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CRÔNICAS DO INTERIOR

Por Volmir Cardoso (*)

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EU SOU DO INTERIOR?

Gostaria de começar esta croô nica – a primeira desta coluna – refletindo sobre esta condiçaã o que
aà s vezes nos enobrece, aà s vezes nos enche o saco: ser “do interior”. Eu sou do interior mesmo. Eu que
tenho o umbigo enterrado em chaã o batayporaense, que passei parte da infaô ncia entre pastos, terreiroã es
e quermesses em um sitinho no esquecido bairro Vera Cruz, ali pertinho da recoô ndita Taquarussu e que
hoje, com meus vinte e poucos anos, modestamente leciono a velha literatura aqui em Nova Andradina,
esta promissora, arcaica, pacata, tumultuada, tíípica cidade ... do interior. Do interior do interior do paíís.
Um paíís, por sinal, interiorano, pouco moderno, com uma gente que haí pouco mais de 30 anos estava
diretamente vinculada ao meio rural, migrando em seguida com suas matutices para os centros urbanos
(esses interiores disfarçados, espremidos pelo liberalismo). E por todo canto, quando os olhares se
perdem no vazio da noite, nos intervalos da novela das oito, parecem ainda sussurrar Não há, ó gente, ó
não...

Eu sou do interior, sim senhor.

EÉ interessante que agora, durante as feí rias de fim de ano e janeiro, ainda que seja raro, eí
possíível encontrar aíí pelas ruas e praças uma gente paí lida, shorts, regatas, chapeuzinho de palha, Ray-
ban e repelente. EÉ gente que vem de Saã o Paulo, Rio, Curitiba e que, por ter parentes por aqui, ou pra
fugir da agitaçaã o das grandes cidades, acaba ancorando no interior. Se naã o daí pra ir pra Bonito ou pro
Pantanal, ficam por aqui mesmo. E vamos noí s matutos conversar com eles, aprender sobre as
modernices e captar um pouco do universo sedutor das metroí poles. Vamos? Se liga, mano, a gente
conversa de igual pra igual! A gente, aleí m de televisaã o, tem Facebook e Twitter por aqui tambeí m! Somos
interioranos globalizados, ok? Mesmo assim, essa gente paí lida sabe se diferenciar de noí s. Com caô meras
na maã o, registram os espaços e tipos exoí ticos, com o receio de que alguma onça assalte ruas e janelas
durante a noite. MS, ladies and gentlemen, aqui o mato eí grosso!

Poreí m, ficamos quase comovidos quando os parentes turistas dizem que, se pudessem,
deixariam a louca vida da cidade grande pra vir habitar o sossego do nosso interior. Balela. No maí ximo
15 dias, e laí vaã o eles, atraí s de dinheiro e “civilizaçaã o”. Ao se despedirem, afirmam a linha do equador que
imaginariamente nos divide, revelam nossa condiçaã o, identidade e estigma: somos mesmo do interior. E
eí quase um elogio! Afinal, pra noí s que somos taã o carentes de raíízes culturais, habitantes desse entre-
lugar chamado Mato Grosso do Sul (rota de gente que estava subindo e descendo e que por descuido ou
fatalidade, acabou ficando por aqui mesmo), o que vier eí lucro!

Eu sou do interior, algum problema?

Por aqui ainda eí possíível notar a calma dos carroceiros desafiando reloí gios e motores, e isso
seria poeí tico se eu soubesse fazer poesia. Ao contraí rio de Drummond, se um burro vai devagar e
devagar as janelas olham, penso que a paisagem fica mais densa, minuciosa, e naã o que a vida eí besta. EÉ
preciso olhar o interior com pacieô ncia. E tem botininhas entrando numa lan house. E teô nis para o seu Zeí
ir ateí a Caixa Econoô mica ver sua aposentadoria de trabalhador rural. Quadros ricos e complexos que
muitas vezes soí podemos compreender olhando aà distaô ncia.
Quando eu era criança, quase adolescente, tinha um vizinho que ouvia uns discos estranhos.
Tempos depois, descobri que, entre seus discos, havia um Dark side of the moon em oí timo estado de
conservaçaã o. Mesmo sem saber direito o que era Rock Progressivo, jaí dava pra perceber que o interior
era maior do que se imaginava.

Eu sou do interior, esse mundo, vasto mundo, que nem cabe em si.

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(*) Professor de literatura, doutorando em estudos literaí rios pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL).

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