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Sullivan: Teoria
Interpessoal
Tensões
Necessidades
Ansiedade
Transformações de Energias
Dinamismos
Malevolência Sullivan
Intimidade
Distúrbios Psicológicos
Sensualidade
Auto-sistema Psicoterapia
Pesquisa Relacionada
Personificações
A Mãe Boa e a Mãe Má Amigos Imaginários
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Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 211
O garoto não tinha amigos de sua idade, mas vários colegas imaginários. Na escola,
seu forte sotaque irlandês e sua mente rápida o tornavam impopular entre seus co-
legas. Então, com oito anos e meio, o menino vivenciou um relacionamento íntimo com
um menino de 13 anos, que transformou sua vida. Os dois permaneceram impopulares
junto às outras crianças, mas desenvolveram laços íntimos entre si. Muitos acadêmicos
(Alexander, 1990, 1995; Chapman, 1976; Havens, 1987) acreditam que o relacionamento
entre esses dois jovens — Harry Stack Sullivan e Clarence Bellinger — era, pelo menos
em certos aspectos, homossexual; outros (Perry, 1982), porém, acreditavam que os dois
meninos nunca foram sexualmente íntimos.
Por que é tão importante sabermos da orientação sexual de Sullivan? Esse conhe-
cimento é importante por pelo menos duas razões. Primeiro, o histórico pessoal inicial
da vida de um teórico da personalidade, incluindo gênero, ordem de nascimento, crenças
religiosas, histórico étnico, grau de escolaridade e orientação sexual, todos esses elemen-
tos relacionam-se às crenças adultas daquele indivíduo, sua concepção de humanidade e
o tipo de teoria da personalidade que desenvolverá.
Em segundo lugar, no caso de Sullivan, sua orientação sexual pode tê-lo impe-
dido de obter a aceitação e o reconhecimento que lhe teriam sido concedidos caso os
outros não suspeitassem de sua homossexualidade. A. H. Chapman (1976) afirmava que
a influência de Sullivan é persistente, ainda que bastante ignorada, como conseqüência
de os psicólogos e os psiquiatras de sua época terem tido dificuldades em aceitar os
conselhos teóricos e as práticas terapêuticas de alguém suspeito de ser homossexual.
Chapmam afirmava que os contemporâneos de Sullivan poderiam ter facilmente aceitado
um artista, um músico ou um escritor homossexual, mas, quando se tratava de um psi-
quiatra, ainda eram guiados pelo conceito “Médico, cura-te a ti mesmo”. Essa frase estava
tão arraigada na sociedade estadunidense durante a época de Sullivan que os profissionais
de saúde mental acreditavam ser muito difícil “admitir suas carências para um psiquiatra
cuja homossexualidade era conhecida” (Chapman, 1976, p. 12). Assim, Sullivan, que de
outra forma poderia ter alcançado uma fama mais expressiva, era estorvado por precon-
ceitos sexuais que o impediam de ser reconhecido como o psiquiatra mais proeminente da
América da primeira metade do século XX.
Do ponto de vista pessoal, Sullivan não estava confortável com sua sexualidade e
tinha sentimentos contrários em relação ao casamento (Perry, 1982). Adulto, levou para
sua casa um menino de 15 anos, provavelmente um antigo paciente (Alexander, 1990).
Esse jovem — James Inscoe — permaneceu com Sullivan durante 22 anos, cuidando de
suas questões financeiras, digitando manuscritos e administrando sua casa de modo geral.
Embora Sullivan nunca tenha oficialmente adotado Jimmie, referia-se a ele como um filho
e até mesmo teve seu nome mudado legalmente para James I. Sullivan.
WWW
Além da Biografia Sullivan era homossexual? Para mais informações
sobre Sullivan, acesse o nosso site: http://www.mhhe.com/feist6
Sullivan também tinha atitudes dúbias quanto à sua religião. Nascido em uma famí-
lia de pais católicos, que freqüentavam a igreja com pouca regularidade, ele abandonou
muito cedo o catolicismo. Posteriormente em sua vida, seus amigos e colegas referiam-
se a ele como não-religioso e até mesmo anticatólico, mas, para sua surpresa, Sullivan
havia deixado escrito em seu testamento uma solicitação para que recebesse um enterro
católico. Aliás, sua solicitação foi atendida apesar do fato de o corpo de Sullivan ter sido
cremado em Paris. Suas cinzas retornaram aos Estados Unidos, foram colocadas em um
caixão e receberam um enterro católico completo, incluindo uma missa de réquiem.
A maior contribuição de Sullivan para a teoria da personalidade foi sua concepção
dos estágios de desenvolvimento. Antes de passarmos às suas idéias sobre os estágios de
desenvolvimento, explicaremos parte de sua terminologia singular.
Tensões
Como Freud e Jung, Sullivan (1953b) via a personalidade como um sistema de energia. A
energia pode existir tanto como tensão (potencialidade para a ação) quanto como ações
em si mesmas (transformações de energia). As transformações de energia modificam
as tensões tanto na forma de comportamentos abertos quanto de comportamentos enco-
bertos, e são dirigidas à satisfação de necessidades e à redução de ansiedade. A tensão
é uma potencialidade para a ação que pode ou não ser experimentada na consciência.
Assim, nem todas as tensões são conscientemente sentidas. Muitas, como ansiedade,
premonições, sonolência, fome e excitação sexual são sentidas, mas nem sempre em um
nível consciente. De fato, provavelmente todas as tensões são, pelo menos, distorções
parciais da realidade. Sullivan reconhecia dois tipos de tensões: necessidades e ansiedade.
As necessidades geralmente resultam em ações produtivas, enquanto a ansiedade leva a
comportamentos não-produtivos e desintegradores.
Necessidades
As necessidades são tensões produzidas pelo desequilíbrio biológico entre uma pessoa e
seu ambiente fisioquímico, tanto dentro quanto fora do organismo. São episódicas — uma
vez que tenham sido satisfeitas, perdem seu poder temporariamente, mas, após certo
tempo, podem voltar a ocorrer. Embora as necessidades a princípio tenham um compo-
nente biológico, muitas delas surgem a partir da situação interpessoal. A necessidade
interpessoal mais básica é o afeto. Um bebê desenvolve uma necessidade de receber afeto
de seu cuidador primário (denominado por Sullivan de “cuidador materno”). Diferente de
outras necessidades, o afeto exige ações de pelo menos duas pessoas. A necessidade de um
216 Parte II Teorias Psicodinâmicas
bebê de receber afeto, por exemplo, pode ser expressa por meio de um choro, um sorriso
ou um gemido, enquanto a necessidade da mãe de dar afeto pode ser transformada em
toque, carícia ou colo. Nesse exemplo, a necessidade de afeto é satisfeita pelo uso da boca
da criança e das mãos da mãe.
O afeto é uma necessidade geral porque se relaciona ao bem-estar geral de uma
pessoa. As necessidades gerais, que incluem oxigênio, alimento e água, opõem-se às
necessidades zonais, que surgem em uma área particular do corpo. Várias áreas do corpo
são vitais para a satisfação tanto de necessidades gerais quanto de necessidades zonais.
A boca, por exemplo, satisfaz as necessidades gerais ao ingerir alimento e oxigênio, mas
também satisfaz a necessidade zonal de atividade oral. As mãos, também, podem ser
utilizadas para satisfazer a necessidade geral de afeto, mas podem, da mesma forma,
ser empregadas para satisfazer as necessidades humanas de atividade manual. De modo
similar, outras áreas do corpo, tais como o ânus e os genitais, podem ser usados para sa-
tisfazer ambos os tipos de necessidades.
Logo no começo de nossas vidas, as várias zonas do corpo começam a desempenhar
um papel significativo e duradouro nas relações interpessoais. Enquanto satisfaz suas
necessidades de alimento, água etc., uma criança produz mais energia do que a necessária,
e esse excesso de energia é transformado em modos de comportamento característicos,
que Sullivan denominava dinamismos.
Ansiedade
Um segundo tipo de tensão, a ansiedade, distingue-se das tensões por necessidades por
ser mais difusa e vaga e não demandar nenhuma ação consistente para seu alívio. Caso
as crianças careçam de alimento (uma necessidade), seu curso de ação é claro; mas, ca-
so sejam ansiosas, pouco podem fazer para escapar daquela ansiedade.
Como se origina a ansiedade? Sullivan (1953b) postulava que ela é transferida do
pai para a criança pelo processo de empatia. A ansiedade no cuidador materno inevita-
velmente induz a ansiedade na criança. Como todas as mães têm algum tipo de ansiedade
enquanto cuidam de seus bebês, todas as crianças se tornarão ansiosas em certa medida.
Da mesma forma como a criança não tem a capacidade de reduzir a ansiedade, os
pais tampouco têm meios efetivos para lidar com a ansiedade do bebê. Quaisquer sinais
de ansiedade ou insegurança demonstrados pela criança provavelmente levarão a tenta-
tivas, por parte dos pais, de satisfazer as necessidades dela. Por exemplo: uma mãe pode
alimentar um bebê ansioso que chora porque confunde fome com ansiedade. Se o bebê
hesita quanto a aceitar o leite, a mãe pode, ela mesma, ficar mais ansiosa, o que produz
ansiedade adicional na criança. Finalmente, a ansiedade do bebê atinge um nível que in-
terfere na sucção e na deglutição. A ansiedade, então, opera em oposição às tensões por
necessidade e as impede de ser satisfeitas.
A ansiedade também possui um efeito destrutivo sobre os adultos. É a principal
força destrutiva que impede o desenvolvimento de relações interpessoais saudáveis.
Sullivan (1953b) associava a ansiedade severa a um golpe na cabeça. Ela incapacita
as pessoas a aprender, prejudica a memória, estreita a percepção e pode resultar em
amnésia total. É única entre as tensões no sentido em que mantém o status quo mesmo
em detrimento do indivíduo. Enquanto as outras tensões resultam em ações direcionadas
especificamente para seu alívio, a ansiedade produz comportamentos que (1) impedem as
pessoas de aprender com seus erros, (2) mantêm-nas em uma busca infantil por um desejo
de segurança, e (3) geralmente garantem que as pessoas não aprenderão a partir de suas
próprias experiências.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 217
Sullivan insistia em que a ansiedade e a solidão são únicas entre todas as experiên-
cias pelo fato de serem totalmente rejeitáveis e indesejadas. Como a ansiedade é dolorosa,
as pessoas possuem uma tendência natural para evitá-la, preferindo, de modo dependente,
um estado de euforia, ou uma completa ausência de tensão. Sullivan (1954) resumia seu
conceito com uma afirmação simples: “a presença da ansiedade é muito pior do que sua
ausência” (p. 100).
Sullivan distinguia ansiedade e medo de muitas formas importantes. Primeiro, a
ansiedade geralmente deriva de situações interpessoais complexas e é apenas vagamente
representada na consciência; o medo é percebido com mais clareza, e suas origens podem
ser mais nitidamente assinaladas. Em segundo lugar, a ansiedade não tem nenhum valor
positivo. Apenas quando transformada em outra tensão (raiva ou medo, por exemplo) é
que ela pode levar a ações construtivas. Em terceiro lugar, a ansiedade bloqueia a satis-
fação das necessidades, enquanto o medo algumas vezes auxilia as pessoas a satisfazer
certas necessidades. Esta oposição à satisfação das necessidades é expressa em palavras
que podem ser consideradas como a definição de Sullivan de ansiedade: “A ansiedade é
uma tensão em oposição às tensões das necessidades e à ação apropriada para seu alívio”
(Sullivan, 1953b, p. 44).
Transformações de Energias
As tensões que são transformadas em ações, sejam abertas ou encobertas, são chamadas
de transformações de energias. Esse termo, um tanto estranho, simplesmente refere-se a
nossos comportamentos direcionados à satisfação de necessidades e à redução de ansie-
dade — as duas grandes tensões. Nem todas as transformações de energia são ações aber-
tas, óbvias; muitas podem assumir a forma de emoções, pensamentos ou comportamentos
encobertos que podem ser ocultados das outras pessoas.
Dinamismos
As transformações de energias organizam-se como padrões de comportamento típicos
que caracterizam uma pessoa ao longo de sua vida. Sullivan (1953b) chamava esses
padrões de comportamento por dinamismos, um termo cujo sentido aproxima-se de tra-
ços ou de hábitos. Os dinamismos podem ser de duas grandes classes: primeiro, aqueles
relacionados a zonas específicas do corpo, incluindo a boca, o ânus e os genitais; e, em
segundo lugar, aqueles relacionados às tensões. Essa segunda classe é composta de três
categorias — a disjuntiva, a isoladora e a conjuntiva. Os dinamismos disjuntivos incluem
todos aqueles padrões destrutivos de comportamento relacionados ao conceito de male-
volência; os dinamismos isoladores incluem os padrões de comportamento (como a sen-
sualidade) dissociados das relações interpessoais; e os dinamismos conjuntivos incluem
padrões de comportamento benéficos, como intimidade e auto-sistema.
Malevolência
A malevolência é o dinamismo disjuntivo do mal e do ódio, caracterizado por um sen-
timento de viver entre inimigos (Sullivan, 1953b). Ela surge a partir dos 2 ou 3 anos de
idade, quando as ações infantis que anteriormente haviam gerado o afeto materno são
rejeitadas, ignoradas ou recebidas com ansiedade e dor. Quando os pais tentam controlar
o comportamento das crianças por meio de dor física ou de comentários de reprovação,
algumas crianças aprendem a reprimir quaisquer expressões da necessidade de afeto e a
proteger-se pela adoção de uma atitude maldosa. Os pais e seus substitutos, então, passam
a achar cada vez mais difícil reagir com ternura, o que, por sua vez, solidifica a atitude
negativa da criança em relação ao mundo. As ações maldosas freqüentemente tomam
218 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Os relacionamentos íntimos mais significativos antes da puberdade geralmente são do tipo menino-
menino ou menina-menina, de acordo com Sullivan.
Intimidade
A intimidade surge a partir da necessidade inicial de afeto, mas é mais específica do
que esta e envolve um relacionamento interpessoal mais íntimo entre duas pessoas de
status aproximadamente semelhantes. A intimidade não deve ser confundida com inte-
resse sexual. Na realidade, ela desenvolve-se antes da puberdade, teoricamente durante a
pré-adolescência, quando, em geral, existe entre duas crianças, cada uma das quais en-
xerga a outra como uma pessoa de igual valor. Uma vez que a intimidade é um dinamismo
que exige um parceiro semelhante, ela normalmente não existe em relacionamentos pais/
filhos, a menos que ambos sejam adultos e que se vejam como iguais.
A intimidade é um dinamismo integrador que tende a extrair reações amorosas da
outra pessoa, diminuindo, dessa forma, a ansiedade e a solidão, duas experiências bastante
dolorosas. Como a intimidade nos auxilia a evitar a ansiedade e a solidão, ela é uma experiên-
cia recompensadora desejada pela maior parte das pessoas saudáveis (Sullivan, 1953b).
Sensualidade
Por sua vez, a sensualidade é uma tendência isolada que não exige nenhuma outra pessoa
para sua satisfação. Manifesta-se como um comportamento auto-erótico, mesmo quando
a outra pessoa é o objeto do desejo sexual. A libido é um dinamismo especialmente
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 219
poderoso durante a adolescência, um período que, com freqüência, leva a uma redução da
auto-estima. As tentativas de atividades sensuais geralmente são rejeitadas pelas outras
pessoas, o que aumenta a ansiedade e diminui os sentimentos de valor próprio. Além disso,
a sensualidade geralmente dificulta um relacionamento íntimo, especialmente durante a
adolescência, quando freqüentemente é confundida com atração sexual.
Auto-sistema
O mais complexo e inclusivo de todos os dinamismos é o auto-sistema, um padrão consis-
tente de comportamentos que mantêm a segurança interpessoal do indivíduo ao protegê-
lo da ansiedade. Assim como a intimidade, o auto-sistema é um dinamismo conjuntivo
que surge de uma situação interpessoal. No entanto, ele se desenvolve mais cedo do que
a intimidade, entre 12 e 18 meses. À medida que as crianças desenvolvem inteligência e
previsão, tornam-se capazes de aprender quais comportamentos estão relacionados a um
aumento ou diminuição da ansiedade. Essa capacidade de detectar leves aumentos ou
reduções de ansiedade proporciona ao auto-sistema um dispositivo de alerta associado.
O alerta, no entanto, traz uma vantagem ambígua. Por um lado, serve como um
sinal, alertando as pessoas para uma crescente ansiedade e dando-lhes oportunidade para
proteger-se. Por outro lado, o desejo de proteção contra a ansiedade torna o auto-sistema
resistente à mudança e impede que as pessoas obtenham ganhos a partir de experiências
com ansiedade. Como a tarefa primordial do auto-sistema é proteger as pessoas da ansie-
dade, ele é o “principal obstáculo para as mudanças favoráveis de personalidade” (Sullivan,
1953b, p. 169). Sullivan (1964), no entanto, acreditava que a personalidade não é estática e
está aberta à mudança no começo dos vários estágios de desenvolvimento.
À medida que o auto-sistema se desenvolve, as pessoas começam a formar uma
imagem consistente de si próprias. Deste ponto em diante, quaisquer experiências inter-
pessoais que percebam como contrárias a sua auto-referência ameaçam sua segurança.
Como conseqüência, as pessoas tentam defender-se das tensões interpessoais por meio
de operações de segurança, cujo propósito é reduzir os sentimentos de insegurança
ou de ansiedade que resultam de uma auto-estima ameaçada. Os indivíduos tendem a negar
ou distorcer experiências interpessoais que conflitam com sua auto-referência. Quando as
pessoas que se atribuem um valor excessivo, por exemplo, são chamadas incompetentes,
podem escolher acreditar que o ofensor é burro ou, talvez, que só esteja brincando. Sullivan
(1953b) chamava as operações de segurança de “um freio poderoso do progresso pessoal
e humano” (p. 374).
Duas importantes operações de segurança são a dissociação e a desatenção seletiva.
A dissociação inclui aqueles impulsos, desejos e necessidades que uma pessoa se recusa
a aceitar na consciência. Algumas experiências infantis tornam-se dissociadas quando
o comportamento de um bebê não é recompensado ou punido, de forma que aquelas
experiências simplesmente não se tornam parte do auto-sistema. As experiências adultas
muito estranhas aos padrões de conduta de um indivíduo também podem tornar-se dis-
sociadas. Essas experiências não deixam de existir, mas continuam a influenciar a perso-
nalidade em um nível inconsciente. As imagens dissociadas manifestam-se em sonhos,
devaneios e outras atividades involuntárias fora da consciência, e são dirigidas no sentido
de manter a segurança interpessoal (Sullivan, 1953b).
O controle do foco da consciência, chamado desatenção seletiva, é uma recusa
do indivíduo em ver aquelas coisas que ele não deseja enxergar. Ela se distingue da dis-
sociação tanto em grau quanto em origem. As experiências seletivamente ignoradas são
220 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Personificações
Iniciando-se na infância e prosseguindo ao longo dos vários estágios de desenvolvimento,
as pessoas adquirem certas imagens de si mesmas e dos outros. Essas imagens, chamadas
personificações, podem ser relativamente acuradas ou, por serem influenciadas pelas
necessidades e ansiedades do indivíduo, podem ser profundamente distorcidas. Sullivan
(1953b) descrevia três personificações básicas que se desenvolviam durante a infância — a
mãe boa, a mãe má e o eu. Além disso, algumas crianças adquirem uma personificação
eidética (amigo imaginário) durante a infância.
Personificações do Eu
Durante a meia-infância, a criança adquire três personificações (eu mau, eu bom e não-eu)
que formam os elementos construtores da personificação do self. Cada um deles relaciona-
se ao conceito em evolução do eu ou do meu corpo. A personificação do eu mau é criada a
partir de experiências de punição e de desaprovação que as crianças recebem de seus cuida-
dores maternos. A ansiedade resultante é suficientemente forte para ensinar às crianças que
elas são más, mas não é grave o bastante para fazer com que a experiência seja dissociada
ou seletivamente ignorada. Como todas as personificações, o eu mau é moldado a partir
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 221
de uma situação interpessoal, ou seja, as crianças apenas podem aprender que são más a
partir de outra pessoa, normalmente a mãe má.
A personificação do eu bom resulta das experiências das crianças com recompensa
e aprovação. Elas sentem-se bem em relação a si mesmas quando percebem as expressões
de afeto de sua mãe. Tais experiências diminuem a ansiedade e estimulam a personificação
do eu bom. Uma ansiedade grande e repentina, no entanto, pode fazer que a criança forme
a personificação do não-eu e passe a dissociar ou a ignorar seletivamente as experiências
relacionadas àquela ansiedade. Uma criança nega essas experiências à imagem do eu para
que estas se tornem parte da personificação do não-eu. Essas personificações do não-eu
sombrias também são encontradas em adultos e expressas em sonhos, episódios esquizofrê-
nicos e outras reações dissociadas. Sullivan acreditava que essas experiências aterradoras
são sempre precedidas de um aviso. Quando adultos são atacados por uma ansiedade severa
abrupta, são dominados por uma emoção estranha. Embora essa experiência incapacite as
pessoas em seus relacionamentos interpessoais, ela serve como um sinal valioso da apro-
ximação de reações esquizofrênicas. Essa emoção estranha pode ser sentida em sonhos ou
pode assumir a forma de espanto, horror, ódio ou um “calafrio” (Sullivan, 1953b).
Personificações Eidéticas
Nem todas as relações interpessoais ocorrem com pessoas reais; algumas são personi-
ficações eidéticas, ou seja, traços irreais ou amigos imaginários que muitas crianças
inventam para proteger suas auto-estimas. Sullivan (1964) acreditava que esses amigos
imaginários podem ser tão significativos para o desenvolvimento das crianças quanto
colegas reais.
As personificações eidéticas, no entanto, não são limitadas às crianças; a maioria
dos adultos vê traços fictícios em outras pessoas. As personificações eidéticas podem
criar conflito em relações interpessoais quando as pessoas projetam sobre outras os traços
imaginários remanescentes de relacionamentos anteriores. Elas também podem dificultar
a comunicação e impedir as pessoas de operar no mesmo nível de cognição.
Níveis de Cognição
Sullivan dividia a cognição em três níveis ou modelos de experiência: prototáxico, pa-
ratáxico e sintáxico. Os níveis de cognição referem-se às formas de perceber, imaginar e
conceber. As experiências no nível prototáxico são impossíveis de serem comunicadas; as
experiências paratáxicas são pessoais, pré-lógicas e comunicadas apenas de uma forma
distorcida; e cognição sintáxica é a comunicação interpessoal significativa.
Nível Prototáxico
As experiências iniciais e mais primitivas de uma criança ocorrem em um nível
prototáxico. Como essas experiências não podem ser comunicadas aos outros, elas são
difíceis de definir ou descrever. Uma forma para compreender esse termo é imaginar as
primeiras experiências de um bebê recém-nascido. Essas experiências devem, de alguma
forma, relacionar-se a diferentes zonas do corpo. Um neonato sente fome e dor, e essas
experiências prototáxicas resultam em ações observáveis, por exemplo, de sugar ou de
chorar. A criança não conhece o motivo para as ações e não vê nenhuma relação entre
222 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Nível Paratáxico
As experiências paratáxicas são pré-lógicas e em geral ocorrem quando uma pessoa
assume um relacionamento de causa e efeito entre dois eventos que acontecem por coinci-
dência. As cognições paratáxicas são distinguidas mais claramente do que as experiências
prototáxicas, mas seu significado permanece particular. Dessa forma, podem ser comuni-
cadas aos outros apenas de forma distorcida.
Um exemplo de pensamento paratáxico pode ser encontrado quando uma criança é
condicionada a dizer “por favor” para receber um doce. Caso “doce” e “por favor” ocor-
ram simultaneamente várias vezes, a criança pode enfim chegar à conclusão ilógica de que
suas súplicas produziram o surgimento do doce. Essa conclusão é a distorção paratáxica,
ou uma crença ilógica de que existe um relacionamento de causa e efeito entre dois even-
tos de proximidade temporal. No entanto, exclamar a expressão “por favor”, por si só, não
faz o doce surgir. Um doador deve estar presente, ouvir a expressão e estar apto e disposto
a atender à solicitação. Quando tal pessoa não está presente, uma criança pode pedir a
Deus ou a um amigo imaginário que lhe conceda favores. Boa parte do comportamento
adulto provém de um pensamento paratáxico similar.
Nível Sintáxico
Experiências que são validadas consensualmente e que podem ser comunicadas de ma-
neira simbólica ocorrem em um nível sintáxico. Experiências validadas consensualmente
são aquelas sobre cujo significado concordam duas ou mais pessoas. As palavras, por
exemplo, são consensualmente validadas porque pessoas diferentes concordam mais ou
menos com seu significado. Os símbolos mais comuns utilizados por uma pessoa para se
comunicar com outra são aqueles da linguagem, inclusive as palavras e os gestos.
Sullivan especulava que o primeiro exemplo de cognição sintáxica aparece sempre
que um som ou gesto começa a ter o mesmo significado para os pais e para a criança. O nível
sintáxico de cognição torna-se mais totalmente aparente à medida que a criança começa a
desenvolver a linguagem formal, mas nunca substitui totalmente as cognições prototáxica e
paratáxica. As experiências adultas ocorrem em todos os três níveis.
Em resumo, Sullivan identificava dois tipos de experiência — tensões e transfor-
mações de energia. As tensões, ou potencialidades para a ação, incluem necessidades
e ansiedade. Enquanto as necessidades são úteis ou conjuntivas quando satisfeitas, a
ansiedade é sempre disjuntiva, interferindo na satisfação das necessidades e destruindo
os relacionamentos interpessoais. As transformações de energias envolvem literalmente
a transformação de energia potencial em energia real (comportamento), com o propósito
de satisfazer as necessidades ou de reduzir a ansiedade. Alguns desses comportamentos
formam padrões de comportamento consistentes, denominados dinamismos. Sullivan
também reconhecia três níveis de cognição — prototáxico, paratáxico e sintáxico. A
Tabela 8.1 resume o conceito de personalidade de Sullivan.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 223
TA B E L A 8 . 1
Resumo da Teoria da Personalidade de Sullivan
I. Tensões (potencial para a ação)
A. Necessidades (conjuntivas; ajudam a integrar a personalidade)
1. Necessidades gerais (facilitam o bem-estar geral de uma pessoa)
a. Interpessoal (afeto, intimidade e amor)
b. Fisiológica (alimento, oxigênio, água etc.)
2. Necessidades zonais (também podem satisfazer necessidades gerais)
a. Oral
b. Genital
c. Manual
B. Ansiedade (disjuntiva; interfere na satisfação das necessidades)
II. Transformações de energias (ações abertas ou encobertas elaboradas para satisfazer
necessidades ou reduzir ansiedade. Algumas transformações de energias tornam-se
padrões de comportamento relativamente consistentes, chamados dinamismos)
III. Dinamismos (traços ou padrões comportamentais)
A. Malevolência (um sentimento de viver em um país inimigo).
B. Intimidade (uma experiência integradora marcada por um relacionamento pessoal
íntimo com outra pessoa de status aproximadamente igual)
C. Sensualidade (um dinamismo isolador caracterizado por um interesse sexual
impessoal por outra pessoa)
IV. Níveis de Cognição (formas de perceber, imaginar e conceber)
A. Prototáxico (experiências indiferenciadas completamente pessoais)
B. Paratáxico (experiências pré-lógicas comunicadas aos outros apenas
de uma forma distorcida)
C. Sintáxico (experiências validadas consensualmente que podem ser
adequadamente comunicadas de forma precisa aos outros)
Estágios de Desenvolvimento
Sullivan (1953b) postulou sete fases ou estágios de desenvolvimento, cada um deles cru-
cial para a formação da personalidade humana. O fio condutor das relações interpessoais
passa pelos estágios; as outras pessoas são indispensáveis ao desenvolvimento de um
indivíduo, desde a infância até a fase adulta.
A mudança de personalidade pode ocorrer em qualquer ocasião, mas tem uma
probabilidade maior de ocorrer durante a transição de um estágio para o estágio seguinte.
Na verdade, esses períodos de transição são mais cruciais do que os estágios em si.
Experiências dissociadas previamente ou ignoradas seletivamente podem entrar no
auto-sistema durante um dos períodos de transição. Sullivan sugeria que, “à medida que
uma pessoa ultrapassa algum desses limiares mais ou menos determinados de um estágio
de desenvolvimento para outro, tudo o que havia acontecido antes se torna racionalmente
aberto a influências” (p. 227).
224 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Seus sete estágios são primeira infância, infância, idade juvenil, pré-adolescência,
adolescência inicial, adolescência posterior e idade adulta.
Primeira Infância
A primeira infância inicia-se com o nascimento e continua até que a criança desenvolva um
discurso articulado ou sintáxico, normalmente entre os 18 e os 24 meses. Sullivan acreditava
que uma criança se torna um humano por meio do afeto recebido do cuidador materno. A sa-
tisfação de quase todas as necessidades humanas demanda a cooperação de outra pessoa. As
crianças não podem sobreviver sem um cuidador materno para proporcionar-lhes alimento,
abrigo, temperatura moderada, contato físico e a limpeza dos dejetos orgânicos.
A ligação empática entre a mãe e a criança leva, inevitavelmente, ao desenvolvi-
mento de ansiedade em relação ao bebê. Sendo humana, a mãe entra no relacionamento
com algum grau de ansiedade previamente adquirida. Sua ansiedade pode derivar de uma
dentre várias experiências, mas a primeira ansiedade da criança está sempre associada à
situação de alimentação e à zona oral. Em contraste com a mãe, o repertório de compor-
tamentos da criança não é adequado para lidar com a ansiedade. Dessa forma, sempre
que as crianças se sentem ansiosas (uma condição originalmente transmitida a ela pela
mãe), elas tentarão empregar quaisquer meios para reduzir a ansiedade. Essas tentativas
incluem normalmente a rejeição do seio, mas isso não consegue nem reduzir a tensão nem
satisfazer a necessidade de alimento. A rejeição do seio por uma criança, obviamente, não
é responsável pela ansiedade original da mãe, mas contribui para tanto. Por fim, a criança
distingue entre o seio bom e o seio mau: o primeiro associado à euforia relativa ao pro-
cesso de alimentação e o segundo ligado a uma ansiedade contínua (Sullivan, 1953b).
Uma criança expressa tanto ansiedade quanto fome pelo choro. O cuidador materno
pode confundir ansiedade com fome e forçar o seio a uma criança ansiosa (mas não fa-
minta). A situação oposta também pode ocorrer quando a mãe, por qualquer razão, falha
ao satisfazer as necessidades do bebê. O bebê experimentará então ódio, que aumentará
a ansiedade da mãe e interferirá em sua habilidade de cooperar com seu bebê. Com uma
tensão cada vez maior, a criança perde a capacidade de satisfazer-se, mas a necessidade
de alimento, é claro, continua a aumentar. Finalmente, à medida que a tensão se apro-
xima do terror, a criança sente dificuldades em respirar. O bebê pode até mesmo deixar
de respirar e assumir uma coloração azulada, mas as proteções embutidas da apatia e
do desapego sonolento impedem que a criança morra. A apatia e o desapego sonolento
permitem que a criança adormeça apesar da fome (Sullivan, 1953b).
Durante o processo de alimentação, a criança não recebe apenas alimento, mas tam-
bém satisfaz algumas necessidades de afeto. O afeto recebido pela criança, nesse período,
exige a cooperação do cuidador materno e apresenta à criança várias estratégias exigidas
pela situação interpessoal. O relacionamento entre mãe e criança, no entanto, é como uma
moeda de duas faces. A criança desenvolve uma personificação ambígua da mãe, enxer-
gando-a tanto como boa quanto como má; a mãe é boa quando satisfaz as necessidades do
bebê e má quando estimula a ansiedade.
Em torno da metade da primeira infância, as crianças aprendem como comunicar-
se pela linguagem. No começo, sua linguagem não é validada por algum consenso, mas
ocorre em um nível individualizado ou paratáxico. Esse período da primeira infância é
caracterizado por uma linguagem autista, ou seja, uma linguagem particular que faz pouco
ou nenhum sentido para as outras pessoas. As primeiras comunicações acontecem na forma
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 225
de expressões faciais e sonorização de vários fonemas. Ambos são apreendidos por repe-
tição, e gestos e palavras balbuciadas eventualmente possuem o mesmo significado para a
criança e para as demais pessoas. Essa comunicação marca o início da linguagem sintáxica
e o fim da primeira infância.
Infância
O período da infância inicia-se com o advento da linguagem sintáxica e continua até o
aparecimento da necessidade de amigos de status semelhante. A infância varia entre cul-
turas e indivíduos, mas nas sociedades ocidentais abrange o período compreendido entre
os 18 e os 24 meses e aproximadamente os 5 ou 6 anos.
Durante esse estágio, a mãe permanece a outra pessoa mais significativa, mas seu
papel é diferente daquele desempenhado durante a primeira infância. As personificações
duais da mãe são agora fundidas em uma só, e a percepção da criança em relação à mãe
é mais congruente com a mãe “real”. Apesar disso, as personificações de mãe boa e mãe
má geralmente são retidas em um nível paratáxico. Além de combinar as personificações
da mãe, a criança distingue as várias pessoas que anteriormente formaram o conceito
de cuidador materno, separando mãe e pai e enxergando cada um deles como tendo
papéis distintos.
Aproximadamente nesse mesmo período, as crianças fundem as personificações
do eu em um único autodinamismo. Uma vez que estabelecem linguagem sintáxica, não
podem mais lidar conscientemente com o eu bom e o eu mau ao mesmo tempo; agora,
classificam o comportamento como bom ou mau imitando o comportamento de seus pais.
Contudo, essas classificações distinguem-se das velhas personificações da infância por-
que são simbolizadas em um nível sintáxico, e porque se originam do comportamento das
crianças em vez de surgirem do aumento e da diminuição de seus níveis de ansiedade.
Além disso, o bem e o mal agora implicam valor moral ou social e não mais se referem à
ausência ou à presença de uma tensão dolorosa chamada ansiedade.
Durante a infância, as emoções tornam-se recíprocas; uma criança é capaz de dar
e receber afeto. O relacionamento entre a mãe e a criança torna-se mais pessoal e menos
unilateral. Em vez de ver a mãe como boa ou má com base apenas na forma pela qual esta
satisfaz as necessidades de alimento, a criança avalia a mãe de um modo mais sintáxico,
conforme a eventualidade de ela demonstrar ou não sentimentos recíprocos de afeto,
desenvolver um relacionamento fundamentado na satisfação mútua de necessidades ou
exibir uma atitude de rejeição.
Além de seus pais, as crianças em idade pré-escolar freqüentemente possuem um
outro relacionamento significativo — o amigo imaginário. Esse amigo capacita a criança
a um relacionamento são e seguro, que produz pouca ansiedade. Os pais algumas vezes
observam seus filhos pré-escolares conversando com um amigo imaginário, chamando-o
pelo nome e possivelmente até mesmo insistindo no oferecimento de um lugar extra na
mesa ou em suas camas. Paralelamente, muitos adultos podem lembrar-se de suas próprias
experiências de infância com amigos imaginários. Sullivan insistia em que ter um amigo
imaginário não é um sinal de instabilidade ou patologia, mas um evento positivo que
auxilia as crianças a tornar-se prontas para a intimidade com amigos reais durante o es-
tágio pré-adolescente. Esses amigos oferecem à criança uma oportunidade para interagir
com outra “pessoa” segura e que não aumentará seu nível de ansiedade. Esse relaciona-
mento tranqüilo e não-ameaçador com um amigo imaginário permite às crianças torna-
rem-se mais independentes dos pais e a fazerem amigos nos anos seguintes.
226 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Idade Juvenil
A idade juvenil inicia-se com o aparecimento da necessidade de iguais ou de colegas de
mesmo status e termina quando o indivíduo encontra um único amigo para satisfazer suas
necessidades de intimidade. Nos Estados Unidos, a idade juvenil acompanha aproxima-
damente os primeiros três anos de escola, começando próximo das idades de 5 ou 6 anos
e encerrando em torno dos oito anos e meio. (É interessante o fato de que Sullivan tenha
sido tão específico quanto à idade em que se encerra esse período e se inicia o estágio
pré-adolescente. Lembre-se que Sullivan tinha 8 anos e meio quando iniciou um relacio-
namento com um menino de 13 anos de uma fazenda próxima.)
Durante o estágio juvenil, acreditava Sullivan, uma criança deveria aprender a com-
petir, comprometer-se e cooperar. O grau de competição encontrado entre crianças dessa
idade varia de acordo com a cultura, mas Sullivan acreditava que as pessoas nos Estados
Unidos geralmente davam excessiva ênfase à competição. Muitas crianças acreditavam
que deveriam ser competitivas para ser bem-sucedidas. O compromisso também pode
ser excessivo. Uma criança de 7 anos que aprende continuamente a ceder aos outros está
em desvantagem no processo de socialização, e esse traço de submissão pode continuar
a caracterizar o indivíduo ao longo de sua vida. A cooperação inclui todos os processos
necessários para possibilitar a convivência com os outros. Na idade juvenil, a criança deve
aprender a cooperar com os outros no mundo real dos relacionamentos interpessoais. A
cooperação é um passo crítico na socialização, e é a tarefa mais importante com a qual as
crianças são confrontadas neste estágio de desenvolvimento.
Durante a idade juvenil, as crianças associam-se a outras de igual estatura. Os rela-
cionamentos um a um são raros, mas, caso existam, têm maiores chances de embasar-se
em conveniência do que em uma intimidade genuína. Meninos e meninas brincam entre
si com pouca consideração quanto ao sexo um do outro. Embora relacionamentos diádicos
(entre duas pessoas) permanentes ainda estejam no futuro, as crianças dessa idade come-
çam a realizar distinções entre elas e a distinguir os adultos. Elas vêem um professor como
um indivíduo mais gentil do que os demais, ou um dos pais como mais indulgente do que o
outro. O mundo real está entrando mais claramente em foco, permitindo-lhes operar cada
vez mais no nível sintáxico.
Até o fim do estágio juvenil, uma criança deverá ter desenvolvido uma orientação
em relação à vida, a qual tornará mais fácil lidar consistentemente com a ansiedade,
satisfazer as necessidades zonais e de afeto e estabelecer metas baseadas na memória e
na previsão. Essa orientação em relação à vida prepara a pessoa para os relacionamentos
interpessoais mais profundos que se seguirão (Sullivan, 1953b).
Pré-adolescência
A pré-adolescência, que se inicia com a idade de oito anos e meio e termina na adolescên-
cia, é um período de intimidade com uma pessoa específica, em geral alguém do mesmo
gênero. Todos os estágios anteriores foram egocêntricos, nos quais as amizades foram for-
madas com base no auto-interesse. Um pré-adolescente, pela primeira vez, assume um in-
teresse honesto por outra pessoa. Sullivan (1953a) chamava esse processo de tornar-se um
ser social de “o milagre silencioso da pré-adolescência” (p. 41), uma provável referência à
transformação de personalidade experimentada durante sua própria pré-adolescência.
A característica mais excepcional da pré-adolescência é o surgimento da capacidade
de amar. Anteriormente, todos os relacionamentos interpessoais se baseavam na satisfa-
ção das necessidades pessoais, mas durante a pré-adolescência, a intimidade e o amor
tornam-se a essência das amizades. A intimidade envolve um relacionamento em que
os dois parceiros chegam a um consenso e atestam, de forma recíproca, o valor pessoal
um do outro. O amor existe “quando a satisfação ou a segurança da outra pessoa torna-
se uma parte significativa para o indivíduo, como se isso fosse sua própria satisfação ou
segurança” (Sullivan, 1953a, p. 42–43).
Um relacionamento íntimo pré-adolescente geralmente envolve outra pessoa do
mesmo sexo e quase da mesma idade ou de status social semelhante. As paixões por pro-
fessores ou estrelas de cinema não são relacionamentos íntimos porque não são validados
por ambas as partes. Os relacionamentos significativos dessa idade são, em geral, do tipo
menino-menino ou menina-menina. Ser valorizado por um dos seus iguais é mais impor-
tante para o pré-adolescente do que ser querido por pais ou professores. Os colegas são
capazes de expressar livremente opiniões e emoções entre si sem medo de humilhação
ou de constrangimento. Esse intercâmbio livre de pensamentos e de sentimentos pessoais
228 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Adolescência Inicial
A adolescência inicial começa com a puberdade e encerra-se com a necessidade de amor
sexual de outra pessoa. É marcada pelo aparecimento súbito do interesse genital e pelo
advento de relacionamentos libidinosos. Nos Estados Unidos, a primeira adolescência ge-
ralmente acompanha os anos do ensino intermediário (ensino fundamental II). De forma
semelhante à maior parte dos outros estágios, contudo, Sullivan não atribuiu uma ênfase
excessiva à idade cronológica.
A necessidade de intimidade alcançada durante o estágio anterior continua durante
a primeira adolescência, mas agora é acompanhada de uma necessidade paralela, porém
separada — a libido. Além disso, a segurança, ou a necessidade de estar livre de ansiedade,
permanece ativa durante a primeira adolescência. Assim, a intimidade, a sensualidade e a
segurança com freqüência colidem entre si, trazendo para o indivíduo estresse e conflitos
em pelo menos três formas. Primeiro, a sensualidade interfere nas operações de segurança
porque a atividade genital na cultura estadunidense é comumente associada à ansiedade, à
culpa e ao constrangimento. Em segundo lugar, a intimidade também pode ameaçar a segu-
rança, como quando, por exemplo, jovens adolescentes buscam amizades íntimas com ado-
lescentes do outro sexo. Essas tentativas são carregadas de autodúvidas, incertezas e medo
do ridículo, os quais podem levar à perda da auto-estima e a um aumento na ansiedade. Em
terceiro lugar, a intimidade e a sensualidade estão freqüentemente em conflito durante a
primeira adolescência. Embora amizades íntimas com iguais de mesmo status ainda sejam
importantes, tensões sexuais mais poderosas buscam uma válvula de escape sem impor-
tar-se com a necessidade de afeto. Portanto, os jovens adolescentes podem conservar suas
amizades íntimas da pré-adolescência enquanto manifestam um desejo sexual por alguém
de quem não gostam, ou até mesmo que não conhecem.
Uma vez que o dinamismo da sensualidade é biológico, ela explode de forma vio-
lenta na puberdade, independentemente da aptidão interpessoal do indivíduo para ela.
Um menino sem nenhuma experiência prévia com intimidade pode ver as garotas como
objetos sexuais, ao mesmo tempo em que não possui nenhum interesse real por elas. Uma
menina na primeira adolescência pode provocar sexualmente os meninos, mas carecer de
habilidades para relacionar-se com eles em um nível mais íntimo.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 229
Adolescência Posterior
A adolescência posterior inicia-se quando os jovens são capazes de sentir desejo sexual e
intimidade em relação à mesma pessoa, e em geral encerra-se na fase adulta, quando eles
estabelecem um relacionamento amoroso duradouro. A adolescência posterior abrange o
período da autodescoberta, um momento em que os adolescentes estão determinando suas
preferências quanto ao comportamento genital, normalmente durante os anos do ensino
médio, ou por volta dos 15 a 17 ou 18 anos.
O traço mais marcante da adolescência posterior é a fusão de intimidade e sensua-
lidade. As problemáticas tentativas de auto-exploração da primeira adolescência evoluem
para um padrão de atividade sexual mais estável, no qual o ser amado também é objeto
de interesse sexual. As pessoas não apenas desejam as outras como objetos sexuais, mas
como pessoas capazes de ser amadas desinteressadamente. Ao contrário do estágio pré-
vio, que é precipitado por mudanças biológicas, a adolescência posterior é completamente
determinada pelas relações interpessoais.
Uma adolescência posterior bem-sucedida inclui um crescente modo sintáxico. Na
faculdade ou no trabalho, os adolescentes começam a trocar idéias com outras pessoas
e a ter suas crenças e opiniões validadas ou rejeitadas. Aprendem com os outros a viver
no mundo adulto, mas uma jornada bem-sucedida ao longo dos estágios anteriores faci-
lita esse ajustamento. Caso os períodos prévios de desenvolvimento tenham sido falhos,
230 Parte II Teorias Psicodinâmicas
Idade Adulta
Uma passagem bem-sucedida pela adolescência posterior culmina na idade adulta, um
período em que as pessoas podem estabelecer um relacionamento amoroso com pelo
menos uma outra pessoa significativa. Ao escrever sobre esse relacionamento amoroso,
Sullivan (1953b) afirmava que “essa intimidade realmente desenvolvida, de modo elevado,
com outra pessoa não é o principal negócio da vida, mas talvez seja a principal fonte de
satisfação na vida” (p. 34).
Sullivan tinha pouco a dizer sobre este estágio final porque acreditava que a natu-
reza da idade adulta estava além da abrangência da psiquiatria interpessoal; as pessoas
que haviam atingido a capacidade de amar não tinham mais necessidade de receber orien-
tação psiquiátrica. Seu esboço de uma pessoa madura, contudo, não estava fundamentado
em experiências clínicas, e sim tratava-se de uma extrapolação dos estágios precedentes.
Adultos maduros são perceptivos em relação à ansiedade, às necessidades e à
segurança das outras pessoas. Agem predominantemente em um nível sintáxico e julgam
a vida interessante e estimulante (Sullivan, 1953b).
A Tabela 8.2 resume os primeiros seis estágios de desenvolvimento de Sullivan e
demonstra a importância dos relacionamentos interpessoais em cada estágio.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 231
TA B E L A 8 . 2
Resumo dos Estágios de Desenvolvimento de Sullivan
Distúrbios Psicológicos
Sullivan acreditava que todos os distúrbios psicológicos têm uma origem interpessoal e
podem ser compreendidos somente em relação ao ambiente social do paciente. Ele tam-
bém afirmava que as deficiências encontradas em pacientes psiquiátricos são encontradas
em todas as pessoas, mas em um grau menor. Não há nada específico nas dificuldades
psicológicas; elas derivam do mesmo tipo de problemas interpessoais enfrentados por
todas as pessoas. Sullivan (1953a) insistia em que “todas as pessoas tendem mais a ser
simplesmente humanas do que seres exclusivos; e não importa o que incomoda o paciente
— ele é, principalmente, uma pessoa, como o psiquiatra” (p. 96).
A maior parte do trabalho terapêutico de Sullivan era feito com pacientes esquizofrê-
nicos, e muito de suas palestras e escritos subseqüentes relacionavam-se à esquizofrenia.
Sullivan (1962) distinguia duas amplas classes de esquizofrenia. A primeira incluía todos
aqueles sintomas que se originam de causas orgânicas e estão, dessa forma, além do estudo
da psiquiatria interpessoal. A segunda classe incluía todos os transtornos esquizofrênicos
232 Parte II Teorias Psicodinâmicas
embasados em fatores situacionais. Esses transtornos eram os únicos com os quais Sullivan
se preocupava porque eram passíveis de mudança pela psiquiatria interpessoal.
As reações dissociadas, que freqüentemente precedem a esquizofrenia, são carac-
terizadas por solidão, baixa auto-estima, emoções estranhas, relações insatisfatórias com
os outros e uma crescente ansiedade (Sullivan, 1953b). As pessoas com uma personali-
dade dissociada tentam, de modo semelhante às demais pessoas, minimizar a ansiedade
ao construir um elaborado auto-sistema que bloqueia as experiências que ameaçam sua
segurança. Enquanto indivíduos normais sentem-se relativamente seguros em suas
relações interpessoais e não precisam apelar constantemente para a dissociação como
forma de proteger sua auto-estima, os indivíduos com um quadro de desordem mental
dissociam de seu auto-sistema grande parte de suas experiências. Caso essa estratégia per-
sista, essas pessoas começarão a operar cada vez mais em seus próprios mundos particulares,
com um amento das distorções paratáxicas e uma diminuição das experiências validadas
consensualmente (Sullivan, 1956).
Psicoterapia
Por acreditar que os distúrbios psicológicos surgem de dificuldades interpessoais, Sullivan
baseava seus procedimentos terapêuticos em um esforço para melhorar o relacionamento
dos pacientes com as outras pessoas. Para facilitar esse processo, o terapeuta atua como
um observador participativo, tornando-se parte de um relacionamento interpessoal, face
a face, com o paciente e proporcionando-lhe uma oportunidade para que estabeleça uma
comunicação sintáxica com outro ser humano.
Enquanto esteve no St. Elizabeth Hospital, Sullivan produziu um método de trata-
mento para pacientes com sérias perturbações, então considerado radical. Seus superviso-
res concordaram em fornecer-lhe um pátio para seus próprios pacientes e permitiram-lhe
que selecionasse e preparasse trabalhadores paraprofissionais que pudessem tratar os
pacientes como seres humanos. Naquela época, muitos esquizofrênicos e outros pacientes
psicóticos eram amontoados e tidos como subumanos. Mas o experimento de Sullivan
funcionou. Um índice elevado de seus pacientes melhorou. Erich Fromm (1994a) referia-
se aos resultados praticamente miraculosos de Sullivan como uma evidência de que uma
psicose não é apenas um distúrbio físico, e de que os relacionamentos pessoais de um ser
humano com outro é a essência do crescimento psicológico.
Em termos gerais, a terapia de Sullivan está orientada para revelar as dificuldades dos
pacientes em suas relações com os outros. Para atingir essa meta, o terapeuta auxilia os pa-
cientes a abrir mão da segurança ao lidar com as outras pessoas e a perceber que eles podem
alcançar a saúde mental apenas por meio de relações pessoais validadas consensualmente.
O ingrediente terapêutico nesse processo é o relacionamento face a face entre o terapeuta e
os pacientes, o que lhes permite reduzir a ansiedade e comunicar-se com os outros em um
nível sintáxico.
Embora sejam participantes na entrevista, os terapeutas sullivanianos evitam o en-
volvimento pessoal. Não se colocam no mesmo nível do paciente; ao contrário, eles tentam
convencer o paciente de suas habilidades especializadas. Em outras palavras, a amizade
não é uma condição da psicoterapia — os terapeutas devem ser treinados como especia-
listas no difícil negócio de realizar observações de entendimento em torno das relações
interpessoais do paciente (Sullivan, 1954).
Sullivan estava principalmente preocupado em compreender seus pacientes, ajudá-
los a melhorar sua percepção, descobrir dificuldades nas relações interpessoais e restaurar
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 233
Pesquisa Relacionada
A teoria de Sullivan baseia-se no pressuposto de que um desenvolvimento patológico da
personalidade resulta de conflitos e dificuldades interpessoais. Antes da pré-adolescência,
as crianças em geral internalizam uma percepção negativa dos pais em relação a elas, o
que pode levar a uma forma de perturbação emocional. Sullivan (1953a) imaginava que,
se os relacionamentos interpessoais podem ser a causa das perturbações emocionais, estes
também poderiam ser sua cura.
Nesta seção, analisaremos algumas das pesquisas sobre dois tipos bem dife-
rentes de relacionamentos interpessoais — os amigos imaginários e as interações
paciente — terapeuta.
Amigos Imaginários
Mais do que qualquer outro teórico da personalidade, Sullivan reconhecia a importância
de ter um amigo imaginário. Ele acreditava que essas amizades poderiam facilitar a in-
dependência em relação aos pais e auxiliar as crianças a construir relacionamentos reais.
Para apoiar a noção de Sullivan, existem algumas evidências de que as crianças que criam
amigos imaginários — comparadas àquelas que não os têm — são mais criativas, imagi-
nativas, inteligentes, amigáveis e sociáveis (Fern, 1991; Gleason, 2002).
Paula Bouldin e Chris Pratt (1999) relataram alguns dados interessantes sobre crian-
ças de 3 a 9 anos com amigos imaginários. Esse estudo encontrou poucas diferenças entre
meninos e meninas quanto à freqüência dos relatos de amigos imaginários. Além disso,
as atitudes dos pais em relação aos amigos imaginários de seus filhos eram extremamente
positivas. Apenas 1% dos pais pensava que o amigo imaginário era prejudicial à criança,
enquanto dois terços dos pais acreditavam que ter um amigo imaginário era benéfico.
Bouldin e Pratt também descobriram que cerca de 80% das crianças eram felizes ou esta-
vam bem-humoradas quando brincavam com seu amigo imaginário; apenas 3% eram soli-
tárias e outras 3%, raivosas. Um quarto das crianças necessitava de uma cadeira colocada
na mesa de jantar para seus amigos imaginários, um terço precisava de um espaço extra
em sua cama e mais de um terço solicitava espaço adicional no carro.
Outro estudo de Bouldin e Pratt (2001) examinava se as crianças que criam amigos
imaginários teriam alguma dificuldade para distinguir entre fantasia e realidade. Uma
possibilidade era que as crianças que desenvolvem tais colegas não-existentes simples-
mente são mais imaginativas em geral, com uma maior disposição para devaneios e
fantasias. Uma segunda possibilidade é que as crianças com companheiros imaginários
são mais crédulas — ou seja, em termos de comportamento, têm uma propensão maior
para acreditar em imagens mágicas e fantásticas, mas seu receio frente a imagens visuais
ambíguas é menor do que o de crianças que não acreditam em amigos imaginários.
O procedimento utilizado por Bouldin e Pratt (2001) pedia a um experimentador que
trouxesse uma criança para uma sala de testes dotada de vários brinquedos e uma tenda.
Após estabelecer uma relação de empatia com a criança, o experimentador solicitava que
ela retirasse um talão de notas do interior da tenda. Então, contava uma história infantil
que estava escrevendo sobre um monstro que vivia em uma caverna, muito parecida
234 Parte II Teorias Psicodinâmicas
com a tenda. Relatava-se à criança, então, que o monstro era muito bom ao esconder-se
e que o experimentador não podia vê-lo. Dessa forma, o experimentador perguntava à
criança: “Você acredita que pode ajudar-me a descrever o monstro?”
Após a criança descrever o monstro, o experimentador agradecia à criança e dizia-
lhe que “o monstro que você descreveu para a minha história caberia em uma caverna do
mesmo tamanho da tenda”. Nesse momento, enquanto a atenção da criança estava cen-
trada na tenda, uma silhueta parecida com a de um monstro era projetada em um dos lados
da tenda por não mais do que três segundos. Após certificar-se de que a criança havia
visto a imagem, a experimentadora pedia-lhe que colocasse o bloco de notas novamente
na tenda. Após um breve período de brincadeiras com os brinquedos na sala, e à medida
que a criança era acompanhada de volta à sala de aula, o experimentador simplesmente
perguntava: “Você têm algum amigo de faz-de-conta com o qual conversa e que vai junto
com você a todos os lugares?”
Em seguida, os avaliadores, que desconheciam o propósito da pesquisa, registra-
vam as respostas verbais e não-verbais gravadas em vídeo. Na categoria verbal, as crian-
ças diziam ou não que haviam visto um monstro, enquanto na categoria não-verbal, a
criança se movia e pulava ou não diante da imagem. Outros comportamentos verbais
registrados incluíam comentários espontâneos sobre um monstro durante o período de
brincadeiras; outros comportamentos não-verbais incluíam a forma como a criança se
aproximara da tenda quando fora solicitada a colocar o bloco de notas no lugar.
Comparadas às crianças que não tinham amigos imaginários, aquelas que os ti-
nham apresentaram uma probabilidade significantemente maior em relatar ter visto um
monstro e de se mover ou saltar após ver a silhueta. Quando perguntadas se acreditavam
que poderia haver um monstro na tenda, o grupo com um amigo imaginário tinha uma
propensão muito mais elevada de responder afirmativamente (42% contra 5%). Além
disso, o grupo com companheiros imaginários mostrava uma probabilidade maior de
experimentar devaneios, de visualizar realisticamente as pessoas em suas mentes e
“algumas vezes, ficar realmente com medo por causa de algo sobre o qual você pensa”
(p. 111). Bouldin e Pratt afirmavam que esses resultados demonstravam um série de dife-
renças imaginativas e emocionais entre crianças que tinham e que não tinham uma amigo
imaginário. Vale a pena notar que, a partir do mesmo conjunto de dados, Bouldin, Bavin e
Pratt (2002) estudaram o desenvolvimento lingüístico dos dois grupos e descobriram que
o grupo com amigos imaginários utilizava uma linguagem mais madura em relação às
outras crianças. Os pesquisadores afirmaram que isso demonstrava elevadas habilidades
sociocognitivas apresentadas pelas crianças do grupo com os amigos imaginários, propor-
cionando ainda mais evidências para a visão de Sullivan de que ter amigos imaginários
aumenta, em lugar de diminuir, o desenvolvimento social, cognitivo e emocional.
Em resumo, a pesquisa tende a comprovar os pressupostos de Sullivan de que ter
um amigo imaginário é uma experiência normal e saudável. Isso não é nem um sinal de
patologia nem o resultado de sentimentos de solidão e alienação em relação às outras
crianças. De fato, as crianças pré-escolares e em idade escolar com amigos imaginários
tendem a ser mais criativas, imaginativas, inteligentes e sociáveis do que as que não têm
um companheiro imaginário.
Relacionamentos Terapeuta-Paciente
Sullivan foi o primeiro teórico da personalidade a reconhecer o potencial valor terapêutico
do relacionamento entre terapeuta e paciente. Ele e seus seguidores argumentavam que
aquilo que o terapeuta diz e faz pode desempenhar um importante papel no bem-estar
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 235
Esses autores sugerem que uma combinação do histórico interpessoal e dos relacionamen-
tos atuais de pacientes e terapeutas poderia oferecer o indicativo mais confiável acerca dos
resultados da terapia.
Mais recentemente, um estudo conduzido por Kelly Schloredt e Julia Heiman (2003)
utilizou a SABS para investigar o relacionamento entre abuso sexual na infância, autocon-
ceito e tanto comportamento quanto satisfação sexuais na idade adulta. Elas acreditavam
que uma vítima de abuso sexual na infância teria o problema de “reconciliar seu abuso
com seu senso de sexualidade e integrar aquilo que a experiência lhe havia ensinado sobre
a forma como os outros tratam seus corpos” (p. 276).
Schloredt e Heiman dividiram seus participantes em três grupos — aqueles que
haviam experimentado apenas abuso sexual na infância (CA), aqueles que haviam
experimentado tanto abuso sexual quanto abuso físico (SPA) e aqueles que não haviam ex-
perimentado nenhum abuso (NA). Com base na noção de introjeção de Sullivan, previram
que as mulheres que haviam experimentado tanto abuso sexual quanto físico, comparadas
com as dos outros dois grupos, teriam os maiores índices de disfunções sexuais, assumiriam
um comportamento sexual de risco e enxergariam sua sexualidade de forma mais hostil do
que os grupos CSA e NA. Nessas dimensões, o grupo CSA deveria situar-se em um ponto
intermediário entre os grupos SPA e NA.
Os participantes do estudo eram 148 mulheres recrutadas na comunidade. Todas
elas completaram uma versão modificada da SABS em que eram solicitadas a avaliar sua
sexualidade em dois contextos diferentes, em seu melhor e em seu pior momento. Em se-
gundo lugar, avaliaram sua atividade sexual ao longo do último ano ao responder questões
referentes ao número de parceiros, utilização de contraceptivos, práticas de sexo seguro,
bem como masturbação, excitação sexual, freqüência de orgasmo e dor. Finalmente, as
participantes completaram avaliações de depressão e ansiedade.
Dado que o grupo de vítimas de abusos registrava valores mais altos em relação à
depressão e à ansiedade quando comparados com o grupo sem registro de abuso, essas
duas variáveis foram mantidas constantes nas análises. Os resultados relataram as pre-
visões básicas: o grupo abusado física e sexualmente apresentava os resultados mais
elevados de sentimento negativo (medo, raiva e nojo) durante a excitação sexual, seguido
pelo grupo abusado sexualmente e com o grupo sem vítimas registrando os índices mais
baixos de sentimento negativo. Quando relatavam sua sexualidade nos piores momentos,
os dois grupos abusados relataram menos disponibilidade e mais hostilidade em suas
experiências sexuais. A adoção de comportamentos sexuais de risco também distinguia os
dois grupos, essencialmente quanto ao número de parceiros sexuais, em que o grupo de
vítimas de abuso relatou uma média de 21 parceiros sexuais ao longo da vida enquanto o
grupo sem vítimas relatou uma média de 8. Contudo, Schloredt e Heiman não encontra-
ram diferenças entre os três grupos em relação a interesse sexual geral, excitação sexual
ou medo do sexo.
Essa abordagem empírica assemelha-se às noções teóricas de Sullivan de que o
autoconceito dos adultos é pelo menos parcialmente formado por experiências de abuso
sexual na infância.
Crítica a Sullivan
Embora a teoria da personalidade de Sullivan seja muito abrangente, ela não é tão popu-
lar entre os psicólogos teóricos quanto as teorias de Freud, Adler, Jung ou Erich Erikson
(ver Capítulo 9). No entanto, o maior valor de qualquer teoria não está em sua populari-
dade, mas nos seis critérios enumerados no Capítulo 1.
O primeiro critério de uma teoria útil é sua capacidade de produzir pesquisa. Hoje em
dia, poucos pesquisadores estão investigando hipóteses especificamente retiradas da teoria
de Sullivan. Uma possível explicação para essa deficiência é a ausência de popularidade
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 237
Conceito de Humanidade
O conceito de humanidade básico de Sullivan é resumido em sua hipótese de um único
gênero, a qual afirma que “todas as pessoas tendem mais a ser simplesmente humanas do
que qualquer outra coisa” (1953b, p. 32). Essa hipótese era sua forma de afirmar que as
similaridades entre as pessoas são muito mais importantes do que as diferenças. As pes-
soas se parecem muito mais entre si do que qualquer outra coisa.
Em outras palavras, as diferenças entre quaisquer dois aspectos da personalidade humana — desde o
imbecil da pior espécie até o mais elevado gênio — são muito menos impressionantes do que a dife-
rença entre o humano menos dotado e um membro de outro gênero biológico mais próximo (p. 33).
238 Parte II Teorias Psicodinâmicas