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Conversa de Africanistas Correspondencia PDF
Conversa de Africanistas Correspondencia PDF
Conversa de “africanistas”:
a correspondência entre Mário de Andrade e Arthur Ramos (1934-1944)
Comunicação : Profa. Dra. Ligia Fonseca Ferreira
Mário e Arthur Ramos possuíam como traço comum o espírito fecundo, inquieto,
polivalente, dotado de vasta erudição e de uma forte sensibilidade interdisciplinar a que
hoje chamaríamos, com Edgar Morin, de “pensamento complexo”; conciliaram o talento
como pesquisadores, professores, polígrafos e escritores profícuos com a atuação na
gestão pública e na vida acadêmica; ambos são igualmente donos de arquivo epistolar
volumoso e de incontestável interesse para a história da cultura e das ciências sociais.
1 A respeito dos manuscritos e do acervo consultado, escreve o autor: “Nos arquivos da biblioteca
da Northwestern University, em Evanston, Illinois, estão os papéis de Melville Herskovits; entre eles, a
correspondência trocada entre este e Arthur Ramos, no período que vai de 31 de dezembro de 1935 a 24
de julho de 1941. São 22 cartas escritas por Ramos, em português, conservadas no papel de carta original
e 25 escritas por Herskovits, em inglês, conservadas em cópia de carbono” (p. 3).
2
Dados colhidos no levantamento de correspondências em Arquivo Arthur Ramos..., op. cit.
3
3
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur Ramos
(1935 -1941).
Fonte:http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Coment%E1rios%20%E0%20correspond%EAncia%20entre
%20Herslovits%20e%20Ramos.pdf (consulta feita em 01/03/2013)
4
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935-1941; ver Referências Bibliográficas).
5
Tradução nossa.
4
O pedido feito em caráter privado por um estrangeiro que, embora docente de uma
universidade, na carta se coloca humildemente em posição de aprendiz perante o
reconhecido mestre brasileiro, subjaz, de certa forma, na declaração de caráter público
presente vinte anos depois, em 1958, no prefácio de RB para obra póstuma de AR -
Estudos de Folk-lore: Definição de Limites Teorias de Interpretação. Ele diz:
“À peine arrivé au Brésil en 1938, je lui avais écrit, puis j'étais allé le
voir, et tout de suite une grande amitié était née. Ce maître des études
africanistes fut toujours pour moi le plus précieux des inspirateurs et le
plus sûr (sic) guides”.6
Portanto, de a declaração de Bastide apenas reforça uma evidência : Arthur Ramos, que
àquela altura já havia publicado trabalhos importantes – conforme vimos rapidamente
em sua bibliografia - é, sem dúvida, tido como o maior – e incontornável - “africanista”
brasileiro.
Eu ainda teria uma surpresa, examinando os livros de Bastide no acervo de
Mário, na Biblioteca do IEB, quando me deparei com a dedicatória inscrita na obra
Éléments de sociologie religieuse (Paris, 1935) – : “Ao grande romancista e africanista
brasileiro, Mário de Andrade, como prova de admiração, Roger Bastide”. Vemos, então,
que se Mário admitiu ter trezentas, trezentas e cincoenta facetas, Bastide lhe agregou
mais uma, que raramente, para não dizer quase nunca, lhe é atribuída. E é essa
percepção de um olhar francês que me inspirou o título da minha comunicação, pois,
para mim, a correspondência entre Mário e Arthur pode ser “ouvida” como uma
conversa de “africanistas”.
6
RAMOS, Arthur. In: Estudos de Folk-lore: Definição de Limites Teorias de Interpretação. Prefácio de
Roger Bastide. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1958 – 2ª edição, p. 7.
5
7
A. Grillo. Sambas Insonhados, p. 43-45.
6
O encontro de Mário de Andrade com Arthur Ramos ocorre nos anos 1930 que
dão ensejo a eventos marcantes, como os Congressos Afro-Brasileiros de 1934 (Recife)
e de 1937 (Bahia), bem como a produção de obras seminais que destacam a
contribuição africana para a formação da diversidade racial e cultural do país. O
surgimento de Casa-grande & senzala (1933) inscreve um dos mais persistentes
paradigmas de interpretação do Brasil, o da “democracia racial”, da qual Gilberto Freyre
aparece em geral como autor emblemático. Apesar de polêmica, a repercussão da obra
freyriana encobriria parcialmente, ao longo do tempo, outras visões e o papel de
estudiosos que produziram trabalhos pioneiros sobre o negro e as tradições afro-
brasileiras, denunciando e combatendo “preconceito”. Arthur Ramos é um dos mais
dinâmicos “líderes da mudança”8 num período em que o “desenvolvimento dos estudos
africanistas” é visto como uma das “manifestações mais significativas da atividade
intelectual e da produção científica” do país9. Reconhecido nacional e
internacionalmente, é considerado o precursor, a “alma” do “estudo científico” do negro
8
Thomas Skidmore, Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1976, p. 209.
9
“Introdução de Richard Pattee”. In: Arthur Ramos. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro:
Casa do Estudante do Brasil, 1956, p. 5.
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10
Ibid., p. 11 e 12. The Negro in Brazil foi publicado nos EUA em 1939, quando Arthur Ramos lecionava
na Universidade de Louisiana e só mais tarde sairia em português. A título de comparação, a tradução em
inglês de Casa-grande & senzala (The Masters and the slaves) foi publicada em 1946.
11
Este ciclo se completa, na década seguinte, com A aculturação negra no Brasil (1942).
12
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935-1941; ver Referências Bibliográficas).
8
(Power Point)
Justificativa
Em 1946, um ano após a morte de Mário de Andrade, Antonio Candido antevê
que um dos legados mais importantes do escritor será a sua epistolografia, de caráter
excepcional dentro da literatura brasileira. Segundo o crítico, “[aquela] correspondência
encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua
portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua
obra e do seu espírito”13. A correspondência de Mário de Andrade, lacrada em 1945, a
pedido do próprio escritor, só foi dada a público em 1995, cinquenta anos após a sua
morte.
Dentro das cartas ou mesmo em outros escritos, desde os anos 1920 Mário tece
reflexões sobre o gênero epistolar e seu lugar na produção intelectual do país. Para ele,
assim como o Modernismo representa uma reviravolta em vários aspectos, o escritor
paulista atribui a este movimento a emergência da epistolografia como prática entre
escritores. No ensaio “Amadeu Amaral”, constata: “(...) a literatura brasileira só principiou
escrevendo realmente cartas, com o movimento modernista. Antes, (...) os escritores
brasileiros só faziam 'estilo epistolar' (...) Mas cartas com assunto, falando mal dos
outros, (...), contando coisas, (...) discutindo problemas estéticos e sociais, (...) só
mesmo com o modernismo se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa
literatura”14. Pode-se dizer que foi o próprio Mário de Andrade quem deu às cartas essa
“forma espiritual de vida”, confessando ele próprio sofrer de “gigantismo epistolar” 15,
13
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”, Revista do Arquivo Municipal, n. 106. (Ed. fac-similar nº 198.
São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 1990, p. 69) apud ANDRADE, Mário. Correspondência
de Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 19.
14
ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho.São Paulo: Martins; Brasília: INL/MEC, 1972, p. 182-
3.
15
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 23.
9
ao lado dos nomes mais representativos da vida intelectual brasileira (LOPEZ, 2000:
276). Mário correspondia-se com escritores, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond
de Andrade; artistas plásticos como Tarsila do Amaral; músicos como Heitor Villa-Lobos
e Camargo Guarnieri; cientistas sociais como Arthur Ramos e Roger Bastide. As cartas
atestam a influência que exerceu em vários campos ao longo de mais de vinte anos, nas
trocas com destinatários que se dirigiam ao escritor, ao musicólogo, ao folclorista, ao
gestor cultural, ao professor, ao ...amigo. Várias de suas correspondências - passiva e/
ou ativa, em mão única ou mão dupla - foram e continuam sendo editadas e/ou
reeditadas, e seu baú guarda ainda muitos inéditos.
O Arquivo Arthur Ramos, vendido pela viúva Luiza Ramos em 1956, é um dos
maiores hoje abrigados na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional e permanece
inexplicavelmente inexplorado. Reúne cerca de 5000 documentos, em sua maioria
manuscritos: correspondência passiva e ativa; originais de estudos sobre medicina legal,
psiquiatria, antropologia, folclore, etnografia; fotografias; recortes de jornal, etc. Com
base no levantamento publicado em 200416, a correspondência ativa é formada por
cerca de 510 cartas, inúmeras delas redigidas em inglês; a correspondência passiva é
superior a 2600 cartas recebidas de amigos, autoridades, instituições, pesquisadores e
colaboradores estrangeiros. O conjunto demonstra a habilidade de Arthur Ramos em
criar laços e multiplicar seus interlocutores, habilidade explicável por tratar-se,
igualmente, de um epistológrafo compulsivo. Suas cartas parecem menos uma “paixão
sublime”17 do que um recurso eficaz de trabalho. Desconhecem-se estudos que tenham
efetuado uma análise geral da correspondência de Arthur Ramos que atesta, além de
sua importância no Brasil e sua projeção no exterior; através das cartas pode-se
igualmente observar suas redes de colaboração e de mútua influência. Dentre os
correspondentes do médico e antropólogo brasileiro, destacam-se, no plano nacional,
Mário de Andrade, Edison Carneiro, Dante de Laytano, Câmara Cascudo; no plano
internacional, além do exemplar único de uma carta de Freud e uma do fundador da
antropologia cultural, Franz Boas, pode-se medir, através das trocas epistolares, a
solidez dos laços de amizade e o prestígio de Ramos junto a renomados scholars, como
ele voltados para os temas “africanistas”: Melville Herskovits18, pai fundador dos estudos
16
Arquivo Arthur Ramos: inventário analítico. Organização Vera Lúcia M. Faillace; introdução Luitgarde O.
Cavalcanti Barros. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
17
ANDRADE, Mário de. Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização,
introdução e notas Marco Antonio de Moraes. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 20.
18
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935 -1941).
Fonte:http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Coment%E1rios%20%E0%20correspond%EAncia%20entre
%20Herslovits%20e%20Ramos.pdf (consulta feita em 01/03/2013)
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Dados colhidos no levantamento de correspondências em Arquivo Arthur Ramos..., op. cit.
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Descrição do Corpus
O corpus da pesquisa compõem-se de:
- 21 correspondências (cartas, telegramas, cartão), de Mário de Andrade a Arthur
Ramos; de [s.m.]1933 a 04/04/1944. Localização: Arquivo Mário de Andrade (IEB-USP)
- 25 correspondências (cartas, bilhetes, telegramas, cartões postais), de Arthur
Ramos a Mário de Andrade; de 26/12/1933 a 10/04/1944. Localização : Arquivo Arthur
Ramos (FBN)*
- Total : 46 documentos.
*: Apenas 09 (nove) cartas de Mário de Andrade encontram-se disponíveis na BN-Digital.