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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES - CEART


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

TESE DE DOUTORADO
POSSÍVEL CARTOGRAFIA PARA
UM CORPO VOCAL QUEER
EM PERFORMANCE

Daiane Dordete Steckert Jacobs

FLORIANÓPOLIS, 2015
Jacobs, Daiane Dordete Steckert
Possível cartografia para um corpo vocal queer em
performance / Daiane Dordete Steckert Jacobs. - 2015.
292 p. il.; 21 cm

Orientadora: Maria Brígida de Miranda


Coorientadora: Janaína Träsel Martins
Bibliografia: p. 261-278
Tese (Doutorado) - Universidade do Estado de
Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em
Teatro, Florianópolis, 2015.

1. Teatro. 2. Performance (Arte). 3. Voz. 4. Dissonância


cognitiva. I. Miranda, Maria Brígida. II. Martins, Janaína
Träsel. III. Universidade do Estado de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação em Teatro. IV. Título.

CDD: 792

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC


DAIANE DORDETE STECKERT JACOBS

POSSÍVEL CARTOGRAFIA PARA UM CORPO VOCAL


QUEER EM PERFORMANCE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do


Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina
como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em
Teatro. Área de concentração: Teorias e Práticas Teatrais. Linha
de pesquisa: Linguagens cênicas, corpo e subjetividade.

Banca Examinadora

Orientadora: ______________________________
Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda
UDESC

Coorientadora: _______________________________
Profa. Dra. Janaína Träsel Martins
UFSC

Membros:

_______________________ ________________________
Profa. Dra. Meran M. C. Vargens Profa. Dra. Wânia M. A. Storolli
UFBA FASM

________________________ _______________________
Profa. Dra. Sandra Meyer Nunes Profa. Dra. Fátima C. de Lima
UDESC UDESC

Florianópolis, 02/07/2015.
Ao Keko, meu parceiro de vida e
arte, pela paciência em me
acompanhar e me esperar nestes
anos extensos de leituras, aulas,
viagens, congressos, ensaios,
montagens e apresentações. Amo-te
ad infinitum.
AGRADECIMENTOS

Ao cosmos, pela possibilidade de realizar os encontros que


me fazem ser e estar. À minha querida orientadora Brígida,
que me guiou com sabedoria, perspicácia, discernimento e
afeto na criação desta tese. À Brígida agradeço pelo encontro
com as Teorias de Gênero, que me desestabilizaram
enquanto mulher e que foram fundamentais para esta
pesquisa. À minha querida coorientadora Janaína, que
generosamente aceitou esta orientação e me fez conhecer um
universo de pesquisas, pesquisadorxs e artistas da voz,
partilhando comigo encontros, eventos e materiais
imprescindíveis para o desenvolvimento deste trabalho, além
de sua amizade. Às professoras das bancas de qualificação e
defesa, Sandra, Fátima, Meran e Wânia, pelas provocações e
reflexões essenciais para o desenvolvimento desta pesquisa.
À minha família, em especial meu marido Cleiton (Keko),
meus pais Valnídia e Dário, minha irmã Lia e demais
familiares que estiveram presentes neste percurso de
ausências constantes, que demandou compreensão e apoio.
Axs amigxs de pós-graduação Isabella, Ângela, Andréia, Éder,
Vivian, Alex, Wagner, Michele, Milene: foram muitas
conversas, discussões, partilhas, trilhas e almoços nos quais
não conseguimos fugir de nossos temas de pesquisa. Axs
professorxs do Departamento de Artes Cênicas da Udesc,
mestres e colegas de trabalho, pelo aprendizado constante. À
Mila e à Sandrinha (in memoriam), queridas técnicas do
Programa de Pós-graduação em Teatro da Udesc, que
oferecem suporte administrativo e afetivo constante axs
alunxs do programa. À Bianca, ao Tiago e ao Ivo, técnicos do
Departamento de Artes Cênicas da Udesc, pela prontidão e
apoio essenciais. À Mhirley, Isabella e Luigi, pela revisão do
abstract. Axs alunxs do curso de Licenciatura em Teatro da
Udesc, que me inspiram e com quem partilho minhas
investigações vocais. E, finalmente, à arte, que me inspira,
expira, respira e transforma o meu corpo vocal. Obrigada!
“Todo fazer é conhecer e todo
conhecer é fazer.”

Humberto Maturana e Francisco


Varela.
RESUMO

Esta tese problematiza relações entre vocalidade e gênero no


treinamento de atuantes e na criação atoral no teatro a partir
da seguinte questão: como é possível desestabilizar o
binarismo logocêntrico (homem versus mulher) da
representação de gênero em cena através do corpo vocal? A
hipótese é que ao desestabilizar padrões de vocalidade em
cena seja possível também desestabilizar outros padrões,
como a representação cultural de gênero através da
vocalidade. Visando investigar esta questão, esta tese utiliza a
cartografia e a autoetnografia como metodologias para
mapear pistas interdisciplinares que apontam para
engendramentos, dissonâncias e queerizações de corpos
vocais em performance. Adota-se o termo corpo vocal,
principalmente a partir da filósofa Adriana Cavarero, para se
fazer referência à integridade psicofísica entre corpo e voz.
Nas Teorias de Gênero, o queer diz respeito a não fixação de
identidades sexuais, a entre-lugares dissonantes de gênero. A
busca da queerização do corpo vocal no processo de criação
da peça Pequeno Manual de Inapropriações visou corporificar
a hipótese desta pesquisa.

Palavras-chave: voz, corpo vocal, dissonância, queer, teatro


performativo.
ABSTRACT

This thesis investigates relations between voice and gender


within the context of actor training and creation in theater
departing from the following question: how is it possible to
destabilize the logocentric binarism of gender representation
by means of the vocal body? The hypothesis argues that when
vocal patterns are destabilized on stage, other patterns such
as gender cultural representation through voice may also be
destabilized. Having this question in mind, the methodology
used in this research entails cartography and auto-
ethnography with the purpose of mapping interdisciplinary
clues that point to gendering, dissonances and queerizations
of vocal bodies in performance. The term vocal body is used,
foremost from Adriana Cavarero’s philosophical thinking,
referring to the psychophysical integrity between body and
voice. In gender theories, the queer refers to the non fixation
of sexual identities, the in-between places of gender
dissonances. The searh for queering the vocal body during the
creative process of the play Pequeno Manual de
Inapropriações (Short Manual of Unappropriations) aimed to
bring to life the hypothesis of this research.

Keywords: voice, vocal body, dissonance, queer,


performative theatre.
LISTA DE IMAGENS1

Prólogo: a diva-drag.............................................................169
A diva mostra seus dotes.....................................................177
A diva começa a se desmontar............................................180
A atriz lê o roteiro.................................................................183
Como não conquistar ninguém pelo estômago ou Na cozinha
com Tigella...........................................................................184
Tigella coloca leitchi na receita.............................................189
O público ajuda Tigella a marcar a banha............................190
A mulher-porco.....................................................................191
A face da violência...............................................................193
A atriz anuncia a próxima cena............................................200
Como não ser agradável......................................................201
Julgando o público...............................................................203
O superpênis........................................................................205
Como não proferir um discurso............................................212
Os olhos falantes..................................................................217
O espelho da alma...............................................................219
A atriz lê o roteiro no microfone............................................224
Como não rezar....................................................................226
A bruxa oferece óleo de eucalipto........................................229
As bruxas..............................................................................230
A morte de Joana D’Arc na fogueira da Inquisição aos
dezenove anos.....................................................................231
Linchamento público seguido de morte na fogueira de Kepari
Leniata, vinte anos...............................................................232
A caminhada da sacerdotisa................................................236
O sofrimento da penitência...................................................237

1
Com exceção de A morte de Joana D’Arc na fogueira da Inquisição
aos dezenove anos e Linchamento público seguido de morte na
fogueira de Kepari Leniata, vinte anos, todas as demais imagens
presentes nesta cartografia são da peça Pequeno Manual de
Inapropriações. Criação e atuação: Daiane Dordete. Fotos: Cristiano
Prim.
A atriz lê o roteiro sentada sobre o baú................................238
Como não sentir...................................................................241
O público recorda suas inapropriações................................245
Jogo do Maestro...................................................................246
O fim.....................................................................................251
SUMÁRIO

Instruções iniciais

Como ler esta cartografia.......................................................16


Duas perguntas e uma instrução............................................17
Apresentação do mapa..........................................................18

Corpo vocal engendrado

Notas preliminares..................................................................34
Como ler esta parte do mapa.................................................37
Sobre feminismos e gêneros..................................................39
Fisiologia da produção vocal..................................................48
A unicidade da voz e a desestabilização de gênero..............55
Nos domínios da oratória.......................................................68
Uma nova retórica: o realismo em cena.................................86

Corpo vocal dissonante

Notas preliminares..................................................................98
Como ler esta parte do mapa...............................................100
Em busca de corporeidades vocais dissonantes.................102
O corpo vocal dissonante em Antonin Artaud......................110
O corpo vocal dissonante em Roy Hart................................115
O corpo vocal dissonante em Jerzy Grotowski....................119
Performance art e teatro performativo como territórios
propícios aos corpos vocais queer.......................................124
O (possível) surgimento da performance art........................126
O performativo e a performatividade na Performance art e nos
Performance Studies............................................................128
O teatro performativo............................................................133
Devir queer em performance................................................135
Um exemplo de corpo vocal queer em performance - Laurie
Anderson..............................................................................138
Uma questão de escuta?......................................................142
Escuta queer........................................................................148

Corpo vocal queer

Notas preliminares................................................................156
Como ler esta parte do mapa...............................................164
Um tema inapropriado..........................................................165
Prólogo: a Diva-drag.............................................................169
Como não conquistar ninguém pelo estômago ou na cozinha
com Tigella...........................................................................184
Como não ser agradável......................................................201
Como não proferir um discurso............................................212
Como não rezar....................................................................226
Como não sentir...................................................................241

Instruções finais

Evocações............................................................................254
Ressonâncias.......................................................................257
Referências..........................................................................261
Materiais de “Pequeno Manual de Inapropriações”

Pequeno Manual de Inapropriações – instruções para uma


atriz (roteiro).........................................................................280
Pequeno Manual de Inapropriações – Ficha técnica...........285
Pequeno Manual de Inapropriações – Filmagem em DVD..286
Pequeno Manual de Inapropriações – Fotos em CD...........287
Pequeno Manual de Inapropriações – Mapa de palco e
som.......................................................................................288
Pequeno Manual de Inapropriações – Mapa de luz.............289
Pequeno Manual de Inapropriações – Cartaz......................290
Pequeno Manual de Inapropriações – Programa-frente......291
Pequeno Manual de Inapropriações – Programa-verso.......292
15

INSTRUÇÕES INICIAIS
16

Como ler esta cartografia

Este mapa está dividido em partes independentes,


mas que se relacionam intrinsecamente na argumentação da
tese.
As Instruções iniciais e as Instruções finais apresentam
as informações acadêmicas sobre o trabalho, introduzem a
pesquisa e trazem as reflexões finais sobre o estudo, bem
como as referências utilizadas.
Os três corpos deste mapa-tese, Corpo vocal queer,
Corpo vocal dissonante e Corpo vocal engendrado, formam os
capítulos escritos durante a pesquisa. Eles podem ser lidos na
ordem que x leitorx achar mais pertinente ou instigante.
Os apêndices, materiais resultantes da peça Pequeno
Manual de Inapropriações, prática desta pesquisa, constam
no último item do sumário.
Embora a paginação esteja aqui em uma ordem
evolutiva, ela não designa necessariamente a sequência
obrigatória da leitura, ficando o convite para x leitorx se
aventurar na criação de sua própria sequência de textos.
Nesta cartografia, o “x” substitui as vogais indicadoras
de gênero “a” e “o” nas palavras, a fim de tentar tornar a
linguagem menos sexista. Esta substituição, assim como a
substituição das vogais indicadoras de gênero por “@” ou
outros símbolos, vem sendo utilizada por pesquisadorxs e
ativistas dos movimentos feministas, principalmente na
internet2. Para a leitura, sugiro que x leitorx substitua o “x”
pela vogal que mais lhe aprouver.

2
Não encontrei referências históricas para esclarecer quando esta
subversão linguística iniciou.
17

Duas perguntas e uma instrução

Quantos desejos de ser você já teve? Tente lembrar. Dos


corpos, dos gestos, das vozes. Feche os olhos por um minuto.
(Arrisque-se, feche mesmo). Não precisa me ler agora, eu
espero.

***

Por que são apenas desejos?

***

Escolha uma destas memórias-de-desejos. Escolha um gesto


e um som que se relacionem para você com esta memória.
Faça ambos com seu corpo e voz. Saia de casa repetindo o
gesto e o som por um percurso aleatório (ida ao mercado,
farmácia, parque). Procure explorar o tempo do gesto, do
som, e dos intervalos. O tempo é seu, faça o que quiser com
ele. Olhe para as pessoas e deixe-se olhar. Dê um tempo.
Viva o seu desejo. Se não agora, depois. Viver não pode ser
inapropriado.

***
18

Apresentação do mapa

Esta tese partiu do seguinte problema de pesquisa:


como é possível desestabilizar o binarismo logocêntrico da
representação de gênero em cena através da voz?
Considero como binarismo a categorização
hegemônica que divide os gêneros (representação de
identidades sexuais) em homem e mulher, e que, no caso da
voz, atrela características específicas (marcas de gênero) a
vozes de homens e mulheres em cena, transformando-as em
vocalidades engendradas3.
Então, uma pergunta anterior ao problema de pesquisa
pode ser feita: existem vozes engendradas?
Pesquisas diversas das áreas da saúde4 procuram
indicar diferenças anatômicas (constituição do corpo) e
funcionais (produção de voz) das vozes de homens e
mulheres. Contudo, será que estas pesquisas induzem a
diferenciações generalizantes de tamanhos e espessuras de
pregas vocais, e de registros e frequências médias de voz
entre homens e mulheres? E será que estas diferenciações
podem induzir, por sua vez, a práticas específicas de
treinamento vocal para atores e atrizes?
Existem alguns indícios relevantes de vocalidades
engendradas para a representação, que geralmente definem
registros tonais mais agudos às mulheres e mais graves aos
homens. Cito como exemplos o bel canto5 italiano, que divide

3
Não encontrei este termo nas bibliografias por mim consultadas
durante esta pesquisa. Utilizo o verbo engendrar no sentido de
atribuir características específicas a determinado gênero
(gendering).
4
Principalmente na fonoaudiologia, área especializada na saúde
vocal. Cf.: Sílvia Pinho (2007, 2009), e Mara Behlau e Roberto
Ziemer (1988).
5
Bel canto é o nome dado à escola operística italiana surgida no
século XVII, que se espalhou pelo continente europeu e tornou-se
uma importante referência no canto. As vozes deveriam ter timbre
19

as vozes em naipes6 (grupos) específicos para homens e


mulheres, e o livro A Construção da personagem7 (2004) do
diretor russo Constantin Stanislavski, no qual ela realiza
comparações das vozes de atores e atrizes a instrumentos
musicais, que também definem registros tonais mais agudos
às mulheres e mais graves aos homens. Ambos os exemplos
foram referências importantes para a minha formação de atriz,
tanto em Joinville (2000-2003) quanto em Curitiba (2004-
2007) e Florianópolis (2008-2015), sendo práticas e discursos
recorrentes em aulas, oficinas e processos criativos dos quais
participei8 nestas cidades. Estes indícios são relevantes para
mim ainda hoje, na atualidade catarinense e florianopolitana,
por serem discursos e práticas que eu presencio e percebo
ainda representativamente replicados no treinamento e
criação de algumas atrizes e atores locais contemporâneos.
Eu vivenciei estas práticas através de escolas de música9 e

aveludado, serem ágeis, uniformes e leves. Cf. SILVA,


SCANDAROLLI, 2010.
6
Os naipes mais conhecidos, em uma relação descendente de
alcance de notas, são: soprano (mulher – muito agudo), meio
soprano (mulher – médio-agudo), contralto (mulher – médio-grave),
tenor (homem – agudo), barítono (homem – médio-grave) e baixo
(homem-muito grave).
7
Publicado originalmente em russo em 1948.
8
Como formação profissional, posso citar as seguintes experiências:
entre 2000 e 2003 participei da Companhia de Teatro de Repertório
da Univille (Joinville-SC), tendo realizado diversas leituras
dramáticas, montagens, apresentações e intervenções teatrais;
entre 2004 e 2007 cursei o curso de Bacharelado em Artes Cênicas
na Faculdade de Artes do Paraná (FAP-UNESPAR) e entre 2008 e
2015 cursei o Mestrado e o Doutorado em Teatro no Programa de
Pós-graduação em Teatro da Udesc. Em todas estas experiências
formativas tive aulas teóricas e práticas e participei de montagens
como atriz (no mestrado e no doutorado estas montagens
constaram das investigações práticas das pesquisas desenvolvidas
por mim).
9
Em Joinville estudei canto voltado para teatro musical no
Conservatório Belas Artes entre 2001 e 2002, e canto popular com
Luís Moretti em 2010. Já em Curitiba estudei canto popular no
Conservatório de Música Popular em 2004.
20

teatro, e também em grupos estudantis10 e grupos teatrais


locais11 dos quais participei.
A hipótese desta tese é que um processo de
queerização do corpo vocal na criação cênica desestabilize a
representação binária de gênero (homem versus mulher), e
consequentemente o logocentrismo androcêntrico12 que
subjulga corpo vocal e gênero.
Queer13 é um termo utilizado pelas Teorias de Gênero
para designar a não fixação de identidades sexuais. Este
trânsito permite espaços para outros gêneros (lésbicas, gays,
transexuais, transgêneros, etc.), que subvertem marcas
binárias de gênero.
A peça Pequeno Manual de Inapropriações foi criada
durante esta pesquisa e aparece nesta cartografia como a
corporificação da hipótese da tese. O trabalho concebido e
performado por mim estreou em novembro de 2014, em
Florianópolis-SC, e teve apresentações públicas nos dias 26,
27, 28 e 29 de novembro de 2014, no Centro de Artes da
Udesc. Em 2015, apresentei nos dias 08 de março no SESC
(Serviço Social do Comércio) de Joinville, em comemoração
ao dia da mulher, e no dia 13 de março na própria Udesc, na
Semana dos calouros do Centro de Artes em Florianópolis.

10
Além da já citada Companhia de Teatro da Univille, também
participei da companhia estudantil Eros Pixote de Joinville, entre os
anos de 1999 a 2001.
11
Participei da extinta Faunos Cia. Teatral, de Joinville-SC, entre os
anos de 2003 e 2010.
12
Adriana Cavarero traz este termo em seu livro Vozes Plurais:
filosofia da expressão vocal (2011), fazendo referência às
metafísicas platônica e cartesiana, que sobrepunham a razão
(logos-linguagem) à corporeidade. A metafísica seria logocêntrica e
androcêntrica, por relacionar a esfera da corporeidade à mulher
(ciclos da vida: menstruação, gravidez), e a esfera da razão ao
homem.
13
Segundo o dicionário Oxford, queer (do inglês) significa estranho,
esquisito. Como gíria, traz uma conotação semelhante ao termo
bicha no Brasil. Disponível em:
http://www.oxforddictionaries.com/definition/english/queer. Acesso
em 11 de janeiro de 2014, às 20h.
21

Procurei neste trabalho desestabilizar minha própria


vocalidade engendrada e logocêntrica em cena, instaurando
um tópos14 de compartilhamento de sensações e sentidos
instáveis, possível de repercutir politicamente na formulação
de conceitos e na ação da audiência enquanto sujeitos sociais
e políticos. Busquei um corpo vocal dissonante em suas
marcas de gênero em cena, que pudesse instaurar novos
modos de escuta e de produção vocal para artista e público
através da proposta de linguagem do teatro performativo.
Investiguei um corpo vocal queer autopoiético15, que procurou
se reinventar nas suas relações consigo e com o mundo, e
que pode ter causado certo estranhamento ao público pelas
dissonâncias apresentadas em suas (re)invenções.
Mesmo com pesquisas sendo desenvolvidas
significativamente no Brasil a partir dos anos 2000 através de
dissertações e teses nas áreas das artes da cena e da
música16, o campo de estudos sobre criação/composição
vocal para a cena contemporânea (teatro performativo, teatro
pós-dramático, performance art) ainda é pouco abordado no
país. E neste quesito, esta pesquisa pretende contribuir
parcialmente com a investigação de procedimentos para a
criação vocal cênica em teatro performativo, através de uma
perspectiva crítica pós-feminista, de desconstrução de
gêneros.
Utilizo nesta cartografia o termo corpo vocal17, trazido
por três diferentes pesquisadores: o filósofo suíço da
14
Do grego lugar.
15
Segundo os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco
Varela (1998), os seres vivos são seres autopoiéticos, que se
formam e se transformam continuamente através das relações com
suas estruturas internas (corpo) e com o meio.
16
Cf.: LIGNELLI, 2011; MARTINS, 2004 e 2008; STOROLLI, 2009;
VARGENS, 2005. Estas obras, utilizadas nesta pesquisa, são
exemplos de pesquisas sobre voz em cena (treinamento e criação
vocal), desenvolvidas através de dissertações e teses em
programas de Pós-graduação em Artes Cênicas, Teatro e Música no
Brasil.
17
A fonoaudióloga e preparadora vocal brasileira Lúcia Helena
Gayotto (2005 e 2009) e o filósofo suíço, pesquisador da vocalidade,
22

vocalidade Paul Zumthor (2010), a fonoaudióloga e


preparadora vocal brasileira Lúcia Helena Gayotto (2005 e
2009) e a filósofa feminista italiana Adriana Cavarero (2011 e
2012).
Zumthor (2010) utiliza o termo corpo vocal para fazer
referência às diversas manifestações de poesia oral, que
envolvem a presença de uma voz corporificada na realização
da obra artística. Já Gayotto conceitua o corpo vocal “[...] a
partir do princípio de que corpo e voz são indissociáveis e
que, consequentemente, procura-se a dilatação da voz e de
suas sonoridades nos encaixes posturais do corpo”
(GAYOTTO, 2009, p. 766). Por sua vez, Cavarero (2011 e
2012) utiliza este conceito para ressaltar a indissociabilidade
psicofísica entre corpo e voz.
Para Cavarero, o termo corpo vocal reintegra a
unicidade da voz enquanto fenômeno de sua fisicalidade
sonora (materialidade corporal) e singularidade:

[...] a voz faz alusão a um corpo, singular,


mas não lacrado em sua autossuficiência
individual, que se abre e acolhe o outro,
afinando a música do corpo para os ritmos
da vida18 (CAVARERO, 2012, p. 81).

A autora, nascida em 1947, é uma pensadora italiana


contemporânea de grande importância, com quem eu dialogo
em vários momentos desta pesquisa. Muito influenciada pelo
pensamento da filósofa feminista alemã Hannah Arendt (1906-

Paul Zumthor (2010) também abordam este conceito, porém sem


relação com Cavarero. Zumthor (2010) utiliza o termo para fazer
referência às diversas manifestações de poesia oral, que envolvem
a presença de uma voz corporificada na realização da obra artística.
Já Gayotto conceitua o corpo vocal “[...] a partir do princípio de que
corpo e voz são indissociáveis e que, consequentemente, procura-
se a dilatação da voz e de suas sonoridades nos encaixes posturais
do corpo” (GAYOTTO, 2009, p. 766).
18
“[...] the voice alludes to a body, singular but not sealed off in its
individual self-sufficiency, which opens and welcomes another,
tuning the body’s music to the rhythms of life.” (Tradução minha).
23

1975), Cavarero critica o logocentrismo metafísico que nasce


na Grécia antiga com Platão e Aristóteles, ganhando força na
Europa no século XVII com o pensamento iluminista de René
Descartes. O logocentrismo metafísico reduz a voz (corpo) a
um mero veículo da linguagem (razão), em detrimento de sua
corporeidade afectiva pré e pós semântica. Nesta perspectiva
ela problematiza ainda os binarismos que separam homem e
mulher, razão e corpo, e imagem e som, e o atrelamento
platônico da corporeidade da voz a uma esfera feminina e de
menor importância do que a esfera masculina da linguagem
(abstração mental).
Deste modo, eu me apoio no pensamento de Cavarero
para propor a voz em cena como produção de corporeidade
afectiva, e não apenas um meio para a linguagem (palavra).
Para Cavarero, existe ainda uma unicidade na voz que
define a singularidade dos sujeitos em suas relações sociais.
Por isso, o título da única obra traduzida para o português da
autora, Vozes Plurais: Filosofia da expressão vocal (2011).
Esta unicidade caracterizaria mesmo a pluralidade de vozes:
não existe para a autora uma voz, pois cada um possui sua
singularidade que diferencia seu ser no mundo.
Como Cavarero é uma filósofa feminista da chamada
corrente essencialista19 ou da diferenciação, a unicidade para
ela poderia indicar uma fixação de características que
comporiam a singularidade de um corpo vocal, embora a
autora não ratifique este pensamento em sua obra. Cavarero
(2011) afirma mesmo que o destino da voz é o devir (vir a
ser).
Assim, em minha apropriação do conceito de corpo
vocal, abordarei claramente esta unicidade como uma
singularidade mutante20, a partir da perspectiva queer de não
fixação de identidades.

19
As feministas essencialistas refletem sobre possíveis diferenças
ontológicas entre os gêneros, o que acarretaria particularidades
específicas à mulher e às suas produções.
20
Para Félix Guattari e Sueli Rolnik, “a singularidade é um conceito
existencial; já a identidade é um conceito de referenciação, de
circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros estes
24

No grande panorama das Teorias de Gênero, abordo


principalmente a obra Problemas de gênero (1998), da filósofa
feminista americana Judith Butler. Nascida em 1956, Butler é
uma importante filósofa pós-estruturalista, que inaugura a
discussão sobre o queer nas Teorias de Gênero. Butler
discute o gênero e o sexo como construções culturais,
afirmando que o gênero é performativo, ou seja, se dá a partir
da repetição de gestos e características socialmente
atribuídas. Ela investiga também gêneros dissonantes,
estranhos (queer) ao binarismo heteronormativo (homem x
mulher). Os gêneros queer21 são, para a autora,
desestabilizadores de ideologias hegemônicas.
O conceito de dissonância aparece neste mapa
duplamente: como desestabilização de padrões de
representação de gênero a partir do pensamento de Butler, e
como desestabilização de padrões de escuta e produção
vocal.
Os sons dissonantes22 são aqueles não eleitos
culturalmente para fazer parte da musicalidade (qualidade
musical do som) e da vocalidade (qualidade vocal) das
sociedades: soam como ruídos, sons desagradáveis,
desafinações. Um som dissonante não apresenta regularidade
de vibração em sua onda sonora, é instável e inconstante.
Apesar de consonância e dissonância estarem em
relação o tempo todo na música, utilizo aqui o conceito de

que podem ser imaginários” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 68).


Segundo estes filósofos, a singularidade se dá na relação do corpo
com o mundo, nas interações internas e externas, e está, portanto,
sempre em transformação. Utilizo o conceito de singularidade
mutante em diálogo com estes pensadores.
21
Tais como dragqueen, dragking, transexual, transgênero, etc.
22
O Dicionário Informal de Português cita sinônimos e antônimos
para o termo dissonância. Entre os sinônimos apresentados, estão
termos como: desafinação, desarmonia, discordância, poluição
sonora, diferente, desigual, desorganização e instabilidade. E entre
os antônimos citados, estão: consonância, concordância, harmonia,
som agradável e igual. Cf.:
http://www.dicionarioinformal.com.br/dissonancia. Acesso em 12 de
julho de 2013.
25

dissonância para me referir a sonoridades que não possuem


centralidade de aceitação na produção sonoro-vocal e escuta
em determinados grupos sociais.
As patologias vocais23 que transformam a qualidade
vocal tida como padrão de normalidade e a exploração de
vocalidades descontextualizadas dos padrões estabelecidos
culturalmente (o canto harmônico tuvano sendo realizado no
Brasil, por exemplo) são exemplos de vozes dissonantes em
seus contextos de produção.
Assim, utilizo o conceito de corpo vocal dissonante
para pensar a criação vocal cênica que privilegia as
sonoridades queer da voz, estranhas, inabituais em seus
contextos de produção, capazes de reinventar a singularidade
dx atuante e não fixar representações de gênero.
Minha perspectiva se apoia também no entendimento
de vocalidade e gênero como processos autopoiéticos,
acoplamentos contínuos entre a pessoa e o meio.
Autopoiesis, do grego autoprodução, é um conceito
formulado pelos pesquisadores chilenos da área da biologia
Humberto Maturana e Francisco Varela. Maturana e Varela
publicaram em 1973 o livro De maquinas y seres vivos:
autopoiesis la organización de lo viviente para analisar os
seres vivos como seres que se autoproduzem nas suas
relações internas e externas ao corpo: um processo de
produção circular, que acontece em uma rede de relações,
acoplamentos (MATURANA, VARELA, 1998).
Eu me aproprio nesta cartografia dos conceitos
filosóficos de corpo vocal, queer e dissonância, do conceito
acústico de dissonância e do conceito biológico de autopoiesis
para refletir sobre a criação vocal em cena. Os autores que
fundamentam estes conceitos não tiveram como objetivo
analisar o meu foco temático, a representação de gênero em
cena através da vocalidade. Todavia, suas importantes
teorizações criam o suporte argumentativo para a criação
desta cartografia em seus capítulos móveis: Corpo Vocal

23
Disfonias, doenças da voz como nódulos, pólipos e fenda vocal.
26

Engendrado, Corpo Vocal Dissonante e Corpo Vocal


Queer.
Como esta cartografia não é uma resposta definitiva ao
problema de pesquisa, mas sim um caminho de invenção24,
este mapa indica os percursos-problemas-conceitos-
procedimentos que encontrei como possibilidades para o meu
caminho.
Estes capítulos procuram pistas para relacionar os
conceitos anteriormente expostos com momentos específicos
da consolidação de pensamentos sobre a voz em cena.
As bibliografias sobre produção vocal encontradas por
mim para esta pesquisa perpassam basicamente por três
campos: criação/composição vocal para a cena; treinamento e
técnica vocal; e fisiologia da voz. Não destaco a pedagogia da
voz como outro campo de estudos, por entender justamente
que ela compreende todos estes campos supracitados, assim
como a antropologia, a sociologia, a filosofia da voz e as
ciências cognitivas influenciam diretamente os princípios e
metodologias das práticas vocais.
O primeiro campo de estudos da voz
(criação/composição vocal para a cena), que é o foco central
desta pesquisa, é abordado através de artistas do teatro como
Constantin Stanislavski, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e
Roy Hart, e artistas da Arte da Performance como Laurie
Anderson. Escolhi estxs diretorxs, atuantes e pensadorxs da
cena por considerá-lxs expoentes nas pesquisas vocais e
influências para a dramaturgia atoral do século XX, e também
por me inquietarem como artista e pesquisadora. Do mesmo
modo, durante os percursos deste mapa realizo diálogos com
obras de outrxs artistas que me influenciam de algum modo.
Estxs artistas são estudadxs e retomadxs por pesquisadorxs

24
A psicóloga e pesquisadora Virgínia Kastrup (2012) parte de
diversos filósofos e pesquisadores como Henri Bergson, Isabelle
Stengers, Humberto Matura e Francisco Varela, Gilles Deleuze e
Félix Guatari, etc., para discorrer sobre a invenção como criação de
problemas na pesquisa, e não solução de problemas. Ela contrapõe
a criatividade (solução de problemas) à invenção (criação de
problemas).
27

recentes da área de voz no teatro, como a professora de voz


da Unb entre 1991 e 2011 Sílvia Davini25 (2007), e a
pesquisadora sueca especialista em retórica, voz e teatro
Jacqueline Martin (1991).
O segundo campo de estudos (treinamento e técnica
vocal) traz produção atual significativa de alguns profissionais
das áreas de fonoaudiologia, música e teatro. Utilizo as
pesquisas sobre voz e canto das musicistas Tutti Baê e
Mônica Marsola (2009), assim como a pesquisa de Tutti Baê
com a fonoaudiológa Cláudia Pacheco (2011), para indicar
pressupostos, práticas e terminologias utilizadas no
treinamento vocal contemporâneo de cantorxs. Do mesmo
modo, utilizo pesquisas dos professores de voz dos cursos de
teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, Janaína
Martins (2008), da Universidade de Brasília, César Lignelli
(2011), e da Universidade Federal da Bahia, Meran Vargens
(2005), procurando dialogar com discursos contemporâneos
no treinamento vocal de atores. Ainda com este intuito, abordo
obras da fonoaudióloga e preparadora de atores Lúcia Helena
Gayotto (2005 e 2009), do pedagogo da ecologia sonora, o
americano Murray Schafer (1991 e 2001), e da pesquisadora
e professora de voz Wânia Storolli (2009, 2011, 2012).
Finalmente, o terceiro campo de estudos da voz que
investigo neste mapa apresenta bibliografias advindas
basicamente de profissionais da fonoaudiologia e fisiologia,
reconhecidos por suas relevantes pesquisas sobre fisiologia
da voz. Estes são recorrentes referências nas pesquisas
recentes sobre o tema, como François Le Huche e Jacques
Allali (2005), Sílvia Pinho (2007, 2009), Mara Behlau e
Roberto Ziemer (1988) e Mara Behlau e Paulo Pontes (2009).
Como metodologia, este mapa-tese procura espaço no
campo da pesquisa qualitativa fenomenológica, a partir de
dois métodos: a autoetnografia e a cartografia.
A autoetnografia surge neste processo como um
encontro que estabeleci comigo mesma. Não foi sempre
uma relação prazerosa. Por muitas vezes, descobrir-me

25
Sílvia Davini faleceu em 2011.
28

binária e cartesiana no meu cotidiano, nos meus princípios, no


meu processo de criação e de escrita. Precisei (e preciso) me
reinventar, não só no processo de pesquisa, mas na vida.
Assumir os riscos de ser e fazer. Bagunçar a ordem, cortar e
colar para criar um mapa de mim mesma. Neste processo de
encontro que atravessa este mapa-tese, não só minhas
práticas artísticas, mas minhas observações e ações no
mundo entram como materiais relevantes no desenvolvimento
da pesquisa.
Segundo Sylvie Fortin, professora do Departamento de
Dança da Universidade de Quebéc, em Montreal, o método
autoetnográfico de pesquisa permite à pesquisadora-artista
levar em conta sua biografia e subjetividade enquanto
produção de materiais para a pesquisa (dados
autoetnográficos). A autora também explica que os estudos
práticos “[...] repousam sob a premissa de que a prática
artística será melhor compreendida se colocada em relação
ao pensamento e ao agir dos praticantes.” (FORTIN, 2009, p.
78). Deste modo, esta tese desdobra-se a partir de minhas
experiências como pesquisadora, artista, professora e
produtora cultural, até a prática desta pesquisa, a peça
Pequeno Manual de Inapropriações, e aponta também para o
diálogo com outrxs artistas que me influenciaram nesta
jornada.
A outra metodologia trazida nesta pesquisa é a
cartografia. Este foi um encontro às cegas, realizado após o
exame de qualificação, na etapa final de redação da tese, que
revelou para mim o meu próprio processo de pesquisa e
criação, e me fez repensar a estrutura do trabalho.
Conheci o método da cartografia através do livro Pistas
do método da cartografia, organizado por Eduardo Passos,
Virgínia Kastrup e Liliana da Escócia (2009). Na apresentação
do livro, xs autorxs mencionam a origem desta metodologia
com os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari na introdução
do livro Mil Platôs (1995). Deleuze e Guattari anunciam o livro
em questão como texto-agenciamento, livro-multiplicidade. Os
filósofos apresentam na obra o conceito de rizoma para
explicar a metodologia da cartografia como correlações não
29

necessariamente lineares e hierárquicas, mas sim


rizomáticas, como em um mapa: “eis, então, o sentido da
cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em
processos de produção, conexão de redes ou rizomas”
(PASSOS, KASTRUP, ESCÓCIA, 2009, p. 10). Esta tese-
mapa se fez e se apresenta neste campo, no
acompanhamento do meu próprio processo no(s) território(s)
da pesquisa, na elaboração conceitual e na experiência
artística.
Nesta cartografia autoetnográfica, optei por saber
com26 a pesquisa, e não sobre ela. O saber com implica na
necessidade de abertura e disponibilidade dx pesquisadorx
para se relacionar e se transformar durante o processo de
contato com o objeto de pesquisa, problematizando e
transformando a própria pesquisa no encontro com o
inesperado (ALVAREZ, PASSOS, 2009).
Por isso apresento neste mapa que agora divido com
você o caminho que trilhei a partir do problema de pesquisa.
Este caminho é formado por rizomas independentes, mas que
se relacionam.
Em Corpo Vocal Engendrado eu procuro investigar
possíveis construções de vocalidades engendradas em cena.
Para isso, eu contextualizo o território da crítica feminista
(Teorias de Gênero) e problematizo a vocalidade e o gênero

26
“O ‘saber com’, diferentemente [do saber sobre], aprende com os
eventos à medida que os acompanha e reconhece neles suas
singularidades. Compreende de modo encarnado que, mais
importante que o evento em geral, é a singularidade deste ou
daquele evento. Ao invés de controlá-los, os aprendizes-cartógrafos
agenciam-se a eles, incluindo-se em sua paisagem, acompanhando
os seus ritmos. Nesse sentido, os aprendizes-cartógrafos estão
interessados em agir de acordo com esses diversos eventos,
atentos às suas diferenças. O pesquisador se coloca numa posição
de atenção ao acontecimento. Ao invés de ir a campo atento ao que
se propôs procurar, guiado por toda uma estrutura de perguntas e
questões prévias, o aprendiz-cartógrafo se lança no campo numa
atenção de espreita. Conhecer, nessa perspectiva, pressupõe o
"endereçamento" ou a relação de mutualidade que entrelaça sujeito
e objeto da pesquisa.”. (ALVAREZ, PASSOS, 2009, p. 143-144).
30

como acoplamentos contínuos entre a pessoa e o meio, a


partir do conceito de autopoiesis, de Humberto Maturana e
Francisco Varela. Também apresento pistas sobre a influência
da retórica e do logocentrismo no teatro realista de Constantin
Stanislavski (1863-1938) - ícone do Teatro Moderno europeu
e grande referência na formação de atores na
contemporaneidade27 - e possíveis relações destes territórios
com o engendramento de vocalidades em cena.
Em Corpo Vocal Dissonante eu investigo
desestabilizações de marcas específicas de gênero em
corpos vocais em cena. Neste contexto, aponto o trabalho de
Antonin Artaud (1896-1948), Jerzy Grotowski (1933-1999) e
Roy Hart (1926-1975) como precursores de pesquisas por um
corpo vocal dissonante na atuação. Escolhi estes três artistas
por serem eles referências notáveis nas pesquisas em voz no
teatro do século XX, e influências para o meu próprio trabalho
e pensamento sobre a voz em cena. Nesta parte do mapa,
discorro também sobre a importância da escuta nos processo
de formação de vocalidade, e sobre a escuta queer como
ampliação do repertório sonoro-vocal dx ouvinte,
desestabilizando vocalidades engendradas. Analiso ainda a
performance art e o teatro performativo como territórios
propícios aos corpos vocais queer, que desestabilizam
padrões hegemônicos de vocalidade e representação de
gênero em cena.
Em Corpo Vocal Queer eu experimento a queerização
do meu corpo vocal em cena. Deste modo, discorro sobre o
processo de criação da peça Pequeno Manual de
Inapropriações, que teve como objetivo explorar
procedimentos de criação de um corpo vocal queer em
performance. Apresento também os apêndices desta

27
Em todo o meu percurso formativo de atriz – tanto em cursos
regulares quanto livres- as obras de Stanislavski sempre foram
leitura recorrente. A metodologia de atuação elaborada pelo diretor
russo ainda é constantemente revisitada, e em minha graduação em
teatro na Faculdade de Artes do Paraná (2004-2008), por exemplo,
era a primeira metodologia aprendida pelos calouros.
31

pesquisa: materiais gerados no processo de criação e


apresentação da peça Pequeno Manual de Inapropriações.
A inspiração para a utilização de instruções, tanto na
prática da pesquisa quanto no corpo da escrita da tese, veio
da leitura do livro The Fluxus Performance Workbook (2002),
que apresenta uma série de instruções criadas por diversos
artistas para seus eventos/performances.
Para você que me acompanhou até aqui, estendo o
convite para continuar comigo nos percursos deste mapa.
32
33

CORPO VOCAL ENGENDRADO


34

Notas preliminares28

“On ne naît pas femme, on le devient.” 29

Simone de Beauvoir

Meus pais disseram que eu nasci


mulher. Mas não concordei rapidamente
com a ideia. Apesar dos vestidos (que eu
sujava a toda hora escorregando em
barreira) e dos lacinhos (que não duravam
um minuto sequer na cabeça), na primeira
oportunidade que eu tinha, desmanchava
todo o figurino. Lembro que perto dos cinco
anos cortei os longos cabelos, xodós de meu
pai, sozinha. Avistei a furtiva oportunidade
em uma tesoura que pairava reluzente na
cômoda do quarto de casal vazio. Aos sete
anos lembro também de ter os cabelos
curtíssimos. Na casa de praia de meus pais,
conheci a neta de uma vizinha, e por
ordens superiores (da mãe e da avó) nos
tornamos amigas de verão. Porém, em
minhas memórias, lembro que só contei
para ela que eu era uma menina (de
cabelos curtíssimos), e não um menino, no

28
Excertos de textos contidos em Corpo Vocal Engendrado foram
publicados em formato de capítulo de livro, sob o título
“Corporeidade e performatividade vocal – Reflexões sobre voz e
palavra em cena”. In: ALEIXO, Fernando Manuel (org.) Práticas e
Poéticas Vocais – vol. 1. Uberlândia: EDUFU, 2014.
29
“Não se nasce mulher, torna-se.” (Tradução minha).
35

final da estação. Assim, minhas memórias


(reais ou inventadas) me revelam uma de
minhas primeiras representações conscientes
de um papel30. Parece difícil acreditar hoje
que minha coleguinha tivesse me dado
alguma credibilidade, visto que foi minha
mãe quem fez as devidas apresentações. Mas,
para mim, essa era a verdade: eu era
realmente um menino brincando na praia.
Tempos depois, tive uma fase
andrógina, na adolescência. A partir dos 13
anos cresceu meu interesse por blusas e
calças extremamente largas (como as de
meu irmão, mais velho do que eu). Os
cabelos, novamente longos, eram
diariamente imobilizados com gel,
previamente presos em um rabo-de-cavalo
baixo. Eu achava ótima a solução da roupa
larga devido à tamanha
desproporcionalidade do meu corpo em
desenvolvimento: 1,70 m de altura, 48 kg,
peitos e pés grandes, pernas finas. Também
achava genial a existência de um composto
tão eficaz na dominação e controle do
cabelo rebelde, meio liso, meio crespo, e
assimetricamente volumoso. Mas curioso
mesmo era passar pelas ruas – fazendo

30
Ervin Goffman (2005) discorre sobre a representação de papéis
sociais em A representação do eu na vida cotidiana.
36

serviços bancários para minha mãe ou


passeando à noite com meu irmão e sua
namorada: as pessoas me olhavam, e
apresentavam imediatamente uma
interrogação em suas faces. Algumas vozes
sorrateiras, sem regular suas intensidades,
perguntavam: o quê é aquilo? Aquilo era eu.
Meus familiares baixavam a cabeça. Tempos
depois as calças foram extraviadas. Minha
mãe se preocupava com essa coisificação.
37

Como ler esta parte do mapa

Nesta parte do mapa, eu busco pistas pontuais para


refletir sobre possíveis discursos de engendramento de
vocalidades em cena. Refiro-me ao termo engendramento
(gendering) no sentido de atribuir marcas específicas (e
binárias – homem x mulher) à representação de gênero,
inscritas na voz dx atuante.
Para tecer estas problematizações, eu contextualizo o
território da crítica feminista e das Teorias de Gênero. Apoio-
me no pensamento da filósofa feminista Judith Butler (2003),
que aborda o sexo e o gênero como construções culturais
naturalizadas em um sistema androcêntrico e
heteronormativo.
Deste modo, procuro também questionar possíveis
naturalizações da produção vocal a partir de discursos que
abrangem aspectos fisiológicos da voz. Estes discursos
determinariam características ou espaços específicos de
produção vocal a partir da diferença sexual para homens e
mulheres, e para atores e atrizes?
Na cena, tais espaços (construídos também a partir da
identidade de gênero) podem se relacionar, ao meu ver, com
os registros vocais (produção tonal/ de frequências mais
agudas, médias ou graves), com os aspectos tímbricos da voz
(de ressonância) e com a valorização da capacidade retórica
dx atuante (pensamento/razão/logos) em cena, em detrimento
da exploração das sonoridades da voz enquanto
corporeidades afectivas.
Nesta perspectiva, trago o pensamento fundamental
para o meu argumento da filósofa feminista italiana Adriana
Cavarero (2011 e 2012). Cavarero critica a metafísica
logocêntrica que nasce na Grécia Antiga com Platão e
Aristóteles, e ressoa no pensamento iluminista do francês
René Descartes. A filósofa afirma que a perspectiva da
retórica platônica relaciona a linguagem à razão
(pensamento/representações mentais) e à esfera humana
masculina (homens), enquanto a voz em sua materialidade
38

físico-sonora (corporeidade) é tida por estes filósofos como


um elemento menor na comunicação oral, volátil, e
relacionada à esfera humana feminina (mulheres).
Assim, procuro em pesquisas sobre a retórica
relacionada ao teatro algumas pistas para tentar compreender
possíveis relações entre voz e palavra em cena. Apoio-me em
pesquisadorxs da história do teatro que apontam algumas
influências da retórica na formação de atuantes até o século
XX, e oferecem pistas sobre as relações entre voz, palavra e
representação de gênero em cena.
Meu argumento nesta parte do mapa-tese se constrói
no intuito de perceber a vocalidade e o gênero enquanto
acoplamentos31 (inter-relações entre o corpo e o meio), e não
apenas construções estritamente biológicas ou culturais.
Neste sentido, compreendo as pistas de discursos sobre
engendramentos vocais na cena trazidos aqui como reflexos e
influências dos contextos nos quais xs artistas estão inseridxs.
Esta abordagem visa apontar os caminhos da crítica
feminista e da escuta queer que estão presentes nesta
cartografia.

31
Conceito trazido por Maturana e Varela (1998).
39

Sobre feminismos e gêneros

O conceito de gênero, introduzido nos estudos


psicanalíticos por Robert Stoller em 1964, estabeleceu uma
primeira diferenciação entre sexo e gênero. Para o médico
americano, o sexo está relacionado com a formação biológica
do indivíduo (fisiologia, morfologia, sistemas funcionais),
enquanto o gênero se relaciona com a construção
psicossocial do indivíduo a partir de seu sexo (STOLLER,
1968), ou seja, a representação física da identidade sexual.
Após a primeira onda do movimento feminista32, que
se desenvolveu principalmente no Reino Unido e nos Estados
Unidos entre o final do século XVIII e o início do século XX -
com mulheres requerendo igualdade de direitos, como direito
à propriedade e ao voto -, a segunda onda do movimento
feminista ganhou força nas décadas de 1960 e 1970 também
na Europa e nos Estados Unidos da América, disseminando-
se para diversos outros países desde então. Desta vez as
militantes lutavam pela igualdade cultural e política entre
homens e mulheres e pelo fim da discriminação pautada na
diferença sexual.
Assim como a crítica feminista anglo-americana, as
teóricas francesas realizaram neste momento reflexões e
releituras da história construída, registrada e analisada a partir
da perspectiva masculina. A precoce obra da filósofa francesa
Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1949), inspirou
diversas autoras a questionarem a “[...] construção cultural da
mulher como Outro [...]” 33 (THORNHAM, 2001, p. 34), ou
seja, a partir do que não é homem.
A obra do psicanalista francês Jacques Lacan também
é fonte de fundamentação de discurso e crítica das teóricas
feministas francesas (THORNHAM, 2001, p. 40). Lacan afirma
que a criança é inserida na ordem simbólica social a partir da

32
Cf.: GAMBLE, 2001.
33
“[...] cultural construction of woman as Other [...]” (Tradução
minha).
40

linguagem, e que esta media o aprendizado simbólico da


representação de gênero (THORNHAM, 2001, p. 41).
Teóricas como Julia Kristeva (1988), Hèléne Cixous (2000) e
Luce Irigaray (1985) se apoiam em Lacan para refletir sobre
as relações e construções de gênero nas sociedades
patriarcais falocêntricas e binárias.
O filósofo francês Michael Foucault é outra importante
referência na construção da teoria crítica feminista. Suas
pesquisas revisitam práticas sociais históricas como práticas
de poder, controle e subjugação, e construção do sujeito. Os
estudos culturais, assim como os estudos de gênero e a teoria
crítica feminista, apoiam-se no discurso foulcautiano para
problematizar o corpo a partir de noções de sexo, gênero e
etnia.
Segundo a pesquisadora Sarah Gamble (2001), os
discursos normativos que constroem as representações das
identidades sexuais (ou seja, os gêneros) começam a ser
desestabilizados durante a terceira onda34 do movimento
feminista, conhecida também como pós-feminismo, que se
insere em parte da filosofia e teoria critica feminista
desenvolvida a partir da década de 1980. Ela afirma que
diversas pesquisadoras começam a questionar a
universalidade dos gêneros construídos culturalmente e o
binarismo sexual.
Por outro lado, a pesquisadora Tina Chanter (2011)
explica que as múltiplas identidades geradas nos diferentes
contextos geopolíticos passam a ser fatores fundamentais
para se pensar as relações de poder nas sociedades, e as
normatizações e naturalizações de comportamentos e
interações. Chanter diz que etnia e classe social surgem como
categorias importantes na interpretação e reinterpretação
feminista das relações sociais em diferentes contextos sociais
e históricos, aproximando o pós-feminismo das teorias pós-
colonialista e pós-estruturalista. Assim, segundo a autora, o
gênero expande sua conceituação para uma construção
34
Sarah Gamble sugere o termo terceira onda no capítulo
“Postfeminism”, do livro “Feminism and Postfeminism”, organizado
por ela e publicado em 2001.
41

individual de identidade, não atrelada apenas à diferença


sexual e sedimentações culturais de representação de
gênero, mas sim à performatização de subjetividades e
identidade sexual. Esta diferença marca a passagem da
segunda para a terceira onda do movimento feminista, e o
gênero deixa de ser apenas um conceito “[...] branco, burguês
e heterossexista [...]” 35 (CHANTER, 2011, p. 32), passando a
levar em conta também etnia e classe social como
mecanismos políticos na construção de identidades sexuais.
Ao questionar a hegemonia da matriz heterossexual na
cultura euroamericana36, a filósofa feminista americana Judith
Butler desestabiliza as representações normativas de gênero
(homem x mulher), problematizando as próprias
interpretações biológicas de sexo (feminino x masculino).
Butler (2003) convida à discussão sobre a
materialidade do corpo e a performatividade do gênero.

35
A autora faz menção às militantes americanas e europeias da
segunda onda do movimento feminista, na sua maioria mulheres
brancas, de classe média e heterossexuais, que não priorizavam as
questões raciais, de classe social, de diversidade sexual e de
diversidade de gênero em suas demandas políticas, ou seja, de
outras classes sociais, de outras etnias e de outras identidades
sexuais (gêneros) que não as suas.
36
Uma obra de referência para a construção dos argumentos
feministas sobre discriminação e diferença sexual é o livro A origem
da família, da propriedade privada e do Estado, do filósofo alemão
Friedrich Engels. Segundo o autor marxista, ainda na era primitiva
do mundo ocidental a transição do sistema matriarcal e matrilinear
para o sistema patriarcal e patrilinear se dá através da produção.
Toda a família (mulher, filhos e escravos) passa a servir às ordens
do homem, patriarca e detentor do rebanho de gado, que garante a
alimentação do grupo. Engels afirma que na passagem do
casamento grupal ao sindiásmico e, por fim, ao monogâmico, a
mulher perdeu todos os seus direitos na tribo, sendo designada
apenas aos cuidados da casa e dos filhos. Ao homem passa a caber
a preservação e passagem da herança aos outros filhos homens. A
família patriarcal surge no mesmo momento histórico da definição da
propriedade privada, movida por motivos econômicos. (ENGELS,
1991).
42

Utilizando a teoria dos Atos da Fala do inglês John Austin


(1975) com colaboração de John Searle, Butler assume o
conceito de performatividade na criação de práticas
discursivas sobre os corpos.
Citando Austin, a filósofa afirma que “[...] o
performativo é a prática discursiva que promulga ou produz
aquilo que nomeia.” 37 (BUTLER, 1998, p. 283). Deste modo,
discursos são legitimados como práticas, e representações de
gênero são naturalizadas como identidades sexuais. A “[...]
crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas
contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam”
(BUTLER, 2003, p. 22) é um ponto central na obra de Butler.
Ela reafirma o pensamento da teórica feminista
francesa Monique Wittig ao citá-la:

A “nomeação” do sexo é um ato de


dominação e coerção, um ato performativo
institucionalizado que cria e legisla a
realidade social pela exigência de uma
construção discursiva/perceptiva dos
corpos, segundo os princípios da diferença
sexual. Assim, conclui Wittig, “somos
obrigados, em nossos corpos e em nossas
mentes, a corresponder, traço por traço, à
ideia de natureza que foi estabelecida por
nós... ‘homens’ e ‘mulheres’ são categorias
políticas, e não fatos naturais”. (BUTLER,
2003, p. 168).

Tanto Butler quanto Wittig desestabilizam os conceitos


de sexo e gênero em suas obras, afirmando que ambos
podem revelar a construção de discursos performativos (com
potencial de acontecimento) sobre os corpos (matéria). O
gênero pode mesmo ser um conceito obsoleto, delator do
binarismo heteronormativo homem/mulher, e precisa ser
revisto, vista a multiplicidade de identidades sexuais
existentes (lésbica, gay, transexual, transgênero, intersexual,

37
“[...] a performative is that discoursive practice that enacts or
produces that which it names.” (Tradução minha).
43

pansexual, bissexual, etc). Citando Wittig, Butler afirma que a


própria categoria mulher revela uma identidade de gênero
relacional:

A mulher, argumenta ela [Wittig], só existe


como termo que estabiliza e consolida a
relação binária e de oposição ao homem; e
essa relação, diz, é a heterossexualidade.
(BUTLER, 2003, p. 164).

Butler (2003) afirma ainda que a ideia de gênero só é


possível através da repetição dos atos de gênero, requerendo
para tal uma performance repetida e naturalizada, que
identifique o gênero. Os atos de gênero são marcas, gestos,
signos intencionais, culturalmente atribuídos aos gêneros, e
repetidos para serem mantidos como naturais.
Como tais atos de gênero poderiam ser, então,
desestabilizados?
Butler (2003) aponta para práticas de subversão de
gênero, como práticas que misturam as instâncias de
significação corporal (corpo anatômico) e os atos de gênero.
Ao discorrer sobre uma performance drag, Butler explica que:

[...] há três dimensões contingentes na


corporeidade significante: sexo anatômico,
identidade de gênero e performance de
gênero. Se a anatomia do performista já é
distinta de seu gênero, e se os dois se
distinguem do gênero da performance,
então a performance sugere uma
dissonância não só entre sexo e
performance, mas entre sexo e gênero, e
entre gênero e performance. Por mais que
crie uma imagem unificada da “mulher” (ao
que seus críticos se opõem
frequentemente), o travesti também revela
a distinção dos aspectos da experiência do
gênero que são falsamente naturalizados
como uma unidade através da ficção
reguladora da coerência heterossexual. Ao
imitar o gênero, o drag revela
44

implicitamente a estrutura imitativa do


próprio gênero – assim como sua
contingência. (BUTLER, 2003, p. 196).

Segundo Butler (2003), tais performances dissonantes


de gênero desestabilizam a naturalização do próprio gênero, e
sua consequente representação em atos performativos: são
práticas que subvertem o sistema heteronormativo de
identidade sexual e identidade de gênero.
Partilhando pressupostos ideológicos e
epistemológicos semelhantes à Butler, a filósofa feminista
espanhola Beatriz Preciado propõe em seu livro Manifesto
Contra-sexual a “[...] desconstrução sistemática da
naturalização das práticas sociais e do sistema de gênero.” 38
(PRECIADO, 2002, p. 19).
Procurando fugir do binarismo e das oposições –
homem x mulher, masculino x feminino, heterossexualidade x
homossexualidade, etc. – a autora propõe uma teoria do
corpo performativo, e afirma que o sistema sexo/gênero é
uma tecnologia de poder (PRECIADO, 2002, p. 19), que visa
à produção de corpos sexuais:

O gênero não é simplesmente performativo


(ou seja, um efeito das práticas culturais
linguístico-discursivas) como queria Judith
Butler. O gênero é antes de tudo protético,
ou seja, não se dá senão na materialidade
dos corpos. É puramente construído e ao
mesmo tempo inteiramente orgânico.
Escapa das falsas dicotomias entre o
corpo e a alma, a forma e a matéria. O
gênero se assemelha ao vibrador. Porque
os dois ultrapassam a imitação. Sua
plasticidade carnal desestabiliza a
distinção entre o imitado e o imitador, entre
a verdade e a representação da verdade,
entre a referência e o referente, entre a

38
“[...] deconstrucción sistemática de la naturalización de las
prácticas sexuales y del sistema de gênero.” (Tradução minha).
45

natureza e o artifício, entre os órgãos


sexuais e as práticas de sexo. O gênero
pode ser uma tecnologia sofisticada que
39
fabrica corpos sexuais . (PRECIADO,
2002, p. 25).

Além de ser performativo, o gênero, segundo Preciado,


é uma tecnologia de poder que ultrapassa a evocação,
corporificando-se. As categorias de gênero se manteriam,
então, como características que são repetidas
constantemente, a fim de que o referencial não seja
esquecido. Preciado afirma que a escritura do corpo
(PRECIADO, 2002, p. 23) é uma tecnologia que transforma a
história da humanidade na “[...] história da produção –
reprodução sexual, em que certos códigos se naturalizam,
outros caem elípticos e outros são sistematicamente
eliminados ou riscados.” 40
Butler e Preciado são filósofas que desenvolvem seus
pensamentos no campo da Teoria Queer. A Teoria Queer é
um campo de estudos que surge a partir da terceira onda
feminista, e que abrange estudos sobre gêneros não
heteronormativos (gays, lésbicas, transexuais, transgêneros,
etc.), questionando as construções culturais de discursos

39
“El gênero no es simplesmente performativo (es decir, un efecto
de las prácticas culturales lingüístico-discursivas) como habría
querido Judith Butler. El gênero es ante todo prostético, es dicir, no
se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente
construído y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las
falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la
materia. El género se parece al dido. Porque los dos pasan de la
imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo
imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la
verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el
artifício, entre los órganos sexuales y las prácticas de sexo. El
género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica
cuerpos sexuales.” (Tradução minha).
40
“[...] historia de la producción-reproducción sexual, en la que
ciertos códigos se naturalizam, otros quedan elípticos y otros son
sistemáticamente eliminados o tachados.” (Tradução minha).
46

sobre sexo e gênero, e seus reflexos na sociedade e na


política.
Tanto Butler (1998, 2003) quanto Preciado (2002)
concordam na existência da naturalização de códigos
socioculturais como fatores biológicos, nos quais tanto gênero
quanto sexo não seriam fatores dados a priori, mas sim a
posteriori, com objetivos de coerção política. Mas, ao refletir
sobre a multiplicidade de gêneros como múltiplas
representações de identidades sexuais, não poderíamos
pensar em invenção de gêneros?
Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco
Varela (1998), ao cunharem o conceito de autopoiesis para
explicar os processos de autonomia na organização dos seres
vivos em seus processos cognitivos e relacionais, levam em
conta a autoprodução do ser vivo na relação consigo (interna)
e com o meio (externa). Assim como cada ser se autoproduz
individualmente devido as suas peculiaridades internas e
externas, e à percepção e relação com estas, podemos supor
que o gênero também faz parte da autopoiesis do ser.
Essa (re)invenção de si (que pode ser constante,
mutável, instável) se dá pelo acoplamento entre o ser e o
mundo, transformando tanto um quanto o outro nesta relação
(MATURANA; VARELA; 1995):

Tal circularidade [conhecer o conhecer,


conhecer a nós mesmos], tal
encadeamento entre ação e experiência,
tal inseparabilidade entre ser de uma
maneira particular e como o mundo nos
parece ser, indica que todo ato de
conhecer produz um mundo. (MATURANA,
VARELA, 1995, p. 68)

A consequência do acoplamento estrutural é a


adaptação. Adaptamos-nos ao meio do modo como julgamos
melhor, e ao invés de representar o mundo (determinismo
biológico ou cultural), criamos o mundo (autopoiesis). Assim,
nos autoproduzimos e nos auto-organizamos constantemente
nas relações com o meio, sem perder nossa própria
47

autonomia. Neste sentido, podemos entender o gênero como


uma de nossas práticas de acoplamento, por ser relacional e
construído enquanto identidade.
Nossas recriações de nós mesmxs no mundo podem
refletir as operações de reinscrição e recitação (práticas de
repetição e naturalização) de códigos sociais (PRECIADO,
2002, p. 23), ou subvertê-los através de dissonâncias, em
acoplamentos constantes.
E, sendo possível compreender o gênero como
acoplamento, seria possível também compreender a voz
como acoplamento?
A voz é uma produção corporal, e uma produção de
corporeidade. A partir das discussões de Butler (2003) e
Preciado (2002) sobre sexo e gênero, poderíamos pensar que
estas práticas de naturalização de atos de gênero estariam
inscritas também na vocalidade atrelada aos diferentes sexos.
E, do mesmo modo, que práticas subversas de gênero, que
apresentam dissonâncias em suas corporeidades
significantes, compreendam também a produção vocal.
Na peça Pequeno Manual de Inapropriações, prática
desta pesquisa abordada no Corpo vocal queer deste mapa-
tese, eu procurei subverter a representação binária de gênero
em cena estabelecendo relações dissonantes entre minhas
corporeidades significantes (sexo, identidade de gênero e
performance de gênero - de acordo com Butler, 2003).
As dissonâncias que busquei para estas
instabilizações vieram, sobretudo, da presença da voz em
cena, mas também levaram em conta toda a esfera visual do
espetáculo (corpo, figurino, espaço, etc.). Considerei nesta
investigação alguns discursos sobre a produção vocal
atrelada aos diferentes sexos, e procurei problematizá-los
tanto em cena quanto nos itens que vêm na sequência deste
mapa.
Para tentar me aprofundar nesta questão que nos
levará à voz em cena, primeiramente refletirei sobre a
fisiologia da produção vocal e algumas possíveis relações
desta com sexo e gênero.
48

Fisiologia da produção vocal

Meu intuito nestes próximos itens do mapa é


problematizar discursos científicos sobre a produção vocal,
para refletir se estes discursos estariam fixando os espaços
de produção da voz a partir da diferença sexual.
Abordo esta questão por considerar que estes
discursos possam também trazer determinadas visões sobre o
corpo e sobre a produção da voz, visões estas que não
estariam isentas de ideologia. Como Butler (2003) questiona a
própria visão sobre o corpo biológico (sexo) para refletir sobre
a construção cultural de gênero, eu procurarei questionar
estes discursos amplamente reproduzidos nas áreas dos
estudos da voz no Brasil para refletir sobre possíveis
influências destes no treinamento e criação vocal de atuantes
no teatro.
Em Voz: o livro do especialista vol.1 (2008), Mara
Behlau convida fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas
brasileiros de destaque em suas áreas de atuação para
colaborar na escrita do livro, sob sua organização. Behlau é
pesquisadora, fonoaudióloga e fundadora do Curso de
Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz
(CECEV), em São Paulo.
No capítulo Anatomia da laringe e fisiologia da
produção vocal, Mara Behlau, Renata Azevedo e Glaucya
Madazio sintetizam algumas das principais teorias da
produção da voz, e afirmam que

Embora a maior parte dos textos clínicos


na área de voz exponha a oposição entre
as teorias mioelástica-aerodinâmica e
neurocronáxica, há uma série de
contribuições outras que nos fazem refletir
sobre os mecanismos envolvidos na
produção da voz humana, desde a
histórica teoria da corda vibrante até a
recente proposta de aplicação da teoria do
49

caos à laringe. (BEHLAU, AZEVEDO,


MADAZIO, 2008, p. 33).

Segundo as autoras, a maior parte das teorias da


produção vocal foi desenvolvida no decorrer do século XX. Há
ainda outras além destas citadas por elas, mas explicarei
brevemente estas que elas apresentam como principais
teorias da produção vocal.
A Teoria Mioelástica-aerodinâmica, estabelecida pelo
médico holandês Jamwillem Van den Berg (1920-1985), que
segundo as autoras é a mais aceita mundialmente (BEHLAU,
AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 37), traz como pressuposto
que o som é produzido pela elasticidade dos músculos das
pregas vocais e pela pressão de ar subglótico.
Já a Teoria Neurocronáxica, descrita pelo foniatra
francês Raoul Husson (1901-1967), afirma que “os impulsos
nervosos vibram as pregas vocais na mesma frequência do
som.” (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 33).
Por outro lado, a Teoria do Caos, mais recentemente
aplicada à produção vocal, traz como conceito central a noção
de que “a laringe é um sistema caótico, não-linear e altamente
sensível.” (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 33), o
que para as autoras “[...] parece oferecer explicações bastante
interessantes e adequadas sobre as produções vocais
alteradas e aperiódicas, normais ou disfônicas.” (BEHLAU,
AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 37).
Não há uma teoria universalmente aceita sobre a
produção vocal, e que dê conta de todas as explicações
necessárias para a diversidade de produções vocais, tanto
tidas como normais quanto como patológicas (disfonias).
A Teoria Neurocronáxica leva em conta o processo
elétrico envolvido na produção vocal (impulsos nervosos
enviados pelo córtex ao sistema nervoso), além do processo
mecânico (movimentos musculares) que a Teoria Mioelástica-
aerodinâmica postula.
O pesquisador e professor de voz do Departamento de
Artes Cênicas da Universidade de Brasília, César Lignelli
(2011), afirma que a Teoria Neurocronáxica:
50

[...] é a única que aborda especificamente


o estudo da produção de voz em altas
intensidades, uma exigência para o
trabalho do professor e do ator. As demais
teorias citadas têm foco nas patologias
vocais surgidas da produção coloquial e
não profissional da voz e palavra.
(LIGNELLI, 2011, p. 228-229).

Ainda na perspectiva da Teoria Neurocronáxica,


Behlau, Azevedo e Madazio (2008, p. 19) afirmam que “o
controle da função laríngea evoluiu filogeneticamente de um
simples reflexo para uma rede complexa e interdependente,
em diversos níveis do sistema nervoso”, e que “a aquisição de
produção vocal voluntária exigiu o desenvolvimento de uma
série de vias que conectam a musculatura laríngea e as áreas
cerebrais correspondentes” 41. Aqui, a proposição da Teoria
Neurocronáxica de que tanto a energia elétrica quanto a
mecânica estão envolvidas na produção da voz é ratificada
pelas autoras.
Segundo Mara Behlau (2008), François Le Huche e
André Allali (2005) e Sílvia Pinho (2009), a voz é geralmente 42
produzida durante a expiração, com a passagem de ar pela
glote (espaço localizado na região mediana da laringe, que
abriga as pregas vocais) e com a vibração simultânea das
duas pregas vocais.
Os foniatras franceses François Le Huche e André
Allali (2005) afirmam que nas atividades vocais coloquiais, a
inspiração é ativa (gera tensões musculares) e a expiração é

41
Lignelli (2011, p. 225-226) também discorre sobre a evolução
filogenética do aparato vocal. Todavia, como pretendo fazer apenas
uma breve abordagem sobre a produção da voz neste texto, não
discorrerei sobre estes aspectos, ficando ambas as referências
como sugestão de leituras para aprofundamento.
42
Geralmente, não obrigatoriamente, porque esta é tida como a
biomecânica que envolve menor esforço e maior controle na
produção da voz. Todavia, há exceções, como o caso de artistas
que produzem a voz durante a inspiração para a criação de
determinadas vocalidades nas artes da cena e na música.
51

passiva (gera relaxamento muscular). Já na voz projetada43,


segundo xs autorxs, tanto inspiração quanto expiração são
geralmente ativas para possibilitar a produção e o controle
vocal.
Le Huche e Allali (2005) explicam que o movimento
respiratório envolve uma série de estruturas, sendo o
diafragma e os músculos intercostais principalmente
importantes no processo inspiratório, para ampliar a caixa
torácica e permitir a expansão dos pulmões com o acúmulo de
oxigênio. Xs autorxs seguem dizendo que estes músculos44,
juntamente com a musculatura abdominal e pélvica, são
imprescindíveis também para o controle da expiração para a
produção vocal projetada, embora na fonação coloquial eles
fiquem relaxados na expiração e tenham um menor
acionamento.
Mara Behlau e o otorrinolaringologista Paulo Pontes
(2009) explicam que as pregas vocais surgiram em nossa
espécie com a função principal de proteger os pulmões. Elas
são duas membranas constituídas por músculos e mucosa,
horizontalmente acomodadas na glote, e que ficam relaxadas

43
Contexto de produção vocal no qual o emissor procura agir sobre
outras pessoas, como em palestras, apresentações de canto e
teatro (LE HUCHE, ALLALI, 2005).
44
Em diversas técnicas vocais para o canto e para o teatro, e
também em algumas pesquisas da fonoaudiologia, utilizam-se os
termos apoio respiratório ou apoio vocal para fazer menção à força
exercida pelos músculos da respiração no controle da pressão e da
saída do ar. Há várias técnicas de apoio vocal (ou apoio
respiratório): apoio abdominal, apoio costodiafragmático, apoio
costodiafragmático-abdominal, apoio pélvico, etc. Muitas destas
técnicas de respiração advêm do canto e da fonoaudiologia, mas a
respiração e a força que partem do centro de gravidade do corpo
também são encontradas em práticas das artes marciais, da
educação somática e do teatro (Cf.: FINARDI, 2014). Em meu
trabalho como professora de voz para atores, procuro despertar a
consciência muscular do apoio vocal nos alunos, e realizar
exercícios focados em diferentes tipos de apoio, para que cada
pessoa possa descobrir o processo mais orgânico e funcional para
si. Cf.: MARTINS, 2004; PACHECO, BAÊ, 2010.
52

(sem tensão) e abertas para a passagem do ar inspirado ou


expirado sem fonação (BEHLAU, PONTES, 2009). De acordo
com Behlau e Pontes (2009), as pregas vocais selam a
passagem de ar no caso de substâncias tóxicas presentes no
ar, e tentam expelir alimentos e ou outras substâncias que por
ventura possam ter passado pelo canal da laringe através da
tosse.
Todavia, xs autorxs seguem explicando que na
produção da voz, as pregas se tensionam para diminuir o
fluxo de ar e gerar a vibração original da voz, conhecida como
buzz laríngeo (BEHLAU, PONTES, 2009, p. 01). Xs autorxs
explicam que esta protovoz possui intensidade débil,
necessitando de amplificação e articulação posteriores.
Baseada nas pesquisas de Sílvia Pinho (1998), Willard
Zemlin (2000), e Behlau, Azevedo e Madazio (2008), a
pesquisadora e professora de voz do curso de Bacharelado
em Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina,
Janaína Martins (2008, p. 51), afirma que

[...] a espessura e a extensão das pregas


vocais determinam a quantidade de massa
muscular em vibração, o que determina o
seu movimento oscilatório e
consequentemente os tons que serão
gerados. O número de ciclos vibratórios
produzidos pelas pregas vocais em um
dado segundo é o que gerará a frequência
fundamental.

Behlau e Pontes (2009) explicam que a frequência


fundamental é medida em hertz (Hz), e diz respeito à
quantidade de vibrações por segundo das pregas vocais.
Porém, nenhum som é puro. O pesquisador e músico
brasileiro José Miguel Wisnik (2011) afirma que todo som
possui uma frequência fundamental e seus harmônicos.
Wisnik (2011) diz que os harmônicos são frequências mais
agudas que a fundamental, e possuem uma relação
matemática com a mesma, sendo seus múltiplos. Os
53

harmônicos são os formadores timbrísticos do som (WISNIK,


2011), e consequentemente, da voz.
Quanto mais alongadas, estreitas e/ou vibrando
rapidamente estiverem as pregas vocais, mais aguda será a
frequência fundamental, e quanto mais encurtadas, espessas
e/ou vibrando lentamente estiverem as pregas vocais, mais
grave será a frequência fundamental (BEHLAU, AZEVEDO,
MADAZIO, 2008).
Após produzir o som vocal original precisamos de sua
consequente amplificação. A amplificação acontece nos
ressonadores, que constam de espaços vazios do corpo, nos
quais o som se propaga (BEHLAU, PONTES, 2009).
Utilizando pesquisas das fonoaudiólogas Mara Behlau
e Sílvia Pinho, Martins (2008, p. 53) explica o processo de
ressonância da voz:

No fluxo do som por entre as cavidades do


corpo, determinadas frequências
vibratórias serão absorvidas de acordo
com o tamanho, o material e a espessura
destas. Por exemplo, as cavidades do
corpo situadas acima das pregas vocais,
tais quais: a laringe, a faringe, a cavidade
oral, a cavidade nasal e os seios
paranasais, são regiões supraglóticas
simpáticas às frequências vibratórias de
tom mais agudo, devido ao seu tamanho
menor, onde cabem ondas de menor
comprimento, ou seja, as frequências mais
agudas. Já as cavidades situadas abaixo
das pregas vocais, tais como traqueia e
pulmões, são as regiões subglóticas, que,
por possuírem um tamanho maior,
ressoarão as ondas sonoras de maior
comprimento, ou seja, as frequências
vibratórias mais graves.

Martins (2008) explica ainda que os principais


ressonadores são as cavidades orofaciais (cavidade oral,
54

cavidade nasal, seios paranasais), a laringe, a faringe, a


traqueia e toda a árvore pulmonar.
Behlau e Pontes (2009) esclarecem que após ser
gerada e amplificada (mas em um movimento quase
concomitante), a voz é modulada pelos articuladores da fala45.
São os articuladores da fala também, segundo xs autorxs, os
produtores da segunda fonte sonora da voz, a fonte friccional,
que consta de sons gerados pela fricção do ar nos
articuladores. A primeira fonte sonora da voz é a fonte glótica,
que é a voz em si, o som original gerado pela vibração das
pregas vocais (BEHLAU, PONTES, 2009).
Assim, podemos resumir simplificadamente a produção
da voz através das seguintes etapas indicadas por Behlau e
Pontes (2009, p. 09):

1) Para emitirmos a voz e a fala, nosso


cérebro dispara o comando central, que
chega a nossa laringe e aos articuladores
dos sons da fala através de nervos
específicos;
2) Inicialmente, precisamos inspirar ar, ou
seja, colocar o ar para dentro dos pulmões,
o que requer que as pregas vocais estejam
afastadas;
3) Ao emitirmos a voz, as pregas vocais
aproximam-se entre si com tensão
adequada, controlando e bloqueando a
saída de ar dos pulmões;
4) O ar coloca em vibração as pregas
vocais, que realizam ciclos vibratórios que
se repetem rapidamente. Quanto mais

45
Os livros de fisiologia consultados, indicados na nota de rodapé
anterior, relacionam especificamente os articuladores à fala, ou seja,
à linguagem verbal oral. Destaco esta questão, pois acredito ser um
relevante aspecto da visão da voz atrelada apenas à produção de
linguagem na própria ciência, visto que qualquer onomatopeia ou
melisma, por exemplo, necessita de uma articulação específica,
mesmo não se configurando como palavra.
55

agudo o som, mais rapidamente esses


ciclos se repetem;
5) As caixas de ressonância,
principalmente a boca e a faringe, devem
estar ajustadas para facilitar e amplificar a
saída do som pela boca;
6) Dependendo do som da fala a ser
emitido, os articuladores, ou seja, os
lábios, a língua, a mandíbula e os dentes,
devem se posicionar de modo adequado.

Após esta breve contextualização sobre a fisiologia da


produção vocal, surgem-nos as seguintes perguntas: de onde
vêm então as diferenças sonoras das vozes humanas? E
estas diferenças seriam únicas para cada pessoa?
Procurarei pistas e reflexões para nos guiar nos
caminhos indicados por estas perguntas no próximo item
deste mapa-tese.

A unicidade da voz e a desestabilização de gênero

Adriana Cavarero em Vozes Plurais: filosofia da


expressão vocal (2011) critica a desvocalização das
metafísicas platônica e cartesiana, pautadas no logos (razão)
e no cogito (pensamento), ou seja, em uma supremacia do
pensamento escrito (e quiçá mudo) e a generalização e
universalização do ser humano na metafísica, criando uma
homogeneização do ser.
A filósofa relaciona a unicidade vocal à singularidade
do ser, à “[...] particularidade de uma existência encarnada,
que se faz ouvir na voz.” (CAVARERO, 2011, p. 230). Ou
seja, para Cavarero (2011), cada ser teria uma voz única,
reveladora de sua singularidade existencial.
Cavarero (2011, p. 205) afirma ainda “[...] que cada ser
humano tem na unicidade da voz uma autorrevelação sonora
que transpõe o registro linguístico da significação.”.
56

A filósofa baseia seu argumento na relacionalidade da


voz, e na compreensão de logos como ligação ou religação,
do grego legein. Para Cavarero, sendo a voz relacional, por
ligar os corpos em comunicação, ela revelaria a singularidade
de cada sujeito, formada a partir de sua história de relações
com outros sujeitos.
Em minha visão, a singularidade da voz trazida por
Cavarero (2011) pode se dar no acoplamento entre o ser e o
mundo, evidenciando suas potencialidades de presença, seus
desejos de vocalização e seus estados de ser, e não a sua
imutabilidade.
É fato que cada pessoa apresenta determinadas
características vocais em suas emissões, características que
muitas vezes nos permitem reconhecê-la sem vê-la, apenas
ouvindo-a. Estas características formam a qualidade vocal (ou
vocalidade) da emissão.
Behlau e Ziemer (1988, p. 74) explicam que

Qualidade vocal é o termo atualmente


empregado para designar o conjunto de
características que identificam uma voz
humana. Ela se relaciona à composição
dos harmônicos da onda sonora, à
impressão total criada por uma voz. Era
anteriormente chamada de timbre, mas
hoje este vocábulo está tendo seu uso
limitado apenas aos instrumentos
musicais.

Entretanto, abordarei aqui uma diferenciação entre


timbre e qualidade vocal (ou vocalidade).
De acordo com as fundamentações do item anterior,
compreendo o timbre como o foco de ressonância da voz,
visto que este é o aspecto estético vocal sobre o qual a sua
modulação atua mais notadamente.
Já a qualidade vocal, segundo Behlau e Ziemer (1988),
englobaria uma série de características passíveis de leitura.
O timbre, a altura (ou frequência), a duração e a
57

intensidade (volume) são os parâmetros básicos46 do som


(todo som tem estes elementos em alguma modulação), e por
consequência, da voz.
Porém, aqui optei por abordar não apenas alguns
parâmetros, mas também outros elementos envolvidos na
produção da qualidade vocal (e citados por Behlau e Ziemer,
1988), que julgo importantes para a problematização do
trabalho vocal em cena. Farei uma rápida explicação destes
elementos da vocalidade, apresentando pistas para
problematizar a unicidade da voz enquanto autopoiesis
(acoplamentos contínuos entre o ser e o meio).
Comecemos com o tom da voz. Ele é um dos primeiros
elementos que relacionamos com o sexo dx atuante. A altura
vocal, ou altura tonal, diz respeito à frequência de vibração
das pregas vocais, que gerará a frequência fundamental da
emissão. Ela pode ser mais grave, média ou aguda. Altura e
frequência são sinônimos. Já nota musical diz respeito a uma
determinada frequência, selecionada como musical dentro de
um contexto específico (uma nota musical utilizada na música
árabe pode não ser considerada uma nota musical para nós,
brasileirxs, devido aos diferentes contextos de sistematização
e produção musical), e tom pode ser sinônimo de nota, ou
significar uma diferença de alturas entre notas ou ainda uma
escala dada a partir de determinada nota (o tom da música).

46
Há muitas divergências na definição dos parâmetros de produção
da voz. Lignelli (2011) atribui tanto ao som quanto à voz os mesmos
parâmetros sonoros: silêncio, ruído, frequência, timbre, intensidade,
ritmo, reverberação, contorno e direcionalidade. A reverberação diz
respeito à propagação e ressonância do som no ambiente; o
contorno à curva melódica, que na voz costuma-se chamar de
entonação; e a direcionalidade refere-se ao ponto de emissão do
som, ponto no qual se localiza a fonte sonora, e seu percurso no
espaço. Já Gayotto (2009) classifica os elementos formantes da voz
em recursos, primários (respiração, intensidade, frequência,
ressonância e articulação) e secundários (projeção, entonação,
pausas, velocidade, fluência). Outrxs autorxs também farão uma
distinção entre parâmetros sonoros e elementos prosódicos (ou
expressivos).
58

A média da frequência fundamental da voz falada


(coloquialmente) do homem brasileiro é de 113 hz (113
oscilações/vibrações das pregas vocais por segundo),
enquanto da voz da mulher é de 205 hz (BEHLAU, PONTES,
2009). Todavia, essa média é resultado de uma estatística,
não representando a realidade de todos os habitantes deste
país continental em suas ontogêneses (que envolvem
diversos acoplamentos: clima, geografia, etnias, hábitos, etc.)
Basta ouvirmos umx gaúchx e umx pernambucanx para
percebermos as diferenças nas frequências fundamentais de
suas vozes, ou compararmos diferentes pessoas de um
mesmo lugar. Ou seja, devido à imensa influência de todas
essas variáveis culturais, algumas mulheres terão a voz mais
grave do que alguns homens, e vice-versa.
Do mesmo modo, a frequência (assim como todos os
parâmetros do som e elementos relacionados à qualidade
vocal) pode ser alterada propositalmente na produção vocal
(coloquial ou profissional). Nas artes da cena e na música,
esta modulação é essencial para a ampliação das
possibilidades de criação. No cotidiano, ela acontece em
menor grau, nas situações de comunicação (modulação
prosódicas, timbrísticas, etc.), e em maior grau nas situações
de terapia vocal.
Por exemplo: quando a muda vocal47 não acontece por
completo ou apresenta um atraso, alguns tipos de tratamentos
podem ser sugeridos por fonoaudiólogos para que a mudança
da voz se complete. Regina Maria Freire (1988) descreve um
tratamento que ela utilizou com um paciente de 56 anos. Para
corrigir a voz infantilizada, ela demonstrou ao paciente

47
A muda vocal na puberdade ocasiona o abaixamento da laringe e
o crescimento das pregas vocais. Pelo maior aumento hormonal (de
testosterona) nos meninos, a tendência é de que as pregas vocais
masculinas aumentem em até 01 cm, enquanto as pregas vocais
das meninas aumentam em média 04 mm no máximo. Isso faz com
que a frequência fundamental da voz masculina diminua geralmente
em uma oitava, enquanto a voz feminina diminui apenas de 02 a 04
semitons da voz infantil (BEHLAU, AZEVEDO, PONTES, 2008, p.
60).
59

possibilidades de modulação tonal, e realizou exercícios de


controle de emissão (com foco em frequências mais graves).
Após 14 sessões o paciente encontrou a sua nova voz, uma
voz que para ele soava normal, ou seja, adequada aos
padrões de escuta de seu grupo social e seu consequente
desejo de emissão para melhor aceitação neste grupo.
Behlau, Azevedo e Pontes (2008, p. 64) afirmam que

[...] o conceito de voz normal e voz


alterada veio se modificando ao longo do
tempo, sendo amplamente influenciado
pelo meio a que se pertence e pela cultura
em que se vive.

A voz alterada seria uma voz disfônica, com distúrbio


de comunicação oral. A alteração pode ser dada por uma
série de fatores, desde psicológicos a anatomofuncionais.
Xs autorxs seguem destacando que:

O critério que separa as vozes em normais


e não normais é determinado pelos
ouvintes, sendo que as desordens vocais
são culturalmente baseadas e socialmente
determinadas. (BEHLAU, AZEVEDO,
PONTES, 2008, p. 65).

Anne Karpf (2008) também faz uma análise sociológica


da produção vocal e da relação da voz com a diferença
sexual. Ela explica que nem todas as diferenças entre vozes
femininas e masculinas podem ser explicadas pelas
alterações da puberdade: “cada cultura estabelece para os
dois sexos normas e convenções contrastantes que vão além
das diferenças biológicas.” 48 (KARPF, 2008, p. 261).
A partir destas perspectivas poderíamos considerar
que a vocalidade, na análise da frequência fundamental da

48
‘‘Chaque culture établit pour les deux sexes des normes et des
conventions constrastées qui vont bien au-delà des différences
biologiques.’’ (Tradução minha).
60

emissão, é formada por acoplamentos contínuos entre o


sujeito e o meio.
Também no território das frequências encontra-se a
extensão vocal. Ela “refere-se ao limite de sons emitidos por
uma voz, do grave ao agudo, mesmo além dos limites naturais
de sua tessitura.” (MARSOLA, BAÊ, 2000, P. 33). Behlau e
Ziemer (1988, p. 79) complementam a definição de extensão
vocal como o “[...] número de notas que um indivíduo pode
emitir, da mais grave a mais aguda.”
Todavia, o termo nota faz menção direta às notas
musicais, que por sua vez são frequências culturalmente
escolhidas, de acordo com o modo musical e a escala em
questão (modo tonal, modal ou serial, escala cromática ou
diatônica, etc.). Então, será que utilizar esta nomenclatura
(nota) para a produção vocal cênica não limitaria o
aprendizado da escuta para outras possibilidades de
frequências/alturas (que podem ser consideradas
desafinadas, se não pertencem ao paradigma em questão)?
Outra questão importante sobre a extensão vocal é o
trabalho sobre a tessitura vocal do indivíduo, que definiria o
alcance de frequências com controle e estabilidade.
As musicistas Mônica Barsola e Tutti Baê afirmam no
livro Canto: uma expressão (2000) que a tessitura vocal
encontra-se dentro da extensão vocal. Elas apresentam no
livro os seis naipes (tipos) principais de vozes femininas e
masculinas, que exigem tessituras vocais específicas. As
vozes de mulheres são as mais agudas, divididas num
glissando descendente49 como soprano (muito aguda), meio-
soprano (médio-aguda) e contralto (médio-grave). Já as
masculinas são classificadas como tenor (médio-aguda),
barítono (médio-grave) e baixo (muito grave).
Esta é uma questão para se problematizar no
treinamento de atuantes, pois a classificação vocal por gênero

49
Significa deslizando. Termo utilizado na música para indicar um
movimento de escorregar continuamente entre frequências. O
glissando descendente vai de uma frequência mais aguda para uma
mais grave, e o ascendente de uma mais grave para uma mais
aguda.
61

pode limitar tanto a noção de treinamento vocal quanto de


escuta (o que eu pretendo ouvir, do outro e de mim mesmx)
para x artista da cena. Não sou contrária ao treinamento do
canto popular ou lírico no trabalho com e sobre 50 a tessitura,
pontuo apenas que este é um treinamento em geral
hegemônico, que perpetua um padrão de afinação, ou seja,
de escuta e reprodução de sons a partir do binarismo homem-
mulher.
Estar afinadx é conseguir reproduzir uma dada
proposta sonora. Segundo Murray Schafer (2001), a afinação
diz mais respeito à escuta do que à reprodução de escalas
convencionais. Então, uma escuta expandida, intercultural,
investigativa (para remontar aos processos de
experimentação da performance, da música e do teatro
contemporâneos) pode possibilitar uma expansão do
repertório vocal para x artista da cena?
Penso que, na medida em que se amplia o repertório
de escuta dx atuante, possa haver uma expansão das
possibilidades de relação entre voz e gênero na produção
vocal em cena, visto que a voz também se forma nos
acoplamentos entre o ser e o mundo (e na escuta do mundo).
Um exemplo pontual sobre esta questão é o
treinamento para uma voz estendida51, ou voz de 8 oitavas, de
Alfred Wolfson e Roy Hart52. Com Wolfson e Hart, o

50
O treinamento vocal no canto também tem como objetivo expandir
a tessitura vocal, ou seja, o alcance de notas mais agudas e mais
graves.
51
O termo é utilizado para designar usos não convencionais da voz
na música ocidental, como um contraponto ao bel canto. A inclusão
do ruído na música a partir do início do século XX, a exploração de
novas sonoridades e sistemas musicais (como a música
dodecafônica em contraponto à música tonal), a presença da voz
falada, sussurrada, gritada, da glossolalia (espécie de grammelot – o
termo provém das áreas da religião e da saúde), da desconstrução
semântica da linguagem, de qualidades vocais não convencionais,
etc., estão neste território. Cf.: VALENTE, 1999.
52
Segundo Laura Backes (2010), o alemão judeu Alfred Wolfson
(1896-1962), após presenciar os horrores da Primeira Guerra
Mundial, na qual serviu como maqueiro, encontra na voz as
62

treinamento vocal levava em conta os aspectos pessoais dx


artista (contexto orgânico-funcional-histórico-cultural-
emocional), mas sem enquadrá-lx em um naipe a priori, ou
seja, sem trabalhar a partir da diferença sexual.
Nesta breve reflexão sobre os tons das vozes, tentei
problematizar algumas noções naturalizadas sobre a
produção vocal, principalmente a partir das frequências das
vozes (ouvidas e emitidas). Diferentes culturas apresentam
diferentes qualidades vocais, tanto pelo aspecto fonético da
língua quanto pelas características da musicalidade e da
prosódia. Os tipos vocais podem ser resultados de um tipo
específico de escuta, e a padronização dos tipos vocais

possibilidades de se livrar de seus traumas emocionais. A autora


explica que chocado com as vozes agonizantes dos flagelos da
guerra e inspirado pela psicanálise, principalmente por Carl Jung, e
não encontrando um professor de canto que pudesse auxiliá-lo a
desbloquear-se emocionalmente através da produção de sons
vocais extremos, Wolfson inicia seu próprio treinamento, procurando
produzir alturas extremas, tanto no grave quanto no agudo, e
qualidades diferentes da sua voz (que em muito lhe lembravam dos
sons quase inumanos que ouvira no combate). Backes conta que
Wolfson passa a trabalhar como professor de canto ainda na
Alemanha, e depois na Inglaterra, onde se refugia durante a
Segunda Guerra Mundial (na qual também serviu, mas no exército
inglês, como combatente dos nazistas). A autora segue dizendo que
ele estimulava seus alunos a alcançarem tanto frequências agudas
quanto graves, desterritorializando a produção vocal tradicional do
canto atrelada ao sexo da pessoa. Backes explica que Roy Hart
(1926-1975), jovem ator sul-africano residente na Inglaterra, passa a
fazer aulas com Wolfson, e consegue desenvolver 8 oitavas em sua
extensão vocal, basicamente passando por todos os principais
naipes do canto. A autora segue dizendo que Hart se envolve com
música contemporânea e teatro, aprofundando suas pesquisas
vocais no Roy Hart Theatre, companhia de teatro que fundou em
1967. A autora explica que após sua prematura morte, o ator
Enrique Pardo e a atriz Linda Wise, integrantes da companhia,
fundaram o grupo Panthéâtre, ainda atuante e com sede na França.
Backes informa que juntamente com outros colaboradores, eles
também mantêm o Centre Artistique International Roy Hart, na
França. Cf.: BACKES, 2010.
63

também pode ser resultado de uma padronização da própria


escuta, e não uma regra para o cotidiano ou para a cena. Nós
criamos e recriamos nossas vozes através de acoplamentos,
treinamentos diários, direcionados (na arte) ou espontâneos
(no cotidiano).
Assim, podemos compreender a unicidade da voz não
como imutabilidade, mas como autopoiesis, resultante dos
acoplamentos que revelam desejos, estados de presença.
Minha voz hoje está muito mais grave do que estava
há anos atrás. No meu cotidiano de professora, percebi que
para mim este registro mais grave espacializa melhor a minha
voz, expande meus harmônicos e me ocasiona menos
desgaste. E me agrada. Já em cena, o trânsito entre registros
é muito grande. E também me agrada, pois em cada nova
criação eu tenho novas descobertas. Minha unicidade ressoa
em potencialidades, possibilidades, frequências, ritmos,
intensidades, timbres e relações.
Então, o que é natural na qualidade vocal? Tendo em
vista a autopoiesis humana, tudo e nada. Nosso corpo é um
acoplamento entre ser e meio. A própria geografia do local
onde se vive ou a alimentação influenciam na formação do
corpo: tamanho das estruturas ósseas (e das cavidades de
ressonância), tamanho da musculatura, etc.
A qualidade vocal é um estado da voz, no cotidiano e
nas artes. Nas artes da cena, o termo mais utilizado para
designar este estado é vocalidade. Sara Lopes (2004), ex-
professora de voz da UNICAMP, define vocalidade como

[...] o uso imediato de uma voz que pede


por uma expressão que somente se
concretiza na copresença
intérprete/espectador: ela só se realiza no
encontro entre aquilo que o intérprete
exterioriza com o interior do ouvinte. O
corpo do intérprete está impresso nessa
expressão, assim como o corpo do
ouvinte, chamado a estar presente e a
reagir ao estímulo. Sem esse encontro a
essência da atuação não se realiza,
64

permanecendo em potência, mas não em


ato. (LOPES, 2004, p. 13).

Lopes parte do conceito de vocalidade definido pelo


filósofo da oralidade, Paul Zumthor. O medievalista suíço
empreende uma longa pesquisa sobre a voz nas artes da
oralidade medieval, focando principalmente nas relações entre
voz, palavra e performance.
Sobre o conceito de vocalidade, Zumthor (1993, p. 21),
que explica:

Vocalidade é a historicidade de uma voz:


seu uso. Uma longa tradição de
pensamento, é verdade, considera e
valoriza a voz como portadora da
linguagem, já que na voz e pela voz se
articulam as sonoridades significantes.
Não obstante, o que deve chamar mais a
atenção é a importante função da voz, da
qual a palavra constitui a manifestação
mais evidente, mas não a única nem a
mais vital: em suma, o exercício de seu
poder fisiológico, sua capacidade de
produzir a fonia e de organizar a
substância. Essa phonê não se prende a
um sentido de maneira imediata: só
procura seu lugar.

Assim, podemos entender a vocalidade como um ato


vocal performativo, uma alteração da materialidade corporal
da voz em uma emissão, resultado de uma relação contextual
entre sujeito e meio. É claro que Lopes direciona este
conceito ao trabalho vocal criativo dx artista da cena, que
possui consciência e treinamento específico para esta
modulação, mas opto por redimensionar o termo também para
as qualidades vocais do cotidiano, que por diversas vezes são
fontes de inspiração para a criação em cena.
Lignelli (2011, p. 233) afirma que, sem levar em conta
as fontes sonoras eletrônicas, a voz humana é a mais versátil
de todas as fontes sonoras. Mas, mesmo sendo a vocalidade
65

tão flexível e passível de modulação consciente por parte da


pessoa emissora em arte, seria ela ainda espontânea e
reveladora de camadas psicossociais únicas do emissor no
cotidiano? O que forma esta unicidade? Como ela é forjada?
Behlau e Ziemer (1988, p. 71) afirmam que:

A voz é uma das extensões mais fortes de


nossa personalidade e se aguçarmos
nossos sentidos reconheceremos que esta
extensão é mais profunda em sua
dimensão não verbal (altura, intensidade,
qualidade vocal, etc.) do que verbal
(estrutura linguística).

Porém, embora revele características


anatomofuncionais, a vocalidade também revela
características comportamentais e culturais dx emissorx. Xs
autorxs seguem complementando esta informação ao dizerem
que:

[...] em todas as situações de emissão


podemos ter vários níveis de análise, de
leitura vocal: leitura dos parâmetros físicos,
psicológicos, sociais, culturais e
educacionais de um determinado falante.
(BEHLAU, ZIEMER, 1988, p. 71).

Esta dimensão de análise utilizada pelxs autorxs é


chamada de psicodinâmica vocal, e leva em conta três
dimensões: a biológica, a psicológica e a sócio-educacional.
A dimensão biológica diz respeito à corporeidade, são
“[...] características anatômicas e fisiológicas do indivíduo,
como sexo, idade, saúde geral, estrutura física global e
específica dos órgãos que compõem o aparelho fonador.”
(BEHLAU, ZIEMER, 1988, p. 74). Porém, tais características
biológicas citadas pelxs autorxs podem ser decorrentes de
práticas culturais e sociais, como utilização de determinadas
roupas, posturas, movimentos, etc., o que implica um
entendimento dos processos de acoplamento na formação (ad
infinitum) do ser.
66

A dimensão psicológica reflete as emoções e dados de


personalidade dx emissorx. Porém, diferentes pessoas
expressam emoções de diferentes modos.
E partindo deste pressuposto chegamos também à
camada sócio-educacional da voz, na qual aspectos dos
grupos específicos de convívio também constroem a
vocalidade, principalmente em seus elementos prosódicos
(articulação, entonação, acento, etc.). Os sotaques também
são um exemplo desta camada.
Assim, a vocalidade revela várias dimensões de uma
pessoa em construção constante na interação entre seu corpo
vocal e o mundo. Poderíamos considerar que neste contexto
operam práticas de recitação e reinscrição em suas
territorializações de vozes e gêneros.
Na preparação vocal para a cena, há diversas
abordagens que revelam diferentes ideologias e ideais de
vocalidade. Davini (2007, p. 51) afirma que desde a
Revolução Industrial, mas mais efetivamente após o início do
século XX, o paradigma científico das ciências naturais se
dissemina como único meio genuíno de produção de
conhecimento. Esta postura afetaria o campo das artes, e
geraria uma demanda por “rigor científico”, que abalaria a
legitimidade de práticas mais holísticas.
A aproximação entre fisiologia, psicologia e sociologia
(como a própria psicodinâmica vocal formulada por Behlau)
redimensiona a interpretação da produção vocal, e os
discursos de preparação vocal para a cena.
Davini, no livro Cartografías de la voz en el teatro
contemporáneo: el caso de Buenos Aires a fines del siglo XX,
compara o macromapa da preparação vocal inglesa com o
micromapa da preparação vocal argentina no período. A
autora desenvolve um amplo estudo, analisando teorias e
práticas sobre a produção vocal para cena, e suas
intersecções com o contexto histórico, cultural, social,
científico e tecnológico a partir dos quais tais discursos
emergiram. Ela critica publicações e práticas de preparação
vocal para a cena que ora mistificam ora reduzem a dimensão
67

do fenômeno vocal, gerando discursos normativos e


totalizadores.
Todavia, Davini não questiona a diferença sexual como
possível paradigma para os discursos, técnicas e poéticas da
voz para a cena, nem menciona a relação entre vocalidade e
representação de gênero no palco. E neste sentido, esta
cartografia procura pistas para problematizar justamente esta
questão.
Nos estudos queer, Preciado (2002, p. 18-19)
relaciona os sujeitos contrassexuais à nomenclatura de
sujeitos falantes, pessoas que devem renunciar ao binarismo
de gênero representado pela relação homem x mulher e à
naturalização das práticas sexuais, assumindo-se como
sujeitos de práticas significantes (politicamente ativos em suas
escolhas de ser).
Neste contexto, podemos compreender que a filósofa
faz uma invocação da singularidade do corpo vocal: o sujeito
falante, dotado de palavra e voz, desconstrói a naturalização
de seu futuro pré-determinado pelo sexo e pelo sistema de
gênero, pois ele se recria constantemente em suas relações,
assumindo o corpo vocal como uma atitude política em suas
possibilidades de ser.
O corpo vocal é material que antecede e ultrapassa
tanto a palavra quanto o sujeito socialmente construído,
podendo transformá-los, sendo também performativo no
âmbito da recepção e dos desdobramentos sociais
(principalmente ideológicos) que a recepção em arte pode
promover.
A pesquisadora e professora de interpretação e voz da
UFBA, Meran Vargens, afirma que:

Voz é resultado. Isto significa que a


expressão vocal do indivíduo está
diretamente ligada a circunstancias como:
com quem fala, a educação que teve, a
classe social e cultural a que pertence, a
profissão que escolheu e exerce, quais
foram as vozes que o influenciaram na
infância e através das quais aprendeu a
68

falar; além do local onde está, sua


constituição física, emocional, psicológica,
universo imaginário, entre outros. E se voz
é resultado na vida, na construção da
personagem assim também será. Portanto
este princípio torna-se uma chave para o
exercício vocal do ator e a exploração de
sua expressividade. (VARGENS, 2005, p.
72-73).

Voz é resultado de criação em cena, e de


acoplamentos contínuos no cotidiano, ou seja, nossas
constantes recriações nas interações com o meio. A voz
revela a unicidade de um corpo vocal singular, mas em
constante transformação. A vocalidade é, assim, parte de
nossa autopoiesis.

Nos domínios da oratória

Nos dois itens anteriores desta parte do mapa,


apresentei considerações sobre a produção vocal,
problematizei possíveis engendramentos nestes discursos e
abordei a vocalidade enquanto autopoiesis.
Neste item, pretendo apresentar novas pistas para
tecer reflexões, agora sobre relações entre voz e palavra em
cena.
Minhas reflexões partem da premissa de Cavarero
(2011) de uma grande valorização do discurso (logos = razão)
na retórica platônica e cartesiana, em detrimento da
corporeidade da voz.
A pesquisa de Cavarero aponta espaços de
engendramento de vocalidade nestas retóricas. Outras
pesquisadoras, como Silvia Davini (2007) e Jacqueline Martin
(1991), apontam a grande influência da retórica na formação
de atuantes europeus, não só na Grécia Antiga, mas até a
Modernidade.
69

Neste sentido, procurarei através destas pistas


pontuais problematizar um possível engendramento duplo:
entre vocalidade e gênero (vocalidade dada a partir da
diferença sexual) e entre vocalidade e palavra (uma
vocalidade específica para um discurso específico, que pode
revelar questões de gênero).
É importante lembrar que há vários estudos sobre a
retórica e suas mais variadas correntes e manifestações. Em
diversas áreas do conhecimento, há uma profusão de
discursos e problematizações destas práticas, tanto na
antiguidade quanto na atualidade53. Não pretendo aqui
apresentar um pensamento hegemônico ou generalizante
sobre as práticas da retórica, apenas abordar pistas que
possam apontar possíveis influências da retórica platônica e
cartesiana no engendramento de vocalidades em cena.
Paul Zumthor em Introdução à poesia oral diferencia
voz de palavra. O autor conceitua a palavra como "[...] a
linguagem vocalizada, realizada fonicamente na emissão da
voz" (ZUMTHOR, 2009, p. 09). Zumthor diz também que a voz
antecede a palavra, pois para o filósofo da oralidade a "[...]
voz é uma coisa: descrevem-se suas qualidades materiais, o
tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro... e a cada uma
delas o costume liga um valor simbólico." (ZUMTHOR, 2009,
p. 11).
Zumthor afirma ainda que nossa cultura
(costumes/hábitos) tende a codificar a vocalidade. Deste
modo, cada manifestação artística, escola ou estética busca
seu lugar comum da voz, pautado em seus padrões de
vocalidade poética (artística).
O pesquisador francês Jean-Jacques Roubine aponta
que no teatro ocidental, "desde muito cedo, ao que parece,
uma técnica vocal (e gestual) apropriada aos diversos
gêneros foi elaborada." (ROUBINE, 2011, p. 13). Roubine
refere-se aqui a uma técnica vocal para cada gênero ou estilo
teatral, visto que ele reconhece que a tragédia grega, por

53
Verificar, por exemplo, GUNDERSON, 2009 e LUCAITES;
CONDIT; CAUDILL, 1999.
70

exemplo, demandava para sua interpretação sete diferentes


técnicas vocais (geradoras de distintas vocalidades).
De acordo com Jacqueline Martin (1991),
pesquisadora e professora de voz sueca, desde a Grécia
antiga até o século XIX a retórica clássica traçava as diretrizes
da utilização da voz em cena, assim como era matéria de
grande importância no convívio e persuasão social.
Martin afirma que a retórica é:

[...] uma arte prática baseada em


conselhos concretos e regras, em conjunto
com uma teoria geral sobre o que
realmente acontece no processo de
expressão e de como as pessoas reagem
geralmente a diferentes meios de
expressão, intelectual, estética e
54
emocionalmente. (MARTIN, 2001, p. 01).

Ela segue apontando as cinco partes mais importantes


da retórica clássica: inventio, dispositio, elocutio, memoria e
actio/pronunciato, onde inventio seria o argumento, dispositio
os princípios regradores do argumento, elocutio a forma
adequada para a fala, memoria a necessidade do orador55
registrar mentalmente seu discurso e actio/pronunciato a
apresentação à audiência, visando um máximo efeito de
convencimento. A autora enfatiza que o elocutio foi sempre o
elemento da retórica mais investigado, para comover a
audiência: um padrão de vocalidade criado a partir das
demandas do texto e sua estrutura, capaz de atingir a eficácia
esperada.

54
"[...] a pratical art based on concrete advice and rules together with
a general theory about what really happens in the process of speech
and how people react generally to different means of expression,
intellectually, aesthetical and emotionally." (Tradução minha).
55
Para falar da retórica e da atuação na Grécia Antiga, utilizarei os
termos flexionados no gênero masculino, visto que às mulheres não
era permitida a participação na vida política e no teatro.
71

Martin (1991) explica que Aristóteles56, em suas obras


Poética (2000) e Retórica (2007), indica que o actio deveria
ser regido pelas indicações e demandas do texto, onde
palavras, voz, expressões faciais e gestos deveriam estar em
harmonia com o inventio e o dispositio.
René Clémant (apud ASLAN, 2003, p. 10) afirma:

[...] que os trágicos gregos sabiam


alternadamente acelerar ou ralentar a
elocução, aumentar ou diminuir o volume
da voz, entrecortar as palavras, amenizar a
expressão, tecer longamente a frase,
numa respiração. Sua palavra traduzia
sobressaltos, até mesmo signos, ela
consentia, imitava, ria, caçoava, insultava.
Depois, como dois cantores que se
respondem, as vozes iam de uma a outro
interlocutor: até uma palavra foi inventada
para exprimir este diálogo dos jambos, é
esticomitia [...] a conversa das linhas, dos
versos. Além disso o ator era conhecido
como gravissonante, ressonante,
circunsonante, encorpando sua voz,
falando com curiosidade, forte ou
docemente, com timbre feminino ou
masculino.

Se apenas homens podiam atuar nos palcos gregos57,


poderíamos cogitar que os ensinamentos de retórica fixavam

56
É importante lembrar que Aristóteles viveu no século IV a.C., e
escreveu sobre o teatro do século V a.C., o que gera diversas
polêmicas em relação às estruturas por ele atribuídas ao teatro
grego. Além disso, partes significantes de seus escritos foram
perdidos.
57
O pesquisador e professor Alexandre Mate (2015, s/p) afirma
que: “no teatro erudito [...] as atrizes ganham o palco somente no
século 17, enquanto que, nas tradições populares, desde sempre,
as mulheres participaram dos espetáculos.”. O autor continua
explicando que na Grécia Antiga “[...] as mulheres não podiam atuar
e sequer assistir às comédias, que eram consideradas inferiores às
72

vocalidades a partir de práticas de reinscrição e recitação de


registros vocais generalizados no binarismo homem/mulher
(repetição e naturalização, segundo Butler) para guiar as
atuações do ator/orador na interpretação dos papéis.
Seria a retórica uma ferramenta de controle político da
vocalidade? Davini acredita que sim. A autora afirma que “[...]
a retórica não opera a partir da vocalidade, opera sobre ela,
como aconteceu também, mais tarde, com a irrupção e
consolidação gradual da literatura no Ocidente.” 58 (DAVINI,
2007, p. 26).
Davini segue explicando que o surgimento da retórica
na Grécia antiga (que tem a Retórica de Aristóteles como o
primeiro tratado sobre o tema) foi um mecanismo político “[...]
eficiente para neutralizar, controlar e condenar a prática
puramente verbal dos sofistas, perigosamente efetiva do
ponto de vista do poder dominante na Grécia da época.”59
(DAVINI, 2007, p. 26). Segundo Davini (2007, p. 27), as
perigrinações constantes e a filosofia oral dos sofistas
desestabilizavam a hegemonia normatizadora do Estado
grego, e a retórica surgiu com o objetivo de controlar estas
práticas.
Cavarero relaciona o apaziguamento do som da voz e
o destaque à linguagem vocalizada com um certo misticismo

tragédias.” (MATE, 2015, s/p). Todavia, a pesquisadora feminista


Lúcia Sander (2013, p. 18) problematiza e relativiza esta questão,
dizendo que “de tudo o que parece ter sido o Teatro Grego do
século V a.C. restou muito pouco: nomes de escritores mas poucas
das muitas peças que escreveram, nomes de filósofos que
escreveram sobre o teatro, muitos de seus livros perdidos. E todos
homens. Pouco ou nada se sabe sobre o status das mulheres
gregas no século de Péricles além de conjecturas produzidas por
uma tradição historicamente focada nos feitos dos homens.”.
58
“La retórica no opera desde la vocalidad, opera sobre ella, como
sucedió también, más tarde, com la irrupción y consolidación
gradual de la literatura en Ocidente.” (Tradução minha).
59
“[…] eficiente para neutralizar, controlar y condenar la práctica
puramente verbal de los sofistas, peligrosamente efectiva desde el
punto de vista del poder dominante en la Grecia de entonces.”
(Tradução minha).
73

acústico. Segundo a autora, na Grécia antiga, a phóné


caracterizava o tipo de som de cada fonte sonora. A voz da
flauta, a voz humana, a voz de um animal. Porém, alguns
metafísicos gregos estavam preocupados com “[…] o perigo
dos prazeres acústicos” 60 (CAVARERO, 2012, p. 73) e sua
ação sobre a razão/pensamento (logos).
Para exemplificar, ela cita Parmenides, que já na
antiguidade grega havia definido a escuta como uma das “[…]
faculdades sensoriais que impedem os homens de apreensão
sobre a verdade.” 61 (CAVARERO, 2012, p. 73). Cavarero cita
também Platão, que em um famoso discurso d’A República
afirma que “[…] a orelha é um funil de carne através do qual a
fisicalidade da phóné viaja diretamente para a alma, o que
compromete a harmonia racional.” 62 (CAVARERO, 2012, p.
73). O argumento de Cavarero chega a Aristóteles, que em
sua Poética relaciona a phóné com a capacidade de
linguagem, transformando-a em phóné semantiké, ou seja, em
uma voz significante (CAVARERO, 2012, p. 74).
Essa definição surge da preocupação eminente de
Aristóteles em “[…] separar e classificar os componentes da
razão.” 63 (CAVARERO, 2012, p.74). A voz humana é então
reduzida à capacidade da fala, ou seja, um instrumento da
razão capaz “[…] de vocalizar significações mentais.” 64
(CAVARERO, 2012, p. 74). É esta capacidade que para
Aristóteles diferencia humanos de outros animais. Além disso,
esta capacidade, na visão aristotélica, diferencia os próprios
humanos pelo sexo, segundo Cavarero (2011).
Para a autora, o logocentrismo se constrói a partir de
uma visão sexista e patriarcal. A autora traz a afirmação de

60
“[…] the danger of acoustic pleasures.” (Tradução minha).
61
“[…] sensory faculties that prevent men from seizing upon the
truth.” (Tradução minha).
62
“[…] the ear is a funnel of flesh through which the physicality of the
phóné travels directly into the soul, compromising rational harmony.”
(Tradução minha).
63
“[…] to separate and classify the components of logos.” (Tradução
minha).
64
“[…] of vocalizing mental significations.” (Tradução minha).
74

Aristóteles de que apenas os homens (sexo masculino)


possuiriam a voz significante plena, enquanto as mulheres
(sexo feminino) estariam “[...] restritas a vocalizar significados
cuja ordem racional são pouco capazes de dominar” 65
(CAVARERO, 2012, p. 75).
Cavarero (2011, p. 214) afirma que, a partir do
pensamento de Aristóteles, os homens se tornaram zoon
politikon, animais políticos, ou da pólis66, enquanto às
mulheres (assim como aos escravos) era negado o direito à
cidadania e à consequente voz política.
Citando a filósofa feminista Luce Irigaray, Cavarero
(2012) diz que o olhar masculino (male gaze), que desde a
antiga Grécia transforma o termo genérico homem (espécie
humana) em um homem do sexo masculino, como a
referência de nossa espécie, continua a existir nas línguas
modernas.
Esse mesmo pensamento binarista, para Cavarero,
opõe corpo e mente, homem e mulher, e corporeidade da voz
e racionalidade semântica: a phóné semantiké se transforma
em uma economia da linguagem que regula as volatilidades
do corpo.
O perigo da volatilidade da voz também influenciou os
antigos mitos. Em Homero, as sereias cantam e são
narradoras oniscientes. Porém, no “desenvolvimento do
imaginário ocidental”, elas perdem a capacidade de falar e
suas vozes foram reduzidas a sons inarticulados como o
choro, relacionando-as à corporeidade e animalidade inerente
a sua condição (CAVARERO, 2012, p. 76).
Todavia, nesta batalha entre corporeidade da voz e
logocentrismo, a retórica e a voz significante da linguagem
prevaleceram.
Davini (2007, p. 28) explica que

O triunfo dos filósofos gregos sobre os


sofistas provou a eficiência da retórica

65
“[…] restricted to vocalizing meanings whose rational order they
are scarcely able to master.” (Tradução minha).
66
Cidades-estado da Grécia antiga.
75

como instrumento de controle social.


Desde então, as retóricas se tornaram
instrumentos eficientes para o poder
político e religioso dominante, enquanto
que as vocalidades [...] efêmeras,
mutantes e nômades, foram gradualmente
lançadas a regiões periféricas no ambiente
cultural ocidental. 67

A autora se refere a retóricas, no plural, porque houve


na história ocidental várias novas políticas da retórica: na
Roma antiga, no cristianismo da Idade Média ou no
Renascimento, várias complementações à normatização da
fala em público, que com objetivo de convencimento e
liderança, foram realizadas. Tanto na antiga Grécia, quanto
em Roma e na Europa medieval, o Estado e a Igreja católica
atribuíram à retórica um caráter “civilizador”. Parece, contudo,
que a “barbárie” a ser combatida dizia respeito a tudo e a
todos que, assim como os sofistas, resistissem ao controle
ideológico e político empreendido pelos Estados e pela Igreja.
Estamos aqui em uma possível situação de duplo
controle da vocalidade: a criação de um sistema de
vocalidade específico ao discurso público (retórica), em
detrimento da vocalidade livre e flexível (oralidade dos
sofistas, por ex.), e a supervalorização do discurso (logos,
razão) em relação à vocalidade, já controlada pela retórica.
Segundo Cavarero (2011), o controle da corporeidade
da voz, transformando-a em veículo para a linguagem, foi um
potente mecanismo de controle ideológico na Grécia Antiga.
Isto poderia revelar e refletir relações íntimas entre a
visualidade e a esfera da linguagem escrita com o controle

67
“El triunfo de los filósofos griegos sobre los sofistas probaba la
eficiencia de la retórica como instrumento de control social. Desde
entonces, las retóricas se han constituido en instrumentos eficientes
para el poder político y religioso dominante, mientras que las
vocalidades [...] efímeras, proteicas y nómades, fueron
gradualmente arrojadas a regiones periféricas en el ambiente
cultural occidental.” (Tradução minha).
76

(logocentrismo) por um lado, e da voz com a esfera acústica e


a falta de controle sobre a mesma, por outro?
Para Cavarero (2012), existe esta relação de controle
entre texto, visão e racionalidade na metafísica platônica e
aristotélica da Grécia Antiga. A autora argumenta que essa
relação se dá devido ao fato da visão estar em um território
objetivo e permanente, propício ao pensamento analítico e à
representação mental do discurso. Em contraponto, as
culturas orais (como as dos sofistas) contavam apenas com o
fluxo passageiro do som, envolvendo todo o corpo no
processo de comunicação (CAVARERO, 2012).
Partindo da prerrogativa de De Certeau sobre a
relação entre poder e visão (eu vejo, logo posso controlar),
Davini relaciona a cultura escrita com a visão e o controle, e
com a noção de propriedade, “[...] fundamento das bases
econômicas e políticas ocidentais” 68 (DAVINI, 2007, p. 34),
como formulou Engels em seu livro A origem da família, da
propriedade privada e do Estado (1991).
Em contraponto, segundo a autora, oralidade estaria
relacionada à outra esfera, uma esfera acústica, presencial e
corporal: a esfera da voz, e não do texto.
Comentando a grande disseminação de obras poéticas
escritas69 na Europa a partir do advento da imprensa, no
século XV, Davini afirma que:

A literatura acabou exercendo uma


hegemonia sobre as representações
culturais, em primeiro lugar na Europa e
mais tarde na América; absorveu a
retórica, substituindo sua função normativa

68
“[...] fundamento de las bases económicas y políticas
occidentales.” (Tradução minha).
69
Zumthor (1993) realiza um amplo estudo sobre as manifestações
da oralidade poética na Idade Média europeia, às quais ele chama
poesia oral. A poesia oral (declamação, canto, teatro, jograis,
contação de histórias, etc.) demandava a dupla presença de poeta
(artista) e público.
77

e se difundindo como linguagem artística


70
individual. (DAVINI, 2007, p. 34).

Partindo da perspectiva de Davini (2007), seria


possível compreender que estas hegemonias sobre as
representações culturais pudessem estar relacionadas
também a questões de vocalidade atrelada a gênero em
cena?
O pesquisador e professor de teoria teatral e
literatura dramática do Departamento de Artes Cênicas da
Udesc, Stephan Baumgärtel, afirma que a partir do século XV
o teatro ocidental começou a apresentar uma estética
predominantemente realista, que buscava "[...] criar uma
ilusão de realidade empírica no palco" (BAUMGÄRTEL, 2009,
p. 131).
O autor continua afirmando que essa estética revisita
alguns preceitos d'A Poética de Aristóteles, como acontece
com o drama burguês, que ainda traz pressupostos como a
verossimilhança71 para uma cena a ser construída a partir da
analogia ao universo referencial do texto.
Baumgärtel refere-se aqui a manifestações teatrais
que ocuparam espaços "institucionais" privilegiados, que lhes
julgaram a relevância enquanto "arte erudita" e lhes
permitiram o registro histórico de criação artística em seus
períodos de produção, sobretudo a partir da análise de textos
teóricos, da literatura dramática e das indicações de cena dos
próprios autores. Tenhamos como contraponto as
manifestações de "teatro popular", que apresentam a
comicidade gerada pela caricatura e o grotesco como

70
“La literatura acabó ejerciendo na hegemonía sobre las
representaciones culturales, en primer lugar en Europa y más tarde
en América; absorbió la retórica, substituyendo su función normativa
y difundiéndose como lenguaje artístico individual.” (Tradução
minha).
71
O conceito de verossimilhança denota o potencial do espetáculo
em apresentar uma imitação do cotidiano tão contundente que
consiga criar a ilusão ou a ideia de que a cena poderia acontecer
enquanto realidade empírica.
78

elementos preponderantes em suas criações, e não a ilusão


de autonomia da cena e reprodução da realidade empírica.
Para exemplificar, basta relembrarmos da comédia dell'arte
italiana renascentista, os teatros de feira, xs palhaçxs, a
bufonaria, os autos, entre outros gêneros de teatro popular
que romperam com estas prerrogativas desde a antiguidade.
Todavia, no contexto do teatro de corte francês dos
séculos XVII e XVIII, com a representatividade de obras
dramáticas (literárias) de autores trágicos como Jean Baptiste
Racine (1639-1699) e Pierre Corneille (1606-1684), Roubine
afirma que:

Com a repetição, certas situações se


tornam estereótipos cuja eficácia
emocional é comprovada. O intérprete
precisará dominar a técnica vocal
apropriada a essas situações e, em função
de suas possibilidades, ele se
especializará num ou noutro tipo de papel.
Pois ele sabe que terá de mostrar suas
capacidades em algumas cenas especiais:
os debates políticos à maneira
grandiloquente de Corneille mobilizam o
gênio oratório do ator: polêmica vocal,
nobreza sustentada de entonação,
convicção, etc. As cenas de
“reconhecimento” são feitas à base do
patético da surpresa – suspiros,
exclamações, gritos... Os episódios de
“ternura” (confissão amorosa...) privilegiam
os efeitos de timbre, a musicalidade da
fala...
O risco é evidente: a recorrência às
mesmas situações acarreta uma
mecanização da interpretação. A
declamação vai se tornar puro virtuosismo.
(ROUBINE, 2001, p. 15).

Em uma perspectiva das retóricas platônica e


aristotélica, poderíamos compreender que o domínio da
vocalidade mais eficaz (elocutio) ao efeito desejado (no
79

actio/pronunciato) no argumento dramático poderia ser


essencial, e demonstrar a habilidade e o virtuosismo dx
intérprete na declamação do texto.
A pesquisadora alemã Erika Fisher-Lichte também
aponta para a subserviência da voz à palavra neste período
histórico, tanto no teatro quanto na ópera:

Na performance [ação/exposição],
expressões vocais, em sua maioria,
tornam-se indissociavelmente ligadas a
uma língua, já que a maioria emprega
vozes cantadas ou faladas. Teorias da
retórica e declamação popular desde o
século XVII reforçam esta ligação entre
voz e linguagem. Atores da época tinham
que empregar suas vozes como
ferramentas parassintáticas,
parassemânticas e parapragmáticas para
transmitir significado linguístico. Por um
lado, a voz esclareceria a estrutura
sintática do que é falado, em segundo
lugar, ela acentuaria e enfatizaria o
significado pretendido e, terceiro, poderia
reforçar ainda mais o efeito desejado sobre
o ouvinte. [...] A voz tinha de servir à
palavra falada.72 (FISCHER-LICHTE, 2008,
p. 125-126).

72
"In performance, vocal expressions have mostly become indivisibly
linked to a language, since they mostly employ singing or speaking
voices. Theories of rhetoric and declamation popular since the
seventeenth century have stressed this link between voice and
language. Actors of the time had to employ their voices as
parasyntactic, parasemantic, and parapragmatic tools to convey
linguistic meaning. For one, the voice would clarify the syntactic
structure of what is spoken; second, it would accentuate and
emphasize the intended meaning; and third, it could further reinforce
its desired effect on the listener. […] The voice had to serve the
spoken word." (Tradução Minha).
80

Fischer-Lichte exemplifica este discurso a partir da


obra Rules for Actors, de 1803, de Goethe (apud FISCHER-
LICHTE, 2008, p. 26), na qual o famoso poeta e ensaísta
alemão explicita a necessidade dx atuante empregar
vocalidades específicas de acordo com as demandas do
texto, reforçando deste modo o discurso do autor.
A voz, neste contexto, pode se configurar como a
phoné semantiké de Aristóteles, apesar dxs intérpretes
franceses dos séculos XVII e XVIII apresentarem “[...] um jeito
especial de fazer soar suas palavras [...] com a cadência
completamente musical de suas vozes faladas.” 73 (MARTIN,
1991, p. 08). Neste sentido, vale lembrar que a retórica preza
por uma capacidade de afetação emocional da plateia através
do desempenho dx oradorx, uma outra espécie de afecção.
Cavarero afirma que na Grécia Antiga a relação entre
som e palavra na própria música já era questionada e ditada
por Platão. Para o filósofo, o som puro da voz ou dos
instrumentos, separado da palavra cantada, era insuficiente
para a formação da alma filosófica:

O resultado é uma música politicamente


bem temperada, na qual o registro acústico
deve se subordinar a um registro verbal já
previamente disciplinado pela ordem
insonora e videocêntrica das ideias sobre a
qual tudo, inclusive os argumentos e o
modo de apresentá-los, se funda.
(CAVARERO, 2011, p. 189).

Neste contexto, a relação da voz com o público pode


ser uma relação de comunicação verbal oral onde a voz é
vista como o instrumento do discurso racional e logocêntrico
(que gerará, por sinal, imagens e representações mentais a
partir de sua sonoridade decodificada).

73
“[...] a special way of sounding their words […] [with] the full
musical cadence of their speaking voices”. (Tradução minha).
81

Como ratifica Davini, a história do teatro ocidental dito


erudito se relaciona diretamente com a história da literatura
dramática:

Apesar de que suas origens se remontam


mais além da configuração do que hoje
entendemos por literatura, o teatro é,
todavia entendido como uma forma
literária. [...]. Esta transposição do texto
teatral ao universo literário inscreve um
texto originalmente apreendido através do
imaginário auditivo do autor, um espaço
legível, regido pela racionalidade visual da
representação e da interpretação.74
(DAVINI, 20012, p. 35).

A racionalidade visual à qual se refere Davini é a da


representação linguística dx autorx e a interpretação dx
leitorx, que se desdobra também na representação codificada
dx atuante para a interpretação direcionada da audiência.
Davini afirma que esta relação voz/retórica/literatura foi
assim configurada durante o Renascimento europeu, e se
manteve até o início do século XX na cena teatral ocidental,
reverberando-se ainda na “[...] percepção da voz e da palavra
na performance teatral contemporânea.” (DAVINI, 2007, p.
35).
Mas houve exceções. Davini cita como exemplos as
produções literárias de complexidade poética formal do
Século de Ouro espanhol e do Teatro Elisabetano inglês, que
juntamente com a formação das línguas europeias modernas
durante o Renascimento europeu, permitiram uma ampla

74
“Apesar de que sus orígenes se remontan más allá de la
configuración de lo que hoy entendemos por literatura, el teatro es
todavía entendido como uma forma literaria. […]. Esta transposición
del texto teatral al universo literario inscribe un texto originalmente
aprehendido a través del imaginario auditivo del autor, en um
espacio legible, regido por la racionalidad visual de la representación
y la interpretación.” (Tradução minha).
82

presença “[...] à voz e à palavra tanto na cena teatral como na


vida social.” 75 (DAVINI, 2007, p. 36).
Roubine (2011, p. 17) também cita uma exceção às
escolas de oratória teatral francesas do século XVIII: o famoso
ator Talma (1763-1826) negava-se a seguir os manuais vocais
em vigor, e apesar do grande sucesso, foi classificado como
um ator extravagante.
A pesquisadora francesa Odette Aslan (2003) comenta
que na Comédie-Française, entre 1850 e 1950, o treinamento
vocal tinha como foco o registro grave para a atuação nas
tragédias, e o registro médio e alto (até o falsete) para as
comédias.
Citando René Clément, Aslan (2003, p. 10) afirma que
as vozes dxs intérpretes eram classificadas com adjetivos
diversos, inclusive de timbre masculino ou feminino. Quais
seriam as características de timbre que identificariam esta
relação binária? Uma atribuição natural dos registros a partir
da diferença sexual? Aslan explica que em relação aos textos
clássicos “[...] o físico, a natureza e a extensão vocal
determinam as distribuições de papeis.” (ASLAN, 2003, p. 15).
Em relação à formação clássica de atrizes e atores, a
autora cita ainda que

A escola francesa pede para colocar a voz


na máscara e falar o mais possível ao
redor do registro médio – o que dá a todos
os alunos uma mesma característica: uma
voz harmoniosa, bem colocada, facilitando
a elocução cuidada, necessária ao
repertório clássico. (ASLAN, 2003, p. 11).

Será que a preocupação desta escola francesa estaria


relacionada apenas à espacialização da voz no espaço
teatral, potencializada pelos harmônicos gerados na máscara
facial? Ou haveria também nesta afirmação um ideal de
harmonia vocal relacionada a um registro médio, cotidiano e

75
“[...] a la voz y la palabra tanto en la escena teatral como en la
vida social.’’ (Tradução minha)
83

coloquial da voz falada em dado contexto cultural, em função


de a voz ser um veículo para o texto? E este ideal traria para
a cena naturalizações de representações de vozes de homens
e mulheres?
Há em discursos de treinamento de atuantes deste
período um ideal de naturalidade para a produção da voz,
como colocado por Aslan: “[...] ensinemos ao comediante a
descontrair-se e a respirar, sua voz se colocará naturalmente.”
(ASLAN, 2003, p. 11).
Assim, além de abordar uma colocação vocal na
máscara (registro médio e ressonância frontal entre nariz e
boca) o conservatório francês também tinha professorxs que
traziam um ideal de colocação natural da voz, em contraponto
ao estilizado treinamento da voz salmodiada dxs
declamadorxs.
A pesquisadora australiana Peta Tait (2013) analisa
questões de gênero na representação de emoções no Teatro
de Arte de Moscou, especificamente nas relações
conturbadas entre a atriz Olga Knipper, seu marido e
dramaturgo Anton Chécov e o diretor Constantin Stanislavski
no início do século XX. Em suas discussões, Tait salienta o
engendramento da representação das emoções em cena no
teatro do século XIX:

Não era aceitável, no teatro do século XIX,


que um homem exibisse o mesmo
comportamento emocional extremo de
uma mulher (Wilson, 1966, p. 110). As
atrizes expressavam um alto grau de
“sentimentalismo histriônico” (Wilson,
1966, p. 121), “quasi-histeria” (Wilson,
1966, p. 138) e “pirotecnia emocional”
(Wilson, 1966, p. 129). Essas emoções
eram sinalizadas externamente. Garff
Wilson identifica uma relação direta entre
um ideal feminino de beleza física e as
representações de extremo emocionalismo
no teatro. (TAIT, 2013, p. 186).
84

Seriam estas indicações trazidas por Tait


naturalizações também de representação de vocalidades
atreladas aos diferentes gêneros?
Segundo Aslan (2003) na Comédie Française do
século XIX as vocalidades estavam atreladas a determinados
efeitos vislumbrados à audiência na representação. Podemos
supor então que estas construções se deram a partir de um
olhar sobre os corpos dxs intérpretes e sobre a representação
dos gêneros em cena.
As pistas apresentadas ajudam a perceber a relação
de naturalização dos registros e vocalidades dxs atuantes de
acordo com suas produções vocais coloquiais, ou de acordo
com o olhar e engendramento destas produções. Como
discuti no item anterior deste mapa, estas naturalizações
podem ser compreendidas como práticas de recitação e
reinscrição de vocalidade atrelada a gênero no treinamento de
atrizes e atores, e não práticas de reinvenção.
Claro que sempre há práticas de subversão. Um
exemplo de subversão ao pensamento hegemônico sobre
vocalidade atrelada a gênero em cena até o século XIX é o
trabalho das male impersonators, atrizes inglesas de music-
hall que interpretavam/imitavam homens – (female cross-
dressers) no século XIX e início do século XX (DONOGHUE,
1998). Este exemplo de prática de subversão apresenta
dissonâncias nas relações de representação hegemônica de
gênero atrelada à vocalidade em cena, mas ainda não libera
os corpos vocais da representação, ou seja, da recriação de
codificações culturais para os gêneros.
Nas pistas apresentadas pelos textos utilizados para a
criação deste item deste mapa-tese, encontrei indícios para
algumas reflexões e inferências sobre as relações entre voz,
palavra e gênero em cena.
Embora não haja indicações mais precisas nestas
bibliografias sobre a representação de vocalidade atrelada a
gênero nos terrenos da oratória, a relação entre retórica e
logocentrismo pode ser considerada presente também em
algumas práticas teatrais. A unicidade vocal dxs intérpretes
enquanto corpos vocais singulares e potentes em suas
85

possibilidades de presença cederia espaço à virtuose dxs


declamadorxs, controladores da voz e do gesto mais eficazes
para o convencimento da plateia pelo discurso do texto.
Segundo Martin (1991), no início do século XX, com o
desenvolvimento da semiótica, surge uma "nova retórica",
mais adequada às demandas da filosofia e vida modernas.
Emergem novas possibilidades de interpretação do mundo, da
linguagem e da literatura, como conjuntos de signos, gerando
demandas de novas poéticas para a voz em cena.
Davini (2007) argumenta que muitas descobertas
influenciaram a produção da voz e da palavra em cena a partir
do início do século XX: a invenção do laringoscópio no final do
século XX, feita pelo cantor professor do Conservatório de
Música de Paris, Manuel Vicente García; a descoberta do
subconsciente por Sigmund Freud e a inauguração da
psicologia; e o desenvolvimento da semiologia por Ferdinand
de Saussure (DAVINI, 2007, p. 40).
Roubine aponta para questionamentos que começam
a surgir no início do século XX na França sobre o trabalho
vocal. O autor indica um momento de transição estética na
cena - das virtuoses declamatórias das grandes estrelas de
companhias, atrizes e atores que geralmente eram xs donxs
dos grupos e xs protagonistas dos espetáculos, para a
vocalidade coloquial do naturalismo e do realismo emergentes
desde o final do século XIX na dramaturgia e na cena:

Desde essa época, os termos de um


debate fundamental estão colocados: será
que a voz deve ser instrumento trabalhado,
utensílio essencial senão único de um
virtuose da declamação, meio de
estilização deliberada? Será que, através
de artifícios, ela deve ser transformada em
eco teatral dos artifícios formais
encontrados no texto? Ou será que, ao
contrário, ela deve reproduzir
mimeticamente a 'vida', ser o reflexo de
uma 'realidade humana'? (ROUBINE,
2001, p. 17).
86

Com a emergência do realismo/naturalismo em cena, a


arte da declamação perde seu espaço de estilização em prol
de uma maior aproximação da "vida" através da mímesis.
Porém, poderiam ambos os territórios transformar a
voz em um instrumento do discurso do texto e normatizar a
representação da vocalidade através de uma visão
naturalizada de corpos vocais engendrados?

Uma nova retórica: o realismo em cena

Neste item do mapa apresentarei pistas para


problematizar possíveis engendramentos de vocalidade no
treinamento e criação de atuantes no teatro realista europeu
do início do século XX, principalmente a partir de discursos do
(e sobre o) diretor russo Constantin Stanislavski (1863-1938).
Considero estas reflexões importantes para este item
do mapa pela grande importância de Stanislavski na formação
de atuantes na contemporaneidade, pelo fato de o realismo
ter sido uma estética influente - com desdobramentos e
ressignificações presentes em práticas também de teatro
contemporâneo-, e pelos argumentos de Martin (1991) e
Davini (2007), que apontam para influências da retórica nesta
estética teatral.
Vejamos então algumas pistas para as
problematizações que se seguirão.
Com o surgimento do conceito de encenação e do
papel dx diretorx76 na virada do século XIX para o século XX,

76
Apesar dos livros de história do teatro em sua maioria não
contemplarem mulheres diretoras no teatro deste período, há relatos
da presença delas no teatro europeu. Peta Tait (2013) cita a
iniciativa de Anna Brenko, atriz do Teatro Imperial de Mali, que
fundou e dirigiu a companhia Teatro Pushkin em 1880 em Moscou.
A companhia durou 02 anos e envolveu um total de 70 artistas, com
o objetivo de “criar um grupo de atores para trabalhar em longos
processos de ensaio para a produção de teatro sério, bem antes do
surgimento do TAM” (TAIT, 2013, p. 171). Ou seja, uma diretora
87

não só o trabalho dx intérprete, mas também o teatro


enquanto gênero artístico passa a ser entendido como
linguagem constituída por um sistema de signos inerente a
sua realização.
A estética realista ganha sua configuração formal na
cena teatral com o russo Constantin Stanislavski, e a nova
retórica apresentada em seu teatro, de acordo com Martin
(1991), buscava agora uma criação vocal mais preocupada
com a composição do universo ficcional crível enquanto
realidade possível, levando em conta as características físicas
e psicológicas das personagens.
Já o subtexto no sistema Stanislavski pode denotar a
preocupação do diretor com um elocutio pautado nas
características físicas e psicológicas das personagens, e nas
relações interpessoais entre elas: conflitos e desejos nem
sempre revelados diretamente no texto, mas explicitados em
ações físicas e verbais77 (MARTIN, 1991). Assim, para
Stanislavski, atores e atrizes também podiam “agir através de
palavras” (MARTIN, 1991, p. 49).
Mas, trariam estas representações atos de gênero,
enquanto recitações e reinscrições de vocalidades
engendradas?
Segundo Odette Aslan, a vocalidade buscada por
Stanislavski em suas atrizes e atores também procurava a
melhor eficácia na comoção do público, pois ele:

[...] percebe que as entonações e as


pausas podem provocar emoção em um
espectador estrangeiro que não entende a
língua. Interessa-se pelo ritmo interior
oriundo das emoções. (ASLAN, 2003, p.
70).

obstinada na pesquisa estética para a cena, que ocupou os palcos


antes de Stanislavski, e é praticamente ocultada na historiografia
teatral tradicional.
77
Stanislavski (2004) conceitua o termo ação verbal na relação
entre semântica (do texto) e intencionalidade (do subtexto, revelada
na voz).
88

Mas, são as expressões das emoções iguais para


todos? Atualmente esta universalização das emoções é
refutada. Porém, nas ciências naturais do século XIX, esse
poderia ser um argumento aceito.
Maria Brígida de Miranda (2010) indica a preocupação
de Stanislavski em criar um sistema de atuação que tivesse
legitimidade científica.
De acordo com o pesquisador Joseph Roach (1985),
tanto O Paradoxo do comediante de Diderot quanto os
estudos de psicologia do período influenciaram em
Stanislavski uma visão de “natureza” das ações humanas.
Assim, seu sistema visava à criação de uma segunda
natureza no palco, tão crível quanto a primeira, passível ao
mesmo tempo de controle físico das emoções e ações e de
espontaneidade orgânica (ROACH, 1985, p. 195).
O diretor acreditava que o hábito (treinamento) poderia
criar essa segunda natureza, estruturando um complexo
sistema de análise das circunstâncias dadas pela dramaturgia
para o papel, a fim de estabelecer uma rede de ações e
reações psicofísicas, baseadas em muito nos princípios da
Reflexologia, que reduzia a explicação dos fenômenos
psicológicos a leis fisiológicas (ROACH, 1985, p. 198).
Miranda (2010) aponta a preocupação de Stanislavski
com o trabalho em grupo dxs intérpretes. Segundo a autora,
esta preocupação revela uma abordagem homogeneizadora
dos corpos, já que o discurso de Stanislavski (em três de seus
livros publicados em inglês) indicaria um ideal de “natureza” e
“leis da natureza”.
Porém, um olhar masculino sobre a ideologia deste
corpo natural para atrizes e atores é revelado pelas
numerosas críticas aos corpos das mulheres, que precisam
ser mais corrigidos que os dos homens. Miranda afirma que o
treinamento atoral em Stanislavski traz uma relação direta
com o treinamento de soldados (MIRANDA, 2010, p. 27).
Para Christine Bard a guerra (dos soldados)
permanece ainda no imaginário ocidental ligada diretamente à
virilidade, que por sua vez é um ideal de diferença sexual,
atribuído ao sexo masculino (BARD, 2013, p. 131).
89

Como se revelaria esse ideal de natureza na voz para


Stanislavski? Seria uma natureza vocal construída pelo
treinamento?
Aslan afirma que Stanislavski não teve maiores
preocupações com o trabalho vocal das primeiras atrizes e
atores do TAM78, seja pela ausência de problemas de voz e
dicção ou pelo fato dos mesmos terem tido formação anterior
(ASLAN, 2003, p. 68). A autora segue explicando que com os
atores mais jovens Stanislavski enfatiza(va) questões como a
“[...] beleza da linguagem, detém-se na palavra de valor, na
pontuação, nas pausas, no ritmo; recorre à fonética e dá a
seus alunos um professor que lhes coloque a voz.” (ASLAN,
2003, p. 68).
Ao que parece, estas indicações técnicas são muito
semelhantes ao treinamento das atrizes e atores do que Aslan
chama de formação tradicional europeia (comédia francesa,
representações dos textos clássicos até o início do século
XX), que procuravam otimizar a voz em cena para a boa
comunicação do texto ao público, adaptando-se, claro, às
vocalidades recitatórias mais eficazes.
O timbre adotado por Stanislavski também parece ser
o mesmo dxs intérpretes com formação clássica: uma
ressonância na máscara facial, na frente da face, entre as
cavidades oral e nasal, para ampliar a intensidade da voz e
potencializar sua presença em cena (STANISLAVSKI, 2004).
No relacionamento ficcional entre seus alteregos, o
diretor Tórtsov e o aprendiz de ator Kóstia, Stanislavski (2004)
tece relações entre cantar e falar um texto. Para ele, “uma
palavra bem dita já é uma canção, e uma frase bem cantada
já é fala” 79 (KNÉBEL, 2004, p. 152). A respeito de umx
intérprete com técnica vocal virtuosa no seu ponto de vista,
Tórtsov afirma:

Quando controla seus movimentos e lhes


acrescenta palavra e voz, parece-me que

78
Teatro de Arte de Moscou.
79
“una palabra bien dicha ya es una canción, y una frase bien
cantada ya es habla”. (Tradução minha).
90

isto se torna um harmonioso


acompanhamento para um lindo cantar.
Uma boa voz de homem entrando em cena
com a sua deixa é como um violoncelo ou
um oboé. Uma voz feminina pura e alta,
respondendo à deixa, faz-me pensar num
violino ou numa flauta. As profundas notas
de peito de uma atriz dramática lembram-
me a introdução de uma viola. O baixo
pesado de um pai nobre ressoa como
fagote, a voz do vilão é um trombone, que
troveja mas também gargareja para dentro,
como se fosse por causa da raiva ou de
saliva acumulada. (STANISLAVSKI, 2004,
p. 128).

Podemos observar a relação que Stanislavski faz entre


instrumentos com sonoridades geralmente mais agudas
(flauta, viola) ou médias (viola) e atrizes mulheres, e
instrumentos com sonoridades geralmente mais graves
(violoncelo, trombone, fagote) e atores homens. Este ideal de
vocalidade atrelada a gênero em cena pode supor um
treinamento vocal de intérpretes diferenciado pelo sexo.
Esta possível naturalização dos registros vocais de
atores e atrizes se associaria em cena ao controle do corpo
vocal?
Davini (2007, p. 41) afirma que

As propostas vinculadas ao realismo no


teatro restringem a necessidade da técnica
vocal à conservação de uma voz sã e apta
para as altas intensidades, como se a
produção de altas intensidades, por si
mesma, não interferisse nos estilos vocais
e verbais resultantes em performance.80

80
“Las propuestas vinculadas al realismo en el teatro restringen la
necessidad de la técnica vocal a la conservación de uma voz sana y
apta para las altas intensidades, como si la producción de altas
intensidades, por si misma, no interferiese en los estilos vocales y
verbales resultantes em performance.” (Tradução minha).
91

Assim, a vocalidade dxs atuantes, para Stanislavski,


poderia ser entendida como uma vocalidade treinada para
representar um ideal de natureza e cotidiano no teatro
realista. Este ideal de uma natureza vocal em Stanislavski fica
claro na análise de Nikolai Gorchakov de um espetáculo do
Teatro de Arte de Moscou, de 1924. Ele afirma que
Stanislavski queria

[...] uma voz forte, bem treinada, de timbre


agradável ou pelo menos expressivo, uma
dicção perfeita, plasticidade de movimento
(sem ser posudo), rosto belo e versátil, boa
silhueta e mãos expressivas.
(GORCHAKOV apud ASLAN, 2003, p. 69-
70).

A natureza do corpo vocal de uma atriz ou de um ator,


para Stanislavski, poderia representar um ideal normatizador
e homogeneizante: sem singularidades (culturais,
anatomofisiológicas ou funcionais), sem excessos (de peso-
silhueta) ou falta (de um belo rosto, de um timbre agradável),
e funcionalmente eficaz (voz forte, bem treinada).
Para Stanislavski, a atriz e o ator precisam saber falar
com precisão técnica, como ele pondera em Minha vida na
Arte (STANISLAVSKI, 1989). Mas a musicalidade da voz, o
modo como o texto é dito, é também uma grande
preocupação do encenador, que se relaciona diretamente com
o desenvolvimento de seu método de análise ativa.
Stanislavski incita a atriz e o ator a identificar o
subtexto da personagem: aquilo que não é dito no texto, mas
que refletirá diretamente na construção de suas ações físicas
e verbais. Como indica Martin (1991), este pode ser um novo
olhar sobre a retórica, já que agora as ações podem não ser
análogas ao texto, mas têm a função de revelá-lo em sua
complexidade ficcional.
Fisher-Lichte aponta este momento como a primeira
ruptura entre voz e linguagem no teatro ocidental:
92

Com o naturalismo, uma mudança


significativa ocorreu. A ligação
aparentemente indivisível entre a voz e a
língua se rompeu. A voz já poderia agora
ser utilizada sem necessariamente ser
correspondente às palavras faladas na
entonação, ênfase, altura, e volume.
Enquanto as palavras faladas podem
sugerir uma saudação amigável, a voz
mesma poderia implicar medo ou agressão
e ser reforçada por correspondentes
expressões faciais, gestos ou movimentos.
O resultado foi uma ruptura na percepção
que indica a contradição inerente entre o
comportamento consciente e real, talvez
só inconscientemente dado, atitude. [...]
81
Voz e linguagem se separaram.
(FISCHER-LICHTE, 2008, p. 126).

Nesta nova retórica, existe espaço para a


ambiguidade, para a criação de conflito entre ação verbal e
texto em cena. Porém, estas relações entre vocalidade,
linguagem e gênero são construídas nos palcos do diretor
russo a partir da visão dos dramaturgos que escreveram as
obras representadas pelo TAM, e do próprio Stanislavski.
Esta questão nos leva agora a uma comparação das
relações entre vocalidade e gênero em cena às relações entre
a representação das emoções e o gênero dx intérprete,
tecidas pelo diretor russo.

81
"With naturalism, a significant change occurred. The seemingly
indivisible link between voice and language loosened. The voice
could now be used without necessarily corresponding to the spoken
words in intonation, emphasis, pitch, and volume. While the words
spoken might suggest a friendly greeting, the voice itself might imply
fear or aggression and be enhanced by corresponding facial
expressions, gestures, or movements. The result was a break in
perception that indicated the inherent contradiction between
conscious behavior and actual, perhaps only subconsciously given,
attitude. […] Voice and language split." (Tradução Minha).
93

Segundo Peta Tait (2013), o ideal de natureza das


emoções para Stanislavski, em sua fase inicial do sistema,
refletia também uma visão masculina sobre a representação
das emoções. Tait (2013) analisa como Stanislavski impunha
sua visão das emoções das personagens masculinas e
femininas (male gaze), chegando a demonstrar para atrizes e
atores a interpretação que ele desejava em cena.
Apesar de sua abordagem inicial ser a partir do interior
psicológico da personagem para a externalização das ações e
emoções, ele repreendeu a atriz Olga Knipper em diversas
ocasiões, por ter interpretações diferentes da sua das
personagens femininas, tanto em relação às circunstâncias da
dramaturgia quanto à representação das emoções (TAIT,
2013).
Tait aponta que a visão de Stanislavski de uma
autonomia interna do eu (sua natureza), desvinculada da
construção social do sujeito, traz uma abordagem que não
considera nem a experiência social das emoções das atrizes
nem a experiência subjetiva da atriz em relação a essas
emoções.
Utilizando relatos de Nikolai Gorchakov a respeito do
processo de pesquisa de Batalha da vida (de Charles
Dickens), de 1924, Tait (2013, p. 175) afirma que Stanislavski
chega a fazer a atriz Stepanova chorar para vivenciar uma
experiência análoga à qual ele queria impor à interpretação da
personagem Marion na peça.
Ainda segundo Tait, relatos sobre processos de
trabalho no TAM apontam a supervalorização da atuação dos
atores em detrimento das atrizes, que precisavam criar um
jogo de conflito interno de emoções corporificado pelo controle
corporal para representar suas emoções, como emoções
surgidas naturalmente, ratificando o paradigma social e
médico vigente no século XIX do descontrole emocional
feminino (TAIT, 2013).
O ideal de natureza vocal em Stanislavski aponta para
uma vocalidade normatizada a partir da visão masculina dos
papéis e interações sociais, controlada pelo logos através da
contenção corporal: uma voz interiorizada para ser dominada.
94

Carnicke afirma que a sistematização da atuação


realizada por Stanislavski teve grande influência no fazer
teatral ocidental (CARNICKE apud MIRANDA, 2010, p. 16).
Um dos argumentos da autora é a publicação de seus livros A
preparação do ator e A construção da personagem
respectivamente em 1938 e 1948 em russo, e em inglês, dois
anos depois de cada publicação russa.
Davini acredita que o realismo, em suas origens na
virada do século XIX para o século XX, não tenha sido uma
estética hegemônica, vista a diversidade de manifestações
teatrais da vanguarda europeia do início do século XX
(citemos, por exemplo, as práticas de Meyerhold, aluno de
Stanislavski, na própria Rússia).
Porém, a autora atribui a difusão do sistema de
treinamento e da estética realista desenvolvidos por
Stanislavski tanto à viagem realizada pela companhia russa
no início do século XX82 aos Estados Unidos quanto à
influência do Actor’s Stúdio83 na formação de atrizes e atores
atuantes nos meios de comunicação de massa,
principalmente no cinema.

82
Há aqui uma contradição de datas: Odete Aslan (2003, p. 263)
identifica a data de viagem da companhia de Stanislavski aos
Estados Unidos como o ano de 1923, e Davini (2007) aponta esta
viagem na década de 1930.
83
Segundo Aslan (2003, p. 263-264), Lee Strasberg, diretor mais
conhecido do Actor’s Studio, teve contato com o sistema
desenvolvido por Stanislavski tanto acompanhando a turnê do grupo
em 1923 nos EUA, quanto sendo iniciado no sistema no American
Laboratory Theatre, de Richard Boleslaski. Strasberg desenvolveu
seu método mesclando conceitos de psicanálise ao sistema
stanislavskiano, e subvertendo o trabalho em grupo enfatizado pelo
diretor russo em um trabalho individual, que segundo Aslan (2003, p.
264), “[...] às vezes, aproxima-se mais de uma terapia do que de
uma prática teatral.”. Boleslaski trabalhou como ator de Stanislavski
no Teatro de Arte de Moscou, e emigrou para os EUA em 1920.
(sobre Boleslaski, cf.:
http://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Boleslawski. Acesso em
25.01.14).
95

As pistas apresentadas nesta parte do mapa são


anacrônicas e pontuais. Todavia, meu intuito foi pesquisar
indícios de discursos construtores de possíveis vocalidades
engendradas em cena.
Estas pistas nos levaram não apenas a discussões
sobre discursos de treinamento e criação vocal para atuantes,
mas também a derivas do mapa, na filosofia e na fisiologia da
voz.
Em um primeiro momento, procurei problematizar a
produção vocal em seus possíveis espaços de
engendramento biológico, compreendendo a vocalidade,
assim como o gênero, como autopoiese, reinvenção,
transformação constante nas relações do sujeito com o meio.
A contextualização que fiz sobre os feminismos e os
estudos de gênero procurou elucidar o território queer no qual
meu pensamento sobre a voz em cena se constrói.
As relações traçadas por Cavarero (2011) entre o
logocentrismo, o patriarcado e o controle do corpo vocal nas
metafísicas platônica e aristotélica nos levou à retórica.
Procurei possíveis relações entre o engendramento da
vocalidade na retórica e no teatro, principalmente a partir das
pesquisas de Martin (1991).
Como Martin (1991) afirma que, em sua visão, o
realismo pode ser considerado uma nova retórica, procurei
vestígios que possibilitassem a problematização de possíveis
engendramentos neste primeiro grande momento de
transformação do teatro no século XX.
Assim, a partir das pistas aqui apresentadas, podemos
pensar no engendramento de vocalidades em cena como a
subserviência da voz à linguagem (com o intuito de controlar a
vocalidade com fins de efetividade no convencimento do
discurso), e como a designação de espaços específicos de
produção vocal para atuantes a partir da diferença sexual.
Deste modo, tais engendramentos poderiam resultar
em representações generalizadas, que não possibilitariam a
presença da singularidade do corpo vocal em cena, e da
unicidade mutante dos acoplamentos possíveis na arte e na
vida.
96
97

CORPO VOCAL DISSONANTE


98

Notas preliminares84

Quando eu comecei a fazer teatro, em


1999, em Joinville-SC, encantei-me
primeiramente com os jogos teatrais. Como
era (e ainda é) bom jogar! Os jogos teatrais
que eu vivenciava e aprendia me permitiam
ser muitas coisas: de sementinhas a bufas e
senhores feudais, de liquidificadores a
caminhantes lentxs e serenxs. Mas muitas
vezes, nas montagens de espetáculos,
quando eu pensava em levar minhas
“invencionices” para a cena, eu precisava
abrir mão destes desejos em prol da
imitação de certos cotidianos humanos
idealizados. Em alguns momentos
fantásticos, agarrei as oportunidades que
surgiram de ser uma palhaça, o Capitão
Matamoros da commedia dell’arte, um
Hamlet andrógino, e muitas outras personas
também através das contação de histórias.
Muitas práticas de subversão nas minhas
representações de gênero e vocalidade em
cena vindas de muitas práticas ancestrais

84
Excertos de textos contidos em Corpo Vocal Dissonante foram
publicados em formato de capítulo de livro, sob o título
“Corporeidade e performatividade vocal – Reflexões sobre voz e
palavra em cena”. In: ALEIXO, Fernando Manuel (org.) Práticas e
Poéticas Vocais – vol. 1. Uberlândia: EDUFU, 2014.
99

do teatro. Na graduação em teatro, já em


Curitiba-PR, experienciei outras tantas
práticas e linguagens da cena, e o contato
com questões da dramaturgia atoral e da
performance art começou a mobilizar o
meu fazer artístico. Percebi nestes territórios
a possibilidade de criações que não
representavam referenciais miméticos, mas
criavam seus próprios universos nas relações
entre x intérprete e os elementos da cena. O
estiolamento de referências prévias, a
desestabilização de territórios estáveis na
representação, a ação e a apresentação da
ação começaram a mobilizar minha
produção em dramaturgias textuais,
atuação e encenação. Neste espaço de
encontro entre meus desejos de criação e
reflexão, a voz e a representação de gênero
em cena me chegaram como bússolas que há
muito habitavam estes territórios de artes.
Que estas bússolas nos guiem agora neste
pequeno mapa que indica territórios que
influenciaram o meu fazer e o meu pensar
em cena como artista.
100

Como ler esta parte do mapa

Nesta parte do mapa, eu reflito sobre o conceito de


corporeidade vocal dissonante em cena. Elaboro este
conceito a partir da análise e apropriação dos conceitos de
corporeidade da voz (BARBA apud DAVINI, 2007; BURNIER,
2001; CAVARERO, 2011 e 2012) e dissonância de gênero
(BUTLER, 2003) e sons (WISNIK, 2011; SCHAFER 1991 e
2001).
Para elaborar minhas reflexões, discorro sobre
algumas ideias e práticas que, a meu ver, mesmo sem se
declararem feministas, procuraram desestabilizar
treinamentos e representações binárias de vocalidade
atrelada a gênero na atuação. Tais discursos e práticas
podem apontar também para uma maior valorização da
presença da voz enquanto som (corpo) em cena, e não
somente como veículo da linguagem (logos).
Considero treinamentos e representações vocais
binárias aquelas que diferenciam a produção tonal
(alturas/registros) pelo sexo dx atuante, tais como o bel canto
e as representações de vozes femininas como mais agudas e
masculinas como mais graves em cena. Para mim, tais
práticas podem ser consideradas binárias por reproduzirem
discursos que atribuem marcas específicas de gênero às
vozes de atrizes e atores, em uma perspectiva
heteronormativa (homem x mulher).
Escolhi problematizar a corporeidade vocal dissonante
a partir de propostas de trabalho de Antonin Artaud, Jerzy
Grotowski e Roy Hart, por considerá-los expoentes nas
pesquisas vocais para a dramaturgia atoral no século XX.
Alguns de seus princípios de trabalho e práticas teatrais
realizadas, com as quais tive contato por registros históricos
(bibliográficos, fotográficos e videográficos), também me
influenciaram diretamente enquanto artista e pesquisadora da
voz.
Na sequência desta parte do mapa, contextualizo os
campos da performance art e do teatro performativo como
101

territórios propícios a deslocamentos e desconstruções de


representações binárias de vocalidade e gênero. Tais
desconstruções são potentes nestes territórios, ao meu ver,
por serem estes campos de criação autopoiética e
autorreferencial, que levam em conta as singularidades dos
corpos vocais em performance.
A partir do trabalho dxs artistas e movimentos
abordadxs neste item da tese, problematizo em suas obras e
discursos uma possível desestabilização do logocentrismo
androcêntrico e binário da voz. Estas práticas dissonantes de
vocalidade, em seus contextos de produção, seriam caminhos
de queerização do corpo vocal?
Por fim, procuro guiar a leitura desta cartografia com
outra pergunta fundamental: as problemáticas de
representação binária (de gênero) e logocêntrica (de
vocalidade) em cena seriam reflexos de nossas escutas?
102

Em busca de corporeidades vocais dissonantes

Segundo Silvia Davini (2007), o diretor teatral italiano


Eugênio Barba (1936-), do grupo Odin Teatret, considera a
espacialidade da voz em relação com o corpo. Assim, a voz
seria uma extensão invisível do corpo, mas plena de
espacialidade como o próprio corpo (DAVINI, 2007, p. 69).
Já o ator e diretor teatral brasileiro Luís O. Burnier
(1956-1995), fundador do grupo LUME – Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, ao
conceituar a ação vocal, afirma:

Se considerarmos a voz como um


prolongamento do corpo, da mesma
maneira como Decroux considerava
os braços prolongamento da coluna
vertebral, a voz seria como um
“braço do corpo” (BURNIER, 2001,
p. 56).

A partir destas perspectivas, e estabelecendo um


diálogo com o conceito de corpo vocal trazido pela filósofa
Adriana Cavarero (2012), podemos considerar que a voz age
em cena através de sua materialidade físico-sonora. Para
pensar a materialidade da voz em ação no evento teatral é
então necessário considerar a sua corporeidade: a voz como
uma extensão do corpo dx atuante, que age no tempo-espaço
e toca os corpos presentes. Entender a voz como uma
extensão do corpo é perceber sua existência indissociável do
(e no) corpo e do (e no) espaço.
As estruturas físicas que geram a vibração primordial
da voz (ossos, músculos, tecidos, etc.), que movem o ar dos
pulmões para se transformar em som através da vibração das
pregas vocais, e em seguida a amplificam em seus espaços
internos (nos ressonadores e na expansão da vibração pelos
ossos), movem o corpo internamente. A produção da
vocalidade se modula no trabalho dos articuladores e se
expande no espaço pela propagação da vibração da voz,
103

mobilizando mais uma vez as estruturas óssea e muscular do


corpo nos apoios corporais, respiratórios e vocais necessários
para a espacialização do som.
Mas o trabalho da atuação se realiza também na
criação de uma corporeidade vocal expandida aos corpos da
audiência através do espaço. A voz dx atuante, como
produção de corporeidade, toca a audiência.
A partir de uma corporeidade vocal dilatada no espaço,
talvez possamos pensar a voz em cena não apenas a serviço
da linguagem, mas também como materialidade sonora que
ativa um complexo processo cognitivo, envolvendo a escuta
corporal, a memória e os sentidos (inclusive a propriocepção –
a consciência do seu próprio corpo no tempo-espaço).
Assim, corporificar a voz em cena pode significar
também a ativação da percepção da audiência de seus
próprios corpos, da concretude de suas presenças no espaço
teatral e no espaço da experiência vivida. Transformar a
vocalidade em matéria de criação cênica, geradora de
sentidos na encenação, é, ao mesmo tempo, criar um elo com
as frequências vibratórias dos (e nos) corpos dxs atuantes e
da audiência.
Esta relação é abordada pela filósofa Adriana
Cavarero (2011) em sua crítica à metafísica androcêntrica e à
desvocalização do logos85. Para a filósofa, como seres

85
Segundo Cavarero (2011, p. 50-51), “Logos deriva do verbo
legein. Desde a Grécia arcaica, este verbo significa tanto ‘falar’
quanto ‘recolher, ‘ligar’, ‘conectar’. Isso não é surpreendente, uma
vez que quem fala liga as palavras umas às outras, uma após a
outra, recolhendo-as em seu discurso. Tampouco é estranho que,
exatamente por isso, legein signifique também ‘contar’ e ainda mais
propriamente ‘narrar’. Na sua acepção comum, o logos se refere à
atividade de quem fala, de quem liga os nomes aos verbos, e a
qualquer outra parte do discurso. O logos consiste essencialmente
numa conexão de palavras. Justamente nesse plano da conexão,
que ‘liga’ e ‘recolhe’ segundo determinadas regras, está centrada a
atenção da filosofia. Centrada inclusive com prejuízo – mas talvez
fosse melhor dizer: sobretudo com prejuízo – do plano acústico da
palavra. O logocentrismo filosófico se interessa, principalmente, pela
104

políticos dotados de linguagem, a raça humana tem na voz


um elo relacional de unicidades de corpos vocais:

Quanto ao comunicar-se na palavra, nada,


de fato, comunica a unicidade mais do que
a voz. Isso acontece não apenas na
palavra, e ainda antes da palavra nas
vocalizações infantis que precedem e
inauguram a palavra, mas principalmente
ocorre de acordo com o cânone relacional
da ressonância que a musicalidade de
cada língua, como língua falada, conserva.
Do ponto de vista vocálico, o comunicar-se
dos falantes está em sintonia com uma
dupla relacionalidade. Uma se refere à
unicidade de uma voz que é para o ouvido;
a outra soa na própria musicalidade da
língua. Ambas possuem uma substância
física, corpórea. O logos que se reparte
nas vozes [...] é um logos que vibra em
gargantas de carne. Nesse sentido, a
distinção entre o semântico e o vocálico
alude à trama ineludível entre a
universalidade de um registro linguístico,
que organiza a substância incorpórea dos
significados, e a articularidade de uma
experiência encarnada, que se faz ouvir na
voz. A palavra – voz e significado, mais do
que voz significante – serve de ponte a
essas duas margens. Mesmo quando ela
comunica alguma coisa, obedecendo aos
códigos universais da linguagem e às suas
regras, comunica sempre vozes singulares
e, ao mesmo tempo, a cadência ritmada de
uma ressonância que as conecta.
(CAVARERO, 2011, p. 229-230).

Apesar de Cavarero citar neste trecho apenas as


vocalizações infantis como um lugar antes da palavra que

ordem que regula a conexão, isto é, pela linguagem como sistema


da significação.”
105

comunica a unicidade do corpo vocal, a autora faz alusão em


outros momentos de Vozes Plurais: filosofia da expressão
vocal (2011) a outros tipos de vocalização que sobrepujam a
presença da voz em relação à linguagem, como as vozes das
sereias, na mitologia, e as vozes das sopranos coloratura, na
ópera.
Todavia, a crítica essencial de Cavarero à metafísica
androcêntrica e logocêntrica é em relação à desvocalização
do logos, ou seja, à supervalorização da semântica da palavra
em detrimento de sua relacionalidade sonora:

O sentido – ou, querendo-se, a


relacionalidade e a unicidade de cada voz
que constituem o núcleo desse sentido –
transita da esfera acústica à palavra.
Exatamente porque a palavra tem uma
consistência sonora, falar é comunicar-se
na pluralidade das vozes. Dito de outro
modo, o ato de falar é relacional: isto que,
nele, sempre e acima de tudo se
comunica, para além dos conteúdos
específicos que as palavras comunicam, é
a relacionalidade acústica, empírica e
material das vozes singulares.
(CAVARERO, 2011, p. 29).

A comunicação, com ou sem palavras, entra neste


panorama como uma relacionalidade entre corpos vocais
singulares, não generalizáveis.
Nas artes do século XX, muitas vozes singulares das
cenas, além de buscar desestabilizar a phoné semantiké
aristotélica enquanto vozes significantes, procuraram
estabelecer em suas relacionalidades comunicacionais
possibilidades de sentidos múltiplos, e não apenas
significados únicos. Podemos questionar então, se a ênfase
no aspecto relacional do corpo vocal presente nestes
territórios propunha uma participação ativa da audiência na
obra, como coautora na criação dos sentidos da cena -
sentidos estes que podem fazer emergir questões de gênero.
106

As vanguardas artísticas europeias do início do século


XX trazem importantes contribuições neste panorama.
Philadelpho Menezes, na introdução do livro sob sua
organização Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no
século XX (1992), afirma que os sarais de poesia fonética e
poesia sonora, as experimentações vocais do teatro futurista,
as improvisações dadaístas e as apresentações de polipoesia
foram alguns dos experimentos vocais que redimensionaram
a presença da voz nas artes. No teatro, o francês Antonin
Artaud, integrante do movimento surrealista, trouxe influências
desta vanguarda artística para sua proposta estética, como
uma crítica ao teatro realista que se consolidava no período.
A pesquisadora teatral sueca, especialista em voz,
Jacqueline Martin, reconhece em seu livro Voice in Modern
Theatre (1991) os movimentos da vanguarda europeia como
grande influência para o teatro que seria desenvolvido a partir
da segunda metade do mesmo século. Como exemplos, neste
período Jerzy Grotowski e Roy Hart desenvolveram pesquisas
vocais que, assim como Artaud, influenciam grande parte do
teatro contemporâneo.
Por outro lado, a pesquisadora americana RoseLee
Goldberg, no livro A arte da performance: do futurismo ao
presente (2006) atribui a estas vanguardas a protocélula da
performance art, que passou a ser considerada linguagem
artística (apartada das artes visuais ou do teatro) a partir de
1970, com expressão principalmente nos Estados Unidos e na
Europa. E segundo Josette Féral (2008) a performance art
trouxe grandes influências para o teatro contemporâneo, e
consequentemente para a presença da voz no teatro
performativo (FÉRAL, 2008).
Assim, as experimentações vocais desses movimentos
e artistas (vanguardas europeias e artistas influenciados por
estas vanguardas) caminhariam em direção à corporeidade
vocal e sua relacionalidade sonora, propostos por Cavarero
(2011, 2012), desestabilizando relações logocêntricas e
binárias entre corpo, voz e linguagem?
Em seu livro Entre o ator e o performer (2013), o
pesquisador e ator brasileiro Matteo Bonfitto (2013) relaciona
107

o a representação com a produção de significados pelx


atuante e a presentação com a produção de sentidos. Sem
propor um dualismo, mas colocando ambos os conceitos
como tensões contínuas em obras cênicas contemporâneas, o
autor contextualiza:

[...] os fenômenos e as experiências nesse


âmbito quanto mais facilmente traduzíveis
em palavras, mais próximos se
localizariam do extremo “significado”; e
vice-versa; quanto mais dificilmente
traduzíveis em palavras, mais próximos
estariam do extremo “sentido”.
(BONFITTO, 2013, p. 113).

Tendo em vista que as palavras são elas mesmas


representações de coisas (emoções, ações, objetos, etc.), a
criação de sentidos (e não significados) em cena através da
materialidade sonora do corpo vocal (que não está apenas a
serviço da linguagem/representação) pode expandir as
possibilidades de interpretação da obra pela audiência. Essa é
uma ação que cria dissonâncias, instabilidades, espaços
“entre” o que é reconhecível e a invenção dx artista.
Para Bonfitto (2013, p. 117), a produção de sentido é
vista como uma instância que

[...] envolve a emergência de qualidades


expressivas autorreferenciais não
reduzíveis a signos, processo que se
constitui, por sua vez, a partir da
exploração de intensões e de suas
implicações: articulações subjetivas
profundas, instauração de campos
relacionais que funcionam como agentes
aglutinadores de fluxos perceptivos e como
geradores de ações desprovidas de
representação.

A autorreferencialidade aqui diz respeito aos


processos subjetivos envolvidos na criação da ação e da
108

relação em cena, processos que não visam à mimesis de um


universo empírico referencial, mas que resultam da invenção
de possibilidades de existência dx atuante em cena. A
autorreferencialidade em cena não supõe a representação dx
outrx, mas representificações de possibilidades de si mesmx
(inclusive como outro).
Então, seriam estas práticas de presentação
(propondo criação de sentidos múltiplos em cena) e não de
representação (propondo criação de significados em cena)
práticas de corpos vocais dissonantes?
Vejamos como a questão da dissonância pode ser
relacionada a estas práticas tanto na perspectiva da
sonoridade da voz quanto do gênero.
O pesquisador e músico brasileiro José Miguel Wisnik
afirma que "[...] os sons afinados pela cultura, que fazem a
música, estarão sempre dialogando com o ruído, a
instabilidade, a dissonância." (WISNIK, 1989, p. 27).
Assim, o que define o som como dissonante não é
apenas sua frequência, mas qualquer um de seus parâmetros
em relação ao contexto de produção. Existem dissonâncias
rítmicas, de harmonia, ou até mesmo, como afirma o
pesquisador canadense Murray Schafer "[...] variações em
intensidade, altura, duração ou timbre, dentro dos perímetros
do audivelmente possível.” (SCHAFER, 1991, p. 156).
Neste território dos sons, as vocalidades dissonantes
promovem um estranhamento na escuta, mobilizam os
sentidos e ativam a reflexão, pois algo está errado,
descontextualizado, deslocado dos padrões hegemônicos do
contexto de produção. O canto multifônico do ítalo-grego
Demétrio Stratos86 - com destaque de vários harmônicos ao
mesmo tempo e com alcance de até 7.000 Hz, a música
experimental e a poesia fonética dadaísta do início do século

86
Demétrio Stratos (1945-1979) foi um cantor e pesquisador vocal
grego naturalizado italiano. Stratos desenvolveu uma vasta pesquisa
vocal, que envolvia técnicas vocais interculturais (como o canto
harmônico), sonoridades não convencionais em bel canto, poesia
sonora e outras investigações em técnica vocal estendida. Cf. EL
HAOULI, 2000.
109

XX criam corpos vocais dissonantes para os padrões


hegemônicos de escuta dos anos 1900 (e talvez também para
o século XXI).
Assim, nestas práticas artísticas, a corporeidade da
voz em sua dimensão afectiva parece ser levada em conta
pelos artistas, assim como as dissonâncias entre voz e
linguagem e voz e musicalidade.
Todavia, em minha reflexão, levo em conta uma
possível dupla dissonância do corpo vocal: não apenas em
relação à sonoridade (não hegemônica) da voz, mas também
ao potencial de desestabilização de representação de gênero
através da voz.
Para a filósofa feminista americana Judith Butler, as
representações de gênero também podem ser dissonantes.
Butler afirma que:

Assim como as superfícies corporais são


impostas como o natural, elas podem
tornar-se o lugar de uma performance
dissonante e desnaturalizada, que revela o
status performativo do próprio natural.
(BUTLER, 2003, p. 210).

A autora descreve os gêneros queer como práticas


parodísticas de gênero, ou práticas de subversão, que
exploram dissonâncias em suas marcas de gênero. Porém,
estas práticas não devem ser entendidas em um sentido
restrito de paródia como ato cômico, mas sim de paródia
como ato político.
No teatro, podemos entender o queer como práticas de
subversão de marcas hegemônicas de gênero no corpo e na
voz dx atuante: desestabilizações de identidades fixas que
revelam a singularidade dos corpos vocais dissonantes.
Deste modo, em busca de corporeidades vocais
dissonantes em cena, contextualizo aqui alguns pressupostos
e práticas dos artistas Antonin Artaud, Roy Hart e Jerzy
Grotowski. Escolhi tais artistas por me inspirarem diretamente
na criação da prática desta pesquisa, a peça Pequeno Manual
de Inapropriações.
110

O foco do trabalho de Artaud, Roy Hart e Grotowski


não foi a queerização de corpos vocais em cena, com o
objetivo de desconstruir a representação de vocalidade
atrelada a gênero. Porém, percebo em seus discursos sobre
princípios da atuação e do trabalho vocal dx atuantes a
instauração de uma relacionalidade entre os corpos vocais (dx
atuantes e da audiência), que pode potencializar a criação de
sentidos múltiplos em cena.
Além disso, Grotowski e Roy Hart, diferentemente de
outrxs mestres do teatro, incentivaram a pesquisa de si por
parte dxs atuantes, sem definir espaços prévios de vocalidade
a partir da diferença sexual.
Talvez estas reflexões possam revelar algumas pistas
de caminhos trilhados no teatro europeu do século XX em
busca de corporeidades vocais dissonantes. As
considerações que farei procurarão perceber como princípios
de discursos e práticas destes artistas revelam caminhos
potencialmente desestabilizadores de representações
naturalizadas de vocalidades engendradas em cena.

O corpo vocal dissonante em Antonin Artaud

Começarei a esboçar este mapa dissonante com


Antonin Artaud, que neste contexto foi um dos poetas87 da
cena mais expoentes da primeira metade do século XX.
Radical em suas acepções sobre a encenação e a
atuação, o francês Antonin Artaud (1896-1948) criticou,
sobretudo, o teatro literário, cuja criação era centrada no texto
dramático:

Essa linguagem [da encenação] só


pode ser definida pelas
possibilidades da expressão

87
Poeta aqui tem o sentido de propositor, visto que muitos
pesquisadores afirmam que Artaud nunca conseguiu colocar
totalmente em práticas suas ideias acerca da arte teatral.
111

dinâmica e no espaço, em oposição


às possibilidades da expressão pela
palavra dialogada. E aquilo que o
teatro ainda pode extrair da palavra
são suas possibilidades de
expansão fora das palavras, de
desenvolvimento no espaço, de
ação dissociadora e vibratória sobre
a sensibilidade. (ARTAUD, 2006, p.
101-102).

A voz, no ideal de Artaud, estaria disposta a gerar


múltiplos sentidos em cena, diferentes instâncias de um
processo comunicacional que não primaria apenas pelo
discurso articulado da linguagem/texto, mas que procuraria
atingir o inconsciente da audiência através de seus sentidos:
uma voz que se tornaria corpo para chegar a outros corpos. A
palavra se transformaria em material de criação dramatúrgica
para x atuante no ambiente acústico da cena:

[...] ao lado desse sentido lógico, as


palavras serão tomadas num sentido
encantatório, verdadeiramente mágico –
por sua forma, suas emanações sensíveis
e já não apenas por seu sentido.
(ARTAUD, 2006, p.146).

A influência que Artaud traz de suas experiências


como vivenciador de rituais dos índios Taraumaras (México) o
faz repensar as relações estabelecidas entre palavra, voz e
cena:

Ele quer mudar o destino da palavra no


teatro, manipulá-la no ar como um objeto
concreto, torná-la significante em vários
planos, fazê-la atuar em conexão com os
gestos, com a luz. (ASLAN, 2003, p. 259).

Segundo o pesquisador Cassiano Quilici (2004), a


palavra tida como uma forma de magia em cena traz uma
112

essência pré-simbólica ao teatro artaudiano. A palavra-


encantamento, aliada à glossolalia (língua inventada), ruídos,
gritos, onomatopeias, sussurros e todo tipo possível de
experimento sonoro (como ele mesmo realiza em Pour en finir
avec le jugement de dieu88, peça radiofônica de 1947), aponta
sua pesquisa de desconstrução da linguagem em prol de um
teatro livre do domínio do discurso logocêntrico.
Para este poeta, artista de teatro, cinema e rádio, a
voz deveria ser dissonante ao texto dramático, criando níveis
diferentes de percepção da voz e das palavras através de
suas próprias sonoridades no espaço e nos corpos. Em busca
de um teatro ritualístico e ancestral, no qual os elementos da
cena não fossem a representação de uma realidade, mas a
própria realidade, Artaud propõe o retorno da magia ao teatro
(ARTAUD, 2006). O teatro artaudiano pretendia ser uma arte
atuante sobre os sentidos da audiência, e não sobre a razão:

A cena deixa de ser, como proposto na


tradição aristotélica, apenas uma ação
mimética, que representa uma narrativa
mítica ou ficcional, e passa a reivindicar
um poder de atuação sobre o “corpo” como
forma de acesso a novas modalidades de
ser. (QUILICI, 2004, p. 48).

É possível entender que essas “novas modalidades de


ser”, que Quilici atribui ao pensamento artaudiano, permitam
também que x atuante desestabilize as naturalizações de
vocalidade atrelada a gênero em cena?
As únicas relações diretas com gêneros (identidades
sexuais) que encontrei nos escritos de Artaud presentes em O
Teatro e seu duplo (2006), e nas bibliografias secundárias
consultadas, dizem respeito à respiração.
No texto Um atletismo afetivo (2006, p. 151-160),
Artaud - inspirado na Cabala89 - discorre sobre as categorias
de respiração que produziriam as paixões: andrógino

88
Para acabar com o julgamento de deus (tradução minha).
89
Seguimento religioso surgido no judaísmo.
113

(equilibrado, neutro), masculino (expansivo, positivo), e


feminino (atrativo, negativo).
Os estudos sobre a respiração na Cabala levam
Artaud a pensar nas bases orgânicas dos afetos, e na indução
dos estados afetivos nx atuante através da respiração
(MARTIN, 1991). Artaud propõe utilizar estas categorias em
várias combinações no atletismo afetivo, sem fazer menções
ao sexo dx atuante ou ao gênero de alguma personagem,
mas sim aos estados pretendidos no trabalho dx atuante
como xamã (MARTIN, 1991).
Neste território, o corpo vocal se reorganizaria e
poderia apontar para um caminho de dissonâncias de
vocalidade e gênero em cena?
A partir destas pistas, talvez seja possível aferir que na
cena ritualística e onírica artaudiana, criadora de uma
segunda realidade mais real do que a primeira (por invocar
pulsões extremas – a peste artaudiana), a desestabilização
das representações binárias de gênero que naturalizam os
corpos vocais nas categorias masculino e feminino poderia se
dar através da desconstrução da linguagem logocêntrica em
prol de outras possibilidades de linguagem (do corpo, da voz,
dos sons, do espaço), e mesmo pela troca da extrema
experiência literária (linguagem/representação/razão) para a
extrema experiência sensorial (corpo/voz/sentidos). Um “corpo
sem órgãos” seria um corpo vocal dissonante?
De acordo com Quilici,

O “corpo sem órgãos” nasceria,


justamente, de uma necessidade profunda
de liberdade, implicando um duplo
trabalho: dissolução do “organismo” e suas
“estratificações”; criação de um novo
corpo. Para Deleuze e Guattari, trata-se de
pensar e criar práticas “experimentais”
bem dosadas, que permitam desfazer
automatismos e produzir um corpo
povoado pela “circulação de fluxos e
intensidades”. (QUILICI, 2004, p. 54).
114

Nesta perspectiva, um corpo sem órgãos pode ser


entendido como um corpo em devir, em transformação.
Assim, sem fixações (automatismos), haveria no pensamento
artaudiano espaços para dissonâncias de vozes, e quiçá, de
corpos vocais em suas marcas específicas de gênero.
Todavia, Artaud figura no teatro muito mais como um
filósofo do que como um diretor teatral, devido a suas poucas
realizações de seu Teatro da Crueldade90, e muitos escritos
que deixaram pressupostos de encenação e atuação que
influenciam e inquietam filósofxs e artistas até a atualidade.
A pesquisadora feminista Jill Dolan (1991, p. 97)
acredita que o argumento artaudiano utilizado pelo teatro
feminista cultural americano dos anos 1960 e 1970 também
acabou sendo mais poético do que prático. As artistas
visavam sobrepor a presença do corpo feminino à supremacia
da linguagem masculina em cena, mas acabavam por se
contradizer ao ratificar as marcas específicas de gênero,
inscritas nas narrativas corporais apresentadas. A abordagem
essencialista do feminismo cultural também ignorou os
contextos específicos de formação de singularidades, como
etnia, classe social e orientação sexual não heteronormativa,
em busca de uma autenticidade una da mulher (DOLAN,
1991, p. 87).
Artaud teve uma vida breve (e grande parte vivida em
hospitais psiquiátricos) e poucas obras cênicas. Contudo,
Edward Sheer (2004) cita influências artaudianas nas obras
de Grotowski, Peter Brook, John Cage, Robert Wilson, entre
outros, ratificando a grande influência de Artaud para artistas
dos séculos XX e XXI.

90
Teixeira Coelho (1982) considera Les cenci, de 1935, o
espetáculo no qual Artaud chegou mais próximo da realização de
seu Teatro da Crueldade. Todavia, segundo SHEER (2004), em
suas palestras (1933 na Sorbonne, 1937 em Bruxelas e 1947 no
Teatro Vieux-Colombier) Artaud conseguiu performar princípios do
teatro ritualístico e antirrepresentacional que propunha em seus
escritos. Os principais textos sobre seu Teatro da Crueldade foram
escritos entre 1931 e 1936, e publicados na França em 1938 no livro
Le Thèâtre e son doble (O Teatro e seu Duplo).
115

O corpo vocal dissonante em Roy Hart

Outro importante artista da cena que desenvolveu


investigações para um corpo vocal dissonante foi o sul-
africano Roy Hart (1926-1975).
Hart graduou-se em Londres, onde conheceu Alfred
Wolfsohn (1896-1962). Wolfsohn foi professor de Hart e um
pesquisador da voz que refutou os princípios convencionais
de produção vocal, desenvolvendo uma técnica de expansão
da tessitura vocal. Fustigado pela formação convencional no
canto, que divide as vozes em naipes de acordo com a
natureza de extensão vocal de cada pessoa, Wolfsohn
encorajava seus alunos a explorar registros improváveis para
suas vozes, mesclando canto e terapia (corporal e emocional)
(BACKES, 2010). Wolfson foi muito influenciado pelas
pesquisas de Freud e Jung, o que o levou a buscar a
liberação das emoções reprimidas no seu corpo através da
catarse91 na reprodução dos sons agonizantes ouvidos por ele
durante sua participação na Primeira Guerra Mundial
(BACKES, 2010).
Trabalhando com os sons quebrados (broken sounds)
das passagens de registros, Wolfson estimulava xs alunxs a
irem aos extremos de suas tessituras92 e a investigarem a
diversidade tímbrica da voz, através de estímulos como a
imitação de sons de instrumentos e a alteração de posições
corporais (BACKES, 2010). Wolfson acreditava que o
desenvolvimento de todos os aspectos de uma pessoa
poderia ser feito através do trabalho de voz (MARTIN, 1991).

91
A catarse consiste em um “método terapêutico que permite a
evocação e a revivência de acontecimentos traumáticos que foram
reprimidos, permitindo a descarga dos afetos ligados a estes.”
(CERQUEIRA LEITE apud BACKES, 2010, p. 23-24).
92
Em seu ideal de 8 oitavas, Wolfson pretendia que xs alunxs
conseguissem interpretar todos os naipes da ópera A flauta mágica,
de Mozart, do grave profundo à soprano agudíssima. Roy Hart foi
um dxs alunxs que conseguiu a expectativa do mestre.
116

Foram grandes as contribuições de Wolfson para a


ampliação do conhecimento científico sobre a produção vocal.
Em alguns momentos, ele colaborou com institutos de
pesquisa, como o Zurich Laryngological Institute, em 1956,
quando levou Hart para a realização de exames que
comprovaram que suas pregas vocais não eram afetadas pelo
trabalho nos extremos de altura e timbre. Para Wolfson, esta
era a prova do grau de liberação da voz atingido pelxs alunxs
(MARTIN, 1991).
Roy Hart foi um dxs alunxs mais destacados de
Wolfson, e após a sua morte em 1962, continuou seu legado
com o Roy Hart Theatre. Enquanto o foco de Wolfson estava
no canto e no trabalho terapêutico, Hart - que já lecionava
para alunxs de Wolfson desde 1957 -, também era professor
de teatro, e resolveu assim unir as pesquisas vocais à cena
(BACKES, 2010).
Na formação inicial do Roy Hart Theatre, entre 1963 e
1967, que contemplou em seu corpo de atuantes ex-alunxs do
estúdio de Wolfson e outros membros externos, as pesquisas
transitavam entre o teatro, a música e a terapia, explorando o
todo da pessoa em sua subjetividade. O treinamento vocal do
grupo encorajava atrizes e atores a romperem com os
estereótipos vocais ocidentais, do canto (bel canto) e da cena
(mímesis vocal realista), valorizando a materialidade sonora
da voz e suas possibilidades.
Segundo Martin (1991, p. 65), o Roy Hart Theatre

redefiniu o verbo “cantar”’ para significar a


prontidão individual para produzir toda a
espécie de vozes que o atuante é capaz –
alta, fraca, baixa, suave, choros,
murmúrios, gritos, chios – todo o registro
de vozes anticonvencionais chamadas de
‘feias’, que, como ocultas, forças obscuras
dentro dele [do atuante], estão
117

constantemente lutando para serem


93
liberadas.

A exploração do cantar de cada atuante levava em


conta também as diferentes vulnerabilidades da personalidade
de cada pessoa, que deveriam ser exploradas para o
desbloqueio do potencial vocal através dos
descondicionamentos de atitudes, ações e comportamentos.
Martin (1991) indica o grande envolvimento corporal na
liberação e exploração da voz no Roy Hart Theatre, incluindo
práticas de Técnica de Alexander (educação somática) no
treinamento dxs atuantes. Na companhia, a corporeidade da
voz é levada em conta em suas relações intrínsecas com o
corpo e em sua produção material estendida.
As investigações do Roy Hart Theatre indicam a
influência de Artaud no desenvolvimento do trabalho do grupo,
que ao invés de condicionar a audiência à ilusão fabular,
visava liberá-la para o encontro consigo mesma através dos
sons (MARTIN, 1991).
No próprio processo de treinamento, Roy Hart incitava
xs atuantes a trabalharem seus corpos vocais a partir de
sonhos94, revelando a influência surrealista em sua
abordagem.

93
“redefined the verb ‘to sing’ to mean the individual’s willingness to
give all the manner of voices which he is capable of producing –
high, low, loud, soft, cries, gurgles, shouts, squeaks – the whole
register of so-called ‘ugly’ unconventional voices, which, like hidden,
darker forces within him, are constantly struggling to be released.”
(Tradução minha).
94
Linda Wise foi atriz do Roy Hart Theatre e cofundadora do
Panthéâtre, grupo formado por integrantes do Roy Hart Theatre
após a morte de Roy Hart (em 1975). Ela ministrou a oficina “A voz é
sempre um sonho” em Florianópolis no ano de 2014, no evento
Vértice Brasil – Festival de teatro feito por mulheres. A influência do
trabalho de Hart na abordagem de Lisa se dá, em uma primeira
visão tautológica, já no próprio título de sua oficina. Como
participante do curso, pude perceber que Linda afirma a influência
notável de Hart no trabalho desenvolvido pelo descentralizado
Panthéâtre (os integrantes desenvolvem muitos projetos individuais),
118

O Roy Hart Theatre inspirou compositores


contemporâneos como Stockhausen, Peter Maxwell Davies e
Henze a comporem obras para os potenciais vocais dxs
atuantes do grupo. As pesquisas sobre a musicalidade da voz,
em uma concepção estendida e contemporânea de música e
voz, e as relações entre voz e movimento, também foram
exploradas nos concertos de peças destes compositores
realizados pelo grupo, aproximando teatro, ópera
contemporânea e dança (MARTIN, 1991).
O trabalho de Roy Hart fez xs atuantes confrontarem-
se consigo mesmxs e com suas emoções, visando à liberação
da voz e das possibilidades de criação em cena. O
descondicionamento do corpo vocal em relação à suas
experiências emocionais, e consequente fixação de
características, visava à liberação da voz em todo o seu
potencial criativo e afectivo para a audiência, assim como nas
propostas de Artaud (MARTIN, 1991).
Mas, este encontro desestabilizador poderia
proporcionar novos modos de perceber os corpos e vozes em
suas potencialidades afectivas, e redefinir a própria noção de
humanidade, desconstruindo corporeidades vocais
engendradas e logocêntricas?
A desterritorialização do treinamento vocal engendrado
do bel canto e da relação tradicional com a palavra em cena
(cantada no conceito de musicalidade do próprio grupo)

mas ratifica também que sua abordagem, nestes mais de 30 anos,


abarcou outras influências e permissões, como práticas diversas de
dança e educação somática e mesmo técnicas mais tradicionais de
treinamento vocal. Todavia, a oficina teve como foco a integração
constante entre movimento e produção vocal, além dos estímulos à
descoberta de novas sonoridades em variações de alturas, timbres,
intensidades e ritmos. Lisa comentou que o trabalho com texto é
mais desenvolvido atualmente por seu companheiro e também
cofundador do Panthéâtre, Enrique Pardo, apesar de ela ter
realizado exercícios também com textos, focando nos estímulos
corporais, imagéticos e de ações/interações de atuantes para a
exploração da relação corpo-voz-palavra em cena, não focada
apenas na desconstrução semântica ou prosódica da palavra, mas
em todo seu potencial de criação de sentidos e afetos.
119

permitiu axs atuantes do Roy Hart Theatre a aproximação do


trabalho vocal cênico com a música contemporânea, a
percepção da corporeidade da voz como autorrevelação do
sujeito (uma unicidade movente de desejos de não fixação) e
a exploração do poder de encantamento da voz na cena, um
poder que age sobre os sentidos dxs corpos vocais, primeiro
dxs atuantes e depois da própria audiência.
Assim, a partir destas pistas, podemos pensar no
trabalho de Roy Hart como um caminho possível também para
as desestabilizações de vocalidades atreladas a gênero: um
espaço potente para corpos vocais dissonantes em cena.

O corpo vocal dissonante em Jerzy Grotowski

Segundo Martin (1991, p. 70), o diretor polonês Jerzy


Grotowski (1933-1999) também foi influenciado pelas
pesquisas vocais do Roy Hart Theatre, principalmente das
áreas de ressonância vocal, e pelos ideais artaudianos de
trabalho com a voz e a palavra em cena. Grotowski chegou
mesmo a fazer visitas ao Roy Hart Theatre nos anos de 1960.
A fase inicial de trabalho de Grotowski no Teatro das
13 Fileiras, e posteriormente no Teatro Laboratório de
Wroclaw foi destinada ao início de suas pesquisas sobre
treinamento de atrizes e atores e sua estética do Teatro
Pobre, focado no trabalho dx atuante.
Durante os anos de 1957 a 1969, o diretor polonês
encenou diversos espetáculos, tendo iniciado suas
experiências a partir da influência stanislavskiana de sua
formação em direção no TAM na década de 1950. Apesar de
abandonar a linha acumulativa de técnicas para a atuação a
partir de 1960, adotando a via negativa (MIRANDA, 2010),
Grotowski continuou centrando suas atenções no trabalho do
ator sobre si mesmo, sendo considerado por muitos um
continuador do Método das Ações Físicas de Stanislavski.
A via negativa grotowskiana propunha a eliminação
gradual dos condicionamentos e bloqueios do corpo através
120

do treinamento contínuo, em busca da organicidade na ação


dx atuante. A pesquisadora Maria Brígida de Miranda (2010)
indica uma possível visão essencialista de corpo na via
negativa, como uma autorrevelação de uma possível essência
dx atuante, que ignora a especificidade das histórias pessoais
e contextos culturais.
No trabalho vocal desta primeira fase, Grotowski
rejeitou o treinamento vocal de dicção e impostação da voz
(na máscara facial) utilizado nas escolas de teatro polonesas
na época (MARTIN, 1991). Ele focou o treinamento vocal dos
atores na abertura da voz, no desbloqueio de tensões para
uma produção vocal flexível e orgânica (MARTIN, 1991). O
polonês Zygmunt Molik (1930-2010) 95 foi neste período ator
principal da companhia dirigida por Grotowski, da qual
também era cofundador. Molik foi responsável pelo
treinamento vocal dos atores da companhia nesta fase, tendo
sido uma figura essencial no desenvolvimento das ideias
grotowskianas sobre a voz (CAMPO; MOLIK, 2012).
Para Grotowski, a abertura da voz garantiria um
processo de investigação (ou revelação) de múltiplas
possibilidades de vocalidades em cena. A pesquisa sobre os
vibradores da voz (pontos no corpo onde é possível sentir a
vibração da ressonância vocal), muito influenciada pela

95
Na década de 1970, na fase parateatral de Grotowski, Molik
iniciou o desenvolvimento do trabalho que resultou em seu método
“Voz e Corpo”, que inclui o “Alfabeto do Corpo”. Segundo Campo
(2012, p. 19-20), Molik concebeu seu método como “uma evolução
dos princípios de trabalho que utilizou como ator e líder da
companhia de Grotowski durante o ‘Teatro dos Espetáculos’”.
Mesmo depois da dissolução da companhia em 1984, Molik
continuou ensinando seu método a milhares de praticantes do
mundo inteiro, até seu falecimento. O ator português Jorge Parente,
radicado há muitos anos na França, foi incumbido por Molik de
continuar os ensinamentos de seu método. Parente continua a
ministrar cursos pelo mundo, e em 2012 eu pude organizar e
participar do curso “Do Corpo e da Voz à Composição Cinética”,
ministrado por ele e pelo professor português Tiago Porteiro na
UDESC. O princípio do trabalho continua sendo a abertura da voz a
partir do movimento e investigação de apoios corporais e vocais.
121

percepção da produção vocal em outras culturas (chinesa,


indiana, etc.) estava, para Grotowski, atrelada às descobertas
de diferentes frequências e timbres da voz, penetrando ao
mesmo tempo o corpo dx atuante e os corpos da audiência.
Deste modo, podemos inferir que a fuga de
identidades fixas movia a investigação dxs atuantes em busca
de seus universos pessoais de possibilidades, nas relações
com suas subjetividades e com xs outrxs atuantes. Logo, o
rompimento com a representação de padrões binários de
vocalidade e gênero poderia ser potencializada pela
investigação de diferentes possibilidades do corpo vocal.
A abertura da voz só seria possível através da
investigação da respiração e dos apoios corporais. Assim, o
treinamento vocal acontecia, nesta fase, apenas após o
treinamento corporal (GROTOWSKI, 1976), indicando a visão
que o diretor tinha sobre a relação indissociável entre corpo e
voz.
Para Grotowski, a voz seria uma extensão do corpo,
sendo voz e corpo uma coisa só. Ele afirmava que: “o
espectador deve ser envolvido pela voz do ator, como se ela
viesse de todos os lados, e não apenas de onde o ator está.”
(GROTOWSKI, 1976, p. 99). A ressonância da voz dx atuante
no espaço promoveria este encontro entre corpos, que indica
que a visão de Grotowski sobre os ressonadores/vibradores
não abarcava apenas uma ampliação das possibilidades de
criação vocal dx atuante, mas a corporeidade que a voz
poderia materializar no espaço.
A corporeidade vocal pode ser compreendida como
dissonante em Grotowski tanto por sua perspectiva de
expansão da extensão vocal quanto pela dissociação
proposta entre fala e prosódia e exploração de sons não
habituais em cena. Na montagem O príncipe Constante96

96
Uma reconstrução audiovisual do espetáculo foi realizada pelo
Centro Teatro Ateneo
Università di Roma "La Sapienza", e está disponível no link
https://www.youtube.com/watch?v=UtST2tTN4iA. Acesso em 30 de
maio de 2015.
122

(1965), por exemplo, é possível perceber estes princípios de


trabalho em vários momentos da peça.
A exploração de ações e reações vocais, emissão de
sons não habituais, construção de ambientes sonoros,
exploração da musicalidade da fala e mímesis vocal a partir
de animais e elementos da natureza são procedimentos
adotados pelo diretor no treinamento de atrizes e atores para
trazer qualidades diferentes às vozes dos personagens e aos
modos da atriz e do ator falarem o texto no treinamento e na
criação de espetáculos (GROTOWSKI, 1976 e 2007).
Grotowski (1976, p. 99) afirma mesmo que “o ator deve
explorar sua voz para produzir sons e entonações que o
espectador seja incapaz de reproduzir ou imitar”.
Roubine explica estes elementos da pesquisa vocal de
Grotowski:

Terceiro objetivo deste trabalho [o


treinamento vocal]: aprender a emitir
sonoridades e inflexões que não
pertencem aos hábitos cotidianos. O que
quer dizer, no fundo, reencontrar a magia
do canto ou do uso litúrgico da
vocalização. Grotowski salientou o quanto
essa magia, essa prática que o
espectador sabe ser incapaz de
reproduzir, é essencial ao prazer do
teatro. (ROUBINE, 2001, p. 24).

O trabalho com a magia da voz na fase dos


espetáculos demonstra a influência das ideias de Artaud no
trabalho desenvolvido por Grotowski. O ato total no teatro
grotowskiano, de um corpo como um organismo vivo, com
suas pulsões, ritmos e respirações, faz alusão direta aos
pressupostos artaudianos de atuação (SHEER, 2004, p. 06).
A busca por um teatro ritualístico como na montagem
Shakuntala (1960), ou a presença da ritualização no evento
teatral, no trabalho dx atuante ou nas práticas de
autoconhecimento das diferentes fases de Grotowski aponta
os caminhos posteriores que sua pesquisa seguiria.
123

Nas fases posteriores de trabalho, principalmente na


Arte como Veículo, a partir de 1986, Grotowski volta-se à
potência de memórias nos cantos e danças rituais de tradição,
principalmente afro-haitianos (MARTINS, CAMPO, 2014).
Tendo abandonado na primeira fase de trabalho a
montagem de espetáculos, e se focado no treinamento como
autoconhecimento, as canções eram utilizadas neste
momento como material para descobrir impulsos corporais,
atrelados ao corpo-memória de cada um: inconsciente coletivo
de memórias ancestrais que poderiam fazer emergir impulsos
para a criação de partituras físicas. Citando Maud Robart,
colaboradora de Grotowski neste período, xs pesquisadorxs
Janaína Martins e Giuliano Campo (2014, p. 56) afirmam que
“trata-se de uma estratégia pedagógica para provocar
relações, aberturas e encontros, consigo mesmo e com os
outros”. Impulsos corporais, ação vocal e ressonância são
utilizados como forma de expansão da consciência dx
participante desta fase do trabalho de Grotowski (MARTINS,
CAMPO, 2014).
As propostas de Grotowski para o trabalho vocal
buscavam uma relação expandida e original com a palavra e
com a cena, orgânica - no sentido de atingir os sentidos/corpo
da audiência - partindo da percepção da voz no corpo dx
atuante, instaurando assim uma profunda investigação
pessoal para a atuação. Neste contexto, podemos inferir que
a abordagem de Grotowski ultrapassa a exposição e eficácia
de um discurso, ou a fixação de modelos de treinamento
atoral e representação pela diferença sexual, em prol de um
amplo campo de possibilidades de vir a ser dx atuante.
A corporeidade vocal dissonante em Grotowski integra
a voz à produção de corporeidade afectiva, estimulando o
desbloqueio de condicionamentos psicofísicos em prol da
descoberta das múltiplas possibilidades de uma corporeidade
orgânica em ação no evento cênico.
A exploração de uma vocalidade estendida em seus
parâmetros de produção e possibilidades de relação com a
palavra, levando-a em conta como material de criação sonoro-
vocal, desloca a cena grotowskiana do realismo logocêntrico
124

para um território de encantamento e ritualização da ação


física e vocal.
Martin (1991) indica a influência direta de Grotowski no
teatro da segunda metade do século XX, citando como
exemplo grupos como Odin Teatret, dirigido por Eugênio
Barba (que acompanhou Grotowski por um curto período de
tempo na fase dos espetáculos), The Performance Group, no
período em que foi dirigido por Richard Schechner, e Living
Theatre, dirigido por Julian Beck e Judith Malina.
Como coloca Roubine, as pesquisas de Grotowski
ressoam ainda hoje na cena contemporânea, pois "uma das
singularidades do teatro contemporâneo reside em ter
(re)descoberto esta vocalidade plural que a tradição
psicologizante e mimética explorou muito pouco." (ROUBINE,
2001, p. 26).

Performance art e teatro performativo como


territórios propícios aos corpos vocais queer 97

Nos itens anteriores desta parte do mapa-tese, apontei


algumas pistas sobre a possível presença (ou potência) de
corpos vocais dissonantes em discursos e práticas sobre o
trabalho vocal em Artaud, Roy Hart e Grotowski. A partir
destas pistas, refleti sobre como estes artistas propunham
uma corporeidade afectiva da voz em cena, a exploração de
múltiplas possibilidades sonoro-vocais, e uma possível
desestabilização da produção de vocalidade atrelada a
gênero.
Assim como as ideias de Artaud influenciaram o
trabalho de Roy Hart, e por sua vez Grotowski inspirou-se em
ideias de Hart e Artaud, a visão sobre a presença da voz em
97
Esta seção será publicada na Revista VIS – Revista do Programa
de Pós-graduação em Arte da UnB, no dossiê sobre o III Seminário
A Voz e a Cena, realizado em novembro de 2013 na UnB, Brasília-
DF, do qual participei como integrante de mesa redonda e oficineira.
A publicação tem previsão para o segundo semestre de 2015.
125

cena destes diretores reverberou no trabalho de outrxs


artistas do século XX (anteriormente citadxs).
Em meu trabalho no teatro, nos papéis de atriz,
diretora, pesquisadora e professora de voz, estes discursos
transformaram-se em princípios de trabalho que procuro
revisitar constantemente para me reinventar.
No percurso de minha formação profissional, o
encontro com o campo da performance art me revelou um
espaço potente de desconstruções de discursos e práticas
hegemônicas e normatizadoras. Percebo nesta linguagem um
campo potente para ações políticas, que questionam
ideologias dominantes.
Neste campo de criação artística, e mais
especificamente em suas intersecções com o teatro
(performativo), venho desenvolvendo práticas teatrais
(espetáculos e performances98) e pedagógicas (oficinas e
cursos99) desde 2007.
A peça Pequeno Manual de Inapropriações, prática
desta pesquisa que é abordada no Corpo vocal queer como
um caminho que investiguei para a queerização do meu corpo

98
Espetáculos: Smoked Love (2009 – pesquisa, direção,
dramaturgia e atuação), ©elas (2011 – direção e dramaturgia),
Pequeno Manual de Inapropriações (2014 – pesquisa, direção,
dramaturgia e atuação). Performances: Retrato de uma mulher que
chove horas para marcar o tempo (2010 – criação e performance),
CPF – cadastro de pessoas falsas (2012 – criação coletiva), Abraço
Vocal (2013 e 2014 – criação coletiva), Contamin(a)ção (2013 –
criação coletiva), Apneia-suspensão do tempo-dor (2014 – criação
coletiva).
99
Curso Laboratório Permanente de Performance: curso realizado
em 2012, 2013 e 2014 no Centro de Artes da Udesc através do
Programa de Extensão Laboratório de Performance, sob minha
coordenação. Com encontros semanais, o curso abordava a arte da
performance através de leituras e práticas interdisciplinares, e
visava à montagem de performances com os participantes (alunos
da Udesc e comunidade em geral). Oficinas Performance e(m) ação
e Processos criativos para a voz em performance: oficinas curtas
ministradas em vários eventos no país desde 2012.
126

vocal em cena, foi desenvolvida a partir da pesquisa das


linguagens da performance art e do teatro performativo.
Eu considero estes campos potentes para a
desestabilização de vocalidades engendradas e
representações binárias de gênero por considerá-los espaços
de deslocamentos e desconstruções, espaços de ação
política.
Deste modo, tentarei esboçar aqui um breve histórico
do surgimento da performance art e de sua relação com os
Estudos da Performance (Performance Studies). Também
abordarei o conceito de performatividade, por ser ele um
conceito central para o estabelecimento da linguagem da
performance e da performatividade de gênero. Judith Butler
(2003) absorveu este conceito para analisar atos
performativos de gênero como ações culturalmente
construídas, repetidas e naturalizadas.
Então, voltemos ao começo. O que é (ou pode ser)
performance art?

O (possível) surgimento da performance art

Em 1952, um grupo interdisciplinar de artistas formado


por John Cage, Merce Cunningham, Robert Rauschenberg,
David Tudor, Charles Olsen, Mary Caroline Richards e Jat
Watt apresentou no Black Mountain College, nos Estados
Unidos, seu Untitled Event (Evento sem Tìtulo), uma ação
artística com algum planejamento (haviam ações planejadas –
dança, leitura de poemas -, quadros pendurados,
instrumentos a serem manipulados, etc.), mas aberto ao
acaso do acontecimento na relação com o público. Cage
estava estimulado pela recente leitura de Artaud, e trouxe
estas referências para a criação deste happening e de outras
obras (STOROLLI, 2009).
A proposta de unir diversas linguagens artísticas, como
a música, a dança, a literatura e as artes plásticas, em uma
127

espécie de teatro sem teatro100, aponta para o caráter liminar


que a arte contemporânea passaria a apresentar.
Ao colocar o corpo em evidência e destacar os
processos de improvisação para a criação de uma obra aberta
em seus sentidos, o happening antecipa os elementos que
constituiriam a linguagem da performance art, que se
estruturou como gênero artístico a partir da década de 1970.
A performance art surge então como uma arte inter e
multidisciplinar, dividindo a plasticidade e a sonoridade do
evento com a atuação dx performer (tendo influência notável
das body arts - a partir da década de 1950, que trazem o
corpo como suporte artístico). Ela enfatiza a apresentação do
corpo e das habilidades dx performer, conforme coloca
Renato Cohen:

O atuante, à medida que não tem, como


no teatro ilusionista, somente a
personagem para mostrar, terá também
que se “mostrar”. E para isso tem que ser
algo especial, pois a performance é um
“espetáculo”: se eu subo no palco é para
mostrar “algo diferente”. (COHEN, 2002, p.
103).

Este “se mostrar” citado por Cohen diz respeito às


habilidades específicas de cada artista, levando em conta seu
potencial e singularidade na proposta de criação e na
execução da mesma.
Assim como o happening, a performance art coloca em
ênfase o processo de ação e transformação da ação na obra,
porém com uma estrutura mais definida do que o happening.
Cohen (2002) define através desta maior elaboração estética
a diferença fundamental entre as duas artes.
A arte da performance abraça ainda as novas mídias e
tecnologias, criando simulacros e desterritorializando a
presença do corpo em sua abordagem liminar: realidade e
ficção, ausência e presença, representação e apresentação,

100
No sentido de teatro dramático representacional.
128

significado e sentido, são antes ambivalências (BONFITTO,


2013) do que dualismos trazidos à cena. Um território propício
para desestabilizar pensamentos totalitários, ideologias
dominantes.

O performativo e a performatividade na Performance


art e nos Performance Studies

Na década de 1970 os estudos sobre a performance


art encontram os Performance Studies, campo que investiga
as ações humanas em várias situações, não apenas
artísticas. Apesar de serem áreas distintas de conhecimento,
para o professor e pesquisador da UDESC Edélcio Mostaço
(2011), a performance art pode ser compreendida como um
campo crítico da performance.
Os Performance Studies (Estudos da Performance),
que têm como um de seus expoentes o americano Richard
Schechner, trazem como foco o estudo das ações humanas
não só na arte, mas também nos rituais, nas atividades
cotidianas, nos esportes, ou seja, em qualquer contexto de
interação social.
Tal campo de estudos emerge na década de 1960, e
abrange os mais diferentes campos do conhecimento, tais
como psicologia, antropologia, sociologia e arte.
Schechner, especificamente, é um grande referencial
para a área por ter promovido tanto a aproximação dos
estudos teatrais aos estudos antropológicos quanto por ter
criado o primeiro Departamento de Estudos da Performance,
na Universidade de Nova Iorque, em 1980, reconfigurado a
partir do então Departamento de Drama. Suas pesquisas
trazem colaborações de diversxs professorxs do
departamento, tais como Bárbara Kirshenblatt-Gimblett,
Michel Kirby, Diana Taylor, Peggy Phelan, entre outrxs.
Tanto Richard Schechner quanto Marvin Carlson
fazem uma análise das relações estabelecidas entre diversos
campos do conhecimento, pesquisadorxs e obras nos estudos
129

da performance. Schechner, em seu Performance Studies: an


introduction e Carlson em Performance: uma introdução crítica
apresentam um amalgamado de pesquisas que colocam em
evidência as ações humanas.
As artes incluem-se nestas pesquisas, com foco para
as artes performativas, que colocam o corpo e as ações em
evidência. A estas ações de performance Schechner nomeou
comportamentos restaurados, ou seja, ações repetidas e
treinadas, intencionalmente ou espontaneamente (ensaiar
uma performance, cozinhar).
Em todas as situações de performance, Schechner
(2003, p. 26) destaca as quatro instâncias que podem estar
presentes: “ser; fazer; mostrar-se fazendo; explicar as ações
demonstradas.”. Estas instâncias dizem respeito a toda ação,
pois:

ser é a existência em si mesma. Fazer é a


atividade de tudo que existe [...]. Mostrar-
se fazendo é performar: apontar, sublinhar
e demonstrar a ação. Explicar ações
demonstradas é o trabalho dos Estudos da
Performance. (SCHECHNER, 2003, p. 26).

Tanto na performance art quanto nos Performance


Studies os termos performativo e performatividade passam a
ser conceitos essenciais para a análise das ações humanas
(atuação humana) .
Em seminário101 proferido no Programa de Pós-
graduação em Teatro da UDESC, Edélcio Mostaço (2011)

101
Seminário proferido em 17.05.2011, no Programa de Pós
Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa
Catarina, em Florianópolis, integrante da disciplina Estética,
teatralidade e performatividade. A disciplina, com carga horária total
de 60 h, foi ministrada no primeiro semestre de 2011, com
seminários temáticos proferidos pelo professor Mostaço e
seminários analíticos realizados pelxs alunxs. Além de meu caderno
de anotações de aula, utilizo nesta pesquisa o material escrito pelo
professor para projeção em sala através de datashow, que chamo
de fichário do autor. O arquivo foi cedido por ele axs alunxs durante
130

afirma que em 1955, John Austin proferiu uma série de


conferências intitulada How to do things with words (Como
fazer coisas com palavras). Nestas conferências, o autor
demonstrou o potencial de ação da língua (“Sim, irei ao seu
show”, “Eu prometo ser fiel”, “Vou te matar”), nos acordos
verbais feitos através da linguagem.
Mostaço (2011) segue explicando que seu discípulo,
John Searle, deu prosseguimento às investigações das
funções da linguagem iniciadas por Austin e criou o conceito
de speech act (atos da fala), para se referir a este potencial
performativo da língua. Porém, tanto para Austin quanto para
Searle, o performativo designaria um potencial de ação, e não
a ação em si. Ambos relacionavam este potencial com a ideia
de falsidade, fingimento, e nesta relação entre realidade e
ficção, o performativo seria um ato falso.
Storolli (2009) aponta para divergências e
convergências históricas e conceituais entre os termos
performativo e performatividade, salientando o caráter aberto
e múltiplo dos conceitos.
Segundo a autora, os termos passam a ocupar lugar
de destaque no estudo de diversas disciplinas, e incidem
principalmente sobre a percepção da ação humana
(STOROLLI, 2009).
Storolli (2009) afirma ainda que o conceito de
performatividade parece ser mais adequado para o estudo do
fazer artístico contemporâneo, por facilitar o trânsito entre
diversas disciplinas e circular entre diversas áreas e
linguagens artísticas.
Segundo Wulf, Göhlich e Zirfas (apud Storolli, 2009, p.
34)

Quando se fala de performatividade,


refere-se a um conceito derivado para

o curso. Nas citações diretas, utilizo tanto as anotações de meu


caderno de notas quanto os textos do fichário do professor,
designando-o como autor das falas em ambas as situações, pois as
notas foram tomadas por mim procurando manter a fidelidade de
sua exposição.
131

caracterizar um campo de teoria e


discurso, no qual tem-se como ponto
central diferentes formas e teorias sobre
ação social e conhecimento. Em conjunto,
enfatizam a força performativa da língua e
da imaginação, da encenação e
representação artística, da ação social e
dos eventos rituais.

Mostaço (2011) explica que na década de 1960, o


filósofo francês Jacques Lyotard reinterpretou o conceito de
performatividade, inserindo outras quatro instâncias para sua
análise: a psicanálise de Lacan, a sociedade do espetáculo de
Guy Debord, a desmontagem do sujeito cartesiano e a
ascensão das novas mídias.
A crítica estruturalista feita por Lacan ao pensamento
de Freud relaciona a construção da personalidade com as
dinâmicas interativas na sociedade e na cultura.
A análise de Guy Debord refere-se à transformação
que o sistema capitalista ensejou em nossas relações:
relacionamos-nos mais com imagens e representações
(dinheiro, bolsa de valores) do que com seu referente (o sal,
pagamento original do salário?).
A desmontagem do sujeito cartesiano é relacionada
por Mostaço a várixs filósofxs como Marx, Nietzsche, Bakhtin
e Foucault, que questionaram as relações entre sujeito e
sociedade em diferentes aspectos.
As novas mídias multiplicam e aceleram as
possibilidades de comunicação, promulgando que:

[...] a performatividade designará não mais


uma operação falsa ou ficcional, mas a
própria dinâmica das performances em
geral, marcando a dimensão viva e ativa
de todas as performances, especialmente
quando pensamos que toda a realidade
social é construída. (MOSTAÇO, 2011,
s/p).
132

Para o autor, Lyotard adota em sua acepção de


performatividade a realidade do simulacro.
Mostaço (2011) explica que o simulacro seria a
simulação de algo (símile), e foi empregado pela primeira vez
por Platão, em sua Alegoria da Caverna. Assim, segundo
Mostaço (2011), o conceito de mimese, que traz o referencial
para sua representação, teria o simulacro em suas
extremidades, de infra ou ultrarrepresentação, que
poderíamos relacionar de um lado com a comédia, o grotesco
e o caricato (ultrarrepresentação) e de outro com a defasagem
do referencial (infrarrepresentação). A performance art e o
teatro contemporâneo geralmente habitam este território
estiolado, de infrarrepresentação (MOSTAÇO, 2011).
Mostaço apresenta ainda outras leituras a partir dos
conceitos de performativo e performatividade, como as de
Paul de Man, que relaciona o performativo com um
estranhamento entre gesto e atuação, e a de Judith Butler,
que define o gênero como um ato de citação constante, ou
seja, de repetição, e por isso o gênero seria performativo.
A partir dessas análises, Mostaço conclui que
performatividade pode se referir a três situações: ao modo de
executar a ação, ao modo de estranhar a ação e também ao
modo de estiolar (debilitar/imitar/citar/perverter) a ação.
Em relação ao modo de executar a ação, coloca-se,
portanto, em foco o processo, a transformação de algo na
ação (quer o corpo, o espaço ou o objeto) para que ela se
realize. Ao estranhar a ação, deslocamos algo de seu
contexto habitual, natural (porque contratual, naturalizado). Ao
estiolar a ação, subvertemos seu modo de desenvolvimento, a
ponto de perder-se o referencial da mesma.
Matteo Bonfitto (2013, p. 175) cita Hans-Thies
Lehmann para reconhecer que mesmo as vanguardas do
início do século XX (com exceção, segundo os autores, dos
surrealistas) ainda apresentavam em suas obras mais radicais
um caráter “[...] essencial do teatro dramático, na medida em
que permanecem fiéis ao princípio da mimese da ação.”.
Neste sentido também, Mostaço (2011, s/p) afirma que
na estética naturalista, a performatividade enquanto
133

subversão e valorização do procedimento da ação é quase


imperceptível, porque é disfarçada na naturalização criada no
contexto da obra.

O teatro performativo

Érika Fischer-Lichte em The transformative power of


performance (2008) propõe uma estética do performativo, que
atravessa as artes do século XX, colocando os processos
artísticos, o como fazer, no centro das investigações das
artes. No teatro, a partir da década de 1960 o performativo
passa a designar um espaço de processo e compartilhamento
entre artistas e audiência, e não de obra acabada e
observação passiva.
Josette Féral (2008) cunha o termo Teatro
Performativo para se referir à centralidade da
performatividade no teatro contemporâneo. A influência da
arte da performance no teatro transforma atrizes e atores em
criadorxs e executorxs de suas ações:

No teatro performativo, o ator é chamado a


“fazer” (doing), a “estar presente”, a
assumir os riscos e a mostrar o fazer
(showing the doing), em outras palavras, a
afirmar a performatividade do processo. A
atenção do espectador se coloca na
execução do gesto, na criação da forma,
na dissolução dos signos e em sua
recriação permanente. Uma estética da
presença se instaura. [...] Nesta forma
artística, que dá lugar à performance em
seu sentido antropológico, o teatro aspira a
produzir evento, acontecimento,
reencontrando o presente, mesmo que
esse caráter de descrição das ações não
possa ser atingido. A peça não existe
senão por sua lógica interna que lhe dá
sentido, liberando-a, com frequência, de
134

toda dependência, exterior a uma mímesis


precisa, a uma ficção narrativa construída
de maneira linear. O teatro se distanciou
da representação. (FÉRAL, 2008, p. 209).

No teatro performativo, avesso a narrativas lineares e


personagens factíveis ao desenvolvimento da ação dramática
una, o como x artista cria/performa sua obra diz respeito à
performatividade da mesma.
No trabalho atoral, a performatividade se refere ao
modo de fazer os desdobramentos de seu eu em cena,
relacionando-se diretamente às habilidades criativas dx
atuante, e no caso da encenação, ao jogo da cena que se
constrói na inter-relação de todos os elementos do
espetáculo, incluindo os corpos vocais dx performer e da
audiência.
Josette Féral contextualiza a atuação no teatro
performativo na seguinte perspectiva:

O processo performativo age diretamente


no coração e no corpo da identidade do
performer, destruindo, reconstruindo seu
eu (moi), sua subjetividade, sem a
passagem obrigatória por uma
personagem. A performance toca o sujeito
que vai para a cena, que se produz, que
executa. Se o ator performa, ele realmente
age com o seu corpo e sua voz em cena.
(FÉRAL, 2008, p.83).

Neste sentido, performatividade pode também sugerir


a transform-ação, a mudança, a imprevisibilidade, a alteração
e instabilidade dos sentidos criados em cena, tanto por
atuantes quanto por outros elementos da encenação.
Mostaço (2011, s/p) afirma que os Estudos da
Performance abordam os atos de repetição do
comportamento restaurado, enquanto a performance art
abarca os atos de execução desse comportamento, ou um ato
originário/inaugural, como gesto original. A performance art
seria assim um campo crítico da performance, que questiona
135

normatizações e naturalizações de comportamentos,


deslocando as ações de sua ordem e espaços referenciais,
legíveis e legitimados.
Por isto, considero a performance art e o teatro
performativo campos potente para os corpos vocais queer,
para desconstruções de vocalidades atreladas a gênero e
desestabilizações de representações binárias de gênero. São
espaços de singularidade (ato originário) e performatividade
(potencial de transformação da ação).
A autorreferencialidade se coloca na performance art e
no teatro performativo como contraponto à referencialidade.
Por tratar de deslocamentos, exposição processual de ações
e estiolamento do referencial, x performer expõe a própria
realidade da ação, e não representa outra realidade pré-
existente (FISCHER-LICHTE, 2008). A criação de sentidos se
dá, por parte da audiência, durante o processo da ação e da
transformação de algo, pelas relações estabelecida na e com
a obra, e não apenas por relações semânticas (significados
dados a priori).
Assim, os territórios da performance art e do teatro
performativo surgem como espaços potentes na
desestabilização de ações naturalizadas. O deslocamento de
ações referenciais e o fomento aos sentidos instáveis na obra
podem permitir um espaço de criação estranhado, estiolado,
dissonante às normatizações de representação de voz e
gênero em cena: um espaço de desconstrução pretendido em
Pequeno Manual de Inapropriações.

Devir queer em performance

Levando em conta os estudos apresentados sobre


princípios de criação e análise nos territórios da performance
art e do teatro performativo, será que a voz e a palavra
(nestes espaços) poderiam fugir da relação hierárquica da
retórica (um texto para uma voz, uma voz para um texto), da
mimesis do cotidiano (do realismo/naturalismo) e criar
136

sentidos em cena deslocados do referencial do universo


empírico?
Segundo a pesquisadora alemã Erika Fischer-Lichte
(2008), a voz e a palavra podem gerar corporeidade e
acontecimento. Ao analisar artistas da performance como
Diamanda Galás, Rachel Rosenthal, David Moss e Laurie
Anderson, Fischer-Lichte afirma:

Os artistas não restringiram suas vozes


para servir como o meio da linguagem. Em
vez disso, a voz se fez ouvir por si própria.
A voz de autosserviço não implica
necessariamente uma dessemantização,
como tem sido dito muitas vezes. Pelo
contrário, o polimorfismo da voz liberou
uma multiplicidade de significados nas
palavras. Ela apenas complicou uma
interpretação sem ambiguidade, mas não
destruiu a inteligibilidade linguística como
um todo. Com cada respiração, a voz
também, se não em primeiro lugar e
principalmente, dirigiu a atenção do
ouvinte para as suas próprias qualidades
especiais e expressou a corporeidade do
sujeito enquanto colocada-no-mundo-para
os outros. 102 (FISCHER-LICHTE, 2008, p.
128).

Deste modo, mesmo sem existir como referencial no


cotidiano dx espectadorx, a voz em cena imprime sua

102
"The artists did not restrict their voices to serve as the medium of
language. Instead, the voice made itself heard for its own sake. The
self-serving voice did not necessarily imply a de-semantization, as
has often been claimed. Rather, the voice's polymorphism released a
multiplicity of meaning in the words. It only complicated an
unambiguous interpretation but did not destroy linguistic intelligibility
as a whole. With each breath, the voice also, if not first and foremost,
directed the listener's attention to its own special qualities and
expressed the subject's bodily being-in-the-world to others."
(Tradução minha).
137

presença, materialidade e corporeidade, do corpo dx atuante


para o corpo da audiência através do espaço, e cria sentido,
conforme coloca Fisher-Lichte:

A materialidade da voz revela a


materialidade da performance em sua
totalidade. A voz captura tonalidade assim
como ela ressoa no espaço; ela enfatiza
corporeidade, pois deixa o corpo através
da respiração; marca espacialidade,
porque seus sons fluem no espaço e
entram nos ouvidos dos espectadores
articulando assuntos iguais. Através de
sua materialidade, a voz já é uma
linguagem, sem ter que primeiro se tornar
um significante. 103 (FISCHER-LICHTE,
2008, p. 129-130).

A voz já é produtora de sentidos antes da palavra


articulada, sem necessitar de um argumento claramente
exposto ou de um referencial conhecido para criação de
sentido e experiência artística. Nesta perspectiva, a voz e
palavra podem gerar universos autorreferenciais, que
ultrapassem o logos engendrado e atuem no espaço e no
corpo da audiência.
A arte da performance e seus desdobramentos no
teatro performativo permitem pensar em uma vocalidade
performática e dotada de corporeidade, instável, que
desestabiliza padrões culturais de representação em cena, e
consequentemente, põe em xeque a cena logocêntrica e as
representações binárias de gênero. Um território propício a

103
"The materiality of the voice reveals the performance's materiality
in this entirety. The voice captures tonality as it resounds in space; it
emphasizes corporeality because it leaves the body through
respiration; it marks spatiality because its sounds flows out into the
space and enters the ears of spectators and articulating subjects
alike. Through its materiality the voice already is language without
having to first become a signifier." (Tradução minha).
138

desterritorializações, um local potente para corpos vocais


queer em performance.
Neste contexto, um corpo vocal queer em performance
seria um corpo vocal potente na materialização de sua
corporeidade, afectante, e desestabilizador das naturalizações
de vocalidade e gênero em cena. Um corpo vocal queer, de
sujeito desejante, desloca as estruturas normativas através de
dissonâncias – marginalizações da vocalidade e atos de
gênero. O queer/estranho no corpo vocal não precisa remeter
a categorias fixas de gênero, mas ao entre, aquilo que não se
nomeia, um corpo vocal em devir104, que está em
transformação. Devir queer.
A performance, que substancializa o tempo presente,
inscreve-se em um tempo-espaço de desaparição constante.
Assim, o corpo vocal queer pode desestabilizar a unicidade de
sentido no processo de exposição e transformação da ação
em cena, e criar espaços instáveis de identificação para a
audiência: espaços que rompam com as relações
culturalmente construídas entre vocalidade e gênero.

Um exemplo de corpo vocal queer em performance -


Laurie Anderson

Umx dentre tantxs artistas que habitam o território da


arte da performance, desestabilizando as relações
naturalizadas entre vocalidade e gênero, é a americana Laurie
Anderson. Optei por trazer Anderson para este mapa devido
ao conjunto de dissonâncias que ela propõe entre voz, corpo
e espaço.
Farei aqui uma breve reflexão do clip que lhe rendeu
fama na década de 1980, The Superman, e da música que dá

104
O conceito de devir é discutido na filosofia desde a Grécia Antiga
(Platão, Aristóteles) até a atualidade (Deleuze). De modo geral, trata
da potência de transformação, de vir a ser, e não de um estado dos
seres.
139

título ao álbum Big Science, de 1981, para inferir sobre a


criação da artista de um corpo vocal queer em performance.
O clip da música The Superman pode ser considerado
uma videoperformance, pois traz Anderson executando uma
série de ações performáticas, com intermediação de diversas
tecnologias, como efeitos de iluminação, vídeos, imagens,
sombras e outros elementos que criam um ambiente high tec.
O que mais impressiona é que sua voz apresenta um
excedente de efeitos de equalização (alteração dos
parâmetros do som/voz) o tempo todo, mesmo durante o
trânsito entre o canto e a narração da letra/texto. Um timbre
metalizado compõe com o arranjo vocal minimalista de fundo,
que repete sempre a mesma nota, mantendo a divisão rítmica
inalterada e criando uma espécie de mantra sobre o qual a
voz “cibernética” de Anderson canta e fala.
A figura andrógina da cantora é acentuada pela
presença simultânea de seu corpo com cabelos curtos e terno
e seu mantra vocal de fundo, em tonalidade médio-aguda.
Esse mantra é ainda contraposto pelo timbre equalizado na
narração, distorcido e médio-grave, criando um duplo de
Anderson. Sua persona aponta para um estereótipo do gênero
masculino na dimensão visual de seu corpo vocal, que é
dissonante em relação à vocalidade engendrada (região
médio-aguda para mulheres e médio-grave para homens),
desconstruindo clichês de gênero.
Já em Big Science, Anderson inicia a faixa com a
mímesis vocal do uivo de um lobo, que com a devida
equalização chega a pôr em dúvida sua fonte sonora (lobo
real ou Anderson?). A experimentação da corporeidade da
voz se dá em Anderson na exploração de diversas
possibilidades de vocalização, com ou sem palavras.
Aqui também a artista experimenta o livre trânsito entre
a voz falada e a voz cantada, na narração de acontecimentos,
impressões e diálogos que a letra da música/texto da obra
traz. O timbre não sofre alterações de qualidade, mas efeitos
como delay (eco) são explorados. Há também a mímesis do
som do relógio cuco (coo-co) ao marcar a hora nos
entremeios da canção.
140

Anderson cria nestes em outros experimentos um


espaço onírico composto por sua voz e música minimalistas,
que constroem uma paisagem sonora para x ouvinte.
A respeito de Anderson e de outrxs artistas
contemporânexs a ela que também realizavam
experimentações com voz falada/cantada e tecnologia,
Fischer-Lichte (2008, p. 128) afirma:

Tais momentos [de experimentações


vocais] não foram produzidos apenas por
meio de técnicas vocais específicas, mas
também - especialmente nos casos
de Anderson, Galás e Moss - através da
mídia eletrônica, que ampliou ou
multiplicou a voz, de modo a distribuí-la
fragmentada e distorcida através
do espaço, transformando o espaço
auricular em uma paisagem sonora. 105

A tecnologia aponta para a ambivalente relação entre


presença e ausência do corpo vocal (representificado e
reiterado pelo vídeo), e para a duplicação da presença deste
corpo na cena. Anderson também utiliza sintetizador ao vivo
em suas apresentações, o que destaca ainda mais a voz
midiatizada, porque além de amplificada por sistema
eletrônico a voz tem seus parâmetros alterados,
desnaturalizando sua produção.
Então, o corpo vocal é dissociado para ser novamente
associado na sobreposição da presença física e da presença
mediada pela tecnologia em cena. Essa duplicação ratifica a
performatividade da obra, instaurando um simulacro
hipertextual.

105 “
Such moments were not only produced through specific voice
techniques but also – especially in the cases of Anderson, Galás and
Moss – through electronic media, which amplified or multiplied the
voice so as to distribute it fragmented and distorted across a space,
thus transforming the aural space into a soundscape.” (Tradução
minha).
141

Sua persona crossking evoca a representação do


gênero masculino, e sua vocalidade virtualizada gera um
espaço de estranhamento em relação à sua persona,
oferecendo ambiguidade à representação de gênero pela
subversão da naturalização heteronormativa do corpo vocal.
Anderson desloca voz e gênero de seus lugares-comuns de
engendramento e produção, estiolando os referenciais de
identidade sexual e vocalidade em seus vídeos.
A arte da performance e o teatro performativo podem
ser considerados espaços de criação autopoiética106
(FISCHER-LICHTE, 2008), por serem autorreferenciais, na
medida em que cada obra cria seu próprio universo a partir
das relações entre as singularidades criadoras dxs artistas e o
acontecimento artístico na apresentação para a audiência,
destacando-se o jogo da cena/performance e a experiência
partilhada por artistas e público durante a obra.
Nestes territórios, os atos originais de (re)criação
infrarreferencial e autorreferencial dx performer, possibilitam a
busca por um corpo vocal queer em performance, que explore
outros espaços para a produção de vocalidade e outras
possibilidades de ser e agir em cena, desnaturalizando os
corpos vocais engendrados na arte e a própria escuta da
audiência.
Através de trabalhos de artistas/performers como
Laurie Anderson, podemos perceber como a voz pode ampliar
sua atuação para além da reprodução de enunciados, da
relação semântica com o texto/letra musical ou ainda da
obediência às escalas e convenções musicais dominantes.
Nestes territórios, a voz pode passar também a ser veículo
para explorações fonéticas, construção de paisagens sonoras,
intermediação tecnológica e investigação de vocalidades
diversas geradoras de sentidos, contribuindo para a

106
Maturana e Varela (1998) diferenciam os sistemas autopoiéticos,
necessariamente formados por seres vivos, dos sistemas
alopoiéticos, formados por máquinas artificiais. Enquanto o primeiro
produz a si mesmo em suas relações internas e externas, o segundo
produz outra coisa diferente de si (ex.: um carro a ser
operado/dirigido por uma pessoa).
142

instauração de um tópos de referenciais instáveis para a obra


artística: um espaço para o devir queer do corpo vocal em
performance.

Uma questão de escuta?

Quando xs artistas do século XX (dos movimentos


futurista, dadaísta, surrealista, do teatro e da música)
resolveram investigar novas possibilidades de produção
sonora com a voz, novas relações entre voz e palavra e novos
potenciais de afecção da audiência através da presença da
voz e sua corporeidade, criaram estranhamentos para os
ouvidos acostumados aos padrões de fala e musicalidade da
época.
A retomada da arte da vocalidade na Poesia Sonora 107
do século XX, que engloba de acordo com Philadelpho
Menezes (1992, p. 09) “a elaboração fonética, vocal, acústica,
eletroacústica das poéticas de experimentação de nosso
século”, procurou

um novo modo de pensar a poesia como


arte da vocalidade não domada pela
linguagem comunicativa e letrada, e sim
libertada num espaço da a-
comunicabilidade (não
anticomunicabilidade) que não carrega

107
Philadelpho Menezes (1992) conceitua a poesia sonora antes da
década de 1950 como poesia fonética, por se utilizar apenas dos
recursos vocais sem intermediação tecnológica, e posteriormente
como poesia sonora, por incorporar também as alterações
proporcionadas pela eletroacústica. Segundo o autor, “se as
vanguardas históricas haviam mantido uma marca nítida da poética,
em seus experimentos fonéticos, ainda que em ruptura com os
cânones clássicos, e uma distinção mais ou menos clara entre
poesia e canto, a poesia sonora e as músicas concreta e eletrônica
pareciam buscar, ao contrário, o definitivo cancelamento de suas
diferenças [...].” (MENEZES, 1992, p. 14).
143

significados mas somente sua própria


presença no mundo. Essa presença é a do
indivíduo corporalmente vivo, repensada a
partir de sua relação física e sensorial com
o ambiente em que vive, reposto no centro
das vivências estética e cotidiana, num
momento em que ambas se fundem.

A necessidade deste estranhamento, propositalmente


causado à audiência, certamente surgiu da percepção de
padrões naturalizados de escuta dxs próprixs artistas,
refletidos nas produções artísticas do período, pois segundo
Menezes, xs artistas procuraram

se fixar num campo da oralidade instável,


experimental porque distinta da folclórica
[...], daquela conversacional e da prosódia
recitatória que informa a música popular
das mídias eletrônicas. (MENEZES, 1992,
p. 10).

A vocalidade, na vida e nas artes, revela não só a


impressão gerada por uma voz, mas um modo de escuta no
qual essa voz foi culturalmente treinada.
Não há medidas para a musicalidade ou para a
vocalidade, nem para as relações estabelecidas entre
consonância e dissonância nas culturas, mas há contextos
normatizadores de escuta e produção.
Murray Schafer (1991) desenvolve um amplo estudo
sobre a sobrecarga acústica da contemporaneidade, e de
como ela afeta nossos modos de escuta a partir da poluição
sonora, ou da nova paisagem sonora mundial, como o autor
conceitua. Schafer (1991) afirma que a poluição sonora faz
com que percamos a escuta de alguns sons contínuos e
desagradáveis, e também deixemos de perceber certos sons,
principalmente de intensidade mediana (nem muito fortes nem
muito fracos).
Neste contexto, Schafer (1991) desenvolve uma nova
proposta pedagógica para o ensino da música, com foco na
144

escuta (limpeza dos ouvidos) e na percepção e incorporação


de sonoridades produzidas no cotidiano das cidades.
A capacidade de escuta humana está fixada entre a
faixa de 14 a 20.000 Hz (vibrações por segundo), com
pequenas variações de pessoa para pessoa. Esta é uma
estratégia muito interessante de nossos corpos, já que não
conseguimos ouvir os infrassons (sons com frequências
abaixo de nossa capacidade de escuta) do nosso próprio
corpo, como o som das ondas cerebrais e o som da corrente
sanguínea (SCHAFER, 2001).
Jonathan Goldman diferencia ouvir de escutar. Ele diz
que:

Escutar é uma função ativa, enquanto


ouvir é uma função passiva. A escuta
envolve o uso dos ouvidos como órgãos da
consciência. Quando ouvimos, não
fazemos discriminação entre os sons que
nos rodeiam. Talvez nem mesmo os
percebamos. E ficar sentado em silêncio
nos permite ativar a escuta. Há muitos
níveis de escuta. O primeiro deles trata de
um passo gigantesco: superarmos a
passividade da audição e darmos início à
atividade da escuta, conscientizando-nos
do grande número de sons que nos
cercam. A escuta nos abre para os sons.
(GOLDMAN, 1994, p. 82).

Já Pierre Schaeffer (1993), compositor e pesquisador


musical, divide a escuta humana em quatro funções: ouvir,
escutar, entender 108 e compreender.

108
Segundo Reyner (2011, p. 97) existe um problema de tradução
com o verbo que designa esta função da escuta, visto que “entendre
é a função da escuta referente à intencionalidade. Função
intraduzível para o português, uma vez que não possuímos um
verbo para escuta com o potencial semântico de entendre, isto é,
capaz de assumir o sentido dos outros três verbos.”. Todavia, optei
145

Ouvir é o processo passivo, fisiológico e acústico de


nossa escuta: ouvimos os sons dentro do espectro sonoro que
somos capazes, na medida em que estes sons são
produzidos em uma distância que nos permita perceber suas
intensidades. Ouvir é uma ação contínua de nossa escuta e
se dá a todo o momento: “é perceber pelo ouvido”
(SCHAEFFER, 1993, p. 90). Segundo Schafer (1991), John
Cage já havia percebido a impossibilidade do silêncio
absoluto: ao entrar em uma sala com isolamento acústico pela
primeira vez, ele ouviu dois sons, um grave e um agudo. O
engenheiro lhe explicou que o agudo era o som de seu
sistema nervoso, e o grave de seu sangue circulando nas
veias. Cage concluiu então que o silêncio absoluto não existe,
pois sempre está acontecendo algo que produz som. Neste
sentido, Schaeffer conceitua ouvir em concordância com
Goldman.
Já escutar é um processo ativo, que diz respeito a dar
atenção ao que se ouve, a ter interesse pelo que se ouve.
Escutar é ouvir um som com atenção, visando “algo além dele
mesmo: uma espécie de ‘natureza sonora’ que se oferece no
conjunto da minha percepção” (SCHAEFFER, 1993, p. 93).
Escutar é perceber questões particulares de um som.
Entender (entendre) é uma escuta com
intencionalidade, com o direcionamento da percepção. A
escuta, neste caso, está direcionada à compreensão do som
pela própria experiência do ouvinte.
Por fim, compreender é reconhecer o significado do
som, de seu sentido, através de associações subjetivas e
intersubjetivas (códigos coletivos).
A partir da influência das tecnologias de gravação,
edição e mixagem na música, Schaeffer (1993) desenvolve o
conceito de escuta reduzida como fuga das escutas
condicionados do cotidiano: a escuta cultural e a escuta
natural. A escuta cultural é, para Schaeffer, uma escuta banal,
com interesse em decodificar os sons pelas mensagens e
valores atribuídos a ele. Estas mensagens e valores são

por manter a tradução original do livro de Schaeffer utilizado nesta


cartografia.
146

percepções dominantes do som enquanto signo109. Já a


escuta natural é uma escuta especializada, comum a seres
humanos e animais, gerada através do interesse pelos
eventos sonoros como índices110 de algo.
A escuta reduzida seria então uma fuga das escutas
condicionadas (cultural e natural), estando focada nas funções
de ouvir e entender: ao ouvir um som como objeto sonoro
“não procuro mais, por seu intermédio, obter informações
sobre outra coisa (o interlocutor ou o seu pensamento). É o
próprio som que eu viso, é a ele que eu identifico.”
(SCHAEFFER, 1993, p. 244).
Schaeffer relacionou a escuta reduzida com o conceito
da fenomenologia, epoché: o descondicionamento dos hábitos
de escuta, o retorno à experiência originária da recepção
sonora. Segundo Michel Chion (apud Reyner, 2011, p. 104), a
epoché é para Schaeffer

uma atitude de “suspensão” e de


“colocação entre parênteses” do problema
da existência do mundo exterior e de seus
objetos, pela qual a consciência faz um
retorno sobre ela mesma e toma
consciência de sua atividade perceptiva
enquanto fundadora de seus “objetos
intencionais”. A epoché se opõe à “fé
ingênua” em um mundo exterior onde se
encontrariam os objetos em si, causas da
percepção. Também se opõe ao esquema
“psicologista” que considera as percepções
como os traços “subjetivos” de estímulos
físicos “objetivos”. Ela se distingue enfim
da “dúvida metódica cartesiana”, no

109
Em semiótica, diz respeito à representação parcial de algo
concreto. Ex: a foto da casa representa a casa em si,
transformando-se em seu signo.
110
Em semiótica, diz respeito à associação de uma coisa com outra.
O índice não representa algo concreto, mas faz alusão a algo
concreto, por associação. Ex: o catavento é um índice do vento,
assim como a fumaça é um índice do fogo.
147

sentido que ela se abstém de toda tese


sobre a realidade ou a ilusão.

Sem uma tese (interpretação parcial/possível) sobre a


realidade, a escuta reduzida, que foge dos condicionamentos
de representação dos sons (signo e índice), permite a fuga da
recepção hegemônica no processo de escuta.
Apesar do conceito de escuta reduzida de Schaeffer
ter sido desenvolvido no contexto da música concreta e do
ambiente acusmático (a música é gravada e reproduzida
somente por meios eletrônicos), tomarei a liberdade de
transpor este conceito para as artes da cena,
independentemente da presença ou não do performer ou
qualquer outra fonte sonora ao vivo durante a produção do
som.
Sei que uma das questões principais da escuta
reduzida de Schaeffer é desfocar a atenção do ouvinte de
música concreta à fonte sonora que cria/gera o som. Porém,
sua proposta de fuga de condicionamentos da escuta me
interessa para pensar o corpo vocal em cena, com ou sem
intermediações tecnológicas. Assim, utilizo aqui o conceito de
escuta reduzida como uma escuta que foge a
condicionamentos, que é estimulada a perceber o objeto
sonoro em sua materialidade, fugindo de representações
hegemônicas dos sons e vozes em cena.
Neste sentido, a escuta reduzida, focada na
materialidade do objeto sonoro, pode ampliar a percepção do
ouvinte nos processos subjetivos de criação de sentidos,
desconstruindo lugares fixos de vocalidade atrelada a gênero.
148

Escuta queer111

A professora do Departamento de Música da


Universidade de Liverpool, Freya Jarman-Ivens, no livro
Queer voices: technologies, vocalities and the musical flaw
(2011), analisa vozes queer de cantorxs na música, com foco
em Diamanda Galás, Maria Callas e Karen Carpenter.
A pesquisadora investiga a recepção da voz e as
relações de identificação e não-identificação com as vozes
que fazem emergir outros espaços de identidade e produção
de vocalidades estranhas/inusuais na música. Queer, para
Jarman-Ivens (2011), define a invenção ou construção da
noção de identidade (e também identidade sexual), como algo
não fixo, mas em constante negociação.
Jarman-Ivens relaciona à voz a capacidade de separar
o significante da materialidade da voz (vocalidade/parâmetros
utilizados – o objeto sonoro para Schaeffer) da identidade do
produtor da voz (uma tese), abrindo a percepção do ouvinte
para múltiplas identidades de gênero.
Para a autora, a voz é um fenômeno queer, visto que
gera um terceiro espaço entre quem vocaliza e quem ouve,
operando como mediadora entre corpo e linguagem, que para
Jarman-Ivens são espaços engendrados. Assim, a voz é
capaz de transpor e desestabilizar estes engendramentos.
Entramos aqui em uma relação entre a produção da
materialidade da voz (que gera um espaço potencialmente

111
O pesquisador Britânico Yvon Bonenfant (2010) desenvolve o
conceito de queer listening, refletindo sobre uma dupla
responsabilidade (do performer e da audiência) no rompimento com
noções de vocalidade atrelada a gêneros. Ele também discorre
sobre noções de corporeidade da voz a partir da percepção física do
som, que se daria como tato. Todavia, as relações que empreendo
aqui entre escuta queer e escuta reduzida, e as reflexões sobre a
corporeidade da voz a partir do conceito de Adriana Cavarero não
são desenvolvidas no trabalho de Bonenfant. Cf.: BONENFANT,
2010.
149

queer) e a escuta (que pode ou não ser queer). Seria a escuta


reduzida uma escuta queer?
Jarman-Ivens afirma que queer não é uma identidade
de gênero, mas sim uma resistência à estabilidade contida na
noção de identidade de gênero. O queer é assim uma
operação em desenvolvimento (ongoing), que requer um
engajamento de quem ouve em um ato queer. Dito de outra
forma, o queer requer a disponibilidade para a fuga dos
condicionamentos, neste caso, das escutas condicionadas.
Propor um corpo vocal queer em performance requer a
disponibilidade da audiência em desenvolver uma escuta
reduzida como escuta queer, através das dissonâncias de
vocalidade e gênero apresentadas em cena.
Mas, qual a finalidade de uma escuta queer,
promovida por um corpo vocal queer em performance?
A escuta é parte essencial de nosso desenvolvimento
cognitivo. Através da escuta se dá a aquisição de linguagem,
por meio da imitação de sons e associações com significados
(das palavras enquanto representações de coisas) e dos
significantes (as coisas que as palavras representam).
Goldman (1994, p. 77) cita o médico
otorrinolaringologista e pesquisador francês Alfred Tomatis,
que afirma que

A voz só pode criar e duplicar os sons que


o ouvido consegue captar. [...] Ademais,
quando você começa a ouvir os mais
variados aspectos da faixa auditiva, não só
sua audição muda, mas também sua voz.

Citando Kaja Silverman, Jarman-Ivens (2011) explica


que os processos de imitação atuam sobre o desenvolvimento
subjetivo, de modo que a identificação com gestos e vozes
implicará também no espelhamento destes gestos e
vocalidades112. Segundo Kaja Silverman a imitação também

112
Muitas pesquisas têm sido desenvolvidas no âmbito das ciências
cognitivas para explicar as implicações da escuta no comportamento
(emoções, empatia, identificação) e na neuroplasticidade cerebral
150

tem uma relação direta com a articulação de poder na relação


entre as pessoas: imitamos certas atitudes para nos
igualarmos ou mesmo nos impormos a outras pessoas.
Temos aqui então duas questões trazidas pela escuta:
o processo de formação de subjetividade - e possivelmente de
identidade, e a articulação do poder através da produção de
vocalidades e gestos.
É claro que uma escuta queer não pretende apenas
que o ouvinte espelhe as vocalidades marginalizadas, ou se
identifique com elas. Isto pode sim acontecer, mas antes, uma
escuta queer é uma escuta em processo, em devir, que
instabiliza os espaços engendrados e trata a identidade como
algo em processo, e não fixado. Neste sentido, Jarman-Ivens
afirma que na base da teoria queer está a noção foulcaultiana
de que as identidades sexuais não são naturais, mas
construídas, negociadas através de agenciamentos. O queer
interroga as estruturas de sexualidade como expressão de
poder (Jarman-Ivens, 2011).
A escuta queer pode causar empatia e desestabilizar
padrões hegemônicos de escuta, e consequentemente de
representações de vocalidade e gênero através da escuta,
visto que o queer instabiliza as identidades.
Nas artes da cena, ou da presença, essa escuta é
direcionada pelo corpo vocal queer em performance. Esta é
também uma questão fundamental, pois com o isolamento do
corpo através da escuta de uma gravação, por exemplo,
temos a projeção da imagem daquele corpo (quando atendo o
telefone já projeto um possível corpo para aquela voz).
Mas em cena, temos uma relação entre a voz e o
corpo, e seus atos performativos. As dissonâncias podem se
estabelecer entre vocalidade e ação, vocalidade e figurino,
etc., em diversas possibilidades de subversão, como no
exemplo da dragqueen dado por Butler (2003).
Neste sentido, os artistas do século XX que buscaram
desestabilizar os padrões hegemônicos de vocalidade e

(reorganização dos padrões neurais). Para maiores informações, cf.:


MOLNAR-SZAKACS; OVERY, 2006.
151

corporeidade nas artes, como xs artistas das vanguardas


europeias do início do século XX, e xs artistas da cena sobre
os quais discorri na seção anterior - Artaud, Roy Hart e
Grotowski -, proporcionaram uma escuta queer às suas
audiências, assim como xs artistas da performance art e do
teatro performativo que investigam estes territórios para
desestabilizar as representações/identidades fixas de
vocalidade e gênero.
Sílvia Davini (2007) já havia problematizado a
normatividade da produção vocal em cena a partir de outra
escuta, a da própria voz:

A extraordinária presença da voz e da


palavra na cena e na vida profissional e
cotidiana naturalizou-as ao ponto de
dificultar sua percepção por parte de quem
a produz. 113 (DAVINI, 2007, p. 16).

Relatando sua experiência em uma oficina de canto


harmônico114 com o pesquisador e cantor vietnamita Trân
Quang Hai, Davini afirma que

Tomando a flexibilidade como princípio,


podemos dizer que a avaliação de um
comportamento corporal como correto ou
errado geralmente se remete a

113
“La extraordinaria presencia de la voz y la palabra en la escena y
en la vida profesional y cotidiana las ha naturalizado al punto de
dificultar su percepición por parte de quien la produce.” (Tradução
minha).
114
O canto harmônico, ou canto difônico ou bitonal, consta de
técnicas de ampliação da intensidade dos harmônicos da voz, para
que sejam ouvidos ao mesmo tempo tanto a frequência fundamental
quanto o harmônico em questão. É tradicional em países como a
República de Tuva. Há pessoas, como o grego Demétrio Stratos,
que conseguiram (e conseguem) destacar mais de um harmônico ao
mesmo tempo, transformando o canto em trifônico ou quadrifônico,
ou seja, parece que várias vozes cantam ao mesmo tempo, mas a
emissão é de uma única pessoa.
152

pressupostos logocêntricos originados no


115
campo da ciência e da arte. (DAVINI,
2007, p. 96-97).

Ela critica a difusão de um ideal de saúde vocal (e por


consequência, restrição de práticas vocais) advindo de
pesquisas da área da saúde, principalmente da fonoaudiologia
clínica (e disseminado no teatro) que limita as possibilidades
de exploração da vocalidade em prol de uma natureza
fisiológica normatizadora a ser respeitada. Esta natureza
definiria as posturas e práticas mais adequadas à produção
de uma voz considerada saudável.
A escuta depende de uma atitude em relação à
produção sonora (e vocal) com a qual convivemos, e em
contrapartida, também implica nesta produção, definindo e
sendo definida por estas relações.
Os sons/vozes que ouvimos implicam em nosso
repertório de produção sonoro-vocal, e mesmo em nossos
modos de percepção e consciência do mundo, já que nossos
processos cognitivos envolvem sinestesia (sentidos, incluindo
a propriocepção e o movimento) e abstração (sinapses e
criação de significados), ou seja, uma mente incorporada
(VARELA, TOMPSON, ROSCH, 2003) nas experiências
vividas.
As técnicas vocais tradicionais, em suas atribuições de
classificação e treinamento específico baseado na diferença
sexual (feminino x masculino), bem como a classificação de
vozes em normais e disfônicas, e a padronização de uma
qualidade vocal normatizada e binarizada, refletem-se em
produções televisivas, cinematográficas e teatrais, bem como
no desejo de uma vocalidade cotidiana naturalizada.
Com a possibilidade de se ouvir as vocalidades
produzidas fora destas ideologias dominantes como vozes
não boas (para servir de exemplo ou padrão) - por serem

115
“Tomando la flexibilidad como principio, podemos afirmar que la
valoración de um comportamiento corporal como correto o errado
generalmente se remite a presupuestos logocéntricos originados en
el campo de la ciencia o del arte.” (Tradução minha).
153

erradas (fora das normas) – pode haver uma fuga da


audiência à escuta das mesmas.
Mas estas vozes, como corpos vocais queer, podem
refletir uma liminaridade, ocupando múltiplos lugares de leitura
e gerando certa ininteligibilidade de gênero, no terceiro
espaço conceituado por Jarman-Ivens (2011).
A escuta hegemônica (segundo Schaeffer natural e
cultural) regula a interpretação do mundo sonoro-vocal para
as massas. A natureza de nossos processos cognitivos nos
leva a buscar explicações e significados a tudo o que nos
cerca, desde a infância até à morte. Este processo de
construção de conhecimentos acontece levando em conta
todo o repertório de experiências e saberes da pessoa, além
de capacidades funcionais e da interação com xs outrxs e
com o ambiente.
Um significado pode ser dado então por um referencial
a priori, ou pode emergir de uma nova interpretação do real.
Ou pode mesmo ser suplantado pelas sensações que
emergem de um acontecimento, principalmente no ambiente
acústico, no qual a vibração dos sons age diretamente sobre o
maior órgão do corpo humano: a pele. Somos tocadxs pelos
sons e vozes do ambiente acústico, e as reações dos nossos
próprios corpos aos sons também envolvem sensações e
emoções, além da criação de sentidos.
Na prática desta pesquisa, a peça Pequeno Manual de
Inapropriações, procurei estimular na audiência uma escuta
reduzida e queer, um terceiro espaço estranho e ilegível
ocupado pelos sons e vocalidades marginalizados produzidos
por meu corpo vocal em performance.
Meu intuito foi potencializar a diluição de referenciais
logocêntricos (voz como veículo para a palavra/discurso) e
binários (homem x mulher) de vocalidade atrelada a gênero
em performance. Para isso, investiguei a presença da palavra
em cena como material de criação vocal (e não o inverso), e a
produção de vocalidades queer, estranhas, inabituais, sobre
as quais discorro no Corpo Vocal Queer deste mapa-tese.
Penso que este estímulo à escuta queer da audiência
possa também reverberar na transformação da visão de
154

mundo e na alteração da própria consciência da audiência,


desdobrando-se em ações mais críticas aos pensamentos
hegemônicos, padronizações e normatizações sobre as (e
nas) relações sociais, principalmente no que diz respeito à
produção (e reprodução) de vocalidade e gênero.
155

CORPO VOCAL QUEER


156

Notas Preliminares

Ao iniciar o curso de Doutorado em


Teatro em 2011, confrontei-me mais uma
vez com o desejo de realizar uma pesquisa
prática, de caminhar lado a lado com meu
objeto de pesquisa.
Em um primeiro momento, criei uma
estrutura prévia para as investigações
cênicas: resolvi explorar memórias dos
possíveis ciclos de minha vida, do útero à
morte, partindo do pressuposto de que nossas
memórias são um emaranhado de vários
elementos: lembranças, desejos e invenções.
Como projeções de desejos e invenções
contidas em sensações e imagens, pensei em
transformar cada etapa da vida em uma
parte-memória da performance.
Fiz associações destas fases com
procedimentos de criação vocal que eu
vinha investigando, e é claro que estas
associações estavam cheias de ideologias,
conceitos e pré-conceitos. Meu objetivo não
era representar cada fase da vida, ou
resgatar apenas as memórias sonoras, mas
sim criar acontecimentos que revisitassem
imagens e sensações de cada momento do
corpo vocal durante a vida: eram minhas
memórias-desejos.
157

Durante algumas experimentações,


escrevi uma dramaturgia prévia, e intitulei
a prática como Quando você terminar de
ler esta carta, já terá esquecido o som da
minha voz, fazendo alusão direta à
memória e à performatividade do corpo
vocal. Criei a metáfora da performance
como uma carta, que é lida e não ouvida
ou vista, a partir do contato com o livro de
Lúcia V. Sander, Susan e eu: ensaios críticos
e autocríticos sobre o teatro de Susan
Glaspell (2007). Sander explica que a carta,
até no início do século XX, era tida como
um gênero literário menor, atribuído a
mulheres. E pelo fato de o poder hegemônico
falocêntrico ter ocultado as mulheres em
diversas dimensões da produção na
sociedade, assim como os próprios registros
históricos - que como outras instituições não
legitimizaram suas práticas -, muitas
mulheres encontravam nas cartas e nos
diários espaços para a expressão de ideias,
sentimentos e reflexões. Este gênero literário
atribuído às mulheres gera um duplo
preconceito: com o gênero literário e com o
sexo feminino, julgado por muito tempo
incapaz de maior elaboração intelectual e
formal para a criação em grandes gêneros
158

literários (dramaturgia, poesia, contos,


novelas, etc.) 116.
Por isso, me propus à criação de uma
carta multissensorial, que não privilegiasse
apenas a escrita, mas também o
acontecimento entre os corpos vocais.
Para meu exame de qualificação da
pesquisa de doutorado, em março de 2014,
adicionei ao material escrito esta proposta
de investigação prática, relacionada a
procedimentos específicos de criação vocal, e
algumas anotações sobre ensaios e
materiais cênicos já criados.
Com o retorno das professoras presentes
em minha banca de qualificação117, tive
uma grande surpresa ao me dar conta de
que eu havia invertido o caminho
necessário para esta pesquisa: ao definir
uma estrutura prévia para a prática, aboli
as possibilidades de criação da própria
prática. “A diretora está amarrando a
atriz”, afirmou Meran. “A proposta é muito
evolucionista, não combina com o território
da performance”, completou Fátima. E eu
116
SANDER, 2007.
117
Banca de qualificação realizada em 28 de março de 2014, no
Centro de Artes da UDESC (Florianópolis/SC), com a presença das
professoras Dra. Maria Brígida de Miranda (orientadora), Dra.
Sandra Meyer Nunes (UDESC), Dra. Fátima Costa de Lima
(UDESC), Dra. Meran Vargens (UFBA) e Dra. Wânia Storolli
(USP/FASM – parecer por escrito).
159

concordei. Percebi naquele momento que eu


havia criado uma armadilha pra mim
mesma, e desmoronei sobre as estruturas tão
confortáveis que eu já havia stabelecido.
E agora?
“É preciso ‘pesquisar com’ seu objeto, e
não ‘pesquisar sobre’”, esclareceu-me
Sandra, sugerindo a cartografia como
metodologia de pesquisa.
“Hum”, pensei.
“É preciso esquecer”, ratificou Sandra.
“Hum”, respirei.
Foi um difícil exercício de desapego.
Foi uma difícil prática de abandono e
de esquecimento 118.
Saí tonta da banca de qualificação,
motivada pelo incentivo à pesquisa (sim,

118
Ivan Izquierdo (2002) estuda a memória há 40 anos, e é um dos
neurocientistas mais reconhecidos no mundo. Argentino
naturalizado brasileiro, ele investiga cientificamente muitas das
questões apontadas por Jorge Luís Borges em sua obra literária.
Uma delas é a importância do esquecimento, para se gerar novas
memórias. Enquanto o protagonista do conto Funes, o memorioso
de Borges não esquecia nenhum detalhe dos acontecimentos,
também levava um dia inteiro para descrever suas memórias de
outro dia inteiro. Assim, afirma Izquierdo (2002), o esquecimento é
parte essencial de nosso processo de memoração, para que
possamos armazenar outras memórias, inibir memórias indesejadas,
e ter tempo para viver. Nos processos múltiplos da memória, elas
também podem ser mal gravadas ou distorcidas com o tempo: uma
memória que atua mais como a projeção de um desejo do que como
fato em si. E estas memórias acabam por formar nossas
experiências também, quando as evocamos.
160

também houve aspectos positivos, ufa!) e ao


mesmo tempo me sentido sem chão.
As professoras concordaram também
na necessidade da realização da prática
para o prosseguimento da pesquisa, e na
centralização da mesma na estruturação
da tese.
Então, nos meses seguintes, tentei me
reinventar.
Não pude esquecer todos os
procedimentos de criação vocal que eu já
havia pesquisado, e nos quais acreditava e
me agarrava. Mas mesmo atordoada,
procurei esquecer os ciclos da vida e a
dramaturgia criada. Foram memórias
arrancadas.
Após a banca, Brígida me esclareceu:
“então seu foco está no queer, certo?”. Sim,
era um corpo vocal queer que eu buscava:
Queer nas vocalidades, queer na
representação de gênero. “Saia das cartas
íntimas do óikos119 e vá para a ágora120,
para o espaço público, que não coube

119
Do grego, casa, em uma referência direta à unidade familiar e/ou
rede de relacionamento direto de uma pessoa com outras.
120
Do grego, diz respeito ao espaço urbano e público destinado a
reuniões de pessoas, com ou sem fins políticos. A ágora era
utilizada na democracia grega para as votações, das quais as
mulheres, escravos e demais minorias não podiam participar.
161

historicamente às mulheres”, ela incentivou.


E foi o que eu fiz.
Cotinuei as experimentações práticas,
agora mais queer, procurando reinventar
minhas memórias a partir de questões
marcantes para mim, subverter a ordem que
me foi imposta e publicá-la na ágora do
teatro.
Entre os meses de abril e novembro de
2014, continuei/recomecei a pesquisa
prática. Nas experimentações, utilizei
diversas abordagens e estímulos: a partir de
determinado procedimento de criação vocal
(poesia sonora, ressonância, canto
harmônico, intermediação da voz, etc.), eu
ora investigava movimentos e ações que
emergiam das sensações e imagens causados
pela memória sonora, ora utilizava
materiais (objetos, figurino, etc.) como
estímulo para a investigação.
Materiais diversos surgiram nestas
experiências, e pude perceber a emergência
de temas marcantes para mim nestas
memórias: religião, beleza, política,
sexualidade... Questões que moveram
descobertas, discórdias, rompimentos e
aceitações.
Na emergência destas memórias nas
experimentações práticas, aos poucos fui
162

organizando um novo roteiro. A


dramaturgia final do trabalho (que pode
ser consultada na íntegra no final desta
parte do mapa) só ganhou sua versão final
após a estreia da peça, assimilando, assim
como as cenas, sugestões das pessoas que
participaram do ensaio aberto e das
apresentações.
A elaboração do roteiro da peça teve
como foco principal as relações com o espaço
e com a audiência, sendo que a sequência
das cenas não tem grande relevância para
o trabalho (fora a última cena, que para
mim sintetiza a comunhão entre performer
e audiência).
Realizei um ensaio aberto no início de
novembro de 2014, no qual estiveram
presentes minha orientadora, Brígida; as
professoras da Udesc que participaram de
minha banca de qualificação, Sandra e
Fátima; minhas colegas de doutorado
Andréia e Débora; e minha bolsista de
extensão e atual orientanda de TCC, Maíra.
As contribuições de todas elas foram muito
importantes para a montagem da prática,
sendo muitas incorporadas já para a estreia
no final de novembro de 2014. Durante as
problematizações que virão na sequência
163

desta parte do mapa, farei referências às


sugestões oferecidas por elas.
Pequeno Manual de Inapropriações é
um trabalho em processo, que surgiu como
prática desta pesquisa, e que me permitiu
dar voz(es) e corpo(s) às estranhezas que
habito e desejo, questionando minhas
próprias fixações.
Habitemos, pois, as experiências e
impressões deste processo de criação em
busca de um corpo vocal queer em
performance, que compartilho com vocês
nesta parte da cartografia.
164

Como ler esta parte do mapa

Esta é a parte do mapa que trata da desestabilização


das marcas de gênero inscritas na voz em cena, da
queerização do corpo vocal.
Para isso, elaboro aqui algumas
reflexões/problematizações sobre o experimento cênico-tese
desta pesquisa, intitulado Pequeno manual de inapropriações.
Primeiramente, discorro sobre o tema escolhido e
sobre meus desejos de vocalização na performance e
encenação, surgidos no processo de pesquisa.
Na sequência, divido esta seção do mapa inspirada no
roteiro que criei para a performance: a cada cena, faço
considerações sobre o tema-memória em questão, sobre o
processo de experimentação e estruturação da cena e sobre
o(s) procedimento(s) utilizado(s) para a criação do corpo vocal
queer em performance.
As considerações que elaboro são frutos de anotações
feitas por mim durante o processo de criação (diário de
bordo), da retomada de sensações e memórias, e de
reflexões feitas a posteriori, já com algum distanciamento do
trabalho prático desde a sua estreia.
Nestas reflexões, estabeleço diálogos com artistas,
pesquisadorxs e conceitos trazidos nas outras partes móveis
desta cartografia. Deste modo, convido x leitorx a seguir me
acompanhando também pelos outros corpos deste mapa-tese.
165

Um tema inapropriado

Nos caminhos desta pesquisa, o tema memória não


me abandonou. Mas eu sempre soube que eu não queria falar
sobre a memória, investigar os processos da memória... eu
queria habitar minhas próprias memórias. Por quê?
Todo o processo de pesquisa para esta tese foi um
processo doloroso, não só pelo cansaço - resultado do
acúmulo das diversas atividades docentes realizadas na
Udesc, das minhas atividades artísticas, das minhas
atividades familiares e das minhas atividades de estudante –
mas também pela (re)descoberta de mim mesma. Meu
encontro com o território das Teorias de Gênero me fez
(re)conhecer em minha história questões que para mim
haviam sido superadas pela mulher independente que eu
achava que tinha me tornado (memórias que sabiamente eu
esqueci).
Assim, ao me (re)ver por vezes desacreditada,
subjulgada, super julgada, ridicularizada, machista e binária,
desmontei.
Quem eu era e quem eu queria ser?
Ao me deparar com estas projeções, que se davam
nas leituras diversas, no acesso a entrevistas e obras de
artistas através de vídeos, em espetáculos presenciais e em
conversas com colegas, eu queria poder enfrentar meus
próprios fantasmas.
O caminho da experimentação prática desta pesquisa,
como comentei anteriormente, passou por alterações,
esquecimentos e reinvenções. Após minha banca de
qualificação, procurei não pensar mais em títulos para a
prática, nem em estruturas. Eu queria abandonar um pouco
meu eu-diretora/dramaturga e reencontrar meu eu-atriz.
Eu-atriz mergulhei novamente na pesquisa de alguns
procedimentos de criação vocal para a emergência de
memórias selecionadas - memórias-paradigma talvez -, em
busca de ações e associações em meu processo criativo.
166

Através de anotações em meu diário de bordo e de


alguns registros de vídeo, eu procurava após cada ensaio
relações entre os materiais mais interessantes que eu havia
criado.
Percebi aos poucos que estas memórias-paradigma
tratavam de memórias vividas e inventadas de situações
problemáticas para mim, situações que causaram de algum
modo rompimento de relações, frustrações ou sentimento de
impotência. Eram memórias inapropriadas, porque não
resolvidas como ações. Eu iniciava meu percurso como
aprendiz de “cartógrafa” no território existencial de minha
pesquisa.
No texto Cartografar é habitar um território
existencial121 (2009), Johnny Alvarez e Eduardo Passos
refletem sobre a metodologia da cartografia na pesquisa, e
discorrem sobre a experiência do próprio Johnny Alvarez em
uma pesquisa cartográfica sobre a capoeira de Angola. A
questão principal que os dois autores trazem é sobre a
habitação do território existencial da pesquisa:

Habitar um território existencial, diferente


da aplicação da teoria ou da execução de
um planejamento prescritivo, é acolher e
ser acolhido na diferença que se expressa
entre os termos da relação: sujeito e
objeto, pesquisador e pesquisado, eu e o
mundo. A cartografia introduz o
pesquisador numa rotina singular em que
não se separa teoria e prática, espaços de
reflexão e de ação. Conhecer, agir e
habitar um território não são mais
experiências distantes umas das outras.

As memórias e materiais criados nas


experimentações práticas me fizeram habitar o próprio

121
Capítulo do livro Pistas do método da cartografia: pesquisa-
intervenção e produção de subjetividade. Cf.: PASSOS, KASTRUP,
ESCÓCIA, 2009.
167

território existencial da pesquisa, colocando-me em ação


como aprendiz de cartógrafa.
Como habitante deste território existencial, selecionei
os materiais criados pela inapropriação que eles me
apresentavam: não apenas subversões nas relações de
gênero e vocalidade em cena, mas subversões na ocupação
de territórios. Os modelos normatizadores e estereótipos de
beleza, feminilidade, masculinidade, religiosidade, política e
convivência se transformaram em instruções ao contrário, um
manual de inapropriações como provocações de como (não?)
ser.
Para a sinopse da peça, escrevi o seguinte texto:

O que é ser inapropriadx?


É fazer ou ser o que se pretende?
É não ser o que se espera?
E o que esperamos e fazemos?
É ser outra coisa, outra pessoa, outra voz, outro corpo, ou eu
mesmx?
É sobre mim, apenas?
Lembrar é inapropriado?
E (vi)ver?

Este pequeno manual brinca com ecos de memórias: vozes, corpos


e ações que permeiam modos de (não) ser (?). É feito um convite à
vivência de experiências sinestésicas através de memórias
(re)inventadas, reveladas pelo corpo vocal engendrado e
desconstruído em cena. Ao público é destinado o papel de coautor
da obra, na apreensão singular do acontecimento teatral, na
responsividade à cena e na disponibilidade de ser humano.
A proposta estética da peça parte de investigações sobre a arte da
performance e o teatro performativo, as possibilidades de (re)criação
do corpo vocal em cena e (des)construções de gênero. O
espetáculo demanda um espaço intimista e de liminaridade entre
atriz e público, arte e ritual, f(r)icção e realidade(s).

A desconstrução que eu proponho na sinopse da peça


diz respeito à noção de identidade fixa. A cada cena da peça-
performance, seis ao total, a performatividade implica em
transformações da vocalidade e da representação de gênero
em cena, procurando desconstruir a unicidade enquanto
168

fixação de identidade, para transformá-la em potência de


transitoriedade de territórios de vocalidade e gênero.
Não comecei este processo de criação pensando logo
no começo da peça. Já havia exercitado meu esquecimento
após a banca de qualificação, e tentei esquecer-me de minha
extrema necessidade de estruturação e metodologia.
Procurei exercitar minha posição de cartógrafa
assumindo o espaço da pesquisa com algo, e não sobre algo.
Procurei estar ao lado: “estar ao lado sem medo de perder
tempo, se permitindo encontrar o que não se procurava ou
mesmo ser encontrado pelo acontecimento” (ALVAREZ,
PASSOS, 2009, p. 137).
Então, como os experimentos deste processo foram
diversos e aleatórios, sendo organizados num roteiro que
defini (mas sem ser inflexível) apenas antes da estreia oficial
da peça, resolvi neste mapa não seguir a cronologia dos
ensaios, reflexões e criações dos materiais, mas seguir o
roteiro da peça, para exercitar agora o contrário de meu último
desafio: agora é/era preciso tentar lembrar.
Assim, estas reflexões misturam meus eus nos tempos
vividos e vivente do exercício de rememorar. Comecemos,
então, com o começo.
“Bem-vindxs a este pequeno manual de
inapropriações”, diz a diva-drag.
169

Prólogo: a Diva-drag

Instrução: crie uma hipérbole do feminino através da


caracterização exagerada: roupas, calçados, acessórios,
bunda e peito postiços, maquiagem, peruca, cílios postiços,
etc. Escolha uma música com bastante registro grave, em
contraposição. Cante variando os timbres e brincando com as
texturas da voz e dos movimentos. Desafine. Seduza o
público, mas revele a ironia da abordagem do “belo”. O que é
belo?
170

Gosto muito da ideia do prólogo como um convite


íntimo que se faz ao público para a vivência de uma
experiência em arte. Para mim, um prólogo não é uma
introdução ao conflito principal da peça, como em uma
dramaturgia clássica (em Shakespeare, por exemplo), mas
uma ambientação do que está por vir no território da
experiência artística como um todo: linguagem e temática são
pinceladas ao público, em um convite ao devir da arte, nas
fissuras entre ficção e realidade do acontecimento teatral.
A diva-drag é o prólogo do meu Pequeno Manual de
Inapropriações. É o começo de tudo, o primeiro contato com o
público.
Eu queria experimentar o trânsito entre registros
distintos, de notas bem agudas a notas muito graves, em uma
canção, brincando com as sonoridades das letras,
desafinações e desconstruções rítmicas. Queria trabalhar com
uma música popular, mas não pop, no sentido de produções
musicais do momento, da moda passageira. Procurei canções
cantadas por Elis, Gal, Maria Rita, mas eu também não queria
uma letra muito emotiva, e as canções delas com as quais
trabalhei tinham uma forte carga emocional. Minha ideia para
esta canção era trabalhar com uma letra sutil, sem um grande
apelo emocional, quase frívola. Ao mesmo tempo, queria uma
melodia que utilizasse uma extensão ampla de notas. Lembrei
então das divas do jazz.
Depois de me deliciar ouvindo muitas vozes potentes,
me encontrei com Summertime, interpretada pela diva do jazz
Ella Fitzgerald. A música é uma composição da ópera de
George Gershwin, ópera Porgy and Bess, de 1935 122.

122
“Porgy and Bess é uma ópera do compositor americano George
Gershwin, com libreto de DuBose Heyward, e letras de Heyward
e Ira Gershwin, executada pela primeira vez em 1935. Teve como
base o romance Porgy, do mesmo DuBose Heyward, e a peça
posterior de mesmo nome, que ele escreveu juntamente com sua
esposa, Dorothy Heyward. As três obras lidam com a vida de negros
americanos na localidade fictícia de Catfish Row (baseada em
Cabbage Row) em Charleston, na Carolina do Sul, no início
da década de 1920.”. Disponível em:
171

Gostei imediatamente da delicada melodia, inspirada


em uma canção de ninar ucraniana123, e da letra sutilmente
provocativa:

Summertime

Summertime
and the livin' is easy
Fish are jumpin'
and the cotton is high
Oh your Daddy's rich
and your ma is good lookin'
So hush little baby
don't you cry
One of these mornings
You're goin' to rise up singing
Then you'll spread your wings
And you'll take to the sky
But till that morning
There's a nothin' can harm you
With you daddy and mamma
standing by

Verão

É verão
E a vida é fácil
Os peixes estão pulando
E o algodão está grande
Oh, seu pai é rico
E sua mãe é linda
Então acalme-se pequeno
Não chore
Numa dessas manhãs
Você vai acordar cantando

http://pt.wikipedia.org/wiki/Porgy_and_Bess. Acesso em 12 de
fevereiro de 2015.
123
Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Summertime_%28George_Gershwin%29.
Acesso em 12 de fevereiro de 2015.
172

Então você abrirá suas asas


E voará pelo céu
Mas até esta manhã
Não há nada que possa te ferir
Com mamãe e papai por perto124

Imediatamente decidi que este poderia ser um bom


convite ao público, ameno e supostamente descomprometido,
e resolvi trabalhar a canção para o prólogo. Pensei logo na
figura da diva, da hipérbole da beleza e sensualidade
feminina, a mesma hipérbole que esconde a opressão contra
a mulher125, que a aprisiona em um lugar idealizado, quase
inalcançável, e por isso suscita tanto desejo em homens e
mulheres.
Aprendi a melodia e a letra da canção ouvindo-a várias
vezes pela internet e também no meu celular. Eu repetia letra
e melodia, cantando ora com Ella Fitzgerald e ora sozinha. A
interpretação de Ella era muito livre, brincando com melismas
e com o ritmo. Os instrumentistas seguiam sua voz. Em
contrapartida, eu estava sozinha em cena. Pensei em gravar a
melodia em um celular, que eu pudesse manipular em cena,
mas logo dispensei a ideia, porque isso me prenderia muito.
Resolvi cantar à capela, sozinha. Montei a diva com
minha melhor roupa de festa: um vestido godê longo verde-
bandeira feito por minha mãe para o casamento de uma
amiga (com écharpe e tudo), um par de sapatos de salto
agulha berinjela (também usei no casamento), um par de
luvas 3/4 vermelhas e uma peruca longa encaracolada
também vermelha (que comprei para o conjunto), cílios
postiços e maquiagem pesada.
Mas minha diva precisava também de peitões e de
uma grande bunda, providenciadas primeiro com próteses de

124
Letra e tradução disponíveis em:
http://www.vagalume.com.br/ella-fitzgerald/summertime-
traducao.html. Acesso em 12 de fevereiro de 2015.
125
Em referência ao livro de Naomi Wolf (1992), O mito da beleza:
como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
173

lojas de festas (de plástico e e.v.a.). Brígida havia me


sugerido este exagero, e eu gostei.
No ensaio aberto que realizei antes da estreia, em
novembro de 2014, em uma sala de aula prática do prédio de
cênicas da UDESC, a diva abriu a porta da sala de ensaio e
foi até o corredor buscar o público: cantando, acariciando os
rostos, sussurrando a letra no pé de ouvido de cada pessoa.
Eu ainda pensava em uma diva contida neste momento, com
movimentos sutis, e ainda cambaleava procurando coragem
de desafinar (ou tentando não ser julgada por desafinar). Na
conversa que sucedeu o ensaio, Sandra e Débora me
aconselharam a abraçar a artificialidade sugerida pelo próprio
figurino: pensar em movimentos marcados, como os da diva-
desenho Jessica Rabbit, do filme Uma Cilada Para Roger
Rabbit126, por exemplo. E Fátima me incentivou a não ter
medo de ser uma diva em um espaço decadente, já que o
espaço cênico que eu utilizava era uma sala de aula prática
de nosso prédio, nua, sem uma cenografia que tentasse
transformá-la em outro espaço. Não era um espaço adequado
para uma diva, e esse contraste me interessava muito, pois
poderia auxiliar no deslocamento da representação deste
papel.
Tratei então de exagerar mais nos ensaios. Mais
movimentos expansivos, mais curvas, mais enchimento (na
semana de estreia usei uma almofada no lugar da bunda
postiça de plástico), mais desafinações, mais variação de
timbre, mais maquiagem pesada nos olhos, mais pelos nas
axilas (como me sugeriu Débora). Esta diva não poderia estar
no auge de seu posto. Por isso, comecei a brincar com
algumas desafinações na melodia, arrastando os sons de
algumas letras e deslizado por entre frequências, e a explorar
uma diversidade tímbrica durante o canto, passando da voz
hipernasal à gutural. Brinquei também com os silêncios: eu
queria tensionar a espera pela voz e pelo movimento que se

126
Título original: Who framed Roger Rabbit? Filme de 1988 dirigido
por Robert Zemeckis, baseado no romance Who Censored Roger
Rabbit? de Gary K. Wolf.
174

seguiria, estimular a atenção aguçada na escuta reduzida em


devir.
Outra mudança significativa se deu a partir de uma
sugestão de Fátima. Resolvi não mais receber o público fora
da sala de apresentação para o início da peça, mas sim
recepcioná-los na entrada do espaço, cantando sob uma luz
oval de frente, de um refletor PC (plano convexo), que
lembrasse a luz de um canhão utilizado antigamente em
grandes shows. Enquanto o público entrava, a diva cantava.
Agora, fixa na marcação de luz, sem deslocamento no
espaço durante a cena, eu perdera o contato direto com o
público e o sussurro que a proximidade anterior me permitia,
mas aproveitei para brilhar no holofote e continuar a cantar
para quem entrava.
Percebi que o exagero de tudo, das curvas à
maquiagem, das desafinações à amplitude da voz, levou-me a
outro lugar. Não era apenas mais uma diva em
desconstrução, tentando divar em uma sala de aula com
paredes manchadas e mobiliário comprometido de uma
universidade pública, era uma diva hiperbólica, uma diva-
drag127.
Essa diva assumiu um espaço queer para mim pelos
diversos deslocamentos: de registros e timbres a movimentos
e caracterizações exageradas da feminilidade (caricata). A
cada mudança de vocalidade e ação da diva, uma proposta
de desestabilização de identidade.
Os pelos crescidos das axilas ajudaram também a
fomentar este território entre marcas de gênero no meu corpo
vocal, pois durante toda a minha vida aprendi que só homens
podiam ter pelos nas axilas. Na semana da estreia, meus pais
e minha irmã vieram de Joinville (SC) para me ver. Depois da
apresentação e da conversa com o público, fomos jantar. Em

127
A dragqueen - homem que se veste com roupas e acessórios
para montar uma personagem feminina para performances -
exagera as características femininas, hiperbolizando as marcas de
gênero. A diva-drag que eu abordo aqui faz menção à minha
construção hiperbólica para esta cena, que procurou também expor
a busca pelo glamour na caracterização e performance.
175

segredo, minha irmã fez a fofoca: minha mãe comentara com


ela que eu deveria estar tão cansada por causa dos
preparativos para a estreia da peça e do final do semestre
letivo, que esquecera até de depilar o sovaco! O curioso é que
para a minha família, além das axilas depiladas estarem
ligadas à identidade de gênero da mulher (enquanto os pelos
livres eram permitidos apenas para homens), o fato de não
depilar as axilas trazia uma relação direta com a falta de
higiene. Lembro-me de uma tia que sempre era o assunto
principal deste tema lá em casa: ela nunca depilou as axilas,
não via o porquê disso. Veio do interior, da lida com o campo,
como toda a família, mas não aderiu a todas as modernidades
da cidade. Então era peluda. E eu peluda fiz minha mãe
lembrar-se da minha tia. Apesar de toda a exibição e
ostentação dos pelos no início da peça (com movimentos
calculados para a exposição enfática deles), meus pelos
foram relacionados ao esquecimento/descuido e não à
liberdade de escolha. Prisões que os ideais de beleza nos
impõem. Depois, expliquei para minha mãe que os pelos
faziam parte da cena, da proposta, e conversei com ela um
pouco sobre esta questão. Um pouco desgostosa, ela ouviu
um pouco mais sobre a minha diva-drag e os pelos que
sobverteram as marcas de gênero do meu corpo.
Em um primeiro momento tive certo receio de
representar uma dragqueen, descaracterizando a figura do
homem que se veste de mulher pelo fato de eu ser mulher.
Não era essa a minha intenção. Mas percebi durante as
experimentações e apresentações que se sucederam que eu
não estava habitando este território drag, estava passando por
ele, em trânsito: era um terceiro espaço entre a atriz e a
persona da diva. E isso tranquilizou minha preocupação em
justamente não representar um gênero fixo, mas sim
desestabilizar os lugares de gênero.
Logo após a entrada de toda a audiência, a diva
finalizava Summertime em grande estilo, sustentando a nota
final bem nasalada e intensa, querendo rasgar as peles-
ouvintes. E claro, agradecendo à la Fernanda Montenegro,
uma grande diva!
176

Por vezes eu recebi aplausos, em outras eu pedi


palmas, mas as risadas iniciais que a subversão cômica
permitia sempre eram deliciosas.
O prólogo seguia com a diva cumprimentando o
público em vários idiomas, exagerando as características
tímbricas específicas de cada língua, começando e finalizando
com uma voz veludosa e sensual de aeromoça:

Welcome!
Wilkomen!
Bienvenido!
Benvenuto!
Bonvênon!
Bem-vindxs a este pequeno manual de inapropriações. Fiquem à
vontade e aproveitem o momento.

Para mim a aeromoça é americana. Porque toda vez


que pego um avião no Brasil, ouço a aeromoça dar instruções
em português e inglês, com uma voz bem sensual. Então
comecei com minha aeromoça americanizada, com um timbre
aveludado, de belting128; em seguida brinquei com o gutural
característico de alguns fonemas do alemão; depois com o
timbre mais nasalado, que me faz lembrar os filmes do
Almodóvar; na sequência com a ressonância de peito, aberta
e retumbante do italiano; e ainda um timbre com vibração
aveolar para realizar a vocalidade no meu imaginário do
esperanto; para voltar por fim à minha aeromoça, falando
agora português e desejando uma boa viagem axs
passageirxs do Manual.
Como eu optei por trabalhar no território movediço da
performance art e do teatro performativo, território este sem
receitas ou bulas, sem regras ou manuais, mas sim com
alguns princípios que poderiam me nortear, decidi que a peça
teria cenas que não se complementariam, mas que se

128
Belting ou mix é uma técnica que equilibra a ressonância da voz
entre as cavidades oral e nasal. Muito usado no canto popular e no
teatro musical, por dar brilho e potência à voz pelo destaque de
harmônicos, e auxiliar no controle da afinação.
177

transformariam, como se fôssemos percorrendo as raízes (ou


rizomas) de uma árvore, como se cada cena fosse em si uma
performance.
No próprio título da peça procurei trazer com ironia a
desconstrução de lugares fixos: um manual de inapropriações
é um manual às avessas, e para mim não pode instaurar
regras ou receitas, apenas inventar problemas.
Porém, mesmo nestes lugares movediços, eu
precisava decidir como fazer as ligações, as transições entre
as cenas. Resolvi então assumir para o público o processo de
transformação dos elementos da peça: do figurino ao cenário,
da decomposição de personas à construção de ações, da
atuação à operação da luz.

A diva mostra seus dotes


178

Resolvi também manipular algumas mídias, como um


celular, que teria as canções previamente selecionadas para
algumas transições.
A diva, por exemplo, após sua recepção completa,
fazia um strip-tease para eu poder me preparar para a cena
seguinte. Ao som de Alors on danse, do cantor e compositor
belga Stromae, a diva tirava a roupa tentando seduzir com
seus dotes protéticos (peito, bunda, cabelos, cílios), mas ao
mesmo tempo a atriz revelava o sofrimento real de todas as
próteses e acessórios: os pés com enormes joanetes
escondidos nos sapatos altos; a difícil movimentação
ocasionada pela roupa apertada com os enchimentos; a
minha própria decepção em arrancar os longos cabelos ruivos
e revelar os ralos cabelos castanhos.
Assumindo a decomposição da persona às claras,
além da própria troca de elementos de cena, procurei lidar
com estas ações como ações performáticas, e não apenas
ações operacionais.
O mesmo aconteceu com a manipulação das mídias.
Convidei meu marido e músico, Cleiton Jacobs, para
me auxiliar na montagem, fazendo as operações de luz,
imagem e som. Mas ele não pôde participar do ensaio aberto
que fiz antes da estreia, pois estava em horário de trabalho. E
assim, neste dia, eu atuei e operei os equipamentos de luz e
som que havia separado para o ensaio.
É claro que ao final do ensaio, corri para me desculpar
pela operação enjambrada das mídias, explicando que o
propósito não era este. Mas fiquei surpresa com o retorno
positivo dxs meninxs presentes no ensaio, que disseram
gostar de me ver manipular os equipamentos entre as cenas,
preparando o espaço da ação que estava por vir.
Esta distribuição de tarefas entre mim e meu marido na
criação da peça poderia também ser um sintoma de minhas
próprias naturalizações de papéis sociais de gênero? Ele
trabalhando na parte técnica, que envolve conhecimento e
perícia na lida com os equipamentos, e eu atuando minha
esfera corporal em cena?
179

Desde o início de minha formação teatral me interessei


pela parte técnica do teatro. Aprendi a montar e operar
equipamentos básicos de luz e áudio, a me aventurar na
cenotecnia, etc. No espetáculo Smoked Love, prática de
minha pesquisa de Mestrado em Teatro na Udesc129 (2008-
2010), além de assumir a criação dos materiais cênicos,
dramaturgia, direção e atuação, eu também operava
pequenos equipamentos em cena, como uma câmera de
vídeo e um celular. Mas até o Pequeno Manual de
Inapropriações eu nunca havia assumido completamente este
trânsito entre a atuação e a operação dos equipamentos de
luz, imagem e som. E só assumi estas funções por acaso,
pelo retorno dxs meninxs neste ensaio.
Com determinação, habitei novamente o território
existencial de meu processo de criação. Parece-me mesmo
sintomático o fato de eu nunca ter experimentado esse
deslocamento de funções na apresentação cênica. Eu precisei
desconstruir os papeis e funções que eu mesma havia
estruturado para o meu fazer artístico. Talvez esta
desconstrução tenha revelado um pouco mais de meus
próprios engendramentos.
De todo modo, assumi esta exposição do processo de
transformação do espaço cênico pela maquinaria teatral
(digital e analógica), procurando romper com a ilusão de
autonomia da cena. Eu atuava, operava luz, imagem e som,
organizava o cenário, mudava o figurino, e ia desconstruindo
e reconstruindo o espaço e a mim diante do público. Minha
relação com o tempo precisava ser íntima, para não acelerar
demais a experiência de cada transformação do trabalho, e
para não ralentar demais e prejudicar a fruição estética ou
perder o tempo de atenção do público. Procurei não ignorar
nada, observar tudo, olhar e ouvir com atenção e com o corpo
presente.

129
Prática de minha pesquisa de mestrado intitulada Smoked Love:
estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo,
defendida no programa de Pós-graduação em teatro da Udesc em
2010, sob orientação do professor Dr. Milton de Andrade Leal Jr.
180

A diva começa a se desmontar

Outro modo que encontrei para expor as ações e o


processo de constante transformação da cena foi ler o meu
próprio roteiro para o público, após ter executado a cena, e
indicar a preparação para a ação seguinte.
Eu tomei essa decisão no dia de estreia. Eu havia
criado os materiais dramatúrgicos (ações, objetos, textos,
caracterização, som, luz, espaço), estruturado algumas cenas,
definido a sequência delas, realizado um ensaio aberto,
experimentado duas cenas de improviso com o público
apenas (porque eu precisava do público para ensaiá-las), e
ainda não tinha decorado o pouco texto da peça.
Acho que estive tão focada nas criações do corpo
vocal neste processo que não me ative muito em memorizar
181

as palavras. O texto estava surgindo das experimentações, e


minha ideia não era fechá-lo, mas deixá-lo em suspenso,
aberto a novas possibilidades. Eu improvisava nos ensaios
quando não lembrava o texto, ou descartava. Então tive
dificuldades em memorizar o que eu havia criado para a
estreia.
Seria este ato falho130 um indício da corporificação do
meu tema de pesquisa?
Tive muitas experiências de atriz com muito trabalho
de texto: de esquetes de Karl Valentim ao solo de Smoked
Love131, muito pautado em uma longa narrativa íntima e não
linear. Muitas histórias contadas e recontadas. Muitas
memórias e muito treinamento de memorização com as
montagens. Mas no processo desse Pequeno Manual, eu
esqueci. Esqueci do inicio extremamente estruturado do
processo para me reinventar, esqueci do foco no texto e
esqueci-me de memorizar o texto criado até então para a
peça. Era preciso corporificar as palavras.
No dia da estreia, fui cedo para a sala de
ensaio/apresentação na Udesc. Levei todo o material de cena
para lá com a ajuda de meu marido, e depois que ele foi
trabalhar e eu fui montar o espaço e os equipamentos.
Quando terminei, ainda pela manhã, fui ensaiar. Tentei fixar o
pouco texto. Almocei. Voltei para o ensaio. Tentei decorar o
pouco texto. Parecia que eu tinha perdido a memória, não sei.
Queria eu ser o Funes de Borges naquele momento. Então,
como eu não conseguia decorar o texto, ensaiei com ele na
mão. Depois de cada cena, eu lia o roteiro da cena anterior
pra ver se eu não havia esquecido algo. E assim, resolvi
performar com este problema: assumir esta rememoração do

130
Termo cunhado pelo médico e psicanalista austríaco Sigmund
Freud (1856-1939) para fazer menção a falhas na fala, escrita ou
ações, causadas pelo inconsciente. Cf.: FREUD, 1980.
131
Prática de minha pesquisa de mestrado intitulada Smoked Love:
estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo,
defendida no programa de Pós-graduação em teatro da Udesc em
2010.
182

texto e do roteiro para a atriz como um procedimento de


exposição do processo da ação para a audiência.
E assim, fiz isso pela primeira vez no dia da estreia.
Quando finalizei a cena da diva, com a desmontagem da
persona, pausei a música Alors on danse no celular, peguei o
roteiro132 da peça e li-o desde o título para o público:

Pequeno manual de INAPROPRIAÇÕES - instruções para uma atriz

A atriz executa as indicações do prólogo.

Prólogo:
Diva-drag do jazz em cena. Canta “Summertime”, versão de Ella
Fitzgerald. Seduz/brinca com o público enquanto este se acomoda
em seus lugares. Ao fim da canção, recepciona-o com “bem-vindxs”
em inglês, alemão, espanhol, italiano, esperanto e português,
brincando com os ressonadores vocais.

Welcome!
Wilkomen!
Bienvenido!
Benvenuto!
Bonvênon!
Bem-vindxs a este pequeno manual de inapropriações. Fiquem à
vontade e aproveitem o momento.

Atriz apaga o foco da diva. Faz transição de cena com música no


celular, “Alors on danse”, de Stromae. Strip-tease decaído. Aumenta
a luz geral. Lê o roteiro até o presente momento. Anuncia a
instrução.

Durante a leitura do roteiro procurei ler o roteiro. Esta


era a minha ação. Procurei verdadeiramente lembrar com a
leitura se eu havia esquecido alguma ação ou palavra, e
assumir quando o esquecimento havia acontecido. E ele
aconteceu por vezes, e foi engraçado assumir isso para o

132
Em itálico, no roteiro, estão as rubricas, que para mim também
fazem parte da dramaturgia. Assim como as assumi em cena,
espero que quem leia este texto também identifique um diálogo com
a dramaturga através das rubricas.
183

público. Eu ria com as pessoas que riam de mim ao me ouvir


dizer: “ixi, me esqueci dessa parte”. E foi bom assumir os
erros no processo de apresentar o processo. Estes erros
revelaram para mim subversões necessárias à minha própria
desconstrução de gênero: desconstruções de modos de
pensar, agir, estruturar e experienciar o trabalho de atuação
no meu corpo vocal, ouvindo-me mais atentamente.
Para mim, a performatividade do gênero, da voz e da
cena aconteceu nessas diferentes instâncias que descrevi:
das subversões de vocalidade e linguagem às dissonâncias
das marcas de gênero na voz e no corpo; do esquecimento
real à exposição cênica do texto; da desmontagem da
persona e exposição da atriz à revelação dos processos de
transformação e ação da cena; na ironia subversiva, que faz
rir da própria desgraça, esvaziando a fetichização do gênero
por deslocá-lo de uma identidade fixa, e das palavras fixas.

A atriz lê o roteiro

A diva-drag foi embora, a atriz leu o roteiro e a próxima


cena foi anunciada. Preparemo-nos.
184

Como não conquistar ninguém pelo estômago ou Na


cozinha com Tigella

Instrução: selecione ações que lhe pareçam estereótipos de


gênero. Brinque com estas ações, repetindo-as e variando-as
enquanto ensina uma receita de nada. Não é nada, mas
precisa parecer uma receita. As palavras que estarão nesta
receita precisam ser mastigadas, mordidas, cuspidas. Sinta o
sabor de cada fonema, de cada som. Deguste os sons. Deixe
os sons da receita passearem por sua voz e seu corpo como
ingredientes. Delicie-se.
185

Certo dia me dei conta da quantidade de programas de


televisão (aberta e fechada) sobre culinária. Nacionais,
internacionais, apresentados por homens, mulheres, jovens,
pessoas maduras, idosxs, bonecxs, descoladxs, casuais e
sensuais. Sim, tem sensualidade na cozinha. Que o diga
Nigella Lawson. A britânica é umas das celebridades mundiais
da culinária, e tem programas veiculados no Brasil pelo canal
GNT133. É impossível assistir seus programas sem ser
seduzidx pelos decotes, curvas e sensualidade com a qual
Nigella se relaciona com a comida. Inspirada no programa Na
cozinha com Nigella, eu trouxe minha Tigella para este
Pequeno Manual de Inapropriações.
As experimentações que resultaram nesta cena
começaram com materiais diversos: copos, bacias, fitas. Eu
queria investigar a alteração de vocalidade pelo acoplamento
de objetos no corpo. Primeiramente, levei esta ideia para os
meus bolsistas do curso Laboratório Permanente de
Performance134. Em maio de 2013 eu já havia planejado o
desenvolvimento desta pesquisa com meus bolsistas Maíra
Wiener e Dilmon Nunes135. Mesmo tendo ficado doente no dia
do encontro, liguei para eles e pedi que realizassem o
experimento com os participantes do curso sem mim. Eles
deram continuidade à proposta e filmaram a experiência para
eu poder assistir o processo posteriormente: cada participante
do curso já tinha sido avisado para levar um objeto que
pudesse ser acoplado ao corpo para alterar a voz. Teve

133
Assisti ao programa Na cozinha com Nigella ainda em 2014, pela
GNT. O canal veicula programas culinários de Nigella Lawson
produzidos por emissoras inglesas. Não consegui encontrar a
informação exata sobre o período de veiculação deste programa
específico pela GNT, que parece ter como título original Nigella
Bites, produção do canal britânico Channel 4, entre os anos de 1998
a 2001. Informações disponíveis em:
http://en.wikipedia.org/wiki/Nigella_Lawson. Acesso em 08 de maio
de 2015.
134
Ação do programa de extensão Laboratório de Performance,
coordenado por mim no Centro de Artes da Udesc desde 2012.
135
Alunos do curso de Licenciatura em Teatro da Udesc.
186

escova de dentes, fita adesiva, fio dental, cone de papel filme,


grampo de roupa e mais. Eles partilharam algumas canções
que todos conheciam e experimentaram cantá-las com estes
objetos presos ao nariz, no meio da boca, etc. Chamaram a
experiência de decompositores, pela forma como as vozes
foram alteradas pelos objetos. Mesmo não tendo continuado
esta investigação no lab por motivos diversos, continuei a me
debruçar sobre esta investigação no processo de criação do
Pequeno Manual.
Nas investigações que eu fiz para esta cena, gostei
muito das sonoridades proporcionadas por uma bacia e por
alguns copos. E a bacia e os copos me lembraram de Nigella.
Então, comecei a brincar/jogar com a ideia de ensinar uma
receita decomposta pelas ações do corpo vocal. Juntei mais
uma colher de pau. Brinquei com ritmos da colher batendo na
bacia e da minha voz golpeando os ingredientes. Brinquei
com palavras que representavam ingredientes comuns, e com
as imagens que os sons dessas palavras me traziam.
Degustei os sons. Lembrei-me de experiências de poesia
fonética e poesia sonora. Lembrei-me de uma performance
que assisti no youtube do greco-britânico Mikhail Karikis136.
Lembrei-me de Artaud. Lembrei-me de vários outrxs artistas
da vocal performance art137, como Meredith Monk e Fátima
Miranda. Experimentei criar com a voz e com palavras-
ingredientes uma poesia sonora, uma partitura vocal com
variações rítmicas, tonais, tímbricas e de intensidade. As
ações vocais eram acompanhadas por ações físicas. Por fim,
minha receita ficou assim:

Ahm, Ahm
Água
Leite

136
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=GiGhupsyU9Y. Acesso em
fevereiro de 2015.
137
Wânia Storolli (2012) explica que o termo foi cunhado pela
musicóloga Theda Weber-Lucks em sua tese Vokale
Performancekunst als neue musikalische Gattung.
187

Ovo
Amendoim
Banha
Va vê vé vi vô vó vulva
Amassa
Bate
Soca
batessoca
vagabunda
vacavacafaca
fffffffffffffff
farinha fermento forno
hum
gostoso
gostosa
ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!

Optei por não indicar no roteiro minha partitura vocal,


para tentar deixar aberta a experimentação para futurxs
leitorxs/vocalizadorxs. Então, quando fui tentar fixar minha
criação, transcrevi algumas indicações fonéticas apenas.
Meu objetivo em cena era desconstruir a prosódia
(acordos da fala/emissão de uma língua para a compreensão
semântica) e explorar os sons dos fonemas que formavam as
palavras dessa receita, em busca de uma poesia sonora.
A poesia sonora começa enfaticamente138 nas
experimentações da poesia fonética dadaísta e futurista do
início do século XX, e se desenrola por outras
experimentações sonoras e musicais, como nas composições

138
Raoul Hausmann (1992) aponta o poema Ich liebe dich de Paul
Scheerbart, escrito em 1897, como inaugurador da poesia fonética.
Todavia, Dick Higgins (1992) indica a presença de elementos de
poesia fonética e poesia sonora em obras muito antigas da
literatura, com a utilização de aliterações e onomatopeias que
valorizavam a sonoridade em detrimento da semântica na
vocalização dos textos, como em As Rãs, do dramaturgo grego
Aristófanes (séc. IV a.C.), além de citar outros tantos autores
anteriores ao século XX.
188

para voz do italiano Luciano Berio139. A poesia sonora,


influenciada também pelas possibilidades eletroacústicas da
segunda metade do século XX, inspirava-me a experimentar
as palavras como materiais, e a voz como acontecimento na
criação dessa cena.
Não procurei trabalhar nesta cena com qualquer
intermediação tecnológica da voz. As alterações de
vocalidade eram provocadas por mim ou pelos objetos
acoplados ao meu corpo. Eu estava investigando algo como a
polipoesia, conceituada por Enzo Minarelli (1992, p. 119-120):

A polipoesia é concebida e realizada para


o espetáculo ao vivo; apoia-se na poesia
sonora como prima donna ou ponto de
partida para entabular relações com: a
musicalidade (acompanhamento ou linha
rítmica), a mímica, o gesto, a dança
(interpretação ou ampliação ou integração
do tema sonoro); a imagem (televisiva ou
por slides, como associação, explicação,
redundância ou alternativa), a luz, o
espaço, os costumes e os objetos.

Minarelli também indica a presença da tecnologia na


polipoesia, mas eu não queria utilizar intermediações
tecnológicas nesta cena. Eu queria experimentar as
possibilidades do meu corpo vocal na criação deste poema-
receita-de-nada.
Do ensaio aberto para a estreia, procurei explorar mais
a musicalidade da voz, nas variações rítmicas e tonais, na
repetição ou prolongamento dos sons, e criar metáforas para
minhas ações físicas a partir das sonoridades
experimentadas.
A receita começava com a repetição de um vício de
linguagem, do território dos sons que muitas vezes

139
Para conhecer um pouco sobre as composições de Luciano Berio
(1925-2003), sugiro a visita ao site oficial do Centro de Estudos
Luciano Bério. Disponível em: http://www.lucianoberio.org. Acesso
em 08 de maio de 2015.
189

produzimos sem perceber: “Ahm....ahm....”, a cozinheira


ensaiava começar.
Para cada ingrediente, trabalhei com uma metáfora,
uma imagem visual e sonora (os sons também criam
imagens). A água virou para mim um flagrante inicial
(aaaaaahhhhhhh!!!!!!!!!) que em seguida deslizava sedutora
pela última sílaba. O leite eu extraía dos meus próprios peitos,
imaginando encher a bacia com o som do “ch” 140 do leitchi
pronunciado pelos catarinenses (como tchau).

Tigella coloca leitchi na receita

140
A grafia correta do fonema é /x/.
190

O ovo foi decomposto em letras, e virou uma


abreviação pra mim, que anunciava o O.V.O. dentro de um
copo. Um chamado abafado.
O amendoim era uma reza brincalhona, fanhosa,
atravessada pela reverberação da voz em dois copos que eu
movimentava entre a boca e a bacia.
A banha era um sacrifício real. A exposição da minha
própria gordura, avolumada neste período de pesquisa. Esta
exposição demandou a aceitação de minhas banhas para a
demarcação e exposição do corpo. Mais uma vez me vi
normatizada, pois se não fosse isso, a exposição da banha
não seria um sacrifício para mim, e não teria ganhado espaço
nesta cena.
Mordendo a palavra em sílabas, às vezes com nojo, eu
utilizava uma fita adesiva larga e papel filme para apertar e
marcar minha pele como uma linguiça: várias voltas de
salame em uma só pessoa.

O público ajuda Tigella a marcar a banha


191

A mulher-porco141, com fita/cirurgia no nariz e nos


lábios também, marcava com obsessão os acúmulos das
refeições sedutoras no corpo, e pedia ajuda para a audiência
nesta tarefa.

A mulher-porco

A mulher-porco era ela mesma seu próprio ingrediente.


Para mim, a ação da banha nesta cena começa a indicar a
desconstrução da sedutora Tigella e, além disso, a própria
desumanização da cozinheira. O zoomorfismo, reiterado pelas
palavras do roteiro lido por mim após a cena, pode colocar
Tigella não só no papel de um animal, mas no papel de um
animal que as pessoas comem. Um anúncio de canibalismo,
uma mulher que se inventa para ser devorada ela mesma com

141
Esse nome surgiu da observação de minhas amigas Isabella
Irlandini e Vivian Coronato, também doutorandas do PPGT, nas
apresentações do Pequeno Manual de Inapropriações na Udesc em
novembro de 2014. Elas me trouxeram a imagem do porco, após
assistirem a peça em dias diferentes, porém não lembro qual delas
primeiramente relatou a imagem.
192

a comida (ou como a comida) que produz, como metáfora ao


consumo das imagens de beleza. As imagens, que se
desprendem do referencial real, são outra coisa, uma
impersonificação, algo sem identidade, mas com uma
ideologia que reflete (e se reflete em) normatizações e criação
de desejos de ser.
A desfiguração proporcionada por estes materiais, e o
zoomorfismo resultante na cena, lembraram-me das
performances com argila do francês Olivier de Sagazan.
Participei do primeiro encontro de uma oficina 142 com
ele em Florianópolis, em 2013, e assiti na mesma época sua
performance Transfiguração, no SESC Prainha, também em
Florianópolis. Sua interessante investigação proporciona a
criação, desconstrução e recriação de diferentes personas,
humanizadas ou não, e também a exploração de vocalidades
que emergem dessas criações. O artista investiga
intersecções entre performance, pintura, escultura e dança, e
me inspirou a investigar as alterações no corpo e na voz com
as fitas. A fita que eu prendia no meu lábio inferior nesta cena
às vezes se soltava em parte, e criava um zumbido na minha
voz durante alguns momentos da cena.
Após ter banha suficiente para a receita, com a ajuda
da colher de pau eu invocava a vulva como ingrediente: “Va
vê vé vi vô vó vulva”, prolongando bastante o /l/. A colher
direcionava as sílabas pelo espaço em meus movimentos, e
ao mesmo tempo borrava ainda mais o batom vermelho, já
maculado pela fita adesiva da mulher-porco.
Com os ingredientes selecionados, Tigella incitava o
público, ordenando: “amassa”. Ela sussurrava secretamente a
violência que se seguiria.
“Bate”, a voz espancava e a colher de pau ritmava-se
com a bacia. “Soca”, a voz ordenava na composição.
“Batessoca”, eu dizia, e a tensão da violência já se instaurava
nos olhos do público. “Vagabunda”, “vacavacafaca”,
“ffffffffffffffffffffff”. Os sons que vinham da bacia, que
142
Oficina e apresentação organizadas pela artista Elisa Schmidt
(Florianópolis-SC), com patrocínio do Prêmio Funarte Petrobrás de
dança Klauss Vianna 2012.
193

acomodava meu rosto inteiro, julgavam, intimidavam, bufavam


em aliterações. A voz grave me levava diretamente a habitar
cenas de violência contra a mulher. No ensaio aberto, utilizei
uma bacia vermelha, que escondia meu rosto como um corpo
sem cabeça, sem individualidade. Por sugestão de Brígida,
mudei a cor da bacia (e dos copos, que eram transparentes e
coloridos) para objetos apenas transparentes. Na estreia, meu
rosto e expressões eram revelados pelo material translúcido.
A violência ganhava uma face.

A face da violência

O estereótipo da mulher do lar, dominadora do


território doméstico e, portanto, boa cozinheira (para ser uma
boa esposa, segundo preceitos falocêntricos), voltava a partir
da varredura do “fffffffffffffffffffffffffffffff” para indicar os passos
finais da receita: “farinha”, “fermento”, “forno”. Ainda na bacia,
eu anunciava as etapas finais com uma vocalidade que me
remetia às preliminares de uma relação sexual caricaturizada,
exagerada na melosidade e sex appel.
194

Tirando a bacia da cabeça, eu experimentava a ilusória


comida, lambendo os dedos passados no interior da bacia,
como quem experimenta um doce delicioso direto da panela.
Em seguida, eu olhava para o público, aproximando-me de
alguém, e assediava: “gostoso”, “gostosa”. As cantadas eram
inúmeras, e deixavam minha voz cada vez mais aguda,
também prolongando cada vez mais os sons do assédio, até
simular um gozo de tanto lamber os dedos com comida
imaginária.
Após gozar, em uma abordagem irônica aos filmes
pornôs que coisificam e estereotipam as mulheres, minha
Tigella se recolhia, e eu iniciava a desmontagem de sua
persona.
Tirar todas as fitas no meu corpo e rosto doía.
Algumas vezes machucava realmente a pele, arrancava
cabelos. E como eu não conseguia alcançar todas as fitas,
devido à limitação de movimentos que algumas delas me
impunham, eu pedia ajuda ao público também para tirá-las.
Suportei as pequenas dores em cena, assim como aprendi a
suportar a dor da pinça que arranca os pelos da sobrancelha,
e a dor da depilação com cera quente nas pernas, virilha,
axilas e buço desde a adolescência. Atualmente não realizo
mais depilações com cera pela dor que me causa, mas a fita
adesiva em cena me ajudou a explorar esta experiência de
demarcação de gênero que vivenciei na história do meu
próprio corpo.
O incentivo a assumir mais riscos em cena, saindo de
minhas zonas de conforto, também foi uma sugestão de
Fátima no ensaio aberto. Neste ensaio, eu usei pouca fita, eu
não pedi ajuda para ninguém. Eu controlava tudo. Procurando
me expor a mais riscos, eu passei a pedir para o público
também colocar fita e papel filme à vontade. E isso criava
limitações inesperadas de movimento. Ao tirá-las, eu
precisava lidar com um cuidado real para não me machucar
muito. Eu precisava estar completamente presente nesta
ação.
No final da cena da Tigella eu também tirava os cílios
postiços e a maquiagem. Outra dor decorrente do sacrifício
195

por um ideal estético: a cola de cílios machucava minha pele,


e a maquiagem carregada precisava ser esfregada por um
lenço umedecido diversas vezes para sair. Para mim, expor
essa ação de desmonte para a audiência, apesar de ser uma
ação muito comum e corriqueira, parecia sensibilizá-la pela
minha dor, ao menos era isso que eu percebia em algumas
expressões.
Nesta cena, meu processo de (re)invenção procurou
transitar entre a construção e a desconstrução de estereótipos
de mulheres e de imagens de mulheres, ocupar territórios-
problemas, como a violência e a sexualidade, e queerizar as
escutas através da poesia sonora e das interferências de
objetos na vocalização.
Esta relação com os objetos como prolongamentos do
próprio corpo vocal é inspirada nos objetos relacionais de
Lygia Clark. Rolnik (s/d) analisa estes objetos como algo que
tinha sentido apenas no uso atribuído pela artista a eles: eram
objetos ordinários, que a artista utilizava em suas ações
performáticas com cunho terapêutico no contato direto com a
audiência. Apesar de eu não utilizar os objetos no público,
penso que os sentidos (diferenciados dos significados
utilitários que possam ter no cotidiano) que eles criam em
cena emergem das relações que proponho entre meu corpo
vocal e os objetos. Não são signos para serem decifrados,
como Rolnik afirma que também não o eram os objetos
relacionais de Clark, mas transformam o corpo na relação
com ele, transformando-se no próprio corpo.
Esses acoplamentos também queerizam o corpo vocal,
nas transformações que realizam sobre corporeidade e
vocalidade, deslocando-os dos lugares-comuns da
representação do corpo e da voz atrelada a gênero e da
utilização dos objetos no cotidiano.
A poesia sonora que procurei construir na cena de
Tigella pretende não conquistar ninguém pelo estômago por
dois motivos: primeiramente porque não há, de fato, alimentos
reais na cena; em segundo lugar, porque meu intuito foi
justamente desconstruir estereótipos da mulher atrelados a
imagens de beleza e papéis sociais engendrados.
196

Stanislavski definiu o conceito de ação verbal em seu


sistema para indicar o potencial da voz revelar as intenções
das personagens, intenções estas não contempladas no texto
(ou até mesmo contraditórias ao texto), mas essencialmente
dependentes do texto (e da linguística) na cena realista. Eu
procurei investigar as ações do corpo vocal, criadas e
potencializadas pela poesia sonora que emergiu na cena de
Tigella: ações independentes da estrutura linguística,
realizadas com ou sem palavras, com onomatopeias, com
decomposição de palavras, com ruídos. Procurei a ação
encantatória das palavras de Artaud, sem abrir mão do
completo reconhecimento semântico, mas abrindo as
possibilidades de sentido através da ação do corpo vocal no
espaço da cena.
Schafer (1991) ao discorrer sobre as imagens e
sensações suscitadas pelas sonoridades das letras e palavras
cita a obra de James Joyce, Finnegans Wake, e suas
palavras-trovão. Essas palavras (poesia sonora) são formadas
por letras repetidas e algumas versões em vários idiomas. É
uma leitura dos potenciais sonoros do idioma, como o
presente na obra de Joyce, que leva Schafer (1991) a
interpretar os sons das letras do alfabeto como onomatopeias.
Assim, meu intuito não foi esvaziar minha poesia
sonora de semântica, mas explorar outras possibilidades de
sentidos além da semântica.
As ações do corpo vocal buscaram deslocamentos de
vocalidade e prosódia, aproximando a palavra da música,
como aconteceu na poesia sonora do século XX, que buscou
dissolver fronteiras e absorver (e ser absorvida) por outras
linguagens (como a música e a vocal performance art).
Schafer (1991, p. 239-240) afirma que

Para que a língua funcione como música, é


necessário, primeiramente, fazê-la soar e,
então, fazer desses sons algo festivo e
importante. À medida que o som ganha
vida, o sentido definha e morre; é o eterno
princípio Yin e Yang. Se você anestesiar
uma palavra, por exemplo, o som de seu
197

próprio nome, repetindo-o muitas e muitas


vezes até que seu sentido adormeça,
chegará ao objeto sonoro, um pingente
musical que vive em si e por si mesmo,
completamente independente da
personalidade que ele uma vez designou.
As línguas estrangeiras também são
música, quando o ouvinte não compreende
nada de seu significado. (SHAFER, 1991,
p. 239-240).

Esta musicalidade (inata à própria voz em seus


parâmetros e cadências), sendo sobreposta à semântica,
libera a voz das limitações impostas pela linguagem; e sendo
rebelde às formas tradicionais de música, libera a voz das
convenções do canto. É um espaço de (auto)invenção de
musicalidade que a poesia sonora ocupa.
As experimentações vocais e sonoras das vanguardas
europeias também contaminaram a produção musical. A
chamada música atonal, como o dodecafonismo, serialismo,
música eletroacústica e minimalismo, passou a agregar em
suas composições sonoridades até então consideradas não
musicais. Os experimentos abrem mão dos centros tonais
para incorporar o ruído, que

[...] atua exatamente como interferência


sobre o código e as mensagens tonais
(que vinham se tensionando na segunda
metade do século XIX, mas que decolam
agora para um efeito cascata de
alterações harmônicas, com ‘dissonância’
generalizada, alterações rítmicas,
desmantelamento da métrica do
compasso, alterações timbrísticas e de
texturas, uso de agregações de ruídos,
barulhos concretos e consequente
esgarçamento, rarefação e dispersão das
linhas melódicas. (WISNIK, 1991, P. 44).

Tais procedimentos também reverberam nas


produções cênicas experimentais contemporâneas, como nas
198

óperas multimídia da compositora brasileira Jocy de Oliveira,


nos espetáculos de música-teatro do grego radicado na
França George Aperghis, e em experiências de vocal
performance art, como as realizadas por Fátima Miranda e
Meredith Monk.
Zumthor (1992), ao discorrer sobre as experiências em
territórios intermediários143 dos dadaístas no Cabaret Voltaire,
aproxima as experiências de poesia sonora dos artistas deste
movimento com a arte da performance, quando afirma que

Ser um “performer”, para um autor, é


tornar-se intérprete de si mesmo, é
retroceder um pouquinho na orgulhosa
hierarquia estabelecida há alguns séculos
por nossos literatos. No limite, a noção
mesma de autor se dissipa: o acento se
desloca para a própria performance, na
sua unicidade, na sua não-repetibilidade,
na sua individualidade acústico-visual, que
faz do ouvinte-espectador um coprodutor
da obra proposta à sua atenção.
(ZUMTHOR, 1992, p. 143).

Como intérprete de mim mesma, ou atuadora de mim,


procurei explorar a performatividade desta cena em seus
potenciais de transformação de meu corpo vocal e de ação do
corpo vocal no espaço. Mais que uma personagem, Tigella foi
uma persona emergida da decomposição de estereótipos e
ações (e para decompor, primeiramente, compus). As
experiências com os materiais surgidos de minhas memórias,
nos ecos nos quais habitam atos performativos de gênero,
levaram-me a expor fissuras entre atriz e persona, trânsitos
entre ações e desejos.
Quando Tigella se desmontou por completo, a atriz
pegou seu roteiro e verificou a execução das ações com o
público. Eu li:

143
Zumthor (1992) aponta o hibridismo de linguagem no movimento
dadaísta, que transita entre poesia, música, dança e pintura.
199

Primeira instrução: Como não conquistar ninguém pelo estômago,


ou na cozinha com Tigella:

Atriz faz charme para o público. Começa a receita: uma poesia


sonora.

Ahm, Ahm
Água
Leite
Ovo
Amendoim
Banha
Va vê vé vi vô vó vulva
Amassa
Bate
Soca
batessoca
vagabunda
vacavacafaca
fffffffffffffff
farinha fermento forno
hum
gostoso
gostosa
ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!

Atriz simula orgasmo. Faz transição de cena com música no celular,


“Sonata 1”, de John Cage. Troca de roupas. Lê roteiro até o
presente momento. Anuncia instrução.

Quando eu esquecia alguma coisa do roteiro, alguma


parte da poesia sonora ou alguma ação, eu parava a leitura e
executava a mesma para o público naquele momento. Em
uma das apresentações na temporada de estreia, pulei a ação
com a colher de pau e o verso “Va vê vé vi vô vó vulva”, que
eu tanto gosto. Então, ao ler este trecho do roteiro, executei-o
para o público. Em outra ocasião, li o roteiro antes de trocar
de roupas. Então, ao final da leitura, troquei de roupas antes
de anunciar a próxima cena.
Para mim, estas exposições dos procedimentos das
cenas, e dos próprios erros e esquecimentos, reforçam o
200

caráter performativo do trabalho. Ao perceber como se forja


uma ação artística e (re)conhecer seus procedimentos, a
audiência pode tomar (re)conhecimento da forjação da própria
vida, em suas instâncias movediças, como a identidade
sexual. Deslocar vocalidade, linguagem e representação de
gênero de seus lugares-comuns pode fomentar a reflexão
sobre estes próprios lugares. Existe um lugar que não seja
movediço? Tigella afirma que não.

A atriz anuncia a próxima cena


201

Como não ser agradável

Instrução: procure lembrar-se de situações embaraçosas,


desagradáveis, de assédio moral e sexual. Repita as ações
dxs opressorxs, exagerando-as. Repita-as até esvaziá-las do
poder de lhe ofender. Ironize estas ações. Dê voz à sua
atuação brincando com ruídos, línguas inventadas e
onomatopeias. Subverta a (des)ordem.
202

Esta cena-performance começou durante uma


caminhada. Em um ensaio, comecei a caminhar e a reproduzir
algumas onomatopeias com a voz. Caminhando pela sala de
ensaio, aos poucos as onomatopeias me trouxeram memórias
de juízos de valor, julgamentos. Lembrei-me de cochichos e
frases ditas pelas costas. Lembrei-me de xingamentos
escancarados. Lembrei-me também de assédio moral e
sexual. Lembrei-me de muitas situações desagradáveis que
vivi e de outras tantas que presenciei. Surgiu-me desta
experiência a imagem de um inquisidor.
Essa experimentação, de fato, só poderia acontecer
plenamente na presença de público, e trazia em seu cerne a
improvisação. Eu experimentei sons e ações sozinha; as
onomatopeias foram se expandindo para outras ações e
reações vocais, para línguas inventadas, inspiradas na ideia
do grammelot da comédia dell’arte e na glossolalia de Artaud
e dos vanguardistas do início do século XX.
Experimentei pela primeira vez esta cena com público
em um ensaio que meu marido assistiu. Logo em seguida, no
ensaio aberto realizado antes da estreia da peça, improvisei
pela segunda vez a cena. Nas duas experiências procurei
trabalhar muito com o silêncio (que segundo Cage, nunca é
absoluto). Eu procurei ouvir. O silêncio em cena, na presença
dx atuante, é um prenúncio do que está por vir, um potente
gerador de tensões. Silenciosamente eu iniciava esta cena
após ter me montado no território tenso da música Sonata 1,
de John Cage, tocada em meu celular.
Caminhando por entre as pessoas dispostas em
passarela144 no espaço, eu olhava em silêncio para as
mesmas, assumindo minha persona em construção na cena.
A figura do inquisidor surgia logo no início, quando eu olhava
com reprovação para as pessoas, dos pés às cabeças. Na
sequência eu emitia onomatopeias, ações vocais ou interagia

144
O espaço ocupado pelo público era formado por cadeiras
dispostas em fileiras ovaladas, formando uma passarela no centro
da sala. A visualização do espaço lembra uma passarela de escola
de samba, na qual as pessoas que estão de um lado da plateia
conseguem ver as que estão do outro lado.
203

em grammelot com a audiência. Meu inquisidor era bruto, com


a pélvis projetada, uma caricatura de um bulinador.

Julgando o público

Aos poucos, eu migrava da reprovação para o assédio.


Primeiro eu buscava realizar assédio moral, procurando
bulinar145 as pessoas. Depois, assédio sexual, mexendo com
todxs, procurando exibir minhas partes íntimas sob a cueca.
Nessa cena eu usei cueca boxer, camisola, camisa
social e chapéu. A camisola fazia parte de meu figurino base,
que ficou comigo após a retirada do vestido usado nas cenas
anteriores. A cueca também fazia parte deste figurino base,
mas nesta cena fiz questão de destacá-la, colocando a barra
da camisola dentro da cueca, e aproveitando para moldar um
pênis de pano.
Essa figura desagradável trazia para mim atos
performativos de gênero. A camisa social, a cueca e o
chapéu, além da vocalidade trabalhada nos registros médio e

145
No sentido de praticar bullying.
204

grave, remetiam-me ao universo do bulinador hétero sem


escrúpulos, do assediador sem respeito algum. O arremedo
das ações bulinadoras e assediadoras apontava quase para
uma bufonaria, como Brígida mesmo havia me comentado no
ensaio aberto. As meninas que assistiram o ensaio aberto
chegaram a sugerir um maior investimento no aspecto
bufônico da personagem, em suas ações e relações.
Todavia, minha ideia não era trabalhar em um território
codificado da atuação (como a bufonaria ou a comédia
dell’arte), mas sim transitar por elementos destes territórios na
criação da performance. Ao perceber isto, eu e Brígida
decidimos que a codificação da linguagem não seria
interessante para esta cena.
De qualquer modo, esta persona foi ganhando jogo de
cintura, perspicácia e audácia com as improvisações
realizadas na presença do público. Era uma cena que eu não
poderia criar sozinha, uma cena que dependia do tempo, do
feedback, das reações das pessoas. Assim, a cada
apresentação, mais malandra essa figura se tornou.
Minhas intervenções com as pessoas eram
improvisadas, mudavam às vezes, dependendo de minha
atenção para o que estava acontecendo entre mim e a
audiência.
Eu buscava sempre o aspecto cômico das situações,
ridicularizando esta própria figura bulinadora. A comédia
sempre foi espaço de subversões, e nesta cena a paródia
habitava as ações da persona, revelando o riso que emergia
da figura satirizada gradativamente em cena.
Como a cena se pautava no improviso com o público,
eu descobri aos poucos possibilidades de utilizar materiais de
outras cenas, improvisando com eles também. Por exemplo:
um dos copos de Tigella virou um superpênis, que eu
colocava sob a cueca e depois roçava nas pessoas, exibindo-
o em movimentos viris.
Destes movimentos surgiu uma dança improvisada
com alguém da plateia, como uma dança de adoração ao falo.
Para mim, este momento passou a ser o ápice da cena-sátira.
Eu convidava um homem do público para dançar comigo, e
205

ensinava uma coreografia com movimentos de projeção da


pélvis.

O superpênis

As reações eram diversas, e eu precisava trabalhar o


tempo certo da graça nesta cena para ele não virar o tempo
da desgraça, ou seja, para não perder a abordagem cômica e
para não ridicularizar a audiência, o quê não era a minha
intenção.
Na apresentação na qual a foto acima foi tirada, por
exemplo, minha mãe (essa senhora que aparece se abando)
passou mal, não sei se por causa do calor ou por causa do
superpênis. Minha atitude teve que ser rápida no improviso:
tentando não perder o aspecto cômico da cena, atirei-me em
direção à mesa de luz, sobre a qual estava o controle do
condicionador de ar. Jogando com o público, liguei o ar
condicionado (que estava desligado por causa do barulho que
interferia nas cenas) e fiz minha mãe melhorar. Também saí
de perto dela, é verdade.
206

Uma questão que me motivou na criação desta cena-


performance foi realmente a comicidade. Foram poucos os
trabalhos de performance que eu pude assistir ao vivo ou por
vídeos que traziam uma abordagem cômica.
Muitas vezes eu me questionei justamente em relação
a isso: performance tem que ser séria? Não há comicidade na
performance art ou na vocal performance art? Quando vi a
performance de Sagazan em Florianópolis, eu ri com sua
cantora de ópera, surgida inesperadamente da transfiguração
provocada pela argila. Na performance de Karikis, que citei
anteriormente, a glossolalia e as onomatopeias, em conjunto
com as ações que ele desenvolve, oferecem um aspecto
cômico ao trabalho. Guilherme Gomes-Peña também tem
trabalhos com sátiras nos deslocamentos propostos nas
ações e caracterizações que questionam o neocolonialismo
cultural. A comicidade habita também o território movediço da
arte da performance.
Nesta cena, procurei trabalhar a comicidade a partir
das subversões de linguagem não verbal e da sátira nas
ações da persona. Esta sátira partiu de ecos de memórias de
sujeitos, mas não procurou realizar uma mimesis do
referencial, e sim exagerar o referencial, caricaturizando-o.
Jarman-Ivens (2011) afirma que a imitação na arte
geralmente tem a função de invocar estereótipos como
ferramenta de humor subversivo. É claro que a imitação,
neste caso, foge da reprodução do referencial (o imitado) para
a caricatura do referencial (a ultrarrepresentação), como
estratégia para gerar comicidade e subversão.
Como parte dessa estratégia, mantive meu rosto limpo,
sem maquiagem ou acessórios que fizessem alusão à
virilidade: barba, bigode, etc. Assim, meu rosto e minhas
ações buscavam a dissonância entre si, buscavam
desnaturalizar a representação do opressor-bulinador.
Para mim, esta abordagem pretendeu ativar a reflexão
e o posicionamento político a partir da alteridade: colocando a
audiência na posição sem poder dx oprimidx e caricaturizando
a figura bulinadora no ridículo de suas ações, eu pretendia
criar uma paródia de gênero.
207

Ao falar sobre práticas parodisísticas de gênero, Butler


(2003, p. 211) afirma que:

A perda das normas de gênero teria o


efeito de fazer proliferarem as
configurações de gênero, desestabilizar as
identidades substantivas e despojar as
narrativas naturalizantes da
heterossexualidade compulsória de seus
protagonistas centrais: os “homens” e
“mulheres”. A repetição parodística de
gênero denuncia também a ilusão da
identidade de gênero como uma
profundeza intratável e uma substância
interna. Como efeito de uma
performatividade sutil e politicamente
imposta, o gênero é um “ato”, por assim
dizer, que está aberto a cisões, sujeito a
paródias de si mesmo, a autocríticas e
àquelas exibições hiperbólicas do “natural”
que, em seu exagero, revelam seu status
fundamentalmente fantasístico.

Minha tentativa de queerização nesta cena caminhou


pela paródia e também pela exposição da forjação da
representação de gênero - através de figurino, adereços e
ações, e através da exploração da desnaturalização também
do espaço da voz e da linguagem.
Recorrendo ao grammelot/glossolalia, às
onomatopeias, à microações e reações vocais, procurei
fomentar uma escuta queer, através da exploração da
corporeidade da minha voz.
O grammelot tem uma ligação direta com a comédia
dell’arte, surgida na renascença italiana. É um recurso muito
utilizado no treinamento de atuantes, para justamente liberar o
corpo do domínio da linguagem (muitas vezes xs alunxs-
atuantes ficam tão preocupadxs com o texto decorado ou
improvisado que quase não se movimentam/agem). O
grammelot traz geralmente um apelo cômico, pela própria
208

sátira na imitação dos sons de um idioma conhecido, mas


sem reproduzir suas palavras (um enrolation).
Já glossolalia não é um termo tão utilizado no teatro,
não é comum encontrá-lo nos livros sobre atuação e
pedagogia do teatro. Eu conheci o termo com as leituras
sobre Artaud e sobre as experimentações vocais nas
vanguardas europeias do início do século XX. Para mim, a
maior diferença entre grammelot e glossolalia é esta relação
que se tenta estabelecer no grammelot com os sons de um
idioma conhecido na língua inventada/improvisada, enquanto
a glossolalia não necessariamente buscará esta semelhança.
Dario Fo (1999), contextualizando a origem do termo
pelos cômicos dell’arte, faz a relação do grammelot com a
imitação dos sons de um idioma por crianças, gerando
discurso com o auxílio de uma síntese (economia) gestual. Ele
afirma que

Para se contar uma história em grammelot


é necessário ter uma bagagem dos
estereótipos sonoros e tonais mais
evidentes de um idioma, além de uma
clara consciência de seus ritmos e
cadências. (FO, 1999, p. 99).

Fo (1999) também relaciona o grammelot a um jogo


onomatopeico, que às vezes revela uma ou outra palavra-
chave na produção do discurso e invenção do idioma
inexistente.
Já a glossolalia traz uma relação direta com a
religiosidade, com o poder de falar em línguas, crença
advinda de movimentos pentecostais. O termo é utilizado
também nos estudos da linguagem e na psicanálise, para
analisar as experiências nas quais sujeitos afirmam falar em
línguas com as quais nunca tiveram contato. O princípio da
glossolalia é o mesmo do grammelot: procura-se manter uma
identificação fonética e prosódica no discurso criado com
palavras inventadas.
Jarman-Ivens (2011), referindo-se à utilização da
glossolalia em músicas/performances de Diamanda Galás,
209

afirma que Michel de Certeau relaciona a glossolalia não


apenas à religiosidade, mas também ao universo infantil, à
patologia e às invenções literárias dos dadaístas (poesia
fonética).
É possível acreditar que Artaud utilize o termo para
esvaziá-lo do sentido cômico atrelado historicamente ao
grammelot. Sagazan também utiliza a glossolalia em suas
performances com argila, que não trazem um aspecto cômico
à ação, apenas permitem ouvir sua voz e tentar decifrá-la em
suas (in)tensões.
Os vanguardistas da poesia sonora deram diferentes
nomes às suas experiências de glossolalia (primeiramente
escrita, como uma poesia). Richard Kostelanetz (1992) faz um
panorama do que ele chama texto-som, que abarcaria desde
suas origens em rituais (como o canto ritmado indonésio
Ketjak) e na prática religiosa de falar em línguas, até as
experiências dos poetas do século XX. A especificidade do
texto-som, para Kostelanetz (1992, p. 74), é que
“contrapondo-se ao texto impresso, que se lê com o olho, o
texto-som é sonorizado e ‘lido’ com o ouvido”, distinguindo-se
da música por ter uma intenção de vocalidade falada, sem
alturas e ritmos pré-definidos.
Então, as poesias fonéticas já eram criadas para
serem vocalizadas, distinguindo-se de textos literários - que já
utilizavam figuras de linguagem como aliterações (repetição
de consoantes), assonâncias (repetição de vogais) e
onomatopeias -, por não querer apenas destacar aspectos
sonoros da língua, mas inventar línguas ou desconstruir
línguas.
Eu não vejo a necessidade de distinguir ou separar
inflexivelmente o grammelot da glossolalia em cena, pois isto
seria impor limites às experimentações vocais. Para mim,
ambos são sinônimos da ação vocal que cria sentidos em
cena a partir do trabalho com os fonemas como materiais, e
não dos fonemas como língua codificada. Esta subversão de
fonemas também oferece uma queerização da vocalidade:
enquanto na língua falada a voz é meio para articular um
discurso, no grammelot/glossolalia os fonemas são os
210

materiais que fomentam a materialização da corporeidade da


voz, em todas as suas possibilidades de criação de sentidos e
sensações.
Assim, em Como não ser agradável, procurei um devir
queer na paródia de gênero e na subversão da linguagem.
Optei por não trabalhar com uma linha de interpretação
codificada (bufonaria, comédia dell’arte, etc.), mas sim
abordar alguns elementos destas linguagens na minha
tentativa de queerização de vocalidade e gênero. Optei por
deslocamentos neste território de performatividade, desvios
que pudessem me colocar em acontecimento com o público
durante o improviso, em (rel)ação com os corpos vocais do
espaço. Uma eclosão de memórias e sensações que buscou
instabilizar territórios fixos e hegemônicos através da
comicidade.
Após a apoteótica dança da virilidade, eu pedia para o
público aplaudir meu corajoso parceiro de coreografia e
colocava meu celular para tocar Don’t worry, be happy, de
Bob Mcferrin. Brincando de dublar a música, eu guardava
camisa, copo e chapéu, organizava o espaço e os
equipamentos para a próxima cena, e desmontava minha
persona. Em seguida, eu tomava meu roteiro em mãos, e
conferia com a audiência a execução das indicações da cena:

Segunda instrução: Como não ser agradável

Atriz joga com o público julgando, criticando, menosprezando,


assediando, querendo as coisas, incomodando as pessoas.
Onomatopeias, grammelot e ações vocais. Faz transição com
música no celular, “Don’t worry, be happy”, de Bob Mcferrin (que
sempre confundimos com Bob Marley). Dubla a canção enquanto
organiza os elementos para a próxima cena. Guarda o chapéu. Abre
a cortina preta de fundo para o projetor (se houver). Liga o projetor e
a caixa de som. Acende o foco da câmera. Diminui a luz geral. Lê o
roteiro até o presente momento. Anuncia a instrução.

A confusão com a autoria da música foi feita por mim


mesma em uma das apresentações, depois de uma pesquisa
frustrada na internet. Descobri que muita gente confunde
211

mesmo a autoria desta canção, como eu havia feito, e após


ser avisada pela minha amiga Vivian na fatídica apresentação,
resolvi incluir esta falha coletiva no roteiro. Este trecho inteiro
do roteiro é uma grande rubrica, que também me ajudava a
verificar toda a organização dos materiais para a próxima
cena. Quando eu me esquecia de alguma ação,
imediatamente após a leitura da referida instrução, eu a
realizava.
Finalizando a leitura, eu anunciava a próxima cena.
212

Como não proferir um discurso

Instrução: pegue um equipamento eletrônico que possa lhe


colocar em teleconferência: um celular, um computador, etc.
Baixe no equipamento um software de equalização sonora.
Ligue para alguém. Faça um close de uma parte de seu
corpo. Enquanto fala com a pessoa sobre algo que você julga
importante, vá equalizando a transmissão de sua voz em
tempo real. Brinque com a aplicação de diversos efeitos em
sua voz. Encha seu discurso de nãos. Instabilize as certezas.
213

Esta cena surgiu de meu interesse em investigar a


intermediação do corpo vocal em cena e as contracenas com
mídias eletrônicas. No decorrer das experimentações, acabei
não contracenando com minha imagem ou minha voz
gravada, como eram minhas ideias iniciais, pois não foi este o
caminho que a performance trilhou. Mas eu, minha voz
amplificada e a imagem projetada de meus olhos, acabamos
por coabitar o espaço desta cena-performance.
Na prática de minha pesquisa de mestrado, a peça
Smoked Love, eu já tinha interesse nesta investigação. A
ampla presença da televisão, do cinema, dos celulares e da
internet no cotidiano das pessoas, e também a grande
presença destas novas tecnologias nas artes da cena,
motivavam-me nesta pesquisa. Em Smoked Love eu utilizava
o microfone em duas cenas: uma na qual eu falava trecho de
um texto e outra na qual eu cantava. Porém, em nenhuma das
cenas eu experimentei equalizar a voz. Eu utilizava também
uma gravação de minha voz, como se fosse uma memória ou
pensamento que tomava conta do espaço enquanto eu estava
imóvel no início de uma cena. Em outra cena, uma câmera de
vídeo enquadrava meu rosto, que era projetado sobre um voil
gigante para a plateia, enquanto eu realizava a cena
praticamente ao lado da projeção. Em todos estes momentos,
corpo e voz estavam descolados um do outro, desconectados
em suas materializações midiatizadas, porém compondo
juntos uma unicidade virtual. O único momento efetivo de
contracena foi na duplicação de uma persona por duas
atrizes: resolvemos que eu atuaria e contracenaria com um
alterego em vídeo, performado por outra atriz. Como o
espetáculo abordava um território esfacelado de relações
amorosas, este jogo possibilitava uma leitura ambígua na
relação da atriz presente com a imagem projetada: poderia
ser ou seu alterego ou a pessoa amada.
No Pequeno Manual de Inapropriações, optei por não
tentar seguir caminhos parecidos com os que eu tinha
percorrido em Smoked Love. Eu queria experimentar outras
possibilidades de virtualizar corpo e voz em cena. Não sabia
como seria, onde estaria, mas não queria muita virtualização
214

dessa vez. Então, acabei focando as experimentações com


midiatização da voz e do corpo apenas nesta cena,
agrupando as experimentações que achei mais interessantes.
Eu não poderia deixar de me lembrar das
performances de Laurie Anderson, Vito Acconci e Mikhail
Karikis na criação desta cena, performances que eu havia
assistido por vídeo e que me povoavam a memória e o
imaginário.
Na seção anterior desta cartografia, discorri sobre as
estratégias de equalização da voz, mímesis, repetição de
sílabas e descolamento entre corpo e voz de Laurie Anderson.
Agora falarei um pouco do que chama(va) a minha atenção no
trabalho de Acconci, especialmente na videoperformance
Open Book, de 1974, que também me influenciou diretamente
na criação desta cena.
Nesta videoperformance, Acconci tem a boca focada
em close up pela câmera. Ele fala em primeira pessoa sobre
se abrir para um relacionamento, para a vida:

Eu vou aceitá-lx, não vou desligar, eu não


vou excluí-lx... Estou aberto a você, eu
estou aberto a tudo... Esta não é uma
armadilha, nós podemos ir para dentro,
sim, venha para dentro... 146

Emitindo uma frequência média, o performer isola


parcialmente alguns dos articuladores da fala: os lábios, o
maxilar e os dentes. Ele permanece a maior parte do tempo
com a boca aberta, articulando a fala com a língua, o palato, e
em menor grau com o maxilar: dentes e os lábios se
aproximam minimamente.

146
“I'll accept you, I won't shut down, I won't shut you out... I’m open
to you, I'm open to everything... This is not a trap, we can go inside,
yes, come inside...". Disponível em
http://www.ubu.com/film/acconci_book.html. Acesso em 13 de julho
de 2011. (Tradução minha).
215

Esta estratégia promove certa desumanização à sua


atuação, que é completamente desnaturalizada. A boca em
close up cria a impressão de que o público a qualquer
momento será engolido pelo artista, principalmente quando
visualizamos a projeção do vídeo em uma escala maior do
que a da tela do celular ou computador. A voz de Acconci se
torna pastosa, e as palavras um tanto ininteligíveis.
Percebemos o esforço realizado por ele para manter o
isolamento parcial dos articuladores da fala, o que não é
habitual, e que acaba alterando o processo de salivação
(aumenta a quantidade de saliva produzida e dificulta a
passagem da mesma pela faringe) e a hidratação do trato
vocal (a boca fica desidratada, pois a inspiração é oral devido
à manutenção da boca aberta).
Como atriz, procurei diluir a definição de gênero nesta
cena, tanto pelo enquadramento da câmera na boca e quanto
pela debilidade da articulação da voz. Uma boca que pode ser
de qualquer corpo, e que evoca uma patologia: a
desnaturalização do logos/linguagem se dá pelo corpo vocal
limitado funcionalmente. Acconci queeriza a vocalidade e o
gênero pelo enquadramento e redimensionamento da boca
(em relação às partes isoladas dos corpos vocais que
assistem a videoperformance em uma projeção ampliada) e
pela abertura constante da boca que desarticula a fala e altera
a vocalidade.
Assim, tanto as estratégias poéticas de Anderson
quanto as de Acconci me inspiraram nesta cena.
Iniciei as experimentações também com a imagem em
mente da performance de Karikis que eu havia assistido (e
que já citei anteriormente neste mapa). Ele, vestido com um
terno, parado em pé na frente de um pedestal com microfone,
na postura de um orador que vai fazer um discurso
político/ideológico, contaminou-me. Karikis nesta performance
não utiliza palavras: apenas onomatopeias, ruídos, ações
vocais sem palavras. Mas eu contaminei-me com a imagem
da figura dele, e não pude me afastar da efervescência dos
debates e promessas políticas do período eleitoral, que findou
um mês antes da estreia do Pequeno Manual (as eleições
216

para presidentx, governadorx, senadorxs e deputadxs


aconteceram em outubro de 2014). Fiquei com a imagem dxs
políticxs e de seus discursos.
Escrevo poesias há tempo, desde a adolescência.
Então, para esta cena, criei uma poesia durante as
experimentações com o microfone e a mesa de som. A
divisão do texto é em estrofes, que mantém certa unidade
temática ou sonora:

Não estou aqui para falar de corrupção


Não estou aqui para falar de pedofilia
Não estou aqui para falar de miséria
Não estou aqui para falar de fome

Não estou aqui para falar de saneamento básico


Não estou aqui para falar de segurança
Não estou aqui para falar de saúde
Não estou aqui para falar de educação

Não estou aqui para falar de moradia


Não estou aqui para falar de desemprego
Não estou aqui para falar de inflação

Não estou aqui para falar de aborto


Não estou aqui para falar de estupro

Não estou aqui para falar de racismo


Não estou aqui para falar de misoginia
xenofobia, anomalia, burocracia

Não estou aqui para falar de fundamentalismo


morte, sorte, passaporte, corte, assassinato
Não não não não

Não estou nem aí pra transgenia


seca sela assola o corpo pela boca

Não me interessa a homofobia, lesbofobia, transfobia


Não estou aqui para investigar, me importar
Não estou aqui para falar
217

Não estou aqui


Não estou
Não

A partir da imagem dx políticx, brinquei com esse


discurso ao contrário, como contradições e tensões que
misturam quem exerce o poder e quem é afetado por ele.
Experimentei todos os efeitos da minha mesa de som,
uma Behringer de quatro canais. Selecionei os efeitos que
achei mais interessantes, e que deixaram minha voz
infantilizada, metalizada, com muito eco, muito grave, muito
aguda, etc. Relacionei trechos do texto com os efeitos, e eu
mesma ia falando o texto ao microfone e alterando os efeitos
na mesa de som, que posicionei ao meu lado.

Os olhos falantes

Como minha ideia era aproveitar ao máximo o espaço


da sala de apresentações para as cenas, resolvi ocupar nesta
cena as periferias. Posicionei-me com alguns equipamentos
em um dos cantos da sala, e decidi projetar minha imagem na
extremidade oposta.
218

Nas experimentações, o enquadramento que mais me


chamou a atenção foi o dos olhos. Eu já tinha experimentado
abrir a imagem para meu corpo inteiro, experimentei focar na
boca (como eu já tinha feito em uma videoperformance
utilizada na performance Retrato de uma mulher que chove
horas para marcar o tempo, que apresentei em 2010 em
Joinville, antes mesmo de conhecer o Open Book de Acconci),
experimentei focar em outras partes isoladas do corpo e
também na cabeça toda, mas os olhos me chamaram a
atenção.
A máxima de que “os olhos são o espelho da alma” era
um lugar-comum que fazia sentido para mim nesta
investigação. Olhos falantes, sem boca e sem um corpo
exposto com eles me pareciam um bom deslocamento para
esta performance.
Baitello Jr. (2005) diz que é através dos olhos, do
olhar, que estabelecemos empatia, que nos interessamos em
estabelecer uma relação com alguém: conversar, ouvir,
importar-nos.
Porém, como eu mesma estava fazendo as alterações
dos efeitos na mesa de som, muitas vezes eu não conseguia
olhar para a câmera, posicionada à minha frente. E a imagem
projetada revelava meu olhar direcionado para baixo, nos
momentos que eu olhava para a mesa de som para trocar de
efeito, regular volume, etc. Era um desvio sem intenção.
No ensaio aberto que fiz antes da estreia, Fátima me
sugeriu a inclusão de mais nãos no texto. Então eu comecei a
experimentar a inclusão progressiva e aleatória destes nãos,
para fugir da previsibilidade que ela mesma havia indicado em
sua observação da cena. Eu passei a incluir nãos nos inícios
das frases, nos finais, no meio, antes e depois de palavras,
muitos nãos. E gostei desta experimentação, mas preferi não
fixar os espaços dos nãos, mantendo este espaço de
improviso para mim.
Experimentei também incorporar mais ruídos durante a
cena, aproveitando a amplificação dos sons feita pela caixa.
Microvocalidades sussurradas, que agora ganhavam um
corpo diferente através da intermediação da voz.
219

Extremidades da produção vocal com pouca intensidade,


como sons fricativos de consoantes formadas sem fonte
glótica (vibração das pregas vocais), apenas com fonte
friccional (fricção dos articuladores), como /p/ e /t/. A
impressão de falta de potência, de compartilhamento de
segredos ou sensualidade, eram sensações que emergiam
para mim dessas experimentações microvocálicas
amplificadas.

O espelho da alma

Quanto aos olhos, resolvi tornar o que era acaso em


algo intencional: assumi o desvio do olhar, que não era agora
apenas um desvio operacional para a cena. Eu desviava o
olhar para as laterais e para cima também. Passei a explorar
mais as expressões dos olhos, eram olhos falantes,
precisavam de movimentos. Estes olhos desviantes me
traziam a imagem das promessas não cumpridas, da
desilusão, da mentira, do descaso.
Brígida me sugeriu no ensaio aberto projetar a imagem
dos olhos no chão, no meio do público. Mas eu não consegui
220

disponibilizar uma estrutura de fixação vertical para o projetor


a tempo da estreia, então mantive a projeção na parede.
A precisão do enquadramento era um desafio à parte,
que eu assumia a cada nova apresentação: uma pisada mais
forte no chão de madeira na cena anterior poderia tirar a
câmera do enquadramento mínimo da área dos meus olhos. E
como eu atuava e operava todos os equipamentos, sem
auxílio algum, precisava estar pronta para qualquer
eventualidade.
Meu plano B era segurar a câmera em uma das mãos,
mas em todas as apresentações o enquadramento
permaneceu, e esse improviso (ainda) não foi necessário.
Consigo dimensionar apenas parcialmente, através de
fotos e filmagem, a relação da audiência com a imagem
projetada e minha presença produzindo imagem e voz. Esta
relação entre ausência e presença em cena define um amplo
campo de estudos, de modo que me aterei aqui apenas a
questões que para mim emergem da experiência desta cena.
Pela última foto da cena, é possível perceber que a
atenção da maioria das pessoas presentes na apresentação
estava direcionada à imagem projetada, apesar da
espacialização estruturada entre público, imagem e atriz estar
razoavelmente equilibrada (eu e a imagem ocupamos as
extremidades correspondentes do mesmo lado da sala).
É possível estabelecer nesta cena (a partir da
predileção do público pela imagem dos olhos ao invés da
presença da atriz) uma relação com A Sociedade do
Espetáculo (1997), de Guy Debord. O interesse e efeito de
realidade que a imagem enquanto representação de algo
causa gera um impacto muitas vezes maior do que a própria
realidade (a atriz em cena).
Debord afirma que as imagens permitem a fuga da
realidade e legitimam outras possibilidades de realidade, em
um processo de alienação e banalização do referencial (a
coisa em si). Sua análise se pauta na influência do capitalismo
e do sistema de classes sociais no cotidiano midiatizado por
imagens, que substituem a própria experiência vivida: “o
espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação
221

social entre pessoas, mediadas por imagens” (DEBORD,


1997, p. 14).
O esvaziamento da experiência vivida em prol da
experiência midiatizada e espetacularizada, capaz de
subverter a realidade, é cada vez mais presente na vida das
pessoas. Redes sociais como o facebook criam vidas virtuais
paralelas às vidas de seus usuários. A dissimulação que a
imagem proporciona através de recursos como
enquadramento e efeitos de tratamento são capazes de
projetar idealizações de sujeitos, lugares e objetos, forjar
ações e relações, e imprimir a sensação de perenidade às
coisas.

O espetáculo é o apagamento dos limites


do eu (moi) e do mundo pelo
esmagamento de eu (moi) que a presença-
ausência do mundo assedia, é também a
supressão dos limites do verdadeiro e do
falso pelo recalcamento de toda verdade
vivida, diante da presença real da falsidade
garantida pela organização da aparência.
(DEBORD, 1997, p. 140).

A permanência proporcionada pelas imagens pode nos


tranquilizar em relação ao turbilhão de acontecimentos da
vida. Contra a fúnebre perspectiva da morte, a imagem, ou
imago, que do latim significa imagem do morto (BAITELLO
JR., 2005). A imagem traz uma maior sensação de controle
sobre (e do que) a vida. Eu posso optar por não ver, posso
fechar os olhos, pausar o vídeo, mudar de canal, fechar a
revista. Eu posso ver novamente, passar para frente, editar a
imagem. Na vida nem sempre temos condições de fugir ao
que nos acontece.
Alienação e sensação de controle podem ser reflexos
da amortização que as imagens ocasionam. Baitello Jr. (2005)
diz que vivemos na época da iconofagia, na qual imagens
devoram imagens. Consumimos imagens de coisas e pessoas
prioritariamente à ingestão de alimentos ou relacionamentos
com pessoas. Projetamos nossas vidas a partir de um imenso
222

repertório de imagens que carregamos. As imagens nos


devoram.
Com o objetivo de deslocar a idealização da realidade
através da imagem, trabalhei com o close nos olhos dx
oradorx desta cena. Olhos sem face e sem maquiagem. Olhos
sem-vergonha. Olhos que tentam estabelecer vínculos, mas
revelam os mínimos movimentos que poderiam passar
despercebidos ao vivo. E esses movimentos criam tensões
com as (não) promessas dx políticx.
O treinamento de oradorxs, de modo geral, continua a
obedecer às regras da retórica. Xs políticxs chegam mesmo
(assim como outrxs profissionais) a fazer aulas de oratória e
teatro para causar maior efeito de verdade em seus discursos.
Eu mesma fui cogitada a assessorar um político com esta
finalidade, certa vez em Joinville.
As imagens são representações, e as representações
estão descoladas de seus referenciais. Por isso, ao atuar estx
políticx, optei por tensionar as instâncias de ausência e
presença em cena. Meu corpo e voz ao vivo estavam tão ao
alcance da audiência quanto meu corpo e voz midiatizados.
Ao lado da imagem projetada de meus olhos, coloquei um
P.A. (caixa de som) para que a voz saísse de perto da
imagem, casando a direcionalidade do som (percepção do
percurso - de onde o som vem e para onde ele vai) com a
imagem dos olhos. Por isso esses olhos eram falantes.
Ao mesmo tempo, o público podia ver a atriz ao vivo,
transmitindo em tempo real seu corpo recortado/enquadrado e
sua voz equalizada. Pelo que eu consegui perceber na
filmagem, e por alguns relatos que recebi, era possível ouvir
também minha vocalidade cotidiana na cena, justaposta em
menor escala à voz equalizada e amplificada. Um corpo vocal
que se ampliava nas dimensões das partes (olhos e voz).
Tanto o enquadramento do vídeo quanto os efeitos de
equalização que apliquei à minha voz amplificada foram
estratégias de queerização do corpo vocal. Além de
desocupar espaços engendrados de vocalidade e
corporeidade, alguns efeitos da mesa de som me lembravam
de vozes sintetizadas, vozes de ciborgues.
223

De fato, a midiatização do corpo e da voz na arte da


performance e no teatro buscam gerar outros efeitos de
realidade, outros modos de percepção (os micromovimentos e
microvocalidades superampliados trazem outra percepção
sobre o corpo vocal, por exemplo).
A virtualização do corpo vocal possibilita redimensionar
sua ação sobre os outros corpos. Essa ação pode ser
alienante (projetando idealizações, normatizações ou
necessidades de consumo, ou ainda criando a ilusão da
satisfação, por exemplo) ou gerar estranhezas, queerizar.
Meu intuito de queerização do corpo vocal nessa cena
objetivou desestabilizar a unicidade do corpo vocal
cotidianamente engendrado da atriz através da tecnologia.
Um paradoxo, afinal a voz é corporeidade expandida no
espaço, mas com a midiatização esta expansão dissimula o
referente criador em prol da amplificação do efeito (da
criação), criando um efeito de presença que se dá pela
ausência.
Minha intenção foi estimular a escuta reduzida e
queerizada pela amplificação de microvocalidades e pelos
efeitos de equalização que transformavam minha vocalidade
em tempo real, e gerar corporeidade vocal através da
virtualização da presença da atriz. Embora pareça
contraditório, a voz amplificada, redimensionada em sua
amplitude, preenchia o espaço da sala de trabalho.
Além de expor a criação, recriação e desconstrução de
vocalidades, que são geralmente associadas às imagens de
corpos vocais engendrados, nessa performance minha
presença ao vivo também teve o intuito de expor a forjação da
própria cena, expor os procedimentos de criação.
Na finalização da cena, aproveitei para ler o roteiro no
microfone e captar a imagem do texto com a câmera,
projetando trechos do mesmo para o público.
224

A atriz lê o roteiro no microfone

Terceira instrução: Como não proferir um discurso

Atriz lê texto com efeitos diversos de uma mesa de som. Troca de


efeitos durante a cena Transmissão em tempo real dos olhos da
atriz. Liberdade para colocar quantos nãos quiser no texto, como
colocam também em nossas vidas.

Não estou aqui para falar de corrupção


Não estou aqui para falar de pedofilia
Não estou aqui para falar de miséria
Não estou aqui para falar de fome

Não estou aqui para falar de saneamento básico


Não estou aqui para falar de segurança
Não estou aqui para falar de saúde
Não estou aqui para falar de educação

Não estou aqui para falar de moradia


Não estou aqui para falar de desemprego
Não estou aqui para falar de inflação

Não estou aqui para falar de aborto


Não estou aqui para falar de estupro
225

Não estou aqui para falar de racismo


Não estou aqui para falar de misoginia
xenofobia, anomalia, burocracia

Não estou aqui para falar de fundamentalismo


morte, sorte, passaporte, corte, assassinato
Não não não não

Não estou nem aí pra transgenia


seca sela assola o corpo pela boca

Não me interessa a homofobia, lesbofobia, transfobia


Não estou aqui para investigar, me importar
Não estou aqui para falar

Não estou aqui


Não estou
Não

Lê roteiro até o presente momento, na frente da câmera, falando ao


microfone. Treina canto harmônico com a técnica de Karguiraa. Tira
a camisa. Desliga o projetor e a caixa de som. Coloca a luz da reza
e tira a da câmera. Anuncia instrução.

Durante a leitura da última parte do roteiro desta cena


(a rubrica), eu ia realizando o treinamento de canto harmônico
indicado pelo texto (técnica de Karguiráa). Após finalizar a
leitura, eu executava as ações finais de transição e anunciava
a cena seguinte.
226

Como não rezar

Instrução: acesse o site youtube na internet. Pesquise por


canto harmônico. Veja vídeos de demonstração para e
acostumar com as sonoridades. Veja vídeos que ensinam as
diversas técnicas deste canto. Experimente seguir as
instruções dadas nos vídeos. Permita-se experimentar.
Depois, escolha a técnica que mais lhe aprouver. Experimente
usar esta técnica para rezar uma oração que você saiba de
cor. Por fim, coloque uma roupa que nenhum padre ou freira
usaria. Faça sua prece.
227

Esta cena surgiu de minha vontade de habitar o


território do canto harmônico, ou canto difônico 147. Meu
primeiro contato com o canto harmônico foi através de minha
amiga Isabella Irlandini, atriz e pesquisadora que atualmente é
aluna do Doutorado em Teatro da Udesc. Isabella morou
muitos anos na Itália, e lá aprendeu técnicas de canto
harmônico tuvano. Em 2011 iniciamos um grupo de pesquisa
vocal na Udesc, e Isabella conduziu algumas práticas de
canto harmônico com os participantes.
O canto harmônico visa dar intensidade aos
harmônicos da voz, destacando ao menos um dos
harmônicos, além da frequência fundamental, o que gera a
impressão de duas vozes vindas dx mesmx cantorx.
Ainda em 2011, conheci Massimiliano Buldrini, ator e
pesquisador italiano que atualmente reside no Brasil e é aluno
do Mestrado em Teatro da Udesc. Max ministrou uma oficina
sobre voz e comédia dell’arte na Udesc em 2011, organizada
por Maria Brígida de Miranda, e trabalhou com o treinamento
vocal para atuantes através do canto harmônico. Em 2012
organizei outra oficina com Max na Udesc, com foco apenas
no canto harmônico. Neste mesmo ano, eu e Janaína Martins
organizamos o II Seminário a Voz e a Cena em Florianópolis,
e promovemos um curso com Cecília Valentim, cantora e

147
“O canto difônico (ou canto dos harmônicos) é o canto de dois ou
mais sons em simultâneo por uma única pessoa, que ao manipular
os espaços da cavidade bucal ressalta os harmónicos da
própria voz. Essa experiência conduz a novos planos de escuta e de
emissão vocal. Em certas culturas, é usado para a meditação. Essa
técnica é bastante popular na Ásia Central, de onde vem sua origem
entre mongóis e tuvanos. O amplo uso na música tradicional
também se verifica na África do Sul, entre as mulheres xhosa, em
que a técnica é frequentemente acompanhada por chamada e
resposta. Na América do Norte, seu uso tradicional está em grupos
indígenas como os inuítes, sendo praticado geralmente por
mulheres. Por sua natureza suave, esse canto era usado como
cantiga de ninar. Também é usado no Tibete entre lamas.”.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Canto_dif%C3%B4nico.
Acesso em 08 de maio de 2015.
228

psicoterapeuta paulista, especialista em healing voices (vozes


de cura – cantos de tradições espirituais) e overtone chanting
(canto harmônico).
Nestas experiências, pude perceber a ação das
técnicas de canto harmônico sobre o potencial respiratório, a
escuta e a produção vocal. Como demanda muita pressão de
ar para o destaque de harmônicos, o canto harmônico ativa
enfaticamente os músculos do apoio respiratório/vocal para a
manutenção da pressão na coluna de ar. E por estimular o
destaque dos harmônicos através da ampliação de suas
intensidades, o canto harmônico permite a expansão do
repertório sonoro (escuta) e vocal (produção) dx cantorx.
Nas experimentações que realizei para esta cena, a
magia, a ancestralidade, o transe e o ritual eram sempre
lugares que emergiam em meu imaginário. O canto
gregoriano, com seu corpo expandido pelos harmônicos
(apesar de não ser uma técnica de canto harmônico), levou-
me à imagem das grandes igrejas e catedrais. Lembrei-me de
minhas aulas de latim do curso de Licenciatura em Letras, que
interrompi em 2002 na Univille, em Joinville. Como eu estava
bem interessada em experimentar a técnica kargyraa do canto
harmônico tuvano, que é gutural e produz uma vocalidade
mais grave e profunda, um sub-harmônico, através da
vibração das pregas vestibulares148 (falsas pregas vocais),
embrenhei-me nesta jornada.
Não consegui produzir exatamente a vocalidade do
kargyraa durante minhas experimentações. Na maior parte do
tempo, minha voz trazia a sonoridade da vibração
predominante do músculo tireoaritenóideo, como em um vocal
fry. O vocal fry é o registro mais grave de produção vocal. É
utilizado em aquecimentos e desaquecimentos vocais (para
massagear/relaxar as pregas vocais) e tratamentos
fonoaudiológicos, além de ser também um efeito vocal muito
utilizado por cantorxs para dar a impressão de rouquidão na
voz.

148
Cf. SAKAKIBARA et al, 2002.
229

Assumindo esta dificuldade, fiz a transição da cena dx


políticx para esta treinando o kargyraa/fry nas apresentações.
Para iniciar a cena, eu procurei estabelecer um espaço
ritualístico. Como sou muito alérgica (rinite), sempre uso
produtos naturais para abrir as vias aéreas. Então, incorporei
óleo essencial de eucalipto a esta cena, para ajudar a respirar
e a cantar.
Eu pegava o frasco de óleo dentro do baú, pingava
umas gotinhas na palma de uma mão, esfregava as mãos e
cheirava (cuidando para não aproximar muito as mãos dos
olhos, pois o óleo é forte e faz lacrimejar). Depois de inspirar e
expirar profundamente, eu me dirigia a cada pessoa da plateia
individualmente, oferecendo o óleo e sussurrando seus
benefícios no auxílio da respiração. Eu fui a bruxa, a feiticeira,
a xamã das imagens e sensações que povoavam minhas
memórias. Era uma ação individual que eu executava, que
envolvia o olhar e a escuta atenta a cada pessoa presente.
Eu estava preparada para o caso de alguém não
gostar de minha oferta, por isso resolvi criar uma abordagem
menos invasiva. De qualquer modo, nas apresentações que
realizei na estreia, todos aceitaram o óleo, ouviram
atentamente minhas palavras sussurradas, esfregaram as
mãos e inspiraram profundamente.

A bruxa oferece óleo de eucalipto


230

Ainda durante a oferta do óleo de eucalipto a todxs xs


presentes, eu continuava (entre uma e outra pessoa)
treinando o kargyraa. Finalizada esta partilha, eu retirava duas
imagens de mulheres em tamanho A3 do baú, e prendia-as
com fita adesiva na tampa aberta do baú, para ficar visível a
todxs.

As bruxas
231

A morte de Joana D’Arc na fogueira da Inquisição aos dezenove


anos

Pintura de Hermann Stilke (1843), Joan of Arc's Death at the


Stake149.

Uma das imagens era de uma pintura do século XIX,


sobre a morte da heroína francesa Joana D’Arc (1412-1431),
queimada viva na fogueira da Inquisição por heresia150.

149
Disponível em:
https://www.pinterest.com/pin/92886811035595446. Acesso em 09
de maio de 2015.
150
A francesa Joana D’Arc afirmava ouvir vozes de anjos desde os
13 anos de idade. Impulsionada pelo o que as vozes lhe diziam, a
jovem convenceu o rei francês Carlos VII (1403-1461) a lhe deixar
liderar uma tropa de 4.000 homens na Guerra dos Cem Anos, contra
a Inglaterra. Joana conseguiu recuperar alguns territórios franceses
232

Já a outra imagem era uma foto de um linchamento


público de uma jovem mulher, também acusada de bruxaria e
queimada viva, mas em 2013, na Papua-Nova Guiné
(Oceania). A caça às bruxas ainda não terminou.

Linchamento público seguido de morte na fogueira de Kepari


Leniata, vinte anos

Foto: divulgação151

Como muitas das instituições religiosas têm um


histórico de repressão e violência aplicadas às mulheres,
como é o caso da Inquisição medieval e da condenação do

no comando desta tropa, até ser capturada pelos ingleses e


condenada por heresia. Contraditoriamente, no século XX a jovem
foi santificada pela mesma Igreja Católica que apoiou sua
condenação e morte. Cf.:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joana_d%27Arc#A_morte_de_Joana_d.2
7Arc. Acesso em 09 de maio de 2015.
151
Disponível em:
https://feminismosemdemagogia.wordpress.com/2013/12/29/as-
netas-das-bruxas. Acesso em 09 de maio de 2015.
233

aborto (e consequentemente a privação de decisão sobre o


próprio corpo) que a igreja católica defendeu (inquisição) e
defende (criminalização do aborto), além da segregação das
mulheres de muitas práticas religiosas (os padres, por
exemplo, são os mediadores entre Deus e a humanidade, não
as freiras), resolvi abordar estas questões nesta cena.
Estas práticas misóginas não estão presentes apenas
na religião católica. No Irã, mulheres ainda são apedrejadas
até a morte por adultério; em países como Somália e Sudão,
meninas têm seus clitóris extirpados, sofrendo mutilação
ainda na infância; No Afeganistão, mulheres são proibidas de
estudar, trabalhar e rir em público; no Brasil152 há diferença
salarial por sexo no servidorismo privado e alto índice de
violência contra mulheres. Estes são apenas alguns exemplos
de práticas misóginas e discriminatórias presentes ainda hoje
no cotidiano das mulheres153.
Um exemplo bem próximo a mim: na família de cinco
filhos, dos quais minha mãe era a filha mais velha, meus avós
maternos escolheram investir nos estudos do segundo filho
mais velho, em detrimento do investimento nos estudos de
minha mãe, porque ela era mulher e tinha como perspectiva
de futuro ser mãe e dona de casa, e ele era homem, e poderia
ter outras perspectivas. Estas questões são problemáticas e
reivindicações que feministas desde as sufragistas da primeira
onda vêm expondo. E muitas vezes são tratadas como
questões superadas em países como o Brasil. Mas não são.

152
Sobre desigualdade de gênero no Brasil, consultar o Retrato de
desigualdades de gênero e raça do Instututo de Pesquisas
Econômicas Aplicadas, IPEA. Cf:
http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf. Acesso em 09 de maio
de 2015.
153
Em Un Women – Anual Repport 2012-2013, publicação da
United Nations Entity for Gender Equality and the Empowerment of
Women (UN Women) há muitas outras informações sobre
desigualdades de gênero em diversos países do mundo. Cf.:
http://www.unwomen.org/~/media/headquarters/attachments/section
s/library/publications/2013/6/unwomen-annualreport2012-2013-
en%20pdf.pdf. Acesso em 09 de maio de 2015.
234

Além de toda a discriminação e violência sofrida por mulheres


na atualidade, há ainda todas as fobias, discriminações e
violências relacionadas a práticas sexuais não binárias:
homofobia, lesbofobia, transfobia, como eu escrevi no texto da
cena anterior. Os direitos civis conjugais e de constituição
familiar, a criminalização da homofobia e o acesso sem
discriminação ao mercado de trabalho são algumas das
questões pelas quais os movimentos LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) lutam na
contemporaneidade brasileira.
Todas essas questões povoavam minha memória nas
experiências que realizei para esta cena. Um dia levei para o
ensaio um tecido cilíndrico comprido branco, que eu tinha
comprado para usar na primeira versão da proposta prática
dessa pesquisa, na cena inicial que eu havia concebido como
útero. Depois da banca de qualificação, abri mão dessa
estrutura, esqueci-a, para me lançar a novas experimentações
sem estruturas prévias. Mas como este material já estava
comigo, continuei trabalhando com ele.
Nestas experimentações, lembrei-me de uma ação que
eu havia criado na protoperformance Contaminação,
desenvolvida no segundo semestre de 2013 no Programa de
Extensão Laboratório de Performance, que coordeno na
Udesc. Era uma caminhada muito lenta, na qual eu emitia
uma nota aguda e contínua com a vogal i, muito longa,
parando apenas para respirar e continuar com a ação. Nessa
caminhada, às vezes eu olhava para o nada, ignorando as
pessoas que cruzavam meu caminho, e às vezes eu fixava o
olhar em alguém, abrindo-me para os acontecimentos que
emergiam da proposta dxs performers se contaminarem com
as ações dxs outrxs, com o espaço e com a audiência.
Em Contaminação, eu realizava esta caminhada com
um vestido curto, meias-calças grossas e um chapéu, todos
pretos. Eram roupas do meu próprio guarda-roupas. Como
identidade visual para o grupo nesta performance, optamos
por trabalhar com roupas do cotidiano de cada um e com
chapeús de estilos variados que coletamos com os
integrantes do grupo. Procuramos escolher cores de chapéu
235

para cada pessoa que condisessem com as cores da roupa


da mesma. Definimos momentos coreografados com os
chapéus, que estabeleciam uma relação de diferenciação
entre os membros da performance e os transeuntes do local.
Mas nas experimentações para o Pequeno Manual de
Inapropriações, eu explorei esta caminhada com o tecido
branco. Na caminhada com a nota aguda, lembrei-me da
imagem de uma noiva. Variei da nota alta e contínua para
experiências com o kargyraa, experimentando as
vocalizações com diversas vogais e incluindo rezas do Pai
Nosso em português e latim. Também criei outras ações em
diferentes planos do espaço (baixo, médio e alto), que para
mim surgiram como metáforas de adoração e penitência
religiosa. Eu explorava nesta cena o corredor central entre as
cadeiras da plateia, caminhando em uma linha reta, sem olhar
para o público.
Assim, na definição desta cena-performance para as
apresentações, logo após a colocação das imagens na tampa
do baú, eu, que estava apenas com a camisola preta sobre a
cueca também preta (meu figurino-base), vestia muito
cerimoniosamente o tecido tubular branco e longo. Enquanto
vestia-me, eu continuava treinando kargyraa.
Após entrar no cilindro de tecido, eu cobria meu rosto e
deixava meus peitos sob a camisola preta à mostra, iniciando
uma lenta caminhada com kargyraa no corredor de luz,
variando notas e vogais no canto. Os peitos sob a camisola à
mostra, o figurino e a luz me traziam a imagem de uma
sacerdotisa pagã, uma figura transgressora do conflito cristão
que oprime a sexualidade para a potencialização da
religiosidade.
236

A caminhada da sacerdotisa

Chegando à outra extremidade do corredor de luz


usado nesta cena, eu me abaixava de joelhos, em posição de
prece, e iniciava a reza do Pai Nosso, misturando as
vocalidades do kargyraa e do vocal fry durante a oração
salmodiada. Eu também misturava trechos da oração em
português com trechos da oração em latim, aleatoriamente.

Pai nosso que está no céu Pater noster qui es in caelis


Santificado seja o vosso nome Sanctificétur nomen tuum
Venha a nós o vosso reino Advéniat regnun tuum
Seja feita a vossa vontade Fiat volúntas tua
Assim na terra como no céu Sicut in caelo et in terra

Em certo momento da oração, eu iniciava ações no


chão, contorcendo-me e alongando-me dentro do cilindro de
tecido. Eu também variava a vocalidade, que às vezes ficava
mais alta e chorosa, levando-me a imagens de sofrimento,
levando-me para as imagens que eu havia exposto das
mulheres queimadas por bruxaria.
237

O sofrimento da penitência

Em certo momento, eu ficava em silêncio, ia voltando


para a posição de prece com a respiração muito sonora, e aos
poucos ia me levantando novamente, caminhando e
vocalizando notas muito altas, em uma pequena variação de
três ou quatro notas, como em uma lamentação. Meu canto
da noiva havia se transformado nesta lamentação.
Ao chegar ao extremo do corredor de luz no qual eu
havia iniciado a cena, eu tirava o tecido muito
cerimoniosamente novamente, guardava-o, guardava as
imagens das mulheres dentro do baú, sentava sobre o baú e
lia o roteiro para o público.
238

A atriz lê o roteiro sentada sobre o baú

Quarta instrução: Como não rezar

Atriz cheira óleo de eucalipto, e na sequência oferece ao público


individualmente, sussurrando seus benefícios fitoterápicos. Coloca
duas imagens penduradas no baú: uma pintura que romantiza a
inquisição medieval e a situação das mulheres queimadas vivas por
bruxaria, e uma foto de um linchamento público em 2013, na Papua-
Nova Guiné. Esta mulher, como tantas outras, foi acusada de
bruxaria, torturada e queimada viva pela comunidade. Seus olhos
estavam tapados, mas seu coração estraçalhado foi visto por todxs.
A atriz coloca um tecido branco cilíndrico sobre o corpo e caminha
treinando o Karguiraa. Reza a primeira parte do “Pai Nosso”
misturando português e latim. Reza com karguiraa variando tons e
239

movimentos no chão. Peitos aparecem. PEITOS APARECEM


EROTIZADOS SOB UMA CAMISOLA.

Pai nosso que está no céu Pater noster qui es in caelis


Santificado seja o vosso nome Sanctificétur nomen tuum
Venha a nós o vosso reino Advéniat regnun tuum
Seja feita a vossa vontade Fiat volúntas tua
Assim na terra como no céu Sicut in caelo et in terra

Atriz finaliza a cena voltando em uma caminhada muito lenta.


Vocalize agudo, até chegar ao baú. Tira o tecido branco. Lê
instruções até o presente momento. Aumenta a geral e tira a luz da
reza. Anuncia a última instrução.

A busca pela queerização do corpo vocal nesta cena


transportou minha vocalidade para o registro basal,
supergrave e crepitante. No ensaio aberto, Fátima disse que a
imagem que a vocalidade lhe trouxe foi de uma demônia.
De fato, quando eu levo gravações de canto harmônico
para os alunos da primeira fase da Licenciatura em Teatro na
qual dou aula, na Udesc, muitos estranham as vozes desse
canto. A relação do registro mais grave com o imaginário de
demônios talvez possa vir da própria disseminação da
presença de fry e drives em estilos de rock, como hard e
metal, além de práticas mágicas e religiosas, como
incorporação de espíritos e entidades.
Para mim, essa vocalidade me levava a territórios
ancestrais nesta cena, e se colocava em conflito com os
peitos à mostra da sacerdotisa, instabilizando a representação
de gênero por criar um espaço de estranhamento (queer). A
lamentação final, em notas superagudas, também tinha o
propósito de expor a forjação da vocalidade, além de
redimensionar a figura construída em cena.
Procurei assim destacar o processo de criação e
desconstrução da sacerdotisa-demônio, o ritual de preparação
da cena, e revelar na leitura do roteiro as questões políticas
trazidas pelas imagens em seus contextos.
A utilização das técnicas de kargyraa e vocal fry, além
da oração em latim, tiveram como objetivo potencializar a
240

corporeidade da voz na criação de metáforas, ações e


sensações.
Findando a leitura do roteiro, eu me levantava e
manipulava a aparelhagem de luz de forma a preparar os
materiais para a próxima cena. A iluminação se transformava
em uma geral com pouca intensidade, que abraçava todo o
público para a partilha que viria a seguir.
241

Como não sentir

Instrução: Reuna-se com outrxs pessoas (familiares, amigxs,


estranhxs). Peça para cada pessoa tentar se lembrar de uma
situação de subjulgação, na qual alguém desmereceu, diminui
ou ridicularizou uma ação ou desejo seus. Dê tempo para as
memórias. Peça para cada umx criar um
som/palavra/ruído/canto inspirado nesta lembrança. Peça
para as pessoas cantarem e expurgarem essas memórias.
Peça para as pessoas ouvirem-se. Componham juntxs este
canto de libertação. Dancem pela liberdade. Sintam-se vivxs.
242

Nas aulas de voz que ministro na Udesc, eu costumo


conduzir diversas improvisações vocais. Também nas oficinas
e cursos de voz dos quais participo geralmente há
experiências pautadas na improvisação, com diversas
estratégias.
Uma das estratégias que eu mais gosto nas
improvisações vocais em grupo é a ativação da dupla escuta,
quando você vocaliza (e precisa se escutar para isso) e ao
mesmo tempo percebe e oferece o espaço para xs demais
participantes vocalizarem (e precisa escutá-lxs para isso).
No período de apresentações da performance Apneia-
suspensão do tempo-dor, no Laboratório Permanente de
Performance, em junho de 2014, eu realizei a primeira
experimentação desta cena. Após todo um percurso de
performances com o grupo de participantes do lab, por
diversos espaços da Udesc, chegávamos a uma sala de aula
prática com o público. A sala tinha pouca luminosidade e
sentávamos em roda no chão, com todxs xs presentes. Logo
eu explicava que aquela performance precisaria da ajuda de
todxs para acontecer. Distribuíamos pedaços de papéis e
canetas e eu pedia para as pessoas pensarem em situações
de violência de qualquer espécie (física/moral/psicológica/de
gênero/sexual/econômica/social/racial/etc.) que tinham
experienciado (vivido/visto/ouvido). Em seguida, eu pedia que
cada umx escolhesse uma situação de violência que tivesse
sido marcante para si, e escrevesse a síntese da situação no
papel, sem identificação. Depois, recolhíamos os papéis, já
dobrados, e os colocávamos em um saco, que ficava aberto
no centro do círculo que havíamos formado.
A estratégia de improvisação era então explicada à
audiência: aleatoriamente, quem quisesse conduzir a
improvisação deveria sortear um papel do saco, ler em voz
alta a situação de violência, e iniciar um som base que o
grupo deveria reproduzir. Este som deveria ser inspirado pela
situação exposta. Logo após, com todos vocalizando o som
base, x condutorx iniciaria um solo de improviso vocal,
motivadx pelo tema, destacando sua voz do coro. Os solos
poderiam se transformar em duos, trios, quartetos ou
243

composições diversas, mas era preciso se escutar e escutar o


grupo para encontrar o encaixe das vozes (harmonia). Eu
deixava claro que podiam ser usadas palavras, ruídos,
vocalizes e qualquer tipo de som que pudesse ser produzido
com a boca, além de percussão corporal. A escuta definiria
também o fim da improvisação, e para isso o grupo precisaria
estar muito atento e ativo.
Nas duas apresentações que fizemos dessa
performance (Apneia), houve muitas improvisações. Após o
término de cada impro, esperávamos alguém se manifestar
para conduzir uma nova improvisação. Quando ninguém se
manifestava, a performance era encerrada.
O clima de cumplicidade e catarse era muito intenso,
creio que muito favorecido pela baixa luminosidade (limitação
do sentido da visão) e pela proximidade entre as pessoas. O
fato de não revelar a identidade do dono da memória de
violência aumentava, a meu ver, a confiança e a segurança na
exposição da mesma.
Assim, eu quis continuar com esta investigação no
Pequeno Manual de Inapropriações, de colocar o processo de
criação vocal com o público como performance.
Para o ensaio aberto que realizei antes da estreia,
preparei duas performances baseadas em improvisações
vocais. Para a primeira, eu me inspirei no Jogo do maestro,
que aprendi com a monitora da disciplina Voz II de 2013,
Priscila Marinho. Priscila participou da oficina O corpo
Musical, que Jean-Jacques Lemêtre, integrante da companhia
francesa Théâtre du Soleil, ministrou na Udesc em 2013. Na
oficina, ela aprendeu o Jogo do Maestro, que consta de uma
improvisação vocal na qual uma pessoa rege as demais. O
grupo forma um círculo e x regente fica no centro. Há
combinados de movimentos com as mãos dx regente para a
alteração de parâmetros como intensidade e andamento,
entradas e saídas de sons, etc. Cada vez que x regente
indicasse a entrada de alguém na improvisação, a pessoa
precisaria iniciar a produção de um som vocal qualquer,
repetindo-o dentro de um período de tempo definido por ela
mesma. Cabe ax regente trabalhar os arranjos vocais e a
244

harmonia do conjunto na improvisação, que vai se


desenvolvendo com entradas e saídas de pessoas e
variações dos parâmetros dos sons produzidos.
Para fazer esta improvisação na peça, dentro da
temática na qual eu estava trabalhando, eu preferi pedir para
cada pessoa pensar em uma situação na qual alguém tenha
julgado uma ação/desejo/expressão sua como inapropriada.
Após este momento de rememoração, eu pedia para cada
pessoa escolher um som (que poderia ser uma palavra, ruído,
nota, etc.) inspirado em sua memória. Na sequência, eu pedia
que cada pessoa produzisse seu som, explicava as regras do
jogo do maestro, e iniciava o jogo.
A outra improvisação que eu fiz para a peça acontecia
logo em seguida ao jogo do maestro. Eu pedia para as
pessoas fazerem som boca fechada (bocca chiusa)
procurando se ouvir e encontrar um acordo entre os sons
(harmonia), e na sequência eu improvisava vocalmente e me
movimentava pelo espaço a partir do improviso.
No ensaio aberto, Fátima sugeriu unir as duas cenas,
transformando-as em uma única improvisação. Brígida
sugeriu que eu dançasse mais os comandos dx regente (jogo
do maestro) e Sandra me estimulou a dançar mais.
Assim, para as apresentações de estreia do Pequeno
Manual de Inapropriações, reformulei as duas cenas e as
transformei em uma única improvisação, a cena-performance
final da peça.
Eu explicava para a audiência que a última instrução
da peça precisaria da ajuda de todxs para acontecer. Assim,
pedia que cada umx fechasse os olhos, e pensasse em uma
situação na qual uma ação/desejo/expressão sua foi julgada
como inapropriada por alguém.
245

O público recorda suas inapropriações

Logo após, eu pedia para cada umx criar um som (a


partir de uma palavra, ruído, nota, etc.) inspiradx em sua
memória. Na sequência, eu pedia que as pessoas que se
sentissem à vontade produzissem seus sons para todxs
(poucas pessoas não quiseram vocalizar nesta cena, entre
elas meu pai). Eu explicava os comandos do Jogo do Maestro
(adaptados por mim do jogo do Lemêtre) e dizia também que
em algum momento eu pararia de reger para cantar com
todxs, e que todxs estariam livres para mudar seus sons,
parar, voltar, etc. Eu enfatizava a importância de nos
escutarmos para esta composição improvisada na qual o jogo
se transformaria, e iniciava a experimentação.
246

Jogo do Maestro

Eu regia o grupo presente de acordo com minha


percepção de harmonia e envolvimento das pessoas no jogo.
Em algumas apresentações, o jogo durou mais tempo, e em
outras, menos tempo. Aos poucos, eu deixava de reger para
cantar e dançar.
Enquanto eu cantava, procurava estimular a percepção
do público para as variações de ressonância e reverberação
de minha voz em pontos diferentes do espaço: perto de
paredes e objetos, e perto de pessoas, etc. Eu procurei
instigar a percepção da direcionalidade da minha voz com
percursos alternados no espaço. Também busquei variações
de intensidade e tentei criar improvisações nas quais a voz se
espacializasse, podendo afetar tatilmente os corpos vocais ali
presentes.
Para mim, a improvisação coletiva ativa a presença
dxs participantes pela própria percepção da vibração da voz
nos ossos do corpo. É um acordar do corpo através da voz,
uma massagem interna que faz x vocalizadxr ter uma atitude
ativa no espaço e no tempo da ação vocal.
247

Além desta ativação de presença por parte de quem


vocaliza, a vocalização corporifica a voz latente do corpo
vocal e cria relações entre xs presentes: a espacialização da
voz potencializa o corpo vocal, e sua unicidade reflete suas
diversas possibilidades de ser e agir. A ressonância da voz
revela timbres e encontros entre corpos: a voz age.
Para explicar melhor este processo de corporificação
da voz, de materialização da unicidade vocal e de relação
entre xs vocalizadorxs, eu vou discorrer um pouco mais sobre
fisiologia e acústica154. A ressonância define a característica
tímbrica da voz. É um processo de amortecimento e destaque
das frequências vibratórias dos harmônicos da frequência
fundamental (MARTINS, 2008).
Segundo Martins (2008), que parte de estudos da
tradição hindu e do canto harmônico, a amplificação das
frequências vibratórias da voz (ressonância) promove uma
ativação energética do corpo:

[...] as cavidades ressonadoras que mais


amplificam o som, são as citadas
anteriormente (ossos, seios paranasais,
cavidades nasal e oral, laringe, faringe,
traqueia, pulmões); porém, todo o corpo
vibra o som, e, nesta vibração, a
ressonância ocorre quando há
compatibilidade de frequência vibratória da
voz com determinados locais. (MARTINS,
2008, p. 55).

A compatibilidade citada por Martins diz respeito à


frequência vibratória de cada parte do corpo. Toda matéria
vibra em uma determinada frequência (BERENDT apud
MARTINS, 2008, p. 47). Assim, “a ressonância ocorre quando,
no mínimo, duas frequências vibratórias possuem
semelhança, a que envia e a que recebe.” (MARTINS, 2008,
p. 47). A autora relaciona o conceito de ressonância tanto ao
aumento da qualidade dos harmônicos vocais para a

154
Ramo da física que estuda o som.
248

ressonância da voz no corpo (e consequente modulação


tímbrica) quanto à consciência do fluxo de energia vital
produzido durante a vocalização, e ao estado de presença
corporal mobilizado pela produção vocal.
Na breve explicação inicial deste mapa sobre a
produção da voz não salientei a ressonância da voz nos ossos
do corpo. Mas os ossos são porosos e também ressoam a
voz. É esta propagação que causa inclusive a diferença de
percepção da voz gravada. Segundo Monteiro Jr. et al (2000,
s/p),

[...] quando falamos, o que ouvimos é uma


composição entre o som que se propaga
através do ar (audição por condução
aérea), que alcança o tímpano, e aquele
que se propaga através dos ossos
(audição por condução óssea), partindo
das pregas vocais e alcançando o ouvido
interno, fazendo o líquido e os cílios
cocleares vibrarem. Desta forma, quando
falamos, ouvimos uma composição das
vibrações que se propagam por estes dois
meios materiais: o ar e a estrutura formada
por músculos e ossos.

Se quando vocalizamos ativamos diversas estruturas


de nosso corpo através do som (ossos, tecidos, músculos,
etc.), alterando a sensação psicofísica do corpo vocal, somos
capazes também de mobilizar outros corpos no espaço? Sim.
A propagação e a reverberação do som no espaço são
fenômenos físicos, e também se aplicam à voz. Frequências
semelhantes ressoarão em matérias com frequência
vibracional similar. Então, a ressonância da voz afeta não só o
corpo vocal que gera o som, mas também aquelxs que
compartilham o ambiente (levando em conta proximidade,
potência vocal/energia, entre outros fatores).

O sentido da ressonância está bem mais, e


principalmente, na relação vocálica para a
qual as vozes singulares são
249

irresistivelmente chamadas, invocadas.


Dito de outra forma, a ressonância é
musicalidade na relação, é unicidade da
voz que se dá na ligação acústica de uma
voz com a outra. É a troca vocálica em que
a repetição do som e todas as suas
variantes rítmicas tonais expõem a
unicidade como um acordo e uma
dependência recíproca. (CAVARERO,
2011, p. 213).

A voz ressoa não só como linguagem/código, mas


como corpo em cena: um corpo vocal único em suas
potencialidades de afecção e de relação com xs outrxs, pois
“som é vibração, e vibração opera sobre a pele [...] toda voz e
todo som é um tipo de massagem, uma estimulação tátil, uma
sutil forma de toque.” (BAITELLO JR., 2005, p. 105-106).
Tive vários objetivos nesta cena: explorar aspectos da
ressonância e reverberação da voz, dar voz à audiência e
ritualizar o final da performance em uma grande partilha de
memórias e vozes.
Ao explorar a ressonância do corpo vocal em suas
alterações tímbricas e a reverberação da voz no espaço, eu
pretendi presentificar a atuação através da vibração da voz
nos corpos da audiência. Quando eu cantei, procurei explorar
os ressonadores, a direcionalidade e a reverberação da voz
através dos movimentos e do espaço. Inspirei-me muito em
Grotowski e Roy Hart e em suas pesquisas sobre os
ressonadores, e em Artaud, que propunha a presença de uma
voz afectiva em cena.
A alteração dos ressonadores durante a vocalização
influencia na alteração de timbre, e por vezes na alteração da
frequência fundamental, possibilitando uma ampla exploração
de diferentes vocalidades. A voz reverbera no espaço e nos
corpos da audiência, ativando a percepção do acontecimento
no momento presente e a propriocepção. Ativar os sentidos
do corpo presente é um modo de ativar a complexidade dos
processos cognitivos, e consequentemente, a criação de
sentidos para a experiência vivida no evento teatral.
250

Ao oferecer um espaço ativo para a audiência na


construção dessa cena, procurei dar voz a memórias de
subjulgações, memórias de inapropriações, estimulando a
empatia e a catarse através da vocalização em grupo.
Acredito que a tomada de consciência e a mudança de
atitudes sobre questões conflituosas dependem de uma
posição política ativa. Toda ação está tomada de ideologia,
quer se tenha clareza ou não dela. Permitir a própria
queerização do corpo vocal na partilha de desejos de ser
dissonante (porque desejante de outros lugares) pode
fomentar a empatia por outros corpos vocais queer.
Esta cena é um epílogo do Pequeno Manual de
Inapropriações. Um ritual exposto em sua performatividade,
mas um ritual, assim como o teatro. Um espaço de encontro e
despedida, de quem nunca fomos (mas desejamos). Um
espaço de queerização dos corpos vocais, de celebração,
união, e energias para um bem comum: o reencontro consigo
mesmx no encontro com xs outrxs. Um espaço para se sentir.
Ao final da improvisação vocal dançada, eu lia o roteiro
da última instrução:

Última instrução: Como não sentir

Atriz pede ajuda do público. Pede para fecharem os olhos e


pensarem em uma memória de ato ou desejo de algo importante
para si, que foi julgado como inapropriado por alguém, e por isso
marcou a sua vida (muito provavelmente pela frustração de não
fazer/ser). Pede para escolherem um som para essa memória.
Explica o jogo do maestro, com combinados para iniciar e parar de
vocalizar, aumentar e diminuir o volume da voz e acelerar e diminuir
a velocidade do som. Diz que em algum momento vai parar de
orquestrar o jogo para todxs ficarem livres no improviso, mudando o
som, cantando ou fazendo o que quiserem. Atriz joga com o público,
dançando as instruções. Cantar e dançar em ritual. Espacializar a
voz e os movimentos. Partilhar juntxs as vozes do mundo. Sentir.
S e n t i r, SENTIR. Fim das instruções.
251

O fim
252
253

INSTRUÇÕES FINAIS
254

Evocações

Aqui ressoam evocações desta pesquisa. Estas


evocações são memórias dos princípios que emergiram
durante o processo de investigação teórica e prática, e que
me guiaram em busca de um corpo vocal queer em
performance. São problematizações antes de serem
diretrizes. São encontros de minhas memórias e desejos com
memórias de tantxs outrxs artistas, filósofxs e cientistas que
me acompanharam neste percurso. São desejos.

1) Vocalidades engendradas são vozes que em cena


reproduzem marcas específicas de gênero, atreladas ao seu
contexto cultural de produção. São registros, timbres, alturas,
naturalizadxs em suas relações com os gêneros;
2) O corpo vocal queer é um corpo não representacional,
performativo em seus potenciais de ação e transformação no
e do ambiente, autopoiético em suas reinvenções de si
mesmo, e por isso é um corpo vocal em devir: devir queer;
3) Queerizar o corpo vocal significa desestabilizar
identidades fixas, desestabilizar representações e estruturas
hegemônicas;
4) A arte da performance e o teatro performativo são
espaços de desestabilização fabular e dramática, nos quais a
representação ganha fissuras e a queerização ganha potência
na autopoiesis da cena;
5) A escuta queer é uma escuta em devir, em formação
porque nunca fixada/fechada/finalizada; é um modo de se
transformar nas transformações do mundo;
6) A corporeidade vocal se expande nos espaços da cena
(reais e virtuais), não apenas como um meio de comunicação
verbal oral, mas como materialização da presença dx atuante;
7) A comunicação enquanto criação de sentidos em uma
relação se dá também em níveis pré-verbais (corpo, voz,
movimento, som) e pós-verbais (projeções de imagem,
gravações de áudio, intermediação por mídias diversas,
255

equalização e distorção da voz), com o objetivo de


desestabilizar o logocentrismo que prioriza a estrutura
linguística em detrimento da corporeidade;
8) A expansão da escuta do público, como uma escuta
queer em devir, através do corpo vocal dissonante dx atuante
é uma proposta política, de expansão da percepção do seu
próprio corpo vocal, do ambiente e das construções
naturalizadas no cotidiano, que pretende reverberar na
ampliação da consciência e desconstrução de pré-conceitos
que habitam as interações sociais;
9) Pequeno Manual de Inapropriações foi uma experiência
de teatro performativo, que investigou procedimentos de
criação da dramaturgia do corpo vocal não calcados em uma
narrativa linear (que privilegia a semântica e sintaxe das
palavras no desenvolvimento da fábula), mas sim nas
possibilidades de presença do corpo vocal em cena, em
esferas não logocêntricas e não binárias em suas relações de
gênero e corporeidade;
10) A performance em suas partes-memórias procurou
ambientes liminares, instauradores de ambivalências (e não
dicotomias): real e ficcional, presença e ausência, natural e
artificial, mímesis e abstração, com o objetivo de
desestabilizar fixações de sentido;
11) A dramaturgia textual criada durante o processo surgiu
como material de composição para o corpo vocal, e não como
pressuposto de criação, ou seja, as palavras foram abordadas
primeiramente como matéria de criação de corporeidade, e
não como discurso;
12) A montagem trabalhou com memórias de inapropriações,
subjugações, procurando investigar em cada cena diferentes
procedimentos de criação vocal, como ação vocal, poesia
sonora, canto harmônico, intermediação tecnológica da voz e
ressonância da voz no espaço;
13) O espetáculo pretendeu ser um convite à vivência de um
espaço de experiências sinestésicas, através das memórias
trazidas e reveladas pelos corpos vocais em performance.
Estas memórias questionaram alguns paradigmas
socioculturais de repressão e representação de gênero e
256

vocalidade, procurando desestabilizá-los em cena. Ao público,


foi destinado o papel de coautor da obra, na apreensão
singular do acontecimento teatral e na interatividade proposta,
compreendendo interatividade não apenas como participação,
mas como ação e percepção do e no seu próprio corpo vocal.
257

Ressonâncias

E o quê ficou? (pergunto-me para escrever as


considerações finais deste mapa).
E o quê está por vir? (questiono-me ao lembrar que
tudo é passageiro e mutante, que tudo é devir).
Esta pesquisa ressoa em mim como sensações e
inquietações. Sensações de sons, palavras, corpos e cantos;
inquietações sobre sons, palavras, corpos e cantos.
“Nossa pele é a ponte para o mundo”, diz o estudioso
da comunicação Norval Baitello Jr. (2005, p. 105). E é na pele
que nos intersecciona com o externo do mundo que
inscrevemos muitas das categorizações que procuram
engendrar e fixar o corpo vocal pela identidade sexual, ao
invés de tratá-la como ponte de relações e acoplamentos
ininterruptos.
Neste mapa-tese procurei abordar engendramentos e
desestabilizações de vocalidade e representação de gênero
em cena, pontuando questões que me parecem essenciais
para esta investigação.
Em CORPO VOCAL ENGENDRADO dialoguei com
filósofas feministas para contextualizar o espaço crítico das
Teorias de Gênero e apontar a corrente de pensamento que
me guiaria neste percurso em busca de um corpo vocal queer
em performance. Também discorri sobre possíveis
engendramentos presentes em concepções de vocalidade e
treinamento vocal de artistas, além de pontuar a influência da
retórica no achatamento das potencialidades de afecção e
ação da voz em cena.
Em CORPO VOCAL DISSONANTE procurei apontar
alguns caminhos trilhados por artistas no século XX em busca
de uma corporeidade vocal dissonante em cena,
potencialmente libertadora dos espaços engendrados de
vocalidade no teatro. Refleti sobre a performance art e o
teatro performativo como espaços potentes para
deslocamentos e desestabilizações de discursos
hegemônicos. Também abordei a escuta como um processo
258

fundamental para atuante e público ampliarem suas


perspectivas sobre os espaços da vocalidade e do gênero.
Em CORPO VOCAL QUEER discorri sobre a
investigação prática desta pesquisa, que se transformou na
peça Pequeno Manual de Inapropriações. Procurei
problematizar meu processo de criação por um corpo vocal
queer em performance discorrendo sobre os procedimentos
de criação do corpo vocal e da encenação. Apresentei ainda
nesta parte os apêndices do trabalho: materiais relacionados
à prática da pesquisa.
Jill Dollan (1991) aponta a produção cultural como um
território potente para imposição de ideologia. A autora afirma
que as produções culturais influenciam na formação de
sistemas de relações sociais. A arte imita a vida e a vida imita
a arte.
A performance art surgiu como espaço de dissenso,
desestabilizando o poder e os padrões politicamente
estabelecidos na arte e na sociedade. O filósofo Jacques
Rancière (1996) afirma que os sujeitos do dissenso são os
excluídos, marginalizados, ignorados, aqueles aos quais o
poder hegemônico não quer delegar uma voz ativa na história.
Neste sentido, o dissenso cria o sujeito político, na fricção
entre sua discriminação e a consciência crítica.
A desconstrução de padrões culturais de
representação de gênero e vocalidade em cena é um ato de
dissenso, que procura provocar outras leituras e atitudes em
relação aos espaços culturalmente engendrados. O devir
queer é um ato de dissenso por sua própria dinâmica de
transformação, assim como a voz e o som, que são “eventos
dinâmicos, não qualidades estáticas, e por isso são
transeuntes por natureza. O que os caracteriza não é o ser,
mas o devir.” (CAVARERO, 2011, p. 55).
A voz é produção de corporeidade, e por isso Cavarero
(2011) aponta a importância de se compreender o logos como
legein: ligação, elo que implica a corporeidade indomada da
voz e não só a estrutura linguística da fala. O devir do corpo
vocal se dá nas relações e ressonâncias.
259

A exploração da dimensão corpórea da voz enquanto


espaço de queerização dos corpos vocais, de estranhamento,
de fuga às normatizações hegemônicas que fixam
identidades, é um potente ato de dissenso.
Como o queer desestabiliza identidades fixas, ele
combina com o território da performance e do teatro
performativo, nos quais x atuante performa possibilidades do
self, fragmentos, ações deslocadas das normatizações,
personagens desconstruídas, expondo muitas vezes o próprio
processo de (re)criação da cena.
Por fim, partilho a inevitável conclusão de toda
pesquisa em arte: este mapa não encerra esta pesquisa,
apenas interrompe e ressoa questões. Assim como a vida,
esta cartografia não apresenta um caminho certo, apenas
pistas e problematizações.

Cantares155
(Antonio Machado)

Tudo passa e tudo fica


porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar.

Nunca persegui a glória


nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão.

Gosto de vê-los pintar-se


de sol e grená, voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se…

155
Poesia do modernista espanhol Antônio Carlos, traduzida do
espanhol por Maria Tereza Almeida Pina. Disponível em:
http://estacao018.blogspot.com.br/2012/08/cantares-de-antonio-
machado.html. Acesso em 22 de maio de 2015.
260

Nunca persegui a glória.

Caminhante, são tuas pegadas


o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.

Ao andar se faz caminho


e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar.

Caminhante não há caminho


senão há marcas no mar…

Faz algum tempo neste lugar


onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar”…

Golpe a golpe, verso a verso…

Morreu o poeta longe do lar


cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe viram chorar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Quando o pintassilgo não pode cantar.


Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso.


261

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MATERIAIS DE “PEQUENO MANUAL


DE INAPROPRIAÇÕES”
280

Pequeno Manual de inapropriações - instruções para


uma atriz (roteiro)

Daiane Dordete (2014)

A atriz executa as indicações do prólogo.

Prólogo

Diva-drag do jazz em cena. Canta “Summertime”, versão de Ella


Fitzgerald. Seduz/brinca com o público enquanto este se acomoda
em seus lugares. Ao fim da canção, recepciona-o com “bem-vindxs”
em inglês, alemão, espanhol, italiano, esperanto e português,
brincando com os ressonadores vocais.

Welcome!
Wilkomen!
Bienvenido!
Benvenuto!
Bonvênon!
Bem-vindxs a este pequeno manual de inapropriações.
Fiquem à vontade e aproveitem o momento.

Atriz apaga o foco da diva. Faz transição de cena com música no


celular, “Alors on danse”, de Stromae. Strip-tease decaído. Aumenta
a luz geral. Lê o roteiro até o presente momento. Anuncia a
instrução.

1.
Primeira instrução: Como não conquistar ninguém pelo
estômago, ou na cozinha com Tigella

Atriz faz charme para o público. Começa a receita: uma poesia


sonora.

Ahm, Ahm
Água
Leite
Ovo
Amendoim
281

Banha
Va vê vé vi vô vó vulva
Amassa
Bate
Soca
batessoca
vagabunda
vacavacafaca
fffffffffffffff
farinha fermento forno
hum
gostoso
gostosa
ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!

Atriz simula orgasmo. Faz transição de cena com música no celular,


“Sonata 1”, de John Cage. Troca de roupas. Lê roteiro até o
presente momento. Anuncia instrução.

2.
Segunda instrução: Como não ser agradável

Atriz joga com o público julgando, criticando, menosprezando,


assediando, querendo as coisas, incomodando as pessoas.
Onomatopeias, gramellot e ações vocais. Faz transição com música
no celular, “Don’t worry, be happy”, de Bob Mcferrin (que sempre
confundimos com Bob Marley). Dubla a canção enquanto organiza
os elementos para a próxima cena. Guarda o chapéu. Abre a cortina
preta de fundo para o projetor (se houver). Liga o projetor e a caixa
de som. Acende o foco da câmera. Diminui a luz geral. Lê roteiro até
o presente momento. Anuncia instrução.

3.
Terceira instrução: Como não proferir um discurso

Atriz lê texto com efeitos diversos de uma mesa de som. Troca de


efeitos durante a cena Transmissão em tempo real dos olhos da
atriz. Liberdade para colocar quantos nãos quiser no texto, como
colocam também em nossas vidas.
282

Não estou aqui para falar de corrupção


Não estou aqui para falar de pedofilia
Não estou aqui para falar de miséria
Não estou aqui para falar de fome

Não estou aqui para falar de saneamento básico


Não estou aqui para falar de segurança
Não estou aqui para falar de saúde
Não estou aqui para falar de educação

Não estou aqui para falar de moradia


Não estou aqui para falar de desemprego
Não estou aqui para falar de inflação

Não estou aqui para falar de aborto


Não estou aqui para falar de estupro

Não estou aqui para falar de racismo


Não estou aqui para falar de misoginia
xenofobia, anomalia, burocracia

Não estou aqui para falar de fundamentalismo


morte, sorte, passaporte, corte, assassinato
Não não não não

Não estou nem aí pra transgenia


seca sela assola o corpo pela boca

Não me interessa a homofobia, lesbofobia, transfobia


Não estou aqui para investigar, me importar
Não estou aqui para falar

Não estou aqui


Não estou
Não

Lê roteiro até o presente momento, na frente da câmera, falando ao


microfone. Treina canto harmônico com a técnica de Karguiraa. Tira
283

a camisa. Desliga o projetor e a caixa de som. Coloca a luz da reza


e tira a da câmera. Anuncia instrução.

4.
Quarta instrução: Como não rezar

Atriz cheira óleo de eucalipto, e na sequência oferece ao público


individualmente, sussurrando seus benefícios fitoterápicos. Coloca
duas imagens penduradas no baú: uma pintura que romantiza a
inquisição medieval e a situação das mulheres queimadas vivas por
bruxaria, e uma foto de um linchamento público em 2013, na Papua-
Nova Guiné. Esta mulher, como tantas outras, foi acusada de
bruxaria, torturada e queimada viva pela comunidade. Seus olhos
estavam tapados, mas seu coração estraçalhado foi visto por todxs.
A atriz coloca um tecido branco cilíndrico sobre o corpo e caminha
treinando o Karguiraa. Reza a primeira parte do “Pai Nosso”
misturando português e latim. Reza com karguiraa variando tons e
movimentos no chão. Peitos aparecem. PEITOS APARECEM
EROTIZADOS SOB UMA CAMISOLA.

Pai nosso que está no céu Pater noster qui es in caelis


Santificado seja o vosso nome Sanctificétur nomen tuum
Venha a nós o vosso reino Advéniat regnun tuum
Seja feita a vossa vontade Fiat volúntas tua
Assim na terra como no céu Sicut in caelo et in terra

Atriz finaliza a cena voltando em uma caminhada muito lenta.


Vocalize agudo, até chegar ao baú. Tira o tecido branco. Lê
instruções até o presente momento. Aumenta a geral e tira a luz da
reza. Anuncia a última instrução.

5.
Última instrução: Como não sentir

Atriz pede ajuda do público. Pede para fecharem os olhos e


pensarem em uma memória de ato ou desejo de algo importante
para si, que foi julgado como inapropriado por alguém, e por isso
marcou a sua vida (muito provavelmente pela frustração de não
fazer/ser). Pede para escolherem um som para essa memória.
Explica o jogo do maestro, com combinados para iniciar e parar de
vocalizar, aumentar e diminuir o volume da voz e acelerar e diminuir
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a velocidade do som. Diz que em algum momento vai parar de


orquestrar o jogo para todxs ficarem livres no improviso, mudando o
som, cantando ou fazendo o que quiserem. Atriz joga com o público,
dançando as instruções. Cantar e dançar em ritual. Espacializar a
voz e os movimentos. Partilhar juntxs as vozes do mundo. Sentir.
S e n t i r, SENTIR. Fim das instruções.
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Pequeno Manual de inapropriações


Ficha Técnica

Concepção, direção, dramaturgia, elementos de cena e


performance: Daiane Dordete

Técnico de mídias (som, luz, projeção) e contrarregragem:


Cleiton Jacobs

Fotos: Cristiano Prim

Filmagem: Lucas Tesser e Dimitri Carmolinga

Arte gráfica: Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC

Estreia: novembro de 2014, Florianópolis-SC

Duração: 50 minutos

Público-alvo: a partir de 16 anos – quantidade de público a


definir a partir do espaço de apresentação.
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Pequeno Manual de inapropriações


Filmagem em DVD

apenas na versão impressa


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Pequeno Manual de inapropriações


Fotos em CD

apenas na versão impressa


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Pequeno Manual de inapropriações


Mapa de palco e som
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Pequeno Manual de inapropriações


Mapa de luz
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Pequeno Manual de inapropriações


Cartaz
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Pequeno Manual de inapropriações


Programa - frente
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Pequeno Manual de inapropriações


Programa - verso

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