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C A P Í T U L O

Sullivan: Teoria
Interpessoal

Visão Geral da Teoria Interpessoal

Biografia de Harry Stack Sullivan

Tensões
Necessidades
Ansiedade
Transformações de Energias
Dinamismos
Malevolência Sullivan
Intimidade
Distúrbios Psicológicos
Sensualidade
Auto-sistema Psicoterapia

Pesquisa Relacionada
Personificações
A Mãe Boa e a Mãe Má Amigos Imaginários

Personificações do Eu Relacionamentos Terapeuta-Paciente


Personificações Eidéticas Crítica a Sullivan

Níveis de Cognição Conceito de Humanidade


Nível Prototáxico Termos e Conceitos Essenciais
Nível Paratáxico
Nível Sintáxico
Estágios de Desenvolvimento
Primeira Infância
Infância
Idade Juvenil
Pré-adolescência
Adolescência Inicial
Adolescência Posterior
Idade Adulta

210
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 211

O garoto não tinha amigos de sua idade, mas vários colegas imaginários. Na escola,
seu forte sotaque irlandês e sua mente rápida o tornavam impopular entre seus co-
legas. Então, com oito anos e meio, o menino vivenciou um relacionamento íntimo com
um menino de 13 anos, que transformou sua vida. Os dois permaneceram impopulares
junto às outras crianças, mas desenvolveram laços íntimos entre si. Muitos acadêmicos
(Alexander, 1990, 1995; Chapman, 1976; Havens, 1987) acreditam que o relacionamento
entre esses dois jovens — Harry Stack Sullivan e Clarence Bellinger — era, pelo menos
em certos aspectos, homossexual; outros (Perry, 1982), porém, acreditavam que os dois
meninos nunca foram sexualmente íntimos.
Por que é tão importante sabermos da orientação sexual de Sullivan? Esse conhe-
cimento é importante por pelo menos duas razões. Primeiro, o histórico pessoal inicial
da vida de um teórico da personalidade, incluindo gênero, ordem de nascimento, crenças
religiosas, histórico étnico, grau de escolaridade e orientação sexual, todos esses elemen-
tos relacionam-se às crenças adultas daquele indivíduo, sua concepção de humanidade e
o tipo de teoria da personalidade que desenvolverá.
Em segundo lugar, no caso de Sullivan, sua orientação sexual pode tê-lo impe-
dido de obter a aceitação e o reconhecimento que lhe teriam sido concedidos caso os
outros não suspeitassem de sua homossexualidade. A. H. Chapman (1976) afirmava que
a influência de Sullivan é persistente, ainda que bastante ignorada, como conseqüência
de os psicólogos e os psiquiatras de sua época terem tido dificuldades em aceitar os
conselhos teóricos e as práticas terapêuticas de alguém suspeito de ser homossexual.
Chapmam afirmava que os contemporâneos de Sullivan poderiam ter facilmente aceitado
um artista, um músico ou um escritor homossexual, mas, quando se tratava de um psi-
quiatra, ainda eram guiados pelo conceito “Médico, cura-te a ti mesmo”. Essa frase estava
tão arraigada na sociedade estadunidense durante a época de Sullivan que os profissionais
de saúde mental acreditavam ser muito difícil “admitir suas carências para um psiquiatra
cuja homossexualidade era conhecida” (Chapman, 1976, p. 12). Assim, Sullivan, que de
outra forma poderia ter alcançado uma fama mais expressiva, era estorvado por precon-
ceitos sexuais que o impediam de ser reconhecido como o psiquiatra mais proeminente da
América da primeira metade do século XX.

Visão Geral da Teoria Interpessoal


Harry Stack Sullivan, o primeiro estadunidense a construir uma teoria da personalidade
abrangente, acreditava que as pessoas desenvolviam suas personalidades em um contexto
social. Sem os outros, afirmava Sullivan, os humanos não teriam nenhuma personalidade.
“Uma personalidade nunca pode ser isolada da complexidade das relações interpessoais na
qual vive o indivíduo e na qual ele apresenta o seu ser” (Sullivan, 1953a, p. 10). Sullivan
insistia em que o conhecimento da personalidade humana pode ser adquirido apenas pelo
estudo científico das relações interpessoais. Sua teoria interpessoal enfatizava a importân-
cia dos vários estágios de desenvolvimento — primeira infância, infância, idade juvenil,
pré-adolescência, adolescência inicial, adolescência posterior e idade adulta. Um desenvol-
vimento humano saudável baseia-se na habilidade de uma pessoa em estabelecer laços de
intimidade com outra, mas, infelizmente, a ansiedade pode interferir em relações interpes-
soais satisfatórias em qualquer idade. Talvez o estágio mais crucial de desenvolvimento seja
a pré-adolescência — um período em que as crianças começam a ser capazes de intimidade
mas ainda não alcançaram uma idade em que seus relacionamentos sejam complicados
por interesses sensuais. Sullivan acreditava que as pessoas atingem um desenvolvimento
saudável quando são capazes de experimentar tanto intimidade quanto desejo sexual pela
mesma pessoa.
212 Parte II Teorias Psicodinâmicas

Por ironia, os próprios relacionamentos de Sullivan com outras pessoas raramente


eram satisfatórios. Ainda criança, ele era solitário e fisicamente isolado; quando ado-
lescente, sofreu pelo menos um surto esquizofrênico; e, na fase adulta, manteve apenas
relacionamentos interpessoais superficiais e ambivalentes. Apesar dessas dificuldades
interpessoais, ou talvez como resultado disso, Sullivan contribuiu muito para um enten-
dimento da personalidade humana. Nas palavras de Leston Havens (1987), “Ele fez suas
contribuições caminhando apenas sobre uma perna (...); nunca adquiriu a espontaneidade,
a receptividade e a capacidade para relacionamentos íntimos, que sua própria escola inter-
pessoal trabalhava para conquistar para os outros” (p. 184).

Biografia de Harry Stack Sullivan


Harry Stack Sullivan nasceu na pequena cidade rural de Norwich, Nova York, em 21
de fevereiro de 1892, o único filho sobrevivente de pais católicos irlandeses pobres. Sua
mãe, Ella Stack Sullivan, tinha 32 anos quando se casou com Timothy Sullivan e 39 anos
quando Harry nasceu. Havia dado à luz outros dois filhos, nenhum dos quais viveu após
o primeiro ano de nascimento. Como conseqüência, ela mimava e protegia seu único
filho, cuja sobrevivência ela sabia ser sua última chance de maternidade. O pai de Harry,
Timothy Sullivan, era um homem tímido, retraído e taciturno que nunca desenvolveu um
relacionamento íntimo com seu filho até que sua esposa falecesse e Sullivan se tornasse
um médico de destaque. Timothy havia sido agricultor e operário fabril que se mudou para
a fazenda da família de sua esposa em um vilarejo nos arredores de Smyrna, a pouco mais
de 10 quilômetros de Norwich, antes de Harry completar 3 anos. Quase nessa mesma oca-
sião, Ella Stack Sullivan esteve misteriosamente ausente de sua casa, e Sullivan foi criado
por sua avó materna, cujo sotaque gaélico mal era compreendido pelo menino. Após mais
de um ano de separação, a mãe de Harry — que provavelmente havia permanecido em
uma instituição psiquiátrica — retornou à sua casa. De fato, Sullivan, então, tinha duas
mulheres para cuidá-lo. Mesmo após a morte de sua avó, ele continuou a ter duas mulheres
para assisti-lo, uma vez que sua tia solteira veio ajudar a criá-lo.
Embora os pais descendessem de famílias irlandesas pobres, sua mãe referia-se à
família Stack como socialmente superior aos Sullivan. Sullivan aceitou a supremacia dos
Stack sobre os Sullivan até tornar-se um proeminente psiquiatra e desenvolver uma teoria
interpessoal que enfatizava similaridades entre as pessoas, no lugar das diferenças. Ele,
então, percebeu a insensatez das alegações de sua mãe.
Antes de freqüentar a escola, Sullivan não tinha amigos nem conhecidos de sua
idade. No colégio, ainda se sentia deslocado por ser um garoto católico e irlandês em uma
comunidade protestante. Seu sotaque irlandês e sua mente rápida fizeram dele uma pessoa
impopular junto aos colegas durante os anos escolares em Smyrna.
Quando Sullivan tinha oito anos e meio, iniciou uma forte amizade com um garoto
de 13 anos de uma fazenda vizinha. Esse garoto era Clarence Bellinger, que vivia a pouco
mais de um quilômetro e meio de distância de Harry, em outro distrito escolar, mas que
estava, naquele momento, começando a freqüentar a escola em Smyrna. Embora os dois
meninos tivessem idades diferentes, tinham muito em comum, social e intelectualmente.
Ambos eram socialmente atrasados, mas intelectualmente avançados; os dois se torna-
ram psiquiatras, e nunca se casaram. O relacionamento entre Harry e Clarence teve um
efeito transformador sobre a vida de Sullivan. Despertou nele o poder da intimidade, ou
seja, a habilidade para amar outra pessoa aparentemente semelhante a ele próprio. Na
teoria da personalidade madura de Sullivan, ele atribuiu uma grande ênfase ao poder
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 213

terapêutico, quase mágico, de um relacionamento íntimo durante a pré-adolescência.


Essa crença, juntamente com outras hipóteses de Sullivan, parece ter evoluído a partir
de suas próprias experiências infantis.
Sullivan interessava-se por livros e ciência, não por agricultura. Embora fosse a
única criança crescendo em uma fazenda que exigia muito trabalho duro, Harry foi capaz
de escapar de muitas dessas tarefas ao distraidamente “esquecer” de realizá-las. Esse tru-
que foi bem-sucedido porque sua mãe indulgente as completava e permitia que Sullivan
recebesse os créditos por sua execução.
Estudante destacado, Sullivan graduou-se na escola secundária como um aluno
excepcional aos 16 anos. Então entrou na Cornell University com o intuito de tornar-se
médico, embora também tivesse um interesse pela psiquiatria. Seu desempenho acadê-
mico em Cornell, no entanto, foi um desastre, e ele foi suspenso após um ano. A suspen-
são pode não ter sido apenas em razão de deficiências acadêmicas. Ele teve problemas
com a justiça em Cornell, possivelmente por fraude postal. Talvez tenha sido usado por
estudantes mais velhos e maduros que o teriam escolhido para despachar alguns elemen-
tos químicos ilegais pelo correio. De qualquer forma, pelos dois anos seguintes Sullivan
desapareceu misteriosamente de cena. Perry (1982) relatou a possibilidade de ele ter
sofrido um colapso esquizofrênico nesse período e ter ficado confinado em um hospital
psiquiátrico. Alexander (1990), contudo, sugeriu que Sullivan teria passado esse período
sob a orientação de um mentor mais velho que o teria ajudado a superar seu pânico sexual
e intensificado seu interesse pela psiquiatria. Qualquer que tenha sido a resposta para o
misterioso desaparecimento de Sullivan entre 1909 e 1911, suas experiências parecem tê-
lo amadurecido academicamente, e, possivelmente, em termos sexuais.
Em 1911, com apenas um ano mal-sucedido no curso de graduação, Sullivan matricu-
lou-se na Chicago College of Medicine and Surgery, onde suas notas, embora ainda medío-
cres, apresentaram uma grande melhora em relação às obtidas em Cornell. Ele encerrou seus
estudos médicos em 1915, mas não recebeu sua graduação até 1917. Sullivan alegou que o
atraso deveu-se ao fato de ele não ter pago totalmente suas mensalidades; mas Perry (1982)
encontrou evidências de que ele ainda não havia completado todos os pré-requisitos acadê-
micos em 1915 e necessitava, entre outras coisas, de um estágio. Como Sullivan foi capaz
de obter seu diploma, se ainda não tinha todos os pré-requisitos? Nenhum dos biógrafos
de Sullivan tem uma resposta satisfatória para essa questão. Alexander (1990) especulava
que ele, que havia acumulado cerca de um ano em uma atividade médica relacionada, uti-
lizou suas consideráveis habilidades persuasivas para convencer as autoridades na Chicago
College of Medicine and Surgery em aceitar essa experiência no lugar de um estágio.
Quaisquer outras deficiências seriam perdoadas caso Sullivan concordasse em alistar-se
nas forças armadas (os Estados Unidos haviam entrado recentemente na Primeira Guerra
Mundial e tinham necessidade de oficiais médicos).
Após a guerra, Sullivan continuou a servir como um oficial militar, primeiro no
Federal Board for Vocational Education e, então, no Public Health Service. No entanto,
esse período de sua vida ainda era instável e confuso, e ele mostrava pouco do talento
relacionado à brilhante carreira que estava à sua frente (Perry, 1982).
Em 1921, sem nenhum treinamento formal em psiquiatria, ele foi enviado ao
St. Elizabeth Hospital, em Washington, D. C., e ficou próximo de William Alanson
White, um dos neuropsiquiatras mais famosos da América. Nesse hospital, Sullivan teve
sua primeira oportunidade para trabalhar com um grande número de pacientes esquizo-
frênicos. Enquanto esteve em Washington, ele iniciou uma associação com a Escola de
Medicina da Universidade de Maryland e com o Sheppard and Enoch Pratt Hospital em
Towson, Maryland. Durante o período de sua vida passado em Baltimore, ele conduziu
intensos estudos sobre esquizofrenia, os quais o levaram às primeiras indicações acerca
214 Parte II Teorias Psicodinâmicas

da importância dos relacionamentos interpessoais. Em sua tentativa de compreender o


sentido do discurso de pacientes esquizofrênicos, Sullivan concluiu que a doença desses
pacientes era uma forma de lidar com a ansiedade gerada a partir de ambientes sociais
e interpessoais. Suas experiências como clínico praticante transformaram-se aos poucos
no embrião de uma teoria interpessoal de psiquiatria.
Sullivan gastava grande parte de seu tempo e de sua energia no Sheppard, selecio-
nando e treinando os atendentes do hospital. Embora ele mesmo realizasse pouca terapia,
desenvolveu um sistema em que atendentes do sexo masculino não-profissionais, porém
simpáticos, tratavam pacientes esquizofrênicos com respeito humano e cuidado. Esse
programa inovador lhe conferiu uma reputação de gênio clínico. Contudo, ele se desen-
cantou com o clima político no Sheppard quando foi preterido para o cargo de chefe do
novo centro de recepção que havia defendido. Em março de 1930, renunciou à sua posição
no Sheppard.
Posteriormente, naquele mesmo ano, mudou-se para Nova York e abriu um consul-
tório particular, na esperança de aumentar sua compreensão das relações interpessoais ao
investigar distúrbios não-esquizofrênicos, especialmente os de natureza obsessiva (Perry,
1982). Os tempos eram difíceis, no entanto, e sua rica clientela não apareceu na quanti-
dade necessária para a manutenção de suas despesas.
Em um aspecto mais positivo, sua residência em Nova York o colocou em contato
com vários psiquiatras e cientistas sociais de formação européia. Entre eles estavam Karen
Horney, Erich Fromm e Frieda Fromm-Riechmann, os quais, juntamente com Sullivan,
Clara Thompson e outros, formaram o grupo Zodiac, uma organização informal que se
encontrava regularmente para beber e discutir idéias novas e velhas sobre psiquiatria e
ciências sociais correlatas. Sullivan, que se havia encontrado anteriormente com Thompson,
persuadiu-a a viajar à Europa para realizar análises de treinamento com Sándor Ferenczi,
um discípulo de Freud. Sullivan aprendeu com todos os membros do grupo Zodiac e, com
Thompson e Ferenczi, sua técnica terapêutica foi indiretamente influenciada por Freud.
Sullivan também creditava a dois outros excepcionais profissionais, Adolf Meyer e William
Alanson White, um significativo impacto em sua prática terapêutica. Apesar de certa
influência freudiana sobre sua técnica terapêutica, sua teoria da psiquiatria interpessoal não
era psicanalítica nem neofreudiana.
Durante sua estada em Nova York, Sullivan também foi influenciado por vários
outros renomados cientistas sociais da Universidade de Chicago, que era o centro dos
estudos sociológicos dos Estados Unidos nas décadas de 1920 e 1930. Entre eles estavam o
psicólogo social George Herbert Mead, os sociólogos Robert Ezra Park e W. I. Thomas, o
antropólogo Edward Sapir e o cientista político Harold Lasswell. Sullivan, Sapir e Lasswell
foram os principais responsáveis pela fundação do William Alanson White Psychiatric
Foundation em Washington, D.C., com o propósito de reunir a psiquiatria a outras ciências
sociais. Sullivan ocupou a primeira presidência da fundação e também o cargo de editor do
jornal da fundação, Psychiatry. Sob a liderança de Sullivan, a fundação estabeleceu uma
instituição de treinamento conhecida como a Washington School of Psychiatry. Por causa
dessas atividades, Sullivan abandonou sua prática em Nova York, que de qualquer forma
não era muito lucrativa, e mudou-se de volta para Washington, D. C., onde permaneceu
intimamente associado à escola e ao jornal.
Em janeiro de 1949, Sullivan participou de um encontro na World Federation for
Mental Health, em Amsterdã. Quando retornava à sua residência, em 14 de janeiro de
1949, morreu vítima de hemorragia cerebral em um quarto de hotel em Paris, poucas
semanas antes de completar 57 anos. Como de hábito, estava sozinho na ocasião.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 215

Do ponto de vista pessoal, Sullivan não estava confortável com sua sexualidade e
tinha sentimentos contrários em relação ao casamento (Perry, 1982). Adulto, levou para
sua casa um menino de 15 anos, provavelmente um antigo paciente (Alexander, 1990).
Esse jovem — James Inscoe — permaneceu com Sullivan durante 22 anos, cuidando de
suas questões financeiras, digitando manuscritos e administrando sua casa de modo geral.
Embora Sullivan nunca tenha oficialmente adotado Jimmie, referia-se a ele como um filho
e até mesmo teve seu nome mudado legalmente para James I. Sullivan.

WWW
Além da Biografia Sullivan era homossexual? Para mais informações
sobre Sullivan, acesse o nosso site: http://www.mhhe.com/feist6

Sullivan também tinha atitudes dúbias quanto à sua religião. Nascido em uma famí-
lia de pais católicos, que freqüentavam a igreja com pouca regularidade, ele abandonou
muito cedo o catolicismo. Posteriormente em sua vida, seus amigos e colegas referiam-
se a ele como não-religioso e até mesmo anticatólico, mas, para sua surpresa, Sullivan
havia deixado escrito em seu testamento uma solicitação para que recebesse um enterro
católico. Aliás, sua solicitação foi atendida apesar do fato de o corpo de Sullivan ter sido
cremado em Paris. Suas cinzas retornaram aos Estados Unidos, foram colocadas em um
caixão e receberam um enterro católico completo, incluindo uma missa de réquiem.
A maior contribuição de Sullivan para a teoria da personalidade foi sua concepção
dos estágios de desenvolvimento. Antes de passarmos às suas idéias sobre os estágios de
desenvolvimento, explicaremos parte de sua terminologia singular.

Tensões
Como Freud e Jung, Sullivan (1953b) via a personalidade como um sistema de energia. A
energia pode existir tanto como tensão (potencialidade para a ação) quanto como ações
em si mesmas (transformações de energia). As transformações de energia modificam
as tensões tanto na forma de comportamentos abertos quanto de comportamentos enco-
bertos, e são dirigidas à satisfação de necessidades e à redução de ansiedade. A tensão
é uma potencialidade para a ação que pode ou não ser experimentada na consciência.
Assim, nem todas as tensões são conscientemente sentidas. Muitas, como ansiedade,
premonições, sonolência, fome e excitação sexual são sentidas, mas nem sempre em um
nível consciente. De fato, provavelmente todas as tensões são, pelo menos, distorções
parciais da realidade. Sullivan reconhecia dois tipos de tensões: necessidades e ansiedade.
As necessidades geralmente resultam em ações produtivas, enquanto a ansiedade leva a
comportamentos não-produtivos e desintegradores.

Necessidades
As necessidades são tensões produzidas pelo desequilíbrio biológico entre uma pessoa e
seu ambiente fisioquímico, tanto dentro quanto fora do organismo. São episódicas — uma
vez que tenham sido satisfeitas, perdem seu poder temporariamente, mas, após certo
tempo, podem voltar a ocorrer. Embora as necessidades a princípio tenham um compo-
nente biológico, muitas delas surgem a partir da situação interpessoal. A necessidade
interpessoal mais básica é o afeto. Um bebê desenvolve uma necessidade de receber afeto
de seu cuidador primário (denominado por Sullivan de “cuidador materno”). Diferente de
outras necessidades, o afeto exige ações de pelo menos duas pessoas. A necessidade de um
216 Parte II Teorias Psicodinâmicas

bebê de receber afeto, por exemplo, pode ser expressa por meio de um choro, um sorriso
ou um gemido, enquanto a necessidade da mãe de dar afeto pode ser transformada em
toque, carícia ou colo. Nesse exemplo, a necessidade de afeto é satisfeita pelo uso da boca
da criança e das mãos da mãe.
O afeto é uma necessidade geral porque se relaciona ao bem-estar geral de uma
pessoa. As necessidades gerais, que incluem oxigênio, alimento e água, opõem-se às
necessidades zonais, que surgem em uma área particular do corpo. Várias áreas do corpo
são vitais para a satisfação tanto de necessidades gerais quanto de necessidades zonais.
A boca, por exemplo, satisfaz as necessidades gerais ao ingerir alimento e oxigênio, mas
também satisfaz a necessidade zonal de atividade oral. As mãos, também, podem ser
utilizadas para satisfazer a necessidade geral de afeto, mas podem, da mesma forma,
ser empregadas para satisfazer as necessidades humanas de atividade manual. De modo
similar, outras áreas do corpo, tais como o ânus e os genitais, podem ser usados para sa-
tisfazer ambos os tipos de necessidades.
Logo no começo de nossas vidas, as várias zonas do corpo começam a desempenhar
um papel significativo e duradouro nas relações interpessoais. Enquanto satisfaz suas
necessidades de alimento, água etc., uma criança produz mais energia do que a necessária,
e esse excesso de energia é transformado em modos de comportamento característicos,
que Sullivan denominava dinamismos.

Ansiedade
Um segundo tipo de tensão, a ansiedade, distingue-se das tensões por necessidades por
ser mais difusa e vaga e não demandar nenhuma ação consistente para seu alívio. Caso
as crianças careçam de alimento (uma necessidade), seu curso de ação é claro; mas, ca-
so sejam ansiosas, pouco podem fazer para escapar daquela ansiedade.
Como se origina a ansiedade? Sullivan (1953b) postulava que ela é transferida do
pai para a criança pelo processo de empatia. A ansiedade no cuidador materno inevita-
velmente induz a ansiedade na criança. Como todas as mães têm algum tipo de ansiedade
enquanto cuidam de seus bebês, todas as crianças se tornarão ansiosas em certa medida.
Da mesma forma como a criança não tem a capacidade de reduzir a ansiedade, os
pais tampouco têm meios efetivos para lidar com a ansiedade do bebê. Quaisquer sinais
de ansiedade ou insegurança demonstrados pela criança provavelmente levarão a tenta-
tivas, por parte dos pais, de satisfazer as necessidades dela. Por exemplo: uma mãe pode
alimentar um bebê ansioso que chora porque confunde fome com ansiedade. Se o bebê
hesita quanto a aceitar o leite, a mãe pode, ela mesma, ficar mais ansiosa, o que produz
ansiedade adicional na criança. Finalmente, a ansiedade do bebê atinge um nível que in-
terfere na sucção e na deglutição. A ansiedade, então, opera em oposição às tensões por
necessidade e as impede de ser satisfeitas.
A ansiedade também possui um efeito destrutivo sobre os adultos. É a principal
força destrutiva que impede o desenvolvimento de relações interpessoais saudáveis.
Sullivan (1953b) associava a ansiedade severa a um golpe na cabeça. Ela incapacita
as pessoas a aprender, prejudica a memória, estreita a percepção e pode resultar em
amnésia total. É única entre as tensões no sentido em que mantém o status quo mesmo
em detrimento do indivíduo. Enquanto as outras tensões resultam em ações direcionadas
especificamente para seu alívio, a ansiedade produz comportamentos que (1) impedem as
pessoas de aprender com seus erros, (2) mantêm-nas em uma busca infantil por um desejo
de segurança, e (3) geralmente garantem que as pessoas não aprenderão a partir de suas
próprias experiências.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 217

Sullivan insistia em que a ansiedade e a solidão são únicas entre todas as experiên-
cias pelo fato de serem totalmente rejeitáveis e indesejadas. Como a ansiedade é dolorosa,
as pessoas possuem uma tendência natural para evitá-la, preferindo, de modo dependente,
um estado de euforia, ou uma completa ausência de tensão. Sullivan (1954) resumia seu
conceito com uma afirmação simples: “a presença da ansiedade é muito pior do que sua
ausência” (p. 100).
Sullivan distinguia ansiedade e medo de muitas formas importantes. Primeiro, a
ansiedade geralmente deriva de situações interpessoais complexas e é apenas vagamente
representada na consciência; o medo é percebido com mais clareza, e suas origens podem
ser mais nitidamente assinaladas. Em segundo lugar, a ansiedade não tem nenhum valor
positivo. Apenas quando transformada em outra tensão (raiva ou medo, por exemplo) é
que ela pode levar a ações construtivas. Em terceiro lugar, a ansiedade bloqueia a satis-
fação das necessidades, enquanto o medo algumas vezes auxilia as pessoas a satisfazer
certas necessidades. Esta oposição à satisfação das necessidades é expressa em palavras
que podem ser consideradas como a definição de Sullivan de ansiedade: “A ansiedade é
uma tensão em oposição às tensões das necessidades e à ação apropriada para seu alívio”
(Sullivan, 1953b, p. 44).

Transformações de Energias
As tensões que são transformadas em ações, sejam abertas ou encobertas, são chamadas
de transformações de energias. Esse termo, um tanto estranho, simplesmente refere-se a
nossos comportamentos direcionados à satisfação de necessidades e à redução de ansie-
dade — as duas grandes tensões. Nem todas as transformações de energia são ações aber-
tas, óbvias; muitas podem assumir a forma de emoções, pensamentos ou comportamentos
encobertos que podem ser ocultados das outras pessoas.

Dinamismos
As transformações de energias organizam-se como padrões de comportamento típicos
que caracterizam uma pessoa ao longo de sua vida. Sullivan (1953b) chamava esses
padrões de comportamento por dinamismos, um termo cujo sentido aproxima-se de tra-
ços ou de hábitos. Os dinamismos podem ser de duas grandes classes: primeiro, aqueles
relacionados a zonas específicas do corpo, incluindo a boca, o ânus e os genitais; e, em
segundo lugar, aqueles relacionados às tensões. Essa segunda classe é composta de três
categorias — a disjuntiva, a isoladora e a conjuntiva. Os dinamismos disjuntivos incluem
todos aqueles padrões destrutivos de comportamento relacionados ao conceito de male-
volência; os dinamismos isoladores incluem os padrões de comportamento (como a sen-
sualidade) dissociados das relações interpessoais; e os dinamismos conjuntivos incluem
padrões de comportamento benéficos, como intimidade e auto-sistema.

Malevolência
A malevolência é o dinamismo disjuntivo do mal e do ódio, caracterizado por um sen-
timento de viver entre inimigos (Sullivan, 1953b). Ela surge a partir dos 2 ou 3 anos de
idade, quando as ações infantis que anteriormente haviam gerado o afeto materno são
rejeitadas, ignoradas ou recebidas com ansiedade e dor. Quando os pais tentam controlar
o comportamento das crianças por meio de dor física ou de comentários de reprovação,
algumas crianças aprendem a reprimir quaisquer expressões da necessidade de afeto e a
proteger-se pela adoção de uma atitude maldosa. Os pais e seus substitutos, então, passam
a achar cada vez mais difícil reagir com ternura, o que, por sua vez, solidifica a atitude
negativa da criança em relação ao mundo. As ações maldosas freqüentemente tomam
218 Parte II Teorias Psicodinâmicas

Os relacionamentos íntimos mais significativos antes da puberdade geralmente são do tipo menino-
menino ou menina-menina, de acordo com Sullivan.

a forma de timidez, mau comportamento, crueldade ou de outros tipos de comportamento


associal ou anti-social. Sullivan expressou a atitude malevolente com essa declaração bem-
humorada: “Era uma vez uma época onde tudo era adorável, mas isso era antes de eu ter
de lidar com as pessoas” (p. 216).

Intimidade
A intimidade surge a partir da necessidade inicial de afeto, mas é mais específica do
que esta e envolve um relacionamento interpessoal mais íntimo entre duas pessoas de
status aproximadamente semelhantes. A intimidade não deve ser confundida com inte-
resse sexual. Na realidade, ela desenvolve-se antes da puberdade, teoricamente durante a
pré-adolescência, quando, em geral, existe entre duas crianças, cada uma das quais en-
xerga a outra como uma pessoa de igual valor. Uma vez que a intimidade é um dinamismo
que exige um parceiro semelhante, ela normalmente não existe em relacionamentos pais/
filhos, a menos que ambos sejam adultos e que se vejam como iguais.
A intimidade é um dinamismo integrador que tende a extrair reações amorosas da
outra pessoa, diminuindo, dessa forma, a ansiedade e a solidão, duas experiências bastante
dolorosas. Como a intimidade nos auxilia a evitar a ansiedade e a solidão, ela é uma experiên-
cia recompensadora desejada pela maior parte das pessoas saudáveis (Sullivan, 1953b).

Sensualidade
Por sua vez, a sensualidade é uma tendência isolada que não exige nenhuma outra pessoa
para sua satisfação. Manifesta-se como um comportamento auto-erótico, mesmo quando
a outra pessoa é o objeto do desejo sexual. A libido é um dinamismo especialmente
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 219

poderoso durante a adolescência, um período que, com freqüência, leva a uma redução da
auto-estima. As tentativas de atividades sensuais geralmente são rejeitadas pelas outras
pessoas, o que aumenta a ansiedade e diminui os sentimentos de valor próprio. Além disso,
a sensualidade geralmente dificulta um relacionamento íntimo, especialmente durante a
adolescência, quando freqüentemente é confundida com atração sexual.

Auto-sistema
O mais complexo e inclusivo de todos os dinamismos é o auto-sistema, um padrão consis-
tente de comportamentos que mantêm a segurança interpessoal do indivíduo ao protegê-
lo da ansiedade. Assim como a intimidade, o auto-sistema é um dinamismo conjuntivo
que surge de uma situação interpessoal. No entanto, ele se desenvolve mais cedo do que
a intimidade, entre 12 e 18 meses. À medida que as crianças desenvolvem inteligência e
previsão, tornam-se capazes de aprender quais comportamentos estão relacionados a um
aumento ou diminuição da ansiedade. Essa capacidade de detectar leves aumentos ou
reduções de ansiedade proporciona ao auto-sistema um dispositivo de alerta associado.
O alerta, no entanto, traz uma vantagem ambígua. Por um lado, serve como um
sinal, alertando as pessoas para uma crescente ansiedade e dando-lhes oportunidade para
proteger-se. Por outro lado, o desejo de proteção contra a ansiedade torna o auto-sistema
resistente à mudança e impede que as pessoas obtenham ganhos a partir de experiências
com ansiedade. Como a tarefa primordial do auto-sistema é proteger as pessoas da ansie-
dade, ele é o “principal obstáculo para as mudanças favoráveis de personalidade” (Sullivan,
1953b, p. 169). Sullivan (1964), no entanto, acreditava que a personalidade não é estática e
está aberta à mudança no começo dos vários estágios de desenvolvimento.
À medida que o auto-sistema se desenvolve, as pessoas começam a formar uma
imagem consistente de si próprias. Deste ponto em diante, quaisquer experiências inter-
pessoais que percebam como contrárias a sua auto-referência ameaçam sua segurança.
Como conseqüência, as pessoas tentam defender-se das tensões interpessoais por meio
de operações de segurança, cujo propósito é reduzir os sentimentos de insegurança
ou de ansiedade que resultam de uma auto-estima ameaçada. Os indivíduos tendem a negar
ou distorcer experiências interpessoais que conflitam com sua auto-referência. Quando as
pessoas que se atribuem um valor excessivo, por exemplo, são chamadas incompetentes,
podem escolher acreditar que o ofensor é burro ou, talvez, que só esteja brincando. Sullivan
(1953b) chamava as operações de segurança de “um freio poderoso do progresso pessoal
e humano” (p. 374).
Duas importantes operações de segurança são a dissociação e a desatenção seletiva.
A dissociação inclui aqueles impulsos, desejos e necessidades que uma pessoa se recusa
a aceitar na consciência. Algumas experiências infantis tornam-se dissociadas quando
o comportamento de um bebê não é recompensado ou punido, de forma que aquelas
experiências simplesmente não se tornam parte do auto-sistema. As experiências adultas
muito estranhas aos padrões de conduta de um indivíduo também podem tornar-se dis-
sociadas. Essas experiências não deixam de existir, mas continuam a influenciar a perso-
nalidade em um nível inconsciente. As imagens dissociadas manifestam-se em sonhos,
devaneios e outras atividades involuntárias fora da consciência, e são dirigidas no sentido
de manter a segurança interpessoal (Sullivan, 1953b).
O controle do foco da consciência, chamado desatenção seletiva, é uma recusa
do indivíduo em ver aquelas coisas que ele não deseja enxergar. Ela se distingue da dis-
sociação tanto em grau quanto em origem. As experiências seletivamente ignoradas são
220 Parte II Teorias Psicodinâmicas

mais acessíveis à consciência e de alcance mais limitado. Surgem após estabelecermos


um auto-sistema, e são geradas por nossas tentativas de bloquear as experiências não coe-
rentes com nosso auto-sistema existente. As pessoas que se referem a si mesmas como
motoristas rigorosamente obedientes à lei, por exemplo, podem “esquecer” as muitas
situações em que excederam o limite de velocidade ou em que não respeitam o sinal ver-
melho. Assim como as experiências dissociadas, as percepções seletivamente ignoradas
permanecem ativas ainda que não sejam totalmente conscientes. São cruciais na determi-
nação de quais elementos de uma experiência serão percebidos e quais serão ignorados
ou negados (Sullivan, 1953b).

Personificações
Iniciando-se na infância e prosseguindo ao longo dos vários estágios de desenvolvimento,
as pessoas adquirem certas imagens de si mesmas e dos outros. Essas imagens, chamadas
personificações, podem ser relativamente acuradas ou, por serem influenciadas pelas
necessidades e ansiedades do indivíduo, podem ser profundamente distorcidas. Sullivan
(1953b) descrevia três personificações básicas que se desenvolviam durante a infância — a
mãe boa, a mãe má e o eu. Além disso, algumas crianças adquirem uma personificação
eidética (amigo imaginário) durante a infância.

A Mãe Boa e a Mãe Má


A noção de Sullivan da mãe boa e da mãe má é similar ao conceito de Klein do seio bom
e do seio mau. A personificação da mãe má, de fato, deriva-se das experiências da criança
com o seio mau, ou seja, o que não satisfaz as necessidades de alimento. Quer pertença à
mãe, quer pertença a uma mamadeira oferecida pela mãe, pelo pai, por uma enfermeira ou
por qualquer outra pessoa, isso não importa. A personificação da mãe má é completamente
indistinta, contanto que inclua todos os envolvidos na situação de alimentação. Ela não é
uma imagem apurada da mãe “real”, mas apenas a vaga representação da criança de não
ser corretamente alimentada.
Após a personificação da mãe má ser formada, uma criança irá adquirir uma perso-
nificação da mãe boa com base nos comportamentos afetivos e cooperativos do cuidador
materno. Essas duas personificações, uma embasada nas percepções da criança quanto a
uma mãe ansiosa e maldosa e uma outra fundamentada em uma mãe calma e afetiva, com-
binam-se para formar uma personificação complexa, composta de qualidades contrastantes
projetadas sobre a mesma pessoa. Até que a criança desenvolva a linguagem, no entanto,
essas duas imagens opostas de mãe podem facilmente coexistir (Sullivan, 1953b).

Personificações do Eu
Durante a meia-infância, a criança adquire três personificações (eu mau, eu bom e não-eu)
que formam os elementos construtores da personificação do self. Cada um deles relaciona-
se ao conceito em evolução do eu ou do meu corpo. A personificação do eu mau é criada a
partir de experiências de punição e de desaprovação que as crianças recebem de seus cuida-
dores maternos. A ansiedade resultante é suficientemente forte para ensinar às crianças que
elas são más, mas não é grave o bastante para fazer com que a experiência seja dissociada
ou seletivamente ignorada. Como todas as personificações, o eu mau é moldado a partir
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 221

de uma situação interpessoal, ou seja, as crianças apenas podem aprender que são más a
partir de outra pessoa, normalmente a mãe má.
A personificação do eu bom resulta das experiências das crianças com recompensa
e aprovação. Elas sentem-se bem em relação a si mesmas quando percebem as expressões
de afeto de sua mãe. Tais experiências diminuem a ansiedade e estimulam a personificação
do eu bom. Uma ansiedade grande e repentina, no entanto, pode fazer que a criança forme
a personificação do não-eu e passe a dissociar ou a ignorar seletivamente as experiências
relacionadas àquela ansiedade. Uma criança nega essas experiências à imagem do eu para
que estas se tornem parte da personificação do não-eu. Essas personificações do não-eu
sombrias também são encontradas em adultos e expressas em sonhos, episódios esquizofrê-
nicos e outras reações dissociadas. Sullivan acreditava que essas experiências aterradoras
são sempre precedidas de um aviso. Quando adultos são atacados por uma ansiedade severa
abrupta, são dominados por uma emoção estranha. Embora essa experiência incapacite as
pessoas em seus relacionamentos interpessoais, ela serve como um sinal valioso da apro-
ximação de reações esquizofrênicas. Essa emoção estranha pode ser sentida em sonhos ou
pode assumir a forma de espanto, horror, ódio ou um “calafrio” (Sullivan, 1953b).

Personificações Eidéticas
Nem todas as relações interpessoais ocorrem com pessoas reais; algumas são personi-
ficações eidéticas, ou seja, traços irreais ou amigos imaginários que muitas crianças
inventam para proteger suas auto-estimas. Sullivan (1964) acreditava que esses amigos
imaginários podem ser tão significativos para o desenvolvimento das crianças quanto
colegas reais.
As personificações eidéticas, no entanto, não são limitadas às crianças; a maioria
dos adultos vê traços fictícios em outras pessoas. As personificações eidéticas podem
criar conflito em relações interpessoais quando as pessoas projetam sobre outras os traços
imaginários remanescentes de relacionamentos anteriores. Elas também podem dificultar
a comunicação e impedir as pessoas de operar no mesmo nível de cognição.

Níveis de Cognição
Sullivan dividia a cognição em três níveis ou modelos de experiência: prototáxico, pa-
ratáxico e sintáxico. Os níveis de cognição referem-se às formas de perceber, imaginar e
conceber. As experiências no nível prototáxico são impossíveis de serem comunicadas; as
experiências paratáxicas são pessoais, pré-lógicas e comunicadas apenas de uma forma
distorcida; e cognição sintáxica é a comunicação interpessoal significativa.

Nível Prototáxico
As experiências iniciais e mais primitivas de uma criança ocorrem em um nível
prototáxico. Como essas experiências não podem ser comunicadas aos outros, elas são
difíceis de definir ou descrever. Uma forma para compreender esse termo é imaginar as
primeiras experiências de um bebê recém-nascido. Essas experiências devem, de alguma
forma, relacionar-se a diferentes zonas do corpo. Um neonato sente fome e dor, e essas
experiências prototáxicas resultam em ações observáveis, por exemplo, de sugar ou de
chorar. A criança não conhece o motivo para as ações e não vê nenhuma relação entre
222 Parte II Teorias Psicodinâmicas

essas ações e o fato de ser alimentado. Como experiências indiferenciadas, os eventos


prototáxicos estão além da lembrança consciente.
Em adultos, as experiências prototáxicas assumem a forma de sensações, imagens,
sentimentos, humores e impressões momentâneas. Essas imagens primitivas de sonho e
de vida desperta são pouco percebidas ou completamente inconscientes. Embora as pes-
soas sejam capazes de comunicar essas imagens, algumas vezes elas dizem a outros que
tiveram uma estranha sensação, que não conseguem expressar em palavras.

Nível Paratáxico
As experiências paratáxicas são pré-lógicas e em geral ocorrem quando uma pessoa
assume um relacionamento de causa e efeito entre dois eventos que acontecem por coinci-
dência. As cognições paratáxicas são distinguidas mais claramente do que as experiências
prototáxicas, mas seu significado permanece particular. Dessa forma, podem ser comuni-
cadas aos outros apenas de forma distorcida.
Um exemplo de pensamento paratáxico pode ser encontrado quando uma criança é
condicionada a dizer “por favor” para receber um doce. Caso “doce” e “por favor” ocor-
ram simultaneamente várias vezes, a criança pode enfim chegar à conclusão ilógica de que
suas súplicas produziram o surgimento do doce. Essa conclusão é a distorção paratáxica,
ou uma crença ilógica de que existe um relacionamento de causa e efeito entre dois even-
tos de proximidade temporal. No entanto, exclamar a expressão “por favor”, por si só, não
faz o doce surgir. Um doador deve estar presente, ouvir a expressão e estar apto e disposto
a atender à solicitação. Quando tal pessoa não está presente, uma criança pode pedir a
Deus ou a um amigo imaginário que lhe conceda favores. Boa parte do comportamento
adulto provém de um pensamento paratáxico similar.

Nível Sintáxico
Experiências que são validadas consensualmente e que podem ser comunicadas de ma-
neira simbólica ocorrem em um nível sintáxico. Experiências validadas consensualmente
são aquelas sobre cujo significado concordam duas ou mais pessoas. As palavras, por
exemplo, são consensualmente validadas porque pessoas diferentes concordam mais ou
menos com seu significado. Os símbolos mais comuns utilizados por uma pessoa para se
comunicar com outra são aqueles da linguagem, inclusive as palavras e os gestos.
Sullivan especulava que o primeiro exemplo de cognição sintáxica aparece sempre
que um som ou gesto começa a ter o mesmo significado para os pais e para a criança. O nível
sintáxico de cognição torna-se mais totalmente aparente à medida que a criança começa a
desenvolver a linguagem formal, mas nunca substitui totalmente as cognições prototáxica e
paratáxica. As experiências adultas ocorrem em todos os três níveis.
Em resumo, Sullivan identificava dois tipos de experiência — tensões e transfor-
mações de energia. As tensões, ou potencialidades para a ação, incluem necessidades
e ansiedade. Enquanto as necessidades são úteis ou conjuntivas quando satisfeitas, a
ansiedade é sempre disjuntiva, interferindo na satisfação das necessidades e destruindo
os relacionamentos interpessoais. As transformações de energias envolvem literalmente
a transformação de energia potencial em energia real (comportamento), com o propósito
de satisfazer as necessidades ou de reduzir a ansiedade. Alguns desses comportamentos
formam padrões de comportamento consistentes, denominados dinamismos. Sullivan
também reconhecia três níveis de cognição — prototáxico, paratáxico e sintáxico. A
Tabela 8.1 resume o conceito de personalidade de Sullivan.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 223

TA B E L A 8 . 1
Resumo da Teoria da Personalidade de Sullivan
I. Tensões (potencial para a ação)
A. Necessidades (conjuntivas; ajudam a integrar a personalidade)
1. Necessidades gerais (facilitam o bem-estar geral de uma pessoa)
a. Interpessoal (afeto, intimidade e amor)
b. Fisiológica (alimento, oxigênio, água etc.)
2. Necessidades zonais (também podem satisfazer necessidades gerais)
a. Oral
b. Genital
c. Manual
B. Ansiedade (disjuntiva; interfere na satisfação das necessidades)
II. Transformações de energias (ações abertas ou encobertas elaboradas para satisfazer
necessidades ou reduzir ansiedade. Algumas transformações de energias tornam-se
padrões de comportamento relativamente consistentes, chamados dinamismos)
III. Dinamismos (traços ou padrões comportamentais)
A. Malevolência (um sentimento de viver em um país inimigo).
B. Intimidade (uma experiência integradora marcada por um relacionamento pessoal
íntimo com outra pessoa de status aproximadamente igual)
C. Sensualidade (um dinamismo isolador caracterizado por um interesse sexual
impessoal por outra pessoa)
IV. Níveis de Cognição (formas de perceber, imaginar e conceber)
A. Prototáxico (experiências indiferenciadas completamente pessoais)
B. Paratáxico (experiências pré-lógicas comunicadas aos outros apenas
de uma forma distorcida)
C. Sintáxico (experiências validadas consensualmente que podem ser
adequadamente comunicadas de forma precisa aos outros)

Estágios de Desenvolvimento
Sullivan (1953b) postulou sete fases ou estágios de desenvolvimento, cada um deles cru-
cial para a formação da personalidade humana. O fio condutor das relações interpessoais
passa pelos estágios; as outras pessoas são indispensáveis ao desenvolvimento de um
indivíduo, desde a infância até a fase adulta.
A mudança de personalidade pode ocorrer em qualquer ocasião, mas tem uma
probabilidade maior de ocorrer durante a transição de um estágio para o estágio seguinte.
Na verdade, esses períodos de transição são mais cruciais do que os estágios em si.
Experiências dissociadas previamente ou ignoradas seletivamente podem entrar no
auto-sistema durante um dos períodos de transição. Sullivan sugeria que, “à medida que
uma pessoa ultrapassa algum desses limiares mais ou menos determinados de um estágio
de desenvolvimento para outro, tudo o que havia acontecido antes se torna racionalmente
aberto a influências” (p. 227).
224 Parte II Teorias Psicodinâmicas

Seus sete estágios são primeira infância, infância, idade juvenil, pré-adolescência,
adolescência inicial, adolescência posterior e idade adulta.

Primeira Infância
A primeira infância inicia-se com o nascimento e continua até que a criança desenvolva um
discurso articulado ou sintáxico, normalmente entre os 18 e os 24 meses. Sullivan acreditava
que uma criança se torna um humano por meio do afeto recebido do cuidador materno. A sa-
tisfação de quase todas as necessidades humanas demanda a cooperação de outra pessoa. As
crianças não podem sobreviver sem um cuidador materno para proporcionar-lhes alimento,
abrigo, temperatura moderada, contato físico e a limpeza dos dejetos orgânicos.
A ligação empática entre a mãe e a criança leva, inevitavelmente, ao desenvolvi-
mento de ansiedade em relação ao bebê. Sendo humana, a mãe entra no relacionamento
com algum grau de ansiedade previamente adquirida. Sua ansiedade pode derivar de uma
dentre várias experiências, mas a primeira ansiedade da criança está sempre associada à
situação de alimentação e à zona oral. Em contraste com a mãe, o repertório de compor-
tamentos da criança não é adequado para lidar com a ansiedade. Dessa forma, sempre
que as crianças se sentem ansiosas (uma condição originalmente transmitida a ela pela
mãe), elas tentarão empregar quaisquer meios para reduzir a ansiedade. Essas tentativas
incluem normalmente a rejeição do seio, mas isso não consegue nem reduzir a tensão nem
satisfazer a necessidade de alimento. A rejeição do seio por uma criança, obviamente, não
é responsável pela ansiedade original da mãe, mas contribui para tanto. Por fim, a criança
distingue entre o seio bom e o seio mau: o primeiro associado à euforia relativa ao pro-
cesso de alimentação e o segundo ligado a uma ansiedade contínua (Sullivan, 1953b).
Uma criança expressa tanto ansiedade quanto fome pelo choro. O cuidador materno
pode confundir ansiedade com fome e forçar o seio a uma criança ansiosa (mas não fa-
minta). A situação oposta também pode ocorrer quando a mãe, por qualquer razão, falha
ao satisfazer as necessidades do bebê. O bebê experimentará então ódio, que aumentará
a ansiedade da mãe e interferirá em sua habilidade de cooperar com seu bebê. Com uma
tensão cada vez maior, a criança perde a capacidade de satisfazer-se, mas a necessidade
de alimento, é claro, continua a aumentar. Finalmente, à medida que a tensão se apro-
xima do terror, a criança sente dificuldades em respirar. O bebê pode até mesmo deixar
de respirar e assumir uma coloração azulada, mas as proteções embutidas da apatia e
do desapego sonolento impedem que a criança morra. A apatia e o desapego sonolento
permitem que a criança adormeça apesar da fome (Sullivan, 1953b).
Durante o processo de alimentação, a criança não recebe apenas alimento, mas tam-
bém satisfaz algumas necessidades de afeto. O afeto recebido pela criança, nesse período,
exige a cooperação do cuidador materno e apresenta à criança várias estratégias exigidas
pela situação interpessoal. O relacionamento entre mãe e criança, no entanto, é como uma
moeda de duas faces. A criança desenvolve uma personificação ambígua da mãe, enxer-
gando-a tanto como boa quanto como má; a mãe é boa quando satisfaz as necessidades do
bebê e má quando estimula a ansiedade.
Em torno da metade da primeira infância, as crianças aprendem como comunicar-
se pela linguagem. No começo, sua linguagem não é validada por algum consenso, mas
ocorre em um nível individualizado ou paratáxico. Esse período da primeira infância é
caracterizado por uma linguagem autista, ou seja, uma linguagem particular que faz pouco
ou nenhum sentido para as outras pessoas. As primeiras comunicações acontecem na forma
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 225

de expressões faciais e sonorização de vários fonemas. Ambos são apreendidos por repe-
tição, e gestos e palavras balbuciadas eventualmente possuem o mesmo significado para a
criança e para as demais pessoas. Essa comunicação marca o início da linguagem sintáxica
e o fim da primeira infância.

Infância
O período da infância inicia-se com o advento da linguagem sintáxica e continua até o
aparecimento da necessidade de amigos de status semelhante. A infância varia entre cul-
turas e indivíduos, mas nas sociedades ocidentais abrange o período compreendido entre
os 18 e os 24 meses e aproximadamente os 5 ou 6 anos.
Durante esse estágio, a mãe permanece a outra pessoa mais significativa, mas seu
papel é diferente daquele desempenhado durante a primeira infância. As personificações
duais da mãe são agora fundidas em uma só, e a percepção da criança em relação à mãe
é mais congruente com a mãe “real”. Apesar disso, as personificações de mãe boa e mãe
má geralmente são retidas em um nível paratáxico. Além de combinar as personificações
da mãe, a criança distingue as várias pessoas que anteriormente formaram o conceito
de cuidador materno, separando mãe e pai e enxergando cada um deles como tendo
papéis distintos.
Aproximadamente nesse mesmo período, as crianças fundem as personificações
do eu em um único autodinamismo. Uma vez que estabelecem linguagem sintáxica, não
podem mais lidar conscientemente com o eu bom e o eu mau ao mesmo tempo; agora,
classificam o comportamento como bom ou mau imitando o comportamento de seus pais.
Contudo, essas classificações distinguem-se das velhas personificações da infância por-
que são simbolizadas em um nível sintáxico, e porque se originam do comportamento das
crianças em vez de surgirem do aumento e da diminuição de seus níveis de ansiedade.
Além disso, o bem e o mal agora implicam valor moral ou social e não mais se referem à
ausência ou à presença de uma tensão dolorosa chamada ansiedade.
Durante a infância, as emoções tornam-se recíprocas; uma criança é capaz de dar
e receber afeto. O relacionamento entre a mãe e a criança torna-se mais pessoal e menos
unilateral. Em vez de ver a mãe como boa ou má com base apenas na forma pela qual esta
satisfaz as necessidades de alimento, a criança avalia a mãe de um modo mais sintáxico,
conforme a eventualidade de ela demonstrar ou não sentimentos recíprocos de afeto,
desenvolver um relacionamento fundamentado na satisfação mútua de necessidades ou
exibir uma atitude de rejeição.
Além de seus pais, as crianças em idade pré-escolar freqüentemente possuem um
outro relacionamento significativo — o amigo imaginário. Esse amigo capacita a criança
a um relacionamento são e seguro, que produz pouca ansiedade. Os pais algumas vezes
observam seus filhos pré-escolares conversando com um amigo imaginário, chamando-o
pelo nome e possivelmente até mesmo insistindo no oferecimento de um lugar extra na
mesa ou em suas camas. Paralelamente, muitos adultos podem lembrar-se de suas próprias
experiências de infância com amigos imaginários. Sullivan insistia em que ter um amigo
imaginário não é um sinal de instabilidade ou patologia, mas um evento positivo que
auxilia as crianças a tornar-se prontas para a intimidade com amigos reais durante o es-
tágio pré-adolescente. Esses amigos oferecem à criança uma oportunidade para interagir
com outra “pessoa” segura e que não aumentará seu nível de ansiedade. Esse relaciona-
mento tranqüilo e não-ameaçador com um amigo imaginário permite às crianças torna-
rem-se mais independentes dos pais e a fazerem amigos nos anos seguintes.
226 Parte II Teorias Psicodinâmicas

Sullivan (1953b) referia-se à infância como um período de rápida aculturação. Além


de adquirir linguagem, as crianças aprendem os padrões culturais de limpeza, higiene
pessoal, hábitos alimentares e expectativas associadas aos papéis sexuais. Elas também
aprendem dois outros processos importantes: dramatizações e preocupações. As drama-
tizações são tentativas de agir ou soar como figuras de autoridade significativas, especial-
mente as de mãe e de pai. As preocupações são estratégias para evitar a ansiedade e as
situações assustadoras, pelas quais a criança se mantém ocupada com uma atividade que
costumava ser útil ou recompensadora.
A atitude maldosa atinge seu ápice durante os anos pré-escolares, proporcionando
a algumas crianças um intenso sentimento de viver em um país hostil ou inimigo. Ao
mesmo tempo, elas aprendem que a sociedade estabeleceu algumas restrições em torno
de sua liberdade. A partir desses limites e das experiências com aprovação e reprovação,
as crianças desenvolvem seu autodinamismo, que as ajuda a lidar com a ansiedade e a
estabilizar suas personalidades. De fato, o auto-sistema introduz tanta estabilidade que
torna as futuras mudanças excessivamente difíceis.

Idade Juvenil
A idade juvenil inicia-se com o aparecimento da necessidade de iguais ou de colegas de
mesmo status e termina quando o indivíduo encontra um único amigo para satisfazer suas
necessidades de intimidade. Nos Estados Unidos, a idade juvenil acompanha aproxima-
damente os primeiros três anos de escola, começando próximo das idades de 5 ou 6 anos
e encerrando em torno dos oito anos e meio. (É interessante o fato de que Sullivan tenha
sido tão específico quanto à idade em que se encerra esse período e se inicia o estágio
pré-adolescente. Lembre-se que Sullivan tinha 8 anos e meio quando iniciou um relacio-
namento com um menino de 13 anos de uma fazenda próxima.)
Durante o estágio juvenil, acreditava Sullivan, uma criança deveria aprender a com-
petir, comprometer-se e cooperar. O grau de competição encontrado entre crianças dessa

Durante o estágio juvenil, as crianças precisam aprender a competir, cooperar e comprometer-se.


Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 227

idade varia de acordo com a cultura, mas Sullivan acreditava que as pessoas nos Estados
Unidos geralmente davam excessiva ênfase à competição. Muitas crianças acreditavam
que deveriam ser competitivas para ser bem-sucedidas. O compromisso também pode
ser excessivo. Uma criança de 7 anos que aprende continuamente a ceder aos outros está
em desvantagem no processo de socialização, e esse traço de submissão pode continuar
a caracterizar o indivíduo ao longo de sua vida. A cooperação inclui todos os processos
necessários para possibilitar a convivência com os outros. Na idade juvenil, a criança deve
aprender a cooperar com os outros no mundo real dos relacionamentos interpessoais. A
cooperação é um passo crítico na socialização, e é a tarefa mais importante com a qual as
crianças são confrontadas neste estágio de desenvolvimento.
Durante a idade juvenil, as crianças associam-se a outras de igual estatura. Os rela-
cionamentos um a um são raros, mas, caso existam, têm maiores chances de embasar-se
em conveniência do que em uma intimidade genuína. Meninos e meninas brincam entre
si com pouca consideração quanto ao sexo um do outro. Embora relacionamentos diádicos
(entre duas pessoas) permanentes ainda estejam no futuro, as crianças dessa idade come-
çam a realizar distinções entre elas e a distinguir os adultos. Elas vêem um professor como
um indivíduo mais gentil do que os demais, ou um dos pais como mais indulgente do que o
outro. O mundo real está entrando mais claramente em foco, permitindo-lhes operar cada
vez mais no nível sintáxico.
Até o fim do estágio juvenil, uma criança deverá ter desenvolvido uma orientação
em relação à vida, a qual tornará mais fácil lidar consistentemente com a ansiedade,
satisfazer as necessidades zonais e de afeto e estabelecer metas baseadas na memória e
na previsão. Essa orientação em relação à vida prepara a pessoa para os relacionamentos
interpessoais mais profundos que se seguirão (Sullivan, 1953b).

Pré-adolescência
A pré-adolescência, que se inicia com a idade de oito anos e meio e termina na adolescên-
cia, é um período de intimidade com uma pessoa específica, em geral alguém do mesmo
gênero. Todos os estágios anteriores foram egocêntricos, nos quais as amizades foram for-
madas com base no auto-interesse. Um pré-adolescente, pela primeira vez, assume um in-
teresse honesto por outra pessoa. Sullivan (1953a) chamava esse processo de tornar-se um
ser social de “o milagre silencioso da pré-adolescência” (p. 41), uma provável referência à
transformação de personalidade experimentada durante sua própria pré-adolescência.
A característica mais excepcional da pré-adolescência é o surgimento da capacidade
de amar. Anteriormente, todos os relacionamentos interpessoais se baseavam na satisfa-
ção das necessidades pessoais, mas durante a pré-adolescência, a intimidade e o amor
tornam-se a essência das amizades. A intimidade envolve um relacionamento em que
os dois parceiros chegam a um consenso e atestam, de forma recíproca, o valor pessoal
um do outro. O amor existe “quando a satisfação ou a segurança da outra pessoa torna-
se uma parte significativa para o indivíduo, como se isso fosse sua própria satisfação ou
segurança” (Sullivan, 1953a, p. 42–43).
Um relacionamento íntimo pré-adolescente geralmente envolve outra pessoa do
mesmo sexo e quase da mesma idade ou de status social semelhante. As paixões por pro-
fessores ou estrelas de cinema não são relacionamentos íntimos porque não são validados
por ambas as partes. Os relacionamentos significativos dessa idade são, em geral, do tipo
menino-menino ou menina-menina. Ser valorizado por um dos seus iguais é mais impor-
tante para o pré-adolescente do que ser querido por pais ou professores. Os colegas são
capazes de expressar livremente opiniões e emoções entre si sem medo de humilhação
ou de constrangimento. Esse intercâmbio livre de pensamentos e de sentimentos pessoais
228 Parte II Teorias Psicodinâmicas

inicia o pré-adolescente no mundo da intimidade. Cada colega torna-se mais plenamente


humano, adquire uma personalidade ampliada e desenvolve um interesse mais amplo
pela humanidade de todas as pessoas.
Sullivan acreditava que a pré-adolescência é o período mais livre de problemas e
de preocupações na vida. Os pais ainda são significativos, mesmo que tenham sido rea-
valiados sob uma luz mais realista. Os pré-adolescentes podem experimentar um amor
desinteressado, que ainda não foi tocado pela libido. A cooperação que adquirem durante
a idade juvenil evolui para a colaboração, ou a capacidade de trabalhar com outra pessoa,
não para prestígio próprio, mas para o bem-estar do outro.
Experiências durante a pré-adolescência são importantes para o desenvolvimento
futuro da personalidade. Caso as crianças não descubram a intimidade nesse período, elas
terão uma grande propensão a ser seriamente prejudicadas em seu posterior crescimento
da personalidade. No entanto, influências negativas iniciais podem ser atenuadas pelos
efeitos positivos de um relacionamento íntimo. Mesmo a atitude malevolente pode ser
revertida, e muitos outros problemas juvenis, como solidão e egocentrismo, são dimi-
nuídos pela conquista da intimidade. Em outras palavras, os erros cometidos durante os
estágios anteriores de desenvolvimento podem ser superados durante a pré-adolescência,
mas os erros cometidos durante a pré-adolescência são difíceis de superar nos estágios
posteriores. O período relativamente curto e descomplicado da pré-adolescência é abalado
pelo surgimento da puberdade.

Adolescência Inicial
A adolescência inicial começa com a puberdade e encerra-se com a necessidade de amor
sexual de outra pessoa. É marcada pelo aparecimento súbito do interesse genital e pelo
advento de relacionamentos libidinosos. Nos Estados Unidos, a primeira adolescência ge-
ralmente acompanha os anos do ensino intermediário (ensino fundamental II). De forma
semelhante à maior parte dos outros estágios, contudo, Sullivan não atribuiu uma ênfase
excessiva à idade cronológica.
A necessidade de intimidade alcançada durante o estágio anterior continua durante
a primeira adolescência, mas agora é acompanhada de uma necessidade paralela, porém
separada — a libido. Além disso, a segurança, ou a necessidade de estar livre de ansiedade,
permanece ativa durante a primeira adolescência. Assim, a intimidade, a sensualidade e a
segurança com freqüência colidem entre si, trazendo para o indivíduo estresse e conflitos
em pelo menos três formas. Primeiro, a sensualidade interfere nas operações de segurança
porque a atividade genital na cultura estadunidense é comumente associada à ansiedade, à
culpa e ao constrangimento. Em segundo lugar, a intimidade também pode ameaçar a segu-
rança, como quando, por exemplo, jovens adolescentes buscam amizades íntimas com ado-
lescentes do outro sexo. Essas tentativas são carregadas de autodúvidas, incertezas e medo
do ridículo, os quais podem levar à perda da auto-estima e a um aumento na ansiedade. Em
terceiro lugar, a intimidade e a sensualidade estão freqüentemente em conflito durante a
primeira adolescência. Embora amizades íntimas com iguais de mesmo status ainda sejam
importantes, tensões sexuais mais poderosas buscam uma válvula de escape sem impor-
tar-se com a necessidade de afeto. Portanto, os jovens adolescentes podem conservar suas
amizades íntimas da pré-adolescência enquanto manifestam um desejo sexual por alguém
de quem não gostam, ou até mesmo que não conhecem.
Uma vez que o dinamismo da sensualidade é biológico, ela explode de forma vio-
lenta na puberdade, independentemente da aptidão interpessoal do indivíduo para ela.
Um menino sem nenhuma experiência prévia com intimidade pode ver as garotas como
objetos sexuais, ao mesmo tempo em que não possui nenhum interesse real por elas. Uma
menina na primeira adolescência pode provocar sexualmente os meninos, mas carecer de
habilidades para relacionar-se com eles em um nível mais íntimo.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 229

A busca de intimidade na primeira adolescência pode aumentar a ansiedade e ameaçar a segurança.

Sullivan (1953b) acreditava que a primeira adolescência é um divisor de águas no


desenvolvimento da personalidade. A pessoa pode emergir desse estágio com o domínio
dos dinamismos da intimidade e da sensualidade ou pode enfrentar sérias dificuldades
interpessoais durante os estágios futuros. Embora o ajustamento sexual seja importante
para o desenvolvimento da personalidade, Sullivan sentia que a questão real estava em
conseguir conviver com as outras pessoas.

Adolescência Posterior
A adolescência posterior inicia-se quando os jovens são capazes de sentir desejo sexual e
intimidade em relação à mesma pessoa, e em geral encerra-se na fase adulta, quando eles
estabelecem um relacionamento amoroso duradouro. A adolescência posterior abrange o
período da autodescoberta, um momento em que os adolescentes estão determinando suas
preferências quanto ao comportamento genital, normalmente durante os anos do ensino
médio, ou por volta dos 15 a 17 ou 18 anos.
O traço mais marcante da adolescência posterior é a fusão de intimidade e sensua-
lidade. As problemáticas tentativas de auto-exploração da primeira adolescência evoluem
para um padrão de atividade sexual mais estável, no qual o ser amado também é objeto
de interesse sexual. As pessoas não apenas desejam as outras como objetos sexuais, mas
como pessoas capazes de ser amadas desinteressadamente. Ao contrário do estágio pré-
vio, que é precipitado por mudanças biológicas, a adolescência posterior é completamente
determinada pelas relações interpessoais.
Uma adolescência posterior bem-sucedida inclui um crescente modo sintáxico. Na
faculdade ou no trabalho, os adolescentes começam a trocar idéias com outras pessoas
e a ter suas crenças e opiniões validadas ou rejeitadas. Aprendem com os outros a viver
no mundo adulto, mas uma jornada bem-sucedida ao longo dos estágios anteriores faci-
lita esse ajustamento. Caso os períodos prévios de desenvolvimento tenham sido falhos,
230 Parte II Teorias Psicodinâmicas

os jovens chegam à ado-


lescência posterior sem
nenhuma relação interpes-
soal íntima, com padrões
inconsistentes de atividade
sexual e com uma grande
necessidade de manter ope-
rações de segurança. Eles
se baseiam excessivamente
no modo paratáxico para
evitar ansiedade e para pre-
servar sua auto-estima, por
meio de desatenção seletiva,
dissociação e sintomas neu-
róticos. Enfrentam sérios
problemas na superação do
hiato existente entre as ex-
pectativas da sociedade e a
sua própria inabilidade para
estabelecer relações íntimas
com pessoas do outro sexo.
Durante a adolescência posterior os jovens sentem, ao mesmo Acreditando que o amor é
tempo, desejo sexual e intimidade em relação à outra pessoa. uma condição universal dos
jovens, geralmente são pres-
sionados a “apaixonar-se”. No entanto, apenas uma pessoa madura tem a capacidade de
amar; os outros apenas passam pelos impulsos de estar “amando” com o objetivo de man-
ter a segurança (Sullivan, 1953b).

Idade Adulta
Uma passagem bem-sucedida pela adolescência posterior culmina na idade adulta, um
período em que as pessoas podem estabelecer um relacionamento amoroso com pelo
menos uma outra pessoa significativa. Ao escrever sobre esse relacionamento amoroso,
Sullivan (1953b) afirmava que “essa intimidade realmente desenvolvida, de modo elevado,
com outra pessoa não é o principal negócio da vida, mas talvez seja a principal fonte de
satisfação na vida” (p. 34).
Sullivan tinha pouco a dizer sobre este estágio final porque acreditava que a natu-
reza da idade adulta estava além da abrangência da psiquiatria interpessoal; as pessoas
que haviam atingido a capacidade de amar não tinham mais necessidade de receber orien-
tação psiquiátrica. Seu esboço de uma pessoa madura, contudo, não estava fundamentado
em experiências clínicas, e sim tratava-se de uma extrapolação dos estágios precedentes.
Adultos maduros são perceptivos em relação à ansiedade, às necessidades e à
segurança das outras pessoas. Agem predominantemente em um nível sintáxico e julgam
a vida interessante e estimulante (Sullivan, 1953b).
A Tabela 8.2 resume os primeiros seis estágios de desenvolvimento de Sullivan e
demonstra a importância dos relacionamentos interpessoais em cada estágio.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 231

TA B E L A 8 . 2
Resumo dos Estágios de Desenvolvimento de Sullivan

Outros Processo Aprendizados


Estágio Idade Significativos Interpessoal Importantes
Primeira 0 a 2 anos Cuidador Afeto Mãe boa / mãe
Infância materno má; eu bom /
eu mau
Infância 2 a 6 anos Pais Proteção da Linguagem
segurança por sintáxica
meio de amigos
imaginários
Idade Juvenil 6 a 8 anos e meio Colegas de Orientação no Competição,
igual status sentido de viver compromisso
no mundo de e cooperação
iguais
Pré- 8 anos e meio a Único amigo Intimidade Afeto e respeito
adolescência 13 anos dos iguais

Adolescência 13 a 15 anos Vários amigos Intimidade e Equilíbrio entre


Inicial desejo sexual sensualidade,
em relação intimidade e
a diferentes operações de
pessoas segurança

Adolescência 15 – em diante Amante Fusão da Descoberta


Posterior intimidade com do self e do
a sensualidade mundo fora
do self

Distúrbios Psicológicos
Sullivan acreditava que todos os distúrbios psicológicos têm uma origem interpessoal e
podem ser compreendidos somente em relação ao ambiente social do paciente. Ele tam-
bém afirmava que as deficiências encontradas em pacientes psiquiátricos são encontradas
em todas as pessoas, mas em um grau menor. Não há nada específico nas dificuldades
psicológicas; elas derivam do mesmo tipo de problemas interpessoais enfrentados por
todas as pessoas. Sullivan (1953a) insistia em que “todas as pessoas tendem mais a ser
simplesmente humanas do que seres exclusivos; e não importa o que incomoda o paciente
— ele é, principalmente, uma pessoa, como o psiquiatra” (p. 96).
A maior parte do trabalho terapêutico de Sullivan era feito com pacientes esquizofrê-
nicos, e muito de suas palestras e escritos subseqüentes relacionavam-se à esquizofrenia.
Sullivan (1962) distinguia duas amplas classes de esquizofrenia. A primeira incluía todos
aqueles sintomas que se originam de causas orgânicas e estão, dessa forma, além do estudo
da psiquiatria interpessoal. A segunda classe incluía todos os transtornos esquizofrênicos
232 Parte II Teorias Psicodinâmicas

embasados em fatores situacionais. Esses transtornos eram os únicos com os quais Sullivan
se preocupava porque eram passíveis de mudança pela psiquiatria interpessoal.
As reações dissociadas, que freqüentemente precedem a esquizofrenia, são carac-
terizadas por solidão, baixa auto-estima, emoções estranhas, relações insatisfatórias com
os outros e uma crescente ansiedade (Sullivan, 1953b). As pessoas com uma personali-
dade dissociada tentam, de modo semelhante às demais pessoas, minimizar a ansiedade
ao construir um elaborado auto-sistema que bloqueia as experiências que ameaçam sua
segurança. Enquanto indivíduos normais sentem-se relativamente seguros em suas
relações interpessoais e não precisam apelar constantemente para a dissociação como
forma de proteger sua auto-estima, os indivíduos com um quadro de desordem mental
dissociam de seu auto-sistema grande parte de suas experiências. Caso essa estratégia per-
sista, essas pessoas começarão a operar cada vez mais em seus próprios mundos particulares,
com um amento das distorções paratáxicas e uma diminuição das experiências validadas
consensualmente (Sullivan, 1956).

Psicoterapia
Por acreditar que os distúrbios psicológicos surgem de dificuldades interpessoais, Sullivan
baseava seus procedimentos terapêuticos em um esforço para melhorar o relacionamento
dos pacientes com as outras pessoas. Para facilitar esse processo, o terapeuta atua como
um observador participativo, tornando-se parte de um relacionamento interpessoal, face
a face, com o paciente e proporcionando-lhe uma oportunidade para que estabeleça uma
comunicação sintáxica com outro ser humano.
Enquanto esteve no St. Elizabeth Hospital, Sullivan produziu um método de trata-
mento para pacientes com sérias perturbações, então considerado radical. Seus superviso-
res concordaram em fornecer-lhe um pátio para seus próprios pacientes e permitiram-lhe
que selecionasse e preparasse trabalhadores paraprofissionais que pudessem tratar os
pacientes como seres humanos. Naquela época, muitos esquizofrênicos e outros pacientes
psicóticos eram amontoados e tidos como subumanos. Mas o experimento de Sullivan
funcionou. Um índice elevado de seus pacientes melhorou. Erich Fromm (1994a) referia-
se aos resultados praticamente miraculosos de Sullivan como uma evidência de que uma
psicose não é apenas um distúrbio físico, e de que os relacionamentos pessoais de um ser
humano com outro é a essência do crescimento psicológico.
Em termos gerais, a terapia de Sullivan está orientada para revelar as dificuldades dos
pacientes em suas relações com os outros. Para atingir essa meta, o terapeuta auxilia os pa-
cientes a abrir mão da segurança ao lidar com as outras pessoas e a perceber que eles podem
alcançar a saúde mental apenas por meio de relações pessoais validadas consensualmente.
O ingrediente terapêutico nesse processo é o relacionamento face a face entre o terapeuta e
os pacientes, o que lhes permite reduzir a ansiedade e comunicar-se com os outros em um
nível sintáxico.
Embora sejam participantes na entrevista, os terapeutas sullivanianos evitam o en-
volvimento pessoal. Não se colocam no mesmo nível do paciente; ao contrário, eles tentam
convencer o paciente de suas habilidades especializadas. Em outras palavras, a amizade
não é uma condição da psicoterapia — os terapeutas devem ser treinados como especia-
listas no difícil negócio de realizar observações de entendimento em torno das relações
interpessoais do paciente (Sullivan, 1954).
Sullivan estava principalmente preocupado em compreender seus pacientes, ajudá-
los a melhorar sua percepção, descobrir dificuldades nas relações interpessoais e restaurar
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 233

sua capacidade de participar de experiências consensualmente validadas. Para atingir


essas metas, ele concentrou seus esforços na resposta de três questões contínuas: exata-
mente o quê o paciente está dizendo a mim? Como eu consigo expressar da melhor forma
possível aquilo que desejo dizer ao paciente? Qual é o padrão geral de comunicação entre
terapeuta e paciente?

Pesquisa Relacionada
A teoria de Sullivan baseia-se no pressuposto de que um desenvolvimento patológico da
personalidade resulta de conflitos e dificuldades interpessoais. Antes da pré-adolescência,
as crianças em geral internalizam uma percepção negativa dos pais em relação a elas, o
que pode levar a uma forma de perturbação emocional. Sullivan (1953a) imaginava que,
se os relacionamentos interpessoais podem ser a causa das perturbações emocionais, estes
também poderiam ser sua cura.
Nesta seção, analisaremos algumas das pesquisas sobre dois tipos bem dife-
rentes de relacionamentos interpessoais — os amigos imaginários e as interações
paciente — terapeuta.

Amigos Imaginários
Mais do que qualquer outro teórico da personalidade, Sullivan reconhecia a importância
de ter um amigo imaginário. Ele acreditava que essas amizades poderiam facilitar a in-
dependência em relação aos pais e auxiliar as crianças a construir relacionamentos reais.
Para apoiar a noção de Sullivan, existem algumas evidências de que as crianças que criam
amigos imaginários — comparadas àquelas que não os têm — são mais criativas, imagi-
nativas, inteligentes, amigáveis e sociáveis (Fern, 1991; Gleason, 2002).
Paula Bouldin e Chris Pratt (1999) relataram alguns dados interessantes sobre crian-
ças de 3 a 9 anos com amigos imaginários. Esse estudo encontrou poucas diferenças entre
meninos e meninas quanto à freqüência dos relatos de amigos imaginários. Além disso,
as atitudes dos pais em relação aos amigos imaginários de seus filhos eram extremamente
positivas. Apenas 1% dos pais pensava que o amigo imaginário era prejudicial à criança,
enquanto dois terços dos pais acreditavam que ter um amigo imaginário era benéfico.
Bouldin e Pratt também descobriram que cerca de 80% das crianças eram felizes ou esta-
vam bem-humoradas quando brincavam com seu amigo imaginário; apenas 3% eram soli-
tárias e outras 3%, raivosas. Um quarto das crianças necessitava de uma cadeira colocada
na mesa de jantar para seus amigos imaginários, um terço precisava de um espaço extra
em sua cama e mais de um terço solicitava espaço adicional no carro.
Outro estudo de Bouldin e Pratt (2001) examinava se as crianças que criam amigos
imaginários teriam alguma dificuldade para distinguir entre fantasia e realidade. Uma
possibilidade era que as crianças que desenvolvem tais colegas não-existentes simples-
mente são mais imaginativas em geral, com uma maior disposição para devaneios e
fantasias. Uma segunda possibilidade é que as crianças com companheiros imaginários
são mais crédulas — ou seja, em termos de comportamento, têm uma propensão maior
para acreditar em imagens mágicas e fantásticas, mas seu receio frente a imagens visuais
ambíguas é menor do que o de crianças que não acreditam em amigos imaginários.
O procedimento utilizado por Bouldin e Pratt (2001) pedia a um experimentador que
trouxesse uma criança para uma sala de testes dotada de vários brinquedos e uma tenda.
Após estabelecer uma relação de empatia com a criança, o experimentador solicitava que
ela retirasse um talão de notas do interior da tenda. Então, contava uma história infantil
que estava escrevendo sobre um monstro que vivia em uma caverna, muito parecida
234 Parte II Teorias Psicodinâmicas

com a tenda. Relatava-se à criança, então, que o monstro era muito bom ao esconder-se
e que o experimentador não podia vê-lo. Dessa forma, o experimentador perguntava à
criança: “Você acredita que pode ajudar-me a descrever o monstro?”
Após a criança descrever o monstro, o experimentador agradecia à criança e dizia-
lhe que “o monstro que você descreveu para a minha história caberia em uma caverna do
mesmo tamanho da tenda”. Nesse momento, enquanto a atenção da criança estava cen-
trada na tenda, uma silhueta parecida com a de um monstro era projetada em um dos lados
da tenda por não mais do que três segundos. Após certificar-se de que a criança havia
visto a imagem, a experimentadora pedia-lhe que colocasse o bloco de notas novamente
na tenda. Após um breve período de brincadeiras com os brinquedos na sala, e à medida
que a criança era acompanhada de volta à sala de aula, o experimentador simplesmente
perguntava: “Você têm algum amigo de faz-de-conta com o qual conversa e que vai junto
com você a todos os lugares?”
Em seguida, os avaliadores, que desconheciam o propósito da pesquisa, registra-
vam as respostas verbais e não-verbais gravadas em vídeo. Na categoria verbal, as crian-
ças diziam ou não que haviam visto um monstro, enquanto na categoria não-verbal, a
criança se movia e pulava ou não diante da imagem. Outros comportamentos verbais
registrados incluíam comentários espontâneos sobre um monstro durante o período de
brincadeiras; outros comportamentos não-verbais incluíam a forma como a criança se
aproximara da tenda quando fora solicitada a colocar o bloco de notas no lugar.
Comparadas às crianças que não tinham amigos imaginários, aquelas que os ti-
nham apresentaram uma probabilidade significantemente maior em relatar ter visto um
monstro e de se mover ou saltar após ver a silhueta. Quando perguntadas se acreditavam
que poderia haver um monstro na tenda, o grupo com um amigo imaginário tinha uma
propensão muito mais elevada de responder afirmativamente (42% contra 5%). Além
disso, o grupo com companheiros imaginários mostrava uma probabilidade maior de
experimentar devaneios, de visualizar realisticamente as pessoas em suas mentes e
“algumas vezes, ficar realmente com medo por causa de algo sobre o qual você pensa”
(p. 111). Bouldin e Pratt afirmavam que esses resultados demonstravam um série de dife-
renças imaginativas e emocionais entre crianças que tinham e que não tinham uma amigo
imaginário. Vale a pena notar que, a partir do mesmo conjunto de dados, Bouldin, Bavin e
Pratt (2002) estudaram o desenvolvimento lingüístico dos dois grupos e descobriram que
o grupo com amigos imaginários utilizava uma linguagem mais madura em relação às
outras crianças. Os pesquisadores afirmaram que isso demonstrava elevadas habilidades
sociocognitivas apresentadas pelas crianças do grupo com os amigos imaginários, propor-
cionando ainda mais evidências para a visão de Sullivan de que ter amigos imaginários
aumenta, em lugar de diminuir, o desenvolvimento social, cognitivo e emocional.
Em resumo, a pesquisa tende a comprovar os pressupostos de Sullivan de que ter
um amigo imaginário é uma experiência normal e saudável. Isso não é nem um sinal de
patologia nem o resultado de sentimentos de solidão e alienação em relação às outras
crianças. De fato, as crianças pré-escolares e em idade escolar com amigos imaginários
tendem a ser mais criativas, imaginativas, inteligentes e sociáveis do que as que não têm
um companheiro imaginário.

Relacionamentos Terapeuta-Paciente
Sullivan foi o primeiro teórico da personalidade a reconhecer o potencial valor terapêutico
do relacionamento entre terapeuta e paciente. Ele e seus seguidores argumentavam que
aquilo que o terapeuta diz e faz pode desempenhar um importante papel no bem-estar
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 235

e no progresso do paciente, e que o propósito da terapia é criar um novo relacionamento,


em que o paciente internaliza aspectos positivos em vez de aspectos negativos do relacio-
namento terapeuta-paciente.
Hans Strupp, William Henry et al. utilizaram a Análise Estrutural do Comporta-
mento Social (SABS, sigla em inglês), de Lorna Smith Benjamin (1974, 1996), para ver de
que forma a dinâmica interpessoal entre paciente e terapeuta afeta o sucesso da terapia.
A SABS analisa o comportamento interpessoal a partir de três perspectivas: (1) foco no
Outro, ou na conduta típica de uma pessoa enquanto se relaciona com outra; (2) foco
no Self, ou nas reações típicas de uma pessoa ao comportamento de outra; e (3) Introjeção,
ou voltar-se para dentro e refletir sobre a forma como alguém foi tratado por um outro
significativo. A SABS permite aos pesquisadores estudar as relações interpessoais mo-
mento a momento, e que vejam aquilo que o terapeuta realiza de fato para estimular ou
para impedir o progresso terapêutico.
Em um estudo inicial, William Henry, Thomas Schacht e Hans Strupp (1990) uti-
lizaram a SASB para formular a hipótese de que os pacientes desenvolveriam visões de
si mesmos coerentes com a forma como o terapeuta os via. Em geral, Henry et al. desco-
briram que os pacientes desenvolveram comportamentos relativamente estáveis que eram
coerentes com a forma como seus terapeutas os tratavam. Mais especificamente, esses
pesquisadores descobriram que as declarações hostis e controladoras dos terapeutas esta-
vam altamente correlacionadas às declarações autodepreciativas dos pacientes. Da mesma
forma, os pacientes cujos terapeutas os diminuíam, culpavam, ignoravam ou negligencia-
vam tendiam a culpar-se e a mostrar fracos resultados terapêuticos.
Posteriormente, Strupp, Henry et al. (Harrist, Quintana, Strupp e Henry, 1994)
utilizaram a SABS para demonstrar o efeito positivo do comportamento dos terapeutas
sobre as autopercepções dos pacientes e sobre seus resultados terapêuticos. Quando os
terapeutas nesse estudo utilizavam técnicas de afirmação, de auxílio e de cuidado, os
pacientes tendiam a mostra-se mais abertos, expressivos e confiantes, bem como mais
auto-receptivos e autocuidadores. Além disso, ao internalizar os aspectos mais positivos
do relacionamento, os pacientes demonstraram menos depressão e ansiedade e uma me-
lhoria geral mais significativa no funcionamento psicossocial.
Posteriormente, Russell Hilliard, William Henry e Hans Strupp (2000) examinaram
o histórico do desenvolvimento inicial tanto do terapeuta quanto do paciente, para estu-
dar o processo terapêutico e seus resultados. Esse estudo, que fazia parte do Vanderbilt
Psychotherapy Research Project, examinou o efeito do treinamento dos terapeutas sobre
a efetividade da dinâmica da psicoterapia breve. Os pacientes eram adultos, na maioria
estadunidenses de origem européia, respondentes aos anúncios nos meios de comunica-
ção requisitando voluntários. Os terapeutas eram oito psicólogos clínicos de orientação
psicodinâmica, licenciados e experientes, e oito psiquiatras com consultórios particulares.
Segundo fora especulado, Hilliard et al. descobriram que as experiências iniciais da in-
fância de pacientes e de terapeutas contribuíram para o resultado da terapia. Ainda mais
significativa, no entanto, foi a descoberta de que ao histórico de desenvolvimento dos tera-
peutas correspondia uma contribuição mais poderosa para os resultados do que seu preparo
dispendioso e abrangente. As implicações dessa descoberta são monumentais — os cursos
de graduação e as demais instituições que treinam psicoterapeutas poderiam realizar um
trabalho mais efetivo na seleção de candidatos se considerassem o histórico de desenvol-
vimento desses indivíduos. Essa descoberta também pode estar associada à experiência de
infância de Sullivan com uma mãe esquizofrênica e à sua posterior habilidade fenomenal
para tratar de maneira bem-sucedida pacientes esquizofrênicos. Apesar disso, o histórico
de desenvolvimento, sozinho, não era suficiente para responder por todas as associações
descobertas por Hilliard et al. entre o processo de terapia e os resultados terapêuticos.
236 Parte II Teorias Psicodinâmicas

Esses autores sugerem que uma combinação do histórico interpessoal e dos relacionamen-
tos atuais de pacientes e terapeutas poderia oferecer o indicativo mais confiável acerca dos
resultados da terapia.
Mais recentemente, um estudo conduzido por Kelly Schloredt e Julia Heiman (2003)
utilizou a SABS para investigar o relacionamento entre abuso sexual na infância, autocon-
ceito e tanto comportamento quanto satisfação sexuais na idade adulta. Elas acreditavam
que uma vítima de abuso sexual na infância teria o problema de “reconciliar seu abuso
com seu senso de sexualidade e integrar aquilo que a experiência lhe havia ensinado sobre
a forma como os outros tratam seus corpos” (p. 276).
Schloredt e Heiman dividiram seus participantes em três grupos — aqueles que
haviam experimentado apenas abuso sexual na infância (CA), aqueles que haviam
experimentado tanto abuso sexual quanto abuso físico (SPA) e aqueles que não haviam ex-
perimentado nenhum abuso (NA). Com base na noção de introjeção de Sullivan, previram
que as mulheres que haviam experimentado tanto abuso sexual quanto físico, comparadas
com as dos outros dois grupos, teriam os maiores índices de disfunções sexuais, assumiriam
um comportamento sexual de risco e enxergariam sua sexualidade de forma mais hostil do
que os grupos CSA e NA. Nessas dimensões, o grupo CSA deveria situar-se em um ponto
intermediário entre os grupos SPA e NA.
Os participantes do estudo eram 148 mulheres recrutadas na comunidade. Todas
elas completaram uma versão modificada da SABS em que eram solicitadas a avaliar sua
sexualidade em dois contextos diferentes, em seu melhor e em seu pior momento. Em se-
gundo lugar, avaliaram sua atividade sexual ao longo do último ano ao responder questões
referentes ao número de parceiros, utilização de contraceptivos, práticas de sexo seguro,
bem como masturbação, excitação sexual, freqüência de orgasmo e dor. Finalmente, as
participantes completaram avaliações de depressão e ansiedade.
Dado que o grupo de vítimas de abusos registrava valores mais altos em relação à
depressão e à ansiedade quando comparados com o grupo sem registro de abuso, essas
duas variáveis foram mantidas constantes nas análises. Os resultados relataram as pre-
visões básicas: o grupo abusado física e sexualmente apresentava os resultados mais
elevados de sentimento negativo (medo, raiva e nojo) durante a excitação sexual, seguido
pelo grupo abusado sexualmente e com o grupo sem vítimas registrando os índices mais
baixos de sentimento negativo. Quando relatavam sua sexualidade nos piores momentos,
os dois grupos abusados relataram menos disponibilidade e mais hostilidade em suas
experiências sexuais. A adoção de comportamentos sexuais de risco também distinguia os
dois grupos, essencialmente quanto ao número de parceiros sexuais, em que o grupo de
vítimas de abuso relatou uma média de 21 parceiros sexuais ao longo da vida enquanto o
grupo sem vítimas relatou uma média de 8. Contudo, Schloredt e Heiman não encontra-
ram diferenças entre os três grupos em relação a interesse sexual geral, excitação sexual
ou medo do sexo.
Essa abordagem empírica assemelha-se às noções teóricas de Sullivan de que o
autoconceito dos adultos é pelo menos parcialmente formado por experiências de abuso
sexual na infância.

Crítica a Sullivan
Embora a teoria da personalidade de Sullivan seja muito abrangente, ela não é tão popu-
lar entre os psicólogos teóricos quanto as teorias de Freud, Adler, Jung ou Erich Erikson
(ver Capítulo 9). No entanto, o maior valor de qualquer teoria não está em sua populari-
dade, mas nos seis critérios enumerados no Capítulo 1.
O primeiro critério de uma teoria útil é sua capacidade de produzir pesquisa. Hoje em
dia, poucos pesquisadores estão investigando hipóteses especificamente retiradas da teoria
de Sullivan. Uma possível explicação para essa deficiência é a ausência de popularidade
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 237

de Sullivan entre os pesquisadores mais aptos a conduzir pesquisas — os acadêmicos. Essa


falta de popularidade pode ser atribuída à íntima associação de Sullivan com a psiquiatria,
ao seu isolamento de qualquer instituição universitária e à relativa falta de organização em
seus escritos e palestras.
Em segundo lugar, uma teoria útil deve ser refutável, ou seja, deve ser suficien-
temente específica para sugerir pesquisas que possam apoiar ou rejeitar seus principais
pressupostos. Quanto a esse critério, a teoria de Sullivan, tal como as de Freud, Jung e
Fromm, recebe uma pontuação baixa. A noção de Sullivan acerca da importância das
relações interpessoais para a saúde psicológica tem recebido uma quantidade moderada
de apoio indireto. No entanto, são possíveis explicações alternativas para a maior parte
dessas descobertas.
Em terceiro lugar, até que ponto a teoria de Sullivan consegue oferecer, de modo
adequado, uma organização para tudo o que é conhecido acerca da personalidade
humana? Apesar de muitos de seus elaborados postulados, a teoria consegue receber ape-
nas uma avaliação moderada quanto à sua capacidade de organizar conhecimento. Além
disso, a extrema ênfase da teoria nas relações interpessoais diminui sua capacidade de
organizar conhecimento, uma vez que grande parte do que é conhecido hoje em dia sobre
o comportamento humano tem uma base biológica e não se encaixa facilmente em uma
teoria restrita às relações interpessoais.
A relativa ausência de testes em torno da teoria de Sullivan diminui sua utilidade
como um guia prático para pais, professores, psicoterapeutas e outros indivíduos preo-
cupados com o cuidado de crianças e de adolescentes. No entanto, caso alguém consiga
aceitar a teoria sem evidências de apoio, então, muitos problemas práticos podem ser
administrados ao se recorrer à teoria de Sullivan. Como um guia para a ação, a teoria de
Sullivan recebe um conceito entre bom e moderado.
Sua teoria é coerente com seu conteúdo? As idéias de Sullivan sofrem de sua falta de
capacidade para escrever bem, mas a teoria em si é logicamente conceituada e mantém-se
coesa em um todo unificado. Embora Sullivan utilizasse alguns conceitos incomuns, ele
o fez de forma consistente ao longo de seus escritos e de suas palestras. De modo geral,
sua teoria é coerente, mas carece da organização que poderia ter alcançado caso Sullivan
tivesse registrado mais suas idéias de forma escrita.
Finalmente, sua teoria é parcimoniosa ou simples? Aqui, Sullivan deve receber uma
avaliação baixa. Sua inclinação para a criação de seus próprios termos e a estranheza de
seus escritos adicionam um volume desnecessário a uma teoria que, caso fosse simplifi-
cada, poderia ser bem mais útil.

Conceito de Humanidade
O conceito de humanidade básico de Sullivan é resumido em sua hipótese de um único
gênero, a qual afirma que “todas as pessoas tendem mais a ser simplesmente humanas do
que qualquer outra coisa” (1953b, p. 32). Essa hipótese era sua forma de afirmar que as
similaridades entre as pessoas são muito mais importantes do que as diferenças. As pes-
soas se parecem muito mais entre si do que qualquer outra coisa.
Em outras palavras, as diferenças entre quaisquer dois aspectos da personalidade humana — desde o
imbecil da pior espécie até o mais elevado gênio — são muito menos impressionantes do que a dife-
rença entre o humano menos dotado e um membro de outro gênero biológico mais próximo (p. 33).
238 Parte II Teorias Psicodinâmicas

A habilidade de Sullivan para tratar de forma bem-sucedida pacientes esquizofrênicos era,


sem dúvida, aumentada por sua crença profundamente arraigada de que eles partilhavam
uma humanidade comum com seus terapeutas. Tendo ele próprio experimentado pelo
menos um episódio de esquizofrenia, Sullivan era capaz de criar um laço empático com
esses pacientes por meio de seu papel de observador participante.
A única influência que separa humanos de todas as outras criaturas são as relações
interpessoais. As pessoas nascem organismos biológicos — animais sem nenhuma qua-
lidade humana, exceto o potencial para a participação em relações interpessoais. Logo
após o nascimento, começam a perceber seu potencial quando experiências interpessoais
as transformam em seres humanos. Sullivan acreditava que a mente não contém nada
além do que foi ali colocado por meio de experiências interpessoais. As pessoas não são
motivadas por instintos, mas por influências ambientais que lhes chegam pelos relacio-
namentos interpessoais.
As crianças iniciam suas vidas com relacionamentos um tanto unilaterais, com um
cuidador materno que atende às suas necessidades e aumenta sua ansiedade. Mais tarde,
elas se tornam capazes de desenvolver sentimentos de reciprocidade em relação ao cuida-
dor materno, e esse relacionamento entre a criança e os pais serve como uma base sobre
a qual os futuros relacionamentos interpessoais serão construídos. Aproximadamente no
período em que as crianças ingressam no primeiro ano escolar, elas ficam expostas à
competição, à cooperação e ao compromisso com outras crianças. Caso lidem com essas
tarefas de modo bem-sucedido, obterão os instrumentos necessários para a intimidade e
o amor que virão mais tarde. Por meio da intimidade e dos relacionamentos amorosos,
elas se tornarão personalidades saudáveis. No entanto, a ausência de relacionamentos
interpessoais saudáveis leva a um crescimento psicológico prejudicado.
A individualidade psicológica é uma ilusão; as pessoas existem apenas em relação a
outras pessoas, e têm tantas personalidades quantas forem as relações interpessoais que
apresentam. Assim, os conceitos de singularidade e individualidade têm pouca importância
para a teoria interpessoal de Sullivan.
A ansiedade e as relações interpessoais estão unidas de uma forma cíclica, o que
dificulta a realização de mudanças significativas de personalidade. A ansiedade interfere
nas relações interpessoais, e relações interpessoais insatisfatórias levam à utilização de
comportamentos rígidos que podem temporariamente bloquear a ansiedade. Mas, uma vez
que esses comportamentos rígidos não resolvem o problema básico, eles acabarão por
levar a níveis mais elevados de ansiedade, os quais levarão a uma deterioração mais grave
das relações interpessoais. A crescente ansiedade deve, então, ser mantida sob vigilância
por um auto-sistema ainda mais rígido. Por este motivo, nós avaliamos a teoria de Sullivan
como nem pessimista nem otimista em relação ao potencial para crescimento ou mudança.
As relações interpessoais podem transformar a pessoa em um indivíduo mais saudável ou
em uma pessoa marcada pela ansiedade e por uma auto-estrutura rígida.
Como Sullivan acreditava que a personalidade é construída apenas com base nas
relações interpessoais, nós avaliamos sua teoria com uma pontuação muito elevada quanto
à influência social. As relações interpessoais são responsáveis tanto pelas características
positivas quanto negativas encontradas nas pessoas. As crianças que têm suas necessida-
des satisfeitas por um cuidador materno não irão apresentar uma perturbação significativa
diante da ansiedade de sua mãe, receberão sentimentos genuínos de afeto, poderão deixar
de tornar-se personalidades malevolentes e terão a habilidade para desenvolver sentimen-
tos afetuosos em relação aos outros. Contudo, relações interpessoais insatisfatórias podem
deflagrar a malevolência e deixar algumas crianças com o sentimento de que as pessoas
não são confiáveis e de que elas estão essencialmente sozinhas entre seus inimigos.
Capítulo 8 Sullivan: Teoria Interpessoal 239

Termos e Conceitos Essenciais


• As pessoas desenvolvem sua personalidade por meio de relacionamentos
interpessoais.
• A experiência ocorre em três níveis — prototáxico (primitivo, pré-simbólico),
paratáxico (não comunicado de forma adequada às outras pessoas) e sintáxico
(comunicação precisa).
• Dois aspectos da experiência são as tensões (potencial para a ação) e as
transformações de energias (ações ou comportamentos).
• As tensões podem ser de dois tipos: necessidades e ansiedades.
• As necessidades são conjuntivas quando facilitam o desenvolvimento
interpessoal.
• A ansiedade é disjuntiva no sentido de que interfere na satisfação das
necessidades e é o principal obstáculo para estabelecer relacionamentos
interpessoais saudáveis.
• As transformações de energias se organizam em traços consistentes ou padrões
de comportamento chamados dinamismos.
• Os dinamismos típicos incluem malevolência (um sentimento de viver em um
território inimigo), intimidade (um relacionamento pessoal íntimo com um igual
de mesmo status) e sensualidade (desejos sexuais impessoais).
• A maior contribuição de Sullivan para a personalidade foi seu conceito de vários
estágios de desenvolvimento.
• O primeiro estágio de desenvolvimento é a primeira infância (do nascimento
até o desenvolvimento da linguagem sintáxica), um período em que o primeiro
relacionamento interpessoal de uma criança ocorre com o cuidador materno.
• Durante a infância (da formação da linguagem sintáxica até o aparecimento da
necessidade de colegas de igual status), a mãe continua sendo o relacionamento
interpessoal mais importante, embora as crianças dessa idade tenham com
freqüência um amigo imaginário.
• O terceiro estágio é a idade juvenil (da necessidade de colegas de igual status
até o desenvolvimento da intimidade), um período em que as crianças deveriam
aprender competição, compromisso e cooperação — aptidões que as tornarão
capazes de mover-se de modo bem-sucedido ao longo dos estágios posteriores.
• O estágio de desenvolvimento mais crucial é a pré-adolescência (da intimidade
com um melhor amigo até o início da puberdade). Erros cometidos durante esta
fase são mais difíceis de ser superados mais tarde.
• Durante a adolescência inicial, os jovens são motivados tanto pela intimidade
(em geral relacionada a alguém do mesmo sexo) quanto pela
sensualidade (normalmente em relação a uma pessoa do sexo oposto).
• As pessoas atingem a adolescência posterior quando são capazes de direcionar
sua intimidade e sensualidade a outra pessoa.
• Uma passagem bem-sucedida pela adolescência posterior culmina na idade
adulta, um estágio marcado por um relacionamento amoroso estável.
• Na psicoterapia de Sullivan, o terapeuta atua como observador participante e
busca melhorar as relações interpessoais dos pacientes.

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