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2007 A Violência No Discurso Capitalista PDF
2007 A Violência No Discurso Capitalista PDF
Rio de Janeiro
2007
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Profª. Drª Tânia Coelho dos Santos - Orientador
________________________________________________________
Profª. Drª Angélica Bastos Grimberg
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Profª. Drª Ana Maria Rudge
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Profª. Drª Maria Anita Carneiro Ribeiro
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Profª. Drª Sonia Alberti
Rio de Janeiro
2007
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AGRADECIMETOS
À Profª. Drª. Tania Coelho dos Santos, pela rigorosa orientação acadêmica e pelas lúcidas
lições de psicanálise.
RESUMO
Esta tese tem a finalidade de analisar a dimensão subjetiva da violência, especialmente a que
se apresenta no discurso do capitalista. Foram adotadas as teorias da pulsão destrutiva e do
supereu formuladas por Sigmund Freud e as teorias dos discursos e do gozo formulada por
Jacques Lacan. Três vetores orientam esta pesquisa: o primeiro está relacionado aos
fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo está destinado a
identificar a violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo
discurso da tecnociência capitalista; o último tem o propósito de analisar e confrontar o poder
de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na
contemporaneidade. O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu
correlato, o supereu, foi por Lacan atribuído aos avatares dos quatro discursos (do mestre; da
universidade; da histérica; do psicanalista) e suas modalidades de ordenação do desejo e do
gozo nos laços sociais. A violência que é produzida pelo quinto discurso, que é o da
tecnociência capitalista, convoca a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas
causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais. A oposição do discurso do mestre,
ao do capitalismo tem a finalidade de confrontar a violência instituída e instituinte do discurso
do mestre (discurso fundante da subjetividade) com a violência que se apresenta como
mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais e desregulação do gozo no discurso do capitalista.
A oposição do discurso do capitalista ao do psicanalista tem a finalidade de rediscutir sua
evidência clínica, bem como a participação do psicanalista na construção da atualidade. A
aposta psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor das palavras, relançando o gozo da
vida, constitui-se o ponto de partida desta tese.
RESUMÉ
SUMÁRIO
p.
INTRODUÇÃO 8
1 VIOLÊNCIA: AVATAR DA PULSÃO DESTRUTIVA 12
1.1 VIOLÊNCIA, UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO À PSICANÁLISE 12
1.2 O PODER DA VIOLÊNCIA EM FREUD 16
1.3 PRIMARIEDADE DA PULSÃO DESTRUTIVA 19
1.4 VICISSITUDES DA PULSÃO DESTRUTIVA 25
1.5 A VIOLÊNCIA DO SUPEREU FREUDIANO 30
2 VIOLÊNCIA, AVATAR DO DISCURSO 37
2.1 PULSÃO DE MORTE E IMPERATIVO DE GOZO DO SUPEREU 37
2.1.1 Pulsão de morte e supereu 37
2.1.2 Imperativo de gozo do significante mestre S1 e do objeto a 48
2.2 O DISCURSO DO CAPITALISTA E A DESREGULAÇÃO DO GOZO 59
2.2.1 O discurso mestre: o advento do sujeito e a recuperação do gozo 61
2.2.2 O discurso do capitalista: uma mutação 67
2.2.3 A violência no discurso capitalista: laço social ou ruptura? 73
3 INCIDÊNCIAS DA VIOLÊNCIA NA CLÍNICA PSICANÁLITICA 82
3.1 VOZES DA VIOLÊNCIA 82
3.1.2 Vozes e silêncios da violência 85
3.2 SUPEREU E DISCURSOS: MANIFESTAÇÕES SUBJETIVAS DA 90
VIOLÊNCIA
3.2.1 A culpa: responsabilidade e gozo 93
3.2.2 Masoquismo: erótica mortífera do supereu 97
3.2.3 Reação terapêutica negativa: comércio de gozo 102
3.3 DISCURSO ANALÍTICO E DISCURSO CAPITALISTA: IMPASSES E 104
PERSPECTIVAS
3.3.1 Discursos e produtos: oposição 105
3.3.2 O discurso psicanalítico, uma forma de resistência? 108
3.3.3 Violência: realidade de discurso 112
3.3.4 A participação do psicanalista na construção da atualidade 116
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 121
REFERÊNCIAS 124
8
INTRODUÇÃO
O laço social produzido pelo discurso psicanalítico, legitimado pela prática de uma
análise, autoriza e convoca os analistas a se pronunciarem amplamente sobre os impasses da
civilização, a exemplo da violência na contemporaneidade, valendo lembrar a afirmação de
Lacan: ―[...] este discurso merece ser elevado à altura dos laços mais fundamentais dentre os
que permanecem para nós em atividade.‖ (LACAN, 1993, p. 31).
Há mais violência hoje que antes? Quanto a esta pergunta, importa antes de tudo dizer
que há hoje discursos sobre a violência, o que a faz existir de um novo modo, diferentemente
da Antiguidade, quando os atos de violência se explicavam por suas tradições. Hoje, a lei já
não mais outorga amplos direitos sobre a vida, nem ao pai de família, nem à Igreja, restando
algum poder sobre ela ao Estado, quando faz uso da pena de morte e das guerras.
Existem três tipos de violência, segundo Soler (2003a, p. 9-18, tradução nossa):
A violência instituída, aquela da ordem, sem oposição entre esta e a lei, entre
o direito e a violência que se pode até pensar, necessária, sendo a própria
regra, de certo modo, uma forma de violência à qual nos submetemos porque
somos civilizados; a da desordem que se apresenta como barbárie, e a
violência instituinte, que desde Freud está colocada entre o sintoma e suas
condições culturais, sendo o sintoma o que não funciona bem na ordem da
civilização, o que faz obstáculo à intenção de felicidade do princípio do
prazer.
Este terceiro tipo proposto pela autora diz respeito à dimensão pulsional da violência,
razão pela qual servirá de referência para nossa tese.
A psicanálise tem contribuições a fazer a respeito das suas causalidades e dos seus
mecanismos. Ademais, é da sua responsabilidade fazê-lo ante os novos sintomas que vão
surgindo ao longo do exercício clínico. A violência generalizada se apresenta na atualidade
como um novo fenômeno inclassificável, ante o qual os psicanalistas devem pronunciar-se,
somando-se a outros campos do conhecimento.
Tomando-se como referência a proposição lacaniana que diz: após um ato não se é
mais o mesmo, no caso da violência, trata-se de um ato radical que promove a devastação
subjetiva, na dupla posição daquele que comete o ato e daquele que é alvo do mesmo.
O ódio é uma das três paixões do ser, além do amor e da ignorância. É um sentimento
acompanhado de mais lucidez que o amor e segundo Lacan (1979b), não deve ser confundido
com o campo da pulsão.
seres falantes. Consta da série das violências, embora não seja seu melhor representante na
atualidade.
Afora certos esforços para localizar algum trauma primevo responsável pelo
aparecimento da violência, há teorias que defendem sua origem antinatural no homem, por
considerá-la ―o negativo absoluto da razão‖, um modo ―irracional‖ de funcionamento, o que é
refutado por Jurandir Freire Costa (1984, p. 12), ao identificar esta posição como não isenta
de preconceitos.
Este, aliás, foi um dos aspectos bem explorados por Lacan (1977): exaltar a
radicalidade do pensamento de Freud, enquanto inventor de uma nova razão, ao formular o
conceito de inconsciente como uma extrapolação ao conceito de pulsão, enquanto
ordenadores do aparelho psíquico.
Em sua releitura de Freud, Lacan estabelece como ponto de partida uma mudança de
perspectiva fundamental: originário não é o homem natural, nem o homem determinado pela
filogenética (COELHO DOS SANTOS, 2002), porém o homem inscrito na estrutura
significante da linguagem e do laço social, do discurso, desnaturalizado por sua condição de
ser falante, de onde advém o sujeito desejante do inconsciente em sua realidade dividida,
entre seu ser de falta e seu ser de gozo.
A pergunta feita por Albert Einstein a Sigmund Freud há mais de setenta anos, em
cartas trocadas entre ambos sobre o tema, como evitar a guerra, continua na ordem do dia –
pode-se mesmo dizer que todos os atuais movimentos sociais e políticos que lutam contra a
violência ou em nome da paz, igualmente se perguntam por que a guerra e como evitá-la. À
época, Einstein e Freud examinavam questões relativas a Primeira Guerra Mundial, época em
que as guerras eram localizadas no tempo e no espaço. Hoje, além das guerras pontuais, vive-
se um novo tipo de guerra permanente, configurada pelas diversas modalidades de violência
disseminadas globalmente e responsáveis pela barbárie contemporânea.
Freud declara ser impossível denegar o poder da violência, tanto quanto ignorar ser
este um dos elementos essenciais da história da cultura, como mostra o inesgotável espírito de
guerra dos seres falantes. E, ainda que, em muitas passagens tenha afirmado que a civilização
precisou dominar a violência para progredir, reconhece a inequívoca participação da violência
na construção da própria civilização e na inscrição das leis que tiveram como antecedente a
força bruta, da qual sempre se serviram.
Sempre atento aos males da alma e da cultura, Freud escreve em 1920 o texto
paradigmático ―Além do princípio do prazer‖, no qual propõe um paradoxal aparelho psíquico
ordenado por duas pulsões contrárias, não mais sexuais e de autopreservação, como fizera em
1915, porém, de vida e de morte: a primeira une, é erótica, a segunda desagrega, é agressiva e
destrutiva.
É preciso deixar claro que a pulsão de morte, tal como foi postulada nos anos 1920,
não é suficiente para dar conta da violência. Para abordá-la tal como se apresenta na pós-
modernidade, é preciso ir à última teoria da desfusão pulsional, em que a pulsão de morte
opera isoladamente, sem qualquer fusão com a pulsão erótica, ou de vida.
18
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão
dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam
ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta
uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é,
para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a
explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-
lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo - Homo homini lupus. Quem,
em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de
discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por
alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo
objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em
circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias
que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se
manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a
quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho.
(FREUD, 1974b, p. 133).
Freud aponta a mútua hostilidade primária dos seres humanos, como fator ameaçador
da integração da sociedade civilizada, motivo pelo qual se cria, dentre outros, o ideal de ‗amar
ao próximo como a si mesmo‘, numa tentativa de abrandar esta hostilidade.
A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites
nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se
apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha
abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de
afeto e amor entre pessoas. (FREUD, 1974b, p. 135).
De forma enigmática, o autor deixa uma única relação humana fora deste embate ―com
a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem.‖ (FREUD, 1974b,
p. 135). Numa outra passagem, acrescenta mais um aspecto importante à discussão, reiterando
sua posição:
Certamente, se estivesse acompanhando os dias atuais, Freud não faria tão suave
crítica aos americanos, como a que vem a seguir:
Na retrospectiva que faz no sexto capitulo, Freud atualiza a teoria das pulsões para
explicar como a pulsão de morte opera, isoladamente, em silêncio, introduzindo novos
elementos conceituais, com especial destaque para o narcisismo.
23
Entretanto, Freud não desiste da idéia de que os instintos não podiam ser todos da
mesma espécie. Defende, por um lado, a libido como atributo da pulsão de vida e, por outro, a
força silenciosa da pulsão de morte. O passo seguinte foi dado em 1920 no texto Além do
Princípio do Prazer, quando a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida
instintiva atraíram pela primeira vez sua atenção.
Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada
vez maiores, Freud imaginou haver outro instinto contrário, que abalasse essas unidades para
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conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico (hipótese que não teve a concordância
de Lacan). Assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida
podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. O
problema, contudo, residia em demonstrar as atividades deste suposto instinto de morte. Se as
manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas, as do instinto de morte pareciam
operar silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, embora não se
constituíssem em prova cabal.
Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no
sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e
destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o
serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa,
inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self).
Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora
estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso,
prossegue. (FREUD, 1974b, p. 141).
Estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a atribuir o que é
perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua própria
natureza. A princípio, foi apenas experimentalmente que apresentei as
25
Freud observa também que as crianças não gostam quando se fala da inclinação
humana para a ‗ruindade‘, a agressividade, a destrutividade e a crueldade, embora constate ao
mesmo tempo, a presença de atos extremamente agressivos e destrutivos na infância. Lembra
que Deus nos criou à imagem de sua própria perfeição e que ninguém deseja ser lembrado
como é difícil conciliar a inegável existência do mal.
Três são as vicissitudes da pulsão de morte, desenhadas por Freud, nas quais a
violência é bem representada, exibindo em cada uma delas seu caráter paradoxal, como
veremos a seguir.
O nome ‗libido‘ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as
manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto
de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito maior em
apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como
algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a
menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros. É no
sadismo — onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu
próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso
erótico — que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight)
de sua natureza e de sua relação com Eros. (FREUD, 1974b, p. 141).
Podemos dizer que esta teoria elaborada por Freud oferece excelentes recursos para
uma possível leitura da atual sociedade, identificada como individualista e narcísica por
alguns teóricos contemporâneos, na qual, aliás, os atos de violência se apresentam como
marcas inconfundíveis. Certamente, este destino da pulsão é o que melhor representa as
violências, sem qualquer relação com a pulsão erótica.
Contudo, mesmo onde ele surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega
fúria de destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação
do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de
fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de
antigos desejos de onipotência deste último. (FREUD, 1974b, p. 141).
É fácil constatar a vasta repercussão das teorias que definem a etiologia sexual das
neuroses e demais estruturas clínicas. Segundo Foucault (2002), este movimento se inicia
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antes mesmo das teorias formuladas por Freud, em cuja tradição ele, aliás, se inscreve.
Comparativamente, há uma insignificante repercussão e utilização da teoria da pulsão
destrutiva da pulsão de morte, na abordagem da etiologia das doenças psíquicas.
Toda reformulação teórica das pulsões realizada por Freud parece não ser levada
suficientemente em conta. Fica-se, via de regra, agarrado ao primeiro momento quando do
surgimento da pulsão erótica. Rigorosamente, a teoria das pulsões nasce como uma teoria
sobre a sexualidade. Freud escreve ―Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ em 1905,
e, em 1915, ―As pulsões e suas vicissitudes‖, quando sistematiza a primeira teoria das
pulsões. Somente em 1920, propõe opor à pulsão de vida a pulsão de morte. Há, contudo,
forte resistência em considerar esta reviravolta teórica e clínica, em parte, talvez, pelo que a
destrutividade encerra em si mesma. E, segundo o comentário do próprio Freud, a
moralização sobre a destrutividade é maior que sobre qualquer outro destino das pulsões.
O ponto que queremos salientar é que embora Freud tenha reformulado a teoria das
pulsões e dado igual peso à pulsão de morte na etiologia das doenças mentais, recorre-se,
invariavelmente, à pulsão sexual para explicar todas as doenças, desconsiderando a
reviravolta teórica e clínica operada pelo autor. É preciso admitir que esta leitura equivocada
dificulta o reconhecimento de certas manifestações clínicas, que dizem respeito à
destrutividade, agressividade, violência, crueldade, e suas abordagens terapêuticas.
A teorização da pulsão de morte, destrutiva, como fator etiológico, tem sido aplicada
de modo pontual a alguns fenômenos, a exemplo do masoquismo, da reação terapêutica
negativa e da neurose obsessiva.
Há, por um lado, ampla utilização da etiologia sexual, da pulsão erótica, e das
neuroses e, do outro, uma quase ausência de exploração equivalente para a teoria da pulsão de
morte e destrutiva. As violências, tais quais se apresentam na clínica do fim do século XX e
início do XXI, entretanto, exigem uma revisão, pois a erótica freudiana, tão largamente
utilizada durante o último século, não parece dar conta do horror, que não é da castração,
presente nestes fenômenos deste século. Postular a clínica em sua relação com o supereu,
conforme Freud desenvolveu, sinaliza para o começo de uma nova argumentação relativa aos
paradoxos do gozo na determinação do pathos, que será retomada por Lacan com o conceito
de gozo.
Para dar conta da clínica psicanalítica do século XXI, é preciso recorrer à pulsão de
morte (em sua relação com o supereu e o masoquismo primário) proposta por Freud. Não é
possível escutar o sujeito do inconsciente, hoje, abstraindo essas inter-relações conceituais
para tratar os atos de violência em toda sua extensão auto ou hetero destrutivas. É preciso
fazer um retorno a Freud, para lembrar que a etiologia dos sintomas não é somente sexual, do
recalcado sexual, mas paradoxais formações que abrigam toda a dimensão contraditória das
pulsões encerradas no narcisismo e nas formações do supereu.
Para concluir o sexto capítulo, Freud o faz de forma literária e espetacular. Após
refazer todo o caminho da pulsão de morte, termina exaltando a força da vida, Eros e, mais
uma vez, responsabilizando a pulsão de morte por certos impedimentos à civilização.
Contudo, embora advertido do horror do pior e disposto a não esconder suas conseqüências, o
que traz aí de mais importante é sua aposta na força da vida, ao afirmar que a civilização
resultante desta luta de gigantes se resumiria, essencialmente, na luta da espécie humana pela
vida, retificando o que poderia ser interpretado como uma luta primária para construção da
civilização.
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Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante
óbvio. Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade,
enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de
seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o
resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‗consciência‘, está
pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego
teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão
entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada
de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A
civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior
um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.
(FREUD, 1974b, p. 146-147).
Essa severa guarnição, embora esteja a serviço da civilização para dominar o perigoso
desejo de agressão e destruição do indivíduo, cria sérios problemas para este. A operação da
pulsão de morte voltada contra o eu (aspecto, que coincide com uma das quatro vicissitudes
da pulsão, a saber, o retorno ao próprio eu) e dirigindo para essa instância os impulsos
agressivos e destrutivos, foi o modo encontrado por Freud para explicar a ferocidade da culpa
e a crueldade da punição. Se, por um lado, são esforços utilizados pelo sujeito para preservar
o coletivo, por outro são métodos que imprimem violentas conseqüências contra o próprio
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sujeito, tornando muito cara a construção da civilização. O impasse permanece, pois trocar a
devastação coletiva pela devastação individual não resolve muito bem o problema.
Simultaneamente, Freud mostra o aspecto contraditório da questão ao explicar essas
operações – o sentimento de culpa e a necessidade de punição - como duas grandes
manifestações subjetivas primárias e intrínsecas ao pathos, não necessariamente a serviço do
progresso e da civilização. Aliás, estiveram sempre presentes com o nome de pecado nas mais
diversas práticas religiosas.
A constatação dos efeitos do supereu na clínica e na cultura conduziu Freud a vários
caminhos. Um deles leva à reflexão sobre a indiferenciação originária do ser falante para
julgar o bom e o mau, trazida para explicar como se dá a instauração do julgamento moral.
Inicialmente, Freud o vincula ao desamparo original, à dependência dos cuidados básicos
recebidos dos adultos e ao temor da perda do amor das pessoas primordiais, frequentemente
os primeiros laços parentais.
existentes entre o supereu, enquanto uma instância do aparelho psíquico, o ideal do eu,
enquanto significantes de identificação e a consciência com seus preceitos morais.
Nesta perspectiva teórica, fica estabelecido que, no primeiro tempo, o sentimento de
culpa é apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade ‗social‘, como se verifica nas
crianças. Em muitos adultos, ele só se modifica quando o lugar do pai ou dos dois genitores é
ocupado pelas organizações humanas mais amplas.
Freud prossegue explorando o sentimento de culpa. Quando ele aparece? Ele aparece
quando se faz algo que se sabe ser ‗mau‘ mas, mesmo quando a pessoa não faz uma coisa má,
mas apenas identifica em si mesma uma intenção de fazê-la, pode encarar-se como culpada,
tornando a intenção equivalente ao ato. Em ambos os casos, contudo, o pressuposto é que já
se tenha reconhecido que o mau é repreensível. O supereu, portanto, seria essa instância
interna pronta para instaurar o julgamento, já que a capacidade original para distinguir o bom
do mau não existe. Assim Freud atrela inicialmente a instauração do julgamento de bom e
mau à dependência do temor da perda do amor das pessoas primordiais e ao desamparo do
sujeito.
consentimento à ordem social, bem instalada nos homens, acrescenta, e bastante discutível nas
mulheres.
Consideramos de grande valor a concepção freudiana dos avatares do supereu, pois,
vieram conferir abrangente abordagem aos impasses clínicos, relativos à melancolia, à
neurose obsessiva, às reações terapêuticas negativas, ao masoquismo, às compulsões, à
angústia e, nesta série de gozar do pior, aos atos de violência que percorrem o sadismo, o
masoquismo e o gozo onipotente do narcisismo primário.
Com a concepção de pulsão destrutiva e de supereu, enquanto conseqüência direta do
Além do princípio do prazer, (em cuja tradição foi formulado o conceito de objeto a e de gozo
em Lacan) Freud produziu avanços conceituais com os quais podemos analisar os problemas
relativos às violências, seja no âmbito das suas manifestações sociais, seja no âmbito das suas
manifestações estritamente subjetivas.
Preferimos adotar os conceitos de supereu e de pulsão de morte, desfusionada da
pulsão de vida, revistos por Freud no texto ―O mal-estar na cultura‖, para analisar a
constituição subjetiva da violência, e a questão inicialmente formulada neste trabalho sobre a
participação da violência na construção da cultura.
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O segundo aspecto a ser observado, diz respeito ao que Freud nomeou como ponto de
vista econômico, uma tentativa de explicação do aparelho psíquico através do quantum
energético. Este argumento foi fortemente refutado por Lacan com a proposição do conceito
de gozo, com base no conceito de entropia e declinado nas modalidades de gozo fálico, gozo
sentido e Outro gozo.
homem? São questões respondidas pelo próprio Freud com as atualizações do conceito de
pulsão e por Lacan com o conceito de real, gozo do real.
Algumas inversões fundamentais foram registradas por Freud no bojo desta nova
construção metapsicológica mais complexa, que além de colocar em discussão os
pressupostos da biologia, oferece mais possibilidades de explicar o que se apresentava até
então, como pontos obscuros e indizíveis do aparelho que Lacan chamou de Real.
Ao mesmo tempo, oportunamente, observa que Freud jamais nomeou espécie alguma
de energia psíquica que estivesse a serviço da pulsão de morte, tal como o fez em relação à
pulsão de vida, isolando a noção de libido.
Em diversos momentos, Freud parece estar mais perto do monismo. Parece, às vezes,
falar de uma única pulsão, como no final de O mal-estar na cultura: "Quando uma pulsão
instintiva sucumbe ao recalcamento, seus elementos libidinosos se transformam em sintomas,
seus elementos agressivos, em sentimento de culpa." (FREUD, 1974b, p. 139).
42
Lacan defende o monismo das pulsões com base nos pressupostos da estrutura de
linguagem e da teoria do significante, tantas vezes refeita, especialmente em sua última
demonstração através da teoria topológica.
[...] que o leva a depender dos cuidados recebidos do adulto falante, e muito
o ouvirá falar enquanto lhe prodigaliza esses cuidados. É nesse processo
mesmo que surge o supereu, que se erige a partir das impressões dessa
época, sobretudo das palavras ouvidas (FREUD, 1923/1975, p.52-53). A
formação do supereu resulta do que podemos tomar como um trauma
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O trauma original para Lacan é a própria entrada do ser na ordem do discurso, que
para advir sujeito aliena-se ao desejo e à Demanda do Outro, nos desfiladeiros do significante,
operação que pode mortificar ou vivificar o corpo do vivo, constituindo-se como a condição
necessária para fazê-lo existir como um ser pulsional. Tem-se assim o nascimento do ser
falante, do sujeito desejante e do objeto que determina seu gozo nas redes da linguagem, na
circulação dos discursos e nos ciframentos de gozo da pulsão, portanto do supereu.
Podemos esboçar uma genealogia da crueldade que se coloque para além do biológico,
do natural e do energético, baseando-nos nas teorias que definem o sujeito do inconsciente
como efeito do significante, numa estrutura de modalidades de gozo dos discursos.
Poderíamos minimamente distingui-las: a crueldade própria da pulsão destrutiva, em todos os
seus níveis, que vai dos atos mais banais do cotidiano às guerras; a crueldade do sujeito para
com ele próprio, nas formas do masoquismo moral e sexual; a crueldade feroz do supereu, que
obriga o sujeito a gozar num jogo mortífero com a razão, entre luzes e obscurantismo.
Esses fenômenos estão vinculados à origem do ser falante, marcada pela servidão ao
Outro do simbólico, pelos diversos níveis de submetimento ao outro semelhante e pela
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São muitos os caminhos percorridos por Lacan para tratar da repetição e da pulsão de
morte. Segundo Rudge o faz em três momentos precisos: no estádio do espelho, onde está
centrado nas imagos e ―sugere que a pulsão de vida e de morte estão imbricadas na relação
que se estabelece entre o corpo-organismo e o corpo imaginário unificado, em que este não
apenas é ideal mas também objeto de agressividade.‖ (RUDGE, 2006, p. 87). No Discurso de
Roma, a pulsão de morte passa a depender estreitamente da fala e do significante, como um
conceito antibiológico. Aí a ênfase está colocada na ―morte simbólica como uma segunda
morte diversa da biológica, que por um lado a antecipa, mas por outro a transcende, ao
garantir ao homem uma sobrevida significante, apoiada na transmissão.‖ (RUDGE, 2006, p.
87). Final dos anos sessenta a compulsão à repetição será tomada na vertente do gozo e do
real que volta sempre ao mesmo lugar. ―O corpo está envolvido no gozo, mas o papel do
significante na sua produção, ao invés do recurso à biologia, justifica a idéia de que é a
identificação ao supereu e as suas injunções, que dá conta do que é da pulsão de morte na
clínica psicanalítica. (RUDGE, 2006, p. 88).‖
Segundo Tânia Coelho dos Santos, o que condiciona a pulsão de morte ao supereu, e a
repetição é a marca de gozo do significante, pura e simples repetição que em última instância
visa o gozo. Dois aspectos, aqui, merecem relevo: O primeiro, relativo à distinção da pulsão
em Freud e Lacan e o segundo voltado para as distintas modalidades lacanianas do gozo.
Esse Outro gozo, Freud o definiu por meio de uma energética, onde se opõe
a pulsão regulada pelo princípio da constância, e a pulsão de morte, como
vontade de retornar ao inanimado, ao zero de tensão libidinal. O phallus, é o
número que confere ao princípio do prazer sua medida de regulação [...] O
Outro gozo, em termos freudianos, é o regime da pulsão de morte. Introduzo
aqui meu argumento: a invenção do real de Lacan é um suplemento à
energética freudiana. O real é sem lei, sem nome, sem a medida fálica que
regula e submete todo gozo ao princípio do prazer. (COELHO DOS
SANTOS, 2006e, p. 59).
45
É preciso lembrar que foi na experiência analítica que o supereu se fez ouvir e se
ofereceu à leitura do psicanalista. Fez ouvir os ditos e os dizeres do sofrimento em forma de
crueldade, de sacrifício e violência, enfim, do ―empuxo‖ ao pior e ao gozo mortífero,
atualizados na transferência e na repetição. Com isso, revelou-se a sua materialidade
significante e seu referente, o objeto a, referências sem as quais se torna difícil abordar,
analiticamente, a pulsão de morte, gozo da pulsão destrutiva.
Vejamos que razões nos levam a articular supereu e discurso. Inicialmente, é preciso
lembrar que tudo que se transmite no mundo de linguagem e cultura dos seres falantes é efeito
de discurso. Portanto, o que está em jogo no supereu se transmite pela estrutura significante e
pelo objeto voz, que vocifera e ao mesmo tempo faz declarações de amor. Originário mundo
humano dos sons, das vozes e das falas, mundo falado no contraponto ao olhar.
Trazer este conceito para o campo lacaniano, significa definir o supereu como
modalidades de gozo, e identificá-lo como a única instância que ordena gozar, em confronto
com a consciência moral, os ideais do eu, os imperativos éticos e as interdições postuladas
pela lei.
46
Se, para Freud, o supereu se apresenta por um lado, como a instância que interdita que
proíbe o gozo destrutivo, por outro é ele que revela essas estranhas formações que são o
sentimento de culpa e a necessidade de punição, eventos mentais precoces e amplamente
presentes na vida psíquica. Freud os identifica como importantes modos de satisfação urdidos
pelo supereu a serviço da pulsão destrutiva. Lacan apenas explicita que elas não passavam de
modalidades de gozo e não o faria sem a precedente elaboração do problema formulado pelo
mestre.
É na medida em que o sujeito faz com que a agressividade se volte contra si mesmo,
que provém a energia do supereu. Uma vez que se entra nessa via, não há mais limites – ele
engendra uma agressão cada vez mais pesada do eu. Ele a engendra no limite, ou seja, na
medida em que a mediação, que é a da lei, acaba por faltar.
mesmo, na medida em que nesse horizonte há algo que participa de uma crueldade
intolerável. Nessa via, amar meu próximo pode ser a via mais cruel. (SOEIRO, 2005)
Tânia Coelho dos Santos (2001a) chama atenção para as conseqüências da relação
primitiva do significante com o gozo em dupla relação. De um lado, há o desperdício de gozo,
entropia, situada como efeito do significante, mas uma perda significantizada. De outro,
aquilo que é reencontrado aí, é um suplemento de gozo, introduzido com o objeto a como
mais de gozar, suplemento da perda de gozo.
Lacan soube precisamente destacar a extrema crueldade do supereu referida por Freud,
suas exigências desmedidas e sua falta de conexão com a realidade, guiada por uma lei
insensata, uma lei que, no limite, é a própria negação da lei ou o próprio desconhecimento da
lei. Relembra que, quanto mais o sujeito se esforça para obedecer aos imperativos categóricos
kantianos, tanto mais o supereu se torna exigente, recuperando do texto de Freud um aspecto
clínico essencial que rege a cena: a crueldade dessa figura feroz e obscena está primariamente
dirigida ao próprio sujeito nas modalidades da angústia, da culpa, da punição, da inferioridade
e do masoquismo, conforme se vê nas diversas manifestações clínicas.
Passemos ao texto no qual se pode também vislumbrar forte retificação à leitura dos
pós-freudianos sobre a segunda tópica:
[...] Freud não disse que o recalque provinha da repressão: que a castração
seja devida ao fato de que papai, a seu menino mexendo no peruzinho,
brada: ―é certo que vão cortá-lo se você tornar a tocá-lo‖. Eis no conjunto, a
báscula da segunda tópica. A gulodice com a qual ele denota o supereu é
estrutural, não efeito da civilização, mas mal-estar (sintoma) na civilização.
De maneira que convém tornar a tratar da prova, a partir do fato de que seja
o recalque que produza a repressão. Por que a família, a própria sociedade
não seriam criações a se edificarem a partir do recalque? [...] mas poderia ser
assim porque o inconsciente ex-siste, é motivado pela estrutura, ou seja, pela
linguagem. (LACAN, 1993, p. 52-53).
Temos assim uma avançada concepção do supereu, que reúne as duas dimensões
necessárias, a saber, o significante mestre e o objeto a. A dimensão significante comporta a
estrutura, daí porque Lacan afirmou o supereu é estrutural, é mal-estar, é sintoma na
civilização e não efeito da civilização. O supereu é correlato da castração, do recalque e sua
49
origem advém do S1, situado no lugar do agente no discurso do mestre, que corresponde ao
primeiro tempo lógico da efetuação da estrutura do aparelho psíquico.
Poder-se-ia dizer que Freud e Lacan estão de acordo a respeito deste ponto,
que esta voz herda as ‗vozes primeiras‘, as vozes vindas dos primeiros
50
objetos. Para Freud, é uma voz herdada do pai da criança, já que é uma voz
que veicula o interdito. Para Lacan, não é ‗herdada do pai‘, ele diz ‗herdada
do Outro original‘, do dito primeiro, portanto, herdada do Outro da
linguagem. (SOLER, 2001c, p. 83).
Quero ressaltar que a diferença entre esses elementos só pode ser elucidada com a
teoria dos discursos, além do fato de que tudo que se situa além dos laços de parentesco são os
laços sociais, sustentados nas práticas discursivas.
A hipótese estrutural do supereu em Lacan exige que se diga de saída que o Édipo é
um mito. A castração é outra coisa. A castração é produzida estruturalmente pela linguagem, e
não pela ordem paterna. A tese formulada no Seminário O avesso da psicanálise é esta: não é
o pai que determina a castração, é o significante - mestre que determina a castração. ―A lei da
limitação de gozo é gerada pelo S1 ( e se diz lei porque ela se impõe a todo sujeito que entra
na linguagem), porém não é uma lei da ordem social, não é uma lei da civilização nem do
regime patriarcal, é uma lei da estrutura.‖ (SOLER, 2001c, p. 85). O supereu está identificado
aos imperativos do S1 que repousa sobre uma lei insensata cuja significação é desconhecida.
Esta é sua origem.
Quanto à função do pai, em Lacan, ―não é o interditor, o pai é aquele que encarna uma
solução de desejo possível com a lei.‖ (SOLER, 2001c, p. 84). Sua responsabilidade incide no
ponto em que o desejo recalcado e a lei, que formam uma única coisa, fazem limite ao gozo,
regulando-o. O supereu é justo o que aí se intromete.
E a interdição só vem do pai na condição do pai morto por ser aquele que
tem o gozo sob sua guarda, é de onde partiu a interdição do gozo [...] Que o
pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nós como sinal do próprio
impossível [...] O real é o impossível. Impossível do ponto de vista lógico,
daquilo que do simbólico se enuncia como impossível (LACAN, 1992, p.
116).
Em síntese, Lacan extrai deste real impossível da castração, operação do S1, a força
da lei insensata do supereu, com o que favorece distingui-lo do pai em sua relação ao desejo e
a lei.
Um aspecto importante a ressaltar é que embora uma das faces do imperativo de gozo
do supereu seja a exortação, contudo, exortação e interdição são faces de um funcionamento
que empurra para o excesso.
chama a estima de si mesmo, talvez, uma aversão por si mesmo, que pode
chegar, certamente, ao que Lacan chamou o ódio de si, uma voz, portanto,
que condena, denigre e que, no extremo, insulta.
É preciso notar que o supereu é tão persecutório quanto as vozes da psicose,
a única diferença, no que diz respeito a este traço do supereu, é a atribuição
subjetiva: no supereu do obsessivo, ou do melancólico, a voz não é atribuída
ao Outro, ela não surge, tampouco, no real. Finalmente, as palavras do
supereu têm a mesma estrutura que toda atribuição vinda do Outro,
atribuição que se formula sob a forma de um ―tu és... isto ou aquilo‖, que o
sujeito pode retomar sob a forma de um ―eu sou...‖, o ― eu sou‖ sendo,
muitas vezes, a inversão deste ―tu és...‖ , que vem do Outro. (SOLER,
[2001c], p. 83).
Lacan ressalta no seminário ―A angústia‖, que as angústias do supereu não são sem
objeto e que este objeto é localizado, precisamente, do lado do ser do sujeito. Ressalta
também que o supereu gera a angústia não do fracasso, mas do êxito, angústia também
paradoxal em relação ao bom senso e ao princípio do prazer. Explorar a dimensão de voz do
supereu dada por Lacan permite esclarecer o trabalho clínico, especialmente no que tange aos
chamados sintomas contemporâneos não classificáveis.
A reação terapêutica negativa é exemplar nesta série. Nela o sujeito está submetido a
uma voz que vaticina piorar, gozar do pior. Observa Soler que Freud já atribuía ao supereu a
reação terapêutica negativa como sendo irredutível em alguns sujeitos, aqueles que são
53
estranhamente habitados por algo, como uma recusa feroz de qualquer melhora, de qualquer
pacificação. São esses sujeitos que ficam mal quando a vida melhora!
O mito do totem e tabu que para Freud viria resolver este impasse - o pai primitivo,
gozador, cujo assassinato teria gerado a culpabilidade dos filhos, a partir daí, submetidos à lei
-, é por Lacan esvaziado, só se salvando dele a estrutura. Soler realiza uma leitura precisa
sobre este aspecto fundamental do supereu no ensino de Lacan.
(―goza‖!) profere uma ordem impossível. Daí sua natureza feroz; trata-se de uma ordem que
não pode ser cumprida , já que, não importa o que o sujeito fizer, ainda que seja o máximo,
seu esforço jamais será suficiente. E o supereu dirá sempre para que se esforce mais, ainda.
Em Lacan, o supereu está posto desde o começo como uma instância que participa da
entrada do sujeito na linguagem e do seu encontro com uma perda de gozo que se desvela
pelo sofrimento de não encontrar no mundo nenhum objeto que o garanta, o satisfaça, o
complete e o apazigúe. Ao mesmo tempo, o que o sujeito não aceita é a impossibilidade de
gozar, e o supereu é paradoxalmente posto a trabalhar para anulá-la. Neste sentido, o supereu
participa desta dupla operação de gozo na instituição do sujeito, realizando o trabalho de
Sísifo.
mestre, quatro operações fundamentais, comandadas por quatro letras que se posicionam em
quatro lugares fixos, se apresentam.
Passemos ao lugar do outro que é ocupado pelo S2, o saber, o outro significante, de
onde emerge o campo do sentido e da significação decorrente da articulação de S 1 com S2. O
máximo valor do S2 está dado, entretanto, pelo valor de gozo que comporta, neste caso,
situado como meio- de-gozo. (LACAN, 1992, p. 175). Para o mestre, o outro é o escravo,
aquele que tem o saber, do qual o mestre se serve, em toda sua extensão, visando seu gozo e
especialmente explorando seu trabalho. Assim, seja no âmbito da história, ou da constituição
da subjetividade, problemas cruciais da humanidade já estão postos nessa estrutura, a exemplo
da servidão e da escravidão, marcas maiores da exploração de um homem por outro e da
dependência de um homem ao outro, marcas instituintes da violência.
O discurso do mestre nos mostra o gozo como vindo ao Outro- é ele quem
tem os meios. O que é linguagem não o obtém a não ser insistindo até
produzir a perda de onde o mais-de-gozar toma corpo. (LACAN, 1992, p.
117).
Assim, sujeito dividido e objeto a aparecem como duplo efeito das operações
significantes constitutivas da subjetividade. Embora homólogos, o sujeito dividido é o puro
57
Nessa máquina discursiva estruturante estão dadas as condições de objeto através das
quais o filho do homem, originariamente, entra no mundo. Trata-se da condição de alienação
ao Outro para se humanizar, ao preço da originária e radical escravidão e servidão ao Outro,
sendo este o maior fundamento para o masoquismo primário. Ai reside o radical desamparo
do filho do homem, para além de qualquer argumentação biológica baseada na prematuração,
ou no ponto de vista energético apresentados por Freud.
A outra dimensão do supereu apresentada por Lacan como sendo da ordem do objeto
a, neste caso comparece como objeto voz. É uma atribuição de extremo valor, seja no plano
simbólico, seja no plano imaginário, dada sua importância na existência e veiculação do
significante, enquanto imagem acústica, e não menos importante na presentificação do outro
imaginário que se apresenta, originariamente, não só como olhar, mas também como voz. A
voz, portanto, se apresenta como imperativo do Outro da linguagem e do outro semelhante do
imaginário, sem esquecer sua dimensão real.
Estaria, então, o gozo do supereu no registro do gozo fálico, S1 gozo sexual. De acordo
com o desenvolvimento até aqui realizado, pode-se também situar o gozo imposto pelo
supereu, seja em sua vertente de S1, seja em sua vertente de objeto a, como o gozo do Outro,
gozo não-todo, nomeado por Lacan como suplementar ao gozo fálico, que não encontra
limites nem barreiras. Aqui está o paradoxo do supereu, em Lacan, a argumentação será
desenvolvida no próximo capítulo.
O mal-estar na civilização foi abordado por Freud com a teoria da pulsão de morte
(destrutiva) e seu correlato, o supereu, e por Lacan com a teoria dos Discursos. O que Freud
chamou civilização, Lacan chamou discurso, laço social, modalidades de ordenação do desejo
e do gozo nos laços sociais.
O que vem a ser o social no campo da psicanálise? Segundo Alberti (2005, p. ?), na
teoria de Freud, é preciso começar pela definição do eu, pois,
Podemos dizer que, para ambos, a complexa origem da constituição do social depende
primeiro da realidade psíquica do sujeito — do que é possível interpretar do campo do Outro
— porém não sem relação ao que lhe é anterior, seja na história dos ancestrais em Freud, seja
na articulação dos significantes ordenados pelos discursos, em Lacan.
60
O campo do gozo, com seus discursos, é a interpretação dada por Lacan ao mal-estar
na civilização provocada, não pelo entre-guerras, como aconteceu com Freud, mas pelo
movimento estudantil de maio de 1968, na França, que se caracterizou pela contestação geral
à autoridade constituída. Protestavam os estudantes contra as conseqüências políticas e sociais
advindas da queda do comunismo. Por um lado, estavam impregnados da consciência
revolucionária pregada pela revolução cultural chinesa de Mão-Tsé-Tung, a chamada
esquerda maoísta, e, por outro, pelos ideais libertários da revolução sexual e a democratização
dos costumes.
Lacan analisa o mal estar próprio à sua época com as ferramentas dos discursos. O ato
de governar, o ato de educar, o ato de psicanalisar, conforme estabeleceu Freud, e o ato
histérico de fazer desejar, acrescentado por Lacan, representam quatro distintas formas de
cernir a impossibilidade já evocada por Freud. São quatro modalidades de tratamento deste
impossível da castração, sendo que o mal-estar aí presente se regula entre a perda e a
recuperação de gozo nas formas do mais-de-gozar dos laços sociais. O problema é que o
discurso do capitalista está fora desta regulação de gozo, e pode ser configurado como uma
patologia do gozo nos laços sociais.
Lacan retoma o mal-estar decorrente das três fontes de sofrimentos evocadas por
Freud, especialmente aquele que julgava ser o mais importante, que é a relação entre as
pessoas, nos termos dos discursos e da relação deles entre si. Ou seja, a questão da relação do
sujeito com as outras pessoas, abordada por Freud com o conceito de identificação, é tratada
por Lacan como laços que obedecem às leis significantes que ordenam os discursos.
violência? Será que ela também é uma modalidade de sintoma ou de laço social? Será que ela
também se ordena segundo a lógica dos quatro discursos de Lacan?
Lacan constrói os quatro discursos para falar das vicissitudes das pulsões, das
modalidades de gozo, do pathos do ser de fala, do mal-estar na civilização. As violências que
aí circulam estão submetidas às leis dos discursos e aquelas da pulsão destrutiva que se
apresentam nas formas do supereu, conforme estabeleceu Freud. A violência do discurso
neoliberal é outra coisa, é ruptura, que se caracteriza como impasse, devastação, mutação dos
laços sociais.
funcionar é utilizado propositadamente nesta teoria para situar o que constitui o interesse
maior do mestre: "isso é tudo o que o mestre precisa, ou seja, que funcione." (LACAN, 1984,
p. 48). Comandado, como está, pelo S1, só interessa do sujeito sua afânise, seu
desaparecimento.
Deve-se evidenciar a questão essencial que está em jogo nos efeitos da linguagem que
os discursos vêm revelar, especialmente o discurso do mestre, que é o sujeito e sua
causalidade. Os enunciados de Lacan, "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" e
"o sujeito é aquilo que um significante representa para um outro significante," podem ser
demonstrados através do discurso do mestre, e ressaltam o momento inaugural da constituição
do sujeito. Neste discurso, fica estabelecido que a estrutura se ordena a partir do princípio
segundo o qual o S1, definido como o significante mestre, representa o sujeito para um outro
significante, o S2, definido como o saber.
Isto quer dizer, que doravante qualquer uma das letras pode ocupar este lugar,
podendo fazê-lo como recobrimento de um lugar vazio. E tanto ele é vazio que dá margem
para que as demais letras possam circular, ocupando-o de diversas formas. Neste caso, ocupar
este lugar com o S1, o significante-mestre, que pode ser também chamado de pai real,
equivale dizer que o pai, igualmente, não passa de semblante na estrutura. O semblante,
portanto, é uma espécie de encobrimento significante do vazio, e o nome-do-pai, enquanto
significante fundante, deve ser substituído por outro significante, como mostram os outros
discursos.
63
A linguagem de algum modo propõe formas 'vazias' das quais cada locutor
em exercício de discurso se apropria e às quais refere à sua 'pessoa',
definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro como tu.
A instância de discurso é assim constitutiva de todas as coordenadas que
definem o sujeito e das quais apenas designamos sumariamente as mais
aparentes. (BENVENISTE, 1995, p. 285) .
A razão essencial para considerarmos que a teoria dos discursos proposta por Lacan
corresponderia à segunda tópica na obra de Freud, cujo fundamento é o mais-além do
princípio do prazer, tem como marco a castração, concebida mais-além do Édipo, mais-além
do pai simbólico, equivalendo à impossibilidade real instaurada pelo S1 dominante no
discurso do mestre. Essa mudança de perspectiva, geradora de uma nova atribuição de gozo
ao S1, estende-se às demais letras ou termos deste discurso, escrevendo novas modalidades de
gozo que trazem modificações radicais no que tange à relação do Um ao Outro.
Desta relação do Um (S1) posicionado como agente com o Outro (S2) que o saber
inscreve, advém o sujeito dividido, primeira conseqüência que o discurso do mestre exibe.
S1 S2.
É na medida em que o sujeito está dividido entre esse S1 e esse S2, que ele se
suporta, de modo que não se pode dizer que seja um único dos dois
significantes que o representa. (LACAN, 1977, p.).
1
A conexão S1—S2 advém do axioma do par ordenado obedecendo a ordem que consiste em
tomar os dois elementos do conjunto para escrever um outro formado pelos subconjuntos de
tais elementos.
(S1 ---S2) = [ (S1), (S1---S2)]
65
Até este período, a estrutura era demonstrada com o algoritmo da metáfora, enquanto
uma operação estritamente significante. No artigo ―Do Trieb de Freud ao desejo do
psicanalista‖ (LACAN, 1998i, p. 865-868) aparece, enfim, o sujeito causado pelo objeto a,
configurando um gozo que retorna do real.
Uma vez constituídas essas quatro letras, em sua relação aos lugares fundamentais de
captação significante, estão criadas as condições para a concepção do discurso, que inaugura
uma nova definição do inconsciente definido como saber, não sem relação com a verdade. A
estrutura de discurso torna presente o impossível determinado pela estrutura de linguagem
com seus aparelhos de gozo, em sua relação com o real.
66
Dentre essas pequenas fórmulas que giram, está contida a maneira pela qual se
estrutura o discurso do mestre, que se encontra exatamente em oposição ao discurso do
analista. Mas é preciso que o significante-mestre, S1, esteja situado no lugar do agente, do
comando, servindo de fundamento para o enunciado "Há o Um", para que o analista possa
deflagrar seu trabalho.
É também no âmbito dos laços sociais que regem o discurso do mestre que
encontramos as guerras, todas as formas de desigualdades e segregações, toda gama das
crueldades e violências. Nada, porém, se compara à barbárie contemporânea que pretende,
com seu caráter globalizado, anular todas as diferenças, especialmente as subjetivas,
67
Lacan não se recusou a refletir acerca dos efeitos subjetivos produzidos pelo
capitalismo e pela ciência. Com a teoria dos discursos, criou essa possibilidade. Inicialmente,
escreveu quatro discursos. Quatro também são os termos ou letras que circulam nos quatro
lugares fixos numa permutação circular, sem a possibilidade de nenhuma comutação. O
quinto discurso, que denominou de discurso do capitalista, não obedece a esses princípios.
68
Há uma inegável mudança na teoria dos quatro discursos com a inclusão do capitalista.
Lacan construiu o campo dos discursos sobre a tese de que a Revolução Francesa introduziu
no mundo o grande R do Real, isto é, o sintoma, a mais-valia, a única prova de que o sujeito
foi separado do seu gozo. Formulou o quinto discurso numa conferência proferida em Milão,
em 1972 (LACAN, 1984). Entretanto, o antecipou de algum modo em 1969, no Seminário 17.
posições das letras situadas do lado direito. S1 passa a ocupar o lugar da verdade e não mais o
do agente, como no discurso do mestre, e S vai ocupar o lugar de agente, como no discurso
histérico. O que esta inversão pode produzir? Em primeira mão, podemos asseverar que esta
alteração parcial parece comprometer toda a ética que até então regia os discursos.
Ressaltamos ainda, que a supressão das flechas oblíquas, ou das duas arestas do
tetraedro, que são obtidas por uma manobra obtida mediante torção, apresenta uma situação
diferente da encontrada nos demais discursos, nos quais nenhum termo é isolado e "cada um
alimenta o outro numa reação em cadeia cuja tendência é o arrebatamento." (DARMON,
1994, p. 223). Verifica-se, claramente, que o lugar da verdade não está mais protegido e que
os quatro vértices se alimentam uns aos outros suprimindo a hiância e a disjunção que há
entre o lugar da produção e o da verdade. O que o capitalista quer é apagar este efeito de
impossibilidade ou, em outras palavras, qualquer evocação da fantasia, para manter o sujeito
insatisfeito de modo bem particular.
Segundo Soler (2005, p. 15), nesta realidade discursiva o único laço que se estabelece
é entre o sujeito em falta com o objeto a. Sem dúvida, este é ―um laço pouco social pois não
se realiza entre indivíduos. Isto deixa cada sujeito sozinho com suas buscas, buscas estas, bem
pouco sublimatórias.‖ (SOLER, 2005, p. 15). O que a autora sugere é que esta seria uma
ordem sem o grande Outro, que reduziria a linguagem a um instrumento de mercado, uma
espécie de aparelho a ser reproduzido pela ciência e pela tecnologia. Um aparelho que tanto
produz quanto incita o apetite a consumir.
71
Encontramos em todo o ensino de Lacan referências a Karl Marx que nos permitem
fazer aproximações entre ambos.
Neste sentido, podemos situar três eixos em torno dos quais a herança de
Marx se apresenta em Lacan: ―o conceito de mais-valia; Marx, inventor do
sintoma; e o semblante no discurso do capitalista.É o conceito marxista de
mais-valia, tal como assinalamos atrás, que sustenta a noção de mais-de-
gozar lacaniana. Gozo a mais, não passível de entrar no regime do gozo
fálico, um resto, impossível de simbolizar. (ALBERTI, 2005) .
Lacan e Marx sabiam que algo sempre esteve velado no discurso capitalista, e não se
recusaram a reconhecer e a declarar o fracasso do laço social nesse discurso. Lacan,
entretanto, não parece ter tido as mesmas ilusões de Marx, quanto ao porvir.
Marx e Freud, por sua vez, quer recortando a sociedade burguesa, quer o aparelho
psíquico, demonstram a natureza do sintoma como contradição estrutural. Embora só possam
ser situados a partir do discurso da ciência, dela se distinguem ao tomar o sintoma como
ponto de partida e também de chegada, posto que para ambos o sintoma só pôde ser
concebido a partir do discurso capitalista e do discurso científico.
2
Partes do texto que aparece em 2.2.3 foi extraído do artigo de autoria de Coelho dos Santos,
T. e Teixeira M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da ―Psicologia em
Revista‖. Editora PUCMINAS, 2006. v.12, n.20.
74
O problema é não desvencilhar o real de sua simbolização por meio da lei. Entretanto,
sem o apoio mítico na proibição, será o real ainda impossível? Pensamos que não. Quando o
real não pode articular-se à proibição, todos os elementos (S1, S , S2 e a), que se articulavam
na forma de um discurso, ficam à deriva. O eixo dos quatro discursos é a primazia do discurso
do mestre, imperativo de renúncia que reduz o gozo a migalhas e o condena a só existir sob as
espécies do objeto a.
O discurso do capitalismo, contudo, não tem o mesmo eixo. Nele, S ocupa o lugar do
agente, numa espécie de giro que se desloca para baixo dele S1. Consequentemente, o real não
é mais impossível, tudo é permitido, não há mais impossível, em lugar algum. De fato, Deus
está morto, e quando Deus está morto, Lacan já o antevia, a conseqüência é o seguinte
paradoxo: nada é permitido. A violência é uma manifestação dessa estrutura. Quando tudo é
permitido, a ética do desejo dá lugar unicamente ao fardo pesado do imperativo do gozo. A
satisfação se efetua sem o apoio na singularidade da fantasia. É a lógica do resultado
imediato, direto, o declínio da diferença sexual. Proliferam os gozos autistas, regidos pela
lógica da exceção absoluta, onde cada gozo é autônomo.
fantasia, a junção do desejo com a lei, transferindo a potência simbólica do significante para o
imaginário e permitindo transmutar o real do gozo impossível para as vias imaginárias de um
real do gozo proibido.
Que tipo de sujeito emerge do laço capitalista? Que objetos se apresentam além dos
objetos de consumo? Quais os poderes da psicanálise na abordagem desse sujeito? Quais as
conseqüências para o sujeito da globalização da economia de mercado, ou seja, a
universalização do mercado e das mercadorias, independentemente da diversidade das
culturas? Como esclarecer a relação entre o estágio atual do capitalismo e a violência
generalizada? Essas são questões relevantes a serem aprofundadas em pesquisas analíticas que
apontem para possíveis efeitos decorrentes do discurso capitalista sobre a constituição
subjetiva e as construções imaginárias. Os discursos podem colaborar nesta leitura, pois não
foram teorizados buscando explicações psicopatológicas. Visavam saber a respeito das
posições de desejo e gozo do sujeito no laço social.
Decorre daí toda vinculação feita entre as vicissitudes do sujeito com o discurso
capitalista, especialmente na abordagem das enfermidades que caracterizam a
contemporaneidade: toxicomania, depressão, síndrome do pânico, anorexia/bulimia e, em
especial, a violência generalizada, aqui considerada o sintoma capitalista por excelência.
Alguns fatores podem ser registrados como os principais pontos que marcam os efeitos
sobre o sujeito decorrentes do discurso do capitalista. Esses pontos, que designam a própria
estrutura desse discurso, podem ser vistos no âmbito dos efeitos desta nova posição do
sujeito; do que muda no estatuto do saber e da verdade; nas mutações do objeto a.
O saber passa a valer o quanto se pode dele comprar ou vender. Assim, o próprio
proletário (trabalhador) torna-se também um valor de mercado a ser intercambiado como uma
mercadoria, cujo preço passa a ser medido pelas leis da oferta e da procura, reguladas em um
novo mercado, a que a economia política denomina de mercado de trabalho. (FIDELIS, 2007,
p. 55).
Essa formulação é uma atualização de duas outras, de igual importância e que lhe antecedem,
que são: ―o inconsciente é estruturado como uma linguagem‖ e ―o inconsciente é o discurso
do Outro‖.
dessa função. É preciso saber encontrá-la, reconhecê-la, mesmo onde ela se manifesta
denegada, abolida, humilhada e denegrida.
Se concordarmos com Lacan que a psicanálise freudiana foi a seu tempo uma
suplência ao declínio da função paterna, podemos perguntar-nos de que modo a psicanálise
enfrenta um mundo, onde a lógica do não-todo se coloca a serviço da denegação da função do
80
sociais dos discursos, é a segunda que revela, explicitamente, sua face subjetiva, como
confere a clínica, razão pela qual será aqui explorada.
Temos ainda uma terceira situação que se inscreve parcialmente na clínica. Refiro-me
não àqueles que sofreram a violência, porém aqueles que a praticam contra outrem. Essa
situação aparece em pequena escala na nossa experiência clínica, razão pela qual a tomamos
como extrapolação das outras duas. Agregamos os atos de violência próprios do capitalismo
contemporâneo às três situações acima referidas.
devastação psíquica e a gravidade dessa condição a que estamos cada vez mais expostos,
especialmente em algumas partes do planeta.
Um fragmento de caso clínico pode mostrar como um ato de violência foi o fator
desencadeante para o adoecimento, sem possibilidades de reversão. Trata-se de um
profissional liberal, casado, com filhos, que, após brutal experiência de assassinato de um ente
querido, passa a caçar homossexuais nas ruas, negando-se a pagar pelos serviços sexuais
recebidos. Esse ato transforma-se numa compulsão que o expõe em muitas oportunidades a
ser espancado ou mesmo ficar em perigo de morte, colocando-o na iminência de repetir a cena
do crime, na qual, poderíamos dizer, ficou petrificado. A violência brutal que surge do real
tem o efeito prolongado de quebra da mediação simbólica, como aconteceu neste caso,
acrescido da fixação de um gozo mortífero, da ordem do horror do crime, do assassinato. O
estado de adoecimento que se instaurou neste homem, que cometeu várias tentativas de
suicídio, produziu o aparecimento de um sintoma inclassificável. A sexualidade foi desviada
do circuito da fantasia e do princípio do prazer, servindo a um gozo que não é da ordem da
transgressão, mas um gozo louco, sem lei. Esse caso desvela que o imperativo do gozo não-
todo, do gozo não regulado pelo gozo fálico, ao reger uma estrutura, não cede lugar para o
desejo sexual. (COELHO SANTOS; TEIXEIRA, 2006 , p. 170).3
3
O fragmento de caso clínico acima apresentado foi extraído do artigo de autoria de Coelho
dos Santos, T. e Teixeira, M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da
Psicologia em Revista. Editora PUCMINAS, 2006. v.12, n.20, p. 170.
85
exemplo das autoridades parentais ou dos próximos, posto que, constitutivamente, a violência
não é um problema de ordem pedagógica. Tampouco concordaremos com a idéia do senso
comum que defende ser violento aquele que sofreu a violência, especialmente na infância,
palco de todos os horrores.
O segundo episódio envolve a rotina familiar. Após pegar a filha de dez anos na
escola, o pai estaciona o carro em um caixa eletrônico para realizar um saque, quando foram
assaltados por dois homens. Diante da impossibilidade momentânea de obterem o dinheiro
exigido, levaram a menina como refém para um hotel, numa cidade próxima a Salvador,
retendo-a por quatro dias consecutivos. Essa jovem analisanda, entre outras manifestações,
teve o sono gravemente perturbado durante alguns anos e estabeleceu uma espécie de
mutismo que marcou seus modus operandi no trabalho analítico.
É sem dúvida impactante testemunhar tamanha violência, uma vez que essas situações
não oferecem muita margem de manobra teórica e técnica. Entretanto, os problemas relativos
à crueldade que os analistas testemunham, não se limitam à contingência de alguém ser alvo
de ataques por parte de terceiros. Há também aquela que não se dá entre corpos humanos.
À primeira vista, a violência que nos detém apresenta o caráter explícito de crueldade
e brutalidade nos laços sociais, a exemplo dos casos apresentados acima. Em especial quando
ganham visibilidade em algum espaço público, e, sobretudo, quando configuram crimes
hediondos que são amplamente divulgados e explorados como espetáculo pela mídia.
Freud e Lacan, como salientamos nos capítulos anteriores, assinalam que tais
manifestações são comandadas pela lei insensata, feroz, cruel e obscena do supereu, mais
precisamente pelos imperativos de gozo do supereu. Se, nos três episódios acima relatados, a
origem da violência apoiava-se na exterioridade (vinda de terceiros), com reflexos no trabalho
analítico do analisando, ou seja, a violência tem como constituinte o espetáculo, a cena
trágica, nessa outra espécie de violência a que nos referimos o cenário original é, mais
propriamente, a cena da ação psíquica, como salienta Freud (1977).
Apresento a seguir cinco fragmentos clínicos sobre o que estou propondo chamar de
violência ou crueldade, estritamente subjetiva, caracterizando-os como avatares do supereu,
tão impactantes quanto aqueles anteriormente citados, com especial destaque para o último
exemplo.
O sujeito experimentava a mais profunda culpa, que o tornava incapaz de usufruir dos
resultados exitosos das suas honestas e esforçadas ações pessoais e profissionais. Achava
imperdoável ter tantos recursos comparados aos dos pais e irmãos, que tinham tão pouco, fato
que o levava, invariavelmente, a dividir seus ganhos com eles. Sua posição subjetiva de oblata
resultava quase sempre no ultrapassamento de seus limites financeiros. O problema é que, se
não o fizesse, sentia-se indigno, avaro, perdia o sono diante de tanta angústia. Tal ritual era
acompanhado de intenso temor da morte dos pais, a ponto de ter uma linha telefônica
destinada unicamente a ser usada para comunicar alguma emergência que pudesse acontecer
com um deles. Ao mesmo tempo, vivia o martírio de pensar compulsivamente a circunstância
da morte dos pais, ocupando-se de detalhes acerca do seu sepultamento, com a certeza de que
não iria sobreviver a essa experiência.
nos longos anos de trabalho. Diariamente, tinha que relembrar todos os esforços
empreendidos para chegar aonde chegou, seguido imediatamente da operação de anulação,
desqualificação do que fez, e dúvidas quanto ao seu mérito. Todo sinal de reconhecimento
emitido pelo outro se tornava indício de que estavam prestes a descobrir que sua vida era uma
farsa. Torturava-se com a idéia de não ser verdadeiramente merecedor das suas conquistas.
Tudo que poderia qualificá-lo virava motivo de tormento, pois ―no fundo, todos deviam saber
que era um homem sem valor‖, apenas favorecido pela sorte.
No quarto caso, três tentativas de suicídio foram cometidas durante o ano que sucedeu
a dois importantes eventos na vida deste homem: a publicação de um livro no qual faz
exaustiva análise sociopolítica da violência, do crime e da corrupção, e sobre o qual, após um
ano, declara em sessão: ―este livro comeu tudo o que eu tinha‖. O segundo refere-se à
agressão física desferida contra o cônjuge, o que resultou em separação, e de onde advém
mortífera auto-recriminação. Na última tentativa de suicídio, golpeia-se furiosamente com
uma faca nos punhos: ―sou duro de morrer, mas não tenho nenhuma razão para viver‖,
conclui.
Deve-se também registrar outra evidência clínica: retornar ao estudo do supereu exige do
analista uma atualização do seu ato. Ou, dito de outro modo, não se é mais o mesmo depois de
mergulhar na teoria e na clínica do supereu e dos discursos. Faz-se uma espécie de ritual de
passagem, para além de qualquer resquício inocente de restringir a direção da cura ao vetor da
erótica freudiana e ao princípio do prazer, evidentemente sem dele prescindir.
Lacan, por sua vez, convoca os analistas a manejarem a angústia antes que ela afogue
o sujeito. (LACAN, 1979b) A lição continua válida: é preciso manejar a transferência para
operar alguma mudança no âmbito do supereu. Neste jogo, é preciso recorrer à força da
demanda e à dimensão libidinal veiculada pelo valor da palavra sob transferência para, nos
termos de Freud, não deixar a pulsão de morte ou o gozo mortífero agir, desfusionado da
pulsão erótica, ou seja, é preciso fazer valer o poder do gozo fálico. Ou, nos termos do último
ensino de Lacan, é preciso emendar, suturar, quando possível, o imaginário, o simbólico e o
real.
90
Dentre os sintomas para os quais as operações do supereu são reguladoras, tais como a
neurose obsessiva, a reação terapêutica negativa, a melancolia, os fracassados pelo êxito, os
atos compulsivos, a angústia, as inibições, o sadismo e os atos criminosos, escolhemos a
culpa, o masoquismo e a reação terapêutica negativa para abordar clinicamente a constituição
subjetiva da violência como avatar do supereu, de acordo com a proposição de Freud, relida
por Lacan como avatar do discurso.
Lacan, por seu turno, definiu o supereu como imperativo de gozo, projetando-o
posteriormente nos discursos e nos laços sociais e vinculando-o, originariamente, ao discurso
do mestre, considerado o discurso civilizador e tirano. Credita ao S1, no lugar do comando, a
representação primeira da lei e a entrada imperativa do sujeito na linguagem, razão pela qual é
o fundamento do supereu. Nesta máquina discursiva instituinte, o supereu é também
representado como objeto voz, uma das espécies do objeto a. ―Lá está, tão na origem quanto o
pode estar o vocativo do comando.‖ (LACAN, 1982, p. 36).
91
Como foi apresentado no segundo capítulo, seja em Freud, seja em Lacan, o supereu é
primário e responsável pela primeira divisão do sujeito. Seu caráter paradoxal equivale ao
pathos da estrutura de linguagem que, longe de oferecer garantias ao sujeito, oferece o Outro
barrado, inconsistente, posto que não há Outro do Outro, não há metalinguagem.
―Lacan reinterpreta o movimento entrópico da pulsão de morte tal como Freud o havia
descrito nos seguintes termos: a entropia obriga o mais-de-gozar a recuperar, a tomar corpo e
o mais-de-gozar toma corpo a partir de uma perda.‖ (COELHO DOS SANTOS, 2001a).
Lacan passa a definir a economia de gozo que rege os aparelhos de discurso não pela via da
transgressão, mas pela via da entropia, do desperdício e da sua recuperação, produzida pelas
operações primárias do discurso do mestre.
O gozo do supereu no discurso do mestre estaria situado, pois, entre o gozo fálico,
gozo do Um, e o mais de gozar, o objeto a. O imperativo de gozo do supereu tira sua força do
poder do gozo fálico que, embora limitado e pouco durável, por estar fixado ao Um do
comando, preside todas as formas de poder em todas as esferas que comanda, não apenas a
92
sexual. O problema é que o gozo fálico, o gozo do S1, como mostra Lacan na topologia do nó
borromeu, tem um pedaço de real, ou seja, o gozo fálico está situado entre o registro do real e
do simbólico. Some-se a essa inserção real do gozo fálico no supereu àquela dada pelo real de
gozo do objeto a, cujas conseqüências veremos adiante.
A dimensão simbólica do gozo fálico está assegurada pelo que ele pode,
metaforicamente, reintegrar da realidade, fazendo-lhe suplência. No que tange à função real
do gozo fálico e à função real do Outro gozo, precisemos o conceito de real para melhor
explicar a dimensão real do gozo do supereu: o real é o impossível (LACAN, 2007, p. 121), o
impensável sobre a morte (LACAN, 2007, p. 121), é o sem sentido (LACAN, 2007, p. 62), é
o sem lei (LACAN, 2007, p. 133), sua condição é de ex-sistência (LACAN, 2007, p. 133).
Essa concepção do real levou Lacan a propor um Outro gozo com o qual redefine a pulsão de
morte, que tem, como conseqüência teórica e clínica imediata, a pregnância do real no
supereu tão bem revelada nos sintomas.
O supereu enoda, emenda esses dois registros paradoxais, simbólico e real, de tal
modo que um dos imperativos da estrutura de linguagem é a violência, em suas mais estreitas
relações com a lei tal como no discurso do mestre que a um só tempo é instituída e instituinte.
A contra partida reside no supereu regido pelo Outro gozo fundado no enlace do real com o
imaginário, onde produz o imperativo da violência nas formas extremas da destrutividade e da
morbidez.
Desse modo a violência, produzida primariamente pelo supereu, constitui uma das
versões da divisão do sujeito. É quando algo relativo à agressividade, ao ódio, à destrutividade
do sujeito aparece dirigido contra o próprio sujeito, tomando-o por um objeto. Dentre todas as
manifestações do supereu reveladoras dessa realidade psíquica, o masoquismo primário é
exemplar para demonstrá-la, e seu equivalente na clínica é a reação terapêutica negativa.
93
A culpa inconsciente, por sua vez remete à posição do sujeito na estrutura da falta,
onde se enoda com a angústia de castração, angústia da consciência moral e de morte e foi
delimitada por Freud como culpa universal. Por fim, a culpa muda, que não tem expressão no
eu, nem na angústia da consciência moral e tenta escapar à submissão por outras vias. Na
culpa muda há apenas uma busca compulsiva e silenciosa de satisfação no castigo e no
padecimento.
Para Lacan, o mito do pai morto inscreve uma falta estrutural representada pela
castração do Outro, que vem explicar a impossibilidade estrutural do gozo, o limite do gozo.
A equivalência entre o pai morto e o gozo retira a dimensão do mito, configurando-o em um
94
operador estrutural. Para esta falta do Outro que é a base da culpa, Lacan propõe o matema,
[S ( Α )].
Para abordar essa causa real da culpa é preciso separar a culpa do mito imaginário do
pai, que não dá conta da estrutura em jogo, razão pela qual é preciso ir além-do-Édipo para
que a teoria analítica da culpabilidade não se reduza à fantasia do neurótico.
No primeiro texto, poder-se-ia dizer que Lacan faz uma espécie de dedução da gênese
da culpabilidade ao sugerir que o gozo do vivo, o sexo e a existência não estão mais inscritos
no Outro porque, embora o Outro seja o lugar da linguagem, é inconsistente, o que quer dizer
que não existe, enquanto sujeito, vivente, sendo apenas um lugar que não pode suportar o
gozo, cabendo ao sujeito fazê-lo.
É importante entender que não é por um mau arranjo da sociedade, como o crêm, que
o gozo é impossível, mas por causa do Outro, se o Outro existisse, mas, como o Outro não
existe –o acesso ao gozo pleno é impossível.
A estratégia utilizada pelo sujeito neurótico para negociar desejo e gozo com o
supereu se faz apelando ao amor do Pai. A demanda ao Outro, enquanto demanda de amor, se
apresenta na clínica de muitas maneiras: arrependimento, vergonha, culpa inconsciente e
consciente e nas variações do masoquismo. A resposta a este apelo ao Outro às vezes é
fracassada, o que implica em abalos do sujeito no âmbito da fantasia, resultando na ferocidade
implacável do supereu sem negociação.
A culpa diante do imperativo de gozo do supereu sofre dois destinos: pela demanda ao
Outro ( S ◊ D), tentar escapar do imperativo, inscrevendo-se com uma frase na fantasia ( S ◊ a)
ou, pela via da submissão ao gozo não regulado pela função fálica, demonstrar o triunfo da
voz do supereu. (GEREZ-AMBERTINI, 2003).
Quanto ao suposto amor do supereu, Lacan assinala que, com tudo o que ele coloca no
caminho do fracasso, o que se teme é o êxito, é sempre o “isto não falta”? (LACAN, 2005, p.
62).
96
A culpa pode ser reconhecida nos três registros: na forma de sentimento, relativa ao
registro imaginário; no simbólico, como desejo inconsciente na fantasia, e nas formas
extremas de devastação, no registro real, como excedente de gozo.
Vale chamar a atenção para certo ângulo de leitura feita por Lacan sobre a culpa. Ele
dá a entender que há na culpa certo nível de consentimento no que se refere à falta ante o
desejo do Outro, podendo também vislumbrar a falta de gozo do sujeito. Pode-se também
deduzir que, em certas circunstâncias da culpa, o sujeito se faz responsável pelo seu desejo e
pelo gozo que o causa.
A culpa, portanto, é este elemento clínico que vem mostrar uma das faces da falta
radical que o aparelho psíquico comporta, quer do sujeito, quer do Outro. A culpa manifesta a
castração como a impossibilidade lógica de plenitude do gozo, quando se trata do
inconsciente estruturado como uma linguagem.
Quando concorre com a angústia e pode substituí-la, a culpa tem a função de atar,
fusionar o gozo mortífero do supereu através da demanda que metonimiza o desejo com o
gozo fálico. Esta é sua função primordial. Quando esta operação fracassa, deixa aparecer a
97
potência do simbólico fazer suplência ao real, mostrando o fracasso dos semblantes dos
discursos e deixando aparecer a crua dimensão real sem lei que rege os laços sociais,
manifesto nos atos de violência.
O terceiro tipo, o masoquismo moral, que mais interessa à nossa tese, desempenha um
papel especial no sentimento inconsciente de culpa. Consiste numa agressividade feroz do
supereu em relação ao eu, ou, dito de outra maneira, do Outro em relação ao sujeito,
conformando, sujeito e Outro, um verdadeiro par sadomasoquista.
Nos dois primeiros está mantida a fusão da pulsão de destrutiva com a pulsão de vida,
preservada pela relação com o objeto erógeno externo. No masoquismo moral o erotismo está
presente, mas a particularidade incide no detalhe do sofrimento não precisar do objeto
98
erógeno externo, pois o sujeito visa o sofrimento em si mesmo. Libidiniza o outro da sua
própria divisão, ou nos termos da segunda tópica freudiana, o eu em sua divisão se toma a si
mesmo como objeto revestido de libido, e igualmente revestido de pulsão destrutiva. Caberia
perguntar, qual outra formação subjetiva poderia concorrer com tamanha gulodice, voracidade
e ferocidade do supereu.
No masoquismo, o sujeito é levado a efetuar ações pecaminosas, que devem então ser
expiadas pela censura da consciência sádica. Para ser punido pelo destino, o masoquista faz o
que é desaconselhável, agindo contra seus próprios interesses e arruinando as perspectivas que
se abrem para ele na vida real.
comporta o masoquismo, tal como Freud notou. O masoquismo é o ápice do gozo dado pelo
real.‖ (LACAN, 2007, p. 76).
Uma das primeiras atividades que pude constatar em uma menininha que não
tinha nada de especialmente feroz, em uma idade em que ainda engatinhava
em um jardim de interior onde estava refugiada, foi se ocupar tranquilamente
em atirar uma pedra bem grande na cabeça de um camaradinha vizinho, que
era aquele em torno do qual ela fazia suas primeiras identificações; o gesto
de Caim não tem necessidade de esperar uma grande completude motora
para se realizar do modo mais espontâneo, devo dizer mesmo o mais triunfal,
pois ela não experimentou nenhum sentimento de culpa. ‗Eu quebrar cabeça
dele...‘ ela formulava com segurança e tranqüilidade. Eu não prevejo, no
entanto nenhum futuro criminoso. Ela manifesta a estrutura mais
fundamental do ser humano, no plano imaginário: destruir aquele que é a
sede da alienação. (LACAN, 1979a, p. 199).
100
Poderíamos articular ainda a experiência do fort/da com a seguinte frase de Lacan: "O
que cria a estrutura é a maneira como a linguagem emerge de saída, em um ser humano‖
(LACAN, 1976, p. 13), se considerarmos este jogo de presença/ausência como sendo a
inscrição do falasser na cadeia significante. Na entrada do falasser na cadeia significante,
neste par de oposição que funciona como um intervalo significante, onde o significante não
está lá para representar a significação, mas, principalmente, para completar as hiâncias de
uma significação que não significa nada, pode-se encontrar a matriz da fantasia.
A teoria freudiana parece explicar até mesmo a morte segundo a teoria da libido e o
princípio do prazer. A coalescência da libido com o que lhe é contrário, aparentemente, a
agressividade, é explicada pela identificação imaginária. Em vez de quebrar a cabeça do outro
que está diante de si, o sujeito se identifica e retorna contra si mesmo esta doce agressividade,
concebida como uma relação libidinal de objeto e fundada sobre as pulsões do eu, ou seja,
sobre as necessidades de ordem e de harmonia.
A pulsão, como entropia de gozo dos aparelhos de discurso que inscreve a realidade
do sujeito entre falta e excesso é a razão da inexistência da homeostase do ser falante. A lei
assimilada pelo sujeito pode ser muito tirana, como demonstram os avatares do supereu, em
tudo condicionada à anterioridade dos discursos que comandam definitivamente as
modalizações do sujeito.
No que tange ao masoquismo primário, sua força está localizada na fusão da pulsão
erótica com a pulsão destrutiva nos termos de Freud, ou no laço do gozo fálico com o Outro
gozo, nos termos de Lacan, causa da divisão do sujeito que condiciona todo o espectro que
comporta a dimensão subjetiva da violência. Esta é uma das razões pelas quais cada humano
conhece, desde sempre, a violência que lhe é constitutiva, reconhecendo-a quando aparece do
lado do outro, nas formas do sadismo, ou quando aparece no mal-estar da civilização e dos
discursos.
A RTN ganha maior precisão conceitual a partir da segunda tópica, em ―O Ego e o Id‖
(FREUD, 1976h), quando é apresentada como um fato clínico, que é atribuído a um desafio
do sujeito que se empenha em mostrar sua superioridade ao médico. Este dado clínico é
considerado mais poderoso do que os obstáculos já conhecidos: inacessibilidade narcísica,
atitude negativa em direção ao médico e apego ao ganho secundário da doença.
Freud considera que esse obstáculo pode ser chamado de 'fator moral', um sentimento
de culpa que encontra satisfação na doença e por isso recusa a abandonar a punição advinda
do sofrimento. Esse sentimento de culpa permanece silencioso para o paciente e somente se
manifesta como resistência à cura, dificilmente redutível. Esse fator moral corresponde ao
sentimento de culpa inconsciente e à necessidade de punição.
Isto quer dizer que na RTN não há registro consciente de culpabilidade, pois o que
aparece é uma orgulhosa reivindicação do sofrimento, sob a forma de resistência do amor
próprio e que, amiúde, se declara como impossibilidade de aceitar a idéia de ser libertado por
outro que não ele mesmo (LACAN, 1998a, p. 110). O que levará Freud a vincular a RTN à
104
Sabemos por Freud, que o supereu é de uma economia tal, que quanto mais sacrifício
se faz, mais exigente ele se torna. O paradoxo ético do supereu consiste em fazer o sujeito
culpável, conduzindo-o ao sacrifício, obrigando-o a renúncias sempre maiores. Segundo Costa
Diniz (2006), a reação terapêutica negativa, esta gula do supereu, está estreitamente articulada
com o gozo do sintoma, e recomenda o retorno ao texto de Freud, "Achados, idéias e
problemas (FREUD, 1975a), que tardiamente vem esclarecer a origem deste gozo. Sem
dúvida, é um grande achado de Freud admitir um gozo sempre insuficiente e falho.
Provavelmente, esta idéia serviu de protótipo para o que Lacan, posteriormente, chamou de
impossibilidade do gozo.
Nesta seção, propomo-nos analisar alguns aspectos das mudanças subjetivas relativas
à violência produzidas pelo discurso capitalista, tomando como eixo o discurso psicanalítico.
Novos e velhos sintomas são atribuídos ao capitalismo: a síndrome do pânico, as angústias
105
remuneração pelo serviço executado. São vidas usadas além do limite da exploração e
descartadas como peças exauridas, tais quais as máquinas que advieram com a revolução
industrial.
Afora aquelas relativas à economia e à desigualdade das classes sociais, há muitas
outras maneiras de exploração e escravidão do outro. Há a escravidão sexual, amorosa,
familiar, fraterna, filial.
As distintas formas de violências e crueldade que configuram a escravidão e as
servidões ao longo da história devem ser circunscritas aos laços sociais dos discursos, desde
que se concorde com o princípio segundo o qual os discursos são anteriores ao sujeito,
comandando e condicionando as subjetividades. Entretanto, é preciso querer saber o que
mudou em relação à crueldade entre os seres falantes no discurso capitalista.
O discurso do capitalista, pouco antes da metade do século XX, vem colocando novos
problemas não só para a economia, mas também para os laços sociais e para a subjetividade.
O mundo era então regido pelos semblantes produzidos pelos quatro discursos - o do mestre,
da histérica, da universidade e do psicanalista - no tratamento da falta do Outro S( Α ). O que
era sintoma ordenado pelo recalque no discurso do mestre, tornou-se desregramento
tecnológico gerador de novas formas de sintomas.
Até o início do século XX, o novo modo de produção que a revolução industrial
imprimiu, espalhou-se rapidamente pelos diversos setores da economia. A novidade se
inscreve com o nascimento da tecnologia que apresentou o conhecimento sistematizado, a
partir de experiências e proposições de novas ferramentas aplicadas ao processo de produção,
que tinham como alvo a fabricação mecanizada em grande quantidade, com baixo custo.
Desde então, tudo passou a ser tratado com os novos termos da tecnociência, começando pela
produtividade e pela organização do trabalho.
O saber da ciência moderna garantiu a nova economia e foi por esta elevada ao zênite.
Em sua face de tecnociência, transformou-se em gadgets, cyber-products e smart-products,
incitando ao consumo imperativo. O resultado final foi a ruptura da ciência tradicional com a
ciência moderna, em sua versão high tech, tanto no âmbito da relação do conhecimento com a
verdade quanto na ênfase dada à fabricação de objetos novos e inéditos (GONÇALVES,
2000), o que levou Lacan a recomendar que forma, substância, conteúdo, tenha o nome que
tiver, é desse mito que um pensamento científico deve se desprender. (LACAN, 1982).
Por último, aparece a internet como uma espécie de revolução silenciosa, impondo o
novo produto que é a informação, intimamente associada ao aumento da velocidade da
comunicação; pelos amplos recursos que apresenta e pelo incontrolável ultrapassamento em
107
todas as esferas, dá margem à pergunta: será a internet, no futuro, mais ou menos compatível
com o capitalismo? (GONÇALVES, 2000). Essas observações têm o objetivo de ressaltar que
o advento do capitalismo está condicionado à ciência e à tecnologia e, por ser impossível
dissociá-los, é preciso reconhecer que formam o mesmo discurso na atualidade.
Neste contexto histórico, surge a psicanálise como um novo discurso, ao nomear um
novo saber próprio ao inconsciente e à pulsão. Embora filha legítima do discurso da ciência
numa organização econômica capitalista, a psicanálise não veio ao mundo para assegurar os
resultados almejados pelos empreendimentos capitalistas; tampouco ficou seduzida por suas
quinquilharias. Ao contrário, prescindiu de quaisquer que fossem suas invenções para operar
uma nova prática clínica e num movimento inverso, reafirmou a soberania da economia
psíquica, apostando em um novo laço social, baseado exclusivamente no poder de reinvenção
da vida pela fala.
Nessa posição, o discurso psicanalítico é convocado a analisar um fator relevante para
a criação do laço social capitalista. Trata-se da relação do saber com o gozo, vigente no
coração da ciência. Essa relação pode ser explicitada, por um lado, pelo mais de gozo e por
outro, pelo saber como meio de gozo, correspondendo, respectivamente, à mais-valia e ao
novo mercado.
É histórica a relação da ciência com o saber. Baseado no interesse da ciência pela
produção de saber, Lacan aproximou um certo período da ciência ao discurso da histérica. Em
contrapartida, a tecnociência quebra esta histórica relação, pois não está de maneira alguma
interessada na produção de saber, mas, ao contrário, está bem interessada em saber extrair do
real o máximo possível de produtos que garantam o mercado.
Resulta, portanto, da ciência contemporânea, a transformação radical do saber (S2) -
meio de gozo - e do objeto a - mais de gozo -, próprio do discurso do mestre, em mercadoria,
no discurso capitalista. A razão da força do discurso capitalista reside na astúcia de
transformar objetos de gozo da economia subjetiva em objetos de consumo, unidos na sua
origem. A unificação da ciência é correlata ao desenvolvimento do capitalismo que implica
não só na criação do mercado, tal como o conhecemos hoje, mas como mercado do saber.
Segundo Rabinovitch (1989), a própria psicanálise é mais um sintoma da modificação
histórica que ocorreu na relação do saber com o gozo, com a ressalva quanto aos seus fins.
Também o objeto a como lugar de captação de mais de gozar, pôde ser inventado por Lacan,
porque se produziu uma modificação na relação histórica entre o saber e o gozo. Lacan soube
aproveitar-se do novo saber apresentado por Marx ao absorver, por exemplo, o conceito de
unidade de valor, para formular a noção de objeto a. Na produção de valor, ressalta-se como
108
característica, o fato de ser heterogêneo em relação ao valor de troca, o que comporta tanto
poder gozar de um bem, como a propriedade, quanto gozar do próprio corpo.
O mercado do saber teve a função particular de criar o novo laço social correlativo da
ciência.
próprio, por serem alvos do bio-poder. Além disso, do lugar de um discurso contemporâneo
ao discurso do capitalismo, como é o seu, deve, com o seu ato, seguir apresentando métodos
para abordar a subjetividade à altura dos bons resultados da sua secular pratica clínica, que até
o momento, teve poder para aí intervir. Deste prisma, somos obrigados a reconhecer que a
psicanálise é uma política.
Pode a psicanálise fazer resistência ao capitalismo? De certo modo. É, aliás, o que
tem acontecido. Juntamente com outras práticas contemporâneas, a exemplo da ecologia, das
artes de um modo geral, e da literatura em particular, efetivamente, tem formado focos de
resistência - uma micropolítica - ao explicitar e de certo modo denunciar a foraclusão que a
ciência faz do sujeito e os desvarios do gozo e do desejo operados pela tecnociência. A
psicanálise, juntamente com outras práticas que poderíamos identificar como anti-
segregadoras, não se coloca a serviço do capitalismo, mas, ao contrário, por definição, faz-lhe
oposição.
Deve-se ressaltar que a psicanálise vai à caça em busca do resgate do sujeito, do que o
causa e o constitui. Essa parece ter sido a posição de Lacan, ao atribuir ao discurso do
psicanalista uma saída possível para os impasses colocados pelo discurso capitalista.
(LACAN, 1993, p. 34).
O postulado lacaniano que define a realidade humana como realidade de discurso, de
acordo com as modalidades de gozo dos laços sociais e do inconsciente que ex-siste aos
discursos, está à altura de demarcar as mutações significativas operadas pelo discurso do
capitalista no campo do sujeito, do objeto, do saber, e, especialmente, do Outro.
No discurso capitalista, a condição do sujeito é ser regido pelos aparelhos que os
objetos comandam e não pelo aparelho de gozo do inconsciente que os quatro discursos
condicionam. O sujeito perde sua relação com o saber do inconsciente que passa a ter valor de
mercadoria, produzido em larga escala, valendo quanto vende; o objeto causa de desejo é
confundido com objeto de consumo; gadgets é o seu nome. A falta do Outro falta, e o destino
do real não é o recalque, porém a foraclusão da impossibilidade. Há uma promessa no ar de
que tudo é possível, pois tudo se vende e tudo se compra, desde que o sujeito esteja incluído
no sistema, privilégio de alguns.
mudanças no campo da ética, dos costumes e dos laços sociais, mas, sobretudo, revelam que a
família, a escola, a igreja, todos os antigos representantes do grande Outro, enfim, também
estão regidos pelas mudanças dos discursos.
Há algum tempo, um grupo de jovens de classe média alta ateou fogo no índio pataxó
Galdino, em Brasília. Questionados a respeito de seu ato, disseram pensar tratar-se de um
mendigo. No ano em curso, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, bairro
nobre do Rio de Janeiro, um grupo de jovens de classe média alta espancou a empregada
doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto que muito cedo, esperava o ônibus para ir a uma
consulta médica. Ao serem indagados das razões que os levaram a cometer tal ato, os jovens
declararam pensar que se tratava de uma prostituta. Em seguida, no dia 13 de julho, uma outra
gangue, envolvida em roubos e assassinatos e formada por cinco jovens universitários, sendo
dois estudantes de direito, todos de classe média alta de Salvador, conforme noticiou o jornal
A Tarde, matou um policial, por este ter reagido à tentativa de roubo do celular da sua
namorada. Interrogados, responderam com frieza e escárnio: “dá adrenalina‖ e ―nada vai
acontecer conosco.‖ (CIRINO, 2007, p.4).
Recortemos esse ato de delinqüência cometido por jovens da Barra da Tijuca a partir
das declarações do pai de um deles: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas
pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?4 Para este homem, o ato
do filho nada representa de grave; apenas ele não queria vê-lo incluído no conjunto dos
bandidos pobres, pretos e habitantes da periferia, como são habitualmente identificados nas
pesquisas sociológicas.
4
Extraído da reportagem televisiva do Jornal Nacional da Rede Globo em 14/06/2007.
114
Há aqueles que não admitem que a escola reprove o jovem que tirou notas
baixas, os que ameaçam o síndico do condomínio que mandou baixar o som
depois das 22h etc. Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor:
se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres)
pela lógica da vida privada. [...] Quem disse que os jovens não lhes
obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas,
humilham os empregados - igualzinho a seus pais. O que nos coloca a
pergunta: que valores, que representações, no imaginário social, sustentam o
exercício necessário da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma
mãe, hoje, se sentem autorizados a coibir, mesmo o consumo (onde todos
são chamados, mas poucos os escolhidos) é: você pode. Você merece. Não
há limites pra você, cliente especial. (KEHL, 2007).
Trata-se de uma obediência às leis ditadas por uma sociedade na qual as projeções do
mercado e as regulações econômicas comandam a homogeneização dos modos de vida e as
rotinas instrumentalizadas, guiadas pelos objetos a serem consumidos. (SOLER, 2000, p. 80).
O que fazem e o que dizem pais e filhos, apenas denota os valores com os quais
concebem o outro, a si próprio, o público e o privado e, em última instância, a vida. Os pais
cuidam menos dos filhos? Perderam a moral e a ética? Os filhos não respeitam mais os pais?
Não, apenas estão todos navegando no mesmo cyber-espaço, absolutamente comandados
pelos imperativos de gozo do discurso globalizado, na luta para garantir o pensamento único,
estratégia até aqui eficiente no controle da produção do mercado e da economia.
No que tange à economia psíquica, o que acontece é que o sujeito se modaliza ao
discurso. Sempre dividido, o sujeito facilmente se identifica e se aliena aos significantes e aos
objetos libidinais que vêm do campo do Outro. Entretanto, em sua gulodice de gozo, o sujeito
até deixa uma brecha para ser manipulado mas, em última instância, jamais se deixa capturar
completamente, escapando pela via da fantasia e do sintoma. Esta é a chance da psicanálise. É
preciso ainda dizer que nenhum fundamento teórico para explicar a alienação produzida pelos
115
discursos implicados nos fatos atuais, exime pais e filhos da responsabilidade relativa ao
desejo e ao gozo que os causam.
Recorremos ao fragmento de caso apresentado por Carneiro Ribeiro nomeado de
―Pitboy‖ por ser exemplar na elucidação da violência do capitalismo que envolve, igualmente,
a todos, e que comparece na clínica psicanalítica. A autora declara ter sido procurada por um
casal que caracteriza como bonito, rico, bem vestido.
Mas a autora não se contenta com esta conclusão e faz uma convocação aos analistas
para que se posicionem frente ao excesso de pulsão de morte reinante no discurso da pós-
modernidade tecnocrata.
A II Guerra Mundial destruiu de vez todos os tabus que fundam a civilização
com os campos de extermínio. Nossa civilização, conduzida
progressivamente à barbárie, numa sucessão de guerras, em que o gozo da
destruição nem sequer se disfarça em mentiras aceitáveis, pede ao
116
Há dez anos, o poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller deixou claro, numa
entrevista, que não via Auschwitz como um desvio ou exceção, mas sim
como altar do capitalismo, último estágio das luzes e modelo de base da
sociedade tecnológica. Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o
homem é sacrificado em nome do progresso tecnológico, porque o critério
da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria- prima, de
material; seria o último estágio das Luzes ao realizar plenamente o cálculo,
por elas inaugurado; e, finalmente seria o modelo de base da sociedade
tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na
morte a busca da funcionalidade e eficácia, princípios fundamentais do
sistema técnico moderno. A eles se agregam, contudo, novos temores como
aqueles a propósito da degradação do meio ambiente e das mudanças
climáticas, dos vazamentos de radiações e do lixo tóxico, do terrorismo high
tech, da violência social [...] (SANTOS, 2000).
Na lúcida análise de Betty Fuks, em consonância com o autor acima citado, não se
pode avaliar o Holocausto como acidente histórico pretensamente ultrapassado. Convém
seguir as indicações de Lacan, que sinaliza para muito menos tomá-lo como uma operação de
guerra, ―pois a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres que os faziam entrar no ciclo
da produção/consumo, acabou sendo o saldo da aliança feita entre o poder das invenções
tecnológicas e as organizações nazistas em sua determinação de eliminar qualquer resquício
de alteridade.‖ (FUKS, 2003, p. 56).
118
inclassificáveis. A fala seria ainda capaz de promover um novo regime de relação com o
corpo, e uma nova relação com o gozo da vida?
Apostamos que as palavras numa análise não perderam seu vigor, pois a palavra do
psicanalista situa-se no nível do que não é nem falso, nem verdadeiro, mas enunciação, que se
subtrai do modo comum de dizer. O gesto do analista que convida o analisante a dizer tudo,
abre para ele a experiência de uma palavra cujo dizer vai além do dito. O resíduo dessa
experiência, a conseqüência de uma análise é o poder de reencantamento do mundo pela
palavra. A palavra em análise dissocia-se da exigência de utilidade direta. Não porque ela não
seja útil, mas porque não serve para adaptar o sujeito à moralidade vigente, nem aos ideais de
consumo do capitalismo, nem aos valores que aí estão. Ela é útil para recriar no ser falante o
gozo de viver que não aspira ao progresso, porém ao avanço que se faz sob a determinação da
repetição para Freud e do real para Lacan e que admite o retorno do Um, do dito primeiro que
funda a série. Dizer que a estrutura da experiência psicanalítica não é sem, é valorizar a
repetição como dimensão real do sintoma. Essa dimensão se opõe em princípio ao avanço do
significante separado do gozo do falante, como está posto, pelo avanço do significante puro
da ciência no capitalismo.
Numa cultura capitalista individualizante, onde os laços sociais estão empobrecidos e
esvaziados, encontra-se em contrapartida, a proposta psicanalítica que continua apostando na
recuperação do laço do ser falante com a palavra em sua dimensão discursiva. Nesta clínica o
lugar do dizer reabilita o real como impossível, ex-sistente. Reabilita a ex-sistência do dizer
em relação ao dito, que tem relação com a estrutura de linguagem que nos determina.
Confronta o discurso do capitalista ao resgatar o direito à insatisfação, como não se reduzindo
a insaciedade. É o analista que pode dizer ao mercado que não há o objeto da satisfação. Que
não se trata de que temos muito ou pouco, pois não há, nem haverá no mercado, jamais, o
objeto que poderia nos satisfazer. Queremos analisar a violência à luz deste esforço de resgate
da dignidade da insatisfação. Nós não exigimos que o mercado produza mais para nos
satisfazer, mas sustentamos que ele não pode dar aquilo que demandamos. Há uma política a
deduzir do ato analítico, que é a noção política do gozo que requer que o ato mesmo de tomar
a palavra se faça ação, porque falar é gozar. Trata-se de tomar a palavra para reinventar o
mundo, mais além de exercer as liberdades democráticas, que nada mais fazem que
120
5
O texto que aparece nas páginas 118- 120 foi extraído do artigo de autoria de Coelho dos
Santos T. e Teixeira M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da
Psicologia em Revista. PUCMINAS, v. 12, n. 20. 2006
121
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
fascínio compulsivo ou evitação fóbica o estado atual da violência. Freud já advertira quanto a
tendência da maioria a reagir com extrema moralidade e hipocrisia às situações de violência.
Partimos do princípio de que tudo relativo ao laço social diz respeito à psicanálise. A
violência que se configura na contemporaneidade se apresenta como um problema crucial da
complexa relação do sujeito com a polis. Abordar psicanaliticamente o estranho e familiar
universo da violência revela nossa discordância quanto a posição daqueles que atribuem a
violência ao outro, a cujo campo não pertencem.
Problemas cruciais relativos à violência, evidenciados pela clínica psicanalítica, em
toda a sua extensão, demonstram a insuficiência de explicações causalistas, obrigando-nos a
reconhecer a insuficiência dos saberes, inclusive o da psicanálise. A teoria dos discursos veio,
oportunamente, auxiliar este debate.
Do mestre antigo ao mestre moderno, o que está em jogo é a mais-valia produzida pelo
capitalismo neoliberal, razão da exacerbação de todos os métodos de exploração cruel do
homem pelo homem, sem qualquer sentimento de solidariedade, somando-se a este, a furiosa
devastação da natureza e consequentemente da vida.
As guerras e determinados fenômenos subjetivos, como o suicídio, confirmam a
versão puramente destrutiva da pulsão de morte, vicissitude do supereu na teoria freudiana e o
real sem lei, desarticulado do simbólico e do imaginário, estranho gozo mortífero do falasser,
na teoria lacaniana. Verdade válida para todas as épocas. Entretanto, a violência na atualidade,
nos obriga a reconhecer que algo desta báscula, entre o erótico e a destrutividade, mudou
radicalmente e que o termo mal-estar, relativo à pulsão de morte, utilizado por Freud, se
tornou insuficiente para nomear os fenômenos que estão acontecendo na contemporaneidade.
Diferentemente do que dissera o mestre, tudo leva a crer que a pulsão de morte ou
destrutiva não mais opera, apenas, silenciosamente. A tecnociência tem favorecido a
explicitação dos seus funcionamentos de muitas maneiras. Uma delas pode ser identificada
nas novas formas virtuais globalizadas de veiculação de notícias e das informações, que
trazem a um só tempo, ao conhecimento de um número considerável de pessoas, os horrores
dos conflitos individuais e sociais gerados pela barbárie neoliberal capitalista.
É preciso também dizer, que o discurso da tecnociência capitalista está sujeito a
irônicas contradições, pois, sem dúvida, o progresso engendrado pela tecnologia tem seus
encantos.
123
Adotamos a teoria que define a realidade, como realidade de discurso, ordenada pelas
modalidades de gozo nos laços sociais. Desta perspectiva, a linguagem, o inconsciente, as
pulsões e os laços sociais, só podem ser entendidos como constitutivos da subjetividade.
Resultam desta anterioridade conceitual, quatro discursos regidos pela castração, pelo
recalque e pelo supereu: do mestre, da universidade, da histérica e do psicanalista. O quinto
discurso, que é o do capitalista, não mais obedece a essas leis.
Paradoxalmente, o crescimento da violência no capitalismo termina expondo de forma
maximizada este elemento, ou seja, este significante, constitutivo e constituinte da estrutura
de linguagem. Esta compreensão da estrutura de discurso nos leva a concordar com aqueles
que defendem que a barbárie contemporânea, as guerras, as crueldades, as crescentes
segregações, não dependem das paixões gananciosas do ser humano, mas da razão. A análise
desenvolvida pela filosofia política, de que a razão é o instrumento que permite inferir a
guerra, por que o lugar onde esta se dá, é o das relações humanas, pode ajudar a refletir acerca
da concepção dos discursos, como fundamento da subjetividade.
O estudo clínico da violência obriga-nos a declarar sua outra face, a menos visível,
porém não menos importante, relativa a todas as vicissitudes do masoquismo, do gozo
mortífero que reage negativamente a vida e a cura.
No âmbito constitutivo da subjetividade, a violência primeira é do significante, da
arbitrariedade do S1, tal como se apresenta no discurso do mestre, exibida nas vicissitudes
tirânicas do supereu, ao imprimir a ferro e fogo as primeiras marcas da relação do homem
com o significante.
A psicanálise, enquanto um discurso entre outros, pode e deve se somar às outras áreas
do conhecimento e aos múltiplos movimentos que fazem resistência às múltiplas formas de
segregação e violência advindas do capitalismo. Munidos do discurso do psicanalista,
acreditamos que resta-nos favorecer a circulação da suposição de saber ao Outro.
124
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