor efeito. - agora pode ver-se ao espelho! - e
segurou o espelho triun fantemente.
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- humm! - resmungou a doente enquanto observava a sua
imagem de olhar severo. - gosto mais de rosas vermelhas do
que cor-de-rosa, mas também não faz grande diferença pois
até à noite murcha!
- mas deve ficar contente por elas murcharem - riu
pollyanna -, porque então pode ter a alegria de receber
mais. gosto muito do seu cabelo arranjado assim - concluiu
ela satisfeita. - não acha?
- sim, talvez. mas não vai durar muito porque tenho que me
deitar.
- claro que não, e ainda bem - disse pollyanna alegremente.
- assim, posso arranjá-lo de novo. de qualquer forma, acho
que deve estar contente por o seu cabelo ser negro. o
cabelo negro fica muito melhor numa almofada do que o
loiro, como o meu.
- talvez, mas nunca gostei muito do cabelo preto; os
cabelos brancos aparecem mais cedo - retorquiu mrs. snow.
falava com irritação mas continuava a segurar o espelho
diante da cara.
- ah! pois eu gosto muito de cabelo negro! gostava muito
que o meu fosse preto - suspirou pollyanna.
mrs. snow deixou cair o espelho e virou-se irritada.
- não, não havia de gostar! se estivesse no meu lugar não
gostava. nem havia de gostar de outras coisas, se tivesse
que estar sempre aqui deitada!
pollyanna franziu o sobrolho, pensativa.
- sim, realmente devia ser mais difícil!
- o quê?
- arranjar coisas para ficar contente.
- arranjar coisas para ficar contente, quando estamos
deitadas o dia inteiro? seria bem difícil - retorquiu mrs.
snow. - se não acha, diga-me alguma coisa com que ficar
contente!
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para grande surpresa de mrs. snow, pollyanna correu e bateu
as palmas.
- essa é difícil! tenho de me ir embora, mas vou pensar
nisso durante todo o caminho até casa e talvez da próxima
vez lhe diga. adeus, gostei muito de a visitar! - disse
enquanto se dirigia para a porta.
- mas o que queria ela dizer com isso? interrogava-se mrs.
snow, depois de pollyanna ter saído. de vez em quando,
levantava o espelho e observava criticamente a sua imagem.
- aquela miúda tem jeito para arranjar o cabelo, não há
dúvida - suspirou ela. - confesso que não sabia que podia
ficar tão bonita. mas para que serve isso? - suspirou de
novo, deixando cair o espelho na cama e virando a cabeça na
almofada, irritada.
um pouco depois, milly, a filha de mrs. snow, entrou, o
espelho ainda se encontrava entre os cobertores, embora
tivesse sido cuidadosamente escondido.
- porque estão as cortinas levantadas, mãe? - perguntou
milly admirada não só com isso como também com a rosa no
cabelo da mãe.
- então, e qual é o problema? - resmungou a doente. - não
preciso de estar sempre às escuras, mesmo estando doente.
- não, claro que não - retorquiu milly apaziguando a mãe,
enquanto ia buscar o remédio. - É só porque estou farta de
tentar fazer entrar um pouco de luz neste quarto e a
senhora nunca quer.
não houve resposta. mrs. snow arranjou o laço da camisa de
dormir. finalmente, falou com uma certa irritação.
- acho que, para variar, já alguém me devia ter dado uma
camisa de noite nova, em vez de caldo de carneiro!
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milly estava boquiaberta. na gaveta, por detrás dela,
estavam, naquele momento, duas camisas de dormir novas que
ela há meses procurava convencer a mãe a vestir.

9. o que se dizia do “homem”


na próxima vez em que pollyanna viu o homem, estava a
chover. no entanto, ela cumprimentou-o com um grande
sorriso.
- hoje o dia não está muito bonito. de qualquer modo, estou
contente por não estar sempre bonito!
desta vez o homem não resmungou nem virou a cabeça. claro
que pollyanna concluiu que ele não a tinha ouvido. na
próxima vez, que por acaso foi no dia a seguir, ela falou
mais alto. de qualquer modo ela entendia que era necessário
fazê- lo pois o homem estava a afastar-se com as mãos atrás
das costas e os olhos no chão. aquela postura parecia
inadequada a pollyanna, face ao sol esplendoroso e à
limpidez do ar da manhã. pollyanna fazia um dos seus
passeios matinais.
- como está o senhor? ainda bem que já passou o dia de
ontem, não acha?
o homem parou bruscamente. tinha uma expressão zangada.
- olha, minha menina, vamos resolver isto de uma vez por
todas. eu tenho mais em que pensar, para além do tempo que
faz. nem reparo se o sol está a brilhar ou não.
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pollyanna respondeu alegremente.
- eu bem me parecia que não reparava, por isso é que lhe
estou a dizer.
- o quê? - perguntou, olhando espantado.
- É por isso que eu lhe digo para reparar no sol a brilhar.
eu sabia que ficava mais contente se parasse de pensar nas
suas coisas. se não repara no sol é porque não pára de
pensar!
- raios... - praguejou o homem com um gesto de impotência.
continuou a andar, mas logo a seguir voltou-se ainda
zangado.
- olha lá, porque é que não arranjas alguém da tua idade
com quem conversar?
- isso gostava eu, senhor, mas não há ninguém por aqui -
respondeu ela. - mas eu também não me importo muito. gosto
das pessoas mais velhas, talvez até mais que os novos.
estou habituada com as senhoras da caridade.
- humm! as senhoras da caridade? pensas que sou desses? - o
homem tentava esboçar um sorriso, mas o resto da cara não
deixava.
pollyanna riu.
- ah, não, senhor. não se parece nada com as senhoras da
caridade, mas decerto que é tão bom como elas, talvez até
melhor - acrescentou ela tentando ser educada. - tenho a
certeza de que é muito melhor do que parece!
o homem fez um ruído estranho com a garganta.
- raios. - explodiu ele outra vez enquanto se voltava e
continuava o caminho.
da próxima vez que pollyanna encontrou o homem, os olhos
dele fixaram directamente os dela com a franqueza que
tornou o rosto dele agradável, pensou pollyanna.
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- boa tarde - cumprimentou-a ele rigidamente.
- talvez seja melhor eu dizer que já sei que o sol hoje
está a brilhar.
- mas não precisa de me dizer - respondeu pollyanna
alegremente. - logo que eu o vi, soube imediatamente que
sabia.
- ah, sim, sabia?
- sim, senhor, vi nos seus olhos e fiquei logo a saber pelo
seu sorriso.
- humm! - resmungou o homem enquanto se afastava.
depois disto, o homem passou a falar sempre a pollyanna e
era ele quem frequentemente falava pri meiro, se bem que
normalmente pouco mais dissesse do que “boa tarde. no
entanto, mesmo isso era uma grande surpresa para nancy que
calhou estar com pollyanna num dos dias em que eles se
cruzaram.
- fantástico, miss pollyanna! esse homem cumprimentou-a?
- sim, cumprimenta sempre, agora - respondeu pollyanna com
um sorriso.
- cumprimenta sempre! meu deus! sabe quem ele é? -
perguntou nancy.
pollyanna fez-se séria e abanou a cabeça.
- ele nunca me chegou a dizer. eu apresentei-me, mas ele
não.
nancy abriu mais os olhos.
- mas ele nunca fala com ninguém, há anos, creio eu.
excepto quando não tem outro remédio, por questões de
negócios e coisas assim. chama-se john pendleton. vive
sozinho no grande casarão de pendleton hill. nem sequer tem
lá quem cozinhe para ele. as refeições vêm do hotel três
vezes por dia. conheço a sally miner que é a criada dele.
ela diz que ele mal abre a
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boca para dizer o que quer comer. ela tem de adivinhar
quase sempre o que lhe apetece e tem de ser sempre qualquer
coisa barata! isso sabe ela, mesmo sem ele precisar de
dizer.
pollyanna respondeu, manifestando compreensão.
- eu sei. quando se é pobre, tem que se procurar apenas
coisas baratas. o pai e eu comíamos muitas vezes fora.
quase sempre comíamos feijão e pastéis de peixe.
costumávamos dizer que tínhamos muita sorte em gostar de
feijões. dizíamos isso especialmente quando estávamos a ver
na mesa ao lado perú assado que era muito mais caro. o
senhor pendleton gosta de feijões e pastéis de peixe?
- sei lá se gosta. mas ele não é pobre. tem muitíssimo
dinheiro que herdou do pai. não há ninguém na cidade tão
rico como ele. se quisesse, até podia comer notas de
dólares que nem dava por isso.
pollyanna abanou a cabeça.
- como se alguém pudesse comer notas de dólares sem dar por
isso. primeiro é preciso mastigá-las!
- o que eu quero dizer é que ele é muito rico - respondeu
nancy impaciente. - ele não quer gastar o dinheiro. É só
isso. É um sovina.
- ah sim? isso é muito bom, é negar-se a si próprio e
carregar a sua cruz. eu sei porque o pai me disse.
nancy abriu a boca como se estivesse para se zangar, mas ao
ver o rosto alegre de pollyanna reparou numa coisa que a
impediu de falar.
- humm! - vociferou ela. e continuou: - não deixa de ser
curioso ele dispor-se a falar consigo, miss pollyanna. ele
não fala com mais ninguém e vive sozinho naquele grande
casarão cheio de coisas luxuosas, como dizem. alguns dizem
que é maluco e há até quem diga que tem um esqueleto no
armário.
- oh nancy! - disse pollyanna toda arrepiada.
- como pode ele guardar uma coisa dessas? acho que o
deitava logo fora!
nancy sorriu por pollyanna ter tomado aqiilo do esqueleto à
letra. mas, com uma ponta de perversidade, absteve-se de
corrigir o erro.
- e todos dizem que ele é muito misterioso - continuou ela.
- há alguns anos, viajava muito para os países quentes como
o egipto e o deserto do saara.
- ah, como missionário - respondeu pollyanna. nancy riu-se
de modo estranho.
- não diria isso, miss pollyanna. quando regressa, escreve
livros. livros esquisitos sobre coisas curiosas que
encontra nos países por onde viaja. mas nunca gasta o seu
dinheiro aqui, pelo menos em luxos.
- claro que não, ele poupa para viajar por esses países -
disse logo pollyanna. - mas é um homem divertido e
diferente, tal como mrs. snow. só que ele é um diferente
diferente.
- sim, bem me parece - galhofou nancy.
- agora, estou ainda mais contente por ele me falar
- disse pollyanna toda contente.

10. uma surpresa para mrs. snow


quando pollyanna foi novamente visitar mrs. snow, encontrou
a senhora com o quarto às escuras, tal como da primeira vez.
- É a menina da miss polly, mãe - anunciou milly com voz
cansada. pollyanna ficou só com a inválida.
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- ah, é você? - perguntou uma voz hesitante da cama. -
lembro-me de si, penso que todos se lembram depois de a
terem conhecido. gostava tanto que tivesse vindo ontem.
- ah sim? ainda bem que não passou muito tempo desde ontem
- brincou pollyanna, aproximando-se mais e pousando um
cesto que trazia numa cadeira. mas que escuro, está aqui.
não se vê nada! - disse ela dirigindo- se determinadamente
para a janela e levantando os cortinados. - quero ver se
arranjou o cabelo outra vez como eu fiz. ah não! mas não
faz mal, assim eu posso arranjá-lo, depois. mas, agora,
quero que veja o que lhe trouxe.
a mulher olhava para ela atentamente.
- como se o aspecto fizesse alguma diferença em relação ao
sabor - troçou ela, enquanto, apesar de tudo, ia virando os
olhos para o cesto. - então, o que traz?
- adivinhe. o que é que lhe apetecia? - pollyanna recuou
até ao cesto. o seu rosto iluminava-se.
a mulher doente franziu o sobrolho.
- não me lembro de nada que me apeteça. afinal sabe tudo ao
mesmo!
pollyanna galhofou.
- isto não. adivinhe! se lhe apetecesse alguma coisa, o que
seria?
a mulher hesitou. ela não se apercebia, mas estava há tanto
tempo habituada a querer justamente aquilo que não tinha,
que afirmar de antemão aquilo que lhe apetecia, parecia
impossível, sem primeiro saber o que de facto tinha. no
entanto, teria que dizer qualquer coisa. esta criança
extraordinária estava à espera.
- ah, claro que é caldo de carneiro.
- então aqui tem! - gritou pollyanna.
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- mas isso é aquilo que eu não queria - respondeu a doente,
tendo agora a certeza daquilo que o estômago lhe estava a
pedir. - era galinha que eu queria.
- ah, mas eu também trago isso - disse logo pollyanna.
a mulher olhou espantada.
- traz as duas coisas? - perguntou ela.
- sim, e também trago geleia de mão-de-vaca
- disse pollyanna triunfante. - achei que hoje havia de ter
aquilo que lhe apetecia. assim, eu e a nancy arranjámos
tudo. claro que trago só um pouco de cada, mas trago de
tudo. estou tão con tente por lhe apetecer galinha -
continuou ela satisfeita enquanto retirava os três boiões
do cesto. no caminho para cá pensei no problema que
seria se dissesse que lhe apetecia dobrada ou cebolas ou
qualquer coisa assim que eu não tivesse! seria uma pena,
depois de me ter esforçado tanto - riu ela satisfeita.
não se ouviu resposta. a doente parecia procurar
mentalmente algo que tivesse perdido.
- aqui está, vou deixá-los cá todos - anunciou pollyanna,
enquanto dispunha os três boiões em fila sobre a mesa. -
talvez amanhã lhe apeteça caldo de carneiro. então, e como
está hoje? - perguntou ela
educadamente.
- ai, muito mal - murmurou mrs. snow
deixando-se cair na sua habitual atitude de abandono.
- esta manhã não consegui dormir. nellie higgins, que mora
aqui ao lado, começou a aprender música e tira-me o sossego
todo. esteve toda a manhã naquilo! não sei o que hei-de
fazer!
polly fez que sim com a cabeça, de modo compreensivo.
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- eu sei, é horrível! passou-se a mesma coisa com mrs.
white, uma das senhoras da caridade. ela tinha febre
reumática e também não podia mexer-se. dizia que era mais
fácil se pudesse. e a senhora, pode?
- posso, o quê?
- mexer-se, deslocar-se para mudar de posição quando a
música se torna insuportável.
mrs. snow hesitou um pouco.
- claro que me posso mexer por todo o lado, na cama -
respondeu com alguma irritação.
- pode dar-se por feliz por isso, não acha? mrs. white não
podia. quando se tem febre reumática não nos podemos mexer,
por muito que queiramos, dizia mrs. white. ela contou-me
que quase tinha dado em maluca se não fossem os ouvidos da
irmã de mr. white. por ela ser surda.
- os ouvidos da irmã! que quer dizer? pollyanna riu.
- ah, eu não contei tudo e esqueci-me que a senhora não
conhecia a mrs. white. o que se passa é que a irmã, miss
white, era surda, completamente surda e veio para casa
deles para ajudar a tratar de mrs. white. tiveram tantas
dificuldades em fazer com que ela percebesse fosse o que
fosse que, depois de algum tempo, quando o piano começava a
tocar do outro lado da rua, mrs. white ficava contentíssima
por conseguir ouvi-lo e deixou de se importar. não
conseguia deixar de pensar como seria horrível se fosse
surda e não conseguisse ouvir nada, como a irmã do marido.
está a ver, ela também estava a jogar o mesmo jogo. e fui
eu que lho ensinei.
- jogo, que jogo?
pollyanna bateu as palmas.
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- ah, quase me esquecia. eu estive a pensar naquilo de
outro dia, sobre razões para estar contente.
- contente? que quer dizer?
- eu disse-lhe que ia pensar, não se lembra? pediu-me para
lhe dizer alguma coisa de que pudesse estar contente,
apesar de ter que estar deitada o dia inteiro.
- ah isso! já me lembro. mas não pensei que levasse isso
mais a sério do que eu.
- sim, levei! - disse pollyanna triunfantemente.
- e já descobri, mas foi difícil. assim até é mais
engraçado, quando é difícil. e levei isso tão a sério que,
durante um tempo, não pensei em mais nada, até que descobri.
- descobriu? então o que é? - perguntou mrs. snow com voz
sarcástica mas educada.
pollyanna respirou fundo.
- eu pensei que deveria estar muito contente por as outras
pessoas não serem como a senhora e não estarem deitadas e
doentes da mesma maneira.
mrs. snow olhava zangada.
- ah sim, realmente! - exclamou ela em tom pouco amistoso.
- e agora vou-lhe ensinar o jogo - propôs pollyanna
confiante. - vai gostar muito de o jogar pois é difícil. e
sendo difícil torna-se muito mais divertido! É assim. - e
começou a contar as histórias das colectas de caridade, das
muletas e da boneca que nunca mais chegava.
tinha acabado de contar a história quando milly apareceu à
porta.
- a sua tia está a chamá-la, miss pollyanna - disse ela com
ar preocupado. - telefonou para casa dos harlows e diz que
tem que se despachar para a lição de música, antes do
anoitecer.
63
pollyanna levantou-se com relutância.
- está bem, eu despacho-me - e riu-se. - acho que devo
estar contente, afinal tenho pernas para andar depressa.
não é verdade, mrs. snow?
não houve resposta. os olhos de mrs. snow estavam fechados.
mas milly, cujos olhos estavam bem abertos de surpresa, viu
que no rosto dela havia lágrimas.
- adeus - disse pollyanna enquanto se dirigia para a porta.
- É pena não ter tido tempo para lhe arranjar o cabelo.
fica para a próxima vez!
os dias do mês de julho iam passando. para pollyanna eram
dias felizes. dizia muitas vezes à tia como era feliz ali.
ao que a tia costumava responder:
- muito bem, pollyanna. estou satisfeita por estares feliz,
mas espero que aproveites o tempo, senão chego à conclusão
de que não estou a cumprir o meu dever.
normalmente, pollyanna respondia à tia com um abraço e um
beijo. um procedimento que quase sempre era desconcertante
para miss polly. um dia falou disso durante a lição de
costura.
- então, a tia polly acha que não chega eu ser feliz? -
perguntou ela pensativamente.
- É verdade, pollyanna.
- então tenho também que aproveitar o tempo?
- decerto.
- e o que significa aproveitar o tempo?
- É beneficiar, tirar partido e ficar com alguma coisa que
se veja. mas que criança extraordinária que tu és!
64
- então, e ser feliz não é beneficiar? - perguntou
pollyanna um pouco ansiosamente.
- decerto que não.
- então, acho que não vai gostar. receio que nunca há-de
jogar o jogo, tia polly.
- o jogo, que jogo?
- o que o meu pai. - pollyanna levou logo a mão à boca. -
nada - emendou ela.
miss polly franziu o sobrolho.
- por hoje já chega, pollyanna - dando por concluída a
lição de costura.
foi nessa tarde que pollyanna ao descer do seu quarto do
sótão encontrou a tia nas escadas.
- mas que bom, tia polly! - gritou ela. - vinha cá acima
ver-me? entre, adoro companhia - disse, voltando a subir as
escadas e abrindo a porta.
miss polly não tencionava ir ver a sobrinha. ia procurar um
certo xaile de lã, na arca que se encontrava junto a uma
das janelas do sótão. mas, apanhada de surpresa, via-se
agora no quartinho de pollyanna sentada numa das cadeiras.
como tantas vezes já acontecera desde que pollyanna tinha
chegado, miss polly acabava por fazer coisas totalmente
inesperadas e diferentes das que tinha planeado fazer!
- adoro companhia - disse pollyanna de novo, movimentando-
se como se estivesse a receber alguém num palácio. -
especialmente desde que tenho este quarto só para mim.
claro que sempre tive um quarto, mas era alugado e os
quartos alugados não são bonitos como os nossos quartos. e
claro que este quarto é meu, não é?
- sim, pollyanna - murmurou miss polly, pensando vagamente
nas razões que a levavam a ficar ali sentada em vez de ir
procurar o xaile.
65
- e claro que eu agora gosto muito deste quarto, mesmo não
tendo os tapetes, os cortinados nem os quadros que eu
gostaria - pollyanna caiu em si e corou. ia começar a mudar
de conversa quando a tia a interrompeu abruptamente.
- que é isso, pollyanna?
- nada, tia polly, a sério. não era isto que eu queria
dizer.
- talvez não - respondeu miss polly friamente
-, mas acabaste por o dizer, portanto é melhor acabares.
- mas não era nada. só que eu tinha planeado ter bonitos
tapetes e cortinados com laços e essas coisas. mas claro
que.
- tinhas planeado? - interrompeu miss polly com voz severa.
pollyanna corou ainda mais.
- eu não tinha nada que os ter, tia polly - desculpou-se
ela. - só que sempre desejei essas coisas. tínhamos dois
tapetes mas eram tão pequenos e um deles tinha nódoas de
tinta e buracos, e nunca tivémos quadros para além dos dois
que o pai. quero dizer um deles, o melhor foi vendido, o
outro partiu-se. se não fosse isso nunca teria feito planos
sobre o lindo quarto que ia ter quando aqui chegasse. mas
foi por pouco tempo. fiquei logo contente por a cómoda não
ter espelho porque assim não via as minhas sardas e não há
quadro mais bonito do que o que se pode ver da janela. e a
senhora tem sido tão boa para mim que.
miss polly levantou-se de repente. estava muito vermelha.
- já chega pollyanna - disse ela severamente. logo de
seguida desceu as escadas e só lá em baixo se lembrou do
que tinha ido fazer ao sótão.
66
no dia seguinte, miss polly disse secamente a nancy:
- nancy, podes mudar as coisas de miss pollyanna para o
quarto de baixo. decidi que a minha sobrinha passará a
dormir ali, por agora.
- sim, senhora - disse nancy em voz alta. “mas que bom! “,
pensou nancy.
foi logo ter com pollyanna para lhe dar a boa notícia.
pollyanna nem queria acreditar.
- isso é mesmo verdade?
- bem pode acreditar - dizia nancy, enquanto retirava as
roupas do armário. - a senhora disse-me para levar as suas
coisas todas para o quarto de baixo e é isso que eu estou a
fazer, antes que mude de ideias e fique tudo na mesma.
pollyanna nem parou para ouvir o resto da frase. correndo o
risco de se magoar, desceu as escadas a correr, dois
degraus de cada vez.
depois de bater com duas portas e fazer cair uma cadeira,
chegou finalmente junto da tia.
- oh, tia polly, tia polly, muito obrigada. o quarto novo
tem tudo, tapetes, cortinados e três quadros. e as janelas
têm a mesma vista. oh, tia polly, que bom!
- muito bem, pollyanna. ainda bem que gostas da mudança.
mas se dás tanta importância a essas coisas, espero que
cuides bem delas. por agora é tudo. faz o favor de levantar
a cadeira e vê se não bates com as portas - disse miss
polly com ar sério. a sua expressão era ainda mais séria do
que o costume, porque por uma razão inexplicável sentiu-se
tentada a gritar e miss polly não estava habituada a
tentações dessas.
pollyanna levantou a cadeira.
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- desculpe. É que eu acabei de saber do quarto e acho que a
senhora também batia com as portas se.
- pollyanna fez uma pausa e olhou para a tia com um novo
interesse. - tia polly, nunca bateu com as portas?
- penso que não, pollyanna! - disse a tia chocada.
- mas porquê, tia polly? que pena! - a expressão de
pollyanna revelava apenas compaixão.
- pena? - repetiu a tia demasiado espantada para dizer mais
alguma coisa.
- sim, já vê, se se sentisse com vontade de bater portas
teria batido com elas e, se não o fez, é porque nunca ficou
contente com nada. senão tê-las-ia batido. não podia deixar
de o fazer. e tenho tanta pena de que nunca tenha estado
contente com nada!
- pollyanna! - rugiu a senhora. mas pollyanna já se tinha
ido embora e só ouviu dela o bater distante da porta das
escadas do sótão. pollyanna tinha ido ajudar nancy a trazer
as coisas para baixo.
miss polly na sala de estar sentiu-se vagamente perturbada.
claro que já tinha ficado contente com algumas coisas,
pensou ela.

11. a apresentação de jimmy


chegou o mês de agosto. este mês trouxe várias surpresas e
algumas mudanças. no entanto, nenhuma delas constituiu uma
verdadeira surpresa para nancy que desde a chegada de
pollyanna tinha estado à espera de surpresas e mudanças.
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primeiro foi o gatinho.
pollyanna encontrou um gatinho a miar desalmadamente, a
alguma distância da estrada. depois de ter perguntado a
toda a vizinhança, não encontrou o dono e trouxe-o para
casa.
- ainda bem que não encontrei o dono - disse ela à tia,
muito satisfeita -, porque quis logo trazê-lo para casa.
adoro gatinhos. já sabia que o ia deixar viver cá em casa.
miss polly olhou para o montinho de pêlo que se encolhia
nos braços de pollyanna e disse:
- que horror pollyanna! que animalzinho horroroso! e com
certeza está doente e cheio de pulgas.
- eu sei, pobre coitadinho - lamentou pollyanna com carinho
olhando para os olhinhos assustados do bicho. - e está a
tremer de medo. É porque ainda não sabe que vamos ficar com
ele.
- não, não vamos - retorquiu miss polly com ênfase.
- pois vamos - reafirmou pollyanna, não tendo compreendido
as palavras da tia. - eu disse a toda a gente que íamos
ficar com ele se não encontrássemos o dono. eu sabia que ia
ficar contente e que ia ter pena deste gatinho abandonado!
miss polly abriu a boca, a tentar falar, mas em vão.
voltava a sentir aquele curioso sentimento de impotência
que experimentara tão frequentemente desde a chegada de
pollyanna.
- eu bem sabia - respondeu pollyanna com gratidão -, que a
tia, tendo tomado conta de mim, não ia deixar o pobre
bichinho sem casa, e disse a mrs. ford, quando ela me
perguntou se a tia me deixava ficar com ele, que eu tinha
tido as senhoras da caridade e que o gatinho não tinha
ninguém. eu sabia
69
que a tia ia pensar assim! - e saiu a correr do quarto.
- mas, pollyanna, pollyanna - insistiu miss polly
-, eu não... - mas, pollyanna ia já a meio caminho da
cozinha, gritando.
- nancy, nancy, olha este gatinho que a tia polly vai criar
juntamente comigo!
e a tia polly que detestava gatos deixou-se cair abatida na
cadeira, desalentada e impotente para protestar.
no dia seguinte foi um cão ainda mais sujo e desamparado
que o gatinho. e de novo, miss polly sem saber como
encontrou-se no papel de protectora e anjo-da-guarda, o
papel que pollyanna lhe atribuía sem hesitar, como uma
coisa natural que a senhora, que detestava cães ainda mais
do que gatos, se viu outra vez impotente para contrariar.
quando, porém, na mesma semana, pollyanna trouxe para casa
um rapazinho sujo e mal vestido pedindo confiadamente a
mesma protecção para ele, miss polly, desta vez, teve que
se opor mesmo.
numa agradável manhã de quinta-feira, pollyanna foi de novo
levar geleia de mão-de-vaca a mrs. snow. mrs. snow e
pollyanna eram agora óptimas amigas. a amizade começou a
partir da segunda visita de pol lyanna, ou seja, depois de
a menina ter ensinado o jogo a mrs. snow. esta jogava agora
o jogo com pollyanna, embora não jogasse lá muito bem, pois
tinha-se lamentado tanto, durante tanto tempo, que não era
fácil agora ficar contente com qualquer coisa. mas, com as
alegres instruções de pollyanna e as risadas que esta dava
quando se enganava, ia aprendendo depressa. hoje, para
grande delícia de pollyanna, disse até que estava
70
muito contente por pollyanna lhe ter trazido geleia de mão-
de-vaca porque era justamente isso que lhe apetecia. ela
não sabia que milly, ao receber pollyanna, tinha dito a
esta que a mulher do pastor já tinha ali estado, de manhã,
e tinha trazido um boião com geleia daquela.
pollyanna reflectia sobre isto, quando, subitamente, viu o
rapaz.
o rapazinho estava sentado com ar desconsolado num degrau
junto à estrada a cortar aparas de um pau.
- olá! - disse pollyanna tentando entabular conversa.
o rapaz olhou para ela, mas desviou logo os olhos.
- olá! - resmungou ele.
pollyana riu.
- não pareces nada feliz - disse pollyanna, estacando
diante dele.
o rapaz olhou surpreendido e recomeçou a cortar o pau com a
faca.
pollyanna hesitou, mas, logo a seguir, decidiu sentar-se na
relva ao pé dele. apesar de pollyanna cos tumar dizer que
estava habituada às senhoras da caridade e não se importar
pelo facto de não ter companhias da mesma idade, de vez em
quando, desejava ter amigos da mesma idade. daí a sua
determinação em se esforçar com este rapazinho.
- chamo-me pollyanna whittier - disse ela com simpatia. -
como te chamas tu?
o rapaz olhou para ela inquieto. esboçou um movi mento para
se pôr de pé, mas acabou por se deixar ficar.
- chamo-me jimmy bean - respondeu ele, com pouca vontade de
falar.
- Óptimo! agora estamos apresentados. ainda bem que te
apresentaste, algumas pessoas não o fazem.
71
eu vivo em casa de miss polly harrington. onde vives tu?
- em lado nenhum.
- em lado nenhum? porquê? isso não pode ser, toda a gente
vive nalgum lado.
- pois olha, eu por agora não vivo em lado nenhum. estou à
procura de um sítio novo.
- ah sim? aonde?
o rapaz olhou com ar trocista.
- palerma! como se eu pudesse andar à procura de casa!
pollyanna sacudiu um pouco a cabeça. ele não estava a ser
simpático e ela não tinha gostado que ele lhe chamasse
palerma. no entanto, valia a pena insistir porque ele era
diferente dos mais velhos.
- onde vivias antes?
- nunca mais paras de fazer perguntas? - perguntou o rapaz
impaciente.
- tenho que fazer - respondeu pollyanna calmamente - senão
não consigo saber nada acerca de ti. se falasses mais, eu
não perguntava tanto.
o rapaz deu uma risada. era um riso forçado mas o rosto
tornou-se simpático.
- está bem, aí vai! sou jimmy bean e tenho dez anos. vim no
ano passado viver para o orfanato mas já tinham lá tantos
miúdos que não havia espaço para mim. por isso fui-me
embora. vou viver para outro lado, mas ainda não encontrei
lugar. só queria um lar, um lar normal com uma mãe. ter um
lar é ter uma família e eu não tenho uma família desde que
o meu pai morreu. por isso, estou à procura. já tentei em
quatro casas mas não me quiseram, embora eu dissesse que
queria trabalhar. era isso que querias saber? - a voz do
rapaz esmorecera nas últimas duas frases.
72
- mas que pena! - disse pollyanna cheia de compaixão. - e
ninguém te quis? eu sei como te sentes porque depois de o
meu pai morrer eu também não tive mais ninguém senão as
senhoras da caridade, até que a tia polly disse que tomava
conta de mim. pollyanna interrompeu bruscamente. tinha tido
uma ideia maravilhosa.
- ah, já sei de um lugar para ti - gritou ela. a tia polly
há-de ficar contigo, tenho a certeza! não ficou ela comigo?
e não ficou também com o fluffy e o buffy quando eles não
tinham ninguém que tomasse conta deles nem para onde ir? e,
afinal, não passam de bichos. vem, eu sei que a tia polly
fica contigo! não imaginas como ela é boa e simpática!
o pequeno rosto de jimmy bean iluminou-se.
- tens a certeza? ela fica comigo? eu posso trabalhar e sou
muito forte! - disse ele mostrando o seu bracito magro.
- É claro que sim! a minha tia polly é a melhor senhora do
mundo depois de a minha mãe ter ido para o céu. e há muitos
quartos - continuou ela, saltitando e apalpando o braço
dele. - É um casarão enorme. talvez - acrescentou ela um
pouco ansiosamente enquanto se apressava -, talvez tenhas
que dormir no quarto do sótão. eu, primeiro, também lá
dormia, mas agora tem mosquiteiros e não faz tanto calor,
além de que as moscas não podem entrar com micróbios nas
patas. sabias disso? É muito giro! talvez ela te deixe ler
o livro se fores bonzinho ou. se te portares mal. tu também
tens sardas - disse ela com um olhar crítico. - assim
ficarás contente por não haver nenhum espelho. e a vista
daquela janela é mais bonita do que qualquer quadro. assim
não te hás-de importar de dormir naquele quarto, tenho a
certeza - insistiu pollyanna,
74
descobrindo que precisava do fôlego para outros fins que
não o de falar.
- mas que bom! - exclamou jimmy bean sem compreender muito
bem, mas satisfeitíssimo. e acrescentou: - não sabia que
era possível continuar a falar enquanto se corria!
- de qualquer maneira é melhor para ti - retorquiu ela -,
porque enquanto eu falo tu não tens de falar!
quando chegaram a casa, pollyanna conduziu o companheiro
directamente à presença da tia, surpreendida.
- oh, tia polly - disse ela triunfante. - veja só! trouxe
uma coisa muito mais bonita que o fluffy e o buffy para a
senhora criar. É um rapaz sério. ele não se importa de
dormir no sótão ao princípio e diz que pode trabalhar,
embora eu ache que vou precisar dele a maior parte do tempo
para brincar.
miss polly ficou branca como cal, e depois vermelha como um
pimentão. não estava a perceber muito bem mas aquilo que
entendeu bastou.
- pollyanna, que significa isto? quem é este rapazinho
sujo? perguntou ela severamente.
“o rapazinho sujo” recuou um passo e olhou para a porta.
pollyanna procurou rir.
- veja lá, esqueci-me de lhe dizer o nome dele! sou tão
esquecida como o homem. e também vem sujinho, não é? está
como o fluffy e o buffy quando aqui chegaram. mas acho que
ele ficará melhor logo que se lavar, como eles. chama-se
jimmy bean, tia polly.
- e o que faz ele aqui?
- já lhe disse tia polly! - os olhos de pollyanna estavam
enormes de surpresa. - trouxe-lho para si. trouxe-o para
casa, para ele viver aqui conosco. ele
75
quer um lar e uma família. contei-lhe como a senhora era
boa para mim, para o fluffy e para o buffy e que eu sabia
que seria também boa para ele, porque é mais bonito que os
bichinhos.
miss polly deixou-se cair na cadeira e ergueu a mão trémula
até à garganta. a impotência habitual ameaçava mais uma vez
apoderar-se dela. porém, com um esforço visível, miss polly
endireitou-se de repente.
- já chega, pollyanna. isto é a coisa mais absurda que tu
fizeste até agora. como se já não bastasse trazeres para
casa gatos e cães vadios, tens também de ir buscar
rapazinhos pedintes à rua.
o rapazito, dando dois passos firmes nas perninhas magras,
pôs-se corajosamente diante de miss polly.
- não sou nenhum pedinte, minha senhora e não quero nada de
si. estava à procura de trabalho, para o meu sustento. mas
não tinha vindo à sua casa se esta menina não me tivesse
dito como a senhora era boazi nha e que estava desejosa de
tomar conta de mim. portanto, vou-me embora! - e dizendo
isto, abandonou a sala com uma dignidade que teria parecido
absurda se não suscitasse pena.
- oh, tia polly! - lamentou pollyanna. - e eu que pensava
que ficava contente por o ter aqui!
miss polly ergueu a mão com um gesto firme, impondo o
silêncio. os nervos de miss polly tinham cedido. o que o
rapaz tinha dito de “boa e simpática” ainda lhe soava aos
ouvidos e ela sentia que a habitual impotência estava quase
a tomá-la. no entanto, num último assomo de vontade
conseguiu dizer:
- pollyanna - gritou zangada -, queres parar de utilizar
essa palavra gasta, de “contente”! É “contente” de manhã à
noite. dás comigo em doida!
pollyanna ficou boquiaberta.
76
- mas porquê, tia polly? - murmurou ela. - eu pensava que
ia ficar contente. oh. - interrompeu ela levando a mão à
boca e saindo a correr da sala.
antes do rapaz chegar ao portão, pollyanna alcançou-o.
- jimmy bean, peço-te imensa desculpa - disse ela pesarosa,
agarrando-o.
- desculpa. nada não te culpo a ti - retorquiu o rapaz
solenemente. - mas não sou nenhum pedinte!
- acrescentou ele altivo.
- claro que não! mas não deves deitar as culpas à tia
polly. se calhar foi por eu não te ter apresentado bem e
não lhe ter dito quem tu eras. ela é realmente boa e
simpática, sempre tem sido, mas eu se calhar não me
expliquei bem. quem me dera arranjar um sítio para ti
o rapaz encolheu os ombros e fez menção de se ir embora.
- não faz mal. hei-de encontrar um lugar. mas não sou
nenhum pedinte.
pollyanna tinha uma expressão muito triste. de repente o
rosto iluminou-se-lhe.
- já sei o que vou fazer! as senhoras da caridade vão
reunir-se esta tarde, ouvi a tia polly dizer. vou
apresentar-lhes o teu caso. era o que o pai fazia sempre
que queria alguma coisa.
o rapaz virou-se desconfiado.
- o que é isso das senhoras da caridade? pollyanna olhou
para ele reprovadoramente.
- onde é que tu foste criado para não saber quem são as
senhoras da caridade?
- está bem, se não queres dizer não digas - resmungou o
rapaz, virando-se e afastando-se com indi ferença.
77
pollyanna correu logo para ele.
- são. muitas senhoras que se encontram, fazem costura e
dão jantares para recolher dinheiro e conversar. são muito
simpáticas, pelo menos a maioria delas era. lá na minha
terra. não conheço as senhoras daqui mas elas são sempre
boas. esta tarde vou contar-lhes o teu caso.
o rapaz virou-se outra vez desconfiado.
- nem penses nisso! se calhar pensas que vou ficar por aqui
para ouvir uma quantidade de mulheres chamarem-me pedinte.
já basta uma!
- mas não precisas de estar lá - argumentou pollyanna
rapidamente. - eu vou sozinha e digo-lhes.
- vais?
- sim, desta vez, conto-lhes bem as coisas - apressou-se
pollyanna a dizer, desejosa de ver sinais de apaziguamento
no rosto do rapaz. - e deve haver algumas que hão-de gostar
de te dar um lar.
- e eu trabalho. não te esqueças de dizer isso.
- claro que não - prometeu pollyanna satisfeita, convencida
de que desta vez tinha ganho. - amanhã eu conto-te o que se
passou.
- onde?
- na estrada onde nos encontrámos hoje, perto da casa de
mrs. snow.
- está bem, estarei lá. talvez seja melhor eu voltar para o
orfanato só por esta noite. eu não lhes disse que não
voltava, senão não me deixavam voltar. embora ache que eles
não se importam nada se eu desaparecer. não são como
pessoas da família, não se preocupam nada!
- eu sei - assentiu pollyanna com olhar compreensivo. - mas
tenho a certeza de que quando nos virmos amanhã te terei já
arranjado um lar e gente
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amiga pronta a tomar conta de ti. adeus! - disse ela,
voltando para casa.
junto à janela da sala de estar, miss polly que tinha
estado a observar as duas crianças, seguiu de sobrolho
carregado o rapaz até ele desaparecer numa curva de
estrada. depois suspirou, voltou-se e subiu as escadas com
um ar de desânimo. miss polly não costumava ter essa
expressão. nos seus ouvidos ainda ecoavam as palavras ditas
pelo rapaz em tom de desespero: “e a senhora que era tão
boa e simpática”. no seu coração experimentava uma curiosa
sensação de desolação, como se tivesse perdido uma coisa.

12. com as senhoras da caridade


o almoço, ao meio dia, foi uma refeição silenciosa. nesse
dia era a reunião das senhoras da caridade. pollyanna ainda
tentou falar mas não conseguiu porque quatro vezes teve de
se interromper devido ao facto de ir quase a dizer
“contente”, para grande atrapalhação sua. À quinta vez,
miss polly abanou a cabeça impa cientemente.
- se tens alguma coisa a dizer, diz. se não o fizeres,
nunca mais sossegas.
pollyanna alegrou-se.
- ah, muito obrigada. É muito difícil não pronunciar aquela
palavra, joguei durante tanto tempo àquele jogo.
- jogaste o quê? - perguntou a tia polly.
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- aquele jogo, o do pai... - pollyanna interrompeu-se
novamente com um incómodo rubor nas faces, quando se viu de
novo em terreno proibido.
a tia polly franziu o sobrolho e não disse nada. durante o
resto da refeição não disseram mais nada. logo a seguir
telefonou à mulher do pastor comunicando que não poderia
estar presente na reunião das senhoras da caridade, naquela
tarde, devido a uma dor de cabeça. quando a tia polly subiu
para o seu quarto e fechou a porta, pollyanna tentou ter
pena da dor de cabeça, mas não pôde deixar de se sentir
contente por a tia não poder estar presente nessa tarde,
quando ela apresentasse o caso de jimmy bean às senhoras da
caridade. ela não se podia esquecer que a tia polly tinha
chamado “pobre pedinte” a jimmy bean e não queria que lhe
voltasse a chamar isso diante das senhoras da caridade.
pollyanna sabia que as senhoras da caridade se reuniam às
duas da tarde na capela, junto à igreja, a pouco mais de
meio quilómetro de casa. planeou, assim, a sua partida de
modo a chegar lá um pouco antes das duas da tarde.
- quero que lá estejam todas - disse ela para si própria -,
senão uma que chegue atrasada pode ser a que esteja
disposta a ficar com jimmy bean, e para as senhoras da
caridade duas da tarde significa sempre três horas.
calma e confiante, pollyanna subiu os degraus da capela,
abriu a porta e entrou no vestíbulo. da sala principal
vinha uma algaraviada feminina. com uma ligeira hesitação,
pollyanna abriu a porta.
as vozes acalmaram-se com alguma surpresa. pollyanna
avançou timidamente. agora que tinha chegado o momento,
sentia-se muito envergonhada. afinal estes
rostos meio estranhos não eram os das suas senhoras da
caridade.
- como estão as senhoras? - perguntou educadamente. - eu
sou pollyanna whittier, creio que algumas das senhoras me
conhecem, se bem que eu não as conheça a todas.
agora, o silêncio era quase total. algumas das senhoras não
conheciam a sobrinha extraordinária da sua colega embora
quase todas tivessem ouvido falar dela. naquele momento,
nenhuma delas encontrava nada para dizer.
- vim aqui apresentar-vos um caso - balbuciou pollyanna,
após uns segundos, utilizando inconscien temente a
fraseologia do pai.
ouviu-se um sussurro geral.
- foi a tua tia que te mandou? - perguntou mrs. ford,
esposa do pastor.
pollyanna corou um pouco.
- não, eu vim por vontade própria. estou habituada às
senhoras da caridade que me criaram, com o meu pai.
uma delas riu histericamente e a mulher do pastor franziu o
sobrolho.
- sim, querida, o que é?
- É por causa de jimmy bean - suspirou pollyanna. - ele não
tem nenhuma casa para além do orfanato que está cheio e
onde não o querem, pensa ele. por isso, quer uma família.
quer alguém que seja uma família para ele, que tome conta
dele. tem dez anos e vai fazer onze. pensei que alguma das
senhoras quisesse tomar conta dele.
- pensou? - murmurou uma voz, quebrando a pausa de espanto
que se seguiu às palavras de pollyanna.
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com olhos ansiosos, pollyanna percorreu o círculo de rostos
em torno dela.
- ah, esqueci-me de dizer! ele quer trabalhar - acrescentou
ela ansiosamente.
o silêncio manteve-se. depois, friamente uma ou duas das
senhoras começaram a interrogá-la. algum tempo depois
tinham a história completa e começaram a conversar umas com
as outras, animadamente mas sem grande contentamento.
pollyanna ouvia com ansiedade crescente. algumas das coisas
que diziam, ela não entendia. passado um bocado, percebeu,
no entanto, que nenhuma das mulheres estava disposta a dar-
lhe guarida embora cada uma delas parecesse pensar que
algumas das outras pudessem ficar com ele, dado que
existiam várias que não tinham crianças pequenas em casa.
porém, não havia nenhuma que estivesse disposta a ficar com
ele. a mulher do pastor sugeriu então que, em conjunto,
talvez pudessem assumir a responsabilidade do seu sustento
e educação, enviando menos dinheiro este ano para as
crianças da longínqua Índia.
muitas senhoras falaram então, e algumas delas ao mesmo
tempo, ainda mais alto e de modo mais incomodativo do que
antes. diziam que a sociedade delas era famosa pelas
ofertas que fazia às missões na Índia e várias diziam que
seria uma pena se este ano dessem menos dinheiro. pollyanna
voltou a não entender muito bem o que estavam a dizer, mas
parecia que o importante era que o nome de uma sociedade
rival não aparecesse no lugar delas, numa certa lista, mas
pollyanna devia ter entendido mal! era tudo muito confuso e
pouco agradável, de maneira que pollyanna ficou satisfeita
quando se viu de novo lá fora a respirar ar fresco. mas, ao
mesmo tempo, estava muito triste porque sabia
82
que lhe ia ser muito difícil dizer a jimmy bean, no dia
seguinte, que as senhoras da caridade tinham decidido que
era preferível enviar o dinheiro para os meninos da Índia
do que criar um menino da sua própria cidade e que a razão
para isso era o facto de não virem a ser “mencionadas em
primeiro lugar na tal lista”, segundo tinha dito a senhora
alta de óculos.
pollyanna pensava para si mesma que era, evidentemente, bom
enviar dinheiro para os países mais pobres e não queria que
elas deixassem de o enviar, mas tinham agido como se os
meninos daqui não tivessem qualquer importância e só fossem
dignos de cuidado, os meninos dos países distantes. apesar
de tudo, pensava que as senhoras deviam preferir ver
crescer jimmy bean a um simples relatório!

13. no bosque de pendleton


ao sair da capela, pollyanna não se dirigiu para casa mas
sim para pendleton hill. tinha sido um dia difícil embora
fosse um dos seus dias livres, como ela designava os poucos
dias em que não havia costura nem cozinha. e pollyanna
achava que não havia nada melhor do que o passeio através
dos bosques de pendleton. subiu assim a colina de
pendleton, apesar do calor que se fazia sentir.
- só preciso de chegar a casa pelas quatro e meia
- pensava ela -, e será muito mais agradável ir através dos
bosques, mesmo que tenha de subir esta colina.
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aqueles bosques eram muito belos e hoje pareciam ainda mais
agradáveis apesar de ela se sentir triste com o que teria
de dizer a jimmy bean no dia seguinte.
subitamente, pollyanna levantou a cabeça e pôs-se à escuta.
a alguma distância, um cão ladrava. um pouco depois, o cão
dirigiu-se a ela a correr, enquanto continuava a ladrar.
- olá, cãozinho! - disse pollyanna enquanto o acariciava e
olhava para o carreiro, na expectativa. ela já tinha visto
o cão antes. costumava acompanhar o homem, mr. john
pendleton. ela estava, agora, à espera que ele aparecesse.
olhou atentamente durante alguns minutos, mas ele não
apareceu. depois desviou a atenção para o cão.
este estava com um comportamento um pouco estranho.
continuava a ladrar como se quisesse dar o alarme. corria
para trás e para a frente no carreiro. parecia querer
chamar a atenção de pollyanna para um caminho lateral,
continuando a caminhar para trás e para diante, enquanto
ladrava.
- mas não é esse o caminho para casa - riu pollyanna,
mantendo-se no carreiro principal.
o cãozinho manifestava-se muito excitado. continuava a
correr para trás e para diante entre pollyanna e o caminho
lateral. todo o seu comportamento era um apelo tão
eloquente que, finalmente, pollyanna com preendeu e seguiu-
o.
um pouco mais à frente, pollyanna percebeu a razão daquele
comportamento. o homem jazia junto a um grande rochedo, a
alguns metros do carreiro secundário.
um ramo seco estalou sob os pés de pollyanna e o homem
virou a cabeça. pollyanna correu com um grito de surpresa.
- mr. pendleton! está magoado?
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- magoado? não, estou a dormir ao sol - respondeu o homem
irritado. - tenho a perna magoada.
com alguma dificuldade conseguiu levar a mão ao bolso das
calças e tirou um molho de chaves.
- segue por aquele carreiro e dentro de cinco minutos
estarás em minha casa. com esta chave entras pela porta
lateral. depois diriges-te à sala no fim do corredor e numa
secretária grande que se encontra no meio da sala está o
telefone. sabes utilizar um telefone?
- sim senhor, uma vez quando a tia polly.
- não interessa agora a tia polly - interrompeu o homem
abruptamente, tentando mover-se um pouco.
- tens de procurar o número do telefone do dr. thomas
chilton, numa lista que deve estar lá.
- sim senhor. a tia polly também tem.
- diz ao dr. chilton que john pendleton está junto ao
rochedo da águia, no bosque pendleton, com uma perna
partida e diz-lhe que traga imediatamente dois homens e uma
maca. ele saberá o que deve fazer. diz-lhe para vir pelo
carreiro que parte diante da casa.
- uma perna partida? oh, mr. pendleton, que horror! -
exclamou pollyanna. - mas ainda bem que vim. não poderei...
- sim, podes, mas agora não! vai imediatamente e faz o que
te peço, e pára de falar - resmungou o homem quase a
desmaiar.
com um ligeiro soluço, pollyanna partiu a correr. em breve
tinha a casa à vista. já a tinha visto, mas nunca tão
próximo. sentia-se agora um pouco assustada com a
imponência dos grandes pilares de pedra cinzenta, as
enormes varandas e a enorme entrada. depois de uma breve
hesitação, correu através do relvado e torneou a casa para
entrar pela porta lateral. com alguma dificuldade
conseguiu, finalmente, abrir a porta.
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pollyanna respirou fundo. apesar da pressa, hesitou um
momento olhando receosamente através do vestíbulo. era a
casa do john pendleton, uma casa de mistério, onde não
entrava ninguém senão o dono; uma casa onde se abrigava
algures um esqueleto.
com um gritinho, pollyanna, sem olhar para os lados, correu
apressadamente através da entrada e abriu a porta para o
corredor, dirigindo-se para a sala. esta era tão grande e
sombria, o tecto era de madeira escura, mas através da
janela entrava uma réstea de sol que brincava na protecção
de latão da lareira. pollyanna correu para a secretária, no
meio da sala, onde se encontrava o telefone. o livrinho dos
telefones estava no chão. mas pollyanna conseguiu encontrá-
lo e percorreu as folhas até encontrar o nome do dr.
chilton. conseguiu finalmente a ligação e transmitiu a
mensagem ao médico que lhe fez algumas perguntas. feito
isto, desligou e respirou fundo de alívio.
pollyanna olhou então em redor, apercebendo-se confusamente
das tapeçarias, das estantes cheias de livros que revestiam
as paredes, das inúmeras portas fechadas que podiam muito
bem esconder um esqueleto, e do pó.
pollyanna saiu a correr através do corredor, em direcção à
grande porta talhada, ainda semiaberta como ela a deixara.
para o homem que jazia ferido tudo aquilo fora muito rápido.
- houve algum problema? não conseguiste entrar?
- perguntou ele.
pollyanna abriu muito os olhos.
- claro que eu consegui! e aqui estou - respondeu ela. -
não estaria aqui se não tivesse entrado! e o médico virá o
mais depressa que lhe for possível. vai
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trazer os homens e o resto das coisas. ele disse que sabia
exactamente onde estávamos e por isso não fiquei lá para
lhe mostrar o caminho. quis vir ter consigo.
- quiseste? - sorriu o homem ironicamente. não posso dizer
que admire o teu gosto. pensava que encontrarias melhores
companhias.
- diz isso por ser tão rabugento?
- obrigado pela franqueza. sim.
pollyanna riu docemente.
- mas o senhor é só rabugento por fora. por dentro não é
nada!
- ah sim? e como sabes tu isso? - perguntou o homem
tentando mudar a posição da cabeça sem mexer o resto do
corpo.
- por várias razões. por exemplo, a maneira como age com o
seu cão - acrescentou ela apontando para a mão dele que
repousava sobre a cabeça do cão que se encontrava junto
dele. - É engraçado como os cães e os gatos conhecem os
donos por dentro melhor do que as outras pessoas, não é? É
melhor eu segurar na sua cabeça - concluiu ela abruptamente.
o homem gemeu várias vezes, até conseguirem arranjar uma
nova posição, mas finalmente ele chegou à conclusão de que
o colo de pollyanna substituia muito melhor o pedregulho
onde antes assentava a cabeça.
- ah, assim é melhor - murmurou ele suspirando. durante
algum tempo, não voltou a falar. pollyanna observava a cara
dele e interrogava-se se estaria a dormir. achava que ele
não estava a dormir. parecia que tinha os lábios cerrados
como se quisesse conter gemidos de dor. pollyanna quase
gritou quando se apercebeu bem de como era grande e forte o
corpo que ali jazia desamparado. o tempo ia passando, o sol
começava a pôr-se e as sombras entre as árvores eram cada
vez mais profundas. pollyanna sentava- se tão quieta que
mal respirava. um pássaro saltitava atrevidamente ao
alcance da sua mão e um esquilo abanava a cauda no ramo,
quase por cima da cabeça dela com os olhinhos brilhantes
postos no cão imóvel.
finalmente o cão levantou as orelhas e ladrou. logo a
seguir pollyanna ouviu vozes e em breve apareceram três
homens, trazendo uma maca e outros artigos.
o mais alto, que era o dr. chilton, avançou com boa
disposição.
- então esta linda menina está a brincar às enfermeiras?
- não senhor - sorriu pollyanna. - estou só a segurar na
cabeça dele. não lhe dei remédio nenhum. mas ainda bem que
estava aqui.
- também acho - assentiu o médico enquanto orientava a
atenção para o homem ferido.

14. uma simples questão de geleia


pollyanna chegou um pouco atrasada ao jantar na noite do
acidente de john pendleton, mas não foi repreendida.
nancy encontrou-a à porta.
- ainda bem que chegou, são cinco e meia!
- eu sei, mas não tenho a culpa. e tenho a certeza de que a
tia polly não me vai repreender.
- ela não está cá para a repreender - respondeu nancy
satisfeita. - ela partiu.
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- partiu? - perguntou pollyanna admirada. não me digas que
fiz com que ela se fosse embora? ao espírito de pollyanna
veio a lembrança do que se passara de manhã com o rapazito
rejeitado, a história do gato e do cão e das indesejadas
palavras contente e “pai” que, estando proibidas, lhe
escapavam da boca.
- não me digas que eu a fiz ir embora?
- não, a culpa não foi sua. a prima dela morreu
subitamente, em boston, e ela teve que partir. esta tarde,
depois da menina se ter ido embora, chegaram vários
telegramas e ela partiu. não estará de volta antes de três
dias. mas que bom, vamos ficar com a casa só para nós
durante todo esse tempo!
pollyanna olhou para nancy chocada.
- contentes? oh, nancy, quando há um enterro?
- mas eu não estava contente por causa do enterro, miss
pollyanna. então não me tem estado a ensinar a jogar àquele
jogo - chamou ela a atenção com uma expressão séria.
pollyanna franziu a testa.
- há certas coisas com as quais não se pode fazer o jogo e
uma delas são os enterros. num enterro não há nada que nos
possa dar contentamento.
nancy retorquiu:
- podemos ficar contentes por não ser o nosso enterro -
observou ela.
pollyanna não lhe deu atenção. tinha começado a contar o
acidente detalhadamente e nancy pôs-se a ouvir de boca
aberta.
conforme combinado, na tarde seguinte, pollyanna foi ao
encontro de jimmy bean. como se esperava, jimmy manifestou
o seu desapontamento pelo facto de as senhoras da caridade
preferirem um menino da Índia a ele próprio.
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- talvez seja natural - disse ele com um suspiro.
- as coisas que não conhecemos são sempre melhores do que
as que conhecemos. só queria que alguém olhasse por mim
dessa maneira. não seria óptimo se alguém na Índia me
quisesse a mim?
pollyanna bateu as palmas.
- É isso mesmo! vou escrever às minhas senhoras da
caridade! elas não estão na Índia, estão no oeste, mas é
muito longe e vai dar ao mesmo. tenho a certeza de que
ficam contigo, pois estás bastante longe. e. não ficou a
tia polly comigo? - pollyanna fez uma pausa. - ouve lá,
achas que eu fui para a tia polly como uma menina da Índia?
- se calhar... és uma menina muito esquisita.
tinha-se passado uma semana depois do acidente em pendleton
hoods, quando pollyanna disse à tia, numa manhã:
- tia polly, importava-se que eu, esta semana, levasse a
geleia de mão-de-vaca de mrs. snow a outra pessoa? tenho a
certeza de que mrs. snow não lhe apetece isso desta vez.
- o que estás tu a preparar, pollyanna? És uma criança
extraordinária!
pollyanna franziu a testa ansiosa.
- por favor, tia polly, que quer dizer extraordinária? se
somos extraordinários, não podemos ser ordinários, não é?
- não, tu não podes.
- ah, então está bem. estou contente por ser extraordinária
- disse pollyanna com um sorriso nos lábios.
mas então, o que há com a geleia?
91
- tenho a certeza de que a tia polly não se importa. a
perna partida dele não dura tanto tempo como a invalidez
permanentemente de mrs. snow e poderei continuar a visitá-
la depois.
- ele? perna partida? de que estás tu a falar pollyanna?
- ah, esqueci-me de que não sabia. no dia em que partiu
para boston, encontrei-o no bosque e tive que ir a casa
dele telefonar para o médico; segurei-lhe na cabeça e tudo.
depois vim-me embora e, desde então, não o vi mais. mas
quando nancy fez a geleia para mrs. snow, esta semana,
pensei que seria simpático se pudesse levá-la a ele em vez
de a levar a ela, pelo menos desta vez. posso, tia polly?
- sim, creio que sim - condescendeu miss polly um pouco
cansada. - mas quem é ele?
- É o homem. quero dizer, mr. john pendleton.
miss polly quase saltou da cadeira.
- john pendleton!
- sim, nancy disse-me como ele se chamava. talvez o conheça.
miss polly não respondeu. em vez disso perguntou:
- tu conhece-lo?
pollyanna disse que sim com a cabeça.
- sim, ele agora fala-me sempre e sorri. ele é antipático
só por fora. vou buscar a geleia. nancy já a deve ter
pronta - concluiu pollyanna a caminho da saída.
- pollyanna, espera! - a voz de miss polly tornou-se
subitamente muito grave. - mudei de ideias. prefiro que
leves essa geleia a mrs. snow, como de costume. por agora é
tudo. podes ir-te embora.
pollyanna ficou com uma expressão tristíssima.
- mas, tia polly, ela ainda vai ficar doente durante muito
tempo. ela pode continuar a estar doente e a ter
92
coisas mas ele tem só uma perna partida, não vai ficar
muito tempo assim. já está assim há uma semana.
- sim, eu sei. tive conhecimento do acidente, mas não me
interessa mandar geleia a john pendleton.
- eu sei que ele é antipático, mas é só por fora - admitiu
pollyanna tristemente. - deve ser por isso que não gosta
dele. mas eu não lhe digo que foi mandado por si. digo que
fui eu. eu gosto dele, fico muito contente por lhe poder
levar geleia.
miss polly começou de novo a abanar a cabeça. depois,
subitamente, parou e perguntou com voz calma e cheia de
curiosidade:
- ele sabe quem tu és, pollyanna?
- penso que não. eu disse-lhe o meu nome uma vez mas ele
nunca me chama por ele.
- ele sabe onde vives?
- não, eu nunca lho disse.
- então ele não sabe que és minha sobrinha?
- não. acho que não.
por um momento fez-se silêncio. miss polly olhava para
pollyanna como se não a estivesse a ver. a menina mostrava-
se impaciente. então, miss polly levantou-se.
- muito bem, pollyanna - disse ela finalmente com aquela
voz esquisita que não parecia nada dela:
- podes então levar a geleia a mr. pendleton como um
presente teu. mas que fique bem claro que não sou eu que o
mando. vê se ele percebe isso!
- sim, obrigada, tia polly - exultou pollyanna enquanto
corria para a porta.

15. o doutor chilton


a grande mansão parece muito diferente a pollyanna nesta
segunda visita à casa de mr. john pendleton. as janelas
estavam abertas, uma velhota pendurava as roupas no pátio
traseiro e a charrete do médico estava estacionada debaixo
do alpendre.
tal como fizera da outra vez, pollyanna entrou pela porta
lateral. desta vez, tocou à campainha, pois não tinha os
dedos tolhidos com um montão de chaves.
um cão, que já era seu conhecido, desceu os degraus para a
receber, mas demorou um pouco até que a mulher que
pendurava a roupa lhe viesse abrir a porta.
- por favor, eu trouxe um pouco de geleia para mr.
pendleton - sorriu pollyanna.
- obrigada - disse a mulher estendendo a mão para o boião
que se encontrava na mão da menina. quem devo dizer que a
mandou?
nesse momento, o médico que tinha entrado no hall ouviu as
palavras da mulher e viu a expressão desconsolada no rosto
de pollyanna. aproximou-se.
- ah! geleia de mão-de-vaca? isso é muito bom, talvez
queira ver o nosso doente?
- sim, sim - disse logo pollyanna. a mulher, a um sinal de
cabeça do médico abriu-lhe passagem com uma expressão de
surpresa estampada no rosto.
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atrás do médico, um enfermeiro “de uma cidade próxima”
exclamou perturbado:
- mas, sr. doutor, mr. pendleton não deu ordens para não
deixar entrar ninguém?
- sim - respondeu o médico indiferente. - mas agora estou a
dar outra ordem. eu assumo a respon sabilidade. você não
sabe que esta menina é melhor do que meia garrafa de
tónico. se há alguma coisa ou alguém que pode pôr mr.
pendleton bem humorado esta tarde, é ela. É por isso que eu
a mando entrar.
- quem é ela?
por breves momentos o médico hesitou.
- É sobrinha de uma das nossas mais conhecidas
conterrâneas. chama-se pollyanna whittier. ainda não
conheço muito bem a senhorita, por enquanto, mas, muitos
dos meus doentes conhecem-na e tenho muito prazer em o
dizer!
o enfermeiro sorriu.
- ah, sim? e quais são os ingredientes especiais desse
tónico miraculoso?
o médico abanou a cabeça.
- não sei. tanto quanto me parece, trata-se de uma grande
satisfação e contentamento por tudo o que acontece ou vai
acontecer. estou constantemente a ouvir contar o que ela
diz, tanto quanto sei, “estar contente” é um elemento
constante. só gostava de poder receitá-la como receito uma
embalagem de comprimidos. se bem que se houvesse muitas
como ela no mundo você e eu teríamos que arranjar outra
maneira de ganhar a vida.
entretanto, pollyanna, de acordo com as instruções do
médico, era conduzida ao quarto de john pendleton.
ao passar pela grande biblioteca a seguir ao hall,
pollyanna viu que tinha havido grandes mudanças. as
95
paredes forradas de estantes com livros e os cortinados
escuros eram os mesmos, mas estava tudo limpo e arrumado e
não havia uma partícula de poeira à vista. o livrinho dos
telefones estava colocado no sítio certo e os latões de
protecção da lareira tinham sido polidos.
uma das misteriosas portas estava aberta e foi através dela
que a criada a conduziu. pouco depois, pollyanna encontrou-
se num quarto sumptuosamente mobilado enquanto a criada
dizia com voz assustada:
- dá-me licença, senhor. está aqui uma menina que lhe traz
geleia. o médico disse para ela entrar.
e pollyanna ficou sozinha com o homem, de aparência muito
antipática, deitado de costas na cama.
- olhe cá, então eu não disse. ah, és tu! - interrompeu ele
quando pollyanna avançou em direcção à cama.
- sim, ainda bem que me deixaram entrar! ao princípio, a
empregada queria ficar com a geleia e eu receava não o
conseguir ver. mas depois o médico chegou e disse que eu
podia entrar. ainda bem que ele me deixou vir vê-lo. - no
rosto do homem os lábios pareceram esboçar um sorriso, mas
o mais que saiu dali foi um “humm! “
- e eu trouxe-lhe alguma geleia - concluiu pollyanna. - É
geleia de mão-de-vaca. espero que goste.
- acho que nunca comi.
o sorriso tinha desaparecido do rosto do homem. por breves
instantes, pollyanna pareceu desapontada, mas logo se
recompôs quando pousou o boião de geleia.
- nunca comeu? se nunca provou, não pode saber se gosta ou
não, assim, sinto-me contente que não tenha ainda provado.
se soubesse.
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- sim, sim, há uma coisa que eu sei, é que sou obrigado a
estar aqui deitado de costas neste momento e que vou estar
aqui até ao dia do juízo final.
pollyanna olhoú para ele chocada.
- oh, não, não vai ser até ao dia do juízo final, quando o
anjo gabriel tocar a sua trobpeta, a menos que ele a toque
mais depressa do que nós pensamos. claro que eu conheço a
bíblia e lá se diz que pode chegar mais depressa do que nós
pensamos, mas eu acho que não. isto é, eu aceito o que diz
a bíblia, mas não me parece que seja para breve e.
john pendleton riu subitamente muito alto. o enfermeiro que
entrava naquele momento ouviu a risada e preferiu retirar-
se com o ar de um cozinheiro assustado ao ver o perigo de
uma corrente de ar dar cabo de um bolo semicozido e que
fecha rapidamente a porta do forno.
- não estás um pouco confusa? - perguntou john pendleton a
pollyanna.
a menina riu.
- talvez, mas o que eu quero dizer é que as pernas partidas
não demoram mais tempo a curar do que os inválidos
permanentes como a mrs. snow. por isso, não vai ficar assim
até ao dia do juízo final e acho que devia estar contente
com isso.
- ah, claro que estou - interrompeu o homem incisivamente
regressando à sua amargura - e posso também estar contente
com o resto: o enfermeiro, o médico e aquela desajeitada
mulher na cozinha!
- claro que sim, pense só como seria mau se não os tivesse!
- o quê? - perguntou ele.
- o que eu digo é que seria muito pior se tivesse que estar
deitado e não os tivesse a eles!
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- como se não fosse isso que estivesse na base de tudo! -
retorquiu o homem. - É por isso que eu estou aqui deitado!
e está à espera que eu diga que estou contente porque uma
mulher maluca desarruma a casa toda e diz que está a
arrumar, e um homem que a ajuda e diz que é enfermeiro,
para já não falar do médico que arranjou isto tudo, a
contar que eu ainda por cima lhes vá pagar!
pollyanna fez uma expressão de simpatia.
- sim, eu sei. essa parte é muito desagradável, a questão
do dinheiro. durante este tempo não está a poupar, não é?
- o quê?
- a poupar, a comprar feijões e bolos de peixe. gosta de
feijões ou prefere peru?
- ouve lá menina, de que estás a falar? pollyanna sorriu
radiante.
- sobre o dinheiro que economiza para os países pobres. eu
descobri isso e foi, também, por isso que fiquei a saber
que mr. pendleton não era mau por dentro. a nancy contou-me.
o homem abriu a boca.
- a nancy contou-te que eu poupava dinheiro. e quem é essa
nancy?
- a nossa nancy. ela trabalha para a tia polly.
- tia polly? quem é a tia polly?
- É miss polly harrington. eu vivo com ela.
o homem fez um movimento brusco.
- miss polly harrington! vives com ela?
- sim, sou sobrinha dela. ela tomou conta de mim por causa
da minha mãe que morreu - prosseguiu pollyanna em voz mais
baixa. - ela era irmã da minha mãe e, depois de o pai ir
ter com ela e com os meus irmãos ao céu, não havia mais
ninguém que tomasse
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conta de mim para além das senhoras da caridade e por isso
ela ficou comigo.
o homem não respondeu. o rosto dele estava tão pálido que
pollyanna ficou assustada. levantou-se apreensiva.
- se calhar é melhor eu ir-me agora embora. espero que
goste da geleia. - o homem virou a cabeça de repente e
abriu os olhos. no fundo do seu olhar parecia existir uma
curiosa expressão de saudade em que pollyanna reparou,
maravilhando-a.
- então tu és a sobrinha de miss polly harrington - disse
ele docemente.
- sim, senhor. se calhar conhece-a. os lábios de john
pendleton formaram um estranho sorriso.
- ah sim, eu conheço-a. mas foi miss polly harrington que
mandou esta geleia para mim? - disse ele calmamente.
pollyanna mostrou-se desconsolada.
- não, senhor. não foi ela. ela disse que eu devia frisar
isso bem para não pensar que tinha sido ela a mandar. mas
eu.
- eu já sabia - condescendeu o homem, virando a cabeça para
o outro lado. pollyanna ainda mais desconsolada, retirou-se
do quarto.
no alpendre, encontrou o médico que estava à espera da
charrete. o enfermeiro também lá estava.
- então, miss pollyanna pode dar-me o prazer de a levar a
casa? - perguntou o médico sorrindo. - há pouco ia-me
embora, mas depois lembrei-me de que podia esperar por si.
- obrigada. ainda bem que esperou. fico tão contente por
andar de charrete - exclamou pollyanna
enquanto lhe estendia a mão para subir.
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- fica muito contente? - sorriu o médico acenando ao
enfermeiro que se encontrava nas escadas. tanto quanto sei
existem bastantes coisas que a fazem ficar contente, não é?
pollyanna riu alto.
- não sei, se calhar há - admitiu ela. - eu fico contente
com quase tudo o que seja “viver”. claro que não gosto
muito das outras coisas, como a costura, ler alto, etc. mas
isso não é viver.
- não? então o que é?
- a tia polly diz que é “aprender a viver” - disse
pollyanna com um sorriso tranquilo.
o médico sorriu agora com curiosidade.
- ela diz isso? bem me parecia que ela havia de dizer isso.
- sim - respondeu pollyanna. - mas não penso assim. acho
que não é preciso aprender a viver. eu, pelo menos, não
aprendi.
o médico respirou fundo.
- receio que alguns de nós tenham de aprender,
minha menina.
durante algum tempo ele manteve-se silencioso. pollyanna
olhando de soslaio sentiu por ele um bocadinho de pena.
parecia tão triste. gostava de poder fazer alguma coisa por
ele. foi talvez isso que a levou a dizer em voz tímida:
- dr. chilton, pensava que ser médico era a coisa que mais
contentamento trazia a uma pessoa.
o médico olhou para ela surpreendido.
- contentamento! quando vejo tanto sofrimento em todo o
lado!
- eu sei, mas o senhor ajuda as pessoas e com certeza que
fica contente por poder ajudar! por isso deve ser o mais
feliz de todos!
os olhos do médico ficaram marejados de lágrimas. a sua
vida era muito solitária. não tinha mulher nem lar para
além do consultório de duas divisões numa casa de hóspedes.
mas gostava muito da sua profissão. olhando para o cabelo
brilhante de pollyanna sentiu como se uma mão carinhosa
tivesse pousado na sua cabeça. ele sabia também que nunca
mais o cansaço de um longo dia de trabalho ou de uma noite
em branco seriam tão difíceis de suportar depois desse novo
conforto que lhe tinha chegado através dos olhos de
pollyanna.
- deus te abençoe menina - disse ele com voz trémula.
depois, com o sorriso rasgado que os seus pacientes
conheciam e de que tanto gostavam, acrescentou:
- afinal acho que o médico, tal como os doentes, estava a
precisar desse tónico!
pollyanna ficou um pouco confundida até que um esquilo que
atravessou a estrada a correr lhe desviou a atenção.
o médico deixou pollyanna à porta, dirigindo um sorriso a
nancy que estava a limpar o alpendre. depois afastou-se
rapidamente.
- dei um passeio óptimo com o médico. ele é mui tíssimo
simpático!
- É?
- sim. e eu disse-lhe que achava que a profissão
dele devia ser a que mais contentamento devia dar.
- o quê! ir ver gente doente e pessoas que não estão
doentes mas pensam que estão. não há nada pior
- argumentou nancy com cepticismo.
- sim foi isso também que ele disse, mas mesmo
assim existe uma maneira de ficar contente. adivinha!
- nancy franziu a testa pensativa. a menina estava a
conseguir que ela jogasse este jogo de “ficar contente”
com muito sucesso. além disso, estava a gostar muito de
estudar os problemas que a menina lhe apresentava.
- já sei, deve ser o contrário daquilo que disse a mrs.
snow.
- o contrário? - repetiu pollyanna confundida.
- sim, disse-lhe a ela que devia ficar contente por as
outras pessoas não serem como ela e não estarem
doentes.
- sim - respondeu pollyanna. - e então?
- pois, então o médico pode estar contente por não estar
doente como os outros, como os doentes que trata
- concluiu nancy triunfante.
pollyanna franziu a testa outra vez.
- sim - admitiu ela -, claro que essa é uma maneira, mas
não foi isso que eu disse e acho que não gosto muito dessa
maneira. É quase como se ele dissesse que ficava contente
por os outros estarem doentes. tu, às vezes, jogas o jogo
de uma maneira muito engraçada, nancy - disse ela enquanto
se dirigia para casa.
pollyanna encontrou a tia na sala.
- quem era o senhor que te trouxe? - perguntou
a senhora um pouco bruscamente.
- foi o dr. chilton! não o conhece?
- o dr. chilton! que fazia ele aqui?
- ele trouxe-me a casa. eu dei a geleia a mr. pendleton e.
miss polly levantou a cabeça bruscamente.
- mas ele não pensou que fui eu que a enviei?
- não, tia polly, eu disse-lhe que não tinha sido. miss
polly corou.
- tu disseste-lhe que eu não mandei a geleia? pollyanna
abriu muito os olhos com o tom admoestador da voz da sua
tia.
102
- mas foi isso que a tia polly disse!
a tia polly suspirou.
- o que eu disse foi que não era eu que a mandava e que
devias certificar-te de que ele não pensava que eu tinha
mandado! o que é muito diferente de lhe dizer directamente
que eu não mandava - e dito isto, afastou-se zangada.
- não percebo a diferença - disse pollyanna suspirando
enquanto se dirigia ao cabide para pendurar o chapéu.

16. um xaile e uma rosa vermelha


num dia chuvoso, cerca de uma semana depois da
visita de pollyanna a mr. pendleton, miss polly foi a
uma reunião do comité das senhoras de caridade. ao
regressar às três da tarde, trazia a face muito rosada
e o cabelo desmanchado pelo vento, notando-se vários
caracóis caídos por o cabelo se ter desprendido.
pollyanna nunca tinha visto a tia assim.
- oh, tia polly também os tem - gritava ela dançando
irrequieta em redor da tia, quando ela entrou na
sala.
- tenho o quê, menina desaustinada.
pollyanna continuava a dançar em volta dela.
- nunca tinha dado por isso! será que as pessoas
podem tê-los sem darem por isso? acha que eu também posso
vir a ter? - gritava ela puxando com os
dedos inquietos os seus cabelos por cima das orelhas.
- mas não devem ser negros, se vier a tê-los.
103
- que significa isto, pollyanna? - perguntou a tia polly
tirando o chapéu e procurando endireitar o cabelo.
- não, por favor tia polly! - pediu pollyanna em tom
apelativo. - não os endireite! É disso que eu estou a
falar, desses lindos caracóis negros. oh, tia polly, são
tão bonitos!
- disparate! e o que foi isso de ir às senhoras de
caridade, no outro dia, falar daquele disparate sobre o
rapazinho mendigo?
- mas não é disparate nenhum. não imagina como está bonita
com o cabelo assim! oh, tia polly, por favor, posso penteá-
la como penteei a mrs. snow e pôr-lhe uma flor? gostava
muito de a ver assim! havia até de ficar muito mais bonita
do que ela!
- pollyanna! - disse a tia polly muito duramente e ainda
mais porque as palavras de pollyanna lhe tinham despertado
um estranho regozijo. há quanto tempo ninguém se preocupava
em ver como lhe ficava o cabelo? e há quanto tempo ninguém
lhe dizia que gostava de a ver bonita? - pollyanna, não
respondeste. porque foste falar com as senhoras da caridade?
- eu não sabia que era disparatado até descobrir que elas
preferiam ver o nome delas em primeiro lugar numa lista do
que ajudar o jimmy. e assim está muito longe delas e pensei
que ele podia ser para elas o rapazinho da Índia delas, tal
como... tia polly, eu para si fui a sua menina da Índia?
tia polly deixa-me pentear o seu cabelo, não deixa?
a tia polly levou a mão à garganta, sentia de novo aquela
sensação estranha.
- mas, pollyanna, fiquei tão envergonhada quando as
senhoras me contaram esta tarde como tinhas ido ter com
elas! eu.
104
pollyanna começou a saltitar.
- ainda não me disse que eu não podia penteá-la
- gritou ela triunfalmente -, por isso acho que posso.
deixe-se estar onde está. vou buscar um pente.
- mas, pollyanna, pollyanna - protestou a tia polly
seguindo a menina e subindo as escadas atrás dela.
- ah, subiu também? ainda é melhor! já tenho o pente. agora
sente-se aqui. estou tão contente por me deixar penteá- la!
- mas pollyanna, eu.
miss polly não conseguiu concluir. para sua surpresa
encontrou-se sentada no banco diante do toucador com o
cabelo desmanchado sobre os ombros.
- mas que lindo cabelo que tem e é muito mais abundante do
que o de mrs. snow! mas claro, também precisa de ter mais
cabelo porque está de boa saúde e pode ir a sítios onde as
pessoas a podem ver. tenho a certeza de que as pessoas
ficarão contentes por o ver. e ficarão também surpreendidos
porque o tem escondido há tanto tempo. vou pô-la tão bonita
que todos gostarão muito de olhar para si!
- pollyanna! - disse a tia um tanto chocada. nem sei como
te deixo fazer estes disparates.
- porquê, tia polly? pensava que ficava contente por as
pessoas gostarem de olhar para si! não gosta de olhar para
as coisas bonitas? eu fico sempre muito mais contente
quando olho para as pessoas bonitas, porque
quando olho para as outras tenho muita pena delas. - mas.
- adoro pentear as pessoas! eu penteei muitas das
senhoras de caridade mas nenhuma delas tinha o cabelo
tão bonito como o seu. ah, tia polly, lembrei-me agora
de uma coisa! mas é segredo e não posso dizer. o seu
penteado está quase pronto. vou deixá-la só por um
105
momento mas tem de me prometer não mexer nele até
eu voltar. não se esqueça! - concluiu ela enquanto saía
do quarto.
miss polly não disse nada, mas pensou que devia
desfazer imediatamente esta palermice.
nesse momento, miss polly olhou para si própria
no espelho do toucador. aquilo que viu fê-la corar e
quanto mais olhava mais corava.
viu um rosto, que não era jovem, é verdade, mas
que se iluminava de excitação e surpresa. a face estava
bonita de rosada. os olhos cintilavam. o cabelo negro
e ainda húmido caía em ondas soltas sobre a fronte num
penteado que lhe ficava muito bem, com pequenos caracóis
aqui e ali.
estava tão absorvida e surpreendida com o que via
ao espelho que se esqueceu da sua determinação em
desmanchar o cabelo até que ouviu pollyanna entrar de
novo no quarto. antes de se poder mexer sentiu uma
coisa sobre os olhos e que era atada na nuca.
- pollyanna, o que estás a fazer?
pollyanna riu-se.
- É isso mesmo que eu não quero que saiba, tia
polly, e tinha medo que mexesse, por isso atei um lenço.
agora esteja quieta. só falta um minuto para poder ver.
- mas, pollyanna - disse miss polly endireitando-se sem ver
nada. - tenho que tirar isto, o que estás
a fazer? - protestou ela ao sentir uma coisa macia
sobre os ombros.
pollyanna riu ainda mais. com os dedos irrequietos, ela
cobria os ombros da tia com um lindo xaile amarelecido por
ter estado muitos anos guardado, mas que ainda cheirava a
água de colónia. pollyanna tinha encontrado o xaile uma
semana antes, quando nancy arrumava o sótão e tinha-se
lembrado de que poderia
106
muito bem pentear a tia tal como fizera com as senhoras de
caridade.
concluída a sua tarefa, pollyanna apreciou o seu trabalho
com um olhar aprovador, mas viu que ainda faltava uma
coisa. conduziu, então, a tia até ao jardim.
- pollyanna, o que fazes? para onde me levas? disse a tia
polly procurando vagamente resistir. - pollyanna não quero.
- vamos só até ao solário. É só um minuto! fica já pronta -
acrescentou pollyanna deitando a mão a uma linda rosa
vermelha e colocando-a no cabelo macio por cima da orelha
esquerda de miss polly. - já está!
- exultou ela desapertando o lenço e retirando-o. oh, tia
polly, agora tenho a certeza de que fica contente por eu a
ter penteado!
miss polly um pouco confusa olhou em redor e dando um
gritinho recolheu ao quarto a correr. pollyanna olhou na
mesma direcção que a tia e viu, através das janelas abertas
do solário, um cavalo e uma charrete que se aproximavam.
reconheceu imediatamente o homem que segurava nas rédeas.
satisfeitíssima inclinou-se.
- dr. chilton, dr. chilton! veio ver-me? estou
aqui.
- sim - sorriu o médico com um tom de voz um
pouco sério. - importas-te de descer?
no quarto, pollyanna encontrou a tia muito corada
e zangada tirando os alfinetes que seguravam o xaile.
- pollyanna, como te atreves - resmungou a tia. - imagina,
preparar-me desta maneira e depois deixar que me vejam!
- mas estava tão linda, tia polly...
- linda! - troçou a senhora pondo o xaile de
parte e remechendo no cabelo com os dedos trémulos.
108
- oh, tia polly, por favor deixe ficar o cabelo!
- deixar assim? como se eu pudesse!
- estava tão bonita - disse pollyanna quase soluçando
enquanto saía do quarto.
em baixo, pollyanna encontrou o médico que esperava na sua
charrete.
- eu receitei-te a um doente e ele pediu-me para eu te vir
buscar - anunciou o médico. - queres vir comigo?
- quer que eu vá à farmácia? - perguntou pollyanna na
dúvida. - eu costumava ir, quando as senhoras da caridade
me pediam.
o médico abanou a cabeça com um sorriso.
- não é bem isso. É mr. john pendleton. ele gostava muito
de te ver hoje, se puder ser. já parou de chover e eu levo-
te lá. vens? trago- te de volta antes das seis.
- gostava muito! - exclamou pollyanna. deixe-me ir pedir à
tia polly.
passados momentos voltou, com o chapéu na mão, mas com uma
expressão muito triste.
- a tua tia não te queria deixar ir? - perguntou o médico
enquanto se afastavam.
- não, ela queria era demais que eu me fosse
embora.
-queria que te fosses embora.
pollyanna suspirou outra vez.
- sim, acho que ela não me queria lá. ela disse:
sim, vai, vai depressa! era melhor que já tivesses ido”.
- não era a tua tia que, há pouco, estava à janela do
solário?
109
pollyanna respirou fundo.
- sim, foi esse o problema, creio eu. eu penteei-a muito
bem com um lindo xaile que encontrei lá em cima e pus-lhe
uma rosa no cabelo. estava muito linda. não acha que estava?
o médico não respondeu logo. quando falou, a voz era tão
baixa que pollyanna mal podia ouvir as palavras.
- sim pollyanna, também a achei linda.
- achou? estou tão contente! vou dizer-lhe isso. para
surpresa dela o médico exclamou logo:
- nunca! peço-te para nunca lhe dizeres isso.
- porquê, dr. chilton? porque não? pensava que ficava
contente.
- mas ela pode não ficar. - interrompeu o médico.
pollyanna reflectiu nisto por um momento.
- se calhar não. lembro-me agora que foi por o ter visto
que ela desatou a correr. e depois ela disse qualquer coisa
sobre o ter sido vista naqueles preparos.
- eu também acho isso - disse o médico suspirando.
- mas continuo a não perceber porquê - insistia pollyanna.
- ela estava tão bonita.
o médico não disse nada. nada mais disse até estarem quase
a chegar ao grande casarão de pedra onde john pendleton se
encontrava com uma perna partida.
17. como um livro
nesse dia john pendleton cumprimentou pollyanna
com um sorriso.
- a miss pollyanna deve ser uma menina muito
bondosa para me vir ver hoje outra vez.
- porquê, mr. pendleton? eu estou muito contente
por vir e não vejo porque não deveria estar.
- no outro dia eu fui muito mau para ti, quando
me trouxeste com tanto carinho a geleia e também no dia em
que me encontraste com a perna partida. e, a propósito,
acho que nunca te agradeci por isso. É por isso que penso
que sejas uma pessoa muito bondosa para me vir ver depois
de te ter tratado com tanta ingratidão!
pollyanna ficou comovida.
- mas eu fiquei muito contente por o ter encon trado, quero
dizer, não por ter partido a perna, claro!
- corrigiu ela apressadamente.
john pendleton sorriu.
- estou a perceber. a língua de vez em quando
escapa-te não é? no entanto, agradeço-te muito e acho que
és uma menina muito valente para teres feito o que
fizeste. agradeço-te também a geleia - acrescentou ele com
uma voz mais ligeira.
- gostou da geleia?
- perguntou pollyanna interessada.
111
- gostei muito. já não tens mais dessa geleia que
a tia polly não me enviou, pois não? - perguntou ele
com um sorriso estranho.
a menina fez um ar desconsolado.
- não, senhor.
ela hesitou mas depois prosseguiu com mais calor:
- por favor mr. pendleton, eu no outro dia não
quis ser desagradável quando disse que a tia polly não
lhe tinha enviado a geleia.
não houve resposta. john pendleton já não ria.
olhava em frente com os olhos de quem não estava a
ver o que estava diante dele. passado um tempo, deu
um grande suspiro e voltou-se para pollyanna. quando
voltou a falar a voz transmitia a habitual irritação.
- isso não interessa! não te mandei chamar para me
ouvires lamentar. ouve! na biblioteca, a sala grande onde
se encontra o telefone, que tu já conheces, está uma caixa
numa prateleira debaixo de um armário com portas de vidro,
no canto próximo da lareira. deverá lá estar se aquela
mulher
trapalhona não a tiver “arrumado” noutro sítio! podes
trazê-la. É pesada, mas penso que podes bem com ela.
- ah, eu sou muito forte - declarou pollyanna
alegremente enquanto se punha de pé. num instante
voltou com a caixa.
pollyanna passou então uma meia hora maravilhosa.
a caixa estava cheia de tesouros, curiosidades que john
pendleton tinha adquirido ao longo dos vários anos de
viagem e em relação a cada uma delas havia uma história
engraçada, fosse acerca de uma figura talhada da
china ou de um ídolo de jade da Índia.
foi depois de ouvir a história sobre o ídolo que pollyanna
murmurou tristemente:
- se calhar era melhor ficar com um menino da
Índia para educar, um que não conhecesse deus mais
112
do que este ídolo, do que ficar com jimmy bean, um menino
que sabe muito bem que deus está no céu. não posso deixar
de pensar que era muito melhor elas ficarem com o jimmy
bean, juntamente com os meninos da Índia.
john pendleton parecia não ouvir. os seus olhos estavam de
novo fixos sem ver nada. mas logo se recompôs e pegou
noutra curiosidade para falar.
a visita estava a ser muito agradável, mas antes que
pollyanna tivesse percebido, já estavam a falar sobre
outras coisas para além das curiosidades existentes naquela
caixa. estavam a falar dela própria, de nancy, da tia polly
e da sua vida quotidiana. conversaram também sobre a vida
de pollyanna no longínquo oeste, quando estava com o pai.
quando a menina estava quase a ir-se embora, o homem disse
numa voz que pollyanna nunca antes tinha ouvido:
- minha menina, gostava muito que tu me viesses ver mais
vezes. vens? eu estou muito só e preciso de ti. e existe
uma outra razão que te vou dizer. primeiro, depois de eu
ter sabido quem tu eras, no outro dia, não te queria ver
mais. tu recordaste-me uma coisa que eu há muitos anos
tenho tentado esquecer. assim, disse a mim próprio que não
te queria voltar a ver e sempre que o médico perguntava se
eu não queria que ele te trouxesse outra vez, eu respondia
que não. mas, passado um tempo, descobri que desejava tanto
ver-te que o facto de não te ver me fazia ainda recordar
mais
aquilo que eu queria esquecer. assim gostava que viesses
mais vezes. vens, minha menina?
- sim, mr. pendleton - disse pollyanna com os olhos
radiantes de simpatia pela tristeza do homem que estava
deitado diante dela. - eu gosto muito de cá vir!
113
- muito obrigado - disse john pendleton amavelmente.
depois do jantar, nessa noite, pollyanna sentada nas
traseiras contou a nancy tudo acerca da caixa maravilhosa
de mr. john pendleton e das curiosidades que ela continha.
- imagine só, mostrou-lhe essas coisas todas e contou-lhe
tantas histórias, ele que costuma ser tão antipático e que
nunca fala com ninguém!
- mas ele não é antipático, nancy, só por fora é que é. não
percebo porque é que toda a gente pensa que ele é mau. se o
conhecessem não pensavam isso. mas até a tia polly não
gosta muito dele. ela não queria enviar-lhe geleia e tinha
medo que ele pensasse que tinha sido ela a enviar!
- devia ter razões para isso. o que me deixa espantada é
como ele aceitou a miss pollyanna, isto sem ofensa para si,
é claro, mas ele não é o género de homem que costume
conversar com crianças.
pollyanna sorriu contente.
- ele aceitou-me, mas acho que nem sempre é assim. hoje ele
confessou-me que da outra vez não me queria ver mais porque
eu lhe lembrava uma coisa que ele queria esquecer. mas
depois...
- o quê? - interrompeu nancy excitada. - ele disse-lhe que
a menina o fazia recordar uma coisa que queria esquecer?
- sim. mas depois.
- e o que era isso? - insistiu nancy ansiosa.
- ele não me contou. só disse que era uma coisa.
- que mistério! deve ter sido por isso que ele a aceitou.
oh, miss pollyanna! isso é como num livro. já li muitos.
todos eles tinham mistérios e coisas como essa. cruzes
canhoto! imagine só ter um
livro vivo debaixo do seu nariz e não saber o que é! conte-
me tudo. deve haver uma amada! não admira que ele a tenha
aceite a si, não admira nada!
- mas não foi isso. ele não sabia quem eu era até ao dia em
que eu lhe levei a geleia de mão-de-vaca e tive que lhe
explicar que não tinha sido a tia polly que a tinha enviado
e.
nancy pôs-se de pé de repente e bateu as palmas.
- miss pollyanna, já sei, já sei! - exultou ela radiante. -
diga-me, responda-me com franqueza - pediu ela excitada. -
foi depois de ele descobrir que a menina era sobrinha de
miss polly que ele disse que não a queria ver mais?
- sim, eu contei-lhe aquilo da última vez que o vi e ele
disse- me isso hoje.
- bem me parecia - disse nancy triunfante. - e miss polly
disse que por ela não mandava a geleia, não foi?
- sim.
- e a menina disse-lhe isso?
- sim, eu.
- e ele começou a agir de modo esquisito e ficou comovido
depois de descobrir que a menina era sobrinha dela, não foi?
- sim, ele começou a comportar- se de modo um bocado
estranho sobre a geleia - admitiu pollyanna
pensativa.
nancy deu um grande suspiro.
- então tenho a certeza de que já percebi! agora
ouça isto: mr. john pendleton era o noivo de miss polly
harrington - disse ela solenemente enquanto olhava
receosamente por cima do ombro.
115
- não pode ser nancy! ela não gosta dele - objectou
pollyanna.
nancy olhou para ela de modo trocista.
- claro que não! a questão é essa!
pollyanna continuava a olhar incrédula e nancy, depois de
respirar fundo outra vez, preparou-se para lhe contar a
história.
- É assim. antes de a menina ter vindo, mr. tom contou-me
que miss polly tinha tido em tempos um namorado. eu não
acreditei. era impossível, ela com um namorado! mas mr. tom
disse-me que sim e que ele vivia nesta cidade. e agora já
sei, claro que tem que ser mr. john pendleton. não tem ele
um mistério na sua vida? não se fecha naquele casarão
sozinho sem falar com ninguém? não agiu ele de modo
estranho quando descobriu que a menina era sobrinha de miss
polly? e não confessou que a menina lhe lembrava algo que
queria esquecer? É claro que era por causa de miss polly!
além disso, o facto de ela dizer que nunca lhe mandaria
geleia. está-se mesmo a ver, não acha miss pollyanna?
- oh! - exclamou pollyanna perfeitamente surpreendida. -
mas nancy, se eles se amassem haviam de estar algum tempo
juntos. mas têm estado os dois sós durante todos estes
anos. eles haviam de gostar de estar juntos!
nancy olhou desdenhosamente.
- acho que a menina não sabe muito sobre namorados. ainda
não tem idade suficiente. mas se há alguém no mundo que
nunca faria uso do seu “jogo do contentamento” é um par de
namorados zangados. É isso que eles são. não é ele
resmungão que se farta, normalmente? e não é ela.
nancy parou bruscamente lembrando-se a tempo com quem e
sobre quem estava a falar.
116
- seria uma bela coisa da sua parte se conseguisse juntá-
los de novo. mas seria um espanto: miss polly.
não deve haver grandes probabilidades! e ele.
pollyanna não respondeu, mas quando entrou em casa
pouco tempo depois, trazia uma expressão muito pensativa.

18. os prismas
durante aquele mês quente de agosto, pollyanna
foi frequentemente ao casarão de pendleton hill. no
entanto, achava que as suas visitas não estavam a ter
grande sucesso. não é que o homem desse mostras de
não a querer ali. antes pelo contrário, ele até a chamava
muitas vezes. mas quando ela lá estava ele não
parecia ficar muito mais contente com a sua presença.
pelo menos, era isso que parecia a pollyanna. ele
conversava com ela, é verdade, e mostrava-lhe
muitas coisas bonitas e interessantes: livros, gravuras
e outros objectos curiosos. mas continuava a lamentar- se
sobre o seu desamparo e continuava a protestar con tra as
regras e as arrumações impostas pelos indesejados
empregados. porém, parecia realmente gostar de
ouvir pollyanna falar, e assim ela falava muito. pollyanna
gostava muito de falar mas nunca sabia se, no
momento seguinte não o ia encontrar com aquele olhar
vidrado que fazia dó. e nunca sabia bem se tinham sempre
aquela melancolia.
117
quanto a ensiná-lo a jogar o jogo do contentamento,
pollyanna nunca viu uma oportunidade, nem mesmo quando
pensava que ele lhe daria atenção. por duas vezes, tentou
ensinar-lho mas não conseguiu passar do princípio, das
coisas que o pai dela costumava dizer. das duas vezes, john
pendleton mudou o rumo da conversa.
pollyanna não duvidava agora que john pendleton tinha sido
namorado da sua tia polly e, com todas as forças do seu
coração leal e terno, desejava poder um dia trazer a
felicidade àquelas vidas solitárias.
como havia de conseguir não sabia. conversou com mr.
pendleton sobre a tia e ele escutava, por vezes
educadamente, por vezes irritado; mas frequentemente com um
sorriso estranho nos lábios que eram habitualmente sisudos.
ela falava à tia sobre mr. pendleton ou melhor, tentava
falar acerca dele. no entanto, normalmente, miss polly não
a escutava muito. encontrava quase sempre outra coisa para
conversar. no entanto, ela também fazia isso frequentemente
quando pollyanna falava de outras pessoas, do dr. chilton
por exemplo. pollyanna atribuía isto ao facto do dr.
chilton a ter visto no solário com a rosa no cabelo e o
xaile sobre os ombros. com efeito, a tia parecia
particularmente amargurada contra o dr. chilton, como
pollyanna veio a descobrir um dia em que ficou de cama com
uma grande gripe.
- se não estiveres melhor à noite mando vir o médico -
disse a tia polly.
- manda? então farei para ficar pior pois gostava muito que
o dr. chilton viesse ver-me!
ficou surpreendida com a expressão do rosto da tia.
- não será o dr. chilton, pollyanna - disse miss polly
gravemente. - o dr. chilton não é o nosso médico de
família. se estiveres pior, mando vir o dr. warren.
118
pollyanna não piorou e por isso não foi necessário chamar o
dr. warren.
nessa noite, ela disse à tia:
- gosto muito do dr. warren, mas prefiro o dr. chilton e
acho que ele ficaria magoado se não o chamasse. afinal ele
não tem a culpa de a ter visto quando a penteei no outro
dia, tia polly - concluiu ela tristonha.
- basta, pollyanna! não quero discutir o dr. chil ton -
respondeu miss polly rispidamente.
por momentos, pollyanna olhou para ela com o olhar triste,
depois deu um grande suspiro.
- gosto muito de a ver com a face assim corada, tia polly
mas gostava também muito de lhe arranjar o cabelo se.
porque é que não deixa, tia polly? - mas a tia já se tinha
ido embora.
no fim do mês de agosto, quando pollyanna visi tava john
pendleton, de manhã cedo, descobriu un reflexo do arco-íris
na almofada dele e ficou deliciada.
- olhe mr. pendleton é um arco-íris bébé, un
arco-íris a sério. veio visitá-lo! - exclamou ela batendo
as palmas. -mas que bonito que é! como terá entrado?
o homem riu com pouca vontade. john pendleton não estava
muito bem disposto naquela manhã.
- deve ter entrado através do vidro do termómetro que se
encontra na janela - disse com ar cansado
- mas é tão bonito mr. pendleton! e é o sol que
faz isso? se o termómetro fosse meu, tinha-o pendurado ao
sol o dia inteiro.
- o termómetro havia de servir para grande coisa!
- disse o homem rindo. - e como achas que
119
conseguirias saber a temperatura se o termómetro estivesse
"
pendurado ao sol todo o dia?
- não me importava com isso - respondeu pollyanna fascinada
com as lindas cores do arco-íris sobre
a almofada. - como se as pessoas se importassem se
pudessem viver o tempo todo num arco-íris!
o homem riu. observava com curiosidade o rosto
embevecido de pollyanna. de súbito ocorreu-lhe um
novo pensamento e tocou a campainha.
- nora - chamou ele, quando a empregada já de
idade apareceu à porta -, traga-me um desses candelabros
que estão em cima da lareira na sala da frente.
- sim, senhor - murmurou a mulher um pouco
surpreendida.
em breve estava de volta. um tinir musical invadiu o quarto
enquanto ela se dirigia para a cama. vinha
dos prismas suspensos no antigo candelabro que ela
segurava.
- obrigado. pode pousá-lo. agora arranje um fio
e prenda-o ao varão dos reposteiros, naquela janela.
abra os cortinados e passe o fio de um lado ao outro
da janela. É tudo, obrigado - disse ele depois de ela
ter executado as suas orientações.
quando a empregada deixou o quarto, ele olhou sorridente
para pollyanna que estava admirada.
- agora, traz-me o candelabro, por favor, pollyanna.
segurando-o com ambas as mãos, ela trouxe-o e ele
começou a retirar os prismas um a um, até que na cama
se viam uma fileira de doze.
- agora minha querida, e se tu os pendurasses
naquele fio da janela? se queres de facto viver num
arco-íris, havemos de fazer um arco-íris onde possas
viver!
120
pollyanna não tinha ainda pendurado três dos prismas na
janela banhada pelo sol e já via uma amostra do que ia
acontecer. estava tão entusiasmada que mal controlava os
dedos trémulos, tendo mesmo dificuldade em pendurar os
restantes. quando a tarefa ficou concluída, deu um passo
atrás e gritou encantada.
aquele quarto sumptuoso e sombrio tinha-se tornado uma
terra de fadas. por todo o lado se viam reflexos dançantes
de cores vermelha, verde, violeta, laranja, amarela e azul.
as paredes, o chão, a mobília, até a cama, eram iluminados
com aqueles bonitos pedacinhos de cor.
- oh, que lindo! até parece que o próprio sol está a tentar
jogar o jogo, não acha? - disse ela esquecendo-se que mr.
pendleton não podia saber do que é que ela estava a falar.
- quem me dera ter muitas coisinhas destas! gostava imenso
de as poder dar à tia polly, a mrs. snow e muitas outras
pessoas. haviam de ficar muito contentes! se vivesse num
arco-íris como este, até a tia polly havia de ficar tão
contente que deixava de conseguir evitar bater com as
portas. não acha?
mr. pendleton riu.
- bom, daquilo que me lembro da tua tia, acho que seria
preciso mais do que alguns prismas ao sol para que a
alegria a fizesse bater com as portas. mas diz lá o que
querias dizer.
pollyanna hesitou. depois respirou fundo e disse:
- ah, já me esquecia. não sabe acerca do jogo.
- e porque é que não me contas? e desta vez pollyanna
conseguiu contar-lhe. contou-lhe tudo desde o princípio,
desde as muletas que vieram em vez da boneca. e enquanto
lhe contava isto não olhava para ele. os olhos extasiados
continuavam fixos nas cores dos prismas que baloiçavam ao
sol.
121
- e é tudo. agora já sabe por que razão eu disse que o sol
estava a tentar jogar esse jogo.
durante alguns segundos, fez-se silêncio. depois ouviu-se
uma voz baixa vinda da cama:
- talvez, mas eu acho que o prisma mais bonito de todos, és
tu, pollyanna.
- mas eu não faço reflectir essas lindas cores quando o sol
bate em mim, mr. pendleton!
- não fazes? - sorriu o homem. e pollyanna, observando o
rosto dele, viu admirada que tinha os olhos marejados de
lágrimas.
- não - disse ela. passado um minuto acrescentou
cabisbaixa: - receio que o sol em mim só me faça sardas. a
tia polly diz que é o sol que as faz!
o homem riu um pouco. pollyanna olhou outra vez para ele,
pareceu-lhe que o riso tinha soado quase como um soluço.

19. uma certa surpresa


pollyanna entrou para a escola em setembro. os exames
preliminares revelaram que ela estava bastante avançada
para a sua idade e em breve encontrou-se numa classe de
meninas e meninos como ela.
em certos aspectos a escola foi uma surpresa para pollyanna
e também em muitos aspectos pollyanna foi uma surpresa para
a escola. em breve, o relacionamento tornou-se o melhor.
ela acabou por confessar à tia que, afinal, ir à escola era
também viver, embora antes duvidasse disso.
122
apesar do entusiasmo pelas suas novas ocupações,
pollyanna não esqueceu os velhos amigos. ela agora
não lhes podia dedicar tanto tempo, mas estava com
eles sempre que lhe era possível. de todos eles, john
pendleton era o mais insatisfeito.
num sábado à tarde ele falou-lhe nisso.
- olha pollyanna, não gostavas de vir viver
comigo? - perguntou ele um pouco impacientemente.
- agora, quase não te vejo.
pollyanna riu. achava mr. pendleton muito engraçado.
- pensava que não gostava de ter gente perto disse ela.
ele fez uma careta.
- mas isso era antes de me teres ensinado aquele
teu jogo. agora estou contente por ter partido uma
perna! já não me importo nada, em breve estarei bom
e depois vamos ver quem anda mais - concluiu ele
agarrando numa das muletas e sacudindo-a divertidamente na
direcção da menina. durante todo o dia ficaram sentados na
grande biblioteca.
- mas o senhor não está verdadeiramente contente
com essas coisas todas, apenas diz que está. o senhor
não está a jogar o jogo como deve ser!
o homem ficou muito sério.
- É por isso que eu quero que tu me venhas ajudar a jogá-
lo. queres vir?
pollyanna virou-se surpreendida.
- mr. pendleton, não está certamente a falar a
sério, pois não?
- estou sim. quero que tu venhas. vens?
pollyanna olhou desconsolada.
- não posso, mr. pendleton, sabe que eu não
posso. pertenço à tia polly!
123
uma expressão esquisita que pollyanna não percebeu bem
atravessou- lhe o rosto. ergueu a cabeça irado.
- não lhe pertences nada. talvez ela te deixasse vir viver
comigo - concluiu ele com mais delicadeza.
- virias se ela te deixasse?
pollyanna ficou pensativa.
- mas a tia polly tem sido tão boa para mim; tomou conta de
mim quando eu não tinha mais ninguém senão as pessoas da
caridade e.
de novo uma espécie de espasmo atravessou o rosto do homem;
mas, desta vez, quando ele falou, a voz era baixa e triste.
- pollyanna, há muitos anos, eu amei muito uma pessoa.
tinha esperanças de a trazer um dia para esta casa e
imaginava como seríamos felizes juntos, no nosso lar, para
toda a vida.
- sim - respondeu pollyanna, com os olhos brilhando de
simpatia.
- mas não a consegui trazer para cá. não interessa porquê,
mas não consegui. e, desde então, este grande amontoado de
pedras tem sido uma casa mas nunca um lar. era preciso as
mãos e a presença de uma mulher ou a presença de uma
criança para fazer dela um lar, pollyanna, e eu não tenho
nenhuma delas. queres vir para cá, minha querida?
pollyanna pôs-se de pé. o seu rosto iluminou-se.
- mr. pendleton, quer dizer que gostava de ter tido a mão e
o coração dessa mulher durante todo este tempo?
- sim, pollyanna.
- estou tão contente! então é verdade! então pode ficar com
as duas e há-de ficar tudo muito bem.
- ficar com as duas? - repetiu o homem espantado.
124
uma ligeira dúvida atravessou a expressão de pollyanna.
- sim claro, a tia polly ainda não está convencida, mas eu
estou. acho que ela ficará se falar com ela como falou
comigo e então podíamos vir as duas.
os olhos do homem deixaram transparecer uma expressão de
horror.
- a tia polly vir para aqui!
os olhos de pollyanna abriram-se um pouco.
- preferia ir antes para lá? - perguntou ela. claro que a
casa não é tão bonita, mas é mais perto...
- pollyanna, de que estás tu a falar? - perguntou o homem
muito calmamente agora.
- de onde iremos viver - respondeu pollyanna com natural
surpresa. - pensei que queria que fosse aqui ao princípio.
disse que era aqui que tinha querido ter o coração e a mão
da tia polly durante todos estes anos para fazer um lar e.
o homem abafou um grito na garganta. levantou a mão e
começou a falar, mas logo a seguir deixou-a cair.
- É o médico, senhor - disse a criada aparecendo
à porta.
pollyanna levantou-se logo.
john pendleton virou-se para ela inquieto.
- pollyanna, por amor de deus não contes nada
do que eu te pedi - pediu ele em voz baixa.
pollyanna fez um sorriso rasgado.
- claro que não! como se eu não soubesse que
havia de preferir ser o senhor a dizer!
john pendleton deixou-se cair abatido na cadeira.
- então, o que se passa? - perguntou o médico
um minuto depois, ao apalpar o pulso do seu doente
que batia aceleradamente.
125
um sorriso estranho dançava nos lábios de john pendleton.
- foi uma dose excessiva do seu tónico, creio eu
- disse, rindo, ao reparar que o médico seguia a figurinha
de pollyanna que se afastava.

20. o mais surpreendente


aos domingos de manhã, pollyanna costumava ir à igreja e à
catequese. À tarde, ia passear com nancy. depois da sua
visita a mr. john pendleton nessa tarde, ela tinha planeado
um passeio desses, mas no caminho para casa depois da
catequese, o dr. chilton passou por ela na sua charrete e
parou.
- posso dar-te boleia até casa, pollyanna? preciso de falar
contigo. ia justamente a tua casa agora. mr. pendleton pede
encarecidamente que o vás ver esta tarde. diz que é muito
importante.
pollyanna respondeu logo que sim, toda contente.
- sim, eu sei que é muito importante. eu vou. o médico
olhou para ela surpreendido.
- mas eu não sei bem se te deva deixar ir. hoje ainda
pareces mais perturbadora do que ontem.
pollyanna riu.
- ah, não foi por minha causa, foi por causa da tia polly.
o médico virou-se de repente.
- da tua tia polly?
pollyanna deu um pequeno salto no banco.
126
- sim, é muito engraçado, tal como numa história. eu vou
contar-lhe. ele disse para eu não lhe contar nada, mas não
se deve importar que o senhor saiba. ele não devia querer é
que ela soubesse.
- ela?
- sim, a tia polly. É claro que ele preferia ser ele
próprio a dizer-lhe em vez de ser eu. os namorados são
assim.
- os namorados? - ao dizer esta palavra o cavalo parou
bruscamente como se a mão que segurava as rédeas as tivesse
puxado com força.
- sim, a história é essa. eu não sabia, até que nancy me
contou. ela disse que a tia polly tinha tido um namorado
aqui há anos mas que eles se zangaram. primeiro, ela não
sabia quem era, mas acabámos por descobrir. É mr. pendleton.
o médico descontraiu-se um pouco. a mão que segurava as
rédeas caiu abandonada no colo.
- oh! não sabia - disse ele calmamente. pollyanna
continuou. entretanto já estavam próximos do solar
harrington.
- sim, eu estou tão contente. mr. pendleton pediu-me para
ir viver com ele, mas claro que não posso deixar a tia
polly assim, depois de ela ter sido tão boa para mim.
depois contou- me tudo sobre a mulher que sempre desejou e
descobriu que a queria agora. e eu fiquei tão contente!
porque, é claro que se ele quiser fazer agora as pazes
ficará tudo bem e a tia polly e eu iremos as duas viver
para lá ou então virá ele viver
connosco. claro que a tia polly ainda não sabe e ainda
não combinámos bem as coisas, portanto, penso que é por
causa disso que ele quer ver-me esta tarde.
o médico estava sentado muito direito. no rosto desenhava-
se um sorriso estranho.
127
- sim, posso bem imaginar que é isso que mr. john pendleton
quer - disse ele quando fazia o cavalo parar diante da
entrada.
- a tia polly está ali à janela - gritou pollyanna. mas um
segundo depois acrescentou: - afinal não está, mas pareceu-
me tê-la visto!
- não, ela já não está lá - disse o médico. o sorriso
tinha-lhe desaparecido dos lábios.
pollyanna encontrou um john pendleton nervoso à espera
dela, naquela tarde.
- pollyanna - começou ele de imediato - durante toda a
noite procurei decifrar tudo aquilo que me disseste ontem
sobre eu querer a tia polly durante estes anos todos. que
querias tu dizer com isso?
- porque em tempos foram namorados e eu estava tão contente
por o senhor ainda sentir o mesmo.
- namorados! a tua tia e eu?
perante a surpresa manifesta na voz do homem, pollyanna
abriu muito os olhos.
- foi isso que nancy disse! o homem deu uma risada.
- ah sim! receio ter de te dizer que essa nancy não sabe
nada de nada.
- então não namoraram? - perguntou pollyanna aflita.
- nunca!
- então as coisas não são todas como num livro? não houve
resposta. o homem tinha o olhar fixo na janela.
- mas que pena! estava tudo a correr tão bem - disse
pollyanna quase a soluçar. - eu estava tão contente por vir
para cá com a tia polly.
- e agora já não queres vir? - perguntou o homem sem virar
a cabeça.
128
- claro que não! eu pertenço à tia polly. o homem virou-se
quase furioso.
- antes de tu lhe pertenceres, pollyanna, tu pertencias à
tua mãe. e foi a tua mãe que eu há muitos anos quis.
- a minha mãe?
- sim. não tencionava dizer-te, mas talvez seja melhor
assim.
john pendleton tinha ficado muito pálido. falava
com manifesta dificuldade. pollyanna, assustada, com os
olhos e a boca muito abertos, olhava para ele fixamente.
- eu amava muito a tua mãe, mas ela não me amava, e algum
tempo depois, partiu com o teu pai. só então percebi quanto
gostava dela. parecia que o mundo inteiro se desfazia entre
os meus dedos e.... não interessa! durante muitos anos fui
um velho antipático e rabujento, embora ainda nem tenha
feito sessenta anos. até que um dia, tal como um dos
prismas de que gostas tanto, tu apareceste a dançar na
minha vida, e com a tua alegria desfizeste o meu velho
mundo em cinzas. passado um tempo descobri quem tu eras e
pensei que nunca mais te queria ver. não queria que me
lembrasses a tua mãe. mas... já sabes o resto. estava
sempre a desejar que me viesses visitar, e agora quero-te
ter sempre comigo. pollyanna, vens viver comigo?
- mas, mr. pendleton, há a tia polly.
os olhos de pollyanna ficaram marejados de lágrimas. o
homem fez um gesto impaciente.
- então e eu? como queres que eu possa ficar contente com
as coisas sem ti? foi só depois de tu chegares que comecei
a ficar meio contente por viver. mas se te tivesse comigo,
ficaria muito contente com tudo e procuraria também fazer-
te contente a ti. não haveria nada que tu desejasses que eu
não satisfizesse logo. todo o meu dinheiro, até ao último
cêntimo seria para te tornar feliz.
pollyanna olhou escandalizada.
- mr. pendleton, como se eu o pudesse deixar gastar comigo
todo o dinheiro que poupou para os países pobres!
o homem ficou vermelho. ia começar a falar, mas pollyanna
continuou.
- além disso, uma pessoa com tanto dinheiro como o senhor
não precisa de alguém que o faça ficar contente com as
coisas. dando coisas às outras pessoas pode fazê-las
felizes, de tal maneira que o senhor mesmo não pode deixar
de ficar feliz! pense só nesses prismas que deu a mrs. snow
e a mim e na moeda de ouro que deu a nancy no dia dos anos
e.
- sim, mas isso não interessa - interrompeu o homem. ele
estava agora muito corado, e não admira, porque não era por
dar coisas aos outros que john pendleton tinha sido
conhecido no passado. - isso é tudo um disparate. eu não
dei quase nada a ninguém e aquilo que dei foi por tua
causa. foste tu que deste essas coisas e não eu! e isso só
vem demonstrar ainda mais como eu preciso de ti - disse ele
procurando adoçar o tom da sua voz. - se eu alguma vez
jogar o “jogo do contentamento” terás de ser tu a jogá-lo
comigo.
a menina franziu a testa.
- a tia polly tem sido tão boa para mim. começou ela, mas
foi interrompida bruscamente por ele.
aquela velha irritação tinha voltado a transparecer-lhe no
rosto. a impaciência de quem não suportava qualquer
contrariedade tinha feito parte da natureza de john
pendleton há demasiado tempo para que a conseguisse conter.
130
- claro que ela tem sido boa para ti! mas não te quer nem
metade de como eu te quero - contra-argumentou ele.
- mas mr. pendleton, ela está tão contente por
ter...
- contente! - interrompeu o homem perdendo completamente a
paciência. - tenho a certeza que miss polly não sabe ficar
contente com nada! ela faz apenas o seu dever. É uma mulher
muito cumpridora dos seus deveres e eu já tive a
experiência do seu “dever”. reconheço que nos últimos
quinze ou vinte anos não fomos propriamente grandes amigos,
mas eu conheço-a. todos a conhecem e ela não é do género de
ficar “contente” com nada. ela não é capaz. quanto a vires
viver comigo, pergunta-lhe e verás se ela não te deixa. e,
minha querida menina, eu quero-te tanto! - concluiu ele
quase a chorar.
pollyanna levantou-se com um longo suspiro.
- está bem, vou perguntar- lhe - disse pensativamente. -
não é que eu não gostasse de vir viver consigo, mr.
pendleton mas não concluiu a frase. houve um momento de
silêncio e depois acrescentou:
- de qualquer modo estou satisfeita por não lhe ter dito
ontem, porque eu pensava que ela também havia de querer.
john pendleton fez um sorriso forçado.
- sim, de facto, pollyanna, acho que foi melhor não lhe
teres dito isso ontem.
- não não disse, só falei nisso ao médico e claro que a ele
não fazia mal.
- - ao médico! - gritou john pendleton, virando-se
repentinamente. - mas não foi ao dr. chilton?
- sim, quando ele me veio dizer que o senhor queria falar
comigo hoje.
131
- não me digas uma coisa dessas. - murmurou o homem
deixando-se cair na cadeira. depois endireitou-se
manifestando um interesse súbito: - e o que disse o dr.
chilton? - perguntou ele.
pollyanna franziu a testa pensativamente.
- não me lembro bem. não disse grande coisa. ah, ele disse
que bem podia imaginar que o senhor me queria ver.
- ai ele disse isso! - respondeu john pendleton. e
pollyanna ficou a pensar porque teria ele dado aquela
súbita e estranha gargalhada.

21. a resposta a uma pergunta


quando pollyanna deixou a casa de john pendleton, o céu
estava a escurecer rapidamente, parecendo aproximar-se uma
grande trovoada. a meio caminho de casa encontrou nancy com
um chapéu de chuva. as nuvens tinham, entretanto, mudado e
parecia que o aguaceiro, afinal, não estava para breve.
- parece que afinal a tempestade se dirige para o norte -
disse nancy, olhando o céu criticamente. bem me parecia,
mas miss polly quis que eu viesse ter consigo com o chapéu
de chuva. ela estava preocupada consigo.
- estava? - murmurou pollyanna pensativa.
nancy fungou.
- parece que não ouviu o que eu disse - observou ela com ar
repreensivo. - eu disse que a sua tia estava preocupada
consigo!
132
- ah - exclamou pollyanna, lembrando-se de repente da
pergunta que tinha estado quase a fazer à tia. - mas que
pena, eu não queria que ela se preocupasse.
- pois eu estou muito contente - respondeu nancy
inesperadamente. - muito contente!
pollyanna olhou para ela surpreendida.
- estás contente por a tia polly estar preocupada comigo!
nancy, isso não é maneira de jogar o jogo! ficar contente
com coisas dessas! - objectou ela.
- agora não estou a fazer o jogo - respondeu nancy. - a
menina parece não compreender o que significa a miss polly
preocupar-se consigo!
- sim, significa ficar preocupada e ficar preocu pada é
horrível. que mais pode significar?
nancy abanou a cabeça.
- vou dizer-lhe o que significa. significa que ela está
finalmente a ficar humana como toda a gente e que a sua
única preocupação já não é só cumprir o seu dever.
- mas porquê, nancy? - perguntou escandalizada pollyanna. -
a tia polly cumpre sempre o seu dever. ela é uma mulher
muito cumpridora! - pollyanna repetia inconscientemente as
palavras de john pendleton pronunciadas há meia hora.
nancy deu um risinho.
- lá isso é verdade, ela sempre foi muito cumpridora. mas
agora é mais do que isso, desde que a menina chegou.
a expressão de pollyanna alterou-se, manifestando
preocupação.
- era isso que te ia perguntar, nancy. achas que , a tia
polly gosta de me ter com ela? achas que ela se
importava se eu deixasse de viver com ela?
133
nancy olhou de relance para o rosto atento da menina. há
muito que receava aquela pergunta. tinha pensado como
deveria responder honestamente sem magoar pollyanna. mas,
agora que as suas suspeitas se tinham confirmado, depois da
tia polly a ter mandado com o chapéu de chuva, nancy
recebeu a pergunta de braços abertos. estava certa de que
podia tranquilizar o coração sequioso de carinho daquela
menina.
- se ela gosta de a ter aqui? ela havia de sentir muito a
sua falta se a perdesse agora - disse nancy indignadamente.
- então não me mandou ela a correr com o chapéu de chuva
logo que viu umas nuvenzinhas? não me mandou mudar as suas
coisas todas para o andar de baixo para o bonito quarto que
a menina queria? quando eu me lembro que ao princípio
detestava tê-la cá em casa.
nancy começou a tossir e conteve-se mesmo a tempo.
- e não é só isso. há outras pequenas coisas que mostram
que a menina a amoleceu, como o gato, o cão, a maneira como
ela fala comigo e muitas outras coisas. É impossível dizer
como ela havia de sentir a sua falta se cá não estivesse -
concluiu nancy com entusiasmo, como que a ocultar uma ideia
perigosa que tinha admitido antes. mas, mesmo assim, ela
não estava bem preparada para a alegria súbita que iluminou
o rosto de pollyanna.
- oh, nancy, estou tão contente! não imaginas como estou
contente por a tia polly me querer!
“era impossível eu deixá-la agora! “ pensou pollyanna
quando subia as escadas para o quarto, pouco depois. “eu
sempre soube que queria viver com a tia polly, mas não
sabia até que ponto queria que a tia polly quisesse viver
comigo “.
134
não seria fácil comunicar a john pendleton a sua decisão.
gostava muito de john pendleton e tinha muita pena dele
porque ele parecia ter pena de si próprio. tinha também
pena da vida solitária que o tinha tornado tão infeliz e
magoava-a o facto de saber que tinha sido por causa da mãe
que ele tinha passado aqueles anos todos angustiado.
imaginou como seria aquele grande casarão cinzento quando o
seu dono estivesse restabelecido, com os salões silenciosos
e tudo desarrumado. doía-lhe o coração por causa da solidão
dele. bem gostava que ele encontrasse alguém. naquele
momento deu um salto, pondo-se de pé e dando um gritinho de
alegria com a ideia que lhe tinha vindo à cabeça.
logo que pôde correu a casa de john pendleton e em breve
encontrava-se na grande biblioteca, sentada junto dele e do
cãozinho fiel deitado a seus pés.
- então, pollyanna, vais jogar “o jogo do conten tamento”
comigo até ao fim da minha vida? - perguntou ele docemente.
- oh, sim - gritou pollyanna. - eu pensei na melhor coisa
que podia fazer e.
- contigo? - perguntou john pendleton começando a
manifestar preocupação.
- não, mas.
- pollyanna, não me vais dizer que não! - interrompeu ele
com a voz cheia de emoção.
- tem que ser, mr. pendleton, a tia polly.
- ela não te deixa vir?
- não lhe perguntei - hesitou a menina compungida.
- pollyanna!
pollyanna desviou os olhos. não conseguia enfrentar a
expressão de dor espelhada no olhar do seu amigo.
135
- então nem sequer lhe perguntaste?
- não pude, a sério... eu descobri, mesmo sem perguntar. a
tia polly também me quer. além disso, eu também quero ficar
- confessou ela com uma certa coragem. - não imagina como
ela tem sido boa para mim e eu acho que, por vezes, ela já
começa a ficar contente com algumas coisas, com muitas
coisas. e isso nunca acontecia com ela. mr. pendleton sabe
que é verdade. É impossível para mim deixar a tia polly,
agora!
durante um bocado só se ouviu o crepitar do fogo na
lareira. finalmente, o homem falou.
- eu compreendo, pollyanna. não a podes deixar agora -
disse ele. - já não to peço mais - a última palavra foi
pronunciada em voz tão baixa que mal se ouviu, mas
pollyanna percebeu.
- mas ainda não ouviu o resto. existe uma coisa que pode
fazer e que o deixará muito contente!
- a mim não, pollyanna.
- sim, a si. disse que só a presença de uma mulher ou de
uma criança podia fazer um lar. eu posso arranjar-lhe isso:
a presença de uma criança; não eu, mas uma outra.
- como se eu pudesse ter aqui outra pessoa que não tu! -
respondeu com voz indignada.
- quando o conhecer, há-de querer. o senhor é tão simpático
e tão bom! veja só os prismas e as moedas de ouro e todo o
dinheiro que poupou para os países pobres e.
- pollyanna! - interrompeu o homem irritado.
- acabemos com os disparates de uma vez por todas! já te
disse que não há dinheiro nenhum para os países pobres.
nunca enviei um tostão para eles!
olhou para ela, para ver a reacção que já esperava, uma
expressão de desapontamento nos olhos de
136
pollyanna. no entanto, para sua surpresa não existia
desapontamento nem amargura nos olhos da menina. apenas
alegria e surpresa.
- ainda bem que é assim. quero dizer. não quero dizer que
eu não tenha pena dos países pobres, mas assim não posso
deixar de ficar contente por não querer meninos da Índia
porque todas as outras pessoas é isso que querem. e fico
contente por preferir o jimmy bean. agora tenho a certeza
de que ficará com ele!
- ficar com quem?
- jimmy bean. É ele a criança de quem estou a falar e que
ficará contentíssima por lhe fazer companhia. tive que lhe
dizer a semana passada que nem sequer as senhoras da
caridade do oeste queriam ficar com ele e ele ficou muito
triste. mas agora, quando ele ouvir isto há-de ficar muito
contente!
- ah, sim? pois bem, eu não - exclamou o homem
decididamente. - isto é um grande disparate!
- quer dizer que não quer ficar com ele?
- sim, é isso mesmo.
- mas terá a companhia de uma criança carinhosa
- balbuciou pollyanna. estava quase a chorar. - com o jimmy
já não ficava sozinho.
- não duvido, mas prefiro ficar sozinho. foi então que
pollyanna, pela primeira vez desde há muitas semanas se
lembrou subitamente do que nancy lhe tinha contado.
olhou para ele muito séria e disse: - talvez pense que um
rapazinho simpático não é melhor do que o velho esqueleto
que tem guardado lgures, mas eu acho que sim, acho que é
melhor! - um esqueleto?
- sim, a nancy disse que tinha um esqueleto guardado num
armário algures.
137
- ah, isso... - o homem desatou a rir. ria com tanta
vontade que pollyanna começou a chorar de nervosismo.
ao aperceber-se disso, john pendleton sentou-se direito e a
sua expressão tornou-se séria.
- pollyanna, se calhar tens razão, mais razão do que pensas
- disse ele docemente. - com efeito, eu sei que um
rapazinho simpático seria muito melhor do que o esqueleto
que tenho guardado no armário. só que nem sempre estamos
dispostos a fazer a troca. preferimos ficar agarrados aos
nossos esqueletos. no entanto conta-me lá mais um pouco
acerca desse teu rapaz.
e pollyanna contou-lhe.
o riso talvez tivesse aliviado a atmosfera ou então talvez
a tragédia de jimmy bean, tal como pollyanna a contou,
tivesse tocado aquele coração já semiamolecido. de qualquer
modo, quando pollyanna regressou a casa nessa noite já
trazia consigo um convite para jimmy bean, que deveria
visitar o casarão com pollyanna no próximo sábado à tarde.
- estou tão contente! tenho a certeza de que gostará dele!
- dissera ao despedir-se. - desejo tanto que jimmy bean
tenha um lugar, com uma família que se preocupe com ele.

22. sermões e lenha


na tarde em que pollyanna falou a john pendleton de jimmy
bean, o reverendo paul ford percorria os bosques de
pendleton na esperança de que a beleza
138
fulgurante da natureza de deus acalmasse o tumulto que os
seus filhos tinham provocado.
o reverendo paul ford estava muito magoado. mês após mês,
desde há um ano, as condições na sua paróquia tinham
piorado cada vez mais, até que, presentemente, para onde
quer que se virasse, encontrava apenas discussões,
maldizência, escândalo e inveja. tinha procurado evitar
aquilo, falando com as pessoas, predicando, mas era
ignorado. além disso, rezava fervorosamente na esperança
das coisas melhorarem. porém, chegara à conclusão de que
nada melhorara, antes pelo contrário.
dois dos seus clérigos tinham-se zangado por uma questão
sem importância, três das suas colaboradoras mais enérgicas
da organização de caridade tinham-se afastado por causa das
más línguas que tinham provocado escândalo. havia depois
divergências sobre as preferências dadas ao solista do
coro. e para cúmulo, o responsável e dois dos professores
da catequese tinham-se demitido. esta fora a gota de água
que fizera transbordar o vaso e o pastor desanimado
resolvera ir para o bosque rezar e meditar.
era preciso fazer alguma coisa, pensava o pastor.
todo o trabalho da paróquia estava parado. cada vez menos
gente frequentava as actividades religiosas. os
poucos colaboradores que restavam degladiavam-se entre si.
por causa de tudo isto, o reverendo paul ford
sofria muito. era preciso fazer alguma coisa, mas o quê? o
reverendo tirou do bolso as notas que tinha feito
para o sermão do próximo domingo. e começou então , a
ensaiá-lo aos gritos com voz irada. até os pássaros
e os esquilos tinham fugido deixando tudo em silêncio. o
reverendo dobrou de novo as notas e meteu-as no
bolso. começou então a rezar. estava ele nisto, quando
140
pollyanna, que regressava a casa depois de ter estado no
solar de pendleton, o encontrou. correu para ele com um
gritinho.
- oh, mr. ford! partiu alguma perna? o reverendo deixou
cair as mãos e olhou para ela
tentando sorrir.
- não, menina, não! estou só a descansar.
- ah, ainda bem. É que mr. pendleton, quando o encontrei,
tinha partido uma perna. mas ele estava deitado no chão e o
senhor está sentado.
- sim, estou sentado e não parti nada que os médicos possám
curar.
estas últimas palavras foram ditas em voz muito baixa, mas
pollyanna ouviu- as. os olhos dela brilharam de simpatia.
- eu sei o que quer dizer, está preocupado com alguma
coisa. o pai costumava sentir-se assim muitas vezes. quase
todos os pastores se sentem, frequentemente, assim. eles
são sujeitos a tantas exigências e soli citações.
o reverendo virou-se para ela surpreendido.
- o teu pai era pastor?
- sim, não sabia? pensava que toda a gente sabia. ele casou
com a irmã da tia polly, que era a minha mãe.
- ah, estou a perceber. sabes, eu estou aqui há poucos anos
e não conheço as histórias de todas as famí lias.
- sim, senhor - sorriu pollyanna.
fez-se um grande silêncio. o reverendo que continuava
sentado junto a uma árvore pareceu ter- se esquecido da
presença de pollyanna. tirou alguns papéis dos
bolsos e desdobrou-os, mas não estava a olhar para eles.
em vez disso tinha o olhar fixo numa folha caída, a alguma
distância. pollyanna sentiu uma certa pena dele.
141
- está um lindo dia - começou ela, esperançosa. por um
breve instante não houve resposta, depois o reverendo olhou
para cima.
- o quê? ah sim, está um lindo dia.
- não faz frio nenhum, embora estejamos em outubro -
observou pollyanna ainda mais esperançosa. - mr. pendleton
tem uma lareira mas diz que não precisa dela. É só para
ver. eu gosto muito de ficar a olhar para a lareira, não
gosta?
desta vez não houve resposta, embora pollyanna aguardasse
pacientemente antes de tentar de novo.
- gosta de ser pastor?
o reverendo paul ford desta vez olhou logo para ela.
- se eu gosto? mas que pergunta estranha! porque perguntas
isso, minha menina?
- nada, pelo modo como olhava. fez-me lembrar o meu pai.
ele costumava ter esse ar, às vezes.
- ah, sim? - a voz do reverendo era educada mas tinha
voltado a fixar os olhos na folha caída.
- sim, e eu costumava perguntar-lhe se gostava de ser
pastor, tal como lhe perguntei agora a si.
o homem sorriu tristemente.
- e o que é que ele dizia?
- claro que ele dizia sempre que sim, mas dizia também que
não continuaria a ser pastor nem mais um minuto se não
fosse por causa dos “textos de júbilo”.
- os quê?
- era assim que o pai costumava chamar-lhes - disse ela a
rir. - É claro que a bíblia não lhe chama assim, mas são
todos aqueles que servem para animar e reconfortar as
pessoas: uma vez quando o pai se sentiu muito triste
contou-os. havia oitocentos textos desses.
142
- oitocentos?
- sim, textos que dizem às pessoas para ficarem contentes,
para se alegrarem. era a esses que o pai chamava “textos de
júbilo”.
- então o teu pai gostava desses “textos de júbilo”
- murmurou ele.
- sim - reafirmou pollyanna enfaticamente. ele dizia que se
sentia logo melhor quando os contava. dizia que se deus se
deu ao incómodo de nos dizer oitocentas vezes para ficarmos
contentes e alegres era porque queria que nós também o
disséssemos uns aos outros. e o pai sentiu-se envergonhado
por não o ter feito mais vezes. depois disso, esses textos
davam-lhe tanto conforto quando as coisas corriam mal,
quando, por exemplo, as senhoras da caridade se zangavam
umas com as outras por não concordarem com alguma coisa. e
foram também esses textos que o fizeram pensar naquele jogo
que começou a fazer comigo a propósito das muletas. ele
disse-me que tinham sido os textos de júbilo que lhe tinham
ensinado o jogo.
- e como era o jogo? - perguntou o reverendo.
- o jogo consiste em encontrar sempre alguma coisa que nos
faça estar contentes. como disse, começou comigo a
propósito das muletas.
mais uma vez, pollyanna contou a história dela e desta vez
o reverendo escutou-a muito atento, com olhos meigos.
um pouco depois, pollyanna e o reverendo desceram a colina
de mãos dadas. pollyanna estava radiante, gostava imenso de
conversar. o reverendo queria saber tantas coisas sobre o
jogo, sobre o pai dela e sobre a
sua antiga casa.
na base da colina, separaram-se. pollyanna continuou por
uma estrada e o reverendo por outra.
143
nessa noite, o reverendo paul ford sentou-se no seu
escritório a reflectir. sobre a secretária estavam algumas
páginas soltas com as notas do seu sermão. diante dele
tinha outra folha em branco onde tencionava escrever o
sermão. porém, o reverendo não estava a pensar no que tinha
escrito nem naquilo que tencionava escrever. a sua
imaginação estava muito longe numa pequena cidade do oeste
com um reverendo missionário pobre, doente, preocupado e
quase só no mundo mas que se debruçava sobre a bíblia para
descobrir quantas vezes deus lhe dizia para se alegrar e
ficar contente.
passado um tempo, com um longo suspiro, o reverendo paul
ford ergueu- se, regressou da longínqua cidade do oeste e
preparou as folhas de papel para escrever.
“ mateus 23 13, 14 e 23. “ escreveu ele. depois com um
gesto de impaciência deixou cair a caneta e agarrou numa
revista deixada por sua mulher na secretária, alguns
minutos antes. os seus olhos cansados percorriam os vários
parágrafos até que as seguintes palavras lhe prenderam a
atenção:
um dia, um pai disse ao filho, depois de ter sabido que ele
se tinha recusado a ir buscar lenha para a mãe: “ tom,
estou certo de que hás-de ficar muito contente por ir
buscar alguma lenha para a tua mãe”.
e, sem dizer palavra, tom foi. porquê? apenas porque o pai
lhe manifestou directamente que contava que ele fizesse as
coisas correctamente. suponham que ele dizia “ tom, soube o
que tu disseste à tua mãe esta manhã e envergonho-me de ti.
vai buscar lenha imediatamente! “ garanto-vos que a caixa
de lenha continuaria vazia.
144
o reverendo continuou a ler, uma palavra aqui uma linha
ali, um parágrafo acolá:
o que os homens e as mulheres precisam é de encorajamento.
as suas capacidades de resistência naturais devem ser
fortalecidas e não enfraquecidas. em vez de acusar
permanentemente uma pessoa pelos seus erros fala- lhe antes
das suas virtudes. procure encorajá-la a abandonar os seus
maus hábitos. faça apelo às melhores qualidades, à
verdadeira personalidade que saberá usar e vencer a
influência de uma personalidade cheia de esperança e de
beleza, sempre disposta a ajudar, é contagiosa e pode
revolucionar uma cidade inteira. as pessoas irradiam aquilo
que vai no seu espirito e nos seus corações. se uma pessoa
se sente boa e simpática, os seus vizinhos também se
sentirão assim. mas se ele rabujar e criticar, os vizinhos
retribuirão na mesma moeda e ainda com maior intensidade.
se olhar para o que está mal, já à espera de o encontrar, é
isso que obterá. mas quando tiver a certeza de que o que
vai encontrar será bom, é isso também que encontrará. diga
ao seu filho tom que sabe que ele há-de ficar contente por
ir buscar lenha. depois observe-o atenta e interessadamente!
o reverendo pôs a folha de parte e levantou a
cabeça. no momento seguinte estava de pé e percorria
o quarto de um lado para o outro, para a frente e para
trás. passado um pouco, respirou fundo e sentou-se
novamente à secretária.
- meu deus, ajudai-me! vou dizer a todos os meus
toms que tenho a certeza de que eles ficarão contentes por
ir buscar lenha! hei-de distribuir-lhes tarefas
e incutir-lhes tanta alegria para as realizar que nem
145
terão tempo de olhar para as caixas de lenha dos vizinhos!
o reverendo começou então a escrever o seu sermão do
princípio.
o sermão do reverendo paul ford no domingo seguinte foi um
verdadeiro apelo a tudo o que cada homem, cada mulher e
cada criança tinha de melhor e um dos textos citados da
bíblia fazia parte dos oitocentos que pollyanna tinha
referido.

23. o acidente
a pedido de mrs. snow, pollyanna foi um dia ao consultório
do dr. chilton pedir a receita de um remédio que ela
precisava. pollyanna nunca tinha estado antes no
consultório do dr. chilton.
- nunca tinha vindo à sua casa! É aqui que mora, não é? -
perguntou ela olhando com curiosidade em volta.
o médico sorriu um pouco tristemente.
- sim, é verdade - respondeu ele enquanto passava a
receita. - mas não é bem um lar pollyanna, são só quartos e
salas e isso não chega para fazer um lar.
pollyanna fez que sim com a cabeça. os seus olhos
irradiavam compreensão e simpatia.
- eu sei, é preciso a presença de uma mulher e de uma
criança para fazer um lar - disse ela.
- o quê?
- foi mr. pendleton que me disse. porque não arranja uma
mulher, dr. chilton? ou talvez queira ficar
146
com jimmy bean se mr. pendleton afinal não quiser. o dr.
chilton riu um pouco constrangido.
- então, mr. pendleton diz que é preciso uma mulher para
fazer um lar? - perguntou ele evasivamente.
- sim, ele também diz que o sítio onde mora é apenas uma
casa. por que não arranja, dr. chilton?
- por que não, o quê? - o médico voltara a sentar-se à
secretária.
- por que não arranja uma mulher. ah, já me esquecia -
disse pollyanna um pouco ruborizada. acho que devo dizer-
lho. não era da tia polly que mr. pendleton gostava,
portanto, nós não vamos viver para lá. no outro dia, foi
isso que eu lhe disse mas tinha-me enganado. espero que não
tenha contado a ninguém - concluiu ela com uma expressão de
ansiedade.
- não, não contei a ninguém, pollyanna - respondeu o
médico, de modo um tanto estranho.
- ah, ainda bem - exclamou pollyanna aliviada.
- sabe, o senhor foi a única pessoa a quem eu contei e
pareceu-me que mr. pendleton ficou um tanto ou quanto
divertido quando lhe disse que tinha contado a si.
- ficou? - perguntou o médico fazendo por aparentar uma
certa indiferença.
- É claro que ele não gostaria que mais pessoas
soubessem, dado que não era verdade. mas por que não
arranja uma mulher, dr. chilton?
houve um instante de silêncio. depois com um ar
muito sério o médico disse:
- isso não acontece sempre quando nós queremos,
minha menina.
147
pollyanna fez uma expressão pensativa.
- estava convencida de que o senhor conseguiria facilmente
- disse ela em tom de lisonja.
- obrigado - riu o médico com as sobrancelhas levantadas.
depois continuou com o mesmo ar sério:
- receio que algumas senhoras mais velhas do que tu não
pensem da mesma maneira. pelo menos não se têm demonstrado
tão interessadas - observou ele.
pollyanna franziu de novo a testa. depois abriu os olhos
com surpresa.
- não me diga que já tentou casar com uma senhora, como mr.
pendleton, e não conseguiu porque ela não quis?
o médico pôs-se em pé de repente.
- pollyanna, isso agora pouco interessa. não te preocupes
com os problemas das outras pessoas. vai levar o nome do
remédio a mrs. snow. há mais alguma coisa.
pollyanna disse que não com a cabeça.
- não, obrigada - murmurou ela enquanto se voltava para a
porta. a meio caminho da saída, voltou-se com uma expressão
alegre e disse: - ainda bem que não foi pela minha mãe que
esteve apaixonado!
foi no último dia de outubro que o acidente ocorreu.
pollyanna que se dirigia apressadamente para casa depois da
escola, atravessou a rua a uma distância aparentemente
segura de um carro que se aproximava.
o que aconteceu ninguém conseguiu explicar bem. eram cinco
da tarde, pollyanna foi levada inconsciente para o seu
quarto. a tia polly muito pálida e nancy muito chorosa
tiraram-lhe as roupas e meteram-na na cama. o dr. warren
foi chamado de urgência.
148
nancy chorava sem parar no ombro do velho tom enquanto
dizia:
- agora é que se vê como miss polly gosta da sobrinha. não
é o dever que a atormenta.
- ela está muito mal? - perguntou o velhote.
- ela parecia morta, mas miss polly disse que não estava; e
ela deve saber porque esteve com a cabeça encostada ao
peito da menina e ouviu o coração a bater! ela tem um
pequeno corte na cabeça. mas não parece muito mal, diz miss
polly. mas ela receia que a menina esteja ferida
interiormente.
mesmo após a visita do médico, pouco mais havia a dizer.
parecia não haver ossos partidos e o golpe não tinha muito
mau aspecto, mas o médico tinha um ar muito sério e abanava
vagarosamente a cabeça dizendo que só com o tempo se
poderia saber.
depois de ele se ter ido embora, miss polly estava ainda
mais desanimada do que antes. a menina ainda não tinha
recobrado a consciência, mas de momento parecia estar a
dormir bem. mandaram chamar uma enfermeira que deveria
chegar nessa noite.
só na manhã seguinte é que pollyanna abriu os olhos e
compreendeu onde estava.
- que aconteceu, tia polly? porque não me consigo levantar?
- lamentou-se ela deixando-se cair na almofada.
- deixa-te estar, querida.
- mas o que aconteceu? porque não me consigo levantar?
a tia polly explicou então:
- ontem, foste atropelada por um automóvel. mas
isso não interessa agora, a tiazinha quer que durmas
mais.
- fui atropelada? ah sim, eu corri. tenho dores.
149
- sim, minha querida, mas agora descansa.
- sinto-me tão esquisita, tia polly, tenho uma sensação
estranha nas pernas.
com uma expressão de quem implora, miss polly virou-se para
a enfermeira. a enfermeira avançou rapidamente para junto
da cama.
- vamos agora nós falar. já é tempo de nos apresentarmos.
chamo-me miss hunt e vim ajudar a sua tia a tratar de si. a
primeira coisa que vou fazer é dar-lhe estes comprimidos.
- mas eu não preciso que cuidem de mim! quero levantar-me,
quero ir para a escola. não posso ir para a escola amanhã?
da janela onde se encontrava a tia polly, ouviu-se um
soluço mal contido.
- amanhã? - sorriu a enfermeira. - não posso deixá-la sair
tão cedo, miss pollyanna. mas tome estes comprimidos e
vamos ver o resultado.
- está bem - concordou pollyanna com uma expressão de
dúvida. - mas depois de amanhã tenho que ir à escola, tenho
exames.
um minuto depois voltou a falar. falou da escola, do
automóvel e das dores que sentia, mas em breve, sob o
efeito dos comprimidos, adormeceu.

24. john pendleton


afinal pollyanna não pôde ir à escola no dia a
seguir, nem depois. porém, a menina não se deu bem
conta disso, excepto quando, por um breve período de
150
perfeita consciência, fez várias perguntas. só uma semana
depois começou a ficar perfeitamente consciente, quando a
febre cedeu e as dores diminuiram. tiveram então que lhe
contar tudo o que se tinha passado.
- então, não estou doente, o que eu estou é ferida. estou
contente com isso.
- contente, pollyanna? - perguntou a tia que estava sentada
na cama dela.
- sim, é muito melhor ter as pernas partidas como aconteceu
a mr. pendleton do que ficar inválido para sempre como mrs.
snow. uma perna partida cura-se, mas os inválidos
permanentes, não.
miss polly levantou-se de repente e dirigiu-se para o
toucador, do outro lado do quarto. começou a mexer nos
objectos como se não soubesse bem o que estava a fazer, o
que contrastava com a sua habitual determinação. estava
muito pálida.
na cama, pollyanna estava deitada, olhando para os reflexos
do arco-íris no tecto que eram produzidos pelos prismas
pendurados na janela.
- também estou contente por não ter varicela - murmurou
ela. - isso é pior do que sardas. estou também contente por
não ter tosse convulsa, já tive isso e é horrível. também
estou contente por não ter apendicite, nem bexigas porque
as bexigas pegam- se e, então não a deixavam estar aqui.
- parece que estás contente com muitas coisas - disse a
tia, quase soluçando.
pollyanna riu baixinho.
- É verdade, estive todo o tempo a pensar nessas coisas
enquanto olhava para o arco-íris. adoro o arco -íris. estou
tão contente por mr. pendleton me ter dado aqueles prismas!
e também estou contente com outras
151
coisas que ainda não disse. eu ainda não sei bem, mas acho
que estou co ntente por estar ferida.
- pollyanna!
pollyanna riu outra vez baixinho. dirigiu o seu olhar
luminoso para a tia.
- sabe o que é tia, desde que eu fui ferida que me tem
chamado muitas vezes de “querida” e antes não o fazia.
adoro ser chamada “querida” pelas pessoas da minha família.
algumas das senhoras da caridade chamavam-me isso e claro
que era muito agradável, mas não tão bom como por uma
pessoa da minha família como a tia. estou tão contente por
ser minha tia!
a tia polly não respondeu. tinha levado a mão à garganta
outra vez para conter um soluço. tinha os olhos marejados
de lágrimas. virou-se e saiu apressadamente do quarto pela
mesma porta por onde tinha acabado de entrar a enfermeira.
foi nessa tarde que nancy foi ter a correr com o velho tom
que limpava os arreios no estábulo.
- mr. tom, adivinhe o que aconteceu. não consegue
adivinhar, pode ter a certeza, nem em mil anos.
- então nem vale a pena tentar pois não vivo muito tempo, é
melhor seres tu a dizeres-me, nancy.
- então oiça: sabe quem está no hall de entrada com a
senhora? sabe?
o velho tom abanava a cabeça.
- É john pendleton!
- estás a brincar rapariga.
- que eu seja ceguinha se não é verdade! pois ele falou à
senhora com toda a naturalidade!
- e porque não havia de falar? - perguntou o homem um pouco
agressivo.
152
nancy olhou-o com uma expressão trocista.
- como se não soubesse melhor do que eu!
- o quê?
- não precisa de se armar em inocente - respondeu ela já
meio indignada.
- que queres tu dizer com isso?
nancy aproximou-se mais do velhote.
- oiça, então não foi você que me levou a pensar que miss
polly tinha tido um namorado?
com um gesto de indiferença o velho tom voltou-lhe as
costas e continuou a trabalhar.
- não sei o que queres dizer com todos esses disparates.
nancy riu-se.
- pois eu convenci-me de que ele e miss polly tinham sido
noivos.
-mr. pendleton? - disse o velho tom endireitando-se.
- sim. agora já sei que não era ele. ele esteve apaixonado
sim, mas pela mãe de pollyanna e foi por isso que ele. mas
isso não interessa. - acrescentou apressadamente,
lembrando-se a tempo que tinha prometido a pollyanna não
contar nada sobre o desejo de mr. pendleton em ela ir viver
com ele. - eu perguntei a várias pessoas sobre ele e
descobri que ele e miss polly não se falam e que ela o
detesta desde que correram rumores sobre eles quando ela
tinha dezoito ou vinte anos.
- sim, eu lembro-me - respondeu o velho tom. - foi três ou
quatro anos depois de miss jenny o ter
recusado e partido com o pastor. miss polly sabia do
caso e tinha pena dele, por isso tentou ser simpática.
talvez se tenha excedido um pouco, pois odiava o padre
que lhe tinha levado a irmã. mas depois começaram a
comentar, dizendo que ela andava atrás dele.
153
- ela, atrás de um homem? - perguntou nancy.
- É verdade parece impossível, mas foi o que disseram e
realmente não faz muito sentido. depois, apareceu o
verdadeiro namorado dela e vieram os problemas com ele.
depois, fechou-se como uma ostra e nunca mais deu troco a
ninguém. o coração dela pareceu ter-se tornado mais duro
que pedra.
- sim, eu sei. já tinha ouvido falar disso, foi por isso
que fiquei tão surpreendida quando o vi à porta. ele, com
quem ela já não falava há tantos anos! mas deixei-o entrar
e fui anunciá-lo.
- o que disse ela? - o velho tom conteve a respiração.
- primeiro não disse nada. ficou tão quieta que pensei que
não tinha ouvido. ia repetir quando ela disse calmamente:
“diga a mr. pendleton que eu desço já”. fui logo dizer-lhe
e depois vim aqui ter consigo - concluiu nancy olhando
outra vez para a casa por cima do ombro.
- hum! - resmungou o velho tom voltando ao trabalho.
na circunspecta sala de visitas do solar harrington, mr.
john pendleton não esperou muito até ouvir os passos
silenciosos de miss polly. quando se levantou, ela
cumprimentou-o com um aceno de cabeça. a sua expressão era
fria e reservada.
- vim saber de pollyanna - começou ele de imediato com uma
ligeira precipitação.
- muito obrigada. ela está na mesma - disse miss polly.
- e não me diz como ela está? - desta vez a voz dele não se
manteve tão firme.
a expressão da senhora foi atravessada por um espasmo de
dor.
154
- não sei. bem gostaria de saber.
- não sabe?
- não.
- mas, e o médico?
- o dr. warren também não sabe. está em correspondência com
um especialista de nova iorque. preparam uma consulta para
breve.
- mas, que ferimentos é que ela teve?
- um ligeiro corte na cabeça, uma ou duas esfoladelas e, o
mais grave, um traumatismo na coluna que parece ser a causa
da total paralisia dos membros inferiores.
o homem soltou um grito abafado. fez-se um breve silêncio.
logo a seguir perguntou ansioso:
- e pollyanna, como aceita ela isto?
- ainda não se apercebeu bem do estado actual das coisas. e
eu não posso dizer-lhe.
- mas, ela deve saber alguma coisa! miss polly levou
subitamente a mão ao pescoço naquele gesto que,
ultimamente, se tinha tornado tão comum nela.
- oh sim. ela sabe que não se pode mexer, mas pensa que tem
as pernas partidas. diz que está contente por ter as pernas
partidas como o senhor pois é melhor do que ficar inválida
para toda a vida como mrs. snow, pois as pernas partidas
ficam boas enquanto que no outro caso, não. diz aquilo
constantemente e eu não sei o que fazer!
através das lágrimas que tinha nos próprios olhos, o
homem viu a face da senhora crispada de emoção.
e, involuntariamente, os seus pensamentos recuaram à
altura em que, quando ele fez a derradeira tentativa
para ela ir viver com ele, pollyanna lhe disse: “ah, eu
nunca poderia deixar a tia polly agora!
155
foi este pensamento que o fez perguntar muito delicadamente
logo que conseguiu controlar a voz:
- a senhora sabe, miss harrington, eu fiz tudo para levar
pollyanna a ir viver comigo.
- consigo! pollyanna!
o homem retraiu-se um pouco perante o tom de voz dela e a
sua própria voz tornou-se de novo fria e impessoal quando
voltou a falar.
- sim. eu queria adoptá-la, legalmente, compreende. queria
torná- la minha herdeira.
a senhora, sentada na cadeira defronte dele, descontraiu-se
um pouco. pensou como essa adopção representaria para
pollyanna um futuro brilhante e pensou se pollyanna teria
idade suficiente e se seria sufi cientemente interesseira
para se deixar tentar pela posição e pelo dinheiro deste
homem.
- eu gosto muito, muito de pollyanna - continuou o homem. -
gosto muito dela, tanto por ela própria como pela mãe. eu
estava pronto a dar a pollyanna o amor que tenho guardado
há vinte e cinco anos.
- amor - miss polly lembrou-se de repente das razões porque
tinha ficado com aquela criança e lembrou-se também das
palavras de pollyanna pronunciadas nessa mesma manhã:
“adoro ser chamada de querida pelas pessoas da minha
família!
e foi a esta menina sedenta de afecto, que pendleton tinha
oferecido um amor guardado há vinte e cinco anos e ela era
suficientemente madura para se deixar tentar pelo amor! com
o coração apertado, miss polly dava-se conta disto. e,
ainda angustiada, compreen deu outra coisa: a aridez e
tristeza que seria o seu próprio futuro sem pollyanna.
- e então? - perguntou ele.
156
o homem apercebendo-se do esforço de autocontrolo que se
reflectia na aspereza da voz da senhora, sorriu tristemente.
- mas ela não quis vir - respondeu ele.
- porquê?
- ela não seria capaz de a deixar. disse que a senhora
tinha sido muito boa para ela. ela quis ficar consigo e
disse que pensava que a senhora queria que ela ficasse -
concluiu ele enquanto se levantava.
ele não olhou em direcção de miss polly. virou a cara
resolutamente em direcção à porta: mas ouviu uns ligeiros
passos ao seu lado e viu que ela lhe estendia a mão.
- quando o especialista chegar, informo-o logo
- disse ela com voz insegura. - adeus, muito obrigada por
ter vindo. pollyanna ficará contente.

25. um jogo de espera


no dia a seguir à visita de john pendleton, miss polly
começou a preparar pollyanna para a visita do especialista.
- pollyanna, minha querida - começou ela docemente -,
decidimos que um outro médico para além do dr. warren devia
ver-te. um outro médico talvez
nos possa dizer a maneira de tu melhorares mais depressa.
o rosto de pollyanna iluminou-se. - o dr. chilton! ah, tia
polly, gostava tanto que o dr. chilton me viesse ver!
receava que não quisesse
157
por ele a ter visto no outro dia no solário. foi por isso
que eu não disse nada. mas estou tão contente que a tia
queira que ele me venha ver!
a tia polly ficou primeiro branca, depois vermelha e
depois, de novo branca.
- não, querida! - disse ela procurando falar com
naturalidade e alegria. - eu não me referia ao dr. chilton.
É um médico novo, um médico muito famoso de nova iorque que
sabe muito de ferimentos como os que tu sofreste.
pollyanna baixou a cara.
- não acredito que ele saiba metade do que sabe o dr.
chilton.
- ah sim, ele sabe, tenho a certeza, querida.
- mas foi o dr. chilton que assistiu a mr. pendleton quando
ele partiu a perna. se não se importar eu gostava que o dr.
chilton me viesse visitar!
miss polly ficou embaraçada. por momentos, não disse nada,
depois, respondeu docemente, embora com um toque do seu
antigo tom de seriedade:
- mas eu importo-me, pollyanna, importo-me muito. por ti
sou capaz de fazer tudo o que for preciso, mas tenho
razões, que não quero dizer agora, para não chamar o dr.
chilton e deves acreditar-me que ele não sabe tanto sobre o
teu problema como este grande médico que vem amanhã de nova
iorque.
pollyanna olhava pouco convencida.
- mas, tia polly, se gostasse do dr. chilton...
- o quê? - a voz da tia polly era agora muito áspera. e
estava também muito vermelha.
- eu dizia: se estivesse doente e gostasse do dr. chilton e
não do outro, acho que isso fazia alguma diferença nas suas
melhoras, e eu gosto imenso do dr. chilton.
158
nesse momento, a enfermeira entrou no quarto e
a tia levantou-se de repente com uma expressão de
alívio.
- tenho muita pena pollyanna, mas terei de ser eu
a julgar. além disso, já está combinado. o médico de
nova iorque chega amanhã.
no entanto, o médico de nova iorque não pôde vir
no dia seguinte. no último momento receberam um telegrama
comunicando que o próprio especialista tinha
adoecido e não poderia vir por enquanto. isto levou
pollyanna a continuar a pedir a substituição do médico
pelo dr. chilton.
no entanto, a tia polly continuava a recusar.
- eu nem queria acreditar - dizia nancy ao velho
tom uma manhã. - a miss polly está permanentemente ansiosa
por fazer qualquer coisa que agrade à menina, até já deixa
subir o gato e o cão deixando- os passear em cima da cama
da menina pollyanna! e quando não tem mais nada que fazer,
anda no quarto de um lado para o outro com os vidrinhos a
fazer “a
dança do arco-íris”, como a menina lhe chama. já mandou o
thimoty comprar flores por três vezes e, no outro
dia, encontrei-a sentada na cama com a enfermeira a
penteá-la, segundo as instruções de miss pollyanna. e
miss polly agora anda com um penteado diferente, só
para agradar à menina!
- sim, eu também fiquei surpreendido quando vi
a miss polly muito bonita com aqueles caracóis na testa
- observou ele friamente.
- claro que está muito melhor - respondeu nancy
indignada. - agora até parece gente. agora ela é
quase...
- lembras-te quando eu te disse que ela era bonita?
nancy encolheu os ombros.
159
- ela não é bonita, mas pelo menos já não parece a mesma
mulher.
- bem te disse que ela não era nada velha. nancy riu-se.
- se não era velha, imitava muito bem até miss pollyanna
chegar. diga lá, mr. tom, quem era o namorado dela? ainda
não consegui descobrir!
- também não vai ser através de mim que vais descobrir.
- vá lá, mr. tom, há muita gente por aqui a quem eu posso
perguntar.
- talvez, mas há pelo menos uma pessoa que nunca to dirá -
resmungou o velho tom. depois os olhos iluminaram-se. -
como está ela hoje, a menina?
nancy abanou a cabeça. o rosto fechou-se-lhe também numa
expressão triste.
- está na mesma. não se nota diferença nenhuma. continua
deitada, conversa alguma coisa, tenta estar “contente”
porque o sol ou a lua nasce ou por outro pretexto qualquer.
É de partir o coração.
- eu sei, é o jogo - disse o velho tom.
- ela também lhe contou sobre o jogo?
- sim. contou-me há muito tempo - o velhote hesitou, depois
prosseguiu: - um dia, estava eu a resmungar e a lamentar-me
por estar tão marreco, quando a menina me disse.
- essa eu não sou capaz de adivinhar. como é que se pode
estar contente com isso?
- ela arranjou uma maneira. disse que eu devia estar
contente por não ter de me dobrar tanto para fazer o meu
trabalho, porque já estava parcialmente dobrado.
nancy deu uma risada.
- não me surpreende. ela descobre sempre alguma coisa.
desde que chegou que nós fazemos esse jogo pois
160
não havia mais ninguém com quem ela pudesse jogar, embora
tivesse falado à tia.
- a miss polly?
nancy disse que sim com a cabeça.
- não deve ter uma ideia muito diferente da minha, sobre a
patroa.
- estava só a pensar que devia ser uma surpresa para ela -
explicou ele com uma certa dignidade.
- sim, creio que sim - retorquiu nancy -, mas não sei se
ainda seria uma surpresa. eu agora já acredito que tudo é
possível com a patroa, até mesmo ela vir a jogar o jogo!
- mas a menina ainda não lhe contou? ela já ensinou o jogo
a quase toda a gente. desde que teve o acidente só se ouve
falar nisso - disse tom.
- ela não contou a miss polly porque a senhora não queria
que ela falasse do pai e, como foi um jogo ensinado pelo
pai, ela tinha que falar dele e, por isso, nunca lhe
ensinou o jogo.
- ah, estou a ver.
nenhum deles gostava do pastor que lhes levou miss jenny. e
miss polly que era a mais novinha e gostava muito de miss
jenny nunca lho pôde perdoar.
aqueles dias de espera não foram fáceis para ninguém. a
enfermeira tentava aparentar alegria, mas os olhos
denunciavam perturbação. o médico manifestava-se nervoso e
impaciente. miss polly pouco falava, mas mesmo as ondas de
cabelo que lhe caíam sobre o rosto e os lindos laços na
garganta não escondiam o facto de ela estar cada vez mais
magra e pálida. quanto a pollyanna, acariciava o cão e o
gato, admirava as flores, comia os frutos e os doces
que lhe mandavam e respondia às inúmeras mensagens de
carinho que lhe traziam. mas também ela estava cada
vez mais magra e pálida
161
e a actividade nervosa dos seus braços e das suas mãozinhas
apenas realçavam a imobilidade dos membros inferiores sob
os cobertores.
quanto ao jogo, pollyanna disse num desses dias a nancy
como ela ia ficar contente quando pudesse voltar de novo à
escola, visitar mrs. snow e mr. pendleton, e ir andar de
charrete com o dr. chilton, etc. parecia não se dar conta
de que todo esse “contentamento” era no futuro e não no
presente. nancy, porém, dava-se conta disso e chorava
quando estava sozinha.

26. uma porta entreaberta


o dr. meed, o especialista, chegou finalmente, uma semana
depois da data inicialmente combinada. era um homem alto,
de ombros largos, olhos cinzentos simpáticos e um sorriso
alegre. pollyanna gostou logo dele e disse-lhe isso.
- parece-se mesmo com o meu médico.
- com o seu médico? - o dr. meed olhou surpreendido para o
dr. warren que falava com a enfermeira a alguns metros. o
dr. warren era um homem pequeno de olhos castanhos e com
barbicha.
- ah, esse não é o meu médico - sorriu pollyanna
adivinhando o que ele estava a pensar. - o dr. warren é o
médico da tia polly. o meu médico é o dr. chilton.
- ah! - disse o dr. meed com um sorriso um pouco estranho,
olhando para miss polly que se tinha retirado
apressadamente com a face ruborizada.
162
- sabe, eu quis ter comigo o dr. chilton durante todo o
tempo, mas a tia polly preferiu-o a si. ela disse que sabia
mais do que o dr. chilton sobre pernas partidas. e se isso
é verdade, devo ficar contente com isso. É verdade?
o rosto do médico foi rapidamente atravessado por uma
expressão estranha que pollyanna não conseguiu interpretar.
- só o tempo o pode dizer, minha menina - disse ele com
doçura. depois virou a cara séria para o dr. warren que se
tinha chegado para junto da cama.
mais tarde, todos disseram que tinha sido o gato. com
efeito, se o fluffy não tivesse empurrado a porta com o
nariz, esta não teria ficado entreaberta e pollyanna não
teria ouvido as palavras da tia.
no hall, os dois médicos, a enfermeira e miss polly estavam
a falar de pollyanna. no quarto de pollyanna, fluffy tinha
acabado de saltar para a cama ronronando e através da porta
entreaberta ouviu-se a exclamação angustiada da tia polly.
- isso não, doutor! não me diga que a menina nunca mais
poderá andar!
então, foi a grande confusão. primeiro, do quarto, ouviu-se
o grito aterrorizado de “tia polly, tia polly! “. a tia viu
a porta aberta e compreendeu que a sobrinha tinha ouvido as
suas palavras. deu um gemido e desmaiou pela primeira vez
na sua vida.
a enfermeira exclamou alarmada: “ela ouviu! correu para a
porta entreaberta. os dois médicos ficaram com miss polly.
o dr. meed amparou miss polly quando esta ia cair. o dr.
warren estava ali ao lado, sem saber o que fazer. só quando
pollyanna gritou de
163
novo e a enfermeira fechou a porta é que os dois homens,
olhando desesperadamente um para o outro, compreenderam a
necessidade de fazer com que a senhora acordasse de novo.
no quarto de pollyanna, a enfermeira encontrou um gato
cinzento deitado na cama a ronronar.
- miss hunt, por favor, eu quero a tia polly. quero-a já,
por favor!
a enfermeira fechou a porta e aproximou-se dela
apressadamente. estava muito pálida.
- ela não pode vir já, querida. ela vem daqui a pouco. o
que é? não posso saber?
pollyanna disse que não com a cabeça.
- quero saber o que ela acabou de dizer. ouviu-a? quero a
tia polly. ela disse uma coisa importante. quero que ela
diga que não é verdade!
a enfermeira tentou falar mas não conseguiu. algo visível
no seu rosto fazia com que pollyanna ficasse ainda mais
aflita.
- miss hunt, a senhora ouviu o que ela disse? então é
verdade! ah não, não pode ser! não pode ser verdade que eu
nunca mais possa voltar a andar, nem a correr!
- não, talvez não. talvez o médico não saiba bem e esteja
enganado. ainda pode acontecer muita coisa.
- mas a tia polly disse que ele sabia! ela disse que ele
sabia mais do que qualquer outra pessoa sobre pernas no meu
estado!
- sim, eu sei, querida mas todos os médicos às vezes se
enganam. não pense mais nisso por agora.
pollyanna sacudiu-a.
- mas, eu não posso deixar de pensar nisso. como é que eu
agora vou à escola, como vou visitar mr. pendleton e mrs.
snow, e outras pessoas? - e começou
164
a soluçar. - se eu não posso andar mais, como vou conseguir
ficar contente com alguma coisa?
miss hunt não conhecia o jogo, mas sabia que a sua doente
precisava de ser acalmada imediatamente.
a enfermeira deu-lhe um calmante e disse:
- as coisas às vezes não são tão más como parecem.
- eu sei, o pai também costumava dizer isso - disse
pollyanna chorando. - ele dizia que havia sempre alguma
coisa pior. não vejo nada que possa ser pior que isto. você
vê?
miss hunt não respondeu.

27. duas visitas


miss polly, que não se tinha esquecido da promessa
de informar mr. john pendleton logo que tivesse informações
concretas do médico, mandou nancy avisá-lo. antes, nancy
teria ficado muito contente com esta
oportunidade extraordinária de ir à casa misteriosa de mr.
pendleton. mas hoje ela estava tão triste que não
se conseguia alegrar com nada. durante os minutos que teve
de aguardar pela chegada de mr. john pendleton, ela mal
olhou em redor.
- eu sou a nancy, senhor - disse ela respeitosamente em
resposta à interrogação espelhada no olhar dele. - miss
harrington mandou-me vir trazer-lhe
informações sobre miss pollyanna.
- e então?
- as notícias não são boas, mr. pendleton.
165
- não quer dizer...
- sim, senhor. ela nunca mais pode voltar a andar.
fez-se silêncio absoluto. depois com a voz sacudida
pela emoção o homem disse:
- pobre menina! pobre menina!
nancy olhou para ele, mas baixou logo o olhar. ela
nunca imaginaria que aquele sujeito antipático e sério
pudesse ficar assim.
em voz baixa e pouco firme ele falou de novo:
- mas que crueldade, nunca mais poder dançar ao
sol! a minha linda menina dos prismas!
fez-se outra vez silêncio e depois de repente o
homem perguntou:
- ela ainda não sabe, pois não?
- ela sabe, senhor - disse nancy soluçando. É isso
que torna tudo ainda mais difícil. ela descobriu
por causa do gato! É que o gato empurrou a porta e
miss pollyanna ouviu-os falar. foi assim que descobriu.
- pobre menina! - exclamou o homem de novo.
- sim, senhor. ainda só a vi duas vezes desde que
ela soube disso e das duas vezes desatei a chorar. foi
tudo há tão pouco tempo que ela não consegue deixar
de pensar nas coisas que já não pode fazer. está muito
triste também porque não consegue ficar contente. se
calhar não conhece o jogo dela?
- o jogo do contentamento? - perguntou o
homem. - sim, ela ensinou-mo.
- ah, também lho ensinou, ela deve ter ensinado
quase a toda a gente. mas agora não consegue jogá-lo, e é
isso que a preocupa. diz que não consegue
lembrar-se de nada que a faça ficar contente.
- então e não tem razão? - retorquiu o homem
quase zangado.
nancy ficou ainda menos à vontade.
166
- eu também penso isso, mas era mais fácil se ela
conseguisse encontrar alguma coisa. por isso eu tentei
lembrar-lhe.
- lembrar-lhe? lembrar-lhe o quê? - a voz de john pendleton
continuava a soar zangada e impaciente.
- lembrar-lhe de como dizia aos outros para jogarem aquele
jogo. a mrs. snow e aos outros, e daquilo que ela lhes
dizia para fazer. mas a pobre menina chora e diz que agora
não lhe parece a mesma coisa. ela diz que é mais fácil
dizer aos inválidos como eles devem ficar contentes mas que
não é a mesma coisa tratando-se de si própria. diz que está
farta de pensar como está contente por as outras pessoas
não estarem também assim mas diz que durante todo o tempo
em que está a dizer aquilo, não está realmente a pensar
nisso mas sim em que não voltará a conseguir andar.
nancy fez uma pausa, mas o homem nada disse. estava sentado
com as mãos nos olhos.
- depois, tentei lembrar-le como ela costumava dizer que o
jogo quanto mais difícil era, mais engraçado se tornava.
mas ela diz também que é diferente se for difícil demais.
agora tenho que me ir embora.
antes de sair, à porta, ela hesitou, virou-se e perguntou
timidamente:
- posso dizer a miss pollyanna que o senhor esteve com o
jimmy bean?
- não, acho que não, eu não estive com ele. porquê?
- não é nada senhor, é que essa é uma das coisas que a faz
ficar muito triste, o facto de não ter conseguido que o
senhor o visse.
não demorou muito até toda a cidade de beldingsr ville
saber que o grande médico de nova irque tinha
167
dito que pollyanna whittier nunca mais voltaria a andar e
toda a gente estava muito comovida. todos conheciam, quanto
mais não fosse de vista, aquela carinha sardenta que
cumprimentava toda a gente com um sorriso e quase todos
conheciam o “jogo” de pollyanna.
nas cozinhas, nas salas e nos quintais, as mulheres falavam
do assunto e choravam abertamente. nas esquinas e nas
lojas, os homens também falavam e choravam, embora não
abertamente. e as pessoas ainda ficaram mais tristes quando
nancy contou que pollyanna não conseguia jogar o seu jogo e
que, por isso, ainda se sentia mais infeliz.
constantemente apareciam pessoas, umas que miss polly
conhecia, outras que nunca imaginaria que a sua sobrinha
tivesse conhecido e que traziam lembranças e mensagens para
a menina. foi todo este movimento
que despertou miss polly da sua consternação.
primeiro veio mr. john pendleton. nesse dia ele
chegou sem muletas.
- não imagina como estou triste. não é possível
fazer nada?
miss polly fez um gesto de desespero.
- estamos a fazer tudo o que podemos. o dr. meed receitou
certos tratamentos e remédios que talvez ajudem e o dr.
warren está a cumprir tudo à letra.
mas o dr. meed disse que havia poucas esperanças.
john pendleton levantou-se de repente, apesar de ter
acabado de chegar. estava muito pálido e sério. miss ;
polly percebeu que ele tinha consciência de que não se
podia demorar com ela. ao sair, junto à porta,
voltou-se.
- tenho uma mensagem para pollyanna - disse ele. - É capaz
de lhe dizer, por favor, que eu já estive com o jimmy bean
e que a partir de agora ele vai viver
168
comigo. diga-lhe que calculei que ela ficaria contente por
saber que vou adoptá-lo.
por um breve momento, miss polly perdeu o seu autocontrolo.
- vai adoptar jimmy bean! - exclamou ela. o homem ergueu um
pouco o queixo.
- sim. acho que pollyanna compreenderá. diga-lhe, por
favor, que eu penso que ficará “contente”.
- com cer-te-za - gaguejou miss polly.
- muito obrigado - disse john pendleton, cumprimentando a
senhora antes de se ir embora.
miss polly ficou de pé em silêncio, surpreendida,
continuando a olhar na direcção do homem que se tinha ido
embora. ainda lhe custava a acreditar naquilo que tinha
ouvido. john pendleton adoptar jimmy bean? john pendleton,
aquele homem rico, independente, com reputação de ser
extremamente egoísta, adoptar um rapazinho, e um rapazinho
daqueles?
ainda com a expressão de surpresa estampada no rosto, miss
polly dirigiu-se ao andar de cima para o quarto de
pollyanna.
- pollyanna, tenho uma mensagem para ti, de mr. john
pendleton. ele esteve aqui agora mesmo. pediu para te dizer
que resolveu ficar com jimmy bean. ele disse que tu irias
ficar contente por saber isso.
o rosto de pollyanna iluminou- se subitamente de alegria.
- contente? contente? acho que sim, tia polly! eu que fiz
tanto por encontrar uma casa para o jimmy e é uma casa tão
bonita! além disso, estou também muito contente por mr.
pendleton. ele agora terá a presença de uma criança.
- ah, estou a perceber - disse miss polly docemente; e
compreendia melhor do que pollyanna pensava.
169
compreendeu a pressão a que pollyanna estivera sujeita
quando john pendleton lhe tinha pedido para ser a presença
da criança que transformaria a sua grande casa de pedra num
lar. - eu compreendo - concluiu ela com os olhos inundados
de lágrimas.
pollyanna receosa de que a tia pudesse fazer mais perguntas
embaraçosas, desviou a conversa para a casa de pendleton e
o seu dono.
- o dr. chilton também diz isso, diz que é preciso uma
mulher e uma criança para fazer um lar - observou ela.
miss polly virou-se de repente.
- o dr. chilton! como sabes isso?
- foi ele que me disse. foi quando me disse que vivia
apenas em quartos e salas, mas não num lar.
miss polly não respondeu. olhava, pensativa, para a janela.
- então eu perguntei-lhe porque é que não arranjava uma
mulher e fazia um lar.
- pollyanna! - miss polly tinha-se voltado de repente.
tinha as faces ruborizadas.
- sim, eu disse-lhe isso e ele parecia tão triste.
- o que disse ele? - perguntou miss polly como se
contrariasse uma força interior.
- durante um minuto não disse nada, depois disse muito
baixo que não é possível arranjar uma mulher sempre que se
quer.
fez-se um breve silêncio. os olhos de miss polly viraram-se
de novo para a janela. continuava muito corada.
pollyanna suspirou.
- ele continuava a querer uma mulher, eu sei e bem gostava
que arranjasse.
- porquê pollyanna, como sabes?
170
- porque outro dia ele disse outra coisa. ele disse, muito
baixinho também, mas eu consegui ouvir. disse que daria
tudo no mundo se conseguisse a mulher que amava. o que foi,
tia polly? - a tia tinha-se levantado de repente,
dirigindo-se para a janela.
- não é nada, querida. estava só a mudar a posição deste
prisma - disse a tia polly cada vez mais corada.

28. o jogo e os seus jogadores


pouco depois da segunda visita de john pendleton, apareceu
milly snow. milly nunca tinha estado no solar harrington.
estava corada e parecia muito embaraçada quando miss polly
entrou na sala.
- vim saber da menina.
- É muito simpático da sua parte. mas ela está na mesma.
como está a sua mãe? - perguntou miss polly com ar cansado.
- É isso que lhe venho dizer. vinha pedir-lhe para dizer a
miss pollyanna que estamos muito tristes por ela não poder
voltar a andar depois de tudo o que fez por nós, pela minha
mãe, ensinando-lhe a jogar aquele jogo e tudo isso, e
ficámos muito tristes ao saber que ela não conseguia jogá-
lo agora. compreendo que agora, não consiga, nas condições
em que está! mas quando nos lembrámos de todas as coisas
que nos disse, pensámos que se ela soubesse o que fez por
nós, isso podia ajudar no caso dela, com o jogo, porque ela
poderia ficar contente, pelo menos um pouco contente.
171
milly parou de falar desamparada parecendo esperar que miss
polly falasse.
miss polly escutava educadamente mas um pouco confusa. só
tinha compreendido metade do que a rapariga dissera. não
conseguia perceber bem aquele discurso incoerente e sem
lógica. foi então que disse:
- acho que não estou a perceber bem, milly. que quer que eu
diga à minha sobrinha?
- queria que lhe fizesse compreender o que ela fez por nós.
queria que ela soubesse como a minha mãe está diferente e
eu também. eu também tenho tentado jogar o jogo, um pouco.
miss polly franziu a testa. quis perguntar o que milly
queria dizer com isso do “jogo” mas não teve tempo. milly
já se preparava para ir embora.
- sabe, antes nada estava bem para a minha mãe. ela queria
sempre coisas diferentes e também não a podemos levar a
mal, dadas as circunstâncias. mas, agora, ela até me deixa
levantar as persianas e interessa-se pelas coisas.
interessa-se pela sua aparência, pela camisa de dormir e
tudo isso. e começou até a fazer malha para mantas de
bébés, para vender nas feiras e para os hospitais. e está
tão interessada e tão contente por saber que o pode fazer!
e tudo isso é resultado da acção de miss pollyanna, porque
ela disse à mãe que devia estar contente por ter braços e
mãos. e isso fez com que a mãe pensasse em fazer alguma
coisa com os braços e com as mãos. assim, começou a
tricotar. e nem imagina como o quarto agora está diferente,
com todas aquelas cores vermelhas, azúis e amarelas, e os
prismas nas janelas que ela lhe deu. agora, até dá gosto
entrar lá. antes estava tão escuro e triste e a minha mãe
estava sempre tão infeliz que eu até receava lá entrar.
assim; pedia-lhe para dizer a miss pollyanna que
172
estamos muito contentes por lhe devermos esta felicidade e
que pensámos que se ela soubesse como nós estamos contentes
isso a podia tornar um pouco mais contente. É tudo - disse
milly suspirando e levantando-se apressadamente. - É capaz
de lhe dizer?
- com certeza que sim - murmurou miss polly pensando se
conseguiria transmitir tudo aquilo que a rapariga acabara
de lhe dizer.
estas visitas de john pendleton e de milly snow foram
apenas as primeiras de muitas, e as pessoas dei xavam
sempre mensagens. mensagens tão curiosas, que miss polly
estava cada vez mais intrigada.
um dia apareceu a viúva benton. miss polly conhecia-a bem
embora nunca se tivessem falado. era conhecida como sendo a
mulherzinha mais triste da cidade, trajando sempre de
negro. no entanto, hoje, mrs. benton trazia um laço azul
pálido na garganta embora se vissem lágrimas nos olhos.
falou da sua tristeza pelo acidente e depois perguntou se
podia ver pollyanna.
miss polly abanou a cabeça.
- lamento, mas ela ainda não pode ver ninguém. talvez mais
tarde.
mrs. benton enxugou os olhos, levantou-se e preparou-se
para ir embora. mas, quando já estava quase na porta de
saída voltou atrás apressadamente.
- miss harrington, talvez lhe possa transmitir uma mensagem.
- com certeza, mrs. benton. terei todo o prazer. a mulher
hesitou ainda até que disse:
- É capaz de lhe dizer, por favor, que eu pus isto
- disse ela apontando para o laço azul na garganta. depois,
perante o olhar de surpresa mal contida de miss polly,
acrescentou: - a menina tentou durante tanto
173
tempo fazer com que eu usasse alguma cor que eu pensei que
ela havia de ficar contente por eu ter começado. se disser
a pollyanna ela há-de compreender. - e saiu, fechando a
porta atrás de si.
um pouco mais tarde, veio uma outra viúva. esta ainda
vestia de preto. miss polly não a conhecia. a senhora disse
que se chamava mrs. tardell.
- para si sou uma desconhecida - começou ela logo. - mas
não sou uma estranha para a sua sobrinha pollyanna. estive
no hotel durante todo o verão e todos os dias dava grandes
passeios por causa da minha saúde. foi num desses passeios
que conheci a sua sobrinha, uma menina tão amorosa! gostava
de explicar-lhe o que ela significa para mim. quando cá
cheguei eu era muito infeliz e a sua carinha alegre
lembrava-me a minha filhinha que perdi há anos. fiquei tão
chocada quando soube do acidente e que ela nunca mais
poderia tornar a andar e por ela já não conseguir ficar
contente! tinha que vir cá visitá-la.
- É muito simpático da sua parte - murmurou miss polly.
- gostava que lhe transmitisse uma mensagem minha. É
possível?
- com certeza.
- diga-lhe por favor que a mrs. tardell agora está
contente. eu sei que lhe parece estranho e que não
compreende bem. vai-me desculpar, mas eu prefiro não
explicar. a sua sobrinha sabe o que eu quero dizer e eu
senti que tinha que lhe vir dizer isto. muito obrigado e
desculpe se houve alguma indelicadeza da minha parte.
- dizendo isto a senhora foi-se embora. miss polly,
completamente confundida apressou-se a subir as escadas até
ao quarto de pollyanna.
- pollyanna, conheces uma mrs. tardell?
174
- ah sim, gosto muito de mrs. tardell. É uma pessoa doente
e muito triste que está hospedada no hotel. além disso, faz
grandes passeios. costumávamos ir as duas passear.
- pois olha, querida, ela acabou de vir cá visitar-te.
deixou uma mensagem para ti, mas não quis dizer o que
significava. pediu-me para te dizer que agora está muito
contente.
pollyanna bateu as palmas.
- ela disse isso? oh, fico tão contente!
- mas, pollyanna, o que queria ela dizer com isso?
- bom, é o jogo e... - pollyanna calou-se logo levando os
dedos aos lábios.
- mas que jogo?
- não tem importância, tia polly. É que eu não posso contar
a menos que fale de outras coisas que não estou autorizada.
miss polly ia quase perguntar-lhe o que eram essas coisas
mas o embaraço espelhado no rosto da menina impediu-a de
continuar.
pouco tempo depois da visita de mrs. tardell, a curiosidade
de miss polly atingiu o ponto máximo. foi a visita de uma
certa mulher ainda jovem, cheia de pó de arroz e com o
cabelo anormalmente louro. usava saltos muito altos e muita
bijutaria barata. miss polly conhecia muito bem esta mulher
pela reputação que tinha e ficou, por isso,
desagradavelmente surpreendida ao vê-la de visita ao solar
harrington. miss polly não lhe estendeu a mão. ao entrar na
sala, até se retraiu.
a mulher levantou-se de imediato. tinha os olhos
muito vermelhos como se tivesse estado a chorar. com um ar
de semidesafio perguntou se podia ver, por um momento, a
menina pollyanna.
175
miss polly disse que não. começou por dizê-lo com
um ar muito sério mas, algo nos olhos suplicantes da
mulher, fizeram com que acrescentasse educadamente
uma explicação, dizendo que ninguém estava autorizado
a ver pollyanna.
a mulher hesitou, depois falou um pouco bruscamente. o
queixo continuava ligeiramente levantado como numa
expressão de desafio.
- chamo-me mrs. payson. calculo que tenha
ouvido falar de mim, a maioria das pessoas de bem na
cidade já ouviu e talvez muitas das coisas que tenha
ouvido não sejam verdade. mas isso não interessa. foi
por causa da menina que eu vim. tive conhecimento
do acidente e fiquei completamente destroçada. a
semana passada soube que ela não podia voltar a andar
e bem gostava de lhe poder dar as minhas duas pernas.
ela podia fazer mais bem com elas numa hora do que
eu cem anos. mas isso não interessa.
fez uma pausa e tentou aclarar a voz, mas quando
voltou a falar a voz continuava constrangida.
- talvez não saiba, mas dei-me bastante com a sua
menina. vivemos na estrada de pendleton hill e ela
costumava passar lá muitas vezes. entrava e brincava com
os meus filhos e conversava comigo e com o meu
marido, quando ele estava em casa. parecia gostar de
nós. claro que não sabia que as outras pessoas normalmente
não conversavam com gente como nós. talvez
se falassem mais, miss harrington, não houvesse tantos
como nós - acrescentou ela com amargura. - seja
como for, vinha muitas vezes e fez-nos muito bem. este
ano tivemos muitas dificuldades. estávámos tristes e
desanimados, tanto eu como o meu homem. estávamos prontos
para tudo. estávamos a pensar separar-nos e deixar as
crianças. depois aconteceu o acidente
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e soubemos que a sua menina nunca mais podia andar.
começámos então a pensar como ela costumava chegar e
sentar-se à nossa porta, brincar com as crianças, rir e
ficar contente. ela estava sempre a ficar contente com
alguma coisa e um dia explicou-me o jogo e tentou
convencer-me a jogá-lo. ouvimos agora dizer que ela está
muito triste porque não consegue jogá- lo mais pois não tem
nada que lhe dê contentamento. É por isso que eu vim cá
hoje; assim talvez ela fique um pouco contente por nossa
causa, pois decidimos manter-nos juntos e jogar o jogo. eu
sei que há-de ficar contente porque ela costumava sentir-se
triste com as coisas que às vezes dizíamos. como o jogo nos
vai ajudar, ainda não sei bem, mas talvez ajude. de
qualquer forma, vamos tentar. É capaz de lhe dizer?
- sim, eu digo-lhe - prometeu miss polly um pouco abatida.
depois num súbito impulso, avançou e estendeu a mão à
mulher. - muito obrigada por ter vindo, mrs. payson - disse
ela com simplicidade.
o queixo erguido em ar de desafio descaiu. os lábios da
mulher tremeram visivelmente. murmurou alguma coisa
incoerentemente. mrs. payson apertou a mão estendida, e
foi-se embora.
mal a porta se fechou, miss polly foi ter com nancy
à cozinha.
- nancy!
miss polly falava com decisão. aquela série de visitas
desconcertantes e confusas nos últimos dias, que tinham
culminado com esta última experiência da tarde, tinham-lhe
posto os nervos em franja. desde o acidente de pollyanna
que nancy não ouvia a patroa falar com
tanta seriedade.
- nancy, és capaz de me dizer de que se trata este “jogo”
absurdo de que toda a cidade fala? e dizes-me,
177
por favor, o que tem a minha sobrinha a ver com isso? por
que é que toda a gente, desde milly snow a mrs. tom payson,
pedem para eu lhe dizer que estão a “jogá-lo”? tanto quanto
me parece, metade da cidade está a usar lacinhos azúis, a
deixar de discutir ou a aprender a gostar de qualquer coisa
de que nunca gostaram antes. e tudo por causa de pollyanna.
tentei perguntar à menina, mas parece que não consigo
grande coisa e não quero incomodá-la agora. mas, pelo que
ouvi ela dizer-te na noite passada, creio que também és uma
dessas pessoas. agora quero que me contes o que significa
tudo isto.
para surpresa de miss polly, nancy desatou a
chorar.
- isso significa que desde junho passado essa querida
menina tem feito tudo para que toda a cidade fique contente
e agora toda a gente está a tentar retribuir
fazendo com que ela também fique contente.
- contente, com o quê?
- contente, só contente, o jogo é esse.
miss polly já batia o pé.
- continuo a não perceber, nancy. que jogo?
nancy ergueu o queixo. enfrentou a patroa e olhou-a
directamente nos olhos.
- eu vou contar-lhe, senhora. É um jogo que o pai de miss
pollyanna lhe ensinou a jogar. ela recebeu um par de
muletas uma vez numa colecta quando queria uma boneca e
chorou muito como qualquer criança faria. parece que foi
então que o pai lhe ensinou que havia sempre alguma coisa
com que nos alegrar e que ela devia ficar contente por ter
recebido aquelas muletas.
- contente por causa das muletas! - exclamou miss polly
chocada ao pensar nas perninhas paralizadas da menina.
178
- sim, senhora. foi isso que eu disse, e miss pollyanna
disse que também ela o dissera, na altura. mas, ele
explicou-lhe como ela podia ficar contente: devia ficar
contente por não precisar das muletas.
- oh! - gritou miss polly.
- e, depois disso, fez daquilo um jogo constante,
descobrindo sempre alguma coisa para estar contente. dizia
que também o sabia jogar e que não se importava muito por
não ter recebido a boneca porque estava muito contente por
não precisar das muletas. chamavam-lhe o “jogo do
contentamento”. É esse o jogo senhora e ela tem-no jogado
sempre, desde então.
- mas, como... como... - gaguejou miss polly.
- não imagina como o jogo funciona bem, senhora
- reafirmou nancy quase com a convicção de pollyanna. - não
imagina como ela me tem feito bem, à minha mãe e à minha
família. lá em casa. ela já lá foi visitá-los por duas
vezes, comigo. a mim também me tem dado muito
contentamento, por causa de muitas coisas. tudo se torna
mais fácil. por exemplo, eu já não me importo de me chamar
“nancy” porque ela me explicou que eu devia estar contente
por não me chamar “hephzibah”. e há também as segundas-
feiras de manhã que eu costumava detestar tanto. ela
conseguiu que eu ficasse contente por ser segunda-feira de
manhã.
- contente, às segundas- feiras de manhã? nancy riu.
- eu sei que parece estranho, senhora. mas deixe-me
explicar-lhe. a menina disse- me que eu devia estar
contente por ser segunda- feira de manhã, mais do que
qualquer outro dia da semana, porque assim faltava uma
semana inteira antes de ter outra! e ajudou-me muito
senhora. pelo menos farto-me de rir cada vez que penso
nisso!
- mas porque é que ela não me ensinou a mim o jogo? -
perguntou miss polly. - porque faz ela tanto mistério cada
vez que eu lhe pergunto?
nancy hesitou.
- desculpe senhora, mas a senhora disse-lhe para ela não
falar do pai e assim ela não podia contar-lhe. era um jogo
do pai, está a ver...
miss polly mordeu o lábio.
- ela quis-lhe explicar o jogo, ao princípio - continuou
nancy insegura. - ela queria que toda a gente o jogasse com
ela. foi por isso que eu comecei a jogá-lo.
- e os outros todos?
- agora toda a gente o conhece. por aquilo que eu oiço,
onde quer que vá. ela contou a muita gente
e os outros contaram a outras pessoas. além disso, ela
estava sempre a sorrir e era tão simpática para todos que
eles não podiam deixar de se interessar. agora que ela está
doente e toda a gente se sente triste, especialmente ao
saberem como ela se sente mal por não conseguir descobrir
maneira de ficar contente. e assim, vêm todos os dias para
lhe dizer como ela lhes trouxe contentamento, esperando que
isso a possa ajudar. É que ela sempre quis que toda a gente
jogasse o jogo com ela.
- pois bem, eu sei de mais alguém que vai passar
a jogá-lo também agora - disse miss polly enquanto
se virava para sair da cozinha. atrás dela, nancy ficou
embasbacada.
- agora sou capaz de acreditar seja no que for: murmurou
para si própria.
um pouco depois, no quarto de pollyanna, a enfermeira
deixou miss polly e pollyanna sozinhas.
- hoje tiveste mais uma visita, minha querida - anunciou
miss polly com uma voz que tentava, em vão,
manter firme. - lembras- te de mrs. payson?
180
- mrs. payson? sim, lembro-me muito bem! ela vive no
caminho para a casa de mr. pendleton e tem
a bebé mais bonita que eu já vi e também um rapazinho com
quase cinco anos. ela e o marido são muito simpáticos mas
parece que não conseguem ser simpáticos um para o outro.
discutem muito. são pobres e passam dificuldades. mas
apesar de serem tão pobres ela veste roupas muito bonitas
às vezes e tem anéis muito lindos, mas diz que tem um anel
a mais e que o vai deitar fora e pedir o divórcio. o que é
o divórcio, tia polly? receio que não seja muito bom porque
se obtivesse o divórcio não viveria ali mais e que mr.
payson se iria embora e se calhar levava também os filhos.
- afinal já não se vão separar - apressou-se a tia polly a
dizer. - vão manter-se juntos.
- ah, fico tão contente! então eles hão-de ficar ali para
eu os poder ver quando me puder levantar! ah, tia polly,
esqueço-me que as minhas pernas já não podem andar mais e
que nunca mais me puderei levantar para ir ver mr.
pendleton.
- talvez te possas vir a levantar. mas ouve lá. ainda não
te contei tudo o que mrs. payson disse. ela pediu-me para
te dizer que eles vão continuar juntos e vão jogar o tal
jogo como tu lhes ensinaste.
pollyanna sorriu com os olhinhos cheios de lágrimas.
- ai vão? mas que contente que eu fico!
- sim, ela disse que esperava que tu ficasses con tente.
veio cá de propósito para que tu ficasses contente.
pollyanna olhou para a tia.
- mas, tia polly, a tia fala como se conhecesse tudo sobre
o jogo!
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- sim, querida. a nancy contou- me. acho que é um jogo
muito bonito. e eu agora vou também jogá-lo contigo.
- oh, tia polly, a tia vai jogar comigo? fico tão contente!
e eu que sempre quis mais do que tudo que a tia o jogasse
comigo.
a tia polly respirou mais fundo, pois era cada vez mais
difícil manter a voz firme. mas lá conseguiu.
- sim, querida, e todos os outros estão também a jogá-lo.
acho que toda a cidade está a jogar o jogo, até o pastor!
não tive ainda oportunidade de te dizer, mas esta manhã
encontrei mr. ford quando ia para a cidade e ele pediu para
te dizer que logo que possa te vem visitar e que nunca mais
deixou de estar contente com os oitocentos textos de
contentamento que tu lhe ensinaste. como vês, a cidade
inteira está a jogar o jogo e estão todos muito felizes e
contentes. e tudo graças a uma menina que lhes ensinou um
jogo novo.
pollyanna bateu as palmas.
- oh, estou tão contente - exclamou. e o seu rosto
iluminou-se. - já descobri uma coisa para estar contente.
eu estou contente por ter tido as minhas pernas. se não as
tivesse tido, nunca poderia ter feito tudo isto!

29. através de uma janela aberta


entretanto, chegaram os curtos dias de inverno. mas, para
pollyanna, não eram curtos. eram longos, e por vezes cheios
de dor. no entanto, pollyanna procurava
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estar contente. agora que a tia polly estava a
jogar o jogo, ela tinha também que o jogar.
agora, pollyanna, tal como mrs. snow, tricotava lindas
malhas em cores vivas e isso era motivo para que ela, tal
como mrs. snow, ficasse muito contente por ainda ter braços
e mãos.
de vez em quando, pollyanna já podia receber visitas e
traziam-lhe sempre coisas novas em que ela pudesse pensar.
john pendleton já a tinha visitado uma vez e jimmy bean
também lá tinha estado por duas vezes. john pendleton
tinha-lhe contado como jimmy se estava a portar bem e como
ele próprio se sentia bem na companhia do miúdo. jimmy
contou-lhe o belo lar que agora tinha e como mr. pendleton
fazia uma boa família. ambos manifestaram a pollyanna a sua
gratidão.
pollyanna confiou então à tia:
- isto faz com que eu me sinta ainda mais contente por ter
tido as minhas pernas.
o inverno passou e chegou a primavera. apesar do
tratamento, pollyanna pouco melhorou. parecia que as
previsões mais pessimistas do dr. meed se estavam a
realizar e que pollyanna nunca mais poderia voltar a
andar.
toda a cidade procurava manter-se informada sobre
pollyanna e uma pessoa em especial estava
excepcionalmente impaciente. foi assim que mr. john
pendleton recebeu num domingo a visita do dr. thomas
chilton.
- pendleton, vim aqui visitá-lo porque você melhor
do que qualquer outra pessoa da cidade tem conhecimento das
minhas relações com miss polly harrington.
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john pendleton manifestou uma expressão de surpresa, pois
apesar de saber alguma coisa sobre a relação em tempos
existente entre polly harrington e thomas chilton, há quize
anos que o assunto não era referido entre eles.
- sim - disse ele tentando fazer com que a sua voz
manifestasse simpatia e não curiosidade.
- pendleton, eu quero ver aquela criança. quero examiná-la,
tenho que examiná-la.
- então e por que não há-de examiná-la?
- não posso! sabe muito bem que eu não entro naquela casa
há mais de quinze anos. a dona daquela casa disse-me que a
próxima vez que me pedisse para entrar eu deveria
interpretar isso como se me estivesse a pedir desculpa e
que seria tudo como dantes, o que significava que casava
comigo. assim, não imagina que ela me possa chamar, pois
não?
- mas podia lá ir sem ser convidado?
o médico franziu a testa.
- isso é difícil, tenho algum orgulho.
- mas se está tão ansioso, não pode engolir o seu orgulho e
esquecer a discussão.
- esquecer a discussão! - interrompeu o médico
violentamente. - não estou a falar desse tipo de orgulho.
no que se refere a isso eu era capaz até de lá ir de
joelhos. trata-se do meu orgulho profissional. É um caso de
doença e eu sou médico. não posso chegar lá e dizer “aqui
estou eu, aceitem-me como vosso médico “.
- chilton, qual foi a discussão? - perguntou pendleton.
o médico fez um gesto de impaciência.
- a discussão? foi uma discussão de namorados um disparate
qualquer sobre o tamanho de uma sala
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ou a profundidade de um rio, sem qualquer significado se
compararmos com os anos de infelicidade que se seguiram! a
discussão não teve qualquer importância! no que me diz
respeito, estou disposto a esquecê-la completamente.
pendleton, tenho que ver aquela criança. É um caso de vida
ou de morte. acredito honestamente que pollyanna tem nove
hipóteses em dez de voltar a andar de novo!
o médico pronunciou estas palavras bem alto e com muita
clareza. foi assim que jimmy bean que ia a passar do lado
de fora da janela ouviu o que ele disse.
- andar! pollyanna! - dizia john pendleton. que quer dizer
com isso?
- significa que, tanto quanto eu sei daquilo que me dizem,
o caso dela é muito semelhante ao que um colega meu curou.
há anos que ele se especializou nesta área. tenho-me
mantido em contacto com ele e estudei também a questão. e
daquilo que tenho ouvido... mas preciso de ver a menina!
john pendleton endireitou-se na cadeira.
- você tem que a ver, homem! não pode ir através do dr.
warren? o outro abanou a cabeça.
- receio que não. warren tem sido muito decente.
ele disse-me que tinha sugerido a miss harrington uma
consulta comigo mas que ela tinha recusado e ele não se
atreve a pedir-lhe outra vez, mesmo sabendo do meu
desejo em ver a criança. ultimamente, alguns dos seus
melhores doentes passaram para mim e isso ainda me
constrange mais. mas tenho que ver aquela criança! imagine
o que isso poderá significar para ela!
- temos que fazer com que ela lhe peça para lá ir!
- disse pendleton.
- como?
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- não sei.
- você não sabe, nem ninguém sabe. ela é demasiado
orgulhosa e está demasiado zangada comigo para mo pedir.
depois do que disse, há anos, isso teria também outro
significado. mas quando penso naquela criança condenada a
ficar paralítica para toda a vida, que nas minhas mãos
tenho uma hipótese de cura e que só não posso agir por uma
questão de orgulho e de deontologia profissional. - o
médico fora de si caminhava de um lado para o outro na sala.
- mas se conseguíssemos fazer com que ela compreendesse -
repetiu john pendleton.
- sim, e quem é que fará isso? - perguntou o médico
virando-se violentamente.
- não sei, não sei - resmungou o outro desanimado.
do lado de fora da janela, jimmy bean deu um salto de
alegria.
- pois eu sei! - sussurrou ele cheio de alegria. vou eu
fazê-lo! - e de imediato desatou a correr em direcção ao
solar harrington.

30. jimmy toma o assunto nas suas mãos


- É jimmy bean. ele quer ver a senhora - anunciou nancy.
- a mim? - perguntou miss polly surpreendida.
- tens a certeza de que não é miss pollyanna que ele quer
ver? se ele quiser, hoje pode vê-la durante alguns
minutos.
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- não senhora, eu perguntei-lhe, mas ele disse que
era a senhora que queria ver.
- muito bem, eu desço - e miss polly levantou-se da sua
cadeira um pouco enfadada.
na sala encontrou um rapazinho muito corado e de
olhos muito abertos que começou a falar de imediato.
- minha senhora, peço desculpa por vir a ui
incomodá-la mas não pôde deixar de ser. É por causa
de pollyanna. e eu por causa dela era capaz de andar
sobre um braseiro e enfrentá-la a si ou a qualquer
outra
pessoa. a senhora faria o mesmo se pensasse que havia
alguma possibilidade de ela voltar a andar. É por isso
que eu vim aqui falar consigo pois se é só uma questão
de orgulho que está a impedir pollyanna de voltar a
andar, eu tenho a certeza de que a senhora há-de pedir
ao dr. chilton para vir aqui, se compreender o que se
passa.
- o quê? - interrompeu miss polly, passando de
surpreendida a zangada.
- eu não queria que se zangasse. foi por isso que
eu comecei por lhe dizer que ela podia voltar a andar.
pensei que me escutaria por causa disso.
- jimmy, de que estás tu a falar?
- É isso que eu estou a tentar dizer-lhe.
- então diz-me. mas começa pelo princípio e vê
se te explicas bem. não mistures tudo!
- bom, eu vou começar por dizer que o dr. chilton veio
visitar mr. pendleton e que eles estavam a conversar na
biblioteca. compreende isso?
- sim, jimmy - a voz de miss polly soou um
pouco sumida.
- bem, a janela estava aberta e eu estava a arranjar
um canteiro quando os ouvi conversar.
- oh, jimmy! a escutar?
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- eu não tive culpa, não estava a escutar de propósito. mas
ainda bem que ouvi e há-de compreender quando eu lhe
explicar. há-de perceber porque é que isso pode fazer com
que pollyanna volte a andar!
- jimmy, o que quer isso dizer? - miss polly inclinava- se
ansiosamente para a frente.
- É isso que eu lhe estou a tentar dizer. o dr. chilton
conhece um médico que talvez possa curar pollyanna e fazer
com que ela volte a andar, mas não pode ter a certeza sem a
ver primeiro e está ansioso por vê-la. mas disse a mr.
pendleton que a senhora não o deixava entrar.
miss polly ficou muito corada.
- mas jimmy, eu não posso! isto é, eu não sabia!
- miss polly torcia os dedos nervosamente.
- sim, é por isso que eu venho aqui dizer-lhe para que
saiba - afirmou jimmy ansioso. - eles dizem, que por uma
certa razão que eu não compreendi bem, a senhora não
deixava o dr. chilton entrar aqui em casa e que tinha dito
isso ao dr. warren. e que o dr. chilton não podia vir cá
por iniciativa própria sem a senhora lho pedir, por causa
do seu orgulho profissional. e eles estavam a pensar em
alguém que lhe pudesse explicar, mas não sabiam como. e eu
estava do lado de fora da janela e pensei para comigo:
“pois então, vou eu! vou explicar à senhora”. a senhora
percebeu?
- sim. mas jimmy, esse médico, quem é ele? o que já fez
ele? eles têm a certeza de que podem fazer com
que pollyanna volte a andar?
- eu não sei quem ele é. não disseram. o dr. chil ton
conhece-o e ele já curou uma outra pessoa como
a pollyanna. mas não era com esse médico que eles
estavam preocupados. era com a senhora que eles estavam
preocupados porque não deixa o dr. chilton visitá-la.
diga-me, a senhora deixa-o vir ver a pollyanna, não
deixa? agora que compreendeu tudo?
miss polly virava a cabeça de um lado para o outro. estava
um pouco ofegante e pareceu-lhe que ela estava quase a
chorar. mas não chegou a chorar. passado um
minuto disse quase a gaguejar:
- sim. eu deixo. o dr. chilton. vê-la. agora vai a correr
para casa, jimmy! tenho que falar com o dr. warren. ele
está lá em cima.
um pouco depois, o dr. warren ficou surpreendido ao
encontrar miss polly muito agitada e corada no hall. ficou
ainda mais surpreendido ao ouvir a senhora dizer um pouco
atrapalhada:
- dr. warren, em tempos pediu-me para autorizar que o dr.
chilton viesse ver pollyanna e eu recusei. entretanto,
reconsiderei. estava muito interessada em que o senhor
convocasse o dr. chilton. É capaz de lho ir pedir
imediatamente, por favor? muito obrigada.

31. um novo tio


da próxima vez que o dr. warren entrou no quarto, enquanto
pollyanna estava deitada observando os reflexos do arco-
íris no tecto, um homem alto e de ombros largos seguia
imediatamente atrás dele.
- dr. chilton! oh, dr. chilton, que contente eu estou por o
ver! - gritou pollyanna. naquele quarto, ao ouvir este
grito de alegria, mais de um par de olhos
ficaram inundados de lágrimas. - mas claro, se a tia
polly não quer.
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- está tudo bem minha querida, não faz mal - atalhou logo
miss polly agitada, aproximando-se da cama. - eu disse ao
dr. chilton que queria que ele te observasse com o dr.
warren, esta manhã.
- ah, pediu-lhe então a ele para vir - murmurou pollyanna
cheia de contentamento.
- sim querida, eu pedi-lhe. isto é... - mas já era tarde de
mais. a alegria que tinha de repente enchido os olhos do
dr. chilton era inequívoca e miss polly tinha percebido.
muito corada virou-se e deixou apressadamente o quarto.
junto à janela, a enfermeira e o dr. warren falavam muito
sérios. o dr. chilton estendeu as duas mãos a pollyanna.
- minha menina, acho que uma das coisas que podem dar mais
contentamento a alguém foi o que fizeste hoje - disse ele
com a voz trémula de emoção.
ao crepúsculo, uma tia polly maravilhosamente diferente,
chegou-se para junto de pollyanna. a enfermeira estava a
jantar. as duas estavam sozinhas no
quarto.
- pollyanna, minha querida, vais ser a primeira pessoa a
saber. um dia, vais ter o dr. chilton como tio. e foste tu
que conseguiste isso tudo. oh, pollyanna, estou tão
contente! estou tão contente, minha querida!
pollyanna começou a bater as palmas, mas parou.
- tia polly, era a senhora que ele queria há tantos anos?
tenho a certeza que sim! e era isso que ele queria dizer
quando disse que eu, hoje, tinha conseguido dar o maior
contentamento da minha vida. estou tão contente! estou tão
contente que agora já nem me importo com as minhas pernas!
a tia polly conteve um soluço de choro.
- talvez, algum dia, querida.
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mas a tia polly não concluiu. não se atreveu, ainda, a
contar as grandes esperanças que o dr. chilton lhe tinha
transmitido. mas disse o seguinte que soou maravilhosamente
aos ouvidos de pollyanna:
- pollyanna, para a semana vais fazer uma viagem. vamos
transportar-te confortavelmente até um grande médico que
tem uma grande clínica a muitos quilómetros daqui e que se
dedica especialmente a pessoas com a tua doença. É um
grande amigo do dr. chilton e vamos ver o que ele pode
fazer por ti!

32. uma carta de pollyanna


“querida tia polly e tio tom
“já consigo andar! hoje caminhei desde a cama
até à janela. foram seis passos. como é bom estar
outra vez de pé! os médicos e enfermeiras estavam
todos ali a assistir. uma senhora da enfermaria ao
lado, que andou pela primeira vez há uma semana,
espreitava também à porta e outra que tem esperanças de
poder voltar a andar para o mês que vem, foi convidada para
afesta. até tilly, a mulher da limpeza olhava através da
janela e dizia: “linda menina! quando conseguia deixar de
chorar.
“não percebo porque é que eles choravam. eu só me apetecia
cantar e gritar! imaginem só, posso
andar, posso andar! não dou por mal empregue os
dez meses que aqui passei e também não perdi o
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vosso casamento. a tia pollyfoi muito querida em vir casar-
se mesmo ao lado da minha cama para eu poder assistir. a
tia lembra-se sempre das coisas que me dão maior
contentamento.
“eles dizem que em breve poderei ir para casa. quem me dera
poder ir a andar até aí: tenho a impressão de que nunca
mais quero andar de carro. vai ser tão bom andar. estou tão
contente! estou tão contente por tudo. agora até estou
contente por durante um tempo não ter tido as minhas
pernas, pois só agora lhes dou o verdadeiro valor. amanhã
vou andar oito passos.
“muitos, muitos beijos
polliana.
fim

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