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16/02/2022 14:01 Correio APPOA

Seis vezes Dora


249 - outubro de 2015

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA

Sumário
Editorial
Editorial

Temática
A Dora de cada um - Lucy Linhares da Fontoura

A afonia de Dora não para de falar: Dora histérica ou adolescente? - Roséli M. Olabarriaga Cabistani

Entre o Trauma e o Traum: notas sobre Freud e o caso Dora - Paulo Gleich

O deslumbramento de Dora - Maria Rosane Pereira

À procura de Dora - Maria Elisabeth Tubino


Mulher além de Dora - Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

Debates
Matriciamento na atenção básica de saúde: o psicanalista em ação fora de casa - Almerindo A. Boff*, Lúcia Martins Costa
Bohmgahren

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA

Editorial
Editorial
Primeiro grande caso da psicanálise registrado por Freud, o caso Dora – como ficou conhecido – relançou o enigma colocado pela
histeria, que o havia convocado primeiramente em seu trabalho com Breuer e Charcot. Se em seus Estudos sobre a histeria já havia
situado o sexual como elemento fundamental em sua etiologia, neste momento pode pensá-lo articulado com sua recém formulada
teoria sobre o sonho e os mecanismos psíquicos do inconsciente. Dora parece lhe oferecer a confirmação para tudo o que havia
teorizado, mas... acaba escapando!

Se retomamos neste ano a leitura desse texto no Relendo Freud é porque, mais de um século depois, a Dora de Freud segue nos
convocando a pensar. A histeria pode assumir novos disfarces e roupagens, mas (por enquanto) nunca saiu de moda – e, nesse
sentido, reler o caso nos ajuda a pensar em suas invariantes, sua estrutura e sua atualidade. Esse trabalho se inscreve nos
preparativos para o Congresso da APPOA deste ano – Corpo: ficção, saber, verdade –, tanto por como o sintoma na histeria coloca o
corpo em cena (e a cena no corpo), quanto pela possibilidade de atualizar o debate sobre as estruturas na comparação com a
atualidade da neurose obsessiva.

Boa leitura!

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA

Temática
A Dora de cada um
Lucy Linhares da Fontoura

O “Caso Dora”, que Freud redigiu com o título Fragmento da análise de um caso de histeria expõe a primeira
psicanálise que Freud
realizou, anterior ao caso do Homem dos Ratos
(1909) e ao do Homem dos Lobos (1918). Freud o redigiu entre o fim de
1900 e o
início de 1901 e o publicou em 1905. Nesse meio tempo,
elaborou a Interpretação dos Sonhos e os Três ensaios
sobre a teoria da
sexualidade. Desejava originalmente intitulá-lo
Sonho e histeria e com ele comprovar suas teses sobre a neurose
histérica (etiologia
sexual, conflito psíquico, hereditariedade
sifilítica), bem como caracterizar o tratamento psicanalítico como
fundamentado na
interpretação do sonhos e na associação livre,
diferenciando-o da catarse e da hipnose.

Segundo Roudinesco&Plon (1998), trata-se do


documento clínico que mais se comentou desde sua publicação. Deu
origem a
dezenas de artigos, vários livros, um romance e uma peça
teatral, tendo se tornado objeto privilegiado dos estudos feministas.
À
avaliação de muitos desses autores de que este tratamento não
foi tão bem sucedido quanto as outras duas psicanálises referidas,
Roudinesco replica que, de fato, Freud teve muitas dificuldades com
sua paciente e não as mascarou.

Vamos, então, situar pontos nodais da apresentação do


caso por Freud, assim como de sua interpretação.

Enurese noturna, cansaço por esforço físico,


dispnéia, enxaqueca, tosse nervosa, afonia, repugnância, alucinação
sensorial,
rouquidão, apendicite. É no
corpo que Dora expressa, através de suas múltiplas identificações,
sua dolorida batalha para tornar-se
mulher.

Seus sintomas corporais se produzem desde a infância,


em estreita correlação com os sintomas paternos. A menina Dora
desde cedo
produziu sintomas neuróticos no corpo, confirmando a tese
freudiana de que, na histeria, o corpo é lugar de conflito e do
sexual. Seus
padecimentos denunciam os efeitos da excitação de
origem sexual e uma identificação à figura paterna, a quem era
particularmente
devotada.

A partir de uma história infanto-juvenil rica em


sintomas corporais neuróticos, ela “desabrocha” como jovem
mulher, de rosto
inteligente e agradável, segundo Freud. No entanto,
passa a apresentar uma alteração em seu caráter que alarma os
pais: desânimo,
insatisfação consigo mesma e com a família,
atitude de enfrentamento hostil com o pai e desentendimento cabal com
a mãe, que
buscava a todo custo atraí-la para as tarefas
domésticas. Dora começara a evitar o trato social; quando o
cansaço e a falta de
concentração mental de que se queixava o
permitiam, ocupava-se em frequentar conferências para mulheres e se
dedicava a estudos
mais sérios.

Certa ocasião, os pais encontraram entre seus pertences


uma carta em que Dora se despedia deles, alegando que já não
suportava a
vida. Embora avaliasse que aquele propósito não se
sustentaria efetivamente, o pai de Dora ficara preocupado e quando
Dora teve o
primeiro ataque de perda de consciência, após uma
discussão sem gravidade entre os dois, deteminou seu encaminhamento
a Freud,
pela segunda vez, agora aos 18 anos. O pai de Dora havia
sido tratado com sucesso por Freud contra a sífilis, alguns anos
antes.

A figura principal do quadro familiar de Dora era o pai,


abastado industrial de meia idade, descrito com admiração por
Freud, tanto por
suas características pessoais (inteligência,
vivacidade, talento) como pelas circunstâncias de sua vida, que
condicionaram a trama da
história patológica e infantil da
paciente. Quanto à mãe de Dora, Freud a descreve, a partir do
relato de pai e filha, como uma mulher
pouco instruída e simplória,
que, em contrapartida à doença contraída pelo marido através do
sexo (sífilis, quando ainda era solteiro),
afastou-se dele e
desenvolveu obsessões de limpeza e ordem. As relações entre mãe e
filha eram frias, Dora a menosprezava,
criticava e se subtraíra por
completo a sua influência.

Dora tinha um único irmão, um ano e meio mais velho, a


quem admirava e que havia sido seu modelo; entretanto, neste momento,
ele
se mostrava interessado em cuidar da própria vida,
distanciando-se dos assuntos familiares. Quando se aproximava,
apoiava a mãe.

O pai de Dora, ao enviá-la a Freud, queixara-se da


intransigência de Dora com seu relacionamento com um casal amigo,
os K., cuja
mulher o cuidara em uma de suas enfermidades e a quem a
própria Dora também estivera ligada, convivendo com eles em férias,
cuidando de seus filhos pequenos, tornando-se íntima dela. De
repente, Dora denunciara o homem, que alegava ter-lhe feito uma
proposta amorosa durante uma caminhada em um passeio pelo lago, à
qual ela reagira com uma bofetada e fugira. A partir daí, exigia
que
o pai rompesse com ambos. O casal negara as acusações e, em
contrapartida, denunciara a curiosidade de Dora por leituras
sobre
sexo, particularmente “A fisiologia do amor”, de Mantegazza,
sugerindo que essa seria a fonte que alimentava suas fantasias.

Freud não se deixa levar por essa versão, nem


corresponde à expectativa do pai de desautorizar a versão de Dora
como fantasia. Ao
ouví-la, pode saber que Dora tem pleno
conhecimento da verdade da ligação do pai com a Sra. K. e de seu
próprio lugar como objeto
de troca, como compensação ao Sr. K.,
por sua tolerância à ligação entre o pai de Dora e a mulher de
K..

No trabalho da análise, surge uma outra cena erótica


entre Dora e o Sr. K., que antecede no tempo a cena do lago e que
jamais fora
mencionada por ela. Dora contava 14 anos e vai
encontrar-se com os K. em sua loja, para assistirem juntos a um
festival religioso nas
cercanias. Lá chegando, encontra o Sr. K.
sozinho, ele que dispensara os empregados e dera um jeito de se ver
livre da mulher; ele a
abraça e a beija inesperadamente. Presa de
violenta repugnância, Dora se desvencilha e foge. Os vários
sintomas, inclusive
corporais, que são produzidos por ela a partir
dessa cena, são interpretados no trabalho da análise.

A análise conta com dois sonhos, exaustivamente


trabalhados.

O primeiro sonho: “Uma


casa estava em chamas. Papai estava ao lado da minha cama e me
acordou. Vesti-me rapidamente. Mamãe
ainda queria salvar sua caixa
de jóias, mas papai disse: `Não quero que eu e meus dois filhos nos
queimemos por causa da sua caixa
de jóias.’ Descemos a escada às
pressas e, logo que me vi do lado de fora, acordei...”

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A perspectiva interpretativa que Freud toma é a de que
Dora está apaixonada pelo Sr. K., protegeu o caso extraconjugal
entre o pai e
a Sra. K. para liberar o Sr. K. para si; depois, se
defende deste amor com a reativação de seu amor pelo pai.

Mas há lacunas: por que, pergunta-se ele – e a


própria Dora, ao questionar o por quê de não conseguir aceitar,
como o irmão, a
ligação entre seu pai e a Sra. K. – por que Dora
permanece obcecada em se ocupar da relação entre esse casal? Essa
corrente
inconsciente, Freud só vem a interpretar depois que a
análise é interrompida por iniciativa de Dora.

Trata-se da ligação intensa, íntima, amorosa e leal


que Dora estabelecera e mantivera com a Sra. K., contra todos os
desencontros e
mesmo a traição e a calúnia por parte desta, de que
fora objeto: só ela sabia da curiosidade de Dora e de suas leituras
sobre a
sexualidade. Freud interpreta esta como uma corrente
homossexual importante na economia libidinal das jovens histéricas,
que nelas
se mantém, para além de sua habitual vigência na
puberdade, em ambos os sexos.

O segundo sonho: “Eu estava


passeando por uma cidade que não conhecia, vendo ruas e praças que
me eram estranhas (depois
acrescentou:
Em uma das praças, vejo um monumento”). Cheguei então a uma casa
onde eu morava, fui até meu quarto e ali
encontrei uma carta de
mamãe. Dizia que, como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus
pais, ela não quisera escrever-me
que papai estava doente. `Agora
ele morreu e, se quiser (depois acrescentou:
após esta palavra, havia um ponto de interrogação:
queres?), você
pode vir.’ Fui então para a estação ferroviária
[Bahnhof] e perguntei umas cem vezes:
`Onde fica a estação?’ Recebia
sempre a resposta: `Cinco
minutos.’ Vi depois à minha frente um bosque denso no qual
penetrei, e ali fiz a pergunta a um homem que
encontrei. Disse-me:
`Mais duas horas e meia.’ Pediu-me que o deixasse acompanhar-me.
Recusei e fui sozinha. Via a estação à
minha frente e não
conseguia alcançá-la. Aí me veio o sentimento habitual de angústia
de quando, nos sonhos, não se consegue ir
adiante. Depois, eu estava
em casa; nesse meio tempo, tinha de ter viajado, mas nada sei sobre
isso. Dirigi-me à portaria e perguntei
ao porteiro por nossa casa. A
criada abriu para mim e respondeu: ‘A mamãe e os outros já estão
no cemitério [Friedhof]’.
Na sessão
seguinte, acrescentou: Muito
nitidamente, me vejo subir pela escada e, após a resposta dela me
dirijo ao meu quarto, sem tristeza
alguma e lá leio um grande livro
que está sobre minha escrivaninha.”

Na interpretação do sonho, Freud situa que a própria


Dora vinha formulando perguntas sobre a ligação entre suas ações
e os motivos
presumíveis delas: “Por que foi que, nos primeiros
dias depois da cena do lago, eu nada disse sobre ela?” “Por que,
então, de repente
contei isso a meus pais?”

Dentre as associações que o sonho evocou a Dora,


ressalte-se a lembrança de sua estada em Dresden, em que, visitando
sozinha
uma famosa galeria, deixara-se ficar durante duas horas,
encantada, diante da Madona Sistina, sem atinar outra justificativa
para sua
captura, senão “A Madona”
(palavras que apenas conseguiu balbuciar, ante a pergunta sobre o que
tanto a agradara no quadro).

Ainda um registro sobre um sintoma que persistiu, ao


qual nos referiremos adiante: “Depois da
apendicite, tivera dificuldade em
caminhar, pois arrastava o pé
direito. Isso persistira por muito tempo, e portanto de bom grado ela
evitava as escadas. Até hoje, o pé
ainda se arrastava muitas vezes.
Os médicos por ela consultados a pedido do pai muito se haviam
admirado com essa seqüela
extremamente incomum de uma apendicite,
sobretudo porque a dor abdominal não voltou a aparecer e de modo
algum acompanhava
o arrastar do pé”.
(FREUD)

Para finalizar este esboço do caso Dora, segundo a pena


de Freud, tomamos a instigante leitura de Roudinesco&Plon
(1998:51): “A
entrada de Freud em cena
transforma essa história de família, este drama burguês, numa
verdadeira tragédia do sexo, do amor e da
doença”.
Neste sentido, assemelha-se a um romance moderno. “O
drama inteiro gira em torno da instrospecção através da qual a
heroína mergulha, progressivamente, nas profundezas de uma
subjetividade que se oculta de sua consciência. E a força da
narrativa
prende-se ao fato de que Freud faz surgir uma
impressionante patologia por trás das aparências de uma grande
normalidade. Com
isso ele pode restituir a Dora uma verdade que sua
família lhe roubara, ao chamá-la de simuladora.”

Em 1922, o psicanalista Felix Deutsch, discípulo de


Freud, que recém apresentara seu trabalho “Algumas reflexões
sobre a formação
dos sintomas de conversão”, no Sétimo
Congresso Psicanalítico Internacional em Berlim, foi consultado por
um otorrinolaringologista
sobre uma paciente dele, uma mulher casada,
42 anos, que encontrava-se acamada e apresentava acentuados sintomas
da
Síndrome de Ménière: zumbido, diminuição da audição no
ouvido direito e insônia devido a ruídos nesse ouvido. Na avaliação
com
Deutsch, depois de referir seus sintomas físicos, a paciente
passa imediatamente a queixar-se da indiferença do marido e de sua
infelicidade conjugal. Seu único filho começava a também
afastar-se dela: voltava tarde para casa, o que a fazia suspeitar que
começara a se interessar pelas mulheres. Ela o esperava acordadaaté
que o ouvisse chegar, em horas tardias. Falou de seu
passado, de como
o irmão sempre a apoiara, diferentemente de seu pai, que havia sido
infiel a própria esposa. Contou que o pai
tivera um relacionamento
extra-conjugal com uma jovem mulher casada, com quem ela, a paciente,
havia travado amizade e a cujos
filhos havia cuidado, quando era bem
jovem. O marido desta mulher lhe havia feito então propostas
sexuais, que ela rechaçara.

Na continuação do relato, Deutsch conta que quando o


marido da paciente e o otorrino deixam o quarto, ela pergunta se
Deutsche
conhecia o Professor Freud, ao que ele lhe devolve a
pergunta. Apresenta-se então, orgulhosamente, como o famoso caso
Dora,
informando que não voltara a consultar nenhum psiquiatra
depois de Freud. Questiona a interpretação de Freud sobre seus dois
sonhos e pede a Deutsch sua opinião. Ele, então lhe propõe a
interpretação de que seus sintomas atuais se devem à relação com
o
filho, a sua escuta atenta às excursões noturnas dele.

(Observação: no exame físico, Deutsch observara que


ela claudicava com a perna direita; questionada, não sabia explicar
o motivo,
apenas refere que apresenta essa condição desde a
infância, de modo intermitente.)

Na consulta seguinte, Deutsch a encontra não mais


acamada, tendo seus sintomas desaparecido. Ela própria informou que
seus
ataques haviam deixado de ocorrer. Reiterou suas queixas à vida
conjugal, descreveu suas dores pré-menstruais e seu corrimento
vaginal após a menstruação. Falou de sua infeliz relação com a
mãe, que só se ocupava da limpeza e da própria constipação,
condição que agora ela mesma também apresentava. Falou com orgulho
da carreira de seu irmão e do medo de que seu próprio filho
não
seguisse o exemplo do tio.

Deutsch informa que o irmão de Dora ainda entrou em


contato com ele várias vezes, preocupado com o sofrimento e as
dificuldades
da irmã.

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Para concluir, vamos ao trabalho de um historiador e de
uma cientista social ingleses, incluído nos estudos feministas
dedicados ao
Caso Dora. Os autores, John Forrester e Lisa
Appignanesi, nos informam que Ida Bauer – a nossa Dora, casou-se
com Ernst Adler,
um engenheiro e compositor, nove anos mais velho que
ela, tendo dado à luz um filho, em 1905. Dois meses depois do
nascimento
do filho, Ida, que era judia, converteu-se ao
cristianismo. Em sua vida de casada tornou-se frequentadora de salões
e da alta roda. Ida
e seu irmão, Otto Bauer estiveram próximos por
toda vida; ele tornou-se um político socialista de grande expressão,
contrariando o
conselho de Freud, que lhe sugerira que ser professor
seria mais adequado a seu temperamento. Freud teria dito: “Não
tente fazer os
homens felizes, eles não desejam a felicidade.”

O filho de Ida, Kurt, músico como o pai, diferentemente


deste teve uma carreira bem-sucedida na música. Foi assistente de
Toscanini
no Festival de Salzburgo e ali trabalhou lado a lado com
outra cria de Freud, Herbert Graf, o pequeno Hans. Radicou-se nos
Estados
Unidos, se tornou cidadão norte-americano e, finalmente,
estabeleceu-se em São Francisco, na Califórnia, onde tornou-se o
diretor
geral da Ópera local.

Em 1938, por ocasião da anexação da Áustria à


Alemanha, Kurt ajudou sua mãe a partir para Paris e depois para Nova
York, onde ela
se estabeleceu. Ida estava sozinha em Viena, seu
marido falecera em 1932 e ela passara por grandes dificuldades. Em
1945, em
Nova York, Ida faleceu da mesma doença de sua mãe, câncer
de cólon.

Mas a pesquisa sobre sua vida trouxe à luz algo que


sugere outra possibilidade de interpretação para como se desenrolou
sua
existência.

O jogo de bridge
recentemente inventado, se tornara muito popular em Viena, entre as
duas guerras. Jogar e ensinar bridge tornou-se
o centro de sua vida.
Nos círculos particulares de bridge do mundo em que vivia, Ida
tornou-se uma mestra, dando aulas a outras
mulheres de classe média
em suas casas.

Trata-se de um jogo em que a habilidade reside no


entendimento mútuo de comunicações abertas mas codificadas entre e
através de
um grupo de quatro pessoas.

Ida, expert em manter a mão em segredo, também sabia


quando e como jogar. Sua parceira nessa atividade elegante,
intelectualmente instigante e desafiadora era Giuseppina Zellenka,
ninguém menos que a Sra. K.

Referências bibliográficas:

APPIGNANESI, Lisa & FORRESTER, John. Dora: um


fracasso exemplar (capítulo 5). In As
mulheres de Freud. Rio de Janeiro:
Record,
2010. P. 241-270.

DEUSTCH, Félix. Una ‘nota a pie de página’ al


trabajo de Freud, ‘Análisis fragmentario de una histeria’.
(1957) Publicado
originalmente em The Psychoanalytic Quarterly, 1957,
XXVI. Versão espanhola em Revista de Psicoanálisis, 27, n. 3, 1970,
p. 595.

FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de


histeria (1905/1901). In Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro:
Imago. V. VII.

ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Verbete Bauer,


Ida. In Dicionário de Psicanálise.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 50-54.

Autor: Lucy Linhares da Fontoura

A afonia de Dora não para de falar: Dora histérica ou adolescente?


Roséli M. Olabarriaga Cabistani

Ao pensar o Caso
Dora e o que mais dizer sobre esse que tantos textos já inspirou, a
questão que me veio foi aquela desenvolvida
numa das reuniões
preparatórias ao congresso sobre o corpo, a partir da leitura de
Giorgio Agamben (2009). A pergunta refere-se a
como tornar um texto
contemporâneo. É conhecido o pensamento do filósofo sobre o que é
o contemporâneo. O texto de Freud, isto
é, a apresentação do
caso, atendido em 1900, nos ensina muito a partir da posição de
Freud, que tem, como diz Agamben a respeito
do contemporâneo,“...uma
relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo
tempo, dele toma
distâncias...”(Agamben, 2007, p.59) Escreve este:

“Aqueles que
coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a
esta aderem perfeitamente,
não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o
olhar sobre
ela. (Agamben, 2009, p.59).”

Pensei então nas


perguntas que podemos colocar hoje ao texto, que é passado e que não
paramos de trazer ao nosso tempo, por
que ele nos dá pistas para
enfrentar as dúvidas que se apresentam. Dizemos hoje que a histeria
foi escutada pela psicanálise, na
palavra das mulheres que na virada
do séc. XIX para o séc. XX, manifestaram seu mal-estar, através
dos sintomas conversivos e
teatrais, tão enigmáticos para os
médicos da época e tão grávidos de sentidos para Freud e os
psicanalistas que o seguiram. A
psicanálise ao dar voz ao que foi
recalcado, confere às mulheres a condição de narradoras de suas
histórias, de seus sofrimentos e,
portanto, também a
responsabilidade que acompanha aqueles que acedem à posição de ser
sujeitos de seus desejos.

Dora denunciou uma


trama, na qual estava metida até o pescoço, possivelmente tentando
servir-se das referências necessárias para
aceder a uma posição
feminina, muito difícil para uma moça, cuja mãe é uma mulher que
recusa a dimensão sexual de seu desejo,
uma mulher “apagada”,
consumida pela vida doméstica em sua face mais cruel, isto é,
limpar a sujeira, num automatismo sem fim,
versão indicada por
Freud, da psicose de ama-de-casa.

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Como pensaríamos
Dora hoje, chegando para um tratamento psicanalítico, aos 18 anos,
trazida pelo pai, homem em torno de 50
anos e já conhecido do
analista? Acredito que pensaríamos em escutar a moça, buscando
ouvir sua queixa e trabalhar no sentido de
descolar a demanda do pai,
da demanda que a própria moça poderia vir a fazer.

No mesmo ano em que


o Caso Dora veio a público, 1905, Freud publicou os Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (Freud,
1989). No terceiro desses
ensaios, As
transformações da puberdade,
ele faz referência a uma das tarefas colocadas ao adolescente,
que é
o desligamento da autoridade dos pais, uma realização psíquica das
mais significativas, como enfatiza, através do qual se cria
a
oposição entre a nova e a velha geração, oposição essa tão
importante para o progresso da cultura, conforme afirma o mestre. Com
relação às moças, Freud diz que aquelas que não superam a
autoridade dos pais e não retiram deles seu amor, ou só o fazem de
maneira muito parcial, persistem em seu amor infantil muito além da
puberdade e, segue:“...e é muito instrutivo constatar que é a
essas moças que falta, no seu posterior casamento, a capacidade de
dar ao marido o que é devido a ele. Tornam-se esposas frias e
permanecem sexualmente anestesiadas.”(Freud, 1989, p.214)

Apesar dessa
abordagem, de suas elaborações sobre a puberdade, Freud escuta Dora
como uma jovem e ele marca essa condição
no texto, mas é como
mulher que ela é instada a responder por que sente “nojo” de um
homem como o Sr. K, tão interessante e bem
apessoado, na opinião de
Freud.

Um dos elementos que


nos faz voltar a este texto tão lido e relido, é o fato de
encontrar nele conceitos e elaborações teóricas ainda
na sua
pré-história. Freud foi generoso ao legar a escrita de um caso
inacabado,não ocultou a sua própria castração, isto é, seus
vacilos e fracassos. De onde podemos concluir que aprendemos mais
com nossos erros, do que com nossos êxitos.

Lacan trabalhou
sobre o que Freud não escutou em Dora. E muitos psicanalistas o
fizeram, na “tentativa de terminar essa análise
inacabada”,
escreveu Maria Rita Kehl (Kehl, 1998, p.298).

Encontramos
inclusive uma carta ficcional, escrita por Octave Mannoni (1983),
cheia de ironia, onde o autor “psicografa” Dora
comunicando-se
com a Sra. K, à propósito da publicação do Caso Dora que ela
havia lido. Inicia da seguinte forma:

“S.L.J. (iniciais
de minha queridíssima J. em alemão, segundo a nota do editor)___
Sim. Não, você não se engana, nem poderia se
enganar; não você.
Sim, sou eu. Que estranho presente de ano novo! Deve ter ficado
espantada. Que sorte extraordinária que tenha
dado com esses dois
números (Nota do editor: certamente os nºs4 e 5- outubro e novembro
de 1905, da revista tal), senão tampouco
receberia carta sua.

Cinco anos já!


Começava a esquecer essa história. Não, não esquecia de você. O
estranho sobrenome a intriga, quer que o explique,
mas eu mesma não
sei de nada, nunca se falou disso nem tenho nada com o assunto. É na
certa porque D vem antes de E, deve ser
o sistema dele, viucomo a
você ele chamou K. Aliás, me lembrei, no início me explicou o
método, ele gosta de explicar, demais, é
cansativo, e havia, não
sei mais por que, uma alusão à buceta de Pandora. Ele queria falar
de etimologia, isto lembrou-me que me
obrigaram a aprender grego.
Cortei-lhe a palavra, eu era um pouco pedante nessa época, para
dizer que doronera
o dom, o sacrifício
aos deuses, a vítima. Sabe, ele nunca entendeu,
não quis entender, o quanto eu era a vítima sacrificada. Mas isso
deve ter passado
em sua cabeça, e é por isso que Dora sou eu. Em
todo caso, é o que acabo de achar. Talvez seja um pouco forçado.
Além do mais,
realmente não tem nenhuma importância. Se fosse só
isso!

Não me agradou nada


ser tratada de histérica sem a menor cerimônia, mesmo dizendo ser
uma pequena histeria. Um “caso menor”, é
o que eu sou...
(p.9-10)”

Dora/Octave segue
muito irônica, mais adiante, ao referir-se a pergunta que faz Freud
sobre a bofetada que ela dera no Sr. K, ela diz
que é claro o
motivo, mas...

“Para ele não é


claro. Parece tão reservado e de repente solta verdadeiras
barbaridades. Como quando pensa saber por que seu
marido me enojava.
Ele tem várias explicações (todas nojentas, naturalmente).
Exemplo: que eu teria sentido o seu ...dentro das suas
calças! A
audácia masculina! Quando não se exerce na sedução, é no
insulto! Eu não disse nada, também sei me calar. Imagine-me
você
dizendo: Não Herr Professor, (quero dizer Privat-dozent), eu não
senti isso. Além do mais, de que valem estas explicações? Se o
...do seu marido é nojento, não há problema. Se não o é, de onde
vem o nojo? Enfim, é complicado demais, não estou certa de
enxergar
o ponto de vista dele. Mas pelo menos compreendi o professor. Pode
ser visto nos seus artigos, mas eu já tinha adivinhado,
sim,
compreendi que ele estava apaixonado por papai! Não ria. Falo sério.
É verdade e tudo se explica dessa maneira. Ele não se
interessa
realmente por mim, mas apenas em agradar papai. Desde que vi que
estavam de acordo, o que ele próprio talvez não visse,
comecei a me
tornar prudente, desconfiada e até, como se diz em C,, matreira.
Quando sugeriu que eu estava apaixonada por você,
eu disse “claro”,
sem pudor, e talvez com orgulho. Isso o embaraçou, como se fosse
franco demais para se verdade. Mas eu poderia
tê-lo embaraçado
ainda mais se dissesse: “E o senhor? Não está apaixonado pelo
papai?” Mas então, o que não teria ouvido! Era
arriscado demais,
o jogo era desigual... (p.13-14)”

Enfim, a leitura
desse material é interessante, mas o recorto aqui para propor a
ideia de que essa ficção, faz parte da Dora de
Mannoni, mais um a
buscar dar voz, lugar de fala, a essa análise interrompida tão
precocemente.

O que nos diz o


autor dessa carta? Aponta que Freud estava muito preocupado com seu
método, que aliou-se ao pai de Dora, pelo
menos pensa que ela o
sentiu assim, e que construiu demais suas interpretações, sem
conhecer como andavam as coisas no nível da
transferência. Enfim, o
legado de Freud nos trabalha pelo que possibilitou, pelo que faltou ,
ou até mesmo, onde tropeçou. Ensinou-
nos a continuar a escutar
Dora, essa adolescente que recusou-se a subjetivar-se através da via
proposta pelos homens que tentaram
se servir dela, ao antecipar o
destino de infelicidade neurótica, tal qual a própria mãe, nos diz
Maria Rita Khel(1998), numa outra
leitura do caso.

Foi nessa linha de


escutar Dora que pesquisei o que Dora lia na Fisiologia do Amor de
Mantegazza.

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Paolo de Mantegazza,
viveu entre 1831 e 1910 e, segundo Guerra (2013), foi um antropólogo
e médico alinhado ao projeto de
classificação científica, que no
século XIX se estendeu para a classificação dos homens e de seus
sentidos. O mesmo contestou a
“teoria do infantilismo”, defendida
por Lombroso e Ferrero, que dizia respeito a comparação da
estrutura orgânica das mulheres com
aquela das crianças, opondo a
esta a “teoria da complementariedade funcional dos dois sexos.
Guerra (2013) ainda afirma que
Mantegazza defendeu uma iniciação
sexual do jovem sem aprisioná-lo nas suas primeiras descobertas
fisiológicas, exposta na
seguinte expressão: “primeiro amor e não
amor único”. A escrita de Mantegazza prima por uma liberalização
das práticas sexuais, nas
suas manifestações concretas.

Como podemos
verificar, Dora instruiu-se cientificamente, sobre as coisas do sexo.
Ela buscava um saber que não encontraria nos
livros, mas essas
leituras apontam a uma inquietude que a situa no espírito de sua
época. A pergunta que não cessa de perseguir é
aquela que Freud e
Lacan decantaram de suas experiências clínicas: O que é ser uma
mulher?

Perguntamos então,
não é essa também a questão central da adolescência? A da
identidade?

Dora apresentava-se
como arrogante, reivindicadora, distante da mãe. Voltou-se a uma
Outra a fim de resolver o enigma da
feminilidade. Entretanto, a mãe
ou sua substituta, à qual a menina precisa se identificar para
tentar saber o que é uma mulher,
também é alguém de quem precisa
se manter separada, diferenciada. Isto é um impasse que impede a
formulação de uma identidade
feminina:

“Ser mulher é, ao
mesmo tempo ser como a mãe e tentar ser uma Outra, destacada desta
que no inconsciente será sempre absoluta,
dominadora, mortífera. À
pergunta “o que é ser uma mulher?” a menina precisa responder
ainda uma outra __ quer mulher sou eu?__
num movimento de separação
da mãe para o qual ela tem de contar com o falo simbólico que ela
espera lhe venha do pai.” (Khel,
1998, p.304)

Voltando o olhar ao
“escuro de nosso tempo”, penso que esta é uma questão muito
presente ainda,na clínica com jovens mulheres
adolescentes, quando
precisam fazer uma escolha profissional, amorosa, ou tomar uma
posição na vida. Como fazer escolhas que as
diferenciem das mães,
quando estão tão identificadas a algum traço dessas mães? Como
escapar ao espelhamento mãe-filha, senão
a partir de uma
triangulação possível, “... para que a menina possa fazer-se
mulher sem correr o risco de confundir-se com o sexo de
onde ela,
literalmente, saiu.” (Khel, 1998, p.304)

Outras questões que


a leitura do caso Dora pode vir a iluminar estão postas na clinica
contemporânea, onde o corpo é lugar de
inscrições múltiplas,
como as tatuagens, escarificações, piercings,
exposição
abusiva às cirurgias plásticas, uso de esteróides, etc...
Cada uma
dessas modalidades de inscrição e modificações do corpo devem ser
pensadas no sentido de que demanda atendem.

Para os
adolescentes, confrontados com a perda do corpo infantil, dos pais da
infância, o desligamento da autoridade desses pais,
suas angústias,
às vezes impronunciáveis, buscam algum tipo de expressão corporal.
O que não pode ser representado
simbolicamente, emerge sem bordas,
no real do corpo. Nesse sentido, podemos pensar as escarificações
no corpo das adolescentes,
tão frequentes hoje, como tentativas de
sentir o “novo” corpo, de habitar um corpo ainda desabitado de
subjetividade?

Dora hoje não


emerge de sua afonia como discurso que permitiria ler o sofrimento de
nosso tempo, em especial aquele que os
adolescentes tentam expressar?
Não estão muitos deles sem um lugar de fala no laço social?

Referências bibliográficas 

AGAMBEN, G. O
que é o contemporâneo? E outros ensaios.
Chapecó: Argos, 2009.

FREUD,
S. ([1905] 1989)
Fragmento da análise de um caso de histeria.
In: Edição
Standart Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, vol.VII. p.12-115.

______,
([1905] 1989) Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade.
In: Edição
Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud.
Rio de Janeiro: Imago, Vol.VII. p. 118-228.

GUERRA, Sara Caumo.


Viajante-antropólogo:
A Narrativa de Paolo de Mantegazza (1831-1919)
Monografia. Departamento de
Antropologia/IFCH/ Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2013-on-line.

KHEL,
Maria Rita. Deslocamentos
do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade.
Rio de Janeiro: Imago, 1998.

MANNONI,
Octave.
Ficções Freudianas.
Rio de Janeiro:Livraria Taurus Editora , 1983. 

Autor: Roséli M. Olabarriaga Cabistani

Entre o Trauma e o Traum: notas sobre Freud e o caso Dora


Paulo Gleich

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Quando fui convidado para apresentar um trabalho sobre o caso Dora, a
coordenação do cartel – um cartel eminentemente feminino,
diga-se
de passagem – sugeriu que eu pudesse trazer algumas questões
relacionadas à tradução, já que costumo acompanhar as
leituras em
alemão. Topei na hora, para depois pensar no que poderia falar sobre
esse texto, sobre o qual tanto já se escreveu,
pensou, falou. Em
relação à tradução, não me parecia haver nenhum conceito
espinhoso, nenhuma passagem mais cabeluda que
pudesse ter se perdido
nas traduções até chegar ao português. Não é um texto no qual
Freud se debruça tanto sobre conceitos, como
outros que já foram
trabalhados em anos anteriores. Também não ia me dedicar a ler as
duas versões lado a lado, catando equívocos
e incongruências –
seria um trabalho impossível, pelo menos para esse espaço de tempo!
Tampouco foi essa a direção de trabalho do
cartel, que se dedicou
também a leituras do caso feitas por outros, como Lacan e Lasnik.

Por conta de uma viagem, só pude acompanhar a primeira e a última


reunião do cartel – brincando com nosso texto, o prefácio e o
posfácio. Curiosamente, foram essas duas partes do texto onde mais
se deteve minha leitura. O que seria uma introdução e uma
conclusão
têm, nesse texto, tamanho e consistência de capítulos. Aliás, me
parece que é ali que está o maior trabalho de Freud
nesse caso, e é
da leitura de ambos que depreendemos algumas de suas mais importantes
reflexões acerca do tratamento e de seus
impasses, bem como algumas
ideias que lança para desenvolver em trabalhos posteriores.

Por
um lado, a leitura do caso nos seduz, como outros escritos
freudianos, a nos deixarmos conduzir por sua mão; seu estilo
facilmente nos convoca a acompanhá-lo em suas conclusões. Os
problemas vão se apresentando, mas também vão sendo logo
resolvidos. Freud nos tranquiliza, parece ter resposta para tudo:
cada elemento do sonho, cada sintoma, cada detalhe tem uma
interpretação, uma explicação. Por outro lado, porém, é
recorrente uma sensação de desconforto na leitura desse caso, seja
pela
selvageria
de algumas das interpretações para os sintomas e relatos de Dora,
seja pelo fechamento tão redondo
do caso, que de tão
redondo não parece verossímil. Além de que
isso contradiz o caráter fragmentário, inacabado, anunciado no
próprio título.

Neste
texto, nos deparamos – como também em outras ocasiões – com um
Freud em muitos momentos aparentemente mais
preocupado em comprovar a
validade de suas teorias do que com o avanço do paciente em seu
tratamento. Notadamente, está em
causa o papel dos sonhos como via
régia de acesso ao inconsciente, assim como a teoria edípica, tal
como fora formulada pouco
antes em A
interpretação dos sonhos. A
centralidade dos dois sonhos nesta análise foi possivelmente a razão
para a escolha de
torná-la seu primeiro grande
caso: a recepção de sua obra-prima
não havia sido tão retumbante quanto ele esperava ou desejava, e
pairava mais desconfiança em relação a suas descobertas que a
curiosidade e o fascínio que esperava despertar na comunidade
científica de sua época. Podemos imaginar que Dora deve ter lhe
caído como um presente dos céus para corroborar suas hipóteses,
pois como ele indica no texto, suas outras análises conduzidas à
época talvez não lhe rendessem um material onírico tão rico
quanto
o que encontrou no curto período de trabalho com Dora.
Podemos reconhecer, acompanhando o relato do caso, como a aplicação
de
sua teoria à fala da paciente terminou por impedir o avanço da
análise de Dora que, pouco tempo após iniciada, a abandonou.

Lendo
o texto, me encontrei com alguns significantes que se destacam, e que
pincei pensando que possam contribuir para situar
alguns dos impasses
com que Freud se deparou no tratamento de Dora e na elaboração do
material. Essas hipóteses talvez digam
não apenas deste tratamento,
mas também do momento da elaboração teórica na qual Freud se
encontrava no momento da redação
deste caso. Vale lembrar que não
havia muito que ele abandonara a teoria do trauma, pelo menos da
forma como havia sido
concebida na época dos Estudos
sobre a histeria: a ideia, mais próxima
do senso comum até hoje, de que havia necessariamente
ocorrido uma
ação violenta e abusiva por parte de um adulto em relação à
criança, que posteriormente desenvolveria sintomas
neuróticos.

Nesse momento de sua elaboração, há um deslocamento do trauma


externo como agente etiológico para o componente pulsional da
psique
(apesar do conceito de pulsão ainda não ter sido formulado), do
acontecimento real para o que se desenrola na fantasia.
Porém, esse
afastamento do trauma real em direção ao desejo recalcado acaba,
por vezes, jogando Freud para outro extremo: em
algumas ocasiões
situa tudo apenas do lado do sujeito, mesmo que seja situando-o na
constituição biológica e na hereditariedade,
como faz em várias
passagens do texto. Como se, de passivo, o sujeito passasse a ser
completamente ativo na relação com o outro.
Em poucos momentos,
porém, o relato do caso faz pensar nos determinantes dos sintomas e
do sofrimento de Dora situados do lado
daqueles que a cercavam. A
começar pela própria fragilidade de sua relação com a mãe,
apenas entrevista no relato de Freud que
fala de sua “psicose de
limpeza” e por sua quase ausência na dinâmica do quarteto, no
exercício da função materna, nos impasses de
Dora na identificação
com o feminino.

No
caso Dora, é ela que, com sua histeria, incomoda o pai e resiste aos
irresistíveis encantos do Sr. K (Freud o apresenta como
alguém
jovial e bem-apessoado, não concebe nenhuma oposição a essas
investidas que não sejam manifestações histéricas, como
afirma,
por exemplo, em relação a qualquer
reação de nojo ante uma situação que deveria ser excitante). Ao
passo que incrimina os
dois homens, o pai e o Sr K., por um pacto
tácito no qual Dora é moeda de troca, Freud também acaba se
identificando com eles. E
não só pela interpretação do charuto,
que aí é mais que um charuto: solidariza-se com os homens frente ao
insondável do desejo
feminino, o qual lê, assim como no Complexo de
Édipo, como se fosse análogo ao masculino. Sabemos que serão
necessários ainda
muitos anos até que Freud consiga se aventurar um
pouco mais nesse terreno, continente que não à toa era escuro:
pouco podia,
naquele momento, avançar na direção do que está além
(ou aquém) do fálico. A própria leitura do caso e suas
intervenções se situam
muito nesse lado da significação fálica.

Nessa
vertente da responsabilização culposa, não deixam de saltar aos
olhos duas palavras que Freud escolhe para se referir a
supostas
confirmações, por parte de Dora, de suas hipóteses: Beichte
e Geständnis.
Ambas significam confissão,
porém a primeira
tem um matiz mais ligado à religião, à confissão
dos pecados, e a segunda remete ao âmbito legal, como confissão de
culpa ante um
juiz ou policial. Talvez possamos brincar com isso,
indicando que nos diz algo sobre a posição de Freud em relação a
sua paciente.
Conforme lemos no relato do caso, o veredito parece
estar antecipado, no sentido do desejo de Dora – em relação ao
pai, ao Sr. K, à
Sra K. –, e a análise parece em momentos apenas
um procedimento para confirmar essa suposta (ou imposta) culpa. Da
mesma
forma, era como se a confissão finalmente pudesse produzir
algo como um ato de expiação, assim a livrando da histeria. Dora se
negou, com sua desistência do tratamento, a levar esse processo ao
final, o que por um lado frustrou Freud, mas também o manteve
preso
a sua hipótese de que um esclarecimento completo
e a cura poderiam ter sido alcançados caso tivesse levado a cabo a
empreitada precocemente interrompida. Há várias passagens em que
faz menção a isso, cito uma: “Ficaria satisfeito, se as condições
me tivessem permitido esclarecer completamente esse caso de pequena
histeria. (Imaginem uma grande histeria!) Segundo minhas
experiências
com outros doentes, não duvido que meus meios analíticos tivessem
sido suficientes para isto.” (FREUD, 1905, p.102)

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Este
é, aliás, outro significante que salta aos olhos na leitura do
texto. Aufklärung
é um termo em alemão que significa esclarecimento.
Mas é também a palavra com que se denomina o período conhecido
como Iluminismo, do qual Freud é um dos filhos (embora, como
todo
bom filho, seja muitas vezes um tanto rebelde). Esse termo permeia o
texto em suas variações (esclarecimento, esclarecer), em
uma tensão
com a própria concepção de sonho (e de inconsciente) como não
totalmente interpretável, vide a ideia de umbigo do
sonho. Por outro
lado, Freud transmite sua suposição de que, com tempo suficiente,
seria possível traduzir a
narrativa inconsciente
subjacente à onírica, aparentemente confusa
e desconexa, por outra totalmente lógica e compreensível, dentro
desse ideal das luzes
no qual se encontrava. O que também me fez
pensar, lembrando do seminário conduzido pela Lucia, o Robson e o
Enéas, sobre o
escuro de nosso tempo,
sobre quais ideais da contemporaneidade podem se atravessar na nossa
escuta. Afinal de contas, a
possibilidade de distanciamento em
relação aos discursos que nos orientam – ou desorientam – é
também limitada.

Outra
ideia que insiste ao longo do relato desse caso é a completude, que
se opõe ao que o título – Fragmento
da análise de um caso
de histeria -,
anuncia. Freud sustenta um ideal de final de análise no qual parece
não haver mais lugar para o fragmento, o enigma, a
falta. O todo,
o completo, o imaculado permeiam o texto em várias passagens. Alguns
exemplos: “após o trabalho de interpretação
completo,
os pensamentos do sonho seriam substituídos por pensamentos formados
sem falha”
(FREUD,
1905, p.94). Ao final da
análise,
teríamos um histórico do caso “consequente, compreensível e sem
lacunas” (FREUD, 1905, p.96). Os dois fins de uma
análise seriam
“suspender todos os
sintomas possíveis e substituí-los por pensamentos conscientes”,
assim como curar “todas as
perdas de memória do paciente” (FREUD, 1905, p.97). Sabemos que,
mais tarde, Freud já não mais terá essa ambição de
completude –
e, com Lacan, se há algo que deve sucumbir em uma análise é
justamente qualquer ideal de totalidade.

Junto
a isso, também é importante lembrar uma razão, talvez a principal,
da escolha de Freud por esse caso, e não por tantos outros
que
acompanhava: os sonhos de Dora. Não à toa, o título original do
texto era Sonho e histeria,
seus dois principais objetos de estudo
da época, reunidos em um único caso, e ainda por cima comprovando
suas teses: a bissexualidade, o desejo incestuoso proibido e
recalcado como motor dos sonhos e sintomas. Incumbido em dar
consistência à teoria e à prática que inaugurava, Freud por vezes
acabava colocando em primeiro plano o pesquisador em detrimento do
terapeuta, o objeto de estudo em detrimento do paciente em
sofrimento. É compreensível: ainda era um momento de exercício
muito solitário desse ofício, e havia a premência de levar a
público,
de forma a convencê-lo, as descobertas que o fascinavam.
Talvez não dispusesse do luxo do tempo – e dos avanços – de que
dispomos para nos lançarmos, sem essa preocupação, aos caminhos e
errâncias da transferência. Não só o furor
curandis pode levar
a tropeçar na
condução de uma análise, mas também o furor
interpretandis – ou qualquer outro
tipo de furor pelo qual possamos ficar,
e às vezes inevitavelmente
ficamos, tomados.

No
caso Dora, tanto na sua condução como em seu relato e sua
interpretação, Freud nos dá indícios de que em alguns momentos se
perdeu entre o Trauma e
o Traum [1].
Talvez tenha conseguido, através dos sonhos e das associações de
Dora, aproximar-se de seu
desejo, mas patinou, em sua interpretação
e na leitura da estrutura desse desejo, ao tomar como chave de
leitura da neurose a
estrutura do sonho e a do Édipo, naquele
momento centrado no pai. Em muitas ocasiões, acabou resvalando em
direção ao trauma, à
realidade
externa. Se por um lado apontava para a
sexualidade como componente essencial na formação das neuroses,
parecia estar
ainda preso a uma noção mais convencional de
sexualidade como atividade sexual – e não pela via do erotismo,
componente
essencial do psiquismo, inerente a todas as relações
humanas, inclusive às identificações. Nos dá indícios disso, por
exemplo,
quando aponta que, se o Sr. K tivesse insistido um pouco
mais em sua corte por Dora, provavelmente teria vencido suas
resistências
e, caso se consumasse a ligação amorosa entre ambos,
Dora se livraria de seus sintomas. Sabemos que Freud não sustenta
essa
posição depois, ao avançar em sua investigação da
transferência, inclusive afirmando que a resolução da neurose
através de uma
relação amorosa é uma solução sintomática.

É
certo que a estrutura de uma neurose se dá apenas na transferência,
e nesse sentido a presença do outro é determinante para a
expressão
do sintoma ou do sofrimento; no entanto, às vezes as soluções
apontadas por Freud parecem ainda seguir a lógica da
realidade,
como, por exemplo, do afastamento do objeto “problemático” para
trazer a cura da neurose, considerando-a não como
estrutura psíquica
mas como equivalente ao sintoma. Sabemos como essas soluções podem
às vezes proporcionar alívio aos
pacientes, mas procurar em medidas
de ordem prática a resolução de sintomas exclui o trabalho de
propiciar que o sujeito se
interrogue sobre o gozo que estes lhe
proporcionam.

Nessa
releitura destaquei também passagens preciosas do texto no que se
refere ao manejo da técnica, bem como algumas
sementes de ideias
fundamentais que são desenvolvidas posteriormente ao longo da obra
freudiana. Um exemplo é a noção de
construção,
palavra que usa em algumas passagens do texto, e com a qual Freud
aponta para o caráter ficcional do saber – embora
nem sempre
sustente ao longo do texto essa ideia, fazendo às vezes ainda
equivalências entre fato e narrativa. Também a preciosa
indicação
técnica de que a confirmação de uma construção ou interpretação
não se dá pelo sim
ou pelo não
do paciente, mas sim das
associações que se desdobram a partir
dela, é enunciada aqui, e mais desenvolvida lá em 1937, em
Construções em análise.

Também
é neste caso que Freud formula uma de suas mais conhecidas máximas,
a de que a neurose é o negativo da perversão, ou
como
lacanianamente diríamos, que o fantasma do neurótico é perverso.
Inclui, com isso, a perversão na ordem da normalidade,
como elemento
constitutivo da sexualidade e do psiquismo, ideia que desenvolverá
pouco tempo depois, em 1905, nos Três
ensaios
sobre a teoria da sexualidade.
Mesmo as práticas sexuais que não teriam como finalidade a
procriação, que àquela época eram
consideradas perversões, Freud
trata com admirável franqueza, incluindo-as na normalidade da vida
sexual humana e apontando
para a hipocrisia do discurso (do mestre,
diríamos hoje) médico que incidia sobre essa questão. É admirável
também como situa a
posição do analista em relação a tratar de
conteúdos sexuais com os pacientes, colocando o gozo do lado
daqueles que com seus
pruridos criticam essa transparência e
franqueza, não do lado de quem se atreve a falar disso abertamente
com o paciente. Esta
última, pode ser considerada uma indicação
fundamental da posição ética do psicanalista, de não recuar
diante do que se lhe
apresenta e de se haver com os efeitos das
palavras do outro sobre si mesmo.

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Em
muitos momentos do texto, Freud também faz referência ao olhar,
mais notadamente, à percepção de expressões de afeto por
parte de
sua paciente. Ele utiliza a palavra Mienenspiel,
que poderia se traduzir por jogo de
semblantes, para se referir a essas
expressões que “traem” a intenção consciente do paciente.
Situa essas expressões mais do lado do inconsciente, que assim
trairiam
o dito intencional e consciente. Sabemos, por nossa
experiência, como a dimensão do que se vê faz parte de nossa
leitura do que se
passa na transferência. Conforme Freud afirma
nesse texto, antecipando a importância que esse conceito tem na
clínica e na teoria,
esta se revela muitas vezes em ínfimos
detalhes, não apenas nas palavras, mas também naquilo que se dá a
ver. Interessante essa
ideia do jogo de
semblantes, pois ele se dá entre
paciente e analista. Não raro também
somos traídos
por nossa expressão, o que
muitas vezes pode ter efeito inclusive de
ato. Assim como o jogo de significantes, também o jogo de semblantes
é sujeito à
polissemia, ao equívoco, podendo levar à abertura de
vias associativas.

Como
anunciei no título, que precedeu a escrita do trabalho como com
frequência temos que fazer, essas são algumas das notas que
a
leitura do caso suscitou. Muitas delas poderiam ser desdobradas em
trabalhos inteiros, como os dos colegas que se encarregaram
de trazer
questões para seguirmos conversando ao longo desses dias de
trabalho. O que talvez tenha mais me intrigado nessa leitura
foi a
conversa que Freud estabelece com o leitor, e busquei ler nas linhas
e entrelinhas do texto algumas questões que escapam à
sua
intencionalidade com a publicação do escrito. Depois de ter
redigido a estrutura geral do que havia pensado em trazer, me
encontrei, por indicação de um colega, com o livro O
tronco e os ramos, de Renato Mezan, no
qual dedica um capítulo a leitura do
caso Dora. Foi um feliz achado,
pois encontrei ali, de forma muito mais esmiuçada e documentada,
algumas destas notas que trouxe
aqui. Por outro lado, pude ver o
caráter fragmentário do que pensei e escrevi. Deixo, então, a
recomendação da leitura desse capítulo,
que se dedica de forma
muito aprofundada à leitura da posição de Freud na condução do
caso e na sua transmissão ao leitor.

Encerro, parafraseando o final do referido capítulo, com uma citação


de Peter Gay, que faleceu recentemente, ao final de seu estudo
do
texto do caso Dora: “o espantoso quanto à história clínica de
Dora não é que Freud tenha adiado a publicação por quatro anos: é
que a tenha publicado.” Com esse ato, Freud se coloca
verdadeiramente como analista: expõe sua castração, para que a
partir de
seus impasses possamos seguir, mais de cem anos depois,
ainda aprendendo tanto com esse caso. E parafraseio também Mezan,
que encerra seu texto agradecendo por isso a Freud: “vielen Dank,
Herr Professor!”

Referências bibliográficas:

FREUD,
S. “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”. In: Studienausgabe
Bd. VI – Hysterie und Angst. Frankfurt
am Main: S.Fischer,
1971(1905[1901]).

1. MEZAN, R. O
tronco e os ramos – Estudos de história da psicanálise. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Autor: Paulo Gleich

[1] Sonho em alemão. Trauma é a mesma palavra em português em alemão.

O deslumbramento de Dora
Maria Rosane Pereira

Freud
fundou a psicanálise a partir de uma especificidade da constituição
do sujeito feminino, e a questão o
que é uma mulher,
que a
clínica da histeria colocou diante dele, é a questão que
permeia o saber psicanalítico. Com isso, queremos também colocar
em relevo
uma questão que parece ter ficado em uma zona de
opacidade, na história clínica de Dora: a importância das relações
mãe-filha na
etiologia do caso. Conhecemos a ênfase que Freud deu
à figura paterna para interpretar a sintomatologia e a transferência
de Dora.
Era o momento de sua elaboração teórica. Freud precisou
de longos anos para se deparar com a particularidade do Édipo
feminino, e
terminou com a hipótese da castração como estando
colocada desde o começo para a mulher. Nas suas elaborações, ele
ressaltou
também o quanto nas idas e vindas de uma menina em sua
travessia edípica, uma avalanche se constrói, advertindo quanto ao
risco
para muitas mulheres, de se fixarem nesta tempestade de afetos
que se manifesta notadamente nas relações com a mãe. Esse
conflito da decepção fálica, ele chama de catástrofe. E não é
menos arriscado quando a filha, não suportando a castração
materna,
se recuse a reconhecê-la, transformando a mãe em figura
onipotente, ideal da Mãe absoluta que daria uma existência à
Mulher, a
única possível de existir, detentora de todo o monopólio
da feminilidade.

Lacan,
a respeito disso, critica a posição de Freud quanto à ideia de
castração como ponto de partida, assim como os
encaminhamentos da
inveja do pênis, e ao que seria uma normalização
que suporia um acesso à feminilidade. Ele chama a atenção
para a
devastação que está na tessitura das relações mãe-filha, pelo
fato de que a mulher é não-toda implicada na castração: mesmo
se
todas elas ali se inscrevem, nenhuma delas ali jamais se inscreve
completamente. O simbólico é não todo, assim com o
inconsciente é
não todo – e por conseguinte, a mulher é não toda implicada na
ordem fálica. Além disso, Lacan, a exemplo de Freud,
interroga o
que uma mulher espera de sua mãe, e chama a atenção para o fato
dela esperar mais de sua mãe do que de seu pai, uma
subsistência,
no sentido de algo que dê sustentação a seu ser mulher. É mais a
falta de subsistência, do que não tê-la provido de
pênis, o que
uma filha reprova em sua mãe e que dá origem à devastação entre
as duas. E isso porque o fantasma materno, a
situação psíquica da
mãe é sempre pesada de consequências sobre o destino feminino de
uma filha. A respeito disso, Lacan nos diz:

A
este título, a elocubração freudiana do complexo de Édipo, que
faz da mulher um peixe dentro d´água, do fato de que a castração
esteja inscrita nela desde o começo (palavras de Freud), contrasta
dolorosamente com a devastação que acontece (fait du ravage)
[1] na mulher, na maioria dos casos, pela relação dela com sua mãe, de
quem ela parece esperar, como mulher, mais subsistência do
que de
seu pai, o que não dá certo pelo fato dele ser o segundo, nesta
devastação. (Lacan, 2003, p. 465)

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA
A
metáfora paterna se revelando insuficiente para dar conta do
acabamento edípico da menina, o pai separa a filha de sua mãe
apenas de maneira imperfeita, sob o risco dela reencontrar
imaginariamente a mãe completa de seu período pré-edípico, mãe
idealizada que a fixaria em uma impossibilidade de acesso à
feminilidade. Essa retrouvaille,
esse reencontro do objeto amoroso
fusional idealizado vem colmatar a
insuportável ausência de resposta materna ao enigma do feminino. Essa mãe absoluta pode se
equivaler à Mulher que viria dar conta da
insuficiência de simbolização do falo, encarnando ela mesma um
gozo enigmático não
significável que fascina a filha, que a
deslumbra. Um gozo Outro, pelo qual uma filha pode ser tragada em sua
devastação que a fixa
neste deslumbramento. E tanto faz que a mãe
encarne essa figura mítica do feminino absoluto, que nada deve à
função fálica que
emana da ordem simbólica, ou que ela nada faça
com isso, senão ficar fixada ela mesma em sua própria devastação,
uma espécie de
miséria feminina, como é o caso da mãe de Dora. Uma vez que se trata da mãe fantasmática, o risco de uma filha
ficar tomada
de
imobilidadefeminina,
em um deslumbramento que deriva da devastação materna, é o mesmo.
Vai ser sempre a uma Outra que a filha
vai delegar o exercício do
desejo, vivendo sua própria feminilidade “ a histérica é alguém
que ama por procuração” (Lacan, 1995, p.
181).

Em
Kate, a mãe de Dora, a devastação se inscreve nas doenças
ginecológicas que se manifestam nela, e em seus sintomas de
higiene
obsessiva – devastação do sexual e de qualquer possibilidade da
circulação do desejo - fazendo fracassar por completo uma
feminilidade corporal. O erotismo de Kate fica reduzido às doenças
do sexual. Podemos dizer que Kate desincorporou,
como Lol, sua
feminilidade, e situou no horror da doença venérea do
marido, na organização quase delirante da casa e da limpeza, além
da
obsessividade pela higiene corporal, a sua única e inesgotável
fonte de gozo. Sabemos que para Dora, a subsistência
feminina que
ela buscou, ela vai encontrar nas doenças herdadas da
mãe, e que ela vai carregar até sua morte, como relíquias do
sexual materno.

Independentemente
da forma como ela se manifesta, a devastação mãe-filha vem se
inscrever na relação das duas, e se coloca
como barragem à
feminilidade da filha. E também, tanto faz que a mãe seja hostil e
agressiva como Kate era com Dora e vice-versa,
ou que se trate de uma
mãe dominadora e convincente o bastante para que a filha jamais
conteste, como foi o caso de Lol V. Stein. A
devastação vai
igualmente se colocar, neste caso em silêncio, como é o caso de
muitas filhas, e das quais Lol é o paradigma. A
devastação nada
tem a ver com o fracasso sintomático das relações mãe-filha, como
muitos freudianos concebem. Para Lacan, é um
fato de estrutura dessa
relação, servindo de vetor para o resto, o excedente de Real que
essa relação carrega consigo.

Com
efeito, quando Dora procurou sua mãe para lhe contar sobre o assédio
sexual do Sr. K, podemos supor que não era
simplesmente para que
esta servisse de mera intermediária para contar ao pai. Kate
provavelmente era mesmo a destinatária dessa
narrativa. Dora
poderia estar ali buscando um sinalizador materno, um reconhecimento
de sua feminilidade de filha. Ainda que fosse
para se escandalizar e
repudiar a atitude do Sr. K, Kate teria com isso marcado este
reconhecimento que Dora talvez buscasse como
subsistência
a seu ser mulher. Isso talvez servisse de indicador de que ela já
estava potencialmente apta para ser mulher, objeto de
desejo de um
homem. Seria do lugar de mulher que uma mãe tomaria posição a este
respeito. Não se trataria de lhe transmitir uma
resposta ao que é ser uma mulher, já que mãe nenhuma poderia fazê-lo, uma vez que
não existe um significante que daria conta
deste enigma. Mas sim
algo de sua relação com o outro sexo e que poderia ajudar Dora a
inventar sua própria trajetória de mulher.
Nada sabemos do que Kate
teria dito a Dora, mas sabemos o afundamento subjetivo ao qual Dora
sucumbiu desde o episódio, caindo
em uma espécie de desnorteamento.
E de fato, tudo leva a pensar que sua mãe não tenha conseguido lhe
indicar, naquele momento,
algo que pudesse ter lhe servido de bússola
para que ela seguisse em direção a sua feminilidade. Dora se
desnorteia
com a falta da
subsistência que havia tentado encontrar na mãe, que
não consegue ultrapassar sua própria devastação de mulher.

A
tão evocada cena da contemplação da Madonna, parece ter um efeito
de deslumbramento sobre Dora, justamente naquilo que a
imagem da mãe
com a criança cujo sexo é indecifrável convoca Dora em seu impasse
de filha. Dora parece ter sido captada por uma
imagem na qual teria
encontrado algo da figura materna que teria a resposta ao enigma do
sexual - o que é uma mulher? Esse
enigma, que a deslumbra diante da
Madonna, podemos situá-lo também no deslumbramento que a manteve
cativa de sua adoração
pela Sra. K (sabemos de sua fascinação
pela pele alva da Sra. K, do fascínio que a figura feminina desta
última exercia sobre Dora),
as duas a deslumbram como mulher
modelo.

Seguindo
os desenvolvimentos de Vanessa Brassier [2],
em seu trabalho A
devastação do Vínculo materno
(2013), que é uma nova
leitura do caso Dora a partir da noção de
devastação introduzida por Lacan, a mulher modelo que fascina
(deslumbra) a histérica é
uma figura materna. A triangulação na
qual a histérica se inscreve nada mais é do que a repetição do
triângulo edípico, e o casal que
a interessa é uma repetição do
casal parental. Para Dora, é a Sra. K que sustenta este lugar de
Mulher suposto saber, pois do lado de
sua mãe, conforme a atitude e
o discurso paterno, não há nada.
É isso o que faz com que Dora descompense diante da declaração
do
Sr. K na cena do lago. Uma vez mais, a Mulher suposta saber se reduz
a nada.

Para
concluir, cito uma passagem onde a autora afirma:

Neste trio, existe


apenas uma mulher que fascina a histérica. Se ela está interessada
pelo casal sexuado, de modo
geral, por toda situação de desejo, ela
mesma fica do lado de fora desta feminilidade que lhe escapa. Situada
em
uma posição terceira, a histérica se exclui do gozo que ela
poderia ter sendo a mulher de um homem e se exclui
deste saber que a
mulher teria. Nesse esquivar-se ela desiste dela mesma em proveito de
uma figura de Mãe, Mãe
modelo em matéria de feminilidade e de
saber sobre o gozo. Esta dupla exclusão a condena a viver seu desejo
e
sua feminilidade por procuração (Brassier, 2013, p. 184).

Assim,
podemos compreender porque quando Felix Deutch a encontrou, e que
Dora estava com a idade que sua mãe tinha na época
em que ela havia
se tratado com Freud, ela tenha narrado detalhadamente sua saga de
filha, de mulher e de mãe. E também, vale
ressaltar aqui, que Dora
sofreu das mesmas doenças que sua mãe, e que morreu da mesma
afecção intestinal de sua mãe,
parecendo cumprir um destino
trágico de filha devastada. Aliás, é com justeza que alguns
estudiosos consideram a história clínica de
Dora como a tragédia
do amor, do sexo e do desejo. E também é certo que a história de
Dora é completamente atual, nós a
reencontramos todos os dias em
nossas clínicas, na tragicidade de muitas mulheres que escutamos,
devastadas e deslumbradas por
sua própria dor.

Referências
bibliográficas:

Brassier,
Vanessa. Le
ravage du lien maternel.
Paris: Ed. Harmattan, 2013.
https://appoa.org.br/correio/imprimir/edicao=249 12/23
16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Duras,
Marguerite. A
vida Material.
Rio de Janeiro: Ed. Difel, 1994.

Lacan,
Jacques. O
aturdido.
In: Outros
escritos.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.

Lacan,
Jacques. O
seminário, livro IV.
Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1995.

Autor: Maria Rosane Pereira

[1] A expressão em francês fait du ravage, que Lacan utiliza para introduzir esta noção de devastação, foi traduzida, na edição
brasileira citada, por realidade de devastação. Nossa compreensão do texto de Lacan nos impede de manter essa escolha, uma vez
que justamente é uma produção fantasmática que está em jogo no fenômeno psíquico, tal qual Lacan nos propõe pensa-lo. Parece-
nos impossível articular devastação comrealidade sem converter o texto de Lacan em alguma teoria psicológica.

[2] Psicanalista francesa da Société Freudienne de Psychanalyse, Paris, que contribuiu significativamente – à distância - durante
mais de dois anos com nossos estudos de cartel na APPOA, sobre o tema Amor e devastação na obra de Marguerite Duras (Lacan e
Freud).

À procura de Dora
Maria Elisabeth Tubino

Castelo
de Areia

Gestação
permanente

Que
recobre a distância

Entre
o ser e o não ser,

Plenitude
de espaço

Reinventado,

Síntese
desenrolada no tempo,

Mas

Atemporal
e sempre inacabada.

Desejo
de mulher

Selene
Ribeiro Kepler

Freud
faz a análise do caso clínico de sua jovem paciente, a quem ele deu
o nome de Dora, em seu texto “Fragmento da análise de
um caso de
histeria”, no qual vai descrever o relacionamento entre duas
famílias. Pelo lado de Dora, ela, seu pai, sua mãe e o irmão,
do
outro lado, um amigo de seu pai, o Sr. K e sua esposa. Freud,
ao dar importância às relações familiares, do lado paterno,
através
da narrativa da história da paciente Dora, mostra seu
interesse na hereditariedade psíquica.

É
através do desvio da estrutura daquela família, sempre espelhada
através das relações com outro casal, que é possível saber sobre
as relações de Dora, extremamente amorosas para com o pai e de
outro lado, obscuras, no que diz respeito a sua relação com a
mãe. Freud,
no princípio de sua teoria, não deu a devida importância para a
mãe, no destino da mulher. Ao escutar suas pacientes
histéricas,
deparou-se com uma ligação muito forte com a figura paterna, ele
privilegiou o lugar do pai, mais do que o da mãe na vida
de uma
filha. Dora
diz ter as piores relações com sua mãe, que segundo ela, é uma
pessoa detestável, que não dá atenção para seu
marido. Dora
tratava mal sua mãe, com superioridade, não aceitando sua
influência.

Ao
final da evolução do pensamento de Freud a respeito da sexualidade
feminina, vamos constatar que sua conclusão é que a
feminilidade de
uma filha vai se construir, pré-edípica e edipicamente, entre pai e
mãe, nas suas relações diferenciadas que
estabelece com os dois. A
figura da mãe para a menina vai desdobrar-se em duas: uma função
materna e a outra em uma função
feminina, onde a mãe também é
uma mulher. É
necessário para a menina encontrar em sua mãe essas duas posições,
para construir
a sua feminilidade, distinta da de sua mãe. Cada
mulher vai buscar sua identificação feminina trilhando os caminhos
da inventividade
e da criação.

A
intervenção simbólica do pai na relação mãe - criança, tanto
para a menina quanto para o menino deixa uma mesma marca – uma
identificação viril para com o pai – mas o destino desta marca
será diferente para um e para o outro. Para o menino, a
identificação
masculina recebida do pai é em princípio, a
resolução de seu Édipo, marcando a separação com a mãe. Já,
para a menina, essa
identificação com o pai necessária
estruturalmente, não é resolutiva nas questões da sexuação. Ela
terá ainda, à saída do édipo, que
continuar a procura de uma
identificação feminina, que só poderá encontrar junto à mãe,
mulher como ela. Para a menina o processo
edípico deixa um resto, na
condição de separação com a mãe.

https://appoa.org.br/correio/imprimir/edicao=249 13/23
16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Quando
o pai se interessa por outra mulher, Dora estabelece com ela uma
relação muito forte e importante. Tão importante quanto a
relação
com a governanta que ela tinha até os quatorze anos. O
pai de Dora ama a Sra. K, e é nesta trama que ela vai deslizar. Qual
pode ser sua saída? A outra possibilidade seria sua inserção no
desejo da mãe que está obturado. A mãe coloca-se fora do jogo,
fazendo seu marido e sua filha equivalentes a nada. No momento que
Dora não é nada para sua mãe, sua mãe será nada para ela.
Sendo
reduzida ao estado de objeto. Sendo assim, vai buscar o amor de seu
pai.

No
texto “Feminilidade” (1932) Freud vai destacar a importância,
decisiva, da relação pré-edípica com a mãe, para o futuro da
menina
como mulher. É nesta fase, onde são feitos os preparativos
para a aquisição das características com as quais irá voltar-se
para o pai
e, mais tarde para um homem, isto só seria possível se
este caminho não tivesse ficado impedido pela ligação primordial
com a mãe.

Dora
já tinha sido frustrada, na sua relação com a mãe. Porém num
outro registro, seu desejo poderia se sustentar se a mãe pudesse
lhe
dar um ”dom”. O dom é algo para além do objeto que venha
satisfazer as necessidades da criança. O dom é signo de amor. Lacan
assinala que não existe maior dom possível, maior signo de amor que
o dom daquilo que não se tem. O
dom é dado em troca de
nada, e que só pode existir enquanto nada. O
dom está além do falo, mais além do sexual – o verdadeiro dom é
o Phallus simbólico,
organizador de toda a cadeia de significantes e
de sua vida de relações.

O
pai de Dora poderia vir a suprir este objeto faltoso, simbolicamente.
Porém, o pai de Dora não o dá porque não o tem, é um pai
impotente. Mas
a este pai, de quem Dora não recebe o dom viril, ela permanece,
mesmo assim, ligada a ele. E
sua ligação é tão forte
que é na idade da saída do Édipo, que
se iniciaram toda série de sintomas histéricos, ligados a
manifestação de amor por este pai.
Dora ama seu pai precisamente
pelo que ele não lhe dá.

Dora
está em busca de amor e reconhecimento por sua mãe, de sua imagem
no espelho, mas esta não a vê, está voltada para o
primeiro filho
e ocupada com a limpeza da casa.“... uma mulher que recusava a
dimensão sexual de seu desejo e não sabia se fazer
desejar pelo
pai” (Kehl, 2008, p.242). Ela a priva deste reconhecimento
narcísico necessário, que a possibilite criar a matriz de seu eu.

Sua
mãe está fechada sobre si mesma e não dá mostras de desejar algo
fora dela. A mãe foi sua primeira tentativa de identificação.
Uma
segunda tentativa, ou seja, outra via possível, mas que também não
deu certo, foi com a governanta, que parecia ser sua amiga
até que
Dora se decepcionou ao descobrir que estava sendo usada para chegar
até seu pai. Tinha um olhar para além de Dora. Para
ela também
Dora não tinha valor. Ainda
como uma terceira tentativa Dora busca uma identificação com uma
tia, irmã de seu pai, de
quem gostava muito, que acaba morrendo. Na
ocasião da morte da tia fica sabendo da doença de um primo,
apendicite, por isso não
poderia ir ao enterro. Ao pesquisar sobre
os sintomas da doença, acaba desenvolvendo as mesmas dores
abdominais febre e
dificuldade para caminhar, arrastando a perna. E
a quarta tentativa foi a aproximação com a Sra. K. “que se fez
sua conselheira e
confidente”, que a considerava não mais como
criança, mas como “uma jovem mulher”, e mais ainda, confiou-lhe
o cuidado de seus
filhos, e, conversando com ela sobre a sexualidade
dos adultos, apresentou-lhe “A Fisiologia do amor” de Mantegassa.
(Mais tarde
veio negar esta cumplicidade com as leituras, traindo
este segredo).

Freud
interpretou esta questão como expressão da bissexualidade na
histeria, o que o levou a escrever, mais tarde, em 1908,
“Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade”. Pode-se
pensar que o que Dora buscava, no seu interesse pelas mulheres,
era
uma tentativa de construir ideais de Eu, de acordo com sua condição
de mulher, buscando respostas para as questões: “o que é
ser uma
mulher?” “ O que diferencia as mulheres dos homens?” Quando
Dora se dirigia para as mulheres, estava se preparando para
se
aproximar dos homens.

Para
Freud, a resolução das questões de Dora teria uma resposta
simples, Dora deveria deixar-se desejar pelo Sr.K. Ele estava
convencido que a repulsa de Dora na cena da loja e depois na cena do
lago eram consequência da perturbação de sua orientação da
sua
sexualidade.

Hoje,
depois que tantas análises deste caso foram feitas, podemos pensar
na recusa de Dora em subjetivar-se pela via proposta
pelos homens que
tentaram se servir dela: o pai, o Sr.K e, (...) o próprio Freud, -
como uma tentativa de evitar “mais uma alienação”
ao desejo de
um outro.” (Kehl, 2008, p.242) Não
se tratava de uma homossexualidade mal elaborada em Dora, a Sra. K
era a mulher
que representava para ela, o seu próprio mistério
feminino.

Dirige
para o pai uma demanda insaciável de amor, onde busca o
reconhecimento necessário quanto mais frágil se sente
narcisicamente. Dora
se reconhece no sintoma do fluxo branco, repudiado por sua mãe,
duplica o rechaço e substitui ser rechaçada
pelo sintoma que a
representa, evitando o perigo de cair na fragmentação
pré-especular. Reconhece-se nesta joia, a pulseira,
rechaçada pela mãe,
reconhecimento que reenvia à relação do sujeito com suas “
identificações formadoras”. Identifica-se com o pai
no sintoma da tosse, substituindo aquele por
este, caminho do equívoco. O
sintoma do catarro vaginal e a tosse tentam metaforizar a
pergunta
que o corpo da histérica inscreve como vazio. Para
alcançar o reconhecimento de sua feminilidade, Dora precisaria
assumir
seu próprio corpo, sem isso, ela fica exposta ao
dilaceramento funcional que vai resultar nos sintomas de conversão.

A
mãe não deseja nada além do filho. Para Dora é difícil no seu
retorno permanecer nesta situação precária. Ou se reconhece desde
o lugar de seu irmão ou comprova que pode ser nada é aí que
necessita reassegurar-se identificando-se com seu pai. O
pai de Dora
não sabe aceitar o desejo edípico da filha dirigido a
ele. Ao não conseguir identificar-se com sua mãe, figura apagada e
distante, que
não se faz desejar pelo pai, Dora vai identificar-se
com seu pai. Vai ter como escolha amorosa a mesma mulher que o pai, a
senhora
K. Porém,
a Sra. K, nos diz Lacan: ”não é unicamente objeto eleito é a
metáfora de Dora, encarna a seus olhos a função feminina.” A
Sra. K é a questão de Dora. Ela representa aquilo que é amado para
além de Dora. Ela é o objeto de adoração, colocada
simbolicamente
na adoração da Madona Sistina.

Para
concluir: Freud analisa as relações familiares do caso Dora,
estritamente do lado paterno. Em toda apresentação do caso, não
considera a relação da jovem com sua mãe. Aceita o que ela diz a
este respeito, sem investigar. Embora em seus dois sonhos
aparecesse
a presença da mãe.

No
primeiro sonho:

https://appoa.org.br/correio/imprimir/edicao=249 14/23
16/02/2022 14:01 Correio APPOA
A
casa estava em chamas. O pai estava em pé ao lado da cama de Dora. A
desperta, ela veste-se rapidamente. Sua mãe queria
parar para salvar
sua caixa de joias. O pai não aceita colocar em risco sua vida e
ados filhos por causa da caixa de joias. Todos saem
apressadamente,
logo que está fora da casa, Dora desperta. Na
sequência da análise deste sonho, Dora lembra da discussão de
seus pais, nos últimos dias, porque a mãe tranca a porta da sala de
jantar, à noite, para impedir que o filho mais velho saia do quarto
e consequentemente de casa.

No
segundo sonho:

Dora
caminhava a esmo por uma cidade desconhecida. Tudo era estranho.
Chega à casa onde morava, vai para o quarto e lá
encontra uma carta
da mãe. Dizia: “como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus
pais, ela não desejara escrever-me para
contar que papai estava
doente, “Agora ele está morto, e, se você quiser ( ? ), pode
voltar”. Na
análise deste sonho lembra que na
noite anterior, seus pais
receberam visitas. Ao servir conhaque para seu pai, ela pedira a
chave do armário para a mãe, que, distraída
na conversa, não
responde, e Dora reclama que já lhe perguntou “cem vezes” onde
está a chave. É certo que não foram cem vezes
que Dora perguntou à
mãe, mas este comentário demonstra a solicitação, insistente, de
Dora para que a mãe faça sua função.

Através
do trabalho de Freud com as histéricas, foi possível a construção
de uma clínica freudiana e também o nascimento de um
novo olhar
sobre a feminilidade. Foi
depois da publicação do caso Dora, e de sua revisão e, também do
caso conhecido como Jovem
homossexual (1920) que, Freud vai
direcionar o seu estudo e sua construção teórica para a questão
da feminilidade. Em 1931 publica
“Sexualidade feminina” e em
1932, “Feminilidade”.

Freud, em seu percurso teórico, sempre buscou a superação dos problemas;


foi o que o moveu para as suas descobertas. Este foi o
grande
ensinamento que ele nos deixou.

Referências
bibliográficas:

FREUD,
Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise –
feminilidade (1933). In: - Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago
Editora, 1974.

FREUD,
Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1901). In: -
Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.

KEHL,
Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Vozes Editora,
2007.

KEPLER,
Selene Ribeiro. Desejo de mulher. Rio de Janeiro: Vozes Editora,
1994.

LACAN,
Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto [1956-1957].
Rio de Janeiro: Campus Editora, 2003.

Autor: Maria Elisabeth Tubino

Mulher além de Dora


Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

Através da
releitura do caso Dora, este texto exemplar de Freud, proposto como
temática do encontro Relendo Freud, abre-se a
possibilidade de
retomarmos questões iniciais relativas ao desejo, às identificações
de uma mulher, de sua feminilidade, que pode-se
dizer serem
indissociáveis da clínica da histeria. Ao acompanharmos o percurso
de Lacan nas suas releituras da obra de Freud sobre
histeria,
observa-se que muitas vezes faz uso do caso Dora, desenhando, de
certa forma, o jogo das identificações que ali se
estabelece e
definindo a problemática de Dora desde a repressão da castração.
Pensei então ir costurando as interrogações e os
avanços de Lacan
sobre o caso no desenvolver de seus conceitos, a partir de citações
em seus escritos e seminários.

Desde o texto
Intervenções Sobre a Transferência (1951), Lacan já aponta
as reversões dialéticas com que Freud, através de suas
interpretações, interrogava Dora sobre sua real participação em
relação à desordem da qual reclamava. Lacan interpretou que não
foi
o pai o objeto de seus ciúmes e de seu interesse, como pensava
inicialmente Freud, mas sim a Sra K. Não era para chegar ao Sr K
que
a esposa deste interessava a Dora, mas para chegar ao mistério de
sua própria feminilidade. Dora fora muito mais que
complacente; fora
realmente a peça-chave ao proteger os encontros do pai com a dama, a
ponto de substituir a dama em suas
funções relativas aos filhos.
Evidencia-se mais adiante uma ligação especial e de íntimas
confidências com a dama.

Lacan nos aponta


que o que está em jogo no caso Dora não são as identificações em
série que aparecem no decorrer do caso, mas
sim o problema da falta
de identidade. Dora nada pode dizer sobre o que ela é. Dora não
sabe onde se situar, nem onde está, nem
para que serve o amor. Ela
sabe que o amor existe e encontra nele uma historização, onde acha
seu lugar sob a forma de questão.

Ao referir-se a
Dora no seminário III, As Psicoses (1955-1956), Lacan
questiona:

1- "Quem é
Dora ?"

Lacan diz que Dora


apresenta um estado sintomático bem claro, mas como o próprio Freud
reconhece, ele cometeu um erro sobre
qual o objeto de desejo de Dora,
uma vez que, na época, estava por demais centrado na questão do
objeto "não fazendo intervir a
duplicidade subjetiva de base
que está implicada neste caso".

Freud (1901-1905,
p. 200) aponta o Sr. K como o verdadeiro objeto de desejo em
substituição à identificação histérica. Para a
histérica o
desejo é um ponto enigmático e Freud segue dando uma interpretação
forçada inexata, quando afirma - "Deseja você este,
esta"
- situando o histérico (Dora) em tal posição.

https://appoa.org.br/correio/imprimir/edicao=249 15/23
16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Lacan então diz
que Freud pergunta - "o que Dora deseja?" - antes de
perguntar - "quem deseja em Dora?", percebendo, por fim,
que
neste quarteto - pai, Dora, Sr. K e Sra. K - é a Sra. K o
objeto que verdadeiramente interessa a Dora, uma vez que Dora está
identificada com o Sr. K. A Sra. K transformou-se para Dora no
mistério de sua própria feminilidade, mais especificamente no
mistério
de sua feminilidade corporal.

Aqui, diz Lacan,


que está o cerne da questão. Que o problema para toda mulher é se
aceitar como objeto de desejo do homem. É por
esta razão que a Sra.
K se torna o mistério da feminilidade para Dora. Como Dora não pode
se aceitar como objeto de desejo, ela
precisa da Sra. K para
sustentar esta posição e para reconhecer sua própria feminilidade.

Outra questão que


Lacan nos coloca:

2- "Onde está
o Eu de Dora?"

O eu de Dora é o
Sr. K.

Lacan
então aponta que "a função preenchida no esquema do estádio do
espelho pela imagem especular, em que o sujeito situa seu
sentido
para se reconhecer, onde pela primeira vez situa seu Eu, este ponto
externo de identificação imaginária é no Sr K que Dora
coloca".
(1956-1957, p. 141)

Afirmando que é
porque o Eu de Dora é o Sr. K que todos seus sintomas tomam sentido
definido. A afonia de Dora se produz nas
ausências do Sr. K e Freud
a explica - diz ele: "ela não tem mais necessidade de falar,
uma vez que ele já não está ali, basta apenas
lhe escrever."
O silêncio de Dora é porque o modo de objetivação não está
estabelecido em nenhuma outra parte senão no Sr. K.

Para Lacan, quando


o Sr. K se ausenta devido às viagens, Dora é deixada diretamente em
presença da Sra. K. É quando a afonia
sobrevem. O poder da pulsação
oral aumenta quando ela fica só com a Sra. K. Tudo que Dora pode
entender das relações de seu pai
com a Sra. K gira em torno da
felação, e aí está algo significativo para entender a intervenção
dos sintomas orais. A identificação com
o Sr. K é que faz manter
esta situação, até o momento da descompensação neurótica.

Por fim Lacan


pergunta:

3- "O que diz


Dora através da neurose? Que diz a
histérica mulher? Qual é sua
questão?"

Coloca-se a questão
da histérica: interrogar o que é a mulher. Dora vê-se então
interrogar a si mesma: o que é ser uma mulher? Na
impossibilidade de
simbolizar o órgão feminino como tal, busca na identificação com
o homem, portador de pênis, um meio para se
aproximar desta
definição que lhe escapa. Não há simbolização do sexo da
mulher, pois, em relação ao sexo do homem, o imaginário

fornece uma ausência. O pênis lhe serve literalmente de instrumento
imaginário para apreender o que ela não consegue
simbolizar: o que
seria uma mulher. Há um aprofundamento da dialética do imaginário
e do simbólico no complexo de Édipo.

Para a mulher, a
realização de seu sexo não se faz no complexo de Édipo de uma
forma simétrica à do homem: não pela identificação
à mãe, mas
pela identificação com o objeto paterno, o que lhe destina um
desvio suplementar.

"Mas
a desvantagem em que se acha a mulher quanto ao acesso à identidade
de seu próprio sexo quanto à sexualização como tal,
na histeria
transforma-se em uma vantagem graças a sua identificação
imaginária com o pai, que lhe é perfeitamente acessível, em
virtude especialmente de sua posição na composição do Édipo"
(Lacan, 1955-1956, p. 197).

Sua identificação
com o homem, portador do pênis, é, para ela, nessa ocasião, um
meio de se aproximar de algo. Logo, tornar-se
uma mulher e
interrogar-se sobre o que é uma mulher são duas coisas
essencialmente diferentes.

Lacan (1955-1956,
p. 204) refere que uma vez que a mulher é introduzida na histeria, é
preciso dizer que sua posição apresenta uma
estabilidade particular
em virtude de sua simplicidade estrutural. "Quanto mais simples
uma estrutura, menos haverá nela pontos de
ruptura. Quando sua
questão adquire forma sob o aspecto de histeria, é facílimo para a
mulher colocá-la pela via curta, a saber: a da
identificação com o
pai."

Dora como histérica


"ama por procuração" nos diz Lacan (1956-1957). Ama por
procuração cujo objeto é homossexual: a histérica
aborda este
objeto homossexual por identificação com alguém de outro sexo.

A situação do
quarteto só se compreende na medida em que o eu - e somente o eu -
de Dora fez uma identificação com um
personagem viril: ela é o Sr.
K, e os homens são para ela outras cristalizações possíveis do
seu eu. Em outros termos, é por
intermédio do Sr K, na medida que
ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pelo Sr. K que
Dora está ligada ao personagem da
Sra. K. A Sra. K é a questão de
Dora.

Freud (1901-1905)
chega a perceber o deslocamento transferencial, pai de Dora / Sr K /
analista Freud, mas tomou as figuras
masculinas como objeto de amor e
não como identificação viril de Dora, cuja matriz infantil pode
ter sido o irmão mais velho. Então
Lacan, no seminário 4, Relação
de Objeto (1955-1956), ordena este quarteto no esquema L :

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Dora é uma
histérica que chegou à crise edipiana e que ao mesmo tempo pode e
não pode ultrapassá-la, sendo a razão central para
isso a carência
fálica do pai, que atravessa todo o caso. No caso, Lacan diz que
Dora teve uma saída exemplar: Dora não recebe do
pai simbolicamente
o dom viril, mas se mantém tão ligada a ele que sua história
inicia justamente na saída do Édipo, com uma série
de sintomas
histéricos, ligados a manifestações de amor por este pai. Pai que
na ocasião aparece como doente, ferido, afetado em
suas próprias
potências vitais.

Lacan (1956-1957)
diz que o amor que Dora tem por seu pai é correlativo e proporcional à depreciação deste. Dora ama seu pai
justamente por
aquilo que ele não dá. Então, quando o pai introduz a Sra. K, Dora
vais se colocar entre ambos. O pai ama a Sra. K,
mais além de Dora.
Aqui se constitui a questão de Dora, a pergunta pela feminilidade: o
que a Sra. K tem para ser amada além dela
mesma?

Este além dela,


porém, concerne também à Sra. K., pois esta também é amada mais
além dela mesma, na medida em que o amor é
algo que, em um ser, é
amado mais além do que é. 

Dora está
satisfeita neste lugar, desde que se mantenha sua posição na qual
se beneficia com os dons materiais que o pai, para
suprir sua
impotência, reparte igualmente entre amante e filha. Desta forma,
substitui o falo imaginário por presentes materiais.

Como toda mulher,


Dora busca no pai o significante de sua falta. Seu pai impotente, o
que não pode dar, é a armação da estrutura
edípica. Impotente no
real, facilita sua castração imaginária e permanece incapaz de dar
a Dora o que a nível simbólico certificaria
nela uma falta. Então
é possível conseguir o que quer de seu pai,o amor deste e mais além
imaginarizar o falo na Sra. K, evitando
assim a anular a castração.

A estrutura se
completa com a intervenção do Sr. K, que, por uma parte, permite a
Dora introduzir no circuito o elemento masculino, e
por outra, ocupar
a respeito da Sra. K a posição exatamente inversa de ser aquela
amada pelo Sr. K mais além de sua mulher. Mas
quando o Sr. K diz a
Dora que ele não tem nada por sua mulher, ou seja, que sua mulher
nada é para ele, que ela não está no
circuito, desperta em Dora
questões sobre sua existência, e todo o dispositivo resulta
modificado. A situação se desequilibra e Dora
passa a reivindicar a
exclusividade do amor do pai, que até então aceitava receber por
intermédio de uma outra.

Se o Sr. K se
interessa só por Dora, então seu pai se interessa só pela Sra. K.
Logo, Dora nada é para seu pai. Esta situação de
intercâmbio, em
que ela fica reduzida ao estado de um objeto, é o que Dora não
consegue tolerar. Então vem a bofetada.

Dora só é
capturada pela mulher enquanto acredita que a Sra. K é aquela que
sabe o que é preciso para o gozo do homem. O Sr. K é
valioso para
Dora, "mas não para que Dora faça dele sua felicidade, valioso
somente para que outra a prive dele." (Lacan, 1969-1970,
p. 89)

Dora não era


incapaz de amar e gozar, mas optou pelo gozo ligado ao saber e pelo
amor por procuração. Logo, como histérica, Dora
não chega a se
identificar com a mulher senão ao preço de um desejo insatisfeito.

Referências
bibliograficas:

FREUD, Sigmund, vol.VII


(1901-1905). Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria - Imago
Ed. - 1969

LACAN, Jacques. Escritos,


Intervenção sobre a Transferência (1951). Ed. Perspectiva - 1978

______________. Seminário
3 (1955 - 1956) As Psicoses cap. XII. A Questão Histérica - Jorge
Zahar Ed. - 1985

______________. Seminário
4 (1955 - 1956) A Relação de Objeto, cap. VIII. Dora e a Jovem
Homossexual - Jorge Zahar Ed. - 1995

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______________.Seminário
16 (1968 - 1969), De um Outro a Outro, cap. XXIV - publicação
interna da Association Freudienne
Internationale - Recife , outubro
2004

______________.Seminário
17 (1969 - 1970) O Avesso da Psicanálise, cap. VI - Jorge Zahar Ed.
- 1992

Autor: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

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Debates
Matriciamento na atenção básica de saúde: o psicanalista em ação fora de casa
Almerindo A. Boff*, Lúcia Martins Costa Bohmgahren

Introdução

O
consultório particular do primeiro psicanalista foi o berço da
psicanálise, e assim manteve-se a clínica psicanalítica, ao longo
do
século XX, e com exceções pontuais, predominantemente como
atividade restrita à clínica privada. Da mesma forma o conhecimento
teórico a respeito da psicanálise foi mantido como domínio de modo
geral reservado ao âmbito privado das associações
psicanalíticas.
Foi apenas nas últimas décadas do século, e impulsionada
predominantemente pela difusão da psicanálise por sua
vertente
lacaniana, que a influência da mesma passou a ultrapassar de maneira
mais consistente as fronteiras do laboratório
delimitado onde
ocorreu o seu desenvolvimento inicial. Também coube ao movimento
psicanalítico lacaniano um importante papel na
difusão da
psicanálise no ambiente das universidades. Abrindo um novo campo de
investigação, a aplicação das ideias psicanalíticas
em benefício
dos usuários dos sistemas públicos de saúde, com custeio advindo
exclusivamente de recursos financeiros estatais,
tornou-se prática
desafiante para muitos psicanalistas. (BARRETO, 1999; QUINET, 2001;
PALMA, 2007; MACHADO & GROVA, 2008;
COSTA, 2009; DUPPIN et
al,
2009; APPOA, 2011; BOFF, 2012)

Ao
se tornar integrante de uma equipe de saúde nos dispositivos da
atenção básica, o psicanalista passa a trabalhar fora do seu
habitat,
fora da sua casa. A instituição psicanalítica a que pertence e o
seu consultório de clínica privada constituem os ambientes
onde ele
se sente seguro à medida que domina os referenciais teóricos e os
comportamentos que sabe que são chancelados por
seus pares, o grupo
de psicanalistas pelo qual se identifica como tal. Fora de sua casa,
ele sabe que não pode contar com a garantia
a
priori
da homologação do seu pensamento e comportamento pelos demais
integrantes da equipe, o que o lança a um novo desafio.
O presente
trabalho tem a intenção de colocar este desafio em discussão a
partir do relato de uma experiência de matriciamento em
saúde
mental em unidades de atenção básica de saúde.

Matriciamento
na atenção básica em saúde mental

A reforma
psiquiátrica brasileira teve uma longa gestação. Suas origens mais
recentes remontam aos movimentos da chamada
antipsiquiatria, que
floresceu em diferentes países nos anos 60, plantando sementes no
Brasil. Em nosso país, passou a ser
articulada definitivamente em
1978 pela criação do Movimento Nacional dos Trabalhadores em Saúde
Mental (MTSM), que fomentou
a elaboração de leis estaduais de
reforma psiquiátrica, sendo Rio Grande do Sul e Espírito Santo os
Estados pioneiros na aprovação
de tais leis, em 1992. Em nível
nacional, o ano de 1987 foi marcado pela instituição, durante o II
Congresso do MTSM, do 18 de maio
como Dia Nacional da Luta
Antimanicomial e pela inauguração, na cidade de São Paulo, do
primeiro Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) no país. A luta
antimanicomial nos diferentes Estados culminou, em abril de 2001, com
a aprovação pelo Congresso Nacional,
após 12 anos de tramitação,
da Lei 10.216, a Lei da Reforma Psiquiátrica, também conhecida como
Lei Paulo Delgado. (Pacheco,
2009)

A reforma
psiquiátrica levou à progressiva desinstitucionalização dos
pacientes psiquiátricos e à implantação dos CAPSs pelo país
segundo as diretrizes apresentadas em publicação do Ministério da
Saúde (BRASIL, 2004), que inclui entre as atribuições destes a
capacitação em ações de saúde mental das equipes de atenção
básica nas atuais UBSs (Unidade Básica de Saúde) e postos da ESF
(Equipe de Saúde da Família). Esta capacitação veio a ser
estimulada pela criação progressiva dos NASFs (Núcleo de Apoio à
Saúde
da Família) (BRASIL, 2009) e está apresentada na publicação
"Guia prático de matriciamento em saúde mental".
(Chierini, 2011). Este
guia descreve o apoio matricial, ou
matriciamento, como um dispositivo que tem como objetivo principal
fortalecer as práticas de
saúde mental no nível da atenção
básica, podendo ser realizado com diversos enfoques. Essa ferramenta
opera no sentido de
capacitar as equipes das UBSs e ESFs a acolher
usuários que procuram o serviço com algum grau de sofrimento
psíquico. A atuação
de equipes de apoio matricial à atenção à
saúde mental nas UBSs e ESFs está também presente nas "Diretrizes
para um modelo de
atenção integral em saúde mental no Brasil",
documento recentemente divulgado pela Associação Brasileira de
Psiquiatria.
(Associação Brasileira de Psiquiatria, 2014)

É importante
observar que as equipes de apoio matricial, assim como as equipes de
referência que atendem diretamente os usuários,
são
multiprofissionais, incluindo psiquiatras, psicólogos, terapeutas
ocupacionais, fonoaudiólogos, assistentes sociais e enfermeiros
de
saúde mental. (Chierini, 2011, p. 16) O objetivo da equipe é
capacitar todos os profissionais que prestam atendimento direto aos
usuários para ações de acolhimento dos que apresentem sofrimento
psíquico. Esse ponto implica uma série de questionamentos. O
que é
acolher? E qual a especificidade do acolhimento em saúde mental?
Qualquer profissional pode realizar essa prática? Quais as
ferramentas que podemos utilizar para qualificar/capacitar o
atendimento em saúde mental? Em muitas ocasiões, os trabalhadores
da
atenção básica já realizam muitas dessas práticas de cuidado
em saúde mental, mas não reconhecem que o fazem. Esse
reconhecimento por si só pode ser um ponto de partida para dar
sequência a outros modos de fazer saúde mental e firmar aqueles já
existentes. O apoio matricial visa refrear a enorme quantidade de
encaminhamentos a especialistas (psiquiatras, psicólogos,
assistentes sociais), autorizando
profissionais não-psi
a
realizarem atendimentos em saúde mental, principalmente intervenções
psicossociais coletivas, tudo isso no âmbito da atenção básica.

Um
lugar para o psicanalista na atenção básica de saúde?

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Partindo de uma
formação clínica iminentemente individual e psicanalítica, em
meados de 2012, uma “psicanalista-matriciadora’’
ingressa no
âmbito da saúde pública em um Município da Grande Porto Alegre,
iniciando assim uma imersão em uma série de outros
espaços
clínicos (grupos terapêuticos, reuniões de equipe
multidisciplinares, oficinas, fóruns de rede, etc.) muito diferentes
daqueles
aos quais estava acostumada (atendimentos individuais dentro
de um setting
bem delimitado). A função que a gestão atribuiu a ela
naquele
tempo foi "fortalecer a saúde mental na atenção básica".
Desta forma, passou a circular por seis unidades básicas de saúde
deste município, com a oferta de "escuta em saúde mental",
ou melhor, oferecendo apoio
à escuta dos trabalhadores que por lá já
empreendiam o atendimento
aos sujeitos em sofrimento psíquico. O cenário que se configurou
foi o seguinte: uma psicóloga clínica se
apresentando em um
universo de saúde pública com uma avassaladora demanda reprimida em
saúde mental. "Por onde começar?",
era a grande dúvida.
O pedido imediato nas UBSs foi por uma "agenda de psicologia",
pois a lista de espera por um psicólogo era
imensa. Logo a
matriciadora se tornou "a psicóloga do posto", o que
diverge amplamente da proposta de apoio matricial, a qual
pretende
justamente tomar a equipe de ESF como cliente e não o usuário do
SUS diretamente. Pode-se pensar também que o
matriciador tende a
propiciar que a escuta em saúde mental se descole dos profissionais
psi.
De qualquer forma, a psicanalista achou
que essa seria uma via de
acesso para que a equipe pudesse conhecer seu trabalho e para que
paulatinamente pudesse convidar
alguns trabalhadores da equipe a
participar daquelas consultas ou momentos
de escuta.
Entre conversas de corredor e reuniões de
equipe foi possível, aos
poucos, identificar colegas interessados na saúde mental,
preocupados em proporcionar um atendimento
mais qualificado aos
sujeitos egressos de uma internação hospitalar, por exemplo, ou de
alta de um dos CAPS da cidade. Em quase
todas as unidades de saúde
foi possível fazer excelentes parcerias de trabalho para dar
sequência a missão de fortalecer
a saúde
mental na atenção básica.

Alguns desses
encontros foram emblemáticos dessa prática de apoio matricial, que
se configura de diversas formas, como por
exemplo, nos moldes de uma
supervisão de caso ou através da presença do matriciador em um
atendimento clínico com a equipe de
ESF. Serão relatadas aqui
situações que poderão servir para examinarmos de que forma a
psicanálise contribuiu para dar corpo a
esse trabalho de apoio, que
muito se aproxima de uma supervisão, mas parece ir além desta. É
válido dizer que pouco do efeito
desse trabalho se observa se não
há um laço transferencial entre matriciador e matriciando
que faça baliza para a escuta deste. De
alguma forma, há algo de
transmissão nisso que acontece entre o apoiador e aquele que recebe
o apoio.

Notícias
do front
em quatro vinhetas

R.

Às quartas-feiras à
tarde, uma das unidades de saúde oferece à comunidade um espaço de
acolhimento para quem desejar
compartilhar seu sofrimento. Este
espaço é chamado de "Grupo de Matriciamento". Os usuários
são acolhidos em um primeiro grupo
e aqueles que desejarem seguir
sendo acompanhados, continuam o trabalho em outro grupo já formado e
em andamento. O objetivo
do "Grupo de Matriciamento" é
estabelecer um espaço para descentrar o foco do tratamento da
doença/sintoma e passar a iluminar o
sujeito e sua história de
vida, inclusive, e principalmente, aquela história que está sendo
construída e que poderá contar com novos
laços/encontros com
outros. Os profissionais que compõem o trabalho grupal são dois
agentes comunitários de saúde (ACS) e uma
psicóloga-psicanalista-matriciadora.

Durante um desses
encontros, R. toma a palavra e pede para que os demais colegas
escutem sua angústia. Com alguma dificuldade
e o apoio dos agentes
comunitários de saúde, ela relata o forte temor de que seu esposo
morra. Vem sonhando com este fato há
alguns dias e acredita se
tratar de uma premonição. Egressa de um período de tratamento no
CAPS da cidade, R. tem uma história
que há muito pouco tempo pode
começar a narrar. Presenciou a morte (trágica) de algumas pessoas
muito próximas a ela e passou a
ter alucinações, entre elas, uma
em que uma faca "olha" para ela e "diz" para
machucar-se. Com o início de seus tratamentos, as
alucinações
cessam e R. passa a conseguir se servir das palavras (e dos sonhos)
para delinear sua angústia. Os colegas de grupo
tentam apaziguá-la,
dizendo que não se preocupasse (em breve o esposo faria uma
cirurgia), mas R. ainda quer conversar um pouco
mais depois do
encerramento do encontro. Ofegante, conta que "se a gente sonha,
é que vai acontecer" e, muito assustada, diz não
quer perder o
marido. Ocorreu à psicanalista dizer: "Sabes que eu conheci um
velhinho que escrevia e pensava muito sobre os
sonhos das pessoas, e
ele nos ensinou que os sonhos na verdade têm a ver com as nossas
preocupações, com aquilo que vivemos
durante os nossos dias e isso
tudo pode aparecer de um jeito muito esquisito mesmo". Ela
escuta, respira fundo e solta o ar de forma
entrecortada, mas parece
um pouco mais tranquila. No encontro seguinte, chega à sala de
grupos e abraça a psicanalista, dizendo,
"Foi ótimo conversar
naquele dia, estou bem mais calma, e agora sei que meu esposo precisa
fazer aquela cirurgia para ficar bem".
Durante todos esses
momentos de intervenção, os agentes comunitários de saúde (ACS)
estavam presentes. Esse, a nosso ver, é o
principal elemento que
diferencia o apoio matricial de outras práticas e que também emerge
como desafio. O papel do matriciador não
é seguir capitaneando a
escuta dos usuários da unidade básica (embora seja tentado a tal,
pela sua formação), mas conseguir fazer
uma passagem
dessa escuta/acolhimento/cuidado à equipe. Logo, a
psicanalista-matriciadora e os ACS conversam para examinar
aquilo que
acontecera nos encontros com a usuária. O que percebe-se é uma
desmistificação desse lugar de cuidado em relação ao
sofrimento
psíquico e o empoderamento por parte dos ACS da capacidade de
escuta. Uma delas diz à psicanalista, "às vezes, eles só
precisam de uma palavra, não é?". E é justamente o que seguem
fazendo as agentes, se permitindo dirigirem-se aos usuários para
indagar sobre seus desconfortos.

W.

https://appoa.org.br/correio/imprimir/edicao=249 20/23
16/02/2022 14:01 Correio APPOA
Nas unidades básicas
de saúde, a quantidade de novos usuários que chegam em busca de
escuta (que poderia ser traduzida
também como "olhar",
"saída", etc.) é absurdamente grande, assim, a
diversidade de histórias também se amplia consideravelmente.
Nesta
tarde, recebemos um casal que traz um menino muito encolhido, e com
um ar terrivelmente soturno. A dupla representa, à
primeira vista,
um casal parental que se ocupa com os cuidados do menino, mas logo a
psicanalista e a equipe que acolhem o caso
percebem que a função de
cuidado está em vias de ser abandonada. Mas, como bons jardineiros,
não desistimos de assentar um
lugar para resgatar o vínculo entre
aquele trio. Escutamos um casal cansado de cuidar daquele menino
"abusado", que estava
estragando tudo dentro de casa,
furando canos e distribuindo na vizinhança os tesouros mais
preciosos de uma das cuidadoras, uma
coleção de carrinhos
cuidadosamente guardada em um baú chaveado. Ao longo desta primeira
entrevista, descobrimos que
"abusado" não é dito no
sentido figurado. W. é um menino que sofreu abuso sexual dos três
aos oito anos para finalmente, aos dez
anos passar a ser cuidado por
uma tia e sua companheira. Quando conversamos a sós com W. ele
mostra-se muito entristecido,
desejoso de não atrapalhar a vida das
"tias", mas diz não saber como. Certamente não seria com
novo abandono que o menino
conseguiria deixar de desempenhar esses
comportamentos. Aos poucos, a psicanalista procura ir verificando com
a equipe, o que
eles percebem do relato. A médica crê que "o
menino vai ser um marginal, que não tem saída", a técnica de
enfermagem indaga,
"mas será que ele ser abandonado novamente
vai ajudar?". E eis que se interpõe a questão ao matriciador:
de que forma poderá
sensibilizar a equipe para dar continuidade a
este atendimento ou para encaminhá-lo da melhor forma? Para que,
então, os membros
da equipe possam se perguntar: poderemos auxiliar
essa família? De que forma? No primeiro contato com a história a
reação de
parte da equipe foi de certa desconfiança, quando a
psicanalista aponta que havia nos seus atos algo que dizia-nos muito
sobre a sua
história. "Vocês percebem que ele estava 'furando
canos' em casa? E que, além disso, vinha distribuindo os tesouros
(dele?) da tia
pela vizinhança?". Não seria uma repetição de
algo que ele vivera?, indaga à equipe. A partir dessa pontuação
algo de novo se
apresenta na escuta do caso para essa equipe. Em
linhas gerais, é a partir de uma quebra
na escuta dos profissionais – ou na
introdução de uma
possibilidade de quebra – que esta equipe consegue seguir apostando
em relançar W. e suas tias no enlace com a
vida. O menino é
encaminhado ao CAPSi e passa a ser atendido. O atendimento somente se
mantém ao longo do tempo porque a
equipe de ESF sustenta a
importância desse cuidado semanalmente, já que as tias procuram o
posto e eventualmente retomam a
ideia de abandono,
mas a equipe consegue sustentar a importância de seguirem apostando
em W.

D.

Um terceiro caso
traz à tona uma problemática muito recorrente e preocupante no
Município. São situações em que crianças muito
pequenas
presenciam o assassinato de familiares, geralmente seus responsáveis.
Quando chegam para atendimento vêm trazidas à
UBS pela avó, que,
além de ter que lidar com a perda de um filho (a), traz consigo um
pequeno enlutado. O caso de D. ilustra um
desses eventos violentos
que desestabilizam qualquer escuta. A cena revela uma disputa por
território. Após terem sido avisados por
um grupo de traficantes
sobre sua intenção de passar a traficar no local onde tinham
comércio (era um bomponto,
segunda a avó), a
família de proprietários desse estabelecimento
comercial é assassinada em frente a seu filho, que consegue se
esconder atrás do
balcão para evitar ser atingido pelos mais de
vinte disparos. A avó do menino diz que não havia envolvimento por
parte do seu filho no
tráfico. Aqui pouco importa saber se esta
família estava envolvida no tráfico ou não. Parece que a família
não escutou ou ignorou a
ameaça do grupo em tomar essa boca
em potencial
e ali permaneceu, sendo punida sumariamente com a morte. O que
importa é
pensar os efeitos dessa violência tão crua e direta
sobre a subjetividade das crianças. Depois de um ato violento, que
afastou
qualquer possibilidade de intermediação pela palavra (não
foi uma briga ou uma discussão!), restam dúvidas, ressentimentos, e
aí sim
se pode fundar algum espaço para a elaboração pela
palavra. D. escuta atentamente a toda a narrativa de sua avó. Chora.
Baixa a
cabeça. A psicanalista faz breves intervenções para
balizar um pouco daquele horror todo. Ao final da consulta, D.
sussurra alguma
coisa baixinho, ao que a psicanalista lhe passa a
palavra e ele diz, "eu tenho um sonho com o meu pai’".
Pergunta-se se ele desejaria
nos contar sobre o sonho e ele relata:
"Sonho que meu pai está saindo na porta de casa e eu digo para
ele não sair, para ele ficar,
pois na rua estava tendo um tiroteio,
e ele podia ser atingido... mas ele acaba saindo...".

De
Mãos Dadas

Numa das primeiras


idas a esta UBS, a psicanalista conversa com a equipe e questiona
sobre seu interesse em reativar o grupo de
saúde mental. "Não
adianta, já tentamos", "as pessoas não ficam, começam a
faltar", "não vale a pena se esforçar", dizem alguns
trabalhadores. Queriam a tal da "agenda de Psicologia". A
psicanalista insiste e logo percebe uma técnica de enfermagem
entusiasmada (a mesma que apostou em W) para experimentar a proposta.
Diz à equipe que deveríamos nos abrir e suportar as
ausências, as
faltas, e que a resistência jamais deveria permanecer do nosso lado.
Eis que começamos reunindo alguns usuários que
desejavam ter um
espaço de fala. Inicialmente o grupo era coordenado pela
matriciadora mas pouco a pouco a técnica de
enfermagem foi tomando a
palavra e lindamente conduzindo o trabalho. Em muitos momentos, os
usuários se dirigiam à "Doutora
Lúcia", na tentativa de
encontrarem uma resposta científica
para o seu sofrimento, de modo que era um exercício constante
devolver
a palavra a eles e principalmente à colega. Num dos
encontros do grupo, levamos uma poesia de Drummond, ‘’Mãos
Dadas’’, que
além de nomear o grupo, revela o tom daqueles
momentos.

Não
serei o poeta de um mundo caduco

Também não cantarei o mundo


futuro

Estou preso à vida e olho meus companheiros

Estão
taciturnos mas nutrem grandes esperanças

Entre eles, considero a


enorme realidade

O presente é tão grande, não nos afastemos

Não
nos afastemos muito, vamos de mãos dadas

Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história

Não direi os
suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela

Não
distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida

Não fugirei para


as ilhas nem serei raptado por serafins

O tempo é a minha
matéria, o tempo presente, os homens presentes

A vida presente

Pensando
a partir da experiência

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16/02/2022 14:01 Correio APPOA
A partir da
experiência de matriciamento tem sido possível pensar novos lugares
para aquele que Betts (2014, p.14) chama de
"operador da
psicanálise que trabalha em instituições", pensando nos
alcances dessa psicanálise em extensão (sempre a partir da
transferência), que acima de tudo

pode presentificar a
psicanálise no mundo de diversas maneiras, nos mais diferentes
campos profissionais, mas
sempre será um operador da psicanálise
implicado no que faz, e nunca um aplicador da psicanálise que opera
de
modo selvagem fora de um laço transferencial.

Trevisan (2008), a
partir do texto de Ana Costa (2007), "Uma clínica aberta"
nos recorda de algo que seria um dos fios condutores
iniciais do
trabalho no cotidiano da clínica pública, qual seja, proporcionar
um canal de endereçamento que diferenciaria uma "queixa
sem
sujeito" da "circunscrição de uma demanda singular".
É válido lembrar que o "sujeito" de que se trata aqui é
principalmente a
equipe de referência, ou seja, os trabalhadores que
são matriciados. É preciso que se incluam naquilo de que se queixam
para que
possam avançar no seu trabalho de escuta-prevenção, eixo
central da atenção básica. Por outro lado, costumamos pensar que o
matriciador, também precisa se deixar matriciar pela equipe de
referência, a fim de conhecer a cultura institucional e a cultura
local.

Um dos maiores
desafios relacionados à prática sobre a qual tratamos nesse texto
parece ser não se deixar levar pelos discursos
vigentes no âmbito
institucional e cair numa identificação ao esgotamento dos
trabalhadores (e dos próprios usuários do SUS) que se
encontram em
meio a tanta aridez, de recursos materiais e psíquicos. Ao mesmo
tempo, não é possível deixar de reconhecer, como
nos diz Betts
(2014), "a ordem instituída na qual se encontra" (o
psicanalista). Parece ser justamente no tensionamento entre esse
reconhecimento do instituído e a possibilidade de uma abertura que
se instala o trabalho do matriciador/psicanalista para a
sustentação
da emergência do sujeito de desejo que o ato analítico implica. Nos
relatos que foram apresentados nesse escrito
percebe-se a
preponderância de um saber médico-centrado no discurso dos
trabalhadores. Eles dizem, "aqui (na atenção básica) não
sabemos (ou não podemos) atender a saúde mental! Disso quem sabe
são os psiquiatras e psicólogos!". O matriciamento surge como
um dispositivo catalisador do trabalho tímido ou ainda resistente em
relação à escuta em saúde mental, que produzirá efeitos, mesmo
quando não é seguido à risca, como pudemos observar nos casos aqui
citados. Pode-se dizer, com Silveira (2011, p.18), que o apoio
matricial "propõe modificar relações e processos de trabalho
tidos como fragmentados e alienados, horizontalizar e democratizar
relações".

Propor que os
trabalhadores estejam atentos ao traço singular do sujeito, como nos
aponta Silveira (2007) em outro texto sobre o
tema da saúde pública,
evita que o usuário seja reduzido a um diagnóstico ou exposto à
medicalização do seu sintoma e assim não
encontre saídas
possíveis para seu sofrimento, ficando aprisionado a um saber
totalizante. No relato do caso de R. percebemos que a
equipe
sustentou um espaço de escuta atenta e respeitosa, o que permitiu
com que a usuária elaborasse suas angústias pouco a
pouco. Com W.,
foi a aposta no "sujeito" (nas “’tias’’ e em W.)
que permitiu que algo do cuidado entrasse em cena. No acolhimento de
D. vislumbramos a possibilidade de fundar um lugar para falar sobre o
indizível, através de uma formação do inconsciente, um lugar
para
denunciar a falência
do pai.
E no grupo ‘’De Mãos Dadas’’, algo da transmissão que o
psicanalista faz ao animar um colega para
que esse se lance à
experiência de escuta, suportando o inacabado, o não-garantido que
é o trabalho em saúde mental, recordando
que a resistência não
deve estar do lado daquele que escuta.

Trevisan
(2008) também enfatiza a dimensão da alteridade entre os pares para
que o trabalho em saúde mental produza efeitos e
para que aqueles
que escutam os usuários não se isolem no espaço de trabalho que
habitam. Assim, o trabalho de matriciamento
parece revelar a potência
dos encontros entre os trabalhadores em saúde que invariavelmente se
acompanham nos processos de
trabalho (mesmo que resistam a esse
fato). Esses encontros permitem que tanto matriciador quando
matriciado reconheçam os
limites de seus campos de atuação e que a
partir desses limites possam criar e compor novas formas de
escuta/enfrentamento ao
mal-estar. Nesse mesmo sentido, encerramos
com o recorte de Betts (2012, p.19),

o ato analítico no
âmbito da psicanálise em extensão é o de apontar, em contexto
transferencial – numa supervisão
de equipe, por exemplo - , o
impossível que a diferença de lugares indica e que resulta do vazio
(divisão) operante
na linguagem e da falta de objeto e perda de gozo
que opera: a castração que cabe a cada sujeito suportar.

Ideias
para começar

Quando adentramos
uma bela construção ou admiramos uma obra de arte, os andaimes e
estruturas que permitiram sua construção
não são mais visíveis,
a ponto de não podermos às vezes compreender como aquela
possibilidade impossível aconteceu. Tampouco
o poema desvela a trama
e a urdidura da qual foi desprendido pelo poeta. No trabalho do
matriciamento, não cabe ao psicanalista
expor seus instrumentos de
trabalho, a saber, o universo de termos técnicos e teóricos com os
quais ele opera. Estes servem para a
comunicação com seus pares,
que é a condição da possibilidade de oferecer sua mente e coração
como meios de desviar as
mensagens aprisionadas na repetição em
direção a novos deslizamentos de sentido, portadores de renovadas
esperanças. A
psicanálise nos ensina que a capacidade de escutar e
acolher o outro não exige diploma. Exige apenas o acolhimento de uma
escuta
atenta ao que minimamente, mas ao mesmo tempo ruidosamente, se
insinua.

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Autor: Almerindo A. Boff*, Lúcia Martins Costa Bohmgahren

* Psicanalista (Sigmund Freud Associação Psicanalítica).

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