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ISSN 1980-5667

CONGRESSO INTERNACIONAL

De 28/8 a 1/9/2006

DAAD

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Indústria Cultural Hoje: Apresentação

Bruno Pucci1
Mundus vult decipi, ergo decipiatur: O mundo quer ser enganado, que o seja2.

Theodor Adorno, alguns séculos depois, exatamente em 1967, retoma a observação


do Cardeal Caraffa, e com ela ilumina uma das manifestações mais evidentes da Indústria
Cultural. Diz ele: A idéia de que o mundo quer ser enganado tornou-se mais verdadeira do
que, sem dúvida, jamais pretendeu ser. Não somente os homens caem no logro, como se
diz, desde que isso lhes dê uma satisfação por mais fugaz que seja, como também desejam
essa impostura que eles próprios entrevêem; esforçam-se por fecharem os olhos e
aprovam, numa espécie de auto-desprezo, aquilo que lhes ocorre e do qual sabem por que
é fabricado. Sem o confessar, pressentem que suas vidas se lhes tornam intoleráveis tão
logo não mais se agarram a satisfações que, na realidade, não o são (Adorno, Indústria
Cultural).
O fascínio diante das possibilidades interativas, da convergência e da compactação
tecnológica, decorrentes das recentes transformações das forças produtivas do capitalismo
transnacional, parece não deixar mais qualquer resquício de dúvida em relação às tentativas
de sepultar o conceito de indústria cultural. A chamada democratização da informação, bem
como as já não tão graduais transformações na percepção, na estética, fornecem a
impressão de que a nossa subjetividade conquista propriedades que a habilitam
compreender e intervir na sociedade, de tal modo que as contradições entre o particular e a
totalidade são apenas detalhes técnicos que podem ser resolvidos sem qualquer alteração
das estruturas sociais. Porém, esta conclusão apressada, que inclusive estigmatiza
fundamentos teórico-críticos, não consegue dissolver a manutenção de uma certa
desconfiança quanto à aparência de felicidade. As conseqüências da fetichização da técnica
e a reificação das consciências teimam em nos lembrar que as reconciliações entre o
indivíduo e a sociedade, entre o desejo e a produção da cultura não foram ainda
concretizadas, a despeito das tentativas da indústria cultural de afirmar que a felicidade

1
Professor Titular do PPGE/UNIMEP, coordenador do Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica e Educação”,
pesquisador do CNPq e da FAPESP e coordenador do Congresso Internacional Indústria Cultural Hoje.

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pode ser obtida aqui e agora. Na verdade, tais promessas não são efetivamente cumpridas,
não passam de “reconciliação forçada”, no dizer de Theodor Adorno. Contudo, se as
premissas básicas do conceito de indústria cultural permanecem vivas, quais seriam os
desdobramentos do processo de fetichização da produção cultural e da absolutização da
técnica em curso? Este foi um dos temas que o Congresso Indústria Cultural Hoje tentou
analisar em suas apresentações e debates.

O Grupo de Estudos e Pesquisa “Teoria Crítica e Educação” — organizador deste


congresso científico, e constituído por pesquisadores da UNIMEP, da UFSCar e da
UNESP-Araraquara, da UFSC, da UEM, da PUC-Minas — desenvolve atividades de
estudos e pesquisas, desde agosto de 1991, com o objetivo de aprofundar o conhecimento
da Teoria Crítica da Sociedade e de sua contribuição para a análise de questões
relacionadas à formação educacional e cultural contemporânea. Ao realizar seu 5º Evento
Científico, pela segunda vez Internacional, e pela primeira vez, um Congresso, pretendeu
promover um espaço coletivo mais amplo de reflexão, com especialistas de diversas áreas
do saber, para debater questões relacionadas à indústria cultural hoje, sob o impacto das
novas tecnologias e suas implicações para a educação, para a formação estética e cultural, a
partir dos teóricos da primeira geração da “Escola de Frankfurt”.

A grande questão que se colocou para a reflexão de todos os presentes neste


Congresso científico foi a seguinte: A categoria Indústria Cultural, criada na década de 40
do século passado, consegue dar conta da interpretação dos fenômenos sob sua jurisdição?
Adorno e Horkheimer, quando escreveram o ensaio Indústria Cultural: o
esclarecimento como mistificação das massas, e, mesmo depois, em 1967, quando Adorno
fez um Resumo sobre a Indústria Cultural, viviam eles ainda na era das revoluções
mecânicas. Seus contatos com a revolução tecnológica americana, com os grandes trustes,
com o rádio, com o cinema e com a incipiente televisão os levaram a substituir a expressão
“cultura de massas” por indústria cultural, por que aquele termo, no dizer deles, “desvia a
ênfase para aquilo que é inofensivo”. No dizer de Adorno: “não se trata nem das massas em
primeiro lugar, nem das técnicas de comunicação como tais, mas do espírito que lhes é

2
. Expressão do Cardeal Carlos Caraffa, 1565, – nomeado cardeal por seu tio Giovanni Caraffa, na ocasião

3
insuflado, a saber, a voz de seu senhor. A indústria cultural abusa da consideração com
relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como
dada a priori e imutável (A Indústria Cultural, 1967)”. A partir dos anos 1970 o mundo está
sendo profundamente modificado pelas tecnologias digitais e outras. As transformações
geradas nos meios de comunicação, nos setores industriais e de serviços, na formação
escolar, só para destacar alguns setores, foram espantosas e inacreditáveis. É verdade, por
outro lado, que uma categoria também pode evoluir historicamente. Veja, por exemplo, a
categoria “ideologia”, no estudo feito sobre ela por Adorno e Horkheimer (Temas básicos
de Sociologia). Como utilizar ainda uma categoria criada há sessenta anos atrás para dar
conta dos fenômenos atuais?

Para os autores frankfurtianos, a cultura dos anos 40 conferia a todos os seus


produtos um ar de semelhança, de parentesco. Graças ao desenvolvimento tecnológico e à
concentração econômica e administrativa, o cinema, o rádio, as revistas se faziam lembrar
um do outro, aproximavam-se na estrutura, ajustavam-se e complementavam-se na
perspectiva do todo. Ontem (1940-1970), o telefone, o cinema, o rádio, as revistas, a
televisão constituíam um sistema; hoje (2006), graças ao espantoso desenvolvimento das
tecnologias da informação e também à não menos espantosa concentração econômica e
administrativa, o sistema ganhou mais densidade e articulação, aprimorando aqueles ramos
tradicionais, transformando-os em aparatos de última geração e integrando ao circuito
meios novos e mais poderosos: os celulares, a TV interativa, a Internet e outros. Avançou-
se no aprimoramento de cada setor em si mesmo e em seu vínculo com o todo. A cultura
atual, com mais competência ainda, continua conferindo a tudo um ar de semelhança, de
identidade, de uniformização.
Ontem, a passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o
telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel de sujeito.
Democrático, o rádio transformou-os a todos igualmente em ouvintes, para integrá-los
autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações (Adorno e
Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, 1944). Hoje, os programas de auditório, o
“voyeurismo”, as novelas, os enlatados, os videogames, ao dilatarem ao extremo seu espaço

Paulo IV, papa desde 1555. Os Caraffas são de uma nobre família napolitana.

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de penetração em todas as camadas sociais, dilataram ao extremo igualmente a capacidade
de transformar a quase totalidade da população em ouvintes pacientes e sensíveis aos
imperativos da indústria cultural. A Internet, ainda não totalmente administrada pelo
sistema, por enquanto permite aparentes manifestações de apreço e de liberdade. Aparentes
manifestações, porque tudo o que passa pela Internet pode ser captado pelos olhares atentos
e vigilantes do poder. Com a ampliação ao infinito de vias on line e de telefones portáteis,
que registram cada um dos gestos e deslocamentos, o indivíduo renuncia voluntariamente a
uma parte de sua autonomia e de sua intimidade. A vida privada cada vez mais se torna
vulnerável e exposta às articulações dos que detém informações. Adorno e Horkheimer, na
Dialética do Esclarecimento, perguntavam se a indústria cultural ainda preenchia a função
de distrair, de que ela tanto se gabava, e concluíam que se a maior parte dos rádios e dos
cinemas fossem fechados, provavelmente os consumidores não sentiriam tanta falta assim.
Hoje a maior parte dos cinemas foram fechados ou se transferiram para os Shopping
Centers, encontrando neles seu habitat apropriado para mercadejar os best selers do
momento. E com grande afluência de público. Mas a Rede Globo, se for fechada, gerará
certamente uma séria crise nacional!
Ontem (anos 40), as obras de arte tornaram-se tão acessíveis ao público quanto os
parques públicos. Isso – diziam Adorno e Horkheimer – não introduz as massas nas áreas
em que eram antes excluídas, antes servem para a decadência cultural (Dialética do
Esclarecimento, 1944). A novidade, para os frankfurtianos, não é o fato de as obras de arte
serem tidas como mercadorias, porque, em sua tensa história de vida, sempre o foram, antes
pela submissão dos artistas a seus patronos e aos objetivos deles, agora pelo fato de o artista
ter que se sustentar com o fruto de seu trabalho, em uma sociedade em que tudo se
transformou em mercadoria. O novo é o fato de as obras de arte se incluírem, sem
resistência, entre os bens de consumo, buscando neles encanto e proteção, abdicando
voluntariamente de sua autonomia. Para eles, a incipiente televisão, síntese do rádio e do
cinema, através da harmonização da palavra, da imagem e da música, produzida por um
mesmo processo técnico, estava criando possibilidades ilimitadas de empobrecimento dos
materiais estéticos. Se Adorno e Horkheimer estivessem vivos nos inícios deste novo
milênio poderiam constatar, com tristeza, mas não como decepção, o quanto estavam
corretos em seu diagnóstico filosófico-cultural.

5
O GEP Teoria Crítica e Educação, em sua história de 15 anos, já promoveu cinco
eventos científicos:
‰ Colóquio Nacional “O Ético, o Estético, Adorno”, junho de 1998, com a apresentação
de 05 grandes conferências e 30 trabalhos científicos. Com apoio da UNIMEP e
FAPESP.

‰ Colóquio Nacional “Dialética negativa, estética e educação”, março de 2000, com


apresentação de 05 conferências, 04 mesas-redondas, 55 comunicações. Com apoio da
FAPESP e da UNIMEP.

‰ Colóquio Nacional “Tecnologia, Cultura e Formação ... ainda Auschwitz”, em maio de


2002, com a apresentação de 05 conferências, 04 mesas redondas, 54 comunicações.
Com apoio da FAPESP e da UNIMEP.
‰ Colóquio Internacional “Teoria Crítica e Educação”, em setembro de 2004, com a
apresentação de 04 grandes conferências, 04 mesas-redondas, 80 comunicações
científicas e 20 pôsteres. Com apoio da FAPESP, CNPq e UNIMEP.
‰ Congresso Internacional Internacional “Indústria Cultural Hoje”, agosto/setembro de
2006, com 05 grandes conferências (04 internacionais e 01 nacional); 03 mesas-
redondas, 80 comunicações de pesquisa (07 de outros países) e 32 apresentação de
pôsteres. Com o apoio da UNIMEP, da FAPESP, da CAPES e do DAAD.

Queremos, em nome da Comissão Organizadora, cumprimentar todos os


participantes deste Congresso, os conferencistas, os expositores em mesas redondas, os
apresentadores de Comunicações e de Pôsteres, os coordenadores de mesas, os que se
simplesmente se inscreveram no congresso para ouvir e debater idéias. Queremos ainda, em
nome da Comissão Organizadora, fazer uma série de agradecimentos: agradecer o apoio da
UNIMEP e do Colégio Piracicabano, na cessão da infraestrutura necessária para a
realização deste evento. Nomeio, em nosso agradecimento, o Reitor da UNIMEP, prof. Dr.
Arsênio Firmino de Novaes Neto, o diretor do Colégio Piracicabano, Dr. Almir Linhares de
Faria, a Diretora da Faculdade de Ciências Humanas, profª Dra. Theresa Beatriz Figueiredo
Santos, e o secretário executivo do Gabinete do Diretor Geral do IEP, Luiz de Souza

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Cardoso. Agradecemos às Agências Financiadoras que apoiaram este Congresso científico:
FAPESP, CAPES, DAAD. Agradecemos ao Banco HSBC que nos forneceu pastas, canetas
e blocos de anotações. Agradecemos às secretárias do PPGE, às bolsistas de iniciação
científica que nos ajudaram na organização deste evento. Mas quero externar um
agradecimento especial à Rosemeire Rizzo Denadai Zem, Rose, que pela sua competência
e paciência nos ajudou do começo ao fim, bem como à Fabiana Maria Baptista que nos
auxiliou na confecção deste CD-Rom.

Em tempos do Big Brother globalizado, torna-se fundamental a promoção do debate


sobre as características da indústria cultural na atualidade, sobretudo para a investigação
dos danos objetivos e subjetivos que estimulam a propagação de uma semiformação, que se
generaliza velozmente, de uma educação cada vez mais danificada, bem como da
congruência entre progresso técnico e dessensibilização.
As reflexões sobre a Indústria Cultural nos dias de hoje ganham atualidade quando
se analisa o mundo em que vivemos, as escolas que freqüentamos, cada vez mais
administrados e controlados pelo capitalismo globalizado e interconectados pelas redes das
novas tecnologias de informação. Mais do que nunca é preciso, através do esclarecimento,
da auto-reflexão-crítica, da busca incontida da autonomia, criar gérmens de resistência, de
fortalecimento do indivíduo, de intervenção social.
Que as conferências, as mesas-redondas, as comunicações e os pôsteres
apresentados e debatidos no Congresso Internacional “Indústria Cultural Hoje”, e incluídos
neste CD-Rom, nos dêem subsídios fecundos para conhecer mais e mais as contribuições da
Teoria Crítica e, sobretudo, para intervir com determinação no processo educacional
brasileiro, em suas diferentes dimensões.

Piracicaba, outubro de 2006.

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FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS — FCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO — PPGE
GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA TEORIA CRÍTICA E EDUCAÇÃO

CONGRESSO INTERNACIONAL “A INDÚSTRIA CULTURAL HOJE”


(28/08/06 a 01/09/06)

PROGRAMAÇÃO

28/08/06 (Segunda-feira) – 19:30 hs. Abertura: Prof. Dr. Bruno Pucci (UNIMEP)
Conferência: “Indústria Cultural hoje”
Conferencista: Dr. Rodrigo Duarte (UFMG)
Coordenador de mesa: Dr. Newton Ramos de Oliveira (UNIMEP-Araraquara)
Local: Salão Nobre - UNIMEP - Centro

29/08/06 (Terça-feira) – 8:30 hs. Conferência: “Indústria Cultural e Metodologia Empírica em


Educação”
Conferencista: Dr. Ulrich Oevermann (Univ. Johann W. Goethe/Frankfurt am Main)
Coordenador de mesa: Dr. Luiz Antônio Calmon Nabuco (UNIMEP)
Local: Salão Nobre da UNIMEP - Centro

29/08/06 (Terça-feira) – 13:30 – 15:30 hs. - COMUNICAÇÕES

Estética e Educação dos Sentidos


Sala 122 – Edifício Centenário
Coordenador: Gildemarks Costa e Silva

1. Gildemarks Costa e Silva (UFPE), O problema do tecnocentrismo e a questão pedagógica;


2. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (UERJ), A crítica do cinema na Dialética do Esclarecimento;
3. Leila Beatriz Ribeiro, Valéria Cristina Lopes Wilke, Carmen Irene Correia de Oliveira, André Januário
da Silva, Wagner Miquéias Félix Damasceno (UNIRIO), Texto fílmico e indústria cultural: uma
dimensão democratizadora?;
4. Célio Roberto Eyng e Maria Terezinha Bellanda Galuch (UEM), Indústria cultural e formação musical:
duas faces de uma mesma moeda?.

Teoria Crítica e Psicanálise


Sala 123 – Edifício Centenário
Coordenador: Cézar de Alencar Arnaut de Toledo

1. Maria do Rosário Silva Resende (UFG e PUC/SP), Formação e autonomia do professor universitário:
um estudo na Universidade Federal de Goiás;
2. Dulce Regina dos Santos Pedrossian (UFMS e PUC-SP), Reflexões sobre a ideologia da racionalidade
tecnológica, o narcisismo e a melancolia;
3. Ana Paula de Ávila GOMIDE (UEG/USP), Apropriações da Psicanálise Freudiana por T.W. Adorno;
4. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e Marcos Ayres Barbosa (UEM), Religião e cultura no pensamento
de Erich Fromm.

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Indústria Cultural, Subjetividade e Educação
Sala 126 – Edifício Centenário
Coordenador: Luiz Hermenegildo Fabiano

1. Luiz Hermenegildo Fabiano (UEM), Indústria cultural hoje: literatices e sedução autoritária;
2. Elaine Cristina Silva da Costa (UNICENTRO, PR), O design masculino na indústria cultural: a
metrossexualidade no catálogo das subjetividades contemporâneas ou o “homem do espelho”;
3. Franciele Bete Petry (UFSC), Sobre os esquemas da Indústria Cultural: declínio do sujeito e da
experiência segundo as Minima Moralia;
4. Leilyane Oliveira Araújo Masson e Anita Cristina Azevedo Resende (UFGO), Indústria cultural e
presentificação do tempo.

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Sala 127 – Edifício Centenário
Coordenadora: Rita Amélia Teixeira Vilela

1. Rita Amélia Teixeira Vilela (PUC-Minas), Theodor Adorno: críticas e possibilidades da educação e da
escola na contemporaneidade;
2. Raimundo Sérgio de Farias Júnior (UFPA), Indústria cultural e produção da semiformação: a educação
danificada;
3. Felipe Quintão de Almeida (UFSC), Educação crítica pós-Auschwitz: a dialética entre formação
cultural e barbárie segundo Theodor W. Adorno e Zygmunt Bauman;
4. Geraldo Balduino Horn (UFPR), Teoria Crítica e Razão Instrumental: as interfaces do paradigma
epistemológico da racionalidade emancipatória em Horkheimer.

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Sala 130 – Edifício Centenário
Coordenadora: Maria dos Remédios Brito

1. Maria dos Remédios de Brito (UFPA), A face acabada da Bildung (formação) na figura do último-
homem de Nietzsche;
2. Pedro Rocha de Oliveira (PUC-RJ), Realização subjetiva e felicidade sob a indústria cultural;
3. João Luis Pereira Ourique (UFSM), Teoria da Semicultura: questões sobre uma pseudoformação
cultural;
4. Paulo Lucas da Silva (UFPA), Pseudocultura e pseudoconcreticidade: aproximações entre Adorno e
Kosik.

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Sala 135 – Edifício Centenário
Coordenador: Robespierre de Oliveira

1. Eliete Martins Cardoso de Carvalho e Eduardo de Oliveira Elias (UNIDERP – Campo Grande/MS),
Adorno: uma análise entre o campo ético, o mundo tecnológico e o processo de formação;
2. Robespierre de Oliveira (UEM), O espetáculo da mídia: a cultura afirmativa na indústria cultural;
3. Cristiane Ludwig e Amarildo Luiz Trevisan (UFSM), Indústria Cultural Hoje: perspectiva para a
Educação;
4. Luiz Roberto Gomes (UNITRI-MG), A indústria cultural hoje: o agir comunicativo como possibilidade
de uma Teoria Crítica da Educação.

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CONGRESSO INTERNACIONAL

De 28/8 a 1/9/2006

PROGRAMAÇÃO GERAL
DO CONGRESSO
29/08/06 (Terça-feira) – 13:30 – 15:30 hs. - PÔSTERES

Estética, Indústria Cultural e Formação


Auditório do Centro Cultural Martha Watts
Coordenadora e Debatedora: Nilce Altenfelder Silva de Arruda Campos

1. Paulo Irineu Barreto Fernandes (UFU), Banalização da arte e dominação segundo a teoria crítica;
2. Maria Flor Oliveira Conceição e Polyana Stocco Muniz (UNESP), Análise de revistas femininas:
algumas mediações da sexualidade pela indústria cultural;
3. Hugo Langone Machado (UFRJ), Indústria cultural e os uivos do sexo – As projeções do discurso
sexual em “O Uivo”, de Allen Ginsberg na sociedade comtemporânea;
4. Fabiana Paola Mazzo (UNESP/Araraquara), Conformismo e mimese – a influência do consumo
mediado pela mediado pela televisão na relação entre indivíduo e sociedade;
5. Nívea Maria Silva Menezes (UNIMEP), O discurso estético da body modification na formação cultural
da juventude contemporânea;
6. Maria de Fatima Caridade da Silva (UCP), Dialogando com a televisão e o vídeo em cursos de
formação de licenciados de História.

Estética, Indústria Cultural e Formação


Sala Canadá – Edifício Centenário
Coordenadora e Debatedora: Paula Ramos de Oliveira

1. Andréa Giovana Ferreira (UNICAMP), Memória e Produção Teatral;


2. Nivaldo Alexandre de Freitas (USP), Luzes e sombras na relação entre arte e psicanálise;
3. Cynthia Maria Jorge Viana, Yonara Dantas de Oliveira, Kety Valéria Simões Franciscatti (UFSJ/MG),
A arte no mundo administrado: seu potencial crítico e o rebaixamento do conteúdo pela forma;
4. Verussi Melo de Amorim e Maria Eugênia de Lima e Montes Castanho (PUC-Campinas), Pensando
uma proposta de educação estética na formação universitária de professores;
5. Luciene Maria Bastos (UFG), Subjetividade e contemporaneidade: análise da reificação humana;
6. Aldo Pontes (FAM e USP), Infância, mídia e indústria cultural: outros traços constitutivos.

29/08/06 (Terça-feira) – 16:00 – 19:00 hs. Mesa Redonda: “Indústria Cultural e Educação”
Expositores: Dr. Osvaldo Giacóia (UNICAMP) e Dr. Alexandre Fernandez Vaz (UFSC) e Dr. Cláudio
Dalbosco (UPF-Passo Fundo)
Coordenador de mesa: Dr. Bruno Pucci (UNIMEP)
Local: Salão Nobre da UNIMEP – Centro

30/08/06 (Quarta-feira) – 8:30 hs. “Conferência: Teoria Crítica da Escrita e as Novas Tecnologias”
Conferencista: Dr. Christoph Türcke (Univ. Leipzig),
Coordenador de mesa: Dr. Antônio Álvaro Soares Zuin (UFSCar)
Local: Salão Nobre da UNIMEP – Centro

30/08/06 (Quarta-feira) – 13:30 – 15:30 hs. - COMUNICAÇÕES

Estética e Educação dos Sentidos


Sala 122 – Edifício Centenário
Coordenadora: Angela Medeiros Santi

1. Maria do Carmo Saraiva (UFSC), A estética, a crítica da cultura e a educação em Adorno: em diálogo
com a sensibilidade e o Lúdico em Marcuse e Schiller;
2. Angela Medeiros Santi (URFJ), Educação estética e criações constelacionais;
3. Manoel Dionizio Neto (UFCG), O preço do belo na massificação da cultura;

Corpo, Novas Tecnologias e Formação


Sala 123 – Edifício Centenário
Coordenadora: Kety Valéria Simões Franciscatti

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1. Kety Valéria Simões Franciscatti (UFSJ/MG), Clandestino querer na fuga das horas: arte como
expressão da vida danificada;
2. Jaison José Bassani (UFSC), Diálogo (im)pertinente: sobre o tema da técnica e do corpo em Umberto
Galimberti e Theodor W. Adorno;
3. Susana Henriques (Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Educação de Leiria), O corpo na
imprensa portuguesa;
4. Aldinéia Maia e Giordano Rosi (UFPA), Acerca do corpo, Novas Tecnologias e Formação:
Apontamentos sobre o trabalho do(c)ente.

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Sala 126 – Edifício Centenário
Coordenador: Osmar de Souza

1. José Francisco Custódio (UESC), Elio Carlos Ricardo (Univ. Católica de Brasília) e Mikael Frank
Rezende Junior (UFItajubá/MG), Divulgação científica, indústria cultural e semiformação;
2. Werner Markert (Univ. J. W. Goethe/UFC), Teoria crítica, Indústria cultural e Educação: reflexões
sobre crítica de economia política, formação estética e o conceito de professor reflexivo-transformativo;
3. Tobias Grave ( Univ. Leipzig, DE), Lehrberuf und Tabustruktur. Über Adornos Wahrnehmung einer
Berufsgruppe;
4. Osmar de Souza e Pablo Varela Branco (FURB), Indústria Cultural e Literatura dos Mundos: reflexões
para além de disciplina;

Indústria Cultural, Subjetividade e Educação


Sala 127 – Edifício Centenário
Coordenador: Amarildo Luiz Trevisan

1. Amarildo Luiz Trevisan e Maiane Liana Hatschbach Ourique (UFSM), Formação versus Indústria
Cultural na construção da subjetividade;
2. Isilda Campaner Palangana (UNIFAMMA/PR) e Izabeth Aparecida Perin da Silveira (FAFIJAN/PR),
Maria Terezinha Bellanda Galuch(UEM), Acerca das relações entre desenvolvimento psíquico,
indústria cultural e educação escolar;
3. Raimundo Nonato de Oliveira Falabelo (UFPA), Narrativa, Experiência, Sabedoria ... e Educação;
4. Roberta Stubs Parpinelli e Luiz Hermenegildo Fabiano (UEM), Expressões criativas como forma de
resitência ao domínio do sempre igual.

Estética, Urbanismo e Educação


Sala 130 – Edifício Centenário
Coordenador: Fábio Durão

1. Renuka Gusain (Wayne State University), Urban aesthetic and Ethics: production and consuption of
visual culture;
2. Cara Kozma (Wayne State University), From negative aesthetics to social change: avant-garde service
learning aproach to Critical Pedagogy;
3. Victoria M. Abboud (Wayne State University), The nature of the city: urban landscape. Natural space
and education;

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Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação
Sala 135 – Edifício Centenário
Coordenador: Rafael Cordeiro Silva

1. Rafael Cordeiro Silva (UFU), O tempo da não liberdade;


2. Verónica Alejandra Bergero e Eleonor Kunz (UFSC), Reconciliando cisões na era da Indústria Cultural:
possibilidades da Educação Física escolar através do conteúdo dança;
3. Andreia Cristina Peixoto Ferreira (UNIMEP), Formação de professores em educação física e suas
perspectivas emancipatórias: uma crítica imanente à luz da teoria crítica;
4 Raquel de Almeida Moraes (UnB), A Semiformação sob a influência do Banco Mundial no Proinfo.

30/08/06 (Quarta-feira) – 13:30 – 15:30 hs. – PÔSTERES

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação (2)


Auditório do Centro Cultural Martha Watts
Coordenador e Debatedor: Divino José da Silva

1. Kaithy das Chagas de Oliveira e Anta C. Azevedo Rezende (UFG), Indústria cultural, televisão e
semiformação;
2. Sheila Cristina Ferreira de Souza (UFCG), A expressão da indústria cultural veiculada pelo rádio e a
televisão;
3. Luciana Camurra, Teresa Kazuko Teruya e Regina Lucia Mesti (UEM), Gostos e preferências das
crianças sugeridas pelos programas televisivos;
4. Sandro Luis Fernandes (UFPR), A presença do cinema no ensino médio: estudo sobre o uso pelos
professores de História;
5. Ivana de Oliveira Gomes e Silva (UFPA), Memória e formação docente: a auto reflexão como eixo na
formação em serviço;
6. Nathalia Muylaert Locks Guimarães (UEM), Uma análise acerca da instrumentalização da razão na
obra eclipse da razão de Max Horkheimer.

Estética, Indústria Cultural e Formação


Sala Canadá – Edifício Centenário
Coordenador e Debatedor: Sinésio Ferraz Bueno

1. Lígia de Almeida Durante(UNESP), Isabella Fernanda Ferreira (UNESP e UFSCAR), Elementos para
uma análise da questão estética a partir de Adorno;
2. Sara Ferreira Martins (UFU), Dominação da natureza e indústria cultural: uma inversão dialética;
3. Monique Andries Nogueira (UFRJ), A frágil influência adorniana na produção científica em educação
musical no Brasil;
4. Lean Carlo Bilski (PUCPR), Arte e design: uma relação sob a perspectiva da teoria estética de Theodor
Adorno;
5. Orestes Simeão de Queiroz Neto (UNESP), O potencial libertador da arte no pensamento Marcusiano;
6. Juliana de Souza (UEM), Obra de arte e realidade social: Walter Benjamin e Indústria Cultural.

30/08/06 – 16:00 – 19:00 hs. Mesa Redonda: “Indústria Cultural e Subjetividade”.

Expositores: Dr. Antônio Álvaro Soares Zuin (UFSCar) e Dr. Conrado Ramos (UNIP)
Coordenador: Dr. Luiz Antônio Calmon Nabuco Lastória (UNIMEP)
Local: Salão Nobre da UNIMEP - Centro

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31/08/06 (Quinta-feira) – 8:30 hs. Conferência: “A Indústria Cultural na Escola”

Conferencista: Dr. Andreas Gruschka (Univ. Johann W. Goethe/ Frankfurt am Main)


Coordenador de mesa: Dr. Renato Bueno Franco (UNESP-Araraquara)
Local: Salão Nobre da UNIMEP – Centro

31/08/06 (Quinta-feira) – 13:30 – 16:00 hs. Mesa Redonda: “Indústria Cultural, Novas Tecnologias e
Linguagem”

Expositores: Dra. Iray Carone (USP/UNIP) e Dr. Fabio Durão (UFRJ).


Coordenador de mesa: Dr. Belarmino César Guimarães da Costa (UNIMEP);
Local: Salão Nobre da UNIMEP – Centro

31/08/06 (Quinta-feira) – 16:15 – 19:00 hs. Mesa Redonda: “Indústria Cultural, Literatura e Arte”

Expositores: Dr. Newton Ramos-de-Oliveira (UNESP-Araraquara) e Dr. Jorge de Almeida (USP);


Coordenador: Dr. Renato Bueno Franco (UNESP-Araraquara)
Local: Salão Nobre da UNIMEP - Centro

01/09/06 (Sexta-feira) - 8:30 hs. Conferência: “Sacrifício e dominação estética”

Conferencista: Dr. Robert Hullot-Kentor (Univ. Plaza – Brooklin, New York)


Coordenador de mesa: Dr. Fabio Durão (UFRJ)
Local: Salão Nobre da UNIMEP - Centro

01/09/06 (Sexta-feira) – 13:30 – 16:30 hs. - COMUNICAÇÕES

Estética e Educação dos Sentidos


Sala 122 – Edifício Centenário
Coordenador: Renato Franco

1. Renato Franco (UNESP-Araraquara), Adorno e a televisão;


2. Marian A. L. Dias Ferrari (Mackenzie), Indústria cultural, estereótipos e introjeção do preconceito:
análise de peça publicitária televisiva;
3. Deborah Christina Antunes(UFSCar) e Ari Fernando Maia (UNESP-Bauru), Consumo de imagens e
formação de estereótipos na relação entre indivíduo e estilos musicais;
4. Raul Fiker (UNESP-Araraquara), Considerações sobre o cinema em Adorno
5. Rosemary Roggero (SENAC e Univ. Braz Cubas), Sobre o percurso metodológico de uma pesquisa
empírica fundamentada na Teoria Crítica envolvendo subjetividade e formação no âmbito da arquitetura
como recorte da indústria cultural;
6. Valdemar Siqueira Filho, Dennis de Oliveira e Eneus Trindade Barreto Filho (UNIMEP), Tecnologia e
linguagem: a mídia e o diálogo entre cultura e des-construção do conhecimento.

14
Arte, Tecnologias e Formação
Sala 123 – Edifício Centenário
Coordenadora: Paula Ramos de Oliveira

1. Paula Ramos de Oliveira (UNESP-Araraquara), Filosofia e arte na educação escolar de crianças;


2. Jaquelina Maria Imbrizi (Mackenzie e PUC-SP), Ideologia, Indústria Cultural e Literatura;
3. Marília Mello Pisani (UFSCar), A “máquina” como instrumento de controle na sociedade tecnológica:
Herbert Marcuse crítico da tecnologia;
4. Daniela Peixoto Rosa (PPGE/UNIMEP), Repressão do corpo em uma sociedade esportivizada;
5. Sílvio Ricardo Gomes Carneiro (USP), Marcuse, Laplanche e os Limites da Repressão;
6. Stefan Fornos Klein (USP), Da conformação à crítica: educação e socialização em Herbert Marcuse.

Indústria Cultural, Ética e Formação


Sala 126 – Edifício Centenário
Coordenador: Divino José da Silva

1. Marcos Roberto Leite da Silva (UNESP-Marília), O ethos da formação (Bildung) burguesa na


atualidade: desencontros;
2. Maraísa Bezerra Lessa (UNESP-Araraquara), A política cultural do SESC-São Paulo: um estudo de
caso;
3. Divino José da Silva (UNESP-Presidente Prudente), Indústria cultural, educação e preconceito: a mosca
no vidro;
4. Maurício Chiarello (UNICAMP), Em defesa de Adorno: a propósito das críticas dirigidas por Giorgio
Agambem à dialética adorniana;
5. Manuel Franzmann (Univ. Frankfurt am Main), Teoria Crítica da Educação e Pesquisa Empírica;
6. Dorothee Suzanne Rüdiger (UNIMEP), Matrix: rede, ética e o direito na pós-modernidade;
7. Rosana Maria César Del Picchia de Araújo Nogueira (PUC-SP), Violência, indústria cultural e escola:
uma reflexão possível.

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Sala 127 – Edifício Centenário
Coordenadora: Nilce Altenfelder Silva de Arruda Campos

1. Naê Prada Rodrigues Desuó (UNIMEP), Novas Tecnologias em tempo de capitalismo global: da
atualidade da crítica de T. W. Adorno à técnica;
2. Lineu Norio Kohatsu (Mackenzie/USP), Reflexões sobre o cinema: um convite ao debate com Dziga
Vertov;
3. Nelson Palanca (Faculdades Integradas de Jaú), Indústria Cultural, Educação e Novas Tecnologias;
4. Rodrigo Boldrin Bacchin (UNESP/Araraqura), O Big Brother Brasil e a TV na era da globalização;
5. Nilce Altenfelder Silva de Arruda Campos (UNIMEP), Política Educacional, Indústria Cultural e
Semiformação: em questão os parâmetros curriculares;
6. Caroline Mitrovitch (UNESP-Presidente Prudente), O sentido da (de)formação no horizonte do
precário.

15
Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação
Sala 130 – Edifício Centenário
Coordenador: Luiz Calmon Nabuco Lastória

1. Luiz Antônio Calmon Nabuco Lastória (UNIMEP), Uma nova economia psíquica ou mutações tópicas?
Elementos para uma reflexão acerca da subjetividade contemporânea;
2. Davi Rodrigo Poit e Fernanda Pinheiro Mazzante (PUC-SP), Indústria Cultural: experiência, vivência e
choque em Walter Benjamin;
3. Roselaine Ripa (UFSCar), Indústria cultural e educação: qual é a minha marca?
4. Luciana Azevedo Rodrigues (UNIOESTE/UFSCAr) e Márcio Norberto Faria (UFSCar/UNESP-
Araraquara), A disciplina escolar hoje: uma reflexão a partir de Foucault, Adorno e Horkheimer;
5. Ângela Zamora Cilento de Rezende (Mackenzie), “O Sofá, o `Super` e o `´Último´ Homem de
Nietzsche: Considerações sobre a constituição da subjetividade na sociedade moderna”;
6. Fernanda Pinheiro Mazzante, Hérika Regiane Dezidério, Cândida Alayde de Carvalho Bittencourt,
Luciane Aparecida de Araújo Gimenes, Ricardo Casco, Davi Rodrigues Poit, León Crochik, Marcio
Roberto Santim da Silva, Domenica Martinez, Fernanda Medeiros Bezerra das Neves, José Ronaldo
Pereira, Juliana Andrade Alvarez, Kelly Cristina dos Santos (PUC-SP), Relatório técnico de pesquisa:
teses em Teoria Crítica e educação no Brasil.

Indústria Cultural, Subjetividade e Educação


Sala 135 – Edifício Centenário
Coordenador: Sinésio Ferraz Bueno

1. Sinésio Ferraz Bueno (UNESP-Marília), Indústria Cultural, ressentimento e resistência;


2. Maria Clara Cescato (UNESP-Araraquara), Indústria cultural: lógica ou sistema de produção?;
3. Antônio Carlos Borges Cunha (UFG), Semiformação e apropriação de trabalhos acadêmicos
disponibilizados em meios eletrônicos;
4. Fábio Luiz Tezini Crocco (UNESP-Marília), sobre a relação entre mímesis e ideologia;
5. Miqueli Michetti (UNESP-Araraquara), A moda em Theodor Adorno: “reconciliação forçada” e
declínio do sujeito;
6. Márcio Roberto Santim da Silva (PUC-SP), Exibicionismo, voyerismo e padrões estéticos
contemporâneos.

01/09/06 (Sexta-feira) – 13:30 – 16:30 hs. - PÔSTERES

Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação


Auditório do Centro Cultural Martha Watts
Coordenador e Debatedor: Luiz Hermenegildo Fabiano

1. Tadeu Cândido Coelho Loibel (UFSCAR), Indústria cultural: visões críticas ao conceito;
2. Solange Borelli (UniABC), Dança e políticas culturais: relações que se estabelecem entre o poder
público, o poder privado e o artista;
3. Liliana Scatena (UNIMEP), A não neutralidade das novas tecnologias na educação;
4. Soraia Maria dos Santos Pereira (UNIMEP), Navegando no mar da intranet na Unimep: alguns
apontamentos sobre os icebergs encontrados ao longo da rota percorrida;
5. Thelícia Mendes Canabarra, Maria Beatriz Machado Leão, Aline Ongaro Monteiro de Barros, Sérgio de
Oliveira Santos (UNIMEP), A cena didático pedagógica no ensino fundamental: hoje um espaço de
mediação da grande indústria da cultura;
6. Kelly Cristiane da Silva (UFSCAR), As representações dos alunos de Pedagogia ao próprio curso sob o
olhar da teoria crítica.

16
Teoria Crítica, Indústria Cultural e Educação
Sala Canadá – Edifício Centenário
Coordenadora e Debatedora: Rita Amélia Teixeira Vilela

1. Maria Érbia Cássia Carnaúba (UNESP), Uma análise do sentimento de culpa em Hebert Marcuse;
2. Giovane de Oliveira (UFSCAR), O conceito de técnica, formação e natureza na teoria crítica;
3. Anderson Luiz Pereira (UNESP-Marília), A arte de educar e a estética na educação: considerações a
partir de Theodor W. Adorno;
4. Frederico Tell de Lima Ventura (USP), Adorno e os meio de comunicação de massa: uma relação
política tensa;
5. Tatiana Thiago Mendes (UNIMEP), Uma análise das novas tecnologias sob a ótica da Teoria Crítica;
6. Lidiane Caldeira Farias (UNIMEP), Novas Tecnologias e Educação: riscos e possibilidades formativas.

Obs. O Salão Nobre está localizado no Campus Centro da UNIMEP, na Rua Rangel Pestana, 762,
Piracicaba/SP.

17
CONGRESSO INTERNACIONAL

De 28/8 a 1/9/2006

TRABALHOS
APRESENTADOS
ACERCA DO CORPO, NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO: APONTAMENTOS
SOBRE O TRABALHO DO(C)ENTE

Aldinéia Maia1
Rosi Giordano2

O valor central do trabalho no mundo moderno, do emprego transformado em sua forma básica,
as mudanças no mundo do trabalho, provocadas pelo processo de reestruturação do capital,
deram origem a uma variedade de formulações que têm em comum o anunciar da formação de
um trabalhador ainda mais expropriado pelo grande capital. A utopia de uma sociedade fundada
na liberdade e na igualdade, tal como reivindicada pelos ideais iluministas, converteu-se, ao
associar-se ao capital, na ideologia do totalitarismo. O indivíduo, desta forma, ao contrário do
proposto, em 1784, por Kant – em Resposta à pergunta: o que é o iluminismo? – torna-se,
contínua e progressivamente, heterônomo, com uma falsa consciência da realidade,
fundamentalmente, em decorrência da desigualdade das relações sociais. Desse modo, a
formação, no interior da ordenação societária capitalista, transmuta-se em pseudocultura,
assente na razão instrumental, promovendo a adaptação e o conformismo e o indivíduo,
resumido à máscara de si e, unicamente, a seu corpo, à coisa-morta, tem sua capacidade de
reflexão minada. A sociedade capitalista contemporânea notabiliza-se por práticas sociais e
políticas regidas pela intolerância e pelo autoritarismo, o que explica, no interior da imposição
de políticas unilaterais, sob o capitalismo transnacional, a exacerbação da barbárie sociopolítica.
Assim, o moderno projeto civilizatório, que profetizou indivíduos livres, emancipados, trouxe,
paradoxalmente, uma mutilação que afeta, sobremaneira, a relação do indivíduo com seu corpo,
mutilação essa que é consigna do mal-estar a que são submetidos os trabalhadores em seus
locais de trabalho, dado adequarem-se a modelos de organização e gestão do trabalho que
marcam, como que com cicatrizes, seus corpos e espíritos. Para discutir a temática acima
exposta, toma-se como fundamento a leitura de Horkheimer e Adorno no fragmento O interesse
pelo corpo – na obra Dialética do Esclarecimento. No referido fragmento, os autores explicitam
de que maneira, por meio da manipulação do corpo, encontra-se o prazer dos que o
manipulam. Em outras palavras ainda, o indivíduo, reduzido à força de trabalho, ao corpo, é
visto, pelos novos príncipes e patrícios, como um amontoado de articulações que, movendo-se
por determinações exteriores a si, a seus interesses racionais, permite-lhes auferir o lucro
advindo das horas de trabalho dos que lhes são inferiores. Se, como afirmam os autores, no

1
Universidade Federal do Pará. Centro Socioeconômico. Programa de Estudos Pós-Graduados em
Serviço Social. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/DF).
E-mail: aldineiamaia@yahoo.com.br.

19
momento em que a dominação assume a forma burguesa mediatizada pelas novas tecnologias, a
humanidade deixa-se escravizar pela gigantesca aparelhagem, forjando uma nova espada, ícone
daquela coerção física que se exercia de fora, pergunta-se se, como outrora, ainda que
surdamente, os trabalhadores do(c)entes pressentem que a humilhação da carne pelo poder
nada mais é do que o reflexo ideológico da opressão a que são submetidos. Tendo por
finalidade ampliar o debate acerca das transformações que vêm sendo implementadas no mundo
do trabalho e as conseqüências destas para a saúde do trabalhador da educação, é que nos
propomos a explorar a temática a partir das contribuições da Teoria Crítica.

I. TRABALHO, EDUCAÇÃO E SAÚDE


Este ensaio visa, de maneira precípua, socializar as questões, de natureza teórica, que
vêm sendo tecidas ao longo da realização de duas pesquisas – respectivamente intituladas
Amazônia, trabalho e educação: histórias e memórias do trabalho do(c)ente (GIORDANO,
2005)3 e Trabalho e saúde entre os funcionários do Serviço Social do Comércio (SESC)
/Ananindeua: morbidez e/ou resistência? (MAIA, 2005)4 – no intuito de, pensando a temática à
luz dos aportes teóricos da Escola de Frankfurt, redirecionar as referências teóricas que têm
orientado o debate acerca das transformações implementadas no mundo do trabalho e suas
conseqüências para a saúde do trabalhador da educação.
O objetivo das pesquisas acima referidas tem sido o de verificar as implicações das
atuais mutações que, ocorridas no mundo do trabalho, afetam a saúde do trabalhador,
particularmente, no que concerne ao modo como se dá a efetivação do(s) processo(s) de
(re)constituição e (des)configuração da subjetividade dos trabalhadores da educação e, ainda, ao
quadro saúde/doença destes no interior do atual contexto político-econômico e sociocultural. Ao
lado das questões que envolvem a alienação no/do trabalho e suas especificidades na

2
Universidade Federal do Pará. Centro de Educação. E-mail: philosofi@uol.com.br
3
Pesquisa em desenvolvimento, desde 2005, junto ao Centro de Educação, da UFPA. Encontram-se
vinculados a esta pesquisa dois discentes da Graduação (Pedagogia e Psicologia/PIBIC/UFPA) e dois da
Pós-Graduação da UFPA (Centro Socioeconômico, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço
Social).
4
A pesquisa Trabalho e saúde entre os funcionários do SESC/Ananindeua: morbidez e/ou resistência?
vem sendo desenvolvida como trabalho de pesquisa no Programa acima mencionado. Nesta pesquisa –
aposta à pesquisa Amazônia, Trabalho e Educação: histórias e memórias do trabalho do(c)ente, sob a
coordenação de Giordano –, foram sido introduzidas modificações quanto aos sujeitos da pesquisa
(funcionários do SESC, do município de Ananindeua/PA) e, portanto, quanto ao locus em que a mesma
vem sendo realizada. Ressalve-se, entretanto, que o SESC, enquanto Instituição e, por conseqüência, seus
funcionários, oferece(m) um trabalho cujo objetivo maior é o de desenvolver ações educativas junto à
clientela – denominação utilizada pela instituição – e, dos 76 sujeitos que fazem parte da pesquisa, mais
de 60% desenvolvem suas atividades junto à educação, que constitui o principal serviço (sic) oferecido
pela instituição aos comerciários e seus dependentes.

20
organização societal contemporânea – tendo em vista as grandes transformações gestadas no
mundo do trabalho material e imaterial, no que tange ao trabalho docente – testemunha-se, na
contemporaneidade, a progressiva mercantilização em que se encontra submersa a educação, o
aviltamento material e moral a que nos expomos na condição de docentes (processos que se
acentuaram, na sociedade brasileira, peculiarmente, a partir dos anos 90, do séc. XX), bem
como, a crescente complexificação da organização e gestão do trabalho nas instituições de
ensino. Fato é que, desde tempos imemoriais, o educador e a educação, por sua própria
“natureza”, encontram-se inseridos em um tempo sociohistórico e, assim, ante a exigência de
formar o ideal de homem requerido pelo modelo societário vigente. Em outras palavras,

As transformações sociais aceleradas têm provocado a ruptura de


qualquer sombra de consenso. As exigências da sociedade sobre o
professor têm-se diversificado ante a presença simultânea de
diferentes modelos educacionais, que envolvem diferentes concepções
da educação, do homem e da mesma sociedade que, com essa
educação, pretende-se construir. (ESTEVE, 1999, p. 21).

O mal estar docente, caracterizado pela morte do prazer de educar, que se manifesta no
estado de saúde e doença deste trabalhador, vem atingindo uma parcela expressiva de
professores, fato que, segundo Esteve (1999), passou a constituir objeto de análise na Suécia
(1983) e na França (1984)5.

Nossos sistemas de ensino, empilhados e burocratizados,


remendados e apressadamente reformados pelos sucessivos
responsáveis que pretendiam fazer frente às mudanças sociais
urgentes, têm multiplicado as exigências contraditórias,
desconcertando ainda mais os professores, sem, no entanto, conseguir
– como reconhecem publicamente esses mesmos responsáveis –
estruturas de ensino adequadas às novas demandas sociais. A
sociedade e a administração do ensino acusam os professores de
constituir um obstáculo ante qualquer tentativa de renovação. Os
professores, por sua vez, acusam a sociedade e a administração do
ensino de promover reformas burocráticas, sem na prática dotá-los das
condições materiais e de trabalho necessárias para uma autêntica
melhora de sua atuação cotidiana de ensino. [...] Descontente com as
condições em que trabalha, e às vezes, inclusive, consigo mesmo, o
mal estar docente constitui-se uma realidade constatada e estudada, a
partir de diversas perspectivas, por diferentes trabalhos de
investigação. (ESTEVE, 1999, p. 22).

5
Importa ressalvar que, no Brasil, não são poucas as pesquisas sobre a saúde do trabalhador. Mas, em se
tratando dos docentes estas são em número reduzido e, ainda, bastante recentes no Brasil. Cumpre, nesse
sentido, indicar a importância dos achados das pesquisas de Codo (1999) e Andrade et al., equipe
responsável pela elaboração do documento final da Pesquisa Nacional realizada pela Unesco (2004).

21
Em virtude do exposto, verifica-se, hoje, de modo mais intenso, a submissão do
trabalhador à realização de um trabalho esvaziado de seu sentido, o que compromete a
concretização de uma educação para a emancipação e para a autonomia. Baixos salários,
péssimas condições de trabalho, desvalorização profissional são alguns dos fatores que –
acrescidos às mutações do trabalho e suas implicações para as relações de produção – colaboram
para o agravamento desse quadro. O professor, para minimizar o mal estar advindo do exercício
de uma atividade de trabalho em que se esvaem suas energias, procura formas para escapar do
mal que se abate sobre ele. Ao nos perguntarmos se esta fuga constitui sinal de resistência ou
meio de sobrevivência, respondemos, em virtude do amálgama que liga, indissoluvelmente,
corpo e alma, tratar-se, fundamentalmente, da necessidade do sobreviver, pois, não nos resta,
como trabalhadores, outra opção: “pensar como o mestre” ou viver a dupla exclusão, material e
espiritual.

A análise feita há cem anos por Tocqueville verificou-se


integralmente nesse meio tempo. Sob o monopólio privado da cultura
‘a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma. O mestre não diz
mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é livre de não
pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar, mas
de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós’. Quem não
se conforma é punido com uma impotência econômica que se
prolonga na impotência espiritual do individualista. Excluído da
atividade industrial, ele terá sua insuficiência facilmente comprovada.
[...] A produção capitalista os mantém tão bem presos em corpo e
alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido.
(HORKHEIMER e ADORNO 1985, p. 125. Grifo nosso).

A atual configuração que o capitalismo assume na contemporaneidade, entretanto, tanto


inviabiliza a “fuga” e/ou a resistência por completo, como enfraquece as formas de resistência
encontradas pelo professor. Ou, como coloca Adorno (2002, p. 116):

É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a


integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do
indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos
limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isto coincidiria com o
prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições
permanecem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada
pela consciência. A coisa não funciona tão sem dificuldades assim, e
menos no tempo livre, que, sem dúvida envolve as pessoas, mas,
segundo seu próprio conceito, não pode envolvê-las completamente
sem que isso fosse demasiado para elas. Renuncio a esboçar as
conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma chance
de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua
parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade
[Freizeit].

22
Daí considerarmos a relevância de socializar a (parcial) realização das pesquisas,
reunir e acumular estudos que abordem a referida temática, pensar a possibilidade da construção
de formas de resistência que se contraponham às causas que provocam o mal estar, ou, em
outras palavras, perguntarmo-nos se, como outrora, ainda que surdamente, os trabalhadores
do(c)entes pressentem que a humilhação da carne pelo poder nada mais é do que o reflexo
ideológico da opressão a que são submetidos.

II. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A SAÚDE EM RISCO

O estudo das pesquisas realizadas sobre as condições nas


quais se exerce a docência comporta, necessariamente, um enfoque
interdisciplinar. Deparamo-nos com trabalhos de investigação que –
de uma perspectiva psicológica – falam-nos do estresse dos
professores [...]. Nesses trabalhos, os problemas psicológicos
detectados acabam se relacionando, [...] com as condições
sociotrabalhistas em que se exerce a docência. Outras pesquisas
adotam um enfoque sociológico. [...] Com freqüência, as investigações
que adotam esse enfoque terminam seu estudo social sobre os
problemas atuais da profissão docente, relacionando-os com as
conseqüências que deles advêm [...]: professores afetados pela
violência nas aulas, esgotamento físico ou efeitos psicológicos.
(ESTEVE, 1999, p. 23).

A citação acima faz referência a uma questão fundamental: a da necessidade de uma


abordagem multidisciplinar do objeto de estudo aqui tratado, dado este pedir por aportes dos
diferentes saberes, na tentativa de realizar-se uma análise que reconheça a influência da
multiplicidade de elementos atuantes na complexa realidade que envolve as condições concretas
em que os docentes exercem seu ofício, quer sejam as referidas às transformações no mundo do
trabalho, quer as que, sobredeterminadas pelas primeiras, impuseram à escola, a seus
funcionários e docentes, novas tarefas que, por seu turno, exigem competências e habilidades
que não eram atribuições destes6.
A sociedade capitalista é palco de uma nova orientação político-econômica e cultural,
decorrente do processo de reestruturação produtiva, que intensificou sobremaneira os agravos
infligidos à classe trabalhadora, implicando, por sua vez, em virtude da precarização e

6
As transformações impostas ao sistema de ensino e, portanto, aos professores indicam novos desafios
aos que se propõem responder às novas expectativas sobre eles projetadas. De acordo com Esteve (1999),
exige-se do professor, algumas vezes, ser amigo dos alunos; em outras, postura de julgamento. Além
dessas, outras exigências cabem ao papel do professor. As modificações na estrutura familiar, que,
incorporando, crescentemente, as mulheres ao mercado de trabalho, exigem deste o desempenho de

23
esvaziamento do significado do trabalho, danos crescentes à saúde do trabalhador. Esses
processos revelam que, sob a égide do capital, o trabalho, necessariamente, embrutece e
desgasta o trabalhador, muito embora vivamos, em virtude das novas tecnologias agregadas ao
processo produtivo, um tempo em que o trabalho, ao menos aquele que tortura, fazendo jus à
etimologia da palavra7, tornou-se desnecessário.
O capital recompôs o processo de trabalho, de forma a não abalar a relação de
subordinação entre estes termos e os homens que a exercem, intencionando prolongar a
exploração dos trabalhadores. Dito de outro modo, no padrão de produção flexível, os
trabalhadores são chamados a uma nova forma de expropriação e de conformação, pois, ao
participarem, por meio de um processo ilusório e parcial do controle dos processos de produção,
têm, desta forma, sua subjetividade controlada pelo capital. Ocorre, de acordo com Antunes e
Alves (2004, p. 345),

[...] uma nova orientação na constituição da racionalização do


trabalho com a produção capitalista, sob as injunções da
mundialização do capital, exigindo, mais do que nunca, a captura
integral da subjetividade operária (o que explica, portanto, os
impulsos desesperados e contraditórios – do capital para conseguir a
parceria com o trabalho assalariado). (Grifo nosso).

A “captura integral da subjetividade operária”, evidenciada ao longo de todo processo


de constituição da figura do trabalhador na sociedade capitalista, pode ser demonstrada, de
forma mais agudizada, portanto, na atualidade, momento em que os trabalhadores são
intimidados a vivenciar novas formas de realizar suas atividades, dado as novas exigências
colocadas pelo capital ao trabalhador, ao promoverem a ampliação das condições objetivas e
subjetivas que têm levado a um acúmulo de trabalho, contribuírem, conseqüentemente, para o
que se convencionou denominar síndrome de burnout. Esta contribui, significativamente, para
que os trabalhadores adoeçam, cada vez mais, permanecendo, com muita freqüência, nesse
estado por períodos longos.
Importa, pois, considerar a importância de – para todos os que (sobre)vivemos sob a
lógica do mercado, em que o sujeito é o capital – investigarmos os sentidos macro-estruturais do
trabalho e do emprego para a classe trabalhadora – particularmente, para a classe que
(sobre)vive do trabalho docente –, pois, fatores como: a reestruturação produtiva, a integração
mundial dos mercados financeiros, a internacionalização e a abertura das economias implicaram

papéis antes atribuídos aos pais; a democratização do acesso às instituições de ensino que, ao favorecer o
acesso das camadas populares à educação, pede pela reestruturação de todo o processo educativo.
7
Do latim vulgar, tripaliare (trabalhar) significa martirizar com o tripalium, instrumento utilizado para a
tortura.

24
a precarizaçäo do trabalho, atingindo amplos setores da população e, em particular, a categoria
profissional constituída pelos trabalhadores da educação. Tais mutações envolveram
conseqüências político-econômicas e socioculturais, tais como, a crescente pauperização da
classe trabalhadora (incluindo aqueles integrados ao mercado formal de trabalho), a
insegurança, a instabilidade e a precariedade nos vínculos laborais. Essas conseqüências
impuseram-se ao trabalho docente com especificidades ainda muito pouco diagnosticadas. Em
que pese, portanto, a quantidade e a qualidade do levantamento de dados acerca das causas e
conseqüências da reestruturação produtiva, bem como da produção teórica no Brasil, em nível
macro, acerca dessas questões, segundo Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1999), pouco se tem
discutido sobre a desestruturação e conseqüente necessidade de reconstrução de
identidades/subjetividades geradas a partir da precarização do trabalho, em especial, da do
trabalho docente nas instituições de ensino superior.
Os efeitos das mutações no meio laboral são diversos, obrigando os trabalhadores a
buscarem novos mecanismos de defesa para garantirem sua sobrevivência psíquica. Mas não se
pode fazer a simples associação de sofrimento/patologia ou prazer/saúde, uma vez que nem todo
sofrimento é patológico, podendo mesmo o sofrimento vir a constituir mecanismo para evitar o
adoecimento, ou, ao menos, funcionar como um alerta da existência de doenças. Esta nova
adaptação, porém, pode colocar em risco o bem-estar do trabalhador quando este não logra pôr
em circulação estratégias para o enfrentamento ante os revezes advindos do trabalho,
acarretando problemas crônicos de saúde.
Para além das modificações impostas aos trabalhadores, exigidas pela reconfiguração no
mundo do capital, os docentes – acossados pelos processos sociais que mercantilizaram a
educação, assimilando a reflexão à razão instrumental – são forçados a experimentar novas
formas de realizar suas atividades docentes, no interior de um outro conjunto de “regras”
(planejamento estratégico, avaliação de resultados e produtividade, técnicas pedagógicas,
supostamente, modernizadas e modernizantes, etc.), que lhes impõe novos comportamentos,
novas atitudes e competências. Estas, por tenderem a adequar o fazer do professor ao imperativo
de uma educação voltada à adaptação dos indivíduos ao mercado, lhe são estranhas e
desprazerosas, tal como evidencia o relato de um dos sujeitos da pesquisa realizada por Gomes
(2002, p. 12)8:

8
Ainda acerca dessa questão Esteve (1999, p. 40) faz algumas considerações relevantes, como as
descritas a seguir: “Com data de 18 de janeiro de 1983, o jornal El País, em seu suplemento semanal de
educação, publicava um pequeno artigo sob o título: ‘crise da profissão docente na Suécia’ [...]: ‘A
profissão de mestre nas escolas [...] na Suécia não só deixou de ser atrativa, como está ameaçada de uma
progressiva deserção dos quadros docentes. A principal razão disso é o esforço psíquico a que estão
submetidos os docentes como conseqüência do clima dominante nos centros de ensino. Uma quarta parte
dos professores de Estocolmo pensa em mudar de atividade [...]. [...] 264 mestres mudaram de atividade e

25
‘Eu era uma peça que não fazia sentido. Isso foi me dando
depressão... Eu não conseguia... saía para dar aula mas sem
vontade. E aquilo foi me angustiando, até que eu disse não, tenho que
parar com isso se não vou... eu já não dormia direito... E aí eu
abandonei por um ano... Eu me dei licença médica’. (Grifo nosso).

A evanescência do prazer de educar em sua dimensão concreta, qual seja, aquela que se
manifesta nos estados de saúde (prazer) e doença (desprazer) pode, nesse sentido, ser verificada
no aumento da taxa de pedidos de licença médica entre os professores:

Essa articulação entre administração tutelar, verticalizada e a


geração de subjetividades serializadas, marcadas pela repetição,
sofrimento patogênico e doença pode ser constatada, dentre outros
aspectos, na brutal elevação dos índices de solicitação de pedidos de
licença médica por parte dos professores entre os anos 1995 e 1997.
(MINAYO-GOMEZ e BARROS, 2005).

O mal-estar docente nas escolas geridas e administradas com vistas à fabricação, para o
mercado, de indivíduos dóceis e propensos à aceitação de discursos autoritários pode ser situado
em um processo de duas faces: uma que tende a – por danificar a subjetividade e a reflexão
crítica –imobilizar a capacidade de resistir à lógica inerente à penetração do mercado na sala de
aula e outra que revela a possibilidade de, a partir daquilo mesmo que engendra o mal-estar e
suas manifestações concretas, favorecendo a mobilização para a recusa da submissão completa
ao capital, recusa correlata a estratégias cuja intencionalidade seja a de minar o projeto
neoliberal para a educação.

As solicitações de afastamento do trabalho por motivos


médicos sinalizam ora estratégias que recusam os modos de
administração verticalizados, movimentos que buscam fugir das
serializações impostas, constituindo-se em importante estratégia
política, ora adoecimento e, ainda, defesas que buscam evitar o
adoecimento. O gerenciamento do tempo é uma estratégia privilegiada
no estabelecimento da lógica do capital e uma forma de recusa
utilizada pelos trabalhadores, como a greve, operação tartaruga, a cera,
e, ainda, os pedidos de licença. (MINAYO-GOMEZ e BARROS,
2005).

Se as condições objetivas e subjetivas do trabalho docente constituem, hoje, espaço de


estímulo à competitividade e ao individualismo, enquanto estratégias de fragilização da classe
trabalhadora (particularmente, a dos trabalhadores docentes), estas apresentam, por outro lado,

os pedidos de emprego em arquivos, museus e outros lugares mais tranqüilos aumentaram nesse setor.
Várias centenas de docentes tiveram de recorrer aos serviços de psicoterapia do departamento de
Educação’”.

26
na fala de alguns docentes, condições para a oposição ante esse quadro, por meio de, apenas,
duas alternativas: “[...] fazer resistência ou fazer resistência”. (MINAYO-GOMEZ e BARROS,
2005). Tais estratégias, entretanto, não logram êxito completo, fundamentalmente, pela
incapacidade de os corpos não suportarem tamanha pressão, tamanha precarização e
esvaziamento do sentido de seu trabalho, com isso, adoecendo. Contudo, esse adoecer do corpo
pode indicar uma via de resistência ao esgotamento físico e mental, na medida em que permite
uma “pausa” na efetiva opressão vivenciada nos espaços de trabalho, possibilitando ao
trabalhador docente encontrar lugares e tempos propícios à reflexão, revelando, pois, que o
processo de esmaecimento da consciência, enquanto mecanismo de controle não é total, tal
como não o é a submissão do trabalhador aos instrumentos de que lança mão o capital para
domá-lo, domando a vida. Assim,

[...] muitas tarefas prescritas [...] não conseguem ser implementadas e


a sala de aula se configura, muitas vezes, em ‘espaço de saúde’ onde o
trabalho real, marcado pela imprevisibilidade, efetiva-se, evitando-se
o sufocamento. Quais os movimentos de ‘insubmissão’ que viabilizam
a invenção de outras formas de trabalho ou outras redes de
cooperação? Quais estão se atualizando hoje na rede de ensino? Como
investir nessas estratégias de forma a viabilizar outros movimentos
que, ao recusarem as políticas educacionais em curso, podem usinar
novas possibilidades de luta no campo da educação? O engessamento
das ações não se efetiva de forma tranqüila, ou seja, a submissão não é
total, absoluta. (MINAYO-GOMEZ e BARROS, 2005).

III. EDUCAÇÃO, RESISTÊNCIA E SAÚDE


“[..] a sala de aula se configura, muitas vezes, em ‘espaço de saúde’”. (MINAYO-
GOMEZ e BARROS, 2005)? Os professores... pressentem, ainda que surdamente, que a
humilhação da carne pelo poder nada mais é do que o reflexo ideológico da opressão a são
submetidos? (Cf. HORKHEIMER E ADORNO, 1985, p.216).
Pensar essas questões, desde o interior dos aportes da Escola de Frankfurt, implica
voltarmo-nos aos fundamentos teórico-filosóficos do ideário burguês, em que se encontra
assente a declaração dos direitos do homem e do cidadão, que acenou para a perspectiva de
libertação de todos os homens, inclusive daqueles excluídos da condição jurídica de homens
livres, ao longo da história medieval. Vale ressaltar que os princípios do liberalismo e do
iluminismo, difundidos como sendo princípios e interesses universais da sociedade burguesa,
somente o foram durante a fase revolucionária da classe que se tornou hegemônica após a
derrocada da ordem feudal. No bojo desse processo, a razão e a ciência assumem caráter
fundamental, na medida em que permitiriam um conhecimento preciso da realidade, purificado
da superstição, do mito.

27
Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo
menos no plano das formas políticas, opôs-se com a palavra de ordem
do progresso à situação estacionária vigente; [...] Somente depois de
esta classe já ter conquistado as posições de poder decisivas, o
conceito de progresso degenerou em ideologia [...]. O século XIX
chegou aos limites da sociedade burguesa; esta não podia realizar sua
própria razão, seus ideais de liberdade, justiça e espontaneidade, a não
ser superando seu próprio ordenamento. (ADORNO, 1995b, p. 52).

Adorno, ao analisar o pensamento iluminista, observa que embora este sugerisse, no


horizonte de seu projeto de sociedade, um anseio pela libertação do homem, o progresso que a
humanidade, historicamente, concretizou, fez comungarem a racionalidade iluminista e os
interesses do capital, sujeito efetivo da sociedade industrial. É, pois, na relação de pertença entre
os interesses do capital e os da razão esclarecida, reduzida a sua forma instrumental, que o
indivíduo resulta enfraquecido, sitiado no interior da racionalidade inerente ao progresso
econômico, tal como delimitado nos marcos da lógica de acumulação capitalista. Se se deve
pensar a qualidade da existência dos homens não somente a partir do nível de desenvolvimento
tecnológico e científico proporcionados por esta aproximação entre capital e razão, mas,
também, pelo estágio de humanização alcançado pela sociedade, é preciso afirmar que, sob a
égide da organização societal capitalista, entretanto, a razão finda por se fetichizar, tornando-se,
ela própria, mito. Assim sendo, a racionalidade converte-se em irracionalidade, negando o
conceito do esclarecimento, bem como a possibilidade do progresso, em virtude do princípio
primeiro da sociedade burguesa, qual seja, o lucro na troca de mercadorias.
Horkheimer e Adorno (1985) nos auxiliam a explicitar a tendência à subversão da razão,
ofuscada em sua aliança com o capital ou, em outras palavras, a degeneração do progresso em
regressão:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o


esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens
do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra
totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade
triunfal. (p. 19).

A fim de compreender as determinações socioeconômicas e políticas que concorrem


para a constituição do enfraquecimento do eu no indivíduo da sociedade industrial, Horkheimer
e Adorno (1985) procedem, em Dialética do esclarecimento, de modo a constituir uma profunda
análise da formação cultural, tal como historicamente construída, isto é, como signo da
escravidão, do totalitarismo, da barbárie, enfim...
Apesar de alheio à matemática, Bacon captou muito bem o
espírito da ciência que se seguiu a ele. O casamento feliz entre o
entendimento humano e a natureza das coisas, que ele tem em vista, é

28
patriarcal: o entendimento, que venceu a superstição, deve ter voz de
comando sobre a natureza desenfeitiçada. Na escravização da criatura
ou na capacidade de oposição voluntária aos senhores do mundo, o
saber que é poder não conhece limites. Esse saber serve aos
empreendimentos de qualquer um, sem distinção de origem, assim
como na fábrica e no campo de batalha está a serviço de todos os fins
da economia burguesa. Os reis não dispõem sobre a técnica de
maneira mais direta que os comerciantes: o saber é tão democrático
quanto o sistema econômico juntamente com o qual se desenvolve. A
técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou
imagens nem a felicidade da contemplação, mas o método, a
exploração do trabalho dos outros, o capital (HORKHEIMER E
ADORNO, 1985, p. 20).

A burguesia, em sua fase revolucionária, afirmando a liberdade dos homens e a


construção de uma humanidade liberta das imagens míticas que permeavam o modo como os
homens percebiam o mundo, a natureza e a si mesmos, entroniza – no que concerne à
construção do entendimento do mundo, em virtude do desenvolvimento da tecnologia que
constitui a essência desse saber – a dimensão sombria do esclarecimento, corporificada não
somente na racionalidade instrumental subjacente ao conhecimento científico de caráter
positivista, mas, também, na indústria cultural, que construindo simulacros da realidade,
independentes do próprio real, submete a consciência às ideologias comunicadas pela indústria
da cultura. O lugar privilegiado ocupado pela dimensão instrumental da racionalidade deve-se,
pois, ao fato de o capital, enquanto sujeito social, impor sua lógica às classes, no interior da
contradição dialética do par capital e trabalho, na organização da sociedade, lógica essa que
supõe a heteronomia, em detrimento da emancipação. Com o avanço do capitalismo
monopolista, a razão instrumental difunde-se e torna-se onipresente, conforme já assinalado, por
meio da indústria cultural. Desse modo, “O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da
indústria cultural. [...] Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as
pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo”. (HORKHEIMER E ADORNO, 1985, p.
119).
A compreensão, portanto, do porquê de as promessas iluministas terem permanecido
irrealizadas encontra-se no entendimento do que representou – e vem representando – o avanço
estrutural da sociedade capitalista, que, em conformidade com Horkheimer e Adorno, tem
anulado o indivíduo, dissolvendo-o diante de uma sociedade dominada pela racionalidade da
técnica e da ciência – mais especificamente, sua mistificação, seu status de coisa independente –
, isto é, pela ideologia do progresso e o esquecimento do passado. Nas palavras dos autores,

Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da


padronização do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em
que sua identidade incondicional com o universal está fora de questão.

29
Da improvisação padronizada no jazz até os tipos originais do cinema,
que têm de deixar a franja cair sobre os olhos para serem reconhecidos
como tais, o que domina é a pseudo-individualidade. O individual
reduz-se à capacidade do universal de marcar tão integralmente o
contingente que ele possa ser conservado como o mesmo
(HORKHEIMER E ADORNO, 1985, p. 144-5).

O indivíduo autônomo, dono de si e capaz de determinar seus fins encontra-se, desse


modo, em extinção, na medida em que as condições objetivas que poderiam permitir essa
capacidade encontram-se ausentes, em virtude do modo como se tem organizado a vida
econômica, na medida em que o aperfeiçoamento dos mecanismos capitalistas de controle
levam ao desaparecimento do sujeito individual ao revelar relações sociais que, hodiernamente,
de modo mais agudo, (con)formam uma subjetividade danificada.

A ordem econômica e, seguindo seu modelo, em grande


parte também a organização econômica, continuam obrigando a
maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação às quais
são impotentes, bem como a se manter numa situação de não-
emancipação. Se as pessoas querem viver, nada lhes resta senão se
adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela
subjetividade autônoma a que remete a idéia de democracia;
conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam seu próprio
eu. [...] (ADORNO, 1995a, p. 43-4).

Nessa conjuntura, evidenciam-se as transformações ocorridas no papel assumido pelos


processos educativos, no que concerne à conformação e adequação dos indivíduos ao modelo
econômico-político e ideológico adotado pelo Estado capitalista, uma vez que as mudanças na
esfera do trabalho – tomado como relação social fundamental sobre a qual se erguem o homem e
a sociedade – espraiam-se por todos os espaços/lugares de construção social, dentre eles, o da
educação.
A reprodução sem cessar, desta ordem injusta e autoritária retira, então do indivíduo as
suas raízes, a sua capacidade de superar seu estado de alienação, levando o indivíduo,
conseqüentemente, a um desenraizamento, a um enfraquecimento de sua capacidade subjetiva, à
paralisação total do pensamento.
Ao contrário do que acreditava Marx, essa intensa exploração no trabalho não tende a
conduzir a uma progressiva consciência do proletariado, dado que hoje, a ideologia dominante
encarrega-se de dissimular, por meio de todo um mecanismo de manipulação, a barbárie dos
processos de produção da sociedade, bem como de transformar o indivíduo em homem-massa.
Pseudoformado, o indivíduo tende a pensar pela ótica exclusiva do pensamento dominante,
perdendo a capacidade de agir e pensar de forma radicalmente diversa e autônoma, paralisando
sua capacidade de refletir criticamente a ideologia hegemônica. Paralisia funcional ao capital

30
para a aceitação das pessoas no mundo das mercadorias.
O processo que impede com que o indivíduo possa ter uma consciência crítica se dá por
meio de diversos mecanismos, dentre eles, a educação, que, do modo como apropriada no
âmbito do capitalismo moderno, totalmente administrado, tem sido orientada pelas necessidades
imediatas do capital, contribuindo para a ampliação das condições objetivas e subjetivas que
possibilitam a permanência da heteronomia. O ser humano, alvo do processo educativo,
transmuta-se em instrumento a serviço da produção de mercadorias, ou reduz-se a uma delas,
processo que ocorre simultaneamente à redução do pensar ao domínio de suas funções
profissionais, tal com revelam Horkheimer e Adorno (1985, p. 184):

Com a propriedade burguesa, a cultura também se difundiu.


Ela havia empurrado a paranóia para os recantos obscuros da
sociedade e da alma. Mas como a real emancipação dos homens não
ocorreu ao mesmo tempo que o esclarecimento do espírito, a própria
cultura ficou doente. Quanto mais a realidade social se afastava da
consciência cultivada, tanto mais esta se via submetida a um processo
de reificação. A cultura converteu-se totalmente numa mercadoria,
difundida como uma informação, sem penetrar nos indivíduos dela
informados [...] O pensamento reduzido ao saber é neutralizado e
mobilizado para a simples qualificação nos mercados de trabalho
específicos e para aumentar o valor mercantil da personalidade. Assim
naufraga essa auto-reflexão do espírito que se opõe à paranóia.

O excerto acima, revelando o predomínio da razão instrumental, explicita o processo de


eliminação da autonomia dos indivíduos, dado a educação resultar em pseudoformação, já que o
esforço educativo tende a ocultar dos indivíduos a heteronomia decorrente das relações
inerentes ao trabalho submetido ao capital, isto é, a danificação de sua subjetividade. Desse
modo, a experiência formativa, enquanto momento básico da constituição do indivíduo tende a
se descaracterizar como possibilidade para a emergência da autonomia e da emancipação,
apresentando-se, pelo contrário, como experiência deformante.
A educação nas experiências escolares tende, portanto, à profissionalização, devendo ter
como princípio a adaptação, dado assentar-se em valores de mercado e transmutar o saber em
mais uma mercadoria de consumo imediato, uma cultura que tem seu valor venal medido nos
termos do mercado.
Não somente a educação entendida enquanto cultura representa, desse modo,
mecanismo de legitimação do modus operandi do capital. Também no âmbito da educação que
se realiza nos espaços escolares o prazer de educar encontra cada vez menos um terreno sólido
para se desenvolver, anuncia a proximidade da morte do desejo da vida digna e feliz, uma vez
que o objeto do exercício da função do professor passa a constituir-se em alienação, e, portanto,

31
em angústia e sofrimento, na medida em que o esclarecimento ao se converter em técnica, deixa
de ser a luz nítida anunciada pela razão, passando a ser uma luz turva que ofusca a realidade e
reproduz o sempre idêntico.
O progresso, aqui representado pelos avanços tecnológicos, que tem imprimido marcas
de modernidade no ensino, tem contribuído, na verdade, para a produção da regressão, expressa
na aceleração da vida em direção à morte, posto que o que o educador, ao vivenciar as novas e
velhas práticas do seu saber profissional, tem estado, ainda mais, exposto a um desgaste físico e
mental, denominado de mal estar docente.
Tais reflexões, ao serem pensadas sob os aportes da Escola de Frankfurt, remetem-nos
ao fragmento Interesse pelo Corpo, da Dialética do Esclarecimento, em que Horkheimer e
Adorno identificam o modo como o indivíduo constitui-se em vítima de uma civilização que o
dilacera, desfigura e recalca seus instintos e paixões, tomando seu corpo como objeto de
controle e manipulação. O corpo passa a ser marcado pelas cicatrizes deixadas pela
materialidade com a qual se vive o trabalho alienado, fragmentado, rotulado sob o imperativo da
exaustão metamorfoseado em nome da eficácia. O professor passa, assim, a ter um corpo
reduzido a uma peça sem importância, ou mesmo como um corpo já sem vida.
E a resistência na sala de aula? E os professores? Pressentem, ainda que surdamente,
[...] que a humilhação da carne pelo poder nada mais era do que o reflexo ideológico da
opressão a que eram submetidos. (HORKHEIMER E ADORNO, 1985, p.216)?
Tem mais nos parecido que o professor, que tem como objeto de sua profissão, o
conhecimento, tem sua vida prescrita pelo produto em que se converteu seu objeto de trabalho,
em um processo que guarda similitudes com o que ocorre na indústria cultural.

A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural


provém de sua identificação com a necessidade produzida, não da
simples oposição a ela, mesmo que se tratasse de uma oposição entre a
omnipotência e impotência. A diversão é o prolongamento do trabalho
sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao
processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições
de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal
poderio sobre: a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela
determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas
à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão
as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho. O pretenso
conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a
seqüência automatizada de operações padronizadas. Ao processo de
trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a
ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O
prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para
continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso,
tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações

32
habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum
pensamento próprio, o produto prescreve toda reacção: não por
sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o
pensamento – mas através de sinais. (HORKHEIMER e ADORNO
1985, p. 128. Grifo nosso).

Somos espectadores?! Ou pressentimos a humilhação que se crava em nossa carne,


nossos corpos?!

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33
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social: desafios para a saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva 1999; 4 (2): 411-21.

34
FORMAÇÃO VERSUS INDÚSTRIA CULTURAL NA CONSTRUÇÃO DA
SUBJETIVIDADE

Maiane Liana Hatschbach Ourique


Amarildo Luiz Trevisan

Resumo

O trabalho tem a intenção de refletir sobre a possibilidade de uma formação cultural


mais ampla na educação, tendo em vista a aceleração do uso das novas tecnologias a partir da
segunda metade do século XX e a demanda sentida pela educação em torno da produção de
conhecimentos úteis. A problemática que se configura é a seguinte: levando em conta a
instrumentalização da razão e a colonização do mundo da vida pelos mecanismos da indústria
cultural, de que forma a educação ainda pode contribuir na construção da subjetividade? Ora, a
consciência moderna se deformou no acontecer do iluminismo, mostrando sua vulnerabilidade à
medida que alimenta o ideal de progresso feito longe da natureza e das possibilidades criadas no
mundo da vida. Adorno e Horkheimer vêem nas tragédias gregas a possibilidade de reencontrar
o equilíbrio perdido neste afastamento da natureza. Eles procuram abalar assim o entendimento
de que o esclarecimento estruturou-se como força de contrapeso ao mito, fornecendo subsídios
para questionar, inclusive, as grandes metas educativas. Edificadas sob um ideal iluminista, as
narrativas que versam sobre emancipação, autonomia e transformação, por exemplo, podem ser
colocadas sob suspeita, à medida que são perseguidas com ações instrumentais e cognitivistas
apenas. A educação, ao reduzir os processos de aprendizagem ao pensamento reflexo, numa
imitação controlada e técnica, contribuiu para a semiformação, na qual a constituição da
subjetividade (fragmentada) revela-se frágil diante das estratégias de apelo da indústria cultural.
No mundo trágico, o equilíbrio entre forças intensas é conseguido, ao tratar o homem e as suas
vivências distanciadas dos interesses burocráticos e mercantis que vieram à tona com a
emergência da modernidade. Sob o enfoque interpretativo, é justamente na proposta das
tragédias gregas que a humanidade do homem é posta diante dos abismos encobertos pela
racionalização iluminista. Podemos encontrar aqui argumentos para revigorar a prática
educativa, especialmente no que tange a suas metas e à maneira de buscá-las. A formação
proposta nas tragédias gregas, ao apresentarem o caos originário da natureza humana, revela-nos


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria e
bolsista CAPES – E-mail: maianeho@yahoo.com.br

Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Maria e pesquisador do CNPq – E-mail: amarildoluiz@terra.com.br

35
as falsas dualidades que compõem o paradigma subjetivista da consciência moderna,
categorizando os fenômenos em racionais ou emocionais, materiais ou mentais, teóricos ou
práticos. Ou seja, diferente de excluir um aspecto, tendo-o como antagônico, as tragédias
aproximam a formação do “outro da razão”, permitindo que o processo de significação se
enriqueça.

Considerações iniciais

O projeto formativo moderno, que foi estabelecido por intermédio das inovações
técnicas e da mercantilização da produção, mostra hoje toda a sua vulnerabilidade. À medida
que alimenta o ideal de progresso, feito longe da natureza e das possibilidades criadas no mundo
da vida, ele redunda ao fim e ao cabo em regressão. O sujeito prende-se ao imediato e ao local,
deslocando as questões de sua historicidade. No plano prático, progresso e barbárie estruturam
uma relação não esclarecida, que não dá conta das relações de trabalho constituídas. Além disso,
no plano cognitivo, tais narrativas não conseguem realizar a síntese expressiva da formação
cultural – Bildung. A redução da razão à sua dimensão instrumental mostra-se insuficiente para
atender as demandas da convivência humana, diante das ideologias veiculadas pelas redes de
comunicação. Os fenômenos não são compreensíveis apenas pela revelação de seu núcleo
racional, pois as questões históricas e culturais são também importantes – por vezes,
determinantes – para a construção de sentidos.

E é a partir destas considerações que podemos entender a diferença entre o acesso à


informação e a sua reelaboração subjetiva. A simultaneidade e diversidade de informações
disponíveis podem não ser fatores decisivos, mas influenciam, em grande medida, o processo
fragmentado que se estabelece. Elas apenas expõem os sujeitos à sua condição de expectadores
de um mundo espetacular, no qual dramas de telenovelas são tratados com a mesma seriedade
que conflitos geopolíticos ou atentados terroristas. As ideologias apresentadas são travestidas de
imagens e de uma linguagem objetiva, vinculando entretenimento e informação numa estratégia
que dispensa a criticidade. O deleite que proporciona é fim em si mesmo. O empobrecimento
das relações humanas, que Adorno denomina pelo conceito de pseudocultura, desvela-se numa
análise um pouco mais detida dos vazios produzidos. A indústria cultural vale-se dos valores
iluministas para fortalecer-se sempre mais. Liberdade é usar uma calça jeans, que a publicidade
fetichiza ao mostrá-la como sujeito histórico capaz de transformar também quem a usa.
Igualdade – e não mercantilização da cultura - é uma conquista de quem freqüenta a mesma
rede de alimentação estabelecida em todos os cantos do mundo. Fraternidade, diferente de
promover ações de inclusão, é participar de happy hours regados à cerveja mais vendida com os

36
colegas de trabalho. As dimensões éticas e estéticas da racionalidade, relegadas pela
modernização, cumpririam exatamente a função de evocar os valores e as relações tácitas das
exposições da indústria cultural, evitando a tendência da leveza se tornar cinismo e da seriedade
conduzir à incomunicação (RÜDIGER, 2004, p. 135).

Diante da fragmentação da razão, a educação, no entanto, permanece vislumbrando uma


formação cultural totalitária. A crítica que ela faz é insipiente, acredita que a simples atitude de
abarcar as manifestações da indústria cultural pode dar conta de uma formação esclarecida. A
problemática que se configura então é a seguinte: levando em conta a instrumentalização da
razão e a colonização do mundo da vida pelos mecanismos da indústria cultural, de que forma a
educação ainda pode contribuir na construção da subjetividade? A educação, entre as demandas
por emancipação e pelo domínio de conhecimentos úteis, não pode fechar os olhos às inovações
culturais, assim como também não pode contemplá-las em sua totalidade. Promover a formação
cultural do homem na educação é uma tarefa que não se reduz a reproduzir os instrumentos e
argumentos da indústria cultural, mas passa pela sua discussão, possibilitando a visão de outros
enfoques. A organização das instituições educativas favorece a imagem de que a educação
objetiva apenas - tendo em vista a íntima relação entre a escola e os interesses de manutenção
das posições sociais – a construção de subjetividades uniformes, quando isto é o almejado pela
indústria cultural, pautada pela forma da mercadoria. Diferente disso, a formação cultural na
educação dá-se pela diversidade, tanto nos instrumentos utilizados, quanto nas habilidades
requeridas.

Bildung e a construção da subjetividade

O projeto da Bildung configurou-se numa utopia que estava presente no movimento


revolucionário que a própria Escola de Frankfurt, em sua primeira fase, liderou. Na
contemporaneidade, tal idéia tem como grande desafio articular-se através de referenciais menos
transcendentes, que não tenham somente a auto-reflexão como última instância de completude.
Como já diagnosticou Adorno & Horkheimer, nas mãos da indústria cultural o espírito absoluto
hegeliano, que previa um processo circular de expressão e retorno do espírito a si mesmo, não
consegue completar seu vôo, desviando-se da instância da subjetividade no momento do seu
retorno a si mesmo. Esta impossibilidade da consciência completar seu giro fenomenológico
resulta, conforme o frankfurtiano, em semiformação, ou seja, numa formação empobrecida, em
que o sujeito não constrói instrumentos para vivenciar e interpretar a cultura em sua plenitude.

O diagnóstico de Adorno & Horkheimer é de que já na metade do século XX a vida do


indivíduo, incluindo seus desejos e necessidades - que na Modernidade são partes da esfera

37
privada -, é tomada pelos imperativos da modernização. A cultura e as expressões artísticas
(pintura, música, literatura...) são arrancadas em sua liberdade integral para moverem-se pela
forma da mercadoria. As discussões sobre o que é arte delineiam-se diante de produções
engajadas ou não, formativas ou de entretenimento, repercutindo como produções de menor
importância frente a um processo irreversível que converteu tudo em bens de consumo fácil.

No segundo estágio de desenvolvimento teórico dos frankfurtianos, esta própria


impossibilidade de realização das metas históricas da Bildung é apontada como saída para
repensar seu conceito, sem, no entanto, macular sua essência. A contra-educação ou utopia
negativa vale-se do exílio, do qual a reflexão não consegue sair, para se tornar presença,
resistindo em tempos que já não cultivam seus preceitos de forma direta.

Perceber a contra-educação como possibilidade da formação, através da crítica e da


denúncia em uma sociedade tomada pela coisificação da consciência, requer o entendimento da
Bildung também como forma, que abrange tanto o significado de “cópia” (Nachbild) quanto o
de “modelo” (Vorbild) (GADAMER, 2004, p. 46). De um lado, a Bildung é autoconstrução,
dizendo respeito a uma subjetividade formada por movimentos que acontecem no nível da
subjetividade do indivíduo, significando o mundo externo e também o outro nestes arranjos. Por
este aspecto, complementa Gadamer, que a vida é uma forma de arte, do mesmo modo que o
artista retira da pedra bruta uma forma que já se encontrava ali e que se revela pelas mãos
habilidosas do artista. De outro lado, a Bildung é a relação do sujeito com a totalidade exterior e,
por isso, um movimento mimético que ocorre por reflexo ou imagem a ser imitada de um
modelo externo.

Nas duas dimensões da Bildung, a instância subjetiva e a instância intersubjetiva estão


presentes e constituem-se numa mútua relação formativa, tornando difícil perceber qual
predomina ou se antecipa a outra. Dizer que na primeira nuance, o outro e a alteridade realizada
pelo sujeito é apenas meio para construção de si mesmo – sendo, portanto, a intersubjetividade
menor que a subjetividade – é ignorar o aporte dado pelo outro para a formação do sujeito. Por
outro lado, se dissermos que este sujeito só se constitui na segunda nuance, porque recebeu
elementos de uma totalidade já existente – sendo, neste caso, a subjetividade menor que a
intersubjetividade – é menosprezar todas as elaborações e significações dadas pelo sujeito, que
não consegue se autonomizar dos imperativos do mundo.

38
A indústria cultural e a construção da subjetividade

Imersos no fenômeno da indústria cultural1, os estímulos estéticos são racionalizados de


acordo com o gosto do mercado e suas direções para o consumo, propiciando a construção de
subjetividades análogas, uma espécie de decalque das personagens da publicidade. A
criatividade e o poder de vislumbrar outros significados, que a arte abriga, são convertidos e
utilizados por esta indústria como possibilidade de gerar o mesmo. Ou seja, a promessa de
individualizar, dotando o sujeito de superioridade, é um engodo que o reifica, inserindo-o no
mundo da moda: “A realização individual da maioria é matéria confiada da maneira mais baixa
possível ao tempo livre colonizado pela indústria cultural e continua separada da práxis
produtiva que lhe daria concretude” (RÜDIGER, 2004, p. 146).

O conteúdo que a arte não consegue inserir na discussão pública é tratado pela indústria
como banal. Questões como a concentração de riquezas nas mãos da minoria, a imoralidade na
política ou a poligamia são motivos para um entretenimento barato, o que só reforça o fracasso
da idéia de cultura como universal:

A contraposição entre a cultura e barbárie, a arte séria e distração barata,


sempre existiu enquanto expressão da divisão da sociedade e, se passou a ser
vista com maus olhos com a ascensão da era moderna, não deixou de indicar
uma verdade a respeito da sociedade: falsa é só a tentativa de fundi-las numa
síntese mercantil pasteurizada (Ibid., p. 144).

Isto não significa dizer que o entretenimento e as produções culturais despretensiosas


não tematizem reflexões ou coloquem o homem em contato com suas questões morais ou
crenças mitificadas. Mas que os mecanismos da indústria projetam uma manobra ideológica que
acabam por objetivar tais conteúdos – formativos ou não – de modo a lhes retirar a sua
substância. Estes, coisificados como mercadoria, sobrevivem agora à custa de seu conteúdo de
verdade e de suas relações com o sujeito. Assim, não apenas a arte séria saiu perdendo, a cultura
popular também perdeu sua espontaneidade, transformando-se em artigo de consumo
uniformizado e uniformizador.

1
A expressão “indústria cultural” é cunhada por Adorno para enfatizar o caráter forjado do movimento
das massas em direção ao consumo, diferente, assim, da “cultura de massas” ou “cultura popular”, cujos
comportamentos são tecidos pela própria população. A necessidade dos consumidores não é a fonte de
inspiração para a produção da indústria, antes, o alvo para manobrar e adaptar às mercadorias produzidas.

39
No entanto, para não caímos na teia aporética de realizar a crítica da completa
reificação, o conceito de indústria cultural precisa ser entendido para além da audiência passiva.
O mecanismo de identificação trabalhado pela indústria leva em consideração algumas
inclinações subjetivas latentes que não permitem a redução do seu movimento cultural a um
processo mecânico, livre da intermediação entre os sujeitos:

As condutas e hábitos em que são prescritas – assim como as pessoas que


nelas se espelham – são produtos de um sistema de vida mais amplo, que não
é aceito sem resistência interior, exigindo o emprego mais ou menos
consciente da vontade para se transformarem em comportamento (Ibid., p.
200).

Os comportamentos de massas, conforme Adorno, não são apenas fruto do


desenvolvimento da indústria e dos seus recursos técnicos ou de pura doutrinação pelos meios
de comunicação. Eles acontecem com a conivência dos próprios sujeitos envolvidos, que são
mutilados em sua possibilidade de significação. Aceitam a condição de expectadores e
consumidores pela própria lógica utilitária acenar-lhes com vantagens eminentes, ainda que
momentâneas. Se o movimento de esquematização atinge cada vez mais a subjetividade, isto
não implica na eliminação completa da espontaneidade, uma vez que a dimensão sistêmica e o
deleite ocasionado pela posse e pela identificação com a massa são também processos humanos.
Falar se as necessidades que a indústria cultural satisfaz são verdadeiras ou forjadas, mesmo que
aparentemente, é tratar das questões subjetivas justamente pela falta de condições que temos em
determinar se tais fenômenos são forjados ou autênticos:

Desde o início dos tempos, o entretenimento e a arte leve foram sinal


negativo da dominação, mas também da liberdade subjetiva e corporal. Os
fenômenos possuem sua dialética, na medida em que se, de um lado,
significam uma fuga e, assim, pôr-se de acordo, ainda que indireto, com a
ordem social, de outro representam uma antecipação utópica da boa
sociedade, a libertação das tarefas mecânicas e compulsórias: eles são, em
síntese, a aparência de um direito objetivo da humanidade (RÜDIGER, 2004,
p. 149-150).

A sujeição do homem às relações mercantis e ao progresso técnico, comprovada nas


diferentes produções da indústria cultural, não é explicada apenas pela reificação. A
incorporação ou reapropriação da crítica, bem como do elemento cultural pela publicidade é
sinal de que este processo de assujeitamento carece de instrumentos renovados para manter o

40
indivíduo preso à irracionalidade do consumo. Para evitar a crítica, já certa, em torno da
exposição de corpos magros, saudáveis e belos no padrão estético reinante, as campanhas
publicitárias associam seu produto a uma variedade de outros tipos físicos, surpreendendo o
expectador ao mostrar os possíveis pré-conceitos que a imagem poderia suscitar, mas sem
mudar o destino, isto é, a prática de consumo. A leitura proposta pela indústria em torno das
imagens utilizadas não nos permite ver o público apenas numa relação passiva de consumo.
Inclusive para decifrar a mensagem referente à aceitação dos padrões expostos é preciso
calcular sua utilidade:

Para Adorno, as pessoas se sujeitam ao sistema através de um cálculo


utilitário, mas a dívida contraída por isso é difícil de ser saldada. A reificação
que elas impõem a si mesmas não é aceita sem resistência. O negócio da
diversão é um dos meios que os homens descobriram de vencê-la, extrair
prazer da própria distração permite que eles se sujeitem sem ferir a
consciência moral, enganem a si mesmo com mais facilidade, na medida em
que, por ser diversão, não pode ser levada a sério, do modo como nos exige o
resto da vida (RÜDIGER, 2004, p. 209).

A própria justificativa do indivíduo, de que não há saída fora da teia consumista, é sinal
de que a reificação não é completa. Feita a avaliação entre guiar-se por impulsos interiores ou
seguir os comportamentos apresentados, prefere-se - com certo grau de consciência – a segunda
opção. Mesmo tendo se criado um certo movimento “diabolizando” a mídia e os produtos
publicitários, ao final, todos consomem o que está sendo divulgado no momento. Vê-se o filme
que teve bilheteria recorde, compra-se o sabão em pó da propaganda ou não se consome o
refrigerante pela falta de anúncio sobre ele, por exemplo. A promessa de felicidade, saúde,
beleza e poder vem acompanhada de uma agenda de consumo:

(...) o novo carro da moda é essencialmente uma imagem que outras pessoas
devem ter de nós, e consumimos menos a coisa em si que sua idéia abstrata,
aberta a todos os investimentos libidinais engenhosamente reunidos para nós
pela propaganda (JAMESON, p. 12).

A imagem, antes de ser refletida, passa pelos sentidos e provoca identificações,


recordações de uma realidade que, na verdade, somente se manifesta após a adesão a estes
apelos. No entanto, o problema não está em divertir-se, sentir prazer ou cuidar do corpo, mas em
dotar tais práticas de características mercantis e consumistas.

41
A proposta formativa das tragédias

Se a indústria escancara seus valores utilitários, cujo conteúdo vai de encontro ao


projeto formativo, os vazios expostos podem incitar a reflexão e desnaturalizar as rotinas e as
necessidades sentidas. Nesta perspectiva, o sujeito não pode mais se perder de si mesmo
(ADORNO, 1985, p. 136), pois precisa consumir a novidade da mídia, ouvir a música que
conduz o corpo com batidas e rimas fáceis, informar-se e apreender a crítica vinculada à notícia
como se fosse de sua própria autoria. Tudo isto em nome de uma subjetividade autocontrolada
ou da autopreservação do sujeito enredado nas teias do sistema mercadológico.

A consciência moderna se deformou no acontecer do iluminismo, mostrando sua


vulnerabilidade à medida que alimenta o ideal de progresso feito longe da natureza e das
possibilidades criadas no mundo da vida. Por isto, a própria sociedade moderna é aporética. Se,
por um lado, organiza seus modos de vida de forma mecânica, controlando o tempo e o espaço
dos homens através destes mecanismos, por outro exige deles autonomia de pensamento,
participação cidadã e transformação da sociedade. O progresso significa desenvolvimento e
utilização de tecnologias em favor de uma vida mais confortável, menos laboriosa; podemos
entender que estamos então em uma época de “apequenamento”, na qual o homem aumenta
suas forças externas, mas distancia-se cada vez mais de suas forças motrizes instintivas e
interiores.

No entanto, existe um potencial dualista no esclarecimento que precisa ainda de


atenção, antes do esclarecimento ser usado pelos governantes. Ele se relaciona, como acredita
Kant e os frankfurtianos em sua primeira fase, às forças mais profundas do espírito humano,
alimentando possibilidades emancipatórias e não apenas niilistas. O esclarecimento se mitificou
pela possibilidade de conduzir à alienação ou à racionalização da vida. Por isso, Adorno leva a
desacreditar em qualquer esperança de emancipação via razão, no entanto, sua crença no
potencial da literatura clássica como instrumento formativo é admirável. Se “onde há perigo,
cresce também o que salva” (HÖLDERLIN apud ADORNO, 1985, p. 56), são nas experiências
com o irracional – os mitos – ou com o quase irracional – as tragédias – que a natureza,
dimensão negada no projeto emancipatório, manifesta-se, fortalecendo a identidade de um
sujeito pertencente a uma sociedade altamente desenvolvida e racionalizada. A atitude do
indivíduo que, controlado pelos mecanismos da indústria, resigna-se à condição de consumidor
tentando perceber algum ganho nesta repressão, pode ser analisada a partir da trajetória de
Ulisses, em A Odisséia. Na obra, o herói se perde para se ganhar:

42
Para alienar-se da natureza ele se abandona à natureza, com a qual se mede
em toda aventura, e, ironicamente, essa natureza inexorável que ele comanda
triunfa quando ele volta – inexorável – para casa, como juiz e vingador do
legado dos poderes de que escapou (Ibid., p. 56).

A astúcia de Ulisses em calcular seu sacrifício, recuperando a vida que havia entregado
às divindades, constitui-se numa atitude de racionalizar o mito, denotando uma inerente
consciência de si. No mundo trágico, o equilíbrio entre forças intensas é conseguido, ao tratar o
homem e as suas vivências distanciadas dos interesses burocráticos e mercantis que vieram à
tona com a emergência da modernidade. Assim como “a fórmula para a astúcia de Ulisses
consiste em fazer com que o espírito instrumental, amoldando-se resignadamente à natureza, dê
a esta o que lhe pertence e assim justamente a logre” (ADORNO, 1985, p. 63), nossa atitude
diante das mazelas petrificadas – ou novas da indústria cultural, cuja essência exploratória e
territorial permanece a mesma – também precisa ser revestida de astúcia e crítica. Sendo assim,
o problema não está em consumir ou freqüentar espaços massificados. Afinal, fazemos parte de
uma cultura que construiu tecnologias de expansão de suas produções, mas sim em ferir a si
próprio ao abdicar do direito à reflexão sobre o que nos constitui, ou quais as preferências,
atitudes e padrões éticos e estéticos constroem a subjetividade do homem.

A educação, enquanto espaço formativo importante, precisa contemplar estas questões


da produção, de modo a contribuir na construção de significados para as manifestações
culturais. Se o caminho não passa por ignorar as inovações culturais, também não basta
contemplá-las em sua totalidade, ocupando o tempo escolar com os jogos da Copa do Mundo,
preparação de comemorações de datas festivas ou coisa parecida, pois: “Ao contrário do que
parece, o amplo acesso à ‘cultura’ funciona como anti-esclarecimento; os não esclarecidos
acreditam estar amplamente esclarecidos, e além disso, identificam sua ‘personalidade’ à
escolha das mercadorias oferecidas e, nesta mesma medida, sucumbem à ideologia” (MAIA,
2000, p. 28). A dimensão histórica do sujeito, paralisada diante do espetáculo do consumo
promovido pela indústria, é desenvolvida quando as questões que subjazem neste movimento
são trazidas à discussão.

A formação proposta nas tragédias gregas, ao apresentarem o caos originário da


natureza humana, revela-nos então as falsas dualidades que compõem o paradigma subjetivista
da consciência moderna, categorizando os fenômenos de acordo com a lógica da forma binária
em racionais ou emocionais, materiais ou mentais, teóricos ou práticos. Ou seja, diferente de
excluir um aspecto, tendo-o como antagônico, as tragédias aproximam a formação cultural do

43
“outro da razão”, permitindo assim o enriquecimento do processo de significação e o
delineamento da identidade dos sujeitos. Tais construções, em grande medida, acontecem na
discussão pública e a escola é um destes espaços sociais privilegiados. Problematizando as
dualidades e o aspecto unilateral de adaptação da indústria cultural, estamos contribuindo no
projeto de contra-educação preconizado pelos frankfurtianos.

Na contemporaneidade, a racionalidade cartesiana e a busca pela universalidade não são


mais as únicas formas de nos relacionarmos com a cultura. Difere assim o conceito de cultura
daquele do contexto da Dialética do Esclarecimento, quando cultura era tomada como algo “em
si”, deslocada das bases da produção cultural. Trazer para o mundo da vida as questões
culturais, onde os acordos intersubjetivos dão sentido à produção humana, significa irrigar este
mundo com as diferentes produções feitas sobre este cenário. A cultura, diferente de ser
produzida por alguns e estar em posse de um grupo, é construída e significada por todos, numa
relação em que os homens se educam uns aos outros. Desta forma, a racionalidade e a
construção de um telos compreensivo não estão tão ligados à posse de saberes, mas ao modo
como estes sujeitos se relacionam com tais saberes (HABERMAS, 1990, p. 69).

Considerações finais

O progresso dos meios técnicos nublou a discussão sobre a transformação da cultura em


mercadoria. Entender o avanço tecnológico e os movimentos de mundialização das formas de
vida e da economia como única causa da instrumentalização da produção cultural é simplificar
questões que ainda merecem ser discutidas. A oposição entre alta cultura e cultura de massa,
arte séria e entretenimento, produção clássica e modernismo contribui com reflexões que, desde
o início, se propõem a classificar e reproduzir as concepções binárias da crítica. Deste modo,
tentamos evitar, por um lado, a reafirmação da crítica à alta cultura, cujo discurso justifica a
preferência à chamada cultura popular pelo alcance desta produção a um número massivo de
pessoas. Por outro lado, também é importante evitar a crítica à completa reificação da produção
cultural, instrumentalizada pelo capital, ao sobrepor o valor de troca ao valor de uso. Nesta
perspectiva, a finalidade da arte não se relaciona às questões práticas ou político-mercantis, mas
refere-se a reflexões estéticas e de significação da condição humana. Esta arte, na
contemporaneidade, está tomada pela degradação, transformada em meio para a conquista de
objetivos capitalistas, qualquer caráter qualitativo intrínseco está, a priori, anulado.

A arte trabalha com questões atemporais e o processo de leitura exigido para interpretá-
la ultrapassa a lógica meio-fim. O potencial formativo da produção antiga é revelador. Sua
narrativa é privada de qualquer vínculo com o mercantil, ou com os padrões sociais anteriores

44
ou posteriores, e assim constrói-se e resolve a si mesma. É uma inesgotável fonte de reflexão e
aprendizagem. No entanto, a possibilidade formativa da literatura antiga, já observada pelos
frankfurtianos, também pode ser ampliada a obras contemporâneas. O processo de
envelhecimento da arte liga o próprio homem a um movimento cultural que antes de ser
imanente é histórico:

A cultura de massa nos confronta com um dilema metodológico que o hábito


convencional de postular um objeto estável de comentário ou exegese, na
forma de um texto ou obra primários, parece perturbadoramente inepto para
focalizar, que dirá resolver; nesse sentido, também, uma concepção dialética
desse campo de estudo, na qual modernismo e cultura de massa sejam
apreendidos como um fenômeno histórico e estético único, tem a vantagem
de postular a sobrevivência do texto primário num de seus pólos, provendo
assim um marco de referência para a estonteante exploração do universo
estético que repousa no outro pólo, uma mensagem ou um bombardeio
semiótico dos quais o referente textual desapareceu. (JAMESON, 1995, p.
21).

As reflexões que fazemos sobre arte, indústria cultural e formação precisam articular
imanência e historicidade, de modo a não se fixarem à aparência e à relevância da produção na
atualidade, nem se perderem no passado, tendo como único modelo a produção clássica. A
produção do novo precisa, antes, romper com o instrumento da repetição utilizado pela indústria
para manter a relação de dependência pelo consumo. Diferente de prender-se às teias do
imediato, realizando uma interpretação dualista e maniqueísta, a educação tem compromisso
com a formação. Esta tarefa não passa em optar pela cultura erudita ou pela cultura popular,
acessada por todos. O esforço pelo estabelecimento de relações de significado e pelo
entendimento de questões subjacentes a estas narrativas é atitude que corrobora para uma
formação cultural crítica. Esta seriedade precisa ser mantida, independente da origem e do grau
de reflexão que apresenta.

45
Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos


filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica


filosófica.Tradução Flávio Paulo Meurer. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2004.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução Ana Maria Bernardo


et al. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.

JAMESON, Frederic. As marcas do visível. Tradução Ana Lúcia de Almeida Gazolla, João
Roberto Martins Filho, Klauss Brandini Gerhardt et al. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

MAIA, Ari Fernando. Arte, técnica e indústria cultural. Interface - Comunicação, saúde,
educação, v.4, n.6, São Paulo: UNESP, p. 21-38, Fev 2000.

RÜDIGER, Francisco. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria


crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

46
APROPRIAÇÕES DA PSICANÁLISE FREUDIANA POR T. W. ADORNO

Ana Paula de Ávila Gomide


(Professora da UEG e doutoranda na USP, no programa de pós-graduação em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano)

Considerar de forma isolada as leituras e apropriações específicas de Adorno sobre uma


determinada área de conhecimento, tal como a psicanálise, torna-se justificável dada a
importância dessa disciplina nas suas análises e ensaios em que as categorias freudianas foram
mobilizadas para dar fundamento e sustentação às suas discussões a propósito de distintos
objetos de estudo. Ao longo da obra de Adorno, as referências à psicanálise têm aparecido tanto
para as suas análises voltadas para objetos estéticos, como para as suas críticas às sociedades
modernas do capitalismo avançado, em que os problemas referentes à formação do indivíduo e
mais os elementos de barbárie presentes na cultura ocidental são abordados e denunciados com
veemência nesses ensaios. Neste sentido, são muitos os trabalhos e temas estudados por Adorno
em que podemos ver a presença do pai da psicanálise em seus escritos. Levando em conta a
diversidade de linhas de reflexão em que bases teóricas diversas têm composto o pensamento
adorniano, o intuito deste trabalho é investigar, a partir de alguns textos de Adorno voltados
para questões sociais, de que forma a psicanálise freudiana e, mais propriamente, alguns
conceitos psicanalíticos, se inserem no pensamento desse autor1. As categorias psicanalíticas
foram utilizadas para as discussões de Adorno sobre o fascismo, sobre os fenômenos
concernentes aos "movimentos de massas" contemporâneos que fazem parte da cultura
conformista das sociedades administradas, e sobre o anti-semitismo.
Em geral, para os propósitos deste texto, trataremos de discutir algumas críticas de
Adorno dirigidas a Freud que podem ser encontradas nos seguintes trabalhos: Sobre música
popular - escrito conjuntamente com Simpson em 1941 -, Elementos do Anti-Semitismo:
Limites do Esclarecimento - texto escrito com Horkheimer e que se encontra na obra "Dialética
do Esclarecimento", publicada na década de 40 -, e o texto De la Relación entre Sociología y
Psicología (Sociologia e Psicologia), escrito em 1952. A nosso ver, as apreciações rigorosas de
Adorno feitas à psicanálise devem-se ao intuito do autor de querer delimitar, ainda de forma
mais contundente, o potencial crítico das categorias freudianas quando, ao serem confrontadas
com as "aflições psicológicas" contemporâneas que se tornaram convenientes para o
funcionamento social do mundo administrado, são empregadas para elucidar os efeitos

1
Este trabalho trata-se de uma pesquisa de doutorado que está em andamento. Desta forma, alguns tópicos
e discussões já iniciadas serão brevemente comentados neste texto, sem maiores aprofundamentos.

47
subjetivos de formas de socialização impostas pela nova fase do capitalismo monopolista. Com
isso, Adorno visa extrair a base materialista do pensamento psicanalítico, considerando as
sociedades burguesas e os rumos tomados por elas em direção à consolidação dos regimes e
sistemas totalitários que, por sua vez, acabaram por solapar a "categoria de indivíduo", em
benefício do poder e do desenvolvimento de forças econômicas. Nesta direção, Adorno, ao
refletir sobre as limitações da psicanálise em contraposição às transformações históricas do
capitalismo, tem como objetivo evidenciar o quanto o objeto estudado por Freud - o indivíduo -
se modificou mediante forças econômicas e sociais do capitalismo avançado.
Adorno também indica e sustenta que a teoria psicanalítica consiste ser um saber que
preserva o indivíduo frente à objetividade de cujo aparato técnico tem contribuído para a sua
supressão, quando essa teoria psicológica ainda pressupõe um espaço psíquico "extra-social" na
qual a "diferenciação individual" é resguardada (Adorno, 1991). Assim, a psicologia torna-se
uma forma de resistência e, a psicanálise, a melhor teoria psicológica, posto que seu poder de
emancipação está ligado à sobrevivência do indivíduo. Isto quer dizer que os mesmos
componentes encontrados na psicanálise que se tornaram objetos de crítica de Adorno, também
foram lembrados e ressaltados pelo mesmo como suportes teóricos importantes para expressar e
esclarecer a fatalidade social que tem "minado" a categoria de indivíduo. Mesmo que Freud
tenha oposto indivíduo e sociedade de forma absoluta, em algumas de suas formulações (por
exemplo, nas suas investigações da psicologia de grupo), Freud pôde atestar os vínculos
existentes entre os níveis psicológico e social (Adorno, 1972). São nas antinomias encontradas
em Freud que, de acordo com Adorno, podemos retirar da psicanálise um instrumento de
reflexão sobre a cultura, daí, a expressão de Adorno "Freud tinha razão quando não tinha razão"
(Adorno, 1971).
Um dos problemas a ser discutido neste trabalho refere-se à questão levantada por
Adorno a respeito da superação histórica da psicanálise face a um mundo totalmente
"socializado". Por exemplo, é o que Adorno indica ao afirmar que se o mundo pré-burguês não
conhecia ainda a psicologia, tampouco as sociedades totalitárias a reconhece enquanto esfera do
"diferenciado", de oposição à "brutalidade do exterior" sendo que os impulsos contrários à
civilização têm sido cada vez mais apropriados pelos poderes sociais: "Cuanto más crecen los
antagonismos sociales, tanto más evidentemente pierde sentido el concepto individualista y
liberal de punta a cabo de la misma psicología" (Adorno, 1986, p.75). Considerando-se a
influência da coletividade sobre a esfera particular, da qual citamos todas as formas de políticas
totalitárias que vigoraram nos países europeus no século XX, e que nas sociedades industriais as
demais instâncias de poder tornaram-se racionalizadas, exaurindo, assim, qualquer forma de
resistência individual frente à tendência totalizadora, o espaço psíquico, por sua vez,

48
empobreceu e se modificou, tomando como base a mônada psíquica estudada por Freud em
termos de dinâmica psicológica dos conflitos entre inconsciente e consciente, e depois, na tríade
ido, ego e superego. Desta forma, a psicanálise tornou-se obsoleta, pois seu objeto sofreu
alterações: a psique dividida entre inconsciente e consciente se dissolveu face à crescente
irracionalidade do todo. Todavia, Adorno vai requisitar a psicanálise em "sua figura autêntica" e
já superada - sem deixar de fazer críticas às categorias freudianas - para as suas reflexões sobre
o nazismo e as sociedades administradas quando se volta para a configuração atual de indivíduo
que, não obstante, pode revelar acerca das formas de dominação mais avançadas e sobre as
tendências sociais imperantes.
No texto Sobre Música Popular, Adorno, ao fazer uma análise sobre processos sociais
implicados nos produtos difundidos pela indústria cultural - no caso, a música popular - que têm
imposto formas de comportamentos regressivos aos seus consumidores (ouvintes), constata que
os sujeitos encontram-se menos diferenciados devido à estandardização da cultura, ou melhor,
de produtos culturais mercantilizados (Adorno & Simpson, 1986). Quanto à estrutura social e às
suas formas de "manipulação das massas", diz Adorno que os mecanismos de controle da
indústria de consumo2 tornaram-se bem poucos velados da consciência de seus consumidores,
assim existindo uma deliberada resolução por parte dos sujeitos para aceitar (forçosamente) os
produtos que lhes são impingidos. Com isso, mediante este quadro de conformismo social
favorecido pela adesão massiva das pessoas aos ditames da "diversão comercial" padronizada,
Adorno questiona até que ponto ainda se legitima a distinção sustentada por Freud entre o
consciente e o inconsciente:

Na atual situação, talvez seja, por essas razões - que


são apenas exemplos de fenômenos muitos amplos da
psicologia das massas -, apropriado perguntar até
que ponto ainda se justifica toda a distinção
psicanalítica entre o consciente e o inconsciente. As
atuais reações das massas são bem pouco veladas da
consciência [Grifo nosso](Op.cit, p.146).

2
Por exemplo, diz Adorno ao analisar a música popular: "Toda a estrutura da música popular é
estandadirzada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização se estende dos traços mais
genéricos até os mais específicos" E, mais adiante, ao falar sobre os efeitos desta música sobre os
ouvintes, em contraposição à música séria: "A audição da música popular é manipulada não só por
aqueles que a promovem, mas, de certo modo, também pela natureza inerente dessa própria música, num
sistema de mecanismos de resposta totalmente antagônico ao ideal de individualidade numa sociedade
livre, liberal (...). A composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o
ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos condicionados" (Adorno & Simpson, 1986, ps.116;
120 e 121).

49
Ao levantar este problema, na realidade, a preocupação de Adorno relaciona-se à
seguinte situação paradoxal: a mentira manifesta dos ideais coletivos é reconhecida pelas
pessoas submetidas à mesma, bem como a irracionalidade dos estímulos produzidos pela
indústria cultural, entretanto, porque estas pessoas aderem a esses ideais?3 Desta forma, a
resposta estaria na psicologia dos sujeitos (da cegueira radicada nas suas próprias psicologias)
que, pressionados por todos os lados pelos agentes coletivos, encontrariam nestes produtos
formas de satisfação precárias, posto que não haveria outro modo de sustentar a
"autoconservação" e obter o prazer (mesmo que "fajuto") senão por meio do ajustamento social.
O que ocorre é a transferência de energia libidinal para a aceitação ressentida do consumidor
aos materiais de consumo impostos, sendo que tal aceitação (a decisão de se conformar) se daria
próxima à superfície da consciência, e não completamente de forma inconsciente. Dentro deste
esquema, sendo a espontaneidade individual suprimida, e o ego, obrigado a se conformar e a
aceitar o logro das propagandas publicitárias, a linha tênue de divisão entre o inconsciente e o
consciente acaba se dissolvendo, significando tanto a expropriação dos desejos individuais pelo
aparato social do consumo, como a obrigação do sujeito ter de, conscientemente, sacrificar seu
poder de julgamento racional sobre a mentira propagada. O indivíduo teria que distorcer sua
própria percepção da realidade para tentar forçosamente ajustar seus interesses ao que a
realidade lhe oferece, sendo que o ajustamento às agências sociais objetivas tendem a fornecer
aos sujeitos a idéia de que fazem parte de uma coletividade:

O paradoxo da situação [a respeito do caráter


manifesto da mercadoria padronizada, que é "pobre"
e opressiva] é que é quase insuperavelmente romper
esse fino véu. Mesmo assim, a verdade não é mais
subjetivamente tão inconsciente quanto se esperava
que fosse. Isso se mostra pelo fato de que, na práxis
política dos regimes autoritários, a mentira
ostensiva, na qual ninguém efetivamente acredita,
está cada vez mais substituindo as "ideologias" de
ontem, que tinham o poder de convencer aqueles que
acreditavam nelas (...). Pelo contrário, a
espontaneidade é consumida pelo tremendo esforço
que cada indivíduo tem de fazer para aceitar o que

3
Horkheimer e Adorno (1973) no Temas Básicos da Sociologia, ao discorrerem sobre as transformações
históricas do conceito de ideologia (discussão que se encontra no texto Ideologia), considerando-se os
fatores cruciais das sociedades modernas como a regressão bárbara suscitada pelos regimes nazi-fascistas,
e a generalização das sociedades industrias, constataram ter o conceito de ideologia modificado quando o
mesmo aplicado às sociedades contemporâneas: as formas de dominação tornaram-se demasiadamente
transparentes, sendo que a falsa consciência, hoje, perdendo sua objetividade, tende a corresponder, de
fato, à realidade social. Desta sociedade homogeneizante, de acordo com os autores, só resta investigar
quais os fatores que têm contribuído para que os homens se adaptem à "mentira manifesta" (ou sejas, às
condições impostas de vida pelos esquemas da indústria de massas)

50
lhe é imposto - um esforço que se desenvolveu
exatamente porque o véu que recobre os mecanismos
de controle se tornou tão tênue (Op. cit, 146).

Assim, a discussão que Adorno levanta acerca da pouca possibilidade de diferenciação


do indivíduo submetido às sociedades administradas, em termos da dinâmica psíquica estudada
por Freud, vincula-se às transformações sociais que pouco têm necessitado dos agentes
mediadores da personalidade (o ego) para a adaptação social e que Freud postulara nas suas
descobertas sobre o aparelho psíquico, o que, por sua vez, confirma a superação histórica do
indivíduo das sociedades liberais e, assim, a obsolescência da psicanálise, sendo ela uma teoria
baseada nas formas de subjetivação da fase da concorrência econômica. Nesta mesma direção, é
que Adorno vai afirmar em outro texto que "el mandato freudiano 'donde era ello, debe llegar a
ser yo' contiene algo de estoicismo vacío, de inevidente" (Adorno, 1991, p.159). O indivíduo,
nas sociedades totalitárias, não possui outros meios para escapar das recorrentes exigências e
provas de um sistema regido por um ordenamento mercantil e hierárquico, e as decisões
individuais são fornecidas, de antemão, por estas mesmas hierarquias, configurando a falsa idéia
de harmonia entre indivíduo e sociedade. Esta falsa harmonia revela-se nociva: significa que
satisfazer as necessidades individuais (que são externas aos sujeitos), consiste em seguir as
"regras do jogo" da publicidade, assim condenando à irracionalidade a própria "racionalidade da
autoconservação" e, por isso, as funções egóicas se enfraquecem (Op.cit, p.158). Esta falsa
unidade entre indivíduo e sociedade significa que a tendência geral da sociedade "irrompe nos
homens" impedindo, assim, a individuação. Sobre isto, acrescenta Adorno: "La naciente
identidad no es reconciliación de lo general y lo particular, sino lo general como absoluto
donde desaparece lo particular" (Adorno, 1986,p.81), e é claro, o particular que Adorno se
refere é o indivíduo estudado pela psicanálise freudiana. Na ordem existente, as funções
cognitivas do ego – o “órgão da consciência” – são reprimidas para que as pulsões individuais,
que dão sustentação ao mercado, possam ser mais ou menos liberadas e conformadas aos
objetos de consumo. E, ainda, na sociedade predominantemente administrada, as decisões que
os sujeitos têm que tomar são o de "escolher o mal menor" (na esfera do trabalho, nos produtos
de consumo massificados, como na escolha política de candidatos), sendo que também para a
esfera inconsciente, poucas são as possibilidades de escolha. Para o sujeito "sobreviver" nessa
cultura é preciso regredir e, de certa forma, "aceitar" o véu social que oculta a injustiça
generalizada, daí, verifica-se o que Adorno tem apontado como a "transposição do ego ao
inconsciente", posto que, na produção social vigente, também as possibilidades de sublimação
da energia libidinal tornaram-se mínimas, sendo a mesma racionalmente administrada:

51
También las posibilidades de elección son tan
reducidas para el inconsciente, si es que no son
escasas ya en origen, que los grupos com intereses
que marcan la pauta las desvían por muy pocos
canales com métodos comprobados hace mucho por
la técnica psicológica en los estados totalitarios y no
totalitarios. El inconsciente (...). En su pobreza e
indiferenciación se encuentra feliz y oportunamente
com la homogeneización de un mundo administrado
(Adorno, 1991, p.162).

O inconsciente, harmonizando com o todo social, e a consciência, retrocedendo ao


inconsciente, faz com que, neste "contínuo entre sociedade e indivíduo" (ou seja, no
prolongamento da racionalidade econômica dentro da esfera psíquica) provocado pelo assédio
constante da indústria sobre os modos de vida dos sujeitos, o enfrentamento das forças psíquicas
estudadas por Freud sejam tomadas pelo todo homogeneizante4. Não obstante, no texto
Sociologia e Psicologia, Adorno chega a afirmar que "el psicoanálisis, en su forma auténtica e
históricamente superada, adquiere su verdad como relato sobre los poderes de la destrucción
que cunden en lo particular en medio de lo destructivo general" (Adorno, 1986, p.74). A nosso
ver, Adorno utiliza-se das categorias psicanalíticas, ou melhor, da psicanálise autêntica, para
refletir sobre as formas de dominação sobre a subjetividade, pois as categorias psicanalíticas
tornam-se indispensáveis para revelar o lado subjetivo da irracionalidade objetiva, sobre os
mecanismos psicológicos requeridos por tais tendências dominantes que têm se utilizado da
energia pulsional dos sujeitos para "forçar" a integração à sociedade. Desta perspectiva, um dos
temas centrais de Adorno para a explicação do nazi-fascismo é o de tentar delimitar quais os
elementos determinantes da fragilidade do indivíduo e da debilidade do ego, no sentido de que
com o "enfraquecimento" da instância psíquica encarregada de estabelecer relação com a
realidade externa, as pessoas recaem na heteronomia. Entretanto, os processos de integração das
sociedades administradas têm debilitado o ego dos sujeitos. No texto Sociologia e Psicologia,
Adorno, ao se referir à categoria ego formulada por Freud, diz que:

Allí donde el yo no alcanza su propria peculiaridad, su


diferenciación, há de efectuar alguna regresión, sobre
todo a lo que Freud llamó libido del yo, con la que está
estrechamente emparetado, o al menos mezclar sus
funciones conscientes com otras inconscientes. Lo que en

4
E é neste sentido que Adorno dz que: "No es asunto de mera terminología el ampliar o no el concepto
de lo psicológico (...) pues esse concepto sólo obtiene su contenido de la oposición entre la
irracionalidad y la racionalidad como algo extrapsicológico" (Adorno, 1991, p.153). Ou seja, a
psicanálise só pôde ser concebida no âmbito da vida privada e dos conflitos familiares que hoje se
tornaram obsoletos face aos desafios econômicos e culturais contemporâneos.

52
realidad aspiraba a ir más allá del inconsciente vuelve a
entrar una vez más a su servicio y, de esse modo, a
fortalecer en lo posible sus impulsos (Adorno,1991,
p.183).

A partir da citação acima, as referências de Adorno ao ego, na análise deste conceito à luz
das tendências sociais imperantes, na verdade, visa esclarecer as novas formas de subjetivação
correspondentes às transformações sócio-econômicas do capitalismo tardio (e que também
vemos vigorar nos dias atuais), de uma cultura marcada pela padronização e pela pressão
totalitária dos movimentos de massa. Assim, seguindo o raciocínio do autor, as agências de
publicidade e seus mecanismos de controle, mobilizando e se apropriando destes
comportamentos regressivos, convertem os comportamentos narcisistas em modelos de
comportamento, em formas de adaptação social mais condizentes à irracionalidade objetiva. O
poder social não mais tem necessidade de um ego forte, mediador, como era requerido na época
liberal do capitalismo, pois no século XIX, a racionalidade era mais predominante,
diferentemente de hoje, na época da sociedade administrada. Precisamente, isto se relaciona à
questão apontada por Adorno de que os conflitos psicológicos, hoje, se dão mais na área do
narcisismo (com a indústria de consumo "lucrando" com tais conflitos), enquanto que as
neuroses clássicas, estudadas por Freud no séc XIX, retrocedem. É o que entendemos das
citações abaixo:

En el narcisismo, al menos en aparencia, se salvaguarda


la función de autoconservación del yo, pero al mismo
tiempo se escinde de la función de conciencia y queda
abandonada en manos de la irracionalidad. Todos los
mecanismos de defensa tienen un sello de narcisismo: el
yo experimente lo mismo su debilidad frente a la pulsión
que su impotencia real como "herida narcisista"
(Adorno, 1991, p.184).

E ainda acrescenta:
En realidad, se movilizan selectivamente aquellos
mecanismos de defensa infantiles que, según la situación
histórica, mejos se adapten al esquema de los conflictos
sociales del yo. Sólo esto, y no el tan citado cumplimiento
de deseos, llega a explicar la autoridad de la cultura de
masas sobre los hombres (Op. cit. p.187).

As formas narcisistas predominantes, com o concomitante enfraquecimento das funções


do ego, indicam o triunfo da sociedade sobre o indivíduo, pois os conflitos são dissolvidos na
cultura que, ilusoriamente, com seus mecanismos de controle, visa atender as necessidades mais

53
regredidas dos sujeitos, fortalecendo suas tendências narcisistas mais primitivas. Os vínculos
que os sujeitos desenvolvem com as forças sociais são de teor irracional, pois as leis do
inconsciente foram apropriadas pelas leis do consumo e por demais formas institucionalizadas
de poder.
As questões suscitadas por Adorno acerca da superação histórica da psicanálise no
mundo altamente socializado, também aparecem no texto Elementos do Anti-Semitismo,
especificamente, no elemento VII, ao ilustrar as "novas configurações de indivíduos" que, de
acordo com os frankfurtianos, constituem os "traços de caráter" concernentes às formas de
ajustamento social requerido em cada época histórica que, no capitalismo avançado, Adorno
refere-se à "mentalidade do ticket". Neste texto, Adorno delineia uma pré-história do anti-
semitismo e de suas manifestações subjetivas e objetivas ao longo da história até à emergência
do nacional-socialismo na Alemanha e, com isto, no período do capitalismo monopolista, ao
constatar as transformações do progresso técnico, conclui que a racionalidade econômica cada
vez mais operante determinou, por sua vez, transformações nas estruturas psíquicas dos
indivíduos também configurando "novas formas de anti-semitismo". Se na época liberal "o anti-
semitismo ainda era um tema aberto à escolha subjetiva", na era dos monopólios, a psicologia
anti-semita foi substituída pelos estereótipos oferecidos pelos tickets fascistas ou ao "inventário
de slogans da grande indústria militante" (Horkheimer & Adorno, 1985, p.187).
Desta tendência objetiva em que a racionalidade econômica consegue "remodelar" não
só as organizações comerciais e os ramos do negócio, como, também, os próprios homens,
pode-se perceber a padronização psicológica que, em termos subjetivos, os sujeitos acabam
aderindo de forma imediata (e não mais por meio de ponderações) aos elementos oferecidos
pela realidade social circundante, tais como às facções políticas padronizadas ou aos ideais
coletivos suscitados pela indústria cultural. Assim, dentro desta heteronomia generalizada, em
termos de dinâmica psíquica, Adorno chega à conclusão que a mônada psíquica freudiana
tornou-se retrógrada:

A psicanálise apresentou a pequena empresa interior


que assim se constituiu como uma dinâmica
complicada do inconsciente e do consciente, do id,
ego e superego. No conflito com o superego, a
instância do controle social no indivíduo, o ego
mantém as pulsões dentro dos limites da
autoconservação (...). Mas na era das grandes
corporações e das guerras mundiais, a mediação do
processo social através das inúmeras mônadas
mostra-se retrógrada. Os sujeitos da economia
pulsional são expropriados psicologicamente e essa
economia é gerida racionalmente pela própria

54
sociedade. A decisão que o indivíduo deve tomar em
cada situação não precisa mais resultar de uma
dolorosa dialética interna da consciência moral, da
autoconservação e das pulsões [Grifos nosso]
(Horkheimer & Adorno, 1985, p.189).

No trecho acima, o indivíduo descrito pela psicanálise freudiana correspondia, de fato, à


época do liberalismo econômico, mas hoje, em termos psicanalíticos, de qual indivíduo
podemos falar? Tendo em vista a pressão social que se apresenta cada vez mais racionalmente
sofisticada, este indivíduo, do capitalismo avançado, entendemos que se apresenta de forma
mais "arcaica" ou empobrecida. Ora, os remanescentes irracionais - aqueles mesmos apontados
na doutrina freudiana sobre os conflitos inconscientes - concernentes à psicologia liberal,
tornaram-se, hoje, "lubrificantes" ou dispositivos para a produtividade social. O cerne da
questão é a expropriação da psicologia privada pela hierarquia social, que significa tanto a
exploração dos núcleos inconscientes dos indivíduos pelos esquemas da indústria cultural, em
que os impulsos internos dos consumidores são manipulados, como também a transformação do
que restou de julgamento moral e racional dos sujeitos em algo inócuo, mediante os
imperativos fornecidos pelas agências sociais. Neste sentido, as observações que Adorno faz
sobre algumas características atribuídas ao indivíduo na época liberal do capitalismo, são:
embora o sujeito, no século XIX, fosse submetido ao jugo de uma formação autoritária e
coibitiva proveniente de relações estabelecidas dentro de instâncias familiares e religiosas,
todavia, sua constituição psicológica, ainda que conflituosa, possibilitava sua relativa autonomia
enquanto sujeito capaz de se adaptar às novas condições econômicas e técnicas do capitalismo,
ou como "assalariado" ou como "empresário" - o tipo ideal do homo oeconomicus -
salvaguardando sua capacidade de resistir e conflitar contra a sociedade reprodutiva que pudesse
anular seus interesses individuais mais privativos (Horkheimer & Adorno, 1985). Já na época
contemporânea do capitalismo dos monopólios, o autor argumenta que a autonomia individual
desapareceu com o concomitante empobrecimento psíquico dos sujeitos face à irracionalidade
objetiva.
Das observações acima, então pressupomos que as críticas de Adorno a Freud, no
sentido de questionar a aplicação psicanalítica às novas formas de sujeitos submetidos à
racionalidade econômica da sociedade industrial, devem-se ao intuito do autor de ressaltar o
"declínio da razão" individual face ao poder do todo irracional que condena o homem, a sua
psicologia, ao anacronismo: "O progresso da sociedade industrial, que devia ter eliminado
como que por encanto a lei da pauperização que ela própria produzira, acaba por destruir a
idéia pela qual o todo se justificava: o homem enquanto pessoa, enquanto portador da razão"
(Horkheimer & Adorno, 1985, p.190). E que as críticas de Adorno servem tanto para apontar a

55
falsidade da "invariância" atribuída ao indivíduo pela psicologia no contexto de uma sociedade
liberal (que nega o caráter social e histórico do indivíduo em sua forma burguesa), como
também, e principalmente, para atestar que o desenvolvimento econômico tem contribuído para
eliminar os últimos traços da psicologia individual (esfera psíquica socialmente mediada) que
salvaguardavam alguma resistência à totalidade. E daí, pensamos o seguinte: a respeito das
limitações apontadas por Adorno sobre o modelo freudiano da "empresa interior" (da dinâmica
do inconsciente e consciente), podemos dizer que trazem em seu bojo uma discussão sobre os
mecanismos de controle que têm capturado os "traços radicalmente individuais"5 dos sujeitos
em nome da sociedade totalizadora, o que possibilita confrontar a formação individual liberal
(que ainda pressupunha alguma resistência à realidade, mesmo que em forma de produção de
neurose) com a formação individual atual6. A verdade da psicanálise frente ao quadro atual -
de que a dominação social devolve os sujeitos a um estado arcaico de "configuração psíquica" -,
contraditoriamente, seria extraída de seus limites e insuficiências. Freud, em seus estudos dos
conflitos psíquicos, já previra a decadência do liberalismo na esfera privada e na família
burguesa, assim apontando, intutivamente, para a decadência e empobrecimento do indivíduo.
Segundo Adorno (1972), Freud pôde adiantar, por meio de seu discernimento teórico sobre a
dinâmica psicológica do indivíduo do final do século XIX, algumas "características" psíquicas
ou "aflições psicológicas" que hoje, na época do capitalismo dos monopólios, se fazem
predominantes nos sujeitos que se encontram cada vez mais psicologicamente empobrecidos por
forças sociais dominantes que os "atravessam". É o que, por exemplo, Adorno vai destacar no
seu texto Freudian Theory and The Pattern of Fascist Propaganda, ao fazer elogios ao texto de
Freud Psicologia de Grupo e a Análise do Ego: "According to Freud the problem of mass
psychology is closely related to the new type of psychological affliction so characteristic of the
era which for socio-economic reasons witnesses the decline of the individual and his subsequent
weakness" (Adorno, 1972, p.411).

5
"É na autonomia e na incomparabilidade do indivíduo que se cristaliza a resistência contra o poder
cego e opressor do todo irracional. Mas essa resistência só foi possível historicamente através da
cegueira e irracionalidade daquele indivíduo autônomo e incomparável" (Horkheimer & Adorno, 1985,
p.225).
6
Nos resultados empíricos da pesquisa The Authoritarian Personality (Adorno et al, 1950), pressupomos
que a hipótese acima lançada, acerca dos contrapontos estabelecidos entre a formação individual liberal,
que pressupunha alguma "racionalidade", e a formação individual atual, em que as "regressões psíquicas e
a debilidade do ego" tornaram-se fatores preponderantes para a adaptação social, encontra-se intrínseca às
discussões de Adorno acerca do tipo psicológico de escore baixo na Escala F, denominado de Liberal
Genuíno. O "ideal freudiano do homem", apontado na segunda tópica, e que também foi criticado por
Adorno no texto Sociologia e Psicologia, é tomado pelo autor como parâmetro para as formulações de
tipos de personalidades no contexto de estudos sobre o preconceito e sobre o caráter propenso ou não às
políticas fascistas. Desta forma, acreditamos que à luz da precariedade da formação individual não mais
fundamentada nos ideais iluministas, a noção de indivíduo, ainda que anacrônica, é preservada na

56
O empobrecimento dos indivíduos não significa que os mecanismos psíquicos foram
"exterminados"; ao contrário, significa que os mesmos foram expropriados dos sujeitos pelos
poderes sociais, contribuindo para a maior eficiência do sistema. Assim, a irracionalidade faz
parte do funcionamento social, e não mais somente corresponde às profundezas psíquicas do
inconsciente individual.

Referência Bibliografica

ADORNO, T.W. De la Relacion entre Sociología y Psicología In: (Adorno,T.W) Actualidad de


la filosofía. Barcelona, Ediciones Paidós, 1991.
_____________Freudian Theory and the Patterns of Fascist Propaganda. In: ADORNO, T. W.
Gesammelte Schriften 8. Frankfurt, Suhrkamp, 1972.
__________ , FRENKEL-BRUNSWICK, E., LEVINSON, D. J., SANFORD, R.N. The
Authoritarian Personality. New York, Harper & Brother, 1950.
ADORNO, T.W. & SIMPSON, G. “Sobre Música Popular”. Tradução de Flávio R. Kotheet. In:
COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986.
HORKHEIMER,M. & T.W. ADORNO Dialética do Esclarecimento. RJ, Jorge Zahar, 1985.
_________________________________ Temas Básicos da Sociologia. SP. Cultrix, 1973.

psicanálise clássica, e por isso, as limitações apontadas por Adorno à psicanálise face ao capitalismo
monopolista.

57
FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM EDUCAÇÃO FÍSICA E SUAS PERSPECTIVAS
EMANCIPATÓRIAS: UMA CRÍTICA IMANENTE À LUZ DA TEORIA CRÍTICA

Andreia Cristina Peixoto Ferreira


Doutoranda em Educação no PPGE/UNIMEP
Professora do Curso de Educação Física da UFG/Campus Catalão
CNPq

A crítica imanente às dimensões objetivas e subjetivas da formação de professores na


contemporaneidade foi eleita como objeto a ser investigado1. O intuito é penetrar no campo da
objetividade e da subjetividade que compõem as experiências pedagógicas de formação de
professores, na intenção de investigar filosoficamente a contradição entre as pretensões do projeto
político-pedagógico emancipatório e a realização empírica dessas pretensões no interior de uma
sociedade esportivizada.
O caminho de composição do objeto de estudo passou pôr trazer uma experiência
pedagógica singular de formação de professores com pretensões emancipatórias, investigando
sua constituição objetiva e subjetiva; ou seja, expondo a imanência de sua inserção histórica e
material, seus objetivos, realizações, pretensos avanços, frustrações, tabus, estereótipos,
preconceitos. O objeto se compõe ao trazermos a tona à experiência de elaboração do projeto
político pedagógico da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás
(FEF/UFG). Esse objeto de estudo está relacionado à experiência individual como professora do
curso de licenciatura em Educação Física do Campus de Catalão da UFG desde 1996, e, ao
processo de investigação, produção e sistematização do conhecimento científico no Mestrado
em Educação da UFU desenvolvido entre 1998 e 20002.
Os indícios, as inferências que nos fazem delimitar a elaboração do projeto político
pedagógico da FEF/UFG, como constituinte do objeto empírico dessa investigação, relacionam-
se com a seguinte constatação: nos dezessete anos (1989-2005) da experiência de formação de
professores de Educação Física da FEF/UFG, os documentos, as produções objetivadas que
regulamentam e/ou refletem o currículo, apresentam objetivos educacionais com pretensões
emancipatórias. Reconheço que essa argumentação não pode ser feita de maneira apressada,

1
A crítica imanente compõe o cerne da forma investigativa de autores da Teoria Crítica da escola de Frankfurt.
Adorno (1998) ressalta que “Crítica imanente de formações espirituais significa entender, na análise de sua
conformação e de seu sentido, a contradição entre a idéia objetiva dessas formações e aquela pretensão, nomeando
aquilo que expressa, em si, a consistência e a inconsistência dessas formações, em face da constituição do existente”
(p.23).
2
Na referida pesquisa, tive como objetivo geral: apreender como vinha se materializando a organização do trabalho
pedagógico na apropriação, produção e distribuição do conhecimento no curso de Licenciatura em Educação Física
do CAC/UFG, bem como, estabelecer os nexos com as possibilidades de construção de um projeto político-
pedagógico que viabilizasse a integração ensino-pesquisa-extensão pautada na transformação social. In: Ferreira,
Andreia Cristina Peixoto. Currículo do Curso de Licenciatura em Educação Física do CAC/UFG: o processo de
trabalho pedagógico frente às possibilidades de integração ensino-pesquisa-extensão. Uberlândia-UFU, Dissertação de
Mestrado, 2000.

58
superficial e ligeira; para não nos atropelarmos e cairmos em reducionismos e/ou
absolutizações.
No atual documento do projeto-político pedagógico do FEF/UFG aprovado na forma de
Resolução em 2005, explicita-se que “O curso de Licenciatura em Educação Física da UFG,
criado em 01 de setembro de 1988 (...) teve, como finalidade, implementar uma proposta
progressista na formação de professores” (FEF/UFG/CRC, 2005, p.01). Logo após essa
afirmação destaca-se que “Essa proposta curricular, desde o seu início, vem apontando para
vários compromissos históricos, dentre os quais, o seu papel decisivo de integrar-se nas
transformações da escola, da Educação Física e Educação” (Ibidem, p.01). Posteriormente são
apresentadas realizações e ações inovadoras dessa experiência de formação de professores,
destacando que “Estas e outras mudanças, sem sombra de dúvidas, provocaram profundas
reflexões em vários congressos na área de Educação Física com repercussões importantes
quanto às inovações desenvolvidas na FEF/UFG em Goiás e em todo o país” (ibidem, p.02).
Afirma-se ainda que “Tal projeto certamente deverá estar estruturado para que possa garantir a
realização de políticas emancipatórias e os pressupostos éticos na construção do vir-a-ser
humano autônomo, criativo e solidário.” (Ibidem, p.07).
A perspectiva de experiência formativa apontada nesse documento quer apoiar-se numa
tradição humanista de formação, tal como destacado no Artigo 3º da Resolução curricular que
perdurou até o ano 2004: “O Curso (...) tem como base fundamental o estudo da Motricidade
Humana, dentro da perspectiva da formação humanista e de seu desenvolvimento técnico e no
aprofundamento de conhecimento de natureza teórico/prático”. (Resolução CCEP/UFG - nq
393/95, 300/90, 283/88 p. 01). Esse eixo epistemológico da motricidade humana, e, a criação e
inserção do curso na área de Ciências humanas, apresenta-se em oposição ao eixo tradicional e
hegemônico dos currículos dos cursos de Educação Física do Brasil, inseridos na área de
Ciências naturais e biológicas, centrados na aptidão física, no corpo biologizado e no trato com
o esporte referendado no alto rendimento. (FERREIRA, 2000)
Percebe-se que a perspectiva apresentada no projeto político-pedagógico da FEF, tende
a re-elaborar uma dada tradição humanista: “A Educação Física escolar que temos hoje é, mal
ou bem, tributária da tradição ocidental, da matriz européia, dos projetos político-pedagógicos
da Grécia e do Iluminismo, da Paidéia e da Bildung” (JAEGER, 1995; LOVISOLO, 1997; apud
VAZ, 2003, p. 10).
Aqui reconheço as experiências pedagógicas com pretensões emancipatórias, como
aquelas em que os objetivos educacionais querem se inscrever na tradição humanista do
ndigkeit)
conceito de formação (Bildung) para a emancipação (Mü . Compreender como essa

59
pretensão de formação humanista e emancipatória se conforma na experiência de elaboração do
projeto político-pedagógico da FEF/UFG, perpassa as perspectivas dessa investigação.
Como visto, no caso dos cursos de licenciatura em Educação Física da FEF/UFG,
argumenta-se e publiciza-se historicamente, que eles são regulamentados por projeto curricular
direcionado para uma formação humanista com dimensões inovadoras e emancipatórias,
pautadas na transformação social. Posso destacar outras passagens ilustrativas desse argumento:
“o sentido crítico-reflexivo e autônomo deve embasar a formação com uma formação teórica e
interdisciplinar fundamentada no trabalho pedagógico e na produção de conhecimentos
(científicos e culturais) enquanto horizontes da capacitação do professor de Educação Física”
(FEF/UFG/CRC, 2005, p.05), e ainda, “reafirmar os compromissos sociais que objetivem a
superação das injustiças sociais, da exclusão, da discriminação, da alienação do homem
inscritos na cultura corporal humana” (ibidem, p.05).
O curso de Licenciatura em Educação Física na UFG foi criado em 1988. Sua criação, e
conseqüentemente seu currículo, foram regulamentados pela Resolução n° 283/88 aprovada
pelo então Conselho Coordenador de Ensino e Pesquisa (CCEP) da UFG. Outras duas
Resoluções, a n° 300 e a n° 393, respectivamente aprovadas em 1990 e 1995, não representaram
uma reestruturação/reforma curricular, pois somente alteraram a carga horária de disciplinas,
mantendo os princípios, estrutura e forma da primeira Resolução. A experiência de elaboração
do projeto curricular e político-pedagógico normatizados por essas Resoluções se deu sob a
influência das discussões e proposições do movimento nacional pela formação dos educadores,
da constituição de perspectivas de Pedagogias críticas em Educação Física, da Reforma
Acadêmica da UFG em 1984 e da lei 03/87 do Conselho Federal de Educação (Normatização
curricular específica da área de Educação Física), como constatado na pesquisa implementada
entre os anos 1999 e 2000:
No contexto sócio-histórico-político e cultural constituído pelas discussões e
proposições desenvolvidas no bojo do movimento dos educadores pela formação do
profissional da Educação em Goiás, do processo de reestruturação acadêmica e
curricular da UFG, da configuração do Fórum de Licenciaturas na UFG, da
aprovação da lei de “reformulação” dos currículos dos cursos de graduação em
Educação Física (03/87 do CFE), e da constituição de uma Pedagogia Crítico-
Superadora em Educação Física, construiu-se as condições necessárias para o
processo de constituição, aprovação e implementação do projeto curricular da
Faculdade de Educação Física da UFG. O professor que integrou a comissão que
sistematizou a proposta curricular deixa evidente que os determinantes desse
contexto, inerentes às condições de se construir alianças no interior da Universidade
Federal de Goiás foram decisivos para a aprovação da resolução 283, pelo CCEP, no
dia 1º de setembro de 1988, que criou o curso e fixou o currículo do curso de
Licenciatura em Educação Física: (FERREIRA, 2000, p.147-148)

O projeto pedagógico e curricular da atual Faculdade de Educação Física da UFG


(FEF/UFG) é institucional e formalmente constituído pelos cursos de licenciatura em Educação

60
Física realizados no Campus Samambaia (em Goiânia desde 1989), no Campus de Catalão (na
cidade de Catalão-Go desde 1990) e no Campus de Jataí (na cidade de Jataí-Go desde 1994) da
UFG. Como enfatizado, o projeto político pedagógico com pretensões emancipatórias encontra-
se normatizado no texto das Resoluções que desde 1988 regulamentam o currículo desses
cursos. Pode ser reforçada a ilustração disso, ao se considerar os objetivos educacionais
previstos no Artigo 2° das Resoluções do então Conselho Coordenador de Ensino e Pesquisa da
UFG (CCEP/UFG), que normatizaram o currículo até o ano de 2005:
Art. 2º - O licenciado em Educação Física deverá:
a) dominar os conteúdos fundamentais e metodológicos inerentes à área;
b) compreender a escola enquanto realidade histórico-concreta e determinada
socialmente como espaço objetivo de sua práxis;
c) compreender o trabalho como dimensão social, cultural e pedagógica, e ser
capaz de criar e recriar, na especificidade de sua ação educativa, novos
conhecimentos e aplicá-los junto à transformação da sociedade. (Resoluções do
Conselho Coordenador de Ensino e Pesquisa - CCEP/UFG - nq 393/95, 300/90,
283/88, p.01)

Nessas Resoluções encontram se regulamentados os espaços obrigatórios para as


experiências pedagógicas desse curso de formação de professores de Educação Física: - a produção de
conhecimento científico na forma de monografias desenvolvidas nas disciplinas de aprofundamento
em Educação Física Escolar, Popular e Desportos; - a elaboração e desenvolvimento de projetos-
atividades de extensão na disciplina de Oficina Experimental; - a participação em disciplinas de
Fundamentação, Didático-Pedagógicas, Técnico-Desportivas organizadas em eixos de conhecimento
e ciclos de aprendizagem; - a participação em espaços diversificados de formação/experiência
curricular a partir da exigência do cumprimento de 200 horas de Atividades Complementares.
(CCEP/UFG - nq 393/95, p.04-11).
As Resoluções citadas anteriormente regulamentaram o currículo do curso de
licenciatura em Educação Física da UFG de 1988 até 2004. Em abril de 2005 é aprovada pelo
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFG a Resolução de nº 715. Essa Resolução
regulamentou uma experiência de Reforma curricular e pedagógica sistematizada no já citado
documento intitulado ‘Projeto político-pedagógico do curso de licenciatura em Educação
Física’. Resolução essa, fruto de um processo de Reforma Universitária, Acadêmica e
Curricular deflagrado no final dos anos 90:
O CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO E CULTURA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, no uso de suas atribuições legais,
estatutárias e regimentais, reunido em sessão plenária realizada no dia 5 de abril de
2005, tendo em vista o que consta do processo nº 23070.014870/2004-70, e
considerando: a) o Regulamento Geral dos Cursos de Graduação da UFG - Resolução
CONSUNI nº 06 /2002; b) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB
(Lei 9.394/96); c) as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, CNE/CP 1/2002 e CNE/CP 2/2002; d) o Parecer
158/CNE e Resolução 07/2004CNE Diretrizes específicas da Área Profissional; e) a
responsabilidade social com a formação humana, a qualidade e a competência dos

61
profissionais formados pela Universidade RESOLVE: Art. 1º - Fixar o currículo do
curso de graduação em Educação Física - Licenciatura Plena, da Universidade
Federal de Goiás, para os alunos ingressos a partir do ano letivo de 2005.
(UFG/CEPEC, 2005, p. 1)

A experiência de construção, elaboração e realização do projeto político-pedagógico nos


anos 90 e primeiros anos do século XXI se dá no contexto do tensionamento objetivo e
subjetivo promovido, pela sedutora desregulamentação neoliberal, estetizada por uma indústria
cultural global. Esse contexto compõe um clima cultural em que tendencialmente o mercado, a
empresa e a informalidade são tomados como método e medida para todos os setores da vida; a
produtividade, a velocidade, o desempenho, a vitória são cultuados como norma moral, ou,
como imperativos categóricos universais; a truculência do estranhamento e/ou a virulência da
integração fazem do diferente, do estrangeiro, do outsider, algo a ser normatizado, pelo
extermínio e/ou pelo consumismo; a mercantilização do conhecimento, da ciência, da escola, da
universidade são naturalizados; a proliferação e aligeiramento dos cursos de formação, mais
especificamente da formação de professores são cinicamente revestidos de demandas sociais,
mas efetivamente revertidos em aplicação financeira rentável, e, etc.
No projeto político pedagógico elaborado pela FEF nesse contexto, os objetivos
educacionais emancipatórios são publicitariamente reafirmados, reforçados e até ampliados.
Frente ao reordenamento legal engendrado nesse clima cultural do capitalismo transnacional, a
comissão da Reforma curricular e pedagógica da FEF, postula seguir um caminho de resistência
face às determinações do existente. Faz-se isso, negando a conformação e dizendo optar pela
compreensão das contradições entre o real e oficial e pela construção coletiva de ações que
visam à superação do modelo vigente:
Ao analisar os dados presentes nas propostas oficiais do Estado e as
possibilidades disponíveis que se tem para uma ação de resistência ou de
conformismo face ao que está aí, David (2003) aponta que existem pelo
menos três grandes possibilidades de ação: a) a de conformação (...) b) a de
construção de um movimento de ruptura e insubordinação (...) c) a de
compreensão da contradição entre o mundo real e o mundo oficial,
explicitada no projeto do governo federal e nas políticas sociais por ele
apresentadas, visando adequar a formação humana no momento atual da crise
capitalista mundial, e, nesse contexto, buscar construir ações (dialéticas) em
seu interior, enraizando projetos e práticas de mudanças e de superação ao
modelo vigente. Diante dessas premissas e optando pela última, aposta-se na
premissa de que é possível construir ações concretas sobre a realidade,
especialmente se houver como pré-condição que todos estejam envolvidos
(...). (UFG/FEF/CRC, 2005, p.06)

A interpretação da mencionada contradição entre ‘mundo real’ e ‘mundo oficial’, talvez


não possa ser desencadeada pelo procedimento transcendente e ortodoxo, de um dado
Materialismo Histórico Dialético que, tende a colocar a análise crítica sob o manto da ideologia,
da causalidade, e, da relação entre infraestrutura e superestrutura, buscando reconciliar a análise

62
radical do processo, com uma síntese propositiva. Isso não fortalece o pensamento no sentido de
adentrar nos meandros sedimentados da crítica ao caldo cultural contemporâneo. Tampouco
pelo percurso hegemônico da racionalidade instrumental, positivizada e estereotipada. A opção
pode ser pelo caminho da crítica imanente, trilhado por uma Dialética Negativa que “recusa o
princípio da identidade e a onipotência de um conceito superior”. (ADORNO, 1998-b)
Como destaca Adorno “Para a crítica imanente uma formação bem-sucedida não é,
porém aquela que reconcilia as contradições objetivas no engodo da harmonia, mas sim a que
exprime negativamente a idéia de harmonia, ao imprimir na sua estrutura mais íntima, de
maneira pura e firme, as contradições” (1998-a, p.23). Não fujamos das contradições que nos
batem à porta; que estão na ponta de nosso nariz. Não coloquemos o capuz do pensamento
estereotipado, que evita qualquer tipo de contradição.
O pensamento estereotipado e positivizante tendencialmente age como se uma singela
harmonia compusesse a elaboração e realização do projeto político-pedagógico. Nos
documentos, nas produções objetivadas, nas reflexões curriculares, se os antagonismos não
aparecem, se os tropeços não são relatados, a falsidade pode se instalar. O brilho sedutor da
harmonia desejada gera ofuscamento e dissimula os contrastes, as fissuras, as contradições. Ao
dissimularmos a existência das violências, preconceitos e agressões, varremos para debaixo do
tapete, dimensões do trabalho pedagógico que não se deixam facilmente esconder. Assim,
acabamos por tropeçar em elementos que nos afastam das ditas pretensões emancipatórias e que
nos jogam no chão da barbárie na educação. Em algum momento o monstro emerge e nos
assusta com seu tamanho e avassalador poder de amedrontar e oprimir. Uma práxis pedagógica
com inspiração na dialética negativa teria que arrastar o que está submerso e fazer aparecer para
elaborar, isso pela sanidade dos agentes educacionais.
Com a crítica imanente busco adentrar no clima cultural contemporâneo que permeia a
experiência pedagógica de elaboração do projeto político-pedagógico emancipatório de
formação de professores, investigando como essa experiência se coloca frente à tendência de
semiformação generalizada engendrada pela mercantilização dos produtos simbólicos, da
ciência, do conhecimento e das instituições educacionais. Investigando ainda, quais seriam as
possibilidades de ser experenciada uma práxis pedagógica negativa comprometida com a sua
autocrítica e que se contraponha a racionalidades absolutizadas, autoritárias, positivizadoras que
perfazem a barbárie na educação e na sociedade.
No procedimento imanente não se tem a pretensão de dar conta de apresentar o objeto
de estudo de uma vez por todas, ora reduzindo-o a um amontoado de fatos, ora descrevendo-o
subjetivistamente. Para não desembocar no engodo das explicações apriorísticas, reducionistas e

63
absolutizadas, o percurso investigativo necessita do incômodo de expressar o objeto de estudo
sem cair nas armadilhas da definição conceitual apressada que a tudo quer capturar e amoldar.
Expressar o algo que perpassa e constitui histórica e materialmente o objeto, eis o percurso para
fugir da captura dominadora que nos leva a configuração de objetos apriorístico fundados em pré-
conceitos e sistemas totalizantes. Nos meandros da Dialética Negativa, Adorno situa que esse algo nos
põe em contato com a lembrança da sensação, da percepção, do somático, do corpóreo, que perfaz
a objetividade. Entendendo assim, não deixamos de reconhecer que a objetividade do conhecimento
requer por sua vez subjetividade, pensamento. Mas, também reconhecemos que a subjetividade
não é explicável por si mesma: “O objeto só pode ser pensado através do sujeito, mas sempre
permanece frente a este como um outro; e, no entanto, por sua própria natureza e antes de tudo,
é também objeto. Nem mesmo como idéia o sujeito pode ser pensado sem o objeto, enquanto
que este existe sem aquele.” (ADORNO, 1998, p.184) Para o autor, nessa materialista Dialética
Negativa, a mediação do objeto significa que só em sua compenetração com a subjetividade é
possível o conhecimento, já, a mediação do sujeito significa que, sem componente objetiva, não
haveria literalmente nada. Isto é, a subjetividade, o pensamento, necessita alimentar-se
organicamente de sua interpenetração nas camadas do objeto. E é nesse tenso percurso que se
compõe o primado do objeto.
A crítica por dentro do objeto precisa ser percorrida pelo caminho da reflexão filosófica
e da construção de uma constelação conceitual que possa localizar e traduzir em palavras sua
constituição objetiva e subjetiva. Fazer falar e decifrar a formação de professores significa não
deixá-la intacta, nem ao/à professor/a. Para Adorno “A constelação ilumina o que o objeto tem
de específico e que para o procedimento classificatório se apresenta como indiferente ou como um
peso.” (1998, p.164). A constelação se refere à composição histórica de conceitos ao redor do objeto;
colocando-se como chaves que abrem portas e que permitem adentrar nos meandros sedimentados do
objeto. Assim, acessando seus enigmas, alcançando suas fissuras, pegando no que emerge do
diverso, da singularidade, da especificidade e da diferença. Repugnando assim, a prepotente
pretensão de assimilar, de integrar e de classificar tudo ao todo. As constelações não se prendem em
aceitar o que o objeto tem de comum, de similar, de universal, de compatível com os sistemas
classificatórios da ciência calcada na racionalidade identificatória e instrumental. A crítica imanente
fundada na constelação, na experiência da reflexão filosófica, na auto-reflexão crítica é uma
forma de práxis, de intervenção cultural, que contrariando o objetivismo do pensamento
científico hegemônico, não precisa de menos, mas sim de mais sujeito.
No trajeto dessa práxis negativa, se há sensibilidade no sujeito para a objetividade,
pode-se encontrar o sofrimento, que é sempre corpóreo, do ato de conhecimento: “(...) o
conhecimento se dá numa rede onde se entrelaçam prejuízos, intuições, inervações, auto-

64
correções, antecipações e exageros, em, poucas palavras, experiência, que é densa, fundada, mas
de modo algum transparente em todos seus pontos” (ADORNO, 1992, p.69). Para o autor é essa
inquietude imanente ao percurso de conhecimento que lhe dá alguma esperança de mudança: “O
momento corpóreo transmite o conhecimento de que o sofrimento não precisa existir, de que
deve ser transformado” (ADORNO, 1998, p.204).
A sofrida, mas até mesmo por isso esperançosa, experiência de se pensar a formação de
professores na contemporaneidade, é feita no interior do clima cultural inerente aos processos de
desregulamentação e/ou informalidade e/ou esportivização promovidos pela pilhagem do que
correntemente se tem denominado como neoliberalismo. Parece razoável pensar que esse tal
neoliberalismo não possa ser reconhecido simplesmente como um liberalismo com nova
roupagem, mas sim como uma forma mais acabada e sofisticada de dominação e controle social,
pautada no recrudescimento do mercado e das revoluções científico-tecnológicas, que vem
acarretando o aumento da miserabilidade e da barbárie social.
O neoliberalismo com seu processo de desregulamentação foi gestado no interior da
própria sociedade administrada, regulada pelo monopólio e pelo Estado intervencionista. Como
ressalta Türcke (2003) os monopólios modificam e especificam as leis do mercado, mas não as
suspendem na sua eficácia. Pelo contrário, somente na era dos grandes grupos multinacionais o
mercado adentrou os centros nervosos das sociedades, antes ainda poupados pela livre
concorrência: serviços infra-estruturais elementares, prestados pelo Estado, tais como a
educação e o atendimento médico, telecomunicações, correios, o tráfego ferroviário, rodoviário
e aéreo. Assim, no final dos anos 70 e durante os 80 e 90, com os grandes avanços tecnológicos
– “revoluções microeletrônicas”, com as instituições públicas estatais elevadas ao status de vilã
da sociedade, configura-se o processo de desregulamentação em escala mundial: a privatização
das estatais, a flexibilização de contratos trabalhistas estáveis, a redução dos serviços sociais, a
substituição de segmentos profissionais por programas “inteligentes” de software, a queda de
uma parcela considerável da classe média para os empregos temporários, e mesmo o
deslocamento forçado das pessoas, até então atuantes, para o desemprego prolongado, o tráfico
de drogas e a criminalidade. Para esse autor,
Desregulamentação significa tão somente: regressão de restrições estatais ao
comércio (...) como aquelas que impedem a transformação de serviços
públicos não-rentáveis em empresas rentáveis. À luz da desregulamentação
nenhuma instituição, nenhuma empresa, nenhum grupo tem um direito à
existência se não estiver em condições de sustentar-se com seus próprios
meios – razão pela qual desde então nenhuma escola, nenhuma empresa,
nenhum grupo está ao abrigo de auditores que lhe apresentam planilhas com
cálculos do que poderia economizar em termos de pessoal e material. Isso
não transforma imediatamente todas as instituições em empresas: mas a
empresa é apresentada a todos como critério de aferição. (TÜRCKE, 2003,
p.4)

65
Os processos inerentes à desregulamentação e a informalidade vêm se alastrando pela
Educação superior brasileira, pela universidade, pela formação de professores contribuindo com
a conformação do que temos denominado por sociedade esportivizada. A tese da sociedade
espetacularmente esportivizada ressoa de inferências da crítica à sociedade contemporânea, da
crítica cultural e das investigações sociológicas feitas por Marcuse, Adorno e Horkheimer.
Ressoa também de autores europeus que nos anos 60 se inspiraram na Teoria Crítica da Escola
de Frankfurt para tratarem do esporte como objeto de estudo da sociologia, como: Jean-Marie
Brohm, Bero Rigauer e Gerhard Vinnai. No Brasil, essas inferências são tratadas, com
diferentes enfoques e profundidade, por autores como Alexandre F. Vaz, Marco Stigger,
Marcelo W. Proni e Valter Bracht
Essas inferências indicam que o esporte ajudou a consolidar o rendimento como critério
central da sociedade contemporânea. Ele reverberou uma estrutura semelhante à do trabalho
para outras esferas da cultura relacionada às práticas corporais, como o rendimento, método,
burocratização, racionalização. Sua estrutura em relação recíproca com a tecnologia e a
maquinaria oportuniza a materialização do anseio antropológico do corpo-máquina. A
tecnologia, a maquinaria e a administração cultural potencializam a espetacularização do
esporte. No esporte espetacularizado, público e atleta frente a frente, representariam o
consumidor e o produto mediados pelo administrador/empresário cultural. Na efetivação do
esporte como produto simbólico, o rendimento do atleta é transformado em mercadoria e é
trocado comercialmente pelo seu equivalente universal (BRACHT, 1997 e VAZ, 2001; 2004).
Ao ser equiparado com a maquinaria, e efetivado como mercadoria, o esporte incorpora
uma tendência à ação coisificada, e em conformidade com o trabalho e o entretenimento,
contribui sobremaneira com a reificação do corpo e da cultura. Isso se manifesta nas formas
contemporâneas de educação do corpo:
(...) a disciplina escolar Educação Física e também os programas de atividade
física relacionados à saúde (...) se dirigem, talvez, a uma dupla preocupação:
recuperar os défices promovidos pelo trabalho estafante, aprendendo a
compensar a rotina e o massacre corporal e psicológico que a vida
contemporânea impõe cada vez mais intensamente, mas também preparar
para o mundo da competição, da performance, da velocidade, do véu
tecnológico e da maquinização do corpo. Os esportes podem ensinar a
dominar melhor o corpo, a potencializá-lo para as disputas de imagens, cuja
importância atual é inegável. Que se pense na esportivização da sociedade
contemporânea, representada, ademais, por outras formas de expressão,
igualmente competitivas, como a pornografia ou como as técnicas de
embelezamento (cirurgias, treinamentos em academias, prescrições
dietéticas, aplicações químicas sobre a pele) (VAZ, 2003, p.07).

Em confluência, compartilho com Rosa (2005) que o termo sociedade esportivizada


expressa na contemporaneidade uma sociedade construída de forma imanente pela
administração da indústria, do espetáculo, da exploração mercadológica, que faz do corpo e de

66
seus produtos simbólicos, mercadorias altamente valorizadas, estetizadas e publicizadas, nas
dimensões do fetiche e da reificação3. Entendo que a sociedade esportivizada é um processo e
um produto imanente da Indústria cultural global, constituída especialmente nas formas
históricas e contemporâneas de esportivização da cultura. Esta forma vem contaminando a
cultura e transferindo para o corpo uma demanda de produtividade e rendimento que equivale à
precisão tecnológica do trabalho industrial. Uma precisão que vem se corporificando na
obsessão pela vitória, pelo resultado, pelo 1º lugar no ranking. E na compulsão pela velocidade,
pelo o que está à frente, pelo novo lançamento, pelo tecnologicamente atual, pelo sensacional,
pela visibilidade. Essa dinâmica gera um corpo standartizado que não se desvincula do tempo
cronometrado. Isso como resultado de um crescente processo de tecnologização, de
industrialização, de precisão das máquinas.
A dinâmica compulsivo-obsessiva inerente à (des)subjetividade da sociedade
esportivizada tende a jogar a vida para o viciante jogo de se ter que fazer tudo agora, de forma
rápida, acelerada, veloz, cronometrada. O lema olímpico do mais forte, mais alto e mais veloz
torna-se um imperativo universalmente válido para tudo e para todos. O vício da velocidade
parece ser cultuado e estimulado em todos os lugares. As novas tecnologias dão o tom, o ritmo e
o compasso para a composição de um tempo acelerado. A impressão que se tem é a de que o
tempo está passando cada vez mais rápido. Ao corpo é exigida uma adaptação ao ritmo do
“tempo-velocidade” do cronômetro e do trabalho industrial em substituição a temporalidade, a
continuidade, a profundidade, o cuidado, necessários a experiência formativa. Ao se agir na
marcação do tempo velocidade acelera-se o ritmo do declínio da experiência.4
A escola e a universidade “entoam o mesmo louvor do ritmo do aço”. Desses lugares
que deveriam dedicar tempo, cuidado, repouso para a formação, é exigida cada vez mais
produtividade. Às escolas demandam mais alunos, mais professores graduados e pós-graduados
(as condições para a formação não importa), mais aprovações, mais projetos, mais prêmios
nacionais e internacionais. Às universidades requerem mais e mais inovações científico-
tecnológicas. E tudo isso para ontem. Os prazos inalcançáveis são ditados, pela corrida
apressada dos processos de desregulametanção, pelo acelerado tempo do capital financeiro
especulativo, pela velocidade e agilidade das grandes corporações em raptar o Estado e a
sociedade, e, por sua rapidez em fazer refém a educação, a saúde e outros bens sociais.
Sevcenko em seu livro “A corrida para o século XXI – No loop da montanha-russa” ilustra a
corrida das universidades sucateadas junto as grandes corporações transnacionais, no seqüestro

3
A autora inspirou-se especialmente nos estudos de Herbert Marcuse relacionados à racionalidade tecnológica, aos
mecanismos de mais-repressão, à análise da cultura afirmativa, enfim, aos mecanismos subjetivos e objetivos que
engendram a sociedade unidimensional. E também no livro a “Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord.
4
Aqui a inspiração relaciona-se ao conceito de experiência (Erfahrung) em Valter Benjamin.

67
mercadológico da ciência:
Dados os constantes e crescentes cortes de financiamentos para as
universidades e institutos de pesquisa, a alternativa deixada a essas
instituições é buscar recursos junto às grandes corporações. A prioridade das
megaempresas, por sua vez, é a valorização de suas ações, o que implica
compromissos com grupos minúsculos de acionistas e com planilhas de
prazos muito curtos, completamente indiferentes a entidades tão amplas
como a humanidade e o planeta ou com o futuro distante. Assim, em vez de
ser responsável, a ciência é levada a ser rentável. (SEVCENKO, 2001, p.
101)

Esse lastro estimula o espetáculo dos processos de privatização, de mercantilização dos


produtos simbólicos, do conhecimento, da ciência, da arte. A Reforma Universitária e as
diretrizes curriculares para formação de professores em curso, parecem bastante aderidas à
esteira produtiva desse clima cultural contemporâneo que danifica as experiências formativas.
A esteira produtiva na formação de professores vem se configurando na proliferação e
no aligeiramento em escala industrial: dos cursos de formação de professores, da venda de
pacotes de formação continuada, na incorporação de modismos pedagógicos, etc; Essa
configuração não ajuda a tensionar e elaborar, e até mesmo reforçam/ritualizam, os tabus,
preconceitos e estereótipos que permeiam os processos educativos. Os cursos de licenciatura em
Educação Física vêm se colocando como um grande filão desse rendoso processo produtivo.
Ao contexto de expansão e interiorização do ensino superior, agrega-se a conjuntura da
formação na Educação Física brasileira que historicamente vem favorecendo a constituição
dessa área como um braço virtuoso da Indústria cultural e da Semiformação. Atualmente essa
conjuntura vem se conformando pelos ditames do Conselho Federal de Educação Física, pela
lógica da Universidade-empresa-econômica, pela Reforma Universitária do governo federal,
pela constituição das “novas” Diretrizes Curriculares para as graduações e pelas reformas
acadêmicas e curriculares internas às Universidades brasileiras. Tal tendência de conformação
pode estar caracterizada no receituário prescrito no artigo ‘Aprenda com os vencedores’,
reportagem de capa publicada pela revista V
eja em 04 de junho de 2003. Nele a “profissão” do
profissional/professor de Educação Física é estetizada e publicizada com os seguintes dados:
8.0000 formandos por ano; o salário médio inicial é de R$ 1000,00, o salário médio dos talentos
chega a mais de R$ 4.100,00. Informa-se que 90 % dos talentos estão empregados na iniciativa
privada (academias de ginástica, resorts e no setor de fitness de grandes empresas) e 10%
trabalham como personal trainer. Destacam ainda que,
Não faltam oportunidades de trabalho para quem decidiu seguir carreira na
Educação Física. A cultura da boa forma abriu perspectivas para quem tem
um diploma na área. Além das tradicionais vagas em escolas e universidades,
os profissionais arranjam trabalho em spas, resorts e dão atendimento a
empresas que oferecem serviços aos funcionários. O tipo de contrato varia. A
maior parte ainda trabalha de forma assalariada, mas cresce o número de
formandos tocando o próprio negócio, em geral atuando como personal

68
trainer. Nesse ramo, os mais bem sucedidos são alçados a condição de quase-
celebridades e atingem remuneração muito acima da média dos colegas
EA
(V J , 2003, p.74)

Essa caracterização publicitária compõe uma tendência mercadológica, de


informalidade e de esportivização, que danifica as experiências formativas de professores com
pretensões emancipatórias na Educação Física. Essa danificação se dá pela desvalorização da
docência e pelos ecos do esporte espetáculo, do Fitness, do culto ao corpo "belo" e saudável,
dos modismos, idolatrias, prescrições de treinamento e de técnicas corporais de sofrimento,
provenientes de ícones da Indústria cultural. Ao pesquisarem sobre a "Educação do corpo nos
'textos pedagógicos' de Adorno", Bassani e Vaz (2003) constatam que para o autor frankfurtiano
"não lhe restam dúvidas quanto ao potencial destrutivo, de regressão e de produção da
crueldade, internalizado nas tendências sociais contemporâneas, cuja imagem aparece nas
relações patogênicas com o corpo, orquestradas, em grande parte, pelo esporte".(p.20)
Suspeito que a Educação Física vem compartilhando da composição das relações
patogênicas com o corpo, alimentando, com o que produz de conhecimento científico
engendrado na positivista racionalidade instrumental, a espetacularização do esporte e a
esportivização da cultura. A Educação Física, enquanto área de conhecimento e intervenção
social, encontra-se pressionada pela herança cientificista, eugenista, higienista, disciplinadora,
esportivizada. O acompanhamento da análise histórica e crítica da formação e da intervenção
social na Educação Física me faz supor, que uma gama dos conhecimentos acadêmico-
científicos e culturais produzidos e veiculados nessa área tem estado enredado com a
constituição de uma forma de objetivação esportivizada da Indústria cultural, e que ela vem
sustentando uma dada forma de semiformação no campo da Educação do corpo. Inserida no
âmbito da reprodução da indústria cultural globalizada, configurada em semiformação, ela pode
propiciar a construção de identidades conformadas, esteriotipadas, coisificadas em oposição às
possibilidades de construção de experiências formativas emancipatórias.
É com essa conformação cultural da sociedade esportivizada que se confronta as
pretensões emancipatórias do projeto político-pedagógico da FEF/UFG. E é nesse confronto que
se sustenta o argumento vital dessa investigação, fundado no núcleo da Dialética negativa e da
Dialética do esclarecimento, qual seja: o confronto entre a verdade do conceito e a falsidade de
sua realização concreta. Esse argumento se expressa na investigação de um dado momento da
diferença entre a pretensão e a realidade dos objetivos educacionais emancipatórios, em que se
reconhece a tensa relação entre a teoria e práxis pedagógica, ao infiltrar-se no clima cultural que
assola a construção da experiência do projeto político pedagógico, como o da FEF/UFG.
Perspectiva que remete para a análise das possibilidades de ser elaborada uma práxis
pedagógica que potencialize a sua auto-crítica e que combata a absolutização, a reificação e o

69
fetichismo da teoria e da práxis. A vitalidade do argumento, em nosso caso, passa por atualizá-
lo para a condição da educação brasileira, em especial da educação superior brasileira,
embreando pela análise das condições objetivas e subjetivas, da racionalidade de uma sociedade
espetacularmente esportivizada; que parece querer compulsivamente apagar seus conflitos e
contradições, normalizando tudo sob a ótica das performances –cada um/a tem a sua. Daí a
dificuldade de analisar e elaborar a diferença numa sociedade que se sustenta nela (na diferença
dos mínimos segundos, milímetros, dos nanôns), mas que também tenta eliminá-la com todas
suas forças.

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71
EDUCAÇÃO ESTÉ
T ICA E CRIAÇÕ
ES CONS TELACIONAIS

Angela Santi
Faculdade de Educação/UFRJ

Pretendemos, neste artigo, pensar a dimensão da experiência estética como aquela capaz
de viabilizar uma “educação” produzida como alternativa à indústria cultural. Trabalharemos
com Walter Benjamin e a constituição de uma teoria estética capaz de transformar e
revolucionar a percepção ordinária (amortecida pelos estímulos frenéticos das mídias digitais),
dando-lhe sentido e direção, constituindo uma educação estética. Iremos trabalhar então com a
sua teoria estética e a possibilidade de projetarmos tal teoria de modo a subverter a própria
lógica da indústria cultural, mas partindo delas, assumindo-a. Não se trata da pretensão em
anular a indústria cultural, mas subverter seus processos, arrancando seus elementos
constitutivos e inserindo-os em novos contextos - no caso aqui num contexto estético-
pedagógico. Benjamin é um filósofo inovador tanto no que se refere aos temas quanto ao
tratamento que ele dá aos mesmos – e é principalmente em relação ao tratamento que o autor
torna-se importante para aquilo que estamos tratando aqui. Seus textos são construídos como
mosaicos, trazendo uma série de referências que abrem para infinitos outros temas e questões.
Trabalharemos aqui com algumas de suas noções analisadas trabalhadas em um de seus textos
mais importantes: A Origem do Drama Barroco Alemão1.
Para pensarmos em uma educação estética que se aproprie dos materiais da indústria
cultural de modo a torná-los elementos pedagógicos, iremos desenvolver os pressupostos
básicos do pensamento de Benjamin. A “teoria estética” em Benjamin é equivalente à sua teoria
do conhecimento. Dessa forma, o primeiro pilar que nos interessa aqui diz respeito à quebra da
fé na correspondência entre conhecimento e realidade/natureza, entre o sujeito que conhece e o
objeto que se dá a conhecer.
Benjamin constrói sua filosofia sob bases estéticas, na medida em que acaba com o
sujeito fundador que institui um sentido prévio para os fenômenos. A idéia da impossibilidade
de um sujeito fundador capaz de apreender ou constituir a realidade em sua essência, faz com
que a teoria do conhecimento em Benjamin seja uma teoria estética. A teoria do conhecimento
em Benjamin está fundada sobre o fato de que não há uma correspondência necessária entre
aquilo que o sujeito apreende e aquilo que a realidade é. Dado que não há correspondência entre
o que o sujeito conhece e o que a realidade é, temos que conhecimento e a arte (ou a ficção)
passam a ser intercambiáveis. Benjamin anuncia a destruição da percepção natural e a abertura

1
BENJAMIN, W. A Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1986.

72
para uma “nova” realidade: “experimenta (se) uma nova realidade e, principalmente, uma nova
leitura da escritura da realidade - uma leitura descontínua, partindo das próprias imagens e não
do sentido que lhes é imposto por um sujeito fundador ou autoral”2. Com isso, o estatuto de
legitimidade do real e das coisas deixa de se vincular ao sujeito, tornando intercambiáveis
realidade e ficção.

O desaparecimento do ‘ponto de vista’ graças ao qual a realidade se organiza como


relação do olho do sujeito ao objeto significa o fim desta distinção entre pontos de
vistas diferentes. E se não há um ponto de vista para o qual o real é real e um outro
para o qual ele é ilusão, a distinção entre realidade e ficção está abolida.3

Dessa forma, sem a figura do sujeito ordenador que determina prévia e definitivamente
aquilo que é, abrir-se-ia um campo de infinitas possibilidades de constituição dos objetos, da
leitura do real e da produção de sentido (que falta à indústria cultural). Teríamos o fim de uma
totalidade necessária e invariável, para a construção do conhecimento como atividade
combinatória que é capaz de implodir a pretensão de unidade do conhecimento. Abre-se espaço
para totalidades móveis, construídas, “artificiais”. Toda essa dinâmica pensada por Benjamin
torna-se extremamente potente para pensarmos a relação de tensão entre indústria cultural e
educação.
Se Benjamin faz uma crítica à tradição clássica da filosofia, onde o conhecimento
pretende dizer a verdade última e definitiva sobre todas as coisas, aqui poderíamos projetar essa
crítica ao campo da indústria cultural e a seu modus operandi. Na medida em que procede a uma
leitura peculiar do real e do seu modo de constituição, podemos ver o pensamento de Benjamin
como capaz de purgar tal procedimento, ao apresentar um outro modus operandi capaz de
operar por dentro da indústria cultural e, assim, transformá-la a partir de si mesmo (ao invés de
proceder de modo a simplesmente rejeitá-la ou desconsiderá-la, como pretendem alguns críticos
da mesma, gerando um efeito recalcado, um “retorno do recalcado”, que poderia acabar por
produzir um fortalecimento da indústria cultural e não e não o contrário) .
Em A Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin analisa o fenômeno do drama
barroco e tem como principal pilar categórico a noção de alegoria. Não iremos desenvolver a
sua reflexão sobre o drama barroco, mas trabalharemos com um conjunto de categorias que
estão em torno deste tema e que são extremamente ricos para a análise de uma “educação
estética dos sentidos” – tendo a de alegoria como a central. Resumidamente, podemos dizer que
a alegoria

2
G. Raulet Le Caractère Destructeur – Esthetique, Theologie et Politique chez Walter Benjamin. Paris:
Ed. du Cerf, 1994, p. 51
3
idem, ibidem, p. 66

73
“apresenta a história em tudo aquilo que desde o início é prematuro, sofrido,
malogrado (...). Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca,
mundana, da história como mundial do sofrimento, significativa apenas nos
episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte
(...). A significação e a morte amadurecem juntas4.

A alegoria é, para o autor, a noção estética e epistemológica que permite com que
apresente-se a “inconsistência” da correspondência entre o conhecimento humano e a
natureza.Benjamin faz uma associação entre a alegoria e a história, mostrando que o que o olhar
alegórico vê é a corrosão da significação, de uma história resplandescente que vem abaixo para
revelar seu caráter falseador, malogrado. Para Benjamin, a alegoria quebra com essa
comunicação limpa e harmônica entre o homem e a realidade, fazendo-nos ver o abismo que
separa a natureza da significação. A forma como a realidade se revela agora, pelo olhar do
alegórico, forja uma nova estrutura com a qual apresenta-se à vida sua face mortuária. Na obra
de Benjamin existe uma rede de noções que estão organicamente associadas. Falar de uma
significa remeter-se, potencialmente, a todas as outras. A dinâmica da alegoria está vinculada
necessariamente à morte. A morte significa, na verdade, a libertação das coisas de um sentido
único e definitivo, a corrosão de uma unidade totalitária que aprisiona seus elementos,
obrigando-os a apresentar sempre da mesma forma.
Existindo a partir da impossibilidade de apresentar plenamente as coisas e lhes fazer
justiça, a alegoria se mostra na ironia do excessivo, do extravagante, revelando sempre o abismo
entre a expressão e o signo, tornando sua tarefa tão fracassada quanto verdadeira: a alegoria,
então,

não tenta fazer desaparecer a falta de imediaticidade do conhecimento humano, mas se


aprofunda ao cavar esta falta, ao tirar daí imagens sempre renovadas, pois nunca
acabadas. (...) a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem
sempre diz outra coisa que aquilo que visava (...) 5

O alegórico não rejeita simplesmente a tradição clássica, ele revela a identidade


(diretamente proporcional) entre a pretensão significativa da tradição clássica e a morte. Quanto
mais essa tradição pretende afirmar o sentido necessário das coisas, mais tais sentidos
transformam-se em pó. O procedimento alegórico só consegue escapar desse enfeitiçamento
porque não pretende ocultar isso; “salva-se” porque mergulha no fluxo instável das coisas, não
as duplica, mas revela-as tal como são: pontos, tópicos, fragmentos. Ao assumir a morte da

4
BENJAMIN, W., op. cit., p. 188
5
Gagnebin, J. História e Narração em Walter Benjamin. Campinas: Ed. Unicamp/Perspectiva, 1994, p.
45

74
significação, o alegorista consegue apresentar um conteúdo de verdade e salvar-se da pura
efemeridade por um imperativo sutil.
A alegoria é entendida, por Benjamin, como ruína, o que ela constrói o faz a partir dos
destroços da idéia de totalidade. Dessa forma, o alegorista trabalha com um material que não é
inédito - são destroços, cadáveres – numa atividade “combinatória” que resulta na proposição
de uma “totalidade” que não disfarça sua falta de unidade. Trata-se, então, de uma “ostentação
construtivista”:

A estética das ruínas, do fragmento é uma estética da construção, uma atividade


combinatória que quer se exibir como tal. As ruínas, os fragmentos, são a matéria
nobre para a criação barroca. O fragmento, a ruína, não são, portanto,
reminiscência antiga mas uma sensibilidade estilística contemporânea. O processo
é de acumulação de fragmentos, de experimentação de combinações a partir
deles.6 (...) A atitude experimental dos poetas barrocos assemelhava-se à prática
dos adeptos. O que a Antiguidade lhes legou são os elementos, com os quais, um a
um, mesclam o novo todo. Ou antes, não há mescla, mas construção. Pois a visão
perfeita desse “novo” era ruína.7

É com estes elementos que buscamos fazer a conexão do pensamento de Benjamin


com a atividade a que a indústria cultural está entregue. A falta de sentido prévio de todos os
elementos que compõem o universo do drama barroco na obra de Benjamin advém do
exercício de re-significação possível pela compreensão do caráter efêmero de todas as
totalidades historicamente construídas - da ruína como destinação necessária de todas as
coisas. O que estamos tentando definir é o modo como a indústria cultural se constrói e o
quanto ela, ao não reconhecer a corrosão daquilo que a precede, e daquilo que ela agora é,
estará sempre participando do risco de um fracasso fatal, de que, no final das contas, nada
surja, de que nada venha a irromper, propondo um novo estado de coisas. O que, então, é
nosso objeto de análise e crítica não é a indústria cultural em si (dado que ela hoje também nos
constitui, já foi internalizada), mas a pretensão de valor de “necessidade” dos seus produtos,
de uma necessidade de sentido e duração, de permanência – o que é inadequado à mesma.
Benjamin permite que façamos uma leitura descontínua, partindo das próprias coisas e
não do sentido que lhe é imposto por um sujeito fundador. Isso significa que passamos a ter um
procedimento para a análise da indústria cultural que a absorve para “desconstruí-la”. Benjamin
não é um crítico ferrenho da indústria cultural (como Adorno), no sentido de pretender o seu
fim. Como sabemos, ele foi um entusiasta do cinema e da fotografia – justamente por serem
“meios de comunicação de massa”, por serem resultado da reprodutibilidade técnica. É

6 MURICY, K. Alegorias da Dialética- Imagem e Pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 1998, p. 170
7
BENJAMIN, W. Origem do Drama Barroco Alemão. op. cit. p. 200

75
justamente pela condição técnica, pelo caráter artificial, que essas artes transformam a
percepção ordinária, trazendo à consciência o caráter construído da obra – montado, não
necessário, não orgânico. E é aqui que está o potencial transformador – nas artes reprodutivas
para Benjamin, no campo da educação, para nós.
Partindo da impossibilidade de apresentação do que as coisas “são”, a apreensão da
realidade passa a ser uma construção para Benjamin. Como construção, a realidade (e o
conhecimento) é algo do qual retiramos “infinitas imagens”, sempre inacabadas. Não se trata de
um solipsisimo, onde o conhecimento é um delírio de um sujeito, mas o fato de que não há
como, a partir do “contato”, construir um conhecimento definitivo sobre o objeto, devendo-se,
então, entendê-lo como intermitente, provisório. Dessa forma, a educação pode ser redesenhada,
sendo entendida como uma atividade de criação de imagens sempre renovadas que renovam
também conteúdos e a própria atividade do conhecimento, tornando-o uma tarefa sempre em
aberto, cuja posição do “sujeito” para conhecer é a de abertura. Ler o mundo de maneira original
é conseguir isolar os elementos de uma totalidade “autoritária”, atualizando-os a todo momento,
rompendo com o continuum automatizado da compreensão, vitalizando a aprendizagem.
Para o autor, o pensamento é descontínuo, para captá-lo é necessário retirá-lo, bem como
às coisas às quais se refere, do fluxo causal e mecânico da ordem ordinária. Enquanto os
acontecimentos e as coisas são lidos dessa forma, eles “morrem” - presos num sentido único e já
passado. Para fazê-los “viver”, é necessário arrancá-los de um contexto reificado para trazê-los
à vida em novas ordenações, formando novas constelações, (como fala o próprio Benjamin).
Para Benjamin, este deve ser o procedimento de um pensamento que busca ser fiel ao nosso
tempo: arrancar as coisas de um sentido morto, lançando-as em novos e sempre renovados
contextos, renovando infinitamente seu sentido.
A educação pautada por essa lógica seria o lugar do livre exercício do pensar, pautado
pela abertura para a constituição de um conhecimento que absorve o novo, o agora, não pautado
na dinâmica característica da indústria cultural - que produz a corrosão do novo por um outro
novo, possuindo um caráter revolucionário, criador, na medida em que mergulha no fluxo
instável das coisas, mostrando sua verdadeira face: a de ruína, de destroços.
No caso da indústria cultural, o procedimento alegórico significa arrancar seus produtos
do fluxo que lhe é próprio e instalá-los em outros contextos, formando novas constelações. No
caso, não rejeitar seus produtos, mas tomá-los como objeto de análise. Poderíamos pensar em
arrancar determinados produtos ou sua dinâmica do contexto das mídias convencionais e
transformá-los em objeto de análise no interior das práticas escolares ou de pesquisa. Ao mesmo
tempo, parece proveitoso incorporar o tempo de apreensão, o ritmo, a velocidade, o modo

76
próprio da percepção para o interior do universo da educação para colocá-los a serviço da
mesma.
Tal pensamento permite pensar num procedimento metodológico-estético, dado que tal
dinâmica produz um corte no sentido pré-estabelecido pela indústria cultural e coloca o homem
como um ser ativo. Este se torna capaz de pegar o material fornecido por pela indústria cultural
e projetá-lo em novas configurações, em novas totalidades. Essas novas totalidades colocam o
homem como ativo e autor, transformando-o em artista, criador de novos jogos constelacionais,
produtor de sentidos estéticos. Este procedimento colocado no contexto da educação, em seu
sentido estrito e amplo, é um potente agente transformador da experiência já determinada,
proveniente do mundo midiático e é dessa forma que ele é pensado aqui.

***
Num estudo que objetiva entender a indústria cultural e suas implicações, faltou até aqui
apresentar os elementos e o contexto que a envolve. A indústria cultural leva ao campo da
cultura, do tempo livre, o controle e a administração do mundo da produção industrial
propriamente dita. Tudo passa a ser administrado, o lazer, o querer, o espaço privado. O
mapeamento e a nomeação dessa dimensão - até então inédita de controle - é o grande feito de
Adorno e Horkeimer. Eles haviam denunciado o seu modus operandi que penetra em todas as
dimensões da vida subjetiva, privada, de modo absolutamente sutil. Esse modus operandi

revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma


coisa. A maneira pela qual uma jovem aceita e se desincumbe do date (encontro
amoroso) obrigatório, a entonação no telefone e na mais familiar situação, a escolha
das palavras na conversa, e até mesmo a vida interior organizada segundo os conceitos
classificatórios da psicologia profunda vulgarizada, tudo isso atesta a tentativa de fazer
de si mesmo um aparelho eficiente e que corresponda, mesmo nos mais profundos
impulsos instintivos, ao modelo apresentado pela indústria cultural. As mais íntimas
reações das pessoas estão tão completamente reificadas para elas próprias que a idéia
de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema abstração: personality significa para
elas pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do
suor nas axilas e das emoções.8

As referências feitas pelos autores trazem à tona o fato de que a indústria cultural age no
sentido de penetrar no espaço subjetivo, íntimo, privado, construindo uma rede de controle
“totalitária”, definindo e moldando o desejo, o plano das emoções, aquilo que poderia ser
considerado como protegido da dimensão de dominação, exercida pelos “meios de produção”. A
dimensão de massa e de abrangência totalizante da indústria cultural pode ter se apresentado
como algo assustador naquele momento, alterando definitivamente o foco de crítica e combate

77
que havia sido previsto por Marx no séc. XIX (associado a condições históricas objetivas). Mas
passado o espanto histórico, e tendo Benjamin como aliado, podemos perceber outras
perspectivas de análise. Benjamin, em “Rua de Mão Única”9, por exemplo, vai colocar luz sobre
essas perspectivas na medida em que, ao invés de uma crítica que se coloca em oposição,
procede a uma incorporação e transmutação dos primeiros vestígios daquilo que viria a ser
chamado de indústria cultural.
Benjamin, neste texto, acaba por “realizar” o projeto teórico anunciado no drama barroco,
trabalhando com uma estrutura fragmentária, descontínua. Tratam-se de pequenos “boxes” de
textos, cada um tratando de um assunto, que é “jogado” para o leitor sem nenhuma explicação
prévia ou desenvolvimento de seu sentido. Os boxes são antecedidos por títulos que estão em
letras maiúsculas, como se fossem letreiros publicitários. Aqui, Benjamin nos dá um indicativo
do modo como podemos incorporar os temas e formas de apresentação da indústria cultural. Em
“POSTO DE GASOLINA”, por exemplo, o autor sugere que a “atuação literária” “tem que
cultivar formas modestas (...). Só essa linguagem de prontidão mostra-se à altura no
momento”10. A estratégia do seu texto, tal como uma montagem dadaísta, é criar o choque do
contraste entre título e texto; entre o texto curto e a necessidade da reflexão prolongada para
decifrá-lo (à maneira de uma charada); entre forma e sentido.Os textos pequenos, opostos ao
modo de apresentação dos sistemas filosóficos, que seguem aos títulos impactantes, exigem
uma apreensão como se fossem outdoors publicitários, que foram feitos para serem “lidos”
instantaneamente, em uma fração de segundos.
Assim, em Benjamin temos a incorporação da escrita das ruas, da linguagem publicitária,
no texto filosófico, mostrando que a rejeição às mesmas não é a única possibilidade de uma
postura lúcida diante do risco de um achatamento reflexivo que a indústria cultural pode
produzir. Podemos pensar, inspirados em Benjamin, numa educação que incorpora elementos da
indústria cultural à maneira dadaísta, através da decomposição das unidades dadas como
naturais, definitivas, trabalhando uma pedagogia do choque, do contraste, criando, assim,
oportunidade para a construção de novos sentidos.
Se pensarmos o procedimento do alegórico, entenderemos que o trabalho a ser feito como
educadores - em prol de uma educação estética, que devolva ao sujeito a sua condição ativa
como participante do jogo - será o de matar os produtos da indústria cultural para salvá-los.
Matá-los lá onde eles nascem, para recuperá-los como pontos, tópicos, disponíveis para
apresentar-se de forma inédita, em novos jogos constelacionais. Como podemos fazer isso?

8
ADORNO, T. HORKEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. 2. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed.,
1986, p. 156
9
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. 3ª., São Paulo: Brasiliense, 1993
10
BENJAMIN, W., idem, ibidem, p.11

78
Formar mosaicos, constelações: esta é a proposta de Benjamin. Para efetivá-la é
necessário que recolhamos um conjunto de referências (textuais, musicais, imagéticas,
publicitárias), retirando-as de seus contextos originais para que possam ser justapostas,
mostrando outros sentidos possíveis, não captados numa ordenação já definida. Essas
referências e sua forma de ordenação não são nem necessárias, nem definitivas, nem únicas.
Apenas estão presentes no repertório de nossa época, aparecendo como possibilidade, ou
melhor, como um convite para um passeio pedagógico, num caminho possível - um caminho
que se faz ao caminhar e em permanente construção.

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ADORNO, T. HORKEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. 2. ed. Rio de Janeiro, Jorge


Zahar ed., 1986
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. 3ª., São Paulo: Brasiliense, 1993
_____________ Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1986
GAGNEBIN, J.M. História e Narração em Walter Benjamin. Campinas: Ed.
Unicamp/Perspectiva, 1994
MURICY, K. Alegorias da Dialética - Imagem e Pensamento em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1998
RAULET, G. Le Caractère Destructeur – Esthetique, Theologie et Politique chez Walter
Benjamin Paris: Ed. du Cerf, 1994

79
O SOFÁ, O 'ÚLTIMO' E O 'SUPER-HOMEM' DE NIETZSCHE – CONSIDERAÇÕES
SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA SOCIEDADE MODERNA

Ângela Zamora Cilento de Rezende

Resumo: Este artigo pretende discutir o problema da constituição da subjetividade a partir da


filosofia de Nietzsche, valendo-se dos conceitos de "último" e de "super-homem", tecendo algumas
considerações mídia e educação.

Palavras-chave: genealogia, educação, Zaratustra, 'último-homem', 'super-homem'.

"Chame-se 'civilização', 'humanização' ou 'progresso' àquilo em que se vê a distinção dos europeus;


chame-se simplesmente, sem louvar ou censurar, e utilizando uma fórmula política, o movimento
democrático da Europa, por trás de todas as fachadas morais e políticas a que remetem essas
fórmulas, efetua-se um tremendo processo fisiológico, que não pára de avançar- o processo de
homogeneização dos europeus, seu crescente libertar-se das condições em que surgem as raças
ligadas a clima e classe (...) a lenta ascensão de um tipo de homem essencialmente supra-nacional e
nômade, que fisiologicamente possui uma marca distintiva, o máximo em força e arte de adaptação.
(...) Este processo acarretará, muito provavelmente, resultados com que seus promotores e
apologistas, os apóstolos das 'idéias modernas', estão longe de contar. As mesmas novas condições
em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e mediocrização do homem – um animal de
rebanho, útil, laborioso, variamente versátil e apto -, são sumamente adequados a originar homens
de exceção, da mais perigosa e atraente qualidade. (...) a impressão causada por esses futuros
europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos
na vontade, necessitados do senhor (...) a democratização da Europa resulta, portanto, na criação de
um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil." (1)

Aterradoras são as considerações que Nietzsche faz a respeito da modernidade, seus


exames fisiológicos e históricos apontam algumas condições de possibilidade: de um lado,
Zaratustra, profeta do 'super-homem', anuncia e traz a exigência da vinda de um tipo superior de
homem, e de outro lado, o caminho que se descortina e se alarga rapidamente e para o qual o povo
já se encontra – "grande perigo e motivo de vergonha – é o último-homem" (2)
Este trabalho pretende articular tais condições de possibilidade, transpondo o século e com
o olhar dirigido para o mundo contemporâneo – "homogeneização", enquanto globalização,

80
tecnologia, sistemas de informação e a aproximação cada vez maior dos tempo real e virtual; e "seu
crescente libertar-se das condições de clima e classe" podem facilmente significar os avanços
bioquímicos – o projeto genoma, as experiências com células tronco: um novo elixir da longa vida,
alimentos transgênicos, e porque não também pensarmos em práticas políticas e sociais que
promovam a inclusão?
Os avanços e práticas científicas, o bem-estar e o conforto promovidos por uma sociedade como a
nossa, segundo Nietzsche, nos põe a caminho do 'último-homem' – o mais feio dos homens, visto
que ele renuncia às qualidade e virtudes que elevariam o seu tipo.
Mas, antes de tratarmos desta questão, vale reconstituirmos a constituição dos tipos em
Nietzsche através da genealogia.
Diante do projeto de fazer a genealogia dos valores, Nietzsche sente a ingente necessidade
de "encontrar um critério que possa servir de base suficiente (...) sem que tal critério possa, no
entanto, transformar-se em objeto de avaliação por intermédio de um outro valor no qual aquele
pudesse ser subsumido." (3) O único critério que se impõe sem sofrer uma nova avaliação é a vida,
posto que seu valor é inapreciável. Todos os valores são decorrentes de uma avaliação donde
procede uma interpretação a respeito da vida – os valores são sintomas de afirmação ou negação da
vida. Os primeiros correspondem a um aumento de potência, intensificam o desejo de vida,
enquanto que os segundos o depreciam.
"Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, não podem em última análise ser
verdadeiros. Tem valor só como sintomas e unicamente como sintomas se devem considerar – em si
tais juízos são idiotices. Há, pois que esticar os dedos e tentar apreender esta surpreendente finesse:
o valor da vida não pode ser apreciado."(4)
A genealogia não se limita a investigar a origem e a história dos valores – sua proveniência
e sua emergência, mas será uma crítica ativa que irá em busca dos princípios de avaliação dos
valores, ou seja, pretende averiguar qual é o valor dos valores e esta é a sua exigência.
"Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o
próprio valor destes valores deverá ser colocado em questão." (5)
Esta crítica supõe que os valores não sejam considerados como se fossem 'dados' desde
sempre, os valores adquiriram um estatuto de sacralidade, atemporalidade universalidade.
Afirmando o contrário, Nietzsche verifica sua procedência insidiosa no processo de formação da
cultura. Os valores não são eternos, mas são um tornar-se, pois são "resultados" ('Gewordenes') de
um laborioso processo formativo, presumivelmente ocorrido na pré-história da espécie e recuperado
hipoteticamente pela reflexão filosófica."(6)

81
Denunciando os inícios inconfessáveis das condições de aparecimento, os valores
aparecem atrelados à história. A verdadeira problemática da moral consiste na explicação de toda a
evolução do homem no seio da cultura – de como o homem selvagem pode conquistar uma vontade
mais durável que o animal, como foi possível torná-lo responsável e ainda ser capaz de prometer
por si no futuro. Em outros termos, as reflexões de Nietzsche estão intrinsicamente ligadas aos
princípios da cultura – e ela se constitui basicamente enquanto adestramento e coerção. Toda esta
investigação arqueológica que se desdobra a partir da necessidade de se questionar o valor dos
valores, com o auxílio da filologia, valendo-se da ótica da vida, resultará na dupla origem dos
valores. Este conhecimento determinará dois tipos de homens – o senhor e o escravo. A
determinação dos tipos advém da hierarquia que instaura entre eles uma distância, um abismo.
Enquanto o primeiro apresenta um modo de ser afirmador, pois parte de si para criar valores e com
isso se enaltece; o escravo – pelo contrário – é negador, pois é impossibilitado de criar valores por
si próprio devido ao bloqueio que sofre em sua interioridade e só pode fazê-lo invertendo e
deformando os valores criados pelo senhor em seu próprio benefício.
O recuo histórico presente na Genealogia da Moral servirá para explicitar como se deu a
formação do tipo homem- como ele dentro do seio da cultura, tornou-se um ser maleável e
doméstico, estável através de uma maquinaria cruel onde estão presentes as penas, os castigos, a
implantação do sentimento de culpa que, se por um lado converteu o homem em ser gregário, por
outro, deu origem a toda cultura superior, como as artes e a filosofia. Na verdade, trata-se de
investigar o sentido de toda a cultura- que é, de fato "amestrar o animal homem, reduzi-lo a um
animal manso, civilizado e doméstico." (7)
Ao torná-lo civilizado, nos adverte Nietzsche, corremos o grande risco de afogarmos o
caráter intempestivo, imprevisível do homem, fazendo dele um ser manipulável, medíocre e
insosso. A comunidade terá, então poder para promover uma identidade niveladora, atacando toda e
qualquer hierarquia, posto que o seu ideal é o de igualdade. Ao ser impedido de agir no exterior, o
repouso tomará o lugar da ação – ela aparece passivamente como "narcose, entorpecimento,
sossego, paz, 'sabbat', distensão de ânimo de relaxamento dos membros." (8)
Tolhido em suas ações, o homem descarregará suas pulsões contra si mesmo, criando
valores a partir de um mundo que lhe é oposto e exterior, substituindo a "relação real de
significação por uma relação imaginária" (9), transformando sua impotência em mérito, conduzindo
a questão para um domínio moral.
O processo civilizatório, o 'sentido de toda a cultura' é o de adestrar o animal-homem,
fortalecendo o instinto gregário, e o tipo escravo que se contamina e se alastra. Este processo
parece, aos olhos de Nietzsche “uma vergonha para o homem, e na verdade uma acusação, um

82
argumento contrário à cultura”. (10) Na verdade, o que Nietzsche teme é que tal processo decline o
homem, provoque seu apequenamento, de modo que precisamente a moral seria culpada de que
jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem. Este seria o maior dos perigos,
pois quando já não há nada a temer, também não resta nada a admirar.
“Pode-se ter inteira razão, ao guardarmos temor e se manter em guarda contra a besta-loura
que há no fundo de toda a raça nobre. Mas quem não preferiria mil vezes temer, podendo ao mesmo
tempo admirar, do que não temer, mas não mais poder se livrar da visão asquerosa dos mal-
logrados, atrofiados, amargurados, envenenados? E não é esse o nosso destino? O que constitui hoje
a nossa aversão ao ‘homem’ – pois nós sofremos do homem, não há dúvida – não o temor; mas sim,
que não tenhamos mais o que temer, que o verme ‘homem’ ocupe o primeiro plano e se multiplique;
que o homem manso, o incuravelmente medíocre e insosso, já tenha aprendido a se perceber como
apogeu e meta – que tenha mesmo um certo direito a se sentir assim.” (11)
Após examinar a origem dos valores, e a predominância do tipo escravo, o autor reflete
sobre a modernidade européia, em especial sobre a “Alemanha cumulada em sua recente glória,
Nietzsche percebe com segurança que a característica do século que se aproxima do fim é a queda
numa nova barbárie. Os europeus, orgulhosos de terem elevado as disciplinas do saber, esquecem
que há outras, que são as disciplinas vitais, reguladoras do trato social.” (12) A modernidade traz
consigo sua onipotência, tanto no seu poder quanto no seu agir, as nações mais poderosas ditam as
regras e se consideram acima do próprio tempo rumo ao progresso. É deste contexto que surge a
figura do último-homem, como fruto amadurecido do escravo.
É o último-homem quem inventa a felicidade – agora, reduzida ao conforto egoísta e
sonolento do sofá, sua consciência é reflexo das idéias prontas e pré-concebidas, “massa impessoal
de seres uniformes.(...) O bem supremo almejado pelo último-homem – sua concepção de felicidade
– é uma combinação de mediocridade, conforto, bem-estar, ausência de sofrimento e grandeza” (13)
Segundo Suffrin, para que possamos compreender a figura do último-homem é necessário
que retomemos a “dupla fonte grega e judaico-cristã da nossa cultura. Sabe-se que toda uma
tradição moral repousa sobre a distinção de três grupos de faculdades ( as faculdades do
conhecimento, as faculdades da ação e as faculdades afetivas), e que ela define, a partir desta
distinção, o comportamento moralmente bom como o bom exercício e a boa organização
hierárquica dessas três faculdades: trata-se, para ser moral, de conhecer com sabedoria, agir com
coragem, dominar pela temperança as afeições vis, e atribuir com justiça seu justo papel a cada
faculdade e sua justa recompensa ao bom exercício das virtudes.” (14)
Desta tradição e deste valores, o pouco que restou, se esvazia na figura do último-homem.
Completamente despreocupado com o mundo, mas é muito bem informado. Ele sabe de tudo o que

83
acontece, mas não quer, ou melhor não tem uma vontade forte o suficiente para agir. Percebe a
infiltração silenciosa de valores medíocres, disseminados por programas de tv. Estes seduzem
bilhões de pessoas todos os dias, e em especial, os jovens e pessoas baixa escolaridade ou não, o
que implica em falta de senso crítico. Sentados no sofá, os espectadores recebem a anatomia do
último-homem, são tragados por esta cultura de consumo, onde programas de videoclipe exaltam o
hedonismo, fazem uma apologia às drogas: a maconha como erva-natural, e mulheres que se
vendem a si mesmas como objeto de desejo descartável, e de dinheiro que não se alcança com o
trabalho.
Ao invés da sabedoria e da ação, a tranqüilidade do sofá e os prazeres imediatos. “’De quando em
quando, um pouco de veneno: traz sonhos agradáveis’. Fogem de todos os problemas angustiantes,
e sobretudo, do mais angustiante de todos, o problema da morte, do qual se desviam e ‘muito
veneno no fim para se morrer agradavelmente’” (15)
Incapaz de agir, o último-homem é também incapaz de amar, visto que tal empreendimento
exige dedicação e esforço, prefere também renunciar à afetividade, repleto de “precauções dietéticas
ou higiênicas por medo do esgotamento” (16)
Incitado pelo consumo, o último-homem é compelido a comprar para estar na moda, ilude-
se associando bens à felicidade, converte-se em modelos uniformes e de reprodução em série,
convidado incessantemente a ser como os outros são.
“Nenhum pastor e um só rebanho.” (17)
Ora, já que ninguém é forte o suficiente para agir, quem quererá governar? Não há justiça,
porque a busca pelo conforto, o leva a evitar todo o confronto e assim se difunde o discurso sobre a
igualdade entre os homens, nivelando todas as diferenças, ainda que tal discurso se apresente apenas
no papel.
Impedido de refletir, pois o modo de ser disseminados pelo Estado e pela mídia, pretendem
conservar os jovens na ignorância, alimentando neles os valores da adequação, da integração e do
conformismo. A cultura e as atividades pedagógicas estão atreladas aos critérios ditados pela
economia política: a uma cultura oficial e utilitária que visa o atendimento da produção da demanda
e do mercado. Ainda que se registre um número expressivo de estabelecimentos de ensino, adverte
Nietzsche, sua finalidade é a deformar homens comuns, numa carreira voltada para uma profissão,
função ou cargo. Produz-se especialistas e técnicos, mas alienados, incapazes de se tornarem uma
grata exceção.
Necessariamente, há que se buscar um novo quadro de valores e de princípios para que a
chegada do super-homem se torne possível. Para tanto, não mais uma pseudo-cultura, onde há

84
apenas transmissão de informação, de uma “cultura jornalística” que não rumina mais nada e que
conservam os jovens na imaturidade, na ignorância e na indiferença.

Desde muito jovem Nietzsche atenta para os problemas da educação e se reporta a uma
reforma radical, desde a escola primária à universidade. Sempre se preocupou com a crescente
mediocridade da vida gregária. Só através da educação, começando pelos educadores, seria possível
filtrar da massa de escravos e de últimos-homens alguns grandes homens. Ao voltar-se para os
antigos, para os grandes pensadores do passado, partindo de exemplos como Schopenhauer, a
educação teria como fim conscientizar esta ‘elite’ de sua condição trágica no mundo, ou seja,
preparar o homem para a vida, capaz de criar seus próprios valores. Isto significa que, para além da
informação e de valores preconcebidos, é possível constituir um ser capaz de aprimorar-se a si
mesmo, de obedecer a si mesmo e não ao que foi imposto, um ser de fato, autônomo. Um ser capaz
de resgatar o amor a terra, feliz, que dê valor à eternidade do instante, capaz de não se arrepender
nem de seu passado, nem de seu futuro- amor-fati, próprio do super-homem.
Ele é o super-homem – “é aquele que age, impõe sua força ativa, domina e transforma o
real. Ele realiza essa liberdade que é ação, força coagente e não reação, força coagida. (...) O super-
homem é aquele que só faz o que merece ser repetido uma infinidade de vezes, e durar uma
eternidade, o super-homem é aquele que ‘antecede com palavras de ouro os seus atos.” (18)

BIBLIOGRAFIA:

DELEUZE, G – NIETZSCHE E A FILOSOFIA CoL Semeion.Ed. Rio, RJ, 1976

GIACÓIA JR, O – NIETZSCHE, Publifolha, SP, 2000

_____________ - NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO Ed. Unisinos, RJ, 2004

_____________ - ‘O GRANDE EXPERIMENTO: SOBRE A NOÇÃO DE ETICIDADE E


AUTONOMIA EM NIETZSCHE’ in Revista Transformação, UNESP, vol12, SP, 1988

MACHADO, R – ZARATUSTRA, TRAGÉDIA NIETZSCHIANA Ed. Zahar, RJ, 1991

NIETZSCHE, F – ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, Guimarães Ed., Portugal, 1989

_____________ - GENEALOGIA DA MORAL Ed. Brasiliense, SP, 1988, 2ª ed.


Trad. Paulo César Souza

____________ - ECCE HOMO Ed. Max Limonad Ltda, SP, 1985


Trad. Paulo César Souza

85
____________ - PARA ALÉM DE BEM E MAL Cia das Letras, SP, 1992
Trad. Paulo César Souza

_____________ - ESCRITOS SOBRE EDUCAÇÃO Ed.PUC-Rio, RJ, 2004

SUFFRIN, H – O ‘ZARATUSTRA’ DE NIETZSCHE Ed. Zahar, RJ, 1991

86
A apropriação de trabalhos acadêmicos disponibilizados na Internet: expressões de
racionalidade instrumental e semiformação

Antônio Carlos Borges Cunha


Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em
Educação

Palavras-chave: Semiformação, Internet, racionalidade instrumental

A comercialização ou cópia de trabalhos acadêmicos não é uma novidade deste início


de século. No entanto, as facilidades possibilitadas pela Internet têm feito com que esta prática,
antes restrita a pequenos grupos e praticamente clandestina, ganhe proporções jamais vistas.
Dezenas de sites disponibilizam conteúdos acadêmicos sistematizados, no intuito de facilitar ao
estudante (do ensino básico ao doutorando) a consulta e a pesquisa para a elaboração de seus
textos e trabalhos, ou, por seu turno, a mera cópia do trabalho já pronto. Até abril de 2006,
foram identificados 41 websites que oferecem trabalhos acadêmicos, tanto para troca, como para
venda. Nas comunidades virtuais agregadas ao Orkut1 já são 118 voltadas – direta ou
indiretamente – para esta finalidade, sendo quase a totalidade ligada à comunidade acadêmica
universitária.

Nas trocas de recados nas comunidades, percebe-se que as monografias e os trabalhos


de conclusão de curso (TCC) são descritos como se fossem empecilhos à obtenção do diploma
que, por seu turno, seria o fim principal a ser alcançado em um curso superior. O discurso da
falta de tempo para se cumprir com esta espécie de formalidade burocrática perpassa não só as
mensagens trocadas entre os alunos nas comunidades virtuais, como também as justificativas
das empresas que oferecem, via web, seus serviços de confecção de trabalhos acadêmicos.

Não obstante às implicações legais, morais e éticas, educadores de diversas instituições


de ensino do país questionam – em matérias recentes publicadas em jornais impressos e
eletrônicos – como evitar que esta prática continue em franca expansão. Com este propósito,
exigem dos alunos a redação manuscrita de trabalhos, recorrem a sites de busca de conteúdo

1
Orkut é um site de relacionamentos virtuais da Internet (www.orkut.com), no qual seus usuários
convidam outras pessoas a participar – não há como entrar sem o convite de quem já faz parte. A proposta
do site é propiciar a formação de redes de relacionamento virtual, seja diretamente entre pessoas
conhecidas entre si, seja via participação em grupos temáticos específicos, denominados de Comunidades.
Cerca de 6 milhões de pessoas (dos quais aproximadamente 72% são brasileiros) fazem parte do site
criado pelo turco Orkut Buyukkokten, que é designer gráfico do site Google, voltado para a busca de
conteúdos. Informações retiradas da entrevista com Orkut, realizada em 03/07/05 e disponível no site
www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u97858.shtml.

87
2

para verificar a autenticidade dos textos recebidos, chegando a lançar mão de sofisticados
programas de informática para varrer a Internet à cata de trabalhos acadêmicos de origem
duvidosa.

Há também os que sugerem medidas preventivas, para evitar que estes casos aconteçam.
O uso de “atividades não-convencionais” (Folha de S. Paulo, 23.10.2005) – como pesquisas
empíricas nas ruas da cidade ou a simulação de um tribunal de júri para debater questões
cotidianas – e avaliações continuadas, feitas ao longo do ano-letivo, são algumas delas. Assim,
as tentativas de intervenção se restringem, quase sempre, em mudanças prático-metodológicas
das aulas ou das avaliações acadêmicas, mantendo-se inalteradas as determinações constitutivas
deste processo.

Mesmo que tais alterações pudessem inibir – ou até mesmo coibir – a troca ou compra
de trabalhos, elas não deixariam de romper com a cisão que há entre teoria e prática. Na
perspectiva indicada por Adorno (1996), a mudança de práticas descontextualizada das
mediações históricas que constituem o fazer social, além de ser um paliativo adotado para
minimizar dificuldades pontuais, poderia até encobrir ainda mais a realidade da qual o ensino
faz parte.

Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar por toda


parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com as
insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de
sucessivas gerações. Reformas pedagógicas isoladas, embora indispensáveis,
não trazem contribuições substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões,
reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos
que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação
frente ao poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre eles. (Adorno,
1996, p. 388)

No processo de troca e comercialização de trabalhos acadêmicos, a escassez de tempo


parece ser a principal justificativa desta prática, tanto por parte de alunos, como das empresas de
trabalhos prontos, como se vê na apresentação de um dos sites voltados para esta finalidade:

Não são poucas as vezes que você se depara com uma absoluta falta de
tempo. Além disso, é natural que o curso lhe pareça exageradamente
exigente. Se tudo isso está acontecendo com você, conte com a nossa ajuda,
pois a sua vida universitária não pode parar por uma dessas questões.
Somos especialistas em resolver esse tipo de problema, ajudando-o a passar
pela universidade de uma maneira mais suave possível. (Página de abertura
do site Insight Monografias; grifos meus)

Extremamente ilustrativo, o texto de apresentação do Insight Monografias mostra que


no mundo administrado (Adorno, 2000) em que vivemos o pensar é tomado como se fosse,
antes de tudo, um problema a ser resolvido e não um exercício de autonomia. Essa abdicação

88
3

deliberada do pensar e a sua delegação a outrem são expressões do que Horkeimer (2002)
denominou racionalidade instrumental.

Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No


aspecto formalista da razão subjetiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-
se a sua não-referência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental,
sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos
heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo
racional. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da
natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. (Horkeimer, 2002, p. 29).

A lógica produtivista que sustenta a expansão do capital – ao mesmo tempo em que nela
se reproduz – faz do saber uma ferramenta imprescindível para que se mantenham as condições
de dominação. A noção de que o estudo deve ter uma finalidade prática, qual seja a formação
para o mercado de trabalho, imprime essa lógica na própria constituição do saber, camuflando
as tensões de classe e abolindo suas contradições, reforçando a idéia de conciliação entre capital
e trabalho. O saber é, pois, entendido como a obtenção de informações que possam, por seu
turno, aprimorar e qualificar a mão-de-obra. Temos, assim, o indivíduo semiformado, ou
semiculto. “A formação (...) que descansa em si mesma e absolutiza-se, acaba por se converter
em semiformação” (Adorno, 1996, p. 390).

A formação para o mercado aperfeiçoa os meios de produção, enquanto garante a


perpetuação de sua lógica instrumental. Utilitarista e reprodutora da realidade, tal formação
presentifica-se, permanecendo estática historicamente. “A formação no presente pauta-se pela
adequação na continuidade do existente; é semiformação. É formação determinada em sua
forma pela própria formação social, pela determinação social (modo) da produção” (Maar,
2003, p. 469).

Ao voltar-se à atenção dos interesses do mercado, esta formação a qual se refere Maar,
que se faz instrumentalizada, instituída e instituinte da lógica produtiva, incorre numa
irracionalidade, na contraposição a uma perspectiva real de emancipação. Este é o aparente
paradoxo da razão instrumental. Aparente porque se revela uma razão contraditória – e não
paradoxal –, uma vez que contribui para o avanço técno-científico sem se dar à crítica,
reafirmando continuamente o status quo.

A idéia de que um objetivo possa ser racional por si mesmo – fundamentada


nas qualidades que se podem discernir dentro dele – sem referência a
qualquer espécie de lucro ou vantagem para o sujeito, é inteiramente alheia à
razão subjetiva, mesmo quando esta se ergue acima da consideração de
valores utilitários imediatos e se dedica a reflexões sobre a ordem social
como um todo. (Horkeimer, 2003, p. 14)

Ator e produto da razão instrumental, o semiformado poderia ser caricaturado como

89
4

aquele que dá notícia de (quase) tudo, mas que se mantém heterônomo, sem apreender os nexos
constitutivos de sua própria não-emancipação. Não que esta heteronomia se dê voluntariamente,
posto que ela é parte da produção mesma desta lógica instrumental. Como observa Maar,

Quais são as condições da reprodução da vida dos homens sob as relações de


produção dominantes na formação social caracterizada como sociedade de
massas? No segmento "A indústria cultural: o esclarecimento como logro das
massas" [Horkeimer, 1985], a questão seria referida à semiformação como
uma determinada forma social da subjetividade socialmente imposta por um
determinado modo de produção em todos os planos da vida, seja na
produção, seja fora dela. (Maar, 2003, p. 462).

Para o semiformado, faz-se imperativo estar sempre preparado para identificar e


aproveitar as oportunidades surgidas no mercado segmentado. Logo, dilui-se a noção de um
pensar autônomo e transformador, ao passo que se fortalece um processo educativo não
questionador, acrítico e descontextualizado historicamente.

A idéia de utilidade, sem a qual o semiformado parece não ver sentido naquilo que faz,
transborda nas apresentações das comunidades virtuais ligadas à troca de trabalhos acadêmicos.
Não raro, vão ainda mais além, rechaçando qualquer aproximação com o movimento do pensar
autônomo, como se percebe nos excertos retirados das apresentações das comunidades do Orkut
destinadas à troca de trabalhos acadêmicos, aqui reproduzidos.

Para todas as pessoas que como eu odeiam fazer essa p(...) de monografia q
no final só 3 pessoas vão ler!!!
MUUUUUUUUUUUUUUITO INÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚTIL!!!
(Comunidade Eu odeio monografia!)

[Este é um] fórum para discussão do famoso método de "trabalho-em-equipe-


nas-costas-dos-outros" para os trabalhos que são para hoje e você não tinha
tempo de fazer e obviamente você não quer zerar. (Comunidade
Malandragem na Faculdade S.A.)

Ae... quem quiser trabalhos é só pegar... (...) Vamos nos ajudar!!! mesmo q
vc já tenha passado da escola... mas ainda tenha trabalhos antigos... postem!!
e até informem qual é o colégio q vc estudou ou estuda... pra facilitar a
"enganação" sabe... pros professores não verem o mesmo trabalho duas
vezes... Vamos lá galera!!! vamos compartilhar sabedoria... (Comunidade
Troca de trabalhos pra geral; grifos meus)

Se você não sai mais de casa, não liga para os seus amigos, não dorme, não
come, não bebe, não conversa nem com o seu cachorro, não tem vida, esta é a
sua comunidade!!
Não serão aceitos nessa comunidade: Thompson, Marx, Aristóteles, Joyce,
Sodré, Malinovsky, Lipovetsky, entre outros. (Comunidade Monografia fode
a minha vida!)

90
5

A racionalização produtiva, explicitamente exposta nestas comunidades, encontra eco


no que o professor R.M2. – que desde 2004 produz trabalhos acadêmicos sob encomenda –
afirma em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
“(...) qualquer pessoa que saiba organizar informações e escrever bem pode
elaborar um trabalho padrão a partir da pesquisa e da bibliografia entregues
por quem faz a encomenda. É o que eu chamo de erudição balofa: muitas
citações, costuradas com os parágrafos chavões da academia, naquele
indefectível estilo impessoal da terceira pessoa’" (Folha de S. Paulo,
07.11.2005).
A fala do professor R.M. evidencia e nos apresenta, de maneira quase escatológica, o
que seja educação num processo máximo de racionalização instrumental. Instrumentalizada e
restrita à sua utilidade prática, a razão converte-se, ao fim e ao cabo, em irracionalidade, em
des-razão. À medida que a educação se instrumentaliza, ela se distancia da formação para a
emancipação, para a autonomia. Há, neste processo, um alheiamento do sentido de humanidade,
ao passo em que se abre o caminho para a não-reflexão, para a ausência de crítica e, assim, para
a barbárie3.

(...)desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia.


O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação
pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por
barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto
desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo
peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas
por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos
termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se
encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou,
na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar
ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma
tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que
eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade.
(Adorno, 2000, p. 155)

Adotar “bancas exigentes” nas defesas de dissertações e/ou teses, ou mesmo reivindicar
uma relação quantitativa menor de pós-graduandos por orientador, tal qual sugerem outros
professores entrevistados na mesma matéria (Folha de S. Paulo, 07.11.2005), são medidas que,
ainda que necessárias, certamente demonstram-se insuficientes para que se tenha uma formação
realmente crítica e emancipatória. Ao se tentar combater essas práticas, operando-se na mesma
lógica, em nada se altera a realidade semiformada e semiformativa. Sem que se reduza o
conceito de semicultura à esfera escolar,

A experiência formativa, caracterizada pela difícil mediação entre o

2
Segundo a matéria da Folha de São Paulo, R.M. tem 36 anos e é doutor e professor de Filosofia “de uma
importante universidade carioca”.
3
Barbárie é entendida aqui no sentido proposto por Rouanet (1993, p.11) como recusa (ainda que
involuntária) do indivíduo ao convívio coletivo, portanto, à civilização.

91
6

condicionamento social, o momento de adaptação e o sentido autônomo de


subjetividade, o momento de resistência, rompe-se com Auschwitz, que
simboliza a dominação do coletivo objetivado sobre o individual e do
abstrato formal sobre o concreto empírico”. (Maar, 2000, p. 26)

Há que se ressalvar que, não raro, percebe-se – especialmente em debates promovidos


nos meios midiáticos – uma tendência em se determinar às máquinas uma autonomia que elas,
por definição, não têm. A mera imputação de culpa às novas tecnologias – no caso, às de
informação, especificamente a Internet – é um reducionismo perigoso, que despolitiza o debate
ao se excluir as contradições históricas constitutivas da realidade. Não menos perigoso é crer
que apenas a mudança na forma de utilização das inovações tecnológicas pode transformar esta
realidade.

Nesse contexto, a “sociedade da informação” é vista como palco para um espetáculo


promissor de novas “possibilidades” de desenvolvimento cultural, político e, principalmente,
econômico. Nela, estariam armazenadas as “reais” condições de emancipação social, via
exploração e desenvolvimento de novas tecnologias da informação, que passariam a cumprir um
papel primordial e imprescindível de libertar os países de capitalismo tardio de suas
disparidades sócio-econômicas.

Por esse viés, tem-se a impressão de que basta se investir recursos humanos e
financeiros em novas tecnologias para que deixem de existir os verdadeiros fossos de
desigualdades sociais, hoje existentes. Ao invés de pensar a realidade, transformando-a, há uma
adesão a ela, reproduzindo-a e aperfeiçoando-a. Designar às tecnologias da informação uma
função quase redentora da sociedade desigual aproxima-se daquilo que Adorno (2000) chama de
fetiche da técnica.

Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece
atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua
racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos
influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por
outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado,
irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu tecnológico". Os homens
inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em
si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos
homens. Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à
autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins – uma
vida humana digna – encontram-se encobertos e desconectados da
consciência das pessoas. (Adorno, 2000, p. 132)

A partir das questões aqui levantadas, sobre a troca e a comercialização de trabalhos


acadêmicos, faz-se pertinente buscar a compreensão das tecnologias da informação também nas
suas contradições, seja como ferramentas indispensáveis à expansão e integração do capital em

92
7

níveis globais, seja como produção histórica da humanidade que, como tal, pode tornar-se
instrumento também de transformação da realidade, desde que esta seja transformada no seu
conjunto, e não pontual e isoladamente. Apreender as determinações e mediações presentes na
realidade configura-se num imenso desafio a ser assumido.

Não basta indignar-se com acadêmicos, do ensino médio ao doutorado, que recorrem a
serviços de compra ou troca de trabalhos, seja pela Internet ou não. Ao que nos parece, a
indignação já se encontra embutida na lógica instrumental. Transformar a indignação em novas
metodologias de ensino e avaliação pode ser um passo importante, ainda que insuficiente.
Recorrendo a uma expressão marxista, é preciso se retirar o véu que encobre a realidade, que a
torna opaca e invertida na sua aparência.

Nas palavras de Horkeimer (2003, p. 19), “na maior parte dos casos, ser racional
significa não ser refratário, o que por sua vez conduz ao conformismo à realidade tal como ela
é”. Se, na sociedade administrada, ser racional é ser ajustado à realidade, definitivamente, não é
essa a educação que se pretende emancipadora. A formação jamais pode ser entendida como um
problema a ser superado, instrumental e mecanicamente. Formar consiste em educar “para a
contradição e para a resistência” (Adorno, 2000, p. 183). Acima de tudo, educar é humanizar,
contra a barbárie e para a emancipação.

93
8

Referências Bibliográficas

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Troca de trabalhos pra geral. Disponível em:
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94
From Aesthetic Negativity to Social Action: An Avant-Garde Service Learning Approach to
Critical Pedagogy

Cara L. Kozma

Critical pedagogy promotes the empowerment of students through the exploration of


“dominant social, political, and cultural practices of the times” (Berlin). According to James Berlin,
“The insistence that students also be prepared to become active and critical agents in shaping the
economic, social, political, and cultural conditions of their historical moment has been a valuable
commonplace in this nation’s educational discussions” (55). Relying heavily upon cultural studies
and the examination of various artifacts, often nontraditional, critical pedagogy explores
subjectivity in relation to identity politics and the structures of late capitalism, and encourages
students to question dominant social structures (Berlin, Seitz). Most forms of contemporary critical
education view citizens’ primary social function as that of consumers to support market practices,
and seek to help students develop a better understanding of how late capitalist mechanizations
contribute to agency and subject formation.
Despite the widespread interest in critical pedagogy within the field of rhetoric and
composition, many critics point to the conservative political climate, continuing debates over
human and civil rights issues, homogeneous mass culture, and capitalist global economic expansion
to question the effectiveness of critical education (Morrow and Torres, McLaren, Edelstein). While
some composition scholars maintain that students resist critical education because it opposes their
instrumentalist views of education (Durst, Seitz), others charge that it participates in and reinforces
the same repressive consumer ideologies it opposes (McLaren, Gur-Ze’ev). Henry Giroux, a central
figure in critical composition, discusses the current crisis in critical education:
Central to the rise of depoliticized citizenry marked by apathy and cynicism is the
emergence of a view of education in which schools are defined as a private rather
than a public good. This emergent view is clearly complicitous with the mounting
vocationalization of public and higher education. In addition, it makes a strong
claim for pedagogical practices that venerate political disinterestedness while
fostering modes of aesthetic analysis that celebrate a retreat into private experience
at the expense of critical inquiry and an active social engagement with public life.
(146)

95
Moreover, in specific reference to the crisis in critical pedagogy within writing classrooms, Giroux
suggests that “nor is there an interest in exploring how power works through particular texts, social
practices, and institutional structures to produce differences organized around complex forms of
subordination and empowerment” (148).
My essay examines how the use of radical avant-garde aesthetics within writing classrooms
can offer valuable contributions to critical education within composition. I suggest a critical
pedagogical approach to writing instruction that foregrounds the use of avant-garde poetry and art.
In the course I envision, instructors would use examples of modernist and postmodernist avant-
garde works – for instance, Marcel Duchamp’s Readymades, El Lissitsky’s Prouns, Hugo Ball’s
sound poetry, William Burroughs’s cut-ups, or language poetry – as the basis of in-class discussions
and writing activities, and students would explore in detail the social and historical context
surrounding avant-garde movements within the course readings and through independent research.
Ideally, the course would also include a service learning component in which students would design
art projects based upon avant-garde aesthetic principles to be produced in collaboration with
community partners. Service learning is of growing interest in composition programs, which often
have missions of community involvement. In service learning, students work with local
organizations such as nonprofits, government agencies, youth programs, and public schools in a
variety of ways. As service learning programs grow in number, recent studies have been conducted
that reveal numerous benefits for the students. According to Thomas Deans, undergraduates who
participated in service learning activities were more likely to become active in community
organizations and to become committed to issues of social justice (4).
While there are numerous reasons why I suggest a critical pedagogy that incorporates
avant-garde studies and service learning, my essay focuses on a few aspects of particular
significance – the relationship between aesthetic form and political and social content found in
avant-garde works, the recuperation of aesthetic negativity into progressive social action, and the
avant-garde project of merging life and art. Because I have not yet had the opportunity to teach such
a course and my ideas remain at a purely theoretical level, it is beyond the scope of this essay to
provide details about the specific nature of student assignments, the logistics of student service
projects, or how a course of this nature might enter into departmental curriculums. My aim, here, is
to position such a course within the frameworks of critical pedagogy, service learning, critical
theory, and avant-garde studies to suggest the pedagogical potential an avant-garde service learning
course could offer.

96
James Berlin views all aesthetics as political and all politics, in some sense, as aesthetic
(58). He argues that narratives inevitably play key roles in how we interpret and respond to social
conditions, and, therefore, maintains that “in choosing the texts we are to read and in providing the
interpretive strategies we are to use in responding to them, English studies plays an immensely
important role in consciousness formation.” (59) The problem he points to, then, is not the
limitation of narrative interpretation, but “that our narrative patterns will be dangerously simplistic,
concealing conflicts and contradictions in the name of self-interests” (59). Although many scholars
critique the transformative potential of critical pedagogy and service learning, the issues of identity
politics, student empowerment, and social and political justice addressed within these pedagogical
models are essential to composition studies. Therefore, the field must begin to rethink educational
theories to develop alternative, and hopefully more effective, approaches. In order to play a vital
role in today’s society, critical writing instructors, I think, need to take more radical approaches
within the classroom to help students negotiate cultural texts to realize the complex dialectics and
contradictions located within their language and aesthetics. Incorporating avant-garde poetics and
art into composition is one approach instructors could attempt to take these first steps toward
rethinking critical pedagogy.
I position the project of incorporating avant-garde studies into critical composition within
the framework of contemporary revisionist accounts of the avant-garde that address both formal
construction and social and political content, with the understanding that radical forms
unquestionably have radical politics. Barrett Watten maintains that “reconciling radical form with
social agency is the burden of any new consideration of the avant-garde” (154). Revisionist
accounts of the avant-garde challenge Peter Bürger’s canonical Theory of the Avant-Garde. Bürger
maintains that with historical avant-garde movements, art entered a stage of self-criticism, and
works of art become critical of the concept of “art as an institution” rather than of the preceding
artistic movements (22). According to Bürger, the avant-garde works opposed both “the distribution
apparatus on which the work of art depends, and the status of art in bourgeois society as defined by
the concept of autonomy” (22). However, he maintains that in attempting to “reintegrate art into the
praxis of life,” the avant-garde revealed “the nexus between autonomy and the absence of any
consequences” (22). Bürger draws a specific distinction between a work’s aesthetic form and social
content, and ultimately argues that avant-garde movements failed because they never were able to
merge art with life (49). Revisionist accounts contest Bürger’s argument by revealing the intrinsic
relationship between avant-garde aesthetics and politics and society.

97
While much of the recent avant-garde scholarship has presented innovative cultural
readings of avant-garde movements and work, Watten suggests that “what is often missing from
these approaches is a specific consideration of literary form; where poetics has generally been taken
to derive from considerations of the way a literary work is made, as a form of representation, these
studies reposition it in relation to social discourses that contextualize it, while ignoring the
concretization of form” (xxv). Interpreting the relationship between formal construction and cultural
content in avant-garde literature and art has numerous implications for critical pedagogy within
composition studies. A primary aim of writing instruction is to teach students the formal
constructions of language and writing, while also teaching critical thinking and critique. Similar to
Watten’s suggestion that most recent avant-garde criticism ignores formal readings of works by
only presenting cultural readings, some scholars suggest that with the emergence of cultural studies
as the dominant paradigm within composition, the attention to language, and its relation to cultural
production and politics, has become deemphasized in writing classrooms with precedence given to
the cultural inquiry of objects or texts (Berlin, Bartholomae). Having students study social and
political contexts through formal aesthetic readings of avant-grade poetry and art to teach critical
writing, therefore, offers vast potential for further exploration.
The form-content relationship within avant-garde works, moreover, underscores many
issues central to critical education. For example, formal and contextual readings address issues such
as politics, subjectivity and objectivity, exile and displacement, revolution, and mass consumption
in relation to language and aesthetics. Consider, for example, Marcel Duchamp’s Readymades, and
how these works could be used pedagogically to explore the formal aesthetic qualities of the objects
in relation to capitalist practices of consumption, and issues of authorship and artistic authenticity.
Helen Molesworth suggests that discussions of Duchamp’s work often focus mainly on the objects’
industrial quality without significant attention to issues of consumerism and mass consumption
(174). She points to the nuanced questions the Readymades, and Duchamp’s use of aliases, raise
about how practices of consumption, such as shopping, and marketing devices, like trademarks and
slogans, influence taste and aesthetic value. She also relates issues of consumerism to the subject-
object relationship:
One consequence of the blurred distinctions between persons and things is that in
consumer culture, what we buy and what we choose comes to stand for who we are.
That is, what we choose is governed by our taste, and taste is one of the strongest
mechanisms through which the consumer subject differentiates herself from others
(and her objects from those of others). The trademark shores up these distinctions,

98
couching nearly imperceptible differences in terms of preference. Duchamp was
one of the first artists to address the thorny issue of preference through his
engagement with shopping and the trademark. (182)
Molesworth examines the formal and social construction of Duchamp’s work to present a critical
analysis of the relationship between consumer subjects and the objects of consumption, and
consumer practices and notions of preference. Using similar strategies to help students develop
formal-contextual readings of avant-garde work in writing exercises and classroom discussions to
explore complex social issues in relation to aesthetic objects, I think, would be a highly innovative
critical teaching approach.
Having students explore social and political issues through aesthetics also has the potential
to change the way students engage with critical education. David Seitz conducted an ethnographic
study of a critical writing course at the University of Illinois at Chicago (UIC). He describes the
institution’s student demographic as predominantly nonmainstream students, which he defines as
students who differ from the “white middle-class frame of reference in higher education” (33).
More specifically, most of the students in his study are from working-class, minority, and
immigrant backgrounds. Seitz’s ethnography focuses on his perceptions of students’ resistance
toward critical education based on his classrooms observations, interviews with students, and
analysis of students’ written essays. He argues that students from nonmainstream backgrounds often
resist critical pedagogy because they view it in direct opposition to their instrumentalist perception
of education – that college provides the means for social mobility and material success.
Seitz’s study suggests that many students perceive education as the acquisition of a type of
social currency that will enable them to become workers, and consumers, and to more fully
participate in the capitalist system; therefore, when they enter into a critical classroom they often
either become overtly resistant to critical education, or learn to negotiate the critical discourse
without acceptance. Referring to four particular students in his study, Seitz maintains:
Because of their historical and material situations that have positioned them, in
varying respects, on the margins of the dominant professional class, they can locate
social contradictions in capitalist formations. Yet it is precisely those situations that
also lead them to question many of the critical readings’ categorical rejections of
capitalism. (103)
Having students examine social and economic inequality, and political resistance to dominant
capitalist structure, through formal and contextual reading of avant-garde poetry and art, I think, has
the potential to effect less resistance from students than traditional approaches to critical pedagogy.

99
Moreover, an avant-garde approach has the potential to allow students from nonmainstream
backgrounds to examine, and engage with, notions of workers’ resistance through aesthetic
mediums. During their exploration of avant-garde art, as students begin to understand that many of
the abstract formal qualities of the works have a radical politics of resistance toward bourgeois
society, and support workers’ revolution, they may interpret the critical discourse much differently,
for example, than they would interpret an essay discussing corporate dominance in global
economics.
My enthusiasm toward an avant-garde service learning pedagogy, ultimately, stems from a
personal interest in social activism, and a utopian view of critical education that it has the ability to
create awareness and effect progressive social change. It is also my feeling, however, that in order
to encourage students to become socially aware, and to question dominant social structures, it is
essential that they develop their own interpretations and perceptions of injustice within social and
political systems. The social negativity within radical aesthetics, therefore, has positive
transformative potential by exposing negativity. I base this idea on Barrett Watten’s notion of “the
constructivist moment,” which he describes as “an elusive transition in the unfolding work of
culture in which social negativity – the experience of rupture, an act of refusal – invokes an
fantasmatic future – a horizon of possibility, an imagination of participation” (191). The
constructivist moment, then, is a moment when aesthetic negativity becomes progress.
To elucidate the constructivist moment, Watten begins with Soviet constructivism, because
it provides a formal model of artistic construction. He views constructivist works as sites that
expose social negativity and create a possibility of progress and action by putting art into
production. According to Maria Gough, “Constructivism in the early 1920s is thus riven – but also,
therefore, united – by a ‘radical break’ articulated in terms of a totalizing shift from the realm of the
‘aesthetic’ to that of the ‘real’” (8-9). Consider, for example, Russian constructivist artist El
Lissitzky’s Proun Room of 1923, a three-dimensional work that combined art and architecture, and
that was simultaneously an aesthetic work and political propaganda. It complicated traditional
artistic categories and also blended Soviet and Russian avant-garde techniques. According to Eva
Forgacs, the Proun Room was constructivist in that Lissitzky envisioned that by creating a new
form he was also creating new materials. At the same time, however, its geometrical shapes also
gave it many Suprematist formal qualities. Forgacs suggests that although the work was intended to
embody the qualities of Malevich’s transcendentalism and constructivist materialism, it was meant
to be progressive by moving past both forms to create something authentic and superior. Forgacs
maintains that it can, therefore, be perceived as “one of the last artworks made in the quest of a

100
utopian totality, although it dates from a moment when the prospect of such a utopian society has
already dimmed” (70).
Watten locates the constructivist moment in relation to a rupture in modernity, and suggests
that within radical aesthetic forms, moments of social rupture simultaneously are moments of
reproduction. Therefore, through the negativity created by rupture, recuperation occurs. He says,
Radical literature and art can be seen as precisely a site for the unveiling of what
eludes representation, and the forms of that perception may become models for
action as well. The constructivist moment is thus a confrontation of aesthetic form
with social negativity, both to disclose the nature of the system and to develop an
imagined alternative. (xxii)
Watten also elucidates a nexus between critical theory, negativity, and action that is highly
significant in relation to recent scholarship in critical education. He suggests that most critical
theory works to disclose negativity and “return this perception to practical action” (xxii).
Most seminal works in critical educational theory rely on utopian emancipatory
philosophies. Paulo Freire’s Pedagogy of the Oppressed, the ur-text in critical pedagogy, poses a
liberationist discourse and a radical message of resistance to institutional and societal oppression.
Freire maintains the possibility of political and social transformation through the development of
critical consciousness. He argues that people can learn to “perceive social, political, and economic
contradictions” and “take action against the oppressive elements of reality” (17). His notion of
critical consciousness, or critical awareness, stems from a dialectical relationship between human
consciousness and the social world. Language is central to Freire’s liberationist discourse, and
particularly the link between the cultural practices of language and political and social agency and
activism. Freire’s work struck a chord with the liberal 1960s generation of American educators,
and many composition scholars worked to incorporate Freire’s pedagogy into writing classrooms.
With the postmodern turn in education, however, scholars have begun to question whether
Freire’s utopian perspectives are possible, and whether these views are still applicable to
contemporary education philosophy. The growing skepticism toward Freirian ideals of liberationist
education, I believe, marks a shift within critical education in which the possibilities of revolution
are being abandoned in favor of a more complacent acceptance that capitalism has triumphed, and
that the culture industry “now impresses the same stamp on everything” (Adorno and Horkheimer
29). Recently, some critical educational theorists have begun to present new examinations of critical
education theory in relation to critical theory, particularly the works of Adorno, Horkheimer,
Habermas, Marcuse, and Benjamin (Morrow and Torres, Gur-ze’ev, Davis). Ilan Gur-Ze’ev

101
maintains that the critical theory of the Frankfort School has significantly influenced educational
philosophy, particularly many of the key figures in critical education theory such as Freire, Giroux,
Peter McLaren, and Kathleen Weiler. Gur-Ze’ev argues, however, that “the second stage in the
development of Adorno and Horkheimer’s thought was disregarded by most philosophers of
education and did not illumine the paths chosen by the various versions of critical pedagogy” (17).
Moreover, he suggests that the second-stage developments of Adorno and Horkheimer’s critical
theory “could have been and still are potentially open to the creation of a genuine counter-
educational struggle – that went well beyond the prospects of hegemonic critical pedagogy” (18).
In the first stage, according to Gur-Ze’ev, Adorno and Horkheimer offer “a promising,
progressive, revolutionary theory of knowledge and of overcoming oppressive social realities and
ideological manipulations” (18), and these utopian ideals of revolution have been incorporated into
the framework of critical pedagogical models. However, Gur-Ze’ev argues that in the second stage
of development, Adorno and Horkheimer completely abandon their utopian position: “They rejected
the entire tradition, which supported and manifested optimism about the possibility of nonrepressive
revolution and an unproblematic emancipatory critique” (20). The second stage of Adorno and
Horkheimer’s critical theory points to a negative utopianism, which Gur-Ze’ev suggests is essential
to consider in contemporary attempts to rethink critical pedagogy. He says,
It is not only that Giroux, like McLaren, Weiler, Lather, Shor, and other prominent
American thinkers in the tradition of critical pedagogy – and to a certain degree
also Paulo Freire – disregarded the mature work of Adorno and Horkheimer. […]
They disregarded the complementary, skeptic-pessimistic-antifoundationalist
aspects of critical theory, which is of vital importance even for the understanding of
the immanent dialectic of critical theory in its first stage of development. (22)
Gur-Ze’ev suggests that educational theorists have been too simplistic in their adaptations of the
utopian critical theories, particularly Marcuse’s radical theories, into philosophies of education
without taking into account the implications of negative critical theory and critical theorists’
skepticism toward or rejection of revolution. The fact that Gur-Ze’ev locates the potential for a
renewed approach toward critical educational theory not simply within the second stage of Adorno
and Horkheimer’s critical theory, but within the dialectical relationship between utopian and
negative critical theory, is highly significant. It suggests that new considerations of critical
education need to take into account dystopian theories without rejecting utopian notions of
revolution.

102
In The Concept of Modernism, Eysteinsson refers to modernism as a “negative practice.”
He suggests that rather than a disruption in modernity, modernism is an “attempt to interrupt the
modernity that we live and understand as a social, if not, ‘normal’ way of life” (6). The notion of
modernism as a practice of interruption helps to elucidate the reciprocity between modernism and
the avant-garde. Eysteinsson examines the tensions between these two terms and the way in which
they often become either conflated or opposed to explore how they may reveal a “nontraditional
textual practice” (147). He considers negativity to be a textual practice used by modernists and
avant-gardes. He associates radical aesthetics with rejection of bourgeois norms, thus providing a
framework for revisionist readings of the avant-garde that discuss social negativity in relation to a
work’s formal construction. For example, T.J Demos interprets the use of poetic conventions such
as syllabic fragments and repetition, in Hugo Ball’s sound poetry, as expressions of the negativity
associated with exile and displacement: “When Ball’s poetry implies trauma, expressed through
speech, it is also marked by a ‘senselessness’ that reflects an expressive incapability” (8).
Eysteinsson also relates aesthetic negativity to the larger avant-garde mission of merging life into
art (169), which suggests that confronting social negativity through aesthetic practices was central
to this mission. It is here that I see a direct connection between the constructivist moment and
avant-garde service learning. By using avant-garde aesthetics to expose social negativity, and
putting art into production within the local community, progress and recuperation become possible.
Historically, the field of composition emerged from a desire to teach students correctness in
writing through grammar and mechanics, and has steadily undergone a progressive transformation
to perceive writing instruction as a form of social and political action. Along these lines, many
composition programs have begun implementing service learning in combination with critical
pedagogy into their curricula. Scholars suggest that service learning provides educational benefits
that fulfill a number of needs, both for the students themselves and the larger community, beyond
that of a traditional academic model (Deans, Cushman). Ellen Cushman examines service learning
and activist research as models that can be used by intellectuals to explore zones outside of the
university to better contribute to public needs. She believes public intellectuals create progressive
social change by redefining what it means to be a public intellectual in broader terms and
overcoming the “ivory tower isolation that makes so much current intellectual work” (328). Service
learning and activist research, according to Cushman, work to bridge the gap between university-
based knowledge and community-based knowledge, which she sees as equally valuable: “Public
intellectuals can use service learning as a means to collapse harmful dichotomies that traditional

103
university knowledge espouses: high culture/low culture; literature/literacy; objective/subjective;
expert/novice” (333).
However, a major concern posed in much of the recent literature suggests that the dominant
version of service learning often positions community students in a privileged way and evokes a
missionary ideology of service rather than inquiry (Cushman, Flower). Linda Flower argues that for
service learning to succeed, it needs to be viewed as “intercultural inquiry” instead of outreach, and
describes the ideal model of service learning as one that allows for multiple voices and negotiated
meanings to occur in practice (183). Flower maintains that community work must develop as
collaboration between the students and community participants. I suggest that the use of avant-
garde studies, through students’ exploration of radical aesthetics in poetry and art within the
classroom, could be conducive to service learning projects where students collaborate with
community partners to create conceptual artworks and installations. The artistic production would
encourage collaboration and inquiry between students and participants, and institution and local
community, and, moreover, an approach to radical education that has numerous potential
advantages.
Cushman refers to rhetoricians as agents of social change (Rhetorician). I realize that
suggesting the dissemination of avant-garde works into college composition may seem antithetical
to avant-garde principles of resistance from the dominant culture. It is my belief, however, that
avant-garde studies entering into composition programs would not only offer an alternative
approach to critical pedagogy, but would also actively work from within dominant institutions
toward avant-garde goals of resistance. A course such as I describe, would, in fact, put avant-garde
practices to work within the academy and local community.
Aesthetic resistance to mass culture, technological modernity, and political hegemony, and the
merger of art into life have been continuing projects of avant-garde movements. A critical
pedagogical approach to composition using service learning and avant-garde studies methods would
work toward these missions. Through academic inquiry into avant-garde work exploring both
formal and social construction within the writing classroom, and production of avant-garde-inspired
art projects within local communities, an avant-garde service learning pedagogy would function in
direct opposition to Bürger’s notion that the avant-garde failed, and reveal, in fact, that the avant-
garde continues to play a vital role in contemporary resistance movements.

104
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106
O sentido da (de)formação no horizonte do precário

Caroline Mitrovitch
Unesp – Presidente Prudente

A ousadia de assumir o leme e guiar a história para metas bem definidas1 deu ao homem
moderno a “forma” acabada da realização de sua idealização: figuras disformes e indeterminadas
como o mosaico e o labirinto, personagens não menos híbridas e fantásticas, como o Angelus
Novus, o corcunda anão, o fantoche vestido à turca. O ideal de Emílio realizou-se na “formação” de
um modelo no mínimo “estranho” – diríamos até ridículo –, longe de representar o emblema
moderno da sonhada perfectibilidade humana: um ornitorrinco2. À imagem contemporânea do
homem “bem formado” corresponde a aparente fragilidade dessa figura da qual se diz “de-
formada”. Nesta fragilidade, entretanto, está a potência e a força da história: quando o ideal de
perfectibilidade é atingido seu lugar é a nudez das contradições imanentes à própria espessura do
solo material da história.
“Hoje em dia é prova de honradez confessar nossa pobreza” (Benjamin, Experiência e
Pobreza, OE I, 1994, p. 115). Walter Benjamin escreve estas palavras nas primeiras décadas do
século XX, quando o admirável avanço tecnológico, com possibilidades otimistas para a efetiva
democratização da cultura, coincidiu com o advento da ditadura. Experiência e Pobreza é escrito
em 1933, um período que corresponde aos anos de crise, de 1929 a 1934, de plena dominação
nazista, em que é evidente o colapso do tradicional ideal burguês de formação em uma realidade
verdadeiramente deformada: “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas do que a
guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a
experiência moral pelos governantes” (Benjamin, Experiência... O I, 1994, p. 115). Este sentimento
doloroso aparece como inconsolável no texto, é verdade, mas as reflexões ali presentes não visam,
como seria de se esperar, o lamento e com ele a ânsia pelo resgate da formação burguesa;
manifestar o gestus da reflexão sobre o próprio “fazer”, isto é, sobre a própria atuação dos ”homens
implacáveis” desse tempo de crise, criadores e construtores que operam a partir das ruínas, da
destruição, em uma palavra, de “tabulas rasas”, parece ser o objetivo de Benjamin nesse texto.

1
Conferir Cassirer, 1997, pp. 36-32.
2
Referimo-nos aqui diretamente às reflexões de Oliveira, F. O ornitorrinco (2003). Esta fragilidade, este
ridículo, representa, na verdade, a força da realização da história quando seu solo é encarado de frente, sem os
subterfúgios dos ideais.

107
Nesse sentido, pretendemos mostrar no texto a seguir que Experiência e Pobreza pode ser
lido como uma reflexão filosófica sobre as condições e o sentido da formação no século XX. O
próprio autor parece orientar seu trabalho a partir da seguinte pergunta: “Será que, do processo de
decadência da sociedade democrática, ainda é possível resgatar os elementos que se relacionam com
seus primórdios e seus sonhos: a solidariedade com uma sociedade futura, que seria a
humanidade?” (Benjamin apud Bolle, nota 146, 2000, p. 176). Diante desta pergunta, sugerimos
uma interpretação desse texto a partir da análise de duas noções caras ao pensamento benjaniniano:
as idéias de utopia e de nostalgia. São essas duas noções que guiaram nossa perspectiva de análise
de Experiência e Pobreza em direção as Teses de Sobre o conceito de história (1940),
interpretando-as como seu pano de fundo.
*
“Está claro que as ações da experiência estão em baixa” (Benjamin, Experiência... OE I,
1994, p. 114). De fato, este quadro arrasador é descrito no texto como uma perda dolorosa, mas ele
anuncia, ao mesmo tempo, a radicalidade de uma outra realidade: nas palavras de Benjamin, “algumas
das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão
radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século” (Benjamin, Experiência...
OE I, 1994, p. 116). Esta radicalidade pode ser traduzida em uma afirmação não menos contundente e
difícil: o compromisso definitivo do homem moderno com sua precária atualidade. O presente
histórico é afirmado em detrimento de um passado que se acumula como peso morto nas costas da
humanidade e de um futuro que aponta para um telos irrealizável. Na Tese XVI encontramos a nítida
configuração deste presente: ele não é transição, “mas pára no tempo e se imobiliza” (Benjamin,
Sobre o conceito de história, Tese XVI, 1994, p. 230). Desde os textos de juventude3, Benjamin
preocupa-se em elaborar um conceito de experiência articulado à construção de novas categorias de
temporalidade, relacionadas à valorização do presente e, por conseguinte, à crítica das concepções
tanto de um passado eternizado quanto de futuros que cantam. Já no texto de 1913, intitulado
Experiência (Erfahrung), Benjamin procura pensar um novo conceito de experiência que se reconcilie
com a perspectiva do novo, recuperando sua dimensão original de tentativa e de risco. Contra a
experiência paralizante e arbitrária dos mais velhos, o autor propõe “eine andere Erfahrung” (uma
outra experiência) que questionará o passado como repetição mitológica do mesmo.
Reconciliar-se com a perspectiva do novo é o desafio que Benjamin coloca para seu
presente histórico; esta valorização do presente é afirmada neste texto de 1933 através de um

3
Referimo-nos aos textos A vida dos Estudantes (1915) e Experiência (1913).

108
conceito “positivo de barbárie”: “a serviço da transformação da realidade, e não de sua descrição”
(Benjamin, Experiência... OE I, 1994, p. 117), os novos bárbaros “são solidários dos homens que
fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia” (Benjamin,
Experiência... OE I, 1994, p. 119). Esta “nova miséria”, diz Benjamin, talvez possa dar mais
humanidade à massa. Nada mais humano, afinal, do que o riso evocado por Benjamin em seu texto4.
Esta será a honestidade e a esperança deste homem moderno destituído de tradição: rejeitar a
imagem do homem tradicional, solene e nobre, para saudar alegre e risonhamente o contemporâneo
nu.
É interessante notar que a ênfase positiva concedida à nudez de uma realidade de ruptura
com a tradição não leva Benjamin a esquecer-se do caráter manipulador e negativamente bárbaro
dessa mesma tradição. Ao lado de sua atenção para as mudanças históricas libertadoras encarnadas
pelo advento de uma “barbárie positiva” – como, por exemplo, o colapso da formação tradicional
em seu caráter classista e elitista em direção à possibilidade de uma cultura emancipatória das
massas – o crítico não perde de vista a continuidade da sociedade burguesa. Como destaca Willi
Bolle,

Diferentemente de muitos outros, que caminharam no ritmo dos novos tempos, ele
[Benjamin] percebeu, além das mudanças evidentes de superfície, a continuidade do projeto
histórico de uma classe. Vista assim, não só é burguesa a formação tradicional, como
também a cultura de massas que a substitui; em suma, o processo de modernização como
um todo (Bolle, 2000, p. 149).

Com efeito, “o inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, Sobre o conceito... Tese IV,
OE I, 1994, p. 224) e, com ele, o cansaço, o conformismo, o desânimo, a falta de forças, enfim, o
sonho de uma vida realizada na existência fácil do camundongo Mickey. Ostentando promessas e
ideais da salvação da humanidade que não se cumprem na prática, a burguesia exibe a decadência

4
O riso pode ser interpretado ao lado da noção de “distração”, vale dizer, “dispersão”. Essas noções, caras ao
pensamento benjaminiano, aparecem claramente no texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” (1936). Trata-se de uma percepção coletiva, que se contrapõe à percepção de recolhimento e
contemplação da arte aurática. Nesse sentido, Rouanet destaca em seu livro O Édipo e o Anjo o quanto o
desaparecimento da aura modifica completamente a função social da arte, por isso esse desaparecimento não
deve ser encarado apenas como fato estético, mas sim muito mais como fato político. Segundo Rouanet
(1981), “em vez de se fundar no ritual, ela [a arte] se funda numa outra práxis: a política”. Conferir também
página 13 deste texto, ali desenvolvemos uma reflexão sobre a “percepção do limiar” na qual sobressaem
outros sentidos para os termos distração e dispersão que podem ser interpretados ao lado da idéia de riso.

109
de seu projeto quando, ao subir vitoriosa nos palcos da história, rompe seus compromissos com
aqueles que a colocaram no poder.
Desse modo, ao mostrar a discrepância entre promessas e realidade, Benjamin desconfia da
utopia como ideal a se atingir. Afinal, a sociedade burguesa não realizou seus ideais. O projeto da
formação foi desmentido e desacreditado uma vez que o que Benjamin tem diante dos olhos é a
verdade do entre Guerras Nazista, o qual transformou a história da cultura em história da barbárie e
da violência.
Diante deste cenário, este texto de 1933 surpreende pela atualidade de suas perguntas: que
tipo de conhecimento do próprio tempo a geração atual é capaz de formular? Que tipo de
experiência somos capazes de transmitir à geração futura como tradição e memória? Enfim, o que
nos resulta desta anunciada pobreza de experiência presente?
Benjamin responde em seu texto: (Benjamin, Experiência... OE I, 1994, p. 116) partir para
frente, começar de novo, contentar-se com pouco, construir com pouco – a partir de uma “tabula
rasa”. Encarar a ausência de autoridade e tradição no horizonte contemporâneo não significa apenas
o perigo do esvaziamento da dita história, fazer “tabula rasa” pode significar também, nas palavras
de Gagnebin,

uma chance, tênue mais real, de formação de um mundo neutro, despojado, com menos
privilégios certamente, mas, talvez, com mais nitidez (...) Em vez de incitar ilusões
consoladoras, (...) [esta nova barbárie] choca e provoca por seu gesto ao mesmo tempo
realista e denunciador. Daí, aliás, os escândalos que causa num público que preferia ser
reconfortado a ser abalado (Gagnebin, 1999, p. 99).

É verdade que a nova sensibilidade apresenta-se para Benjamin em sua ambigüidade,


ilustrando o triunfo desumanizante da reificação iluminista e, ao mesmo tempo, anunciando uma
perspectiva de liberdade. Ler Experiência e Pobreza ao lado de Sobre o conceito de história é a
tentativa que encontramos de aprofundar essa contradição em direção ao seu fundamento, a saber,
nas palavras de Benjamin, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie” (Benjamin, Sobre o conceito... Tese VIII, OE I, 1994, p. 225). Rouanet faz
uma importante consideração sobre esse tema, diz ele:

O homem novo tem que emergir das ruínas do antigo. A cultura tem sido, historicamente, a
cultura dos vencedores. O esvaziamento da tradição não é necessariamente um mal, pois

110
enquanto arquivo da injustiça, ela contribui, de certo modo para perpetuá-la (Rouanet,
1981, p. 53).

Ao mesmo tempo, tentar definir a barbárie positivamente é uma atitude de risco, afinal, o
horizonte no qual Benjamin encontra-se é o da instauração da obscura ascensão da barbárie nazista.
Daí a vertigem que a leitura de Experiência e Pobreza provoca, pois exatamente num mesmo
instante, Benjamin critica com veemência tanto a cultura burguesa quanto os perigos de dissolução
da tradição numa revolução cultural fantasmagórica e galvanizada – são esses riscos que fazem com
o autor use esta noção de “barbárie positiva” apenas neste texto de 1933 (Rouanet, 1981, p. 52-53/
Gagnebin, 1999, p. 62).
Experiência e Pobreza é um escrito que encarna sem mediações a coexistência de posições
antitéticas por parte do autor. Esse texto parece incorporar radicalmente todos os antagonismos e
contradições da Modernidade. Se aprofundarmos essas ambivalências encontraremos seu
fundamento em uma realidade em si contraditória: o século XX, tampouco o anterior e o posterior,
não soube corrigir as discrepâncias entre as enormes possibilidades abertas pelo progresso da
técnica e a falta efetiva de criação de um mundo melhor. De fato, ao incorporar todos os impulsos
importantes de seu tempo, Benjamin expõe-se radicalmente aos antagonismos próprios do projeto
histórico chamado “modernização” – contraditório, inacabado, mal resolvido. Com isso, este autor
traduz vertiginosamente com esse texto sua luta pela sua experiência formativa no confronto com as
perguntas abertas de seu tempo. Nesse sentido, Bolle considera: “a imagem (Bild) de sua época não
era algo exterior a Benjamin, ela impregnou sua vida e obra como Formação” (Bolle, 2000, p. 149).
Portanto, acrescentando uma dose a mais de dialética ao vertiginoso texto em questão,
parece-nos ainda que ele visa, sim, preservar uma espécie de “eidos imortal” da formação, em seu
sentido pleno de Bildung (Bolle, 2000). Ao lado das perguntas apontadas acima como atuais, as
quais certamente podem corroborar essa afirmação, uma outra pergunta ainda mais importante
parece estar implícita neste escrito: ainda é possível extrair potenciais de sentido da tradição
cultural? Se levarmos em consideração o perigo de dissolução da cultura sentido por Benjamin, esta
pergunta torna-se ainda mais importante.
Para tentar abordá-la, partamos de um breve e decisivo trecho de Eduard Fuchs, o
colecionador e historiador (1937): “a história da cultura aumenta o peso dos tesouros que se
acumulam nas costas da humanidade. Mas não lhe dá a força para se livrar desse peso e tomar esses
tesouros em mãos”. Estas palavras tornam-se decisivas mais tarde nas Teses bem como parecem
terem sido extraídas já em 1933 de Experiência e Pobreza, pois o desafio dos “construtores

111
implacáveis” evocados neste texto é justamente este: tomar nas mãos a tradição, manter vivos seus
potenciais de sentido, para que eles sejam atualizados na “feitura” do presente “deformado”, ou
seja, para que eles estejam “a serviço da transformação da realidade” (Benjamin, Experiência... OE
I, 1994, p. 117). Para ter os tesouros da tradição nas mãos é preciso tomá-los das garras do
vencedor. Contra o mito da marcha triunfal do progresso e contra a imobilização vazia do
historicismo, Benjamin evoca, tanto nas Teses quanto em Experiência e Pobreza, sua geração – e,
não seria ousado afirmar, também seus pósteros – para o que considera a tarefa da
contemporaneidade: “originar um verdadeiro estado de exceção”5 (Benjamin, Sobre o conceito..
Tese VIII, OE I, 1994, p. 226).
Construir um conceito de história que corresponda a essa verdade, tal como quer Benjamin,
significa criticar o conceito chave da historiografia progressista burguesa, a saber, o conceito de
empatia (Einfühlung). Quando o ideal de perfectibilidade encontra-se prostrado no chão, como
sugerir a identificação afetiva com o que é da ordem do destroço, da ruína, do lixo? A tradição
daqueles que são espezinhados pelo cortejo triunfal dos dominadores tem como tarefa repensar um
conceito de formação que não tenha seu fundamento em um conhecimento incapaz de oferecer ao
homem a completude e a transfiguração de seu próprio ser, mas sim na nudez da condição
contemporânea, isto é, na capacidade de resistir e de sobreviver à verdade segundo a qual “os
episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis”. Um acúmulo de pequenas
sobrevivências, isto é resistência, este, portanto, é o sentido da experiência formativa benjaminiana:
contra o conceito de empatia Experiência e Pobreza é o emblema da luta pela vida em sua
capacidade de sobrevivência e de resistência.
Estranha definição de um projeto de formação cultural. Ao contrário da tradição alemã da
Bildung de meados do século XVIII a meados do século XIX6, que a compreendia como privilégio
de uma classe, a burguesia culta e de posses, a experiência benjaminiana propõe-se como formação
das massas e formação dos operários como oposição, protesto e resistência contra o cortejo triunfal
da cultura burguesa. Um escrito que nos parece interessante para pensarmos a oposição empatia

5
Sobre o conceito de “estado de exceção” remetemos o leitor a Agamben, O Estado de exceção, 2004; e a
tese de doutoramento de Dymetmen, O período Weimeriano como uma hermenêutica do excesso: o caso de
Walter Benjamin e Carl Schmitt”, 2002. Na análise que aqui propomos, referimo-nos a este conceito
unicamente sob a perspectiva da tradição dos oprimidos e, nesse sentido, como contraponto à noção de
empatia.
6
Conferir Elias, O processo civilizatório, 1994, pp. 30-50.

112
versus resistência7, e que vem complementar diretamente as provocações de Experiência e Pobreza,
é um texto escrito em 1929, intitulado Uma Pedagogia comunista.

(...) concidadão útil, socialmente confiável e ciente de sua posição. Eis o caráter
inconsciente da educação burguesa, ao qual corresponde uma estratégia de insinuações e
empatias (...) a burguesia vê sua prole enquanto herdeiros (...) A criança proletária, em
contrapartida, nasce dentro de sua classe. (...) e não no centro da família. (...) e aquilo que
ela deve tornar-se não é determinado por nenhuma meta educacional, mas sim pela situação
de classe. Essa situação penetra-a desde o primeiro instante, já no ventre materno, como a
própria vida, e o contato com ela está diretamente relacionado no sentido de aguçar, desde
cedo, na escola da necessidade e do sofrimento, sua consciência de classe. Pois a família
proletária não é para a criança melhor proteção contra a compreensão cortante do social do
que seu puído casaco de verão contra o cortante vento de inverno (Benjamin, Uma
pedagogia comunista, 1984, p. 89-90).

Contra o sentido de perfectibilidade o “estado de exceção” se baseia no estado de


necessidade; quando a cultura tradicional, centrada no livro, é arrastada para a rua num dia de
inverno cortante. É neste “estado de exceção” que se baseia a “escola de uma nova forma”
(Benjamin, Rua de mão única, OE II, 1993, p. 28): o perigo de se acumular um saber livreco morto
em detrimento de uma atitude de abertura e de prontidão para se defender de um processo de
galvanização e conformismo cultural, social, histórico. Benjamin quer acertar as contas com uma
escola que finge formar, mas não forma, ao contrário, “transmite um saber que não está convencida
de que é necessário” (Benjamin apud Bolle, 1997, p. 11). Como comenta Bolle (1997) em seu texto
intitulado A idéia de formação na modernidade, Benjamin critica um saber que não se baseia em
uma autêntica necessidade, critica um saber fingido, que não pode cumprir com sua função de
indagação sobre os valores que queremos deixar para as gerações futuras.
O “estado de exceção” se baseia na “utilidade” dos saberes para o mundo. A expressão
“feitura” do presente poderia ilustrar a contraposição entre a idéia de um “fazer” e a idéia de formar
e formação. Um “fazer” que é da ordem da construção imediata, dos fatos, da concretude, ou seja,
do inacabamento, da incompletude, da inconclusão. A “escola de uma nova forma” ensina uma

7
Gostaríamos de registrar nosso agradecimento às considerações da professora Jeanne Marie Gagnebin por
ocasião da XXVIII Jornada de Estudos Teoria Crítica e Educação – realizada em agosto de 2005 – acerca da
contraposição empatia/ resistência.

113
espécie de “refundição das formas”: perdida a tradição, não se trata mais de substituir uma “forma”8
característica a um determinado período por uma nova forma, a própria idéia de “forma” parece ter
transbordado seus limites. Em meio ao emaranhado de teias e labirintos, mosaicos e ruínas, o
cenário da vida moderna, a cidade, é palco tanto de conflitos sociais e revoltas quanto de espaços
lúdicos, labirintos do inconsciente. Uma passagem – dentre tantas – de Rua de mão única (1928) é a
ilustração perfeita dessa imagem:

Muitos se queixam dos mendigos do Sul, esquecendo-se de que sua permanência diante de
nosso nariz é tão legitima quanto à obstinação do estudioso diante de textos difíceis. Não há
sombra de hesitação, não há o mais leve querer e pensar, que eles não farejassem em nossa
fisionomia (Benjamin, Rua de... OE II, 1993, p. 68).

Esta passagem ilustra uma imagem sublime, sabiamente interpretada por Bolle:

o olhar livresco por excelência, o do estudioso, cruza-se com o olhar fisionômico da


verdade, cuja formação se deu na escola da vida (...) A rua se tornou, para o cidadão de
hoje, um texto de decifração tão ‘difícil’ como sempre foi para os analfabetos a cultura
letrada (Bolle, 2000, p, 288).

A partir da realidade efêmera e transitória de uma grande cidade configura-se para


Benjamin a importância do cotidiano. O livro Rua de mão única, escrito em 1928, já aponta para
esta verdade incontestável: Benjamin quer registrar a experiência (Erfahrung) da metrópole, em
outras palavras, o cotidiano deste gigantesco aparelho da vida social. Sendo assim, como pensar em
formas e estruturas se o cotidiano das grandes cidades é a representação nua, cruel, de labirintos,
mosaicos, alegorias, ruínas; imagens, portanto, que correspondem a algo “sem forma”, ou ainda,
que têm todas as formas, e, assim, não aceita de modo algum uma estrutura que as enquadrem? Ora,
se assim o é, pode o cotidiano ser caracterizado como uma hostilidade frente ao próprio “princípio
da formação” em si mesmo?
Para abordar essas perguntas é preciso recorrer a dois caminhos distintos: primeiro,
relacionar, mais uma vez, o ensaio Rua de mão única com Experiência e Pobreza, pois acreditamos
que este escrito também pode ser lido como a expressão dramática da “construção da vida” no

8
Eidos em contraposição a palavra “imagem” (Bild) que abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e

114
horizonte do precário contemporâneo – talvez ainda mais dramático que o primeiro. O “fazer”
benjaminiano constrói-se a partir da tensão entre o conceito de Formação e o conceito de
“construção da vida”. Nas palavras de Benjamin, “a construção da vida está muito mais no poder
dos fatos do que de convicções (...) cultivar as formar aparentemente irrelevantes – que
correspondem melhor à sua influência em comunidades ativas que o gesto universal do livro (...) só
essa linguagem de prontidão mostra-se a altura do momento” (Benjamin, Rua de ... OE II, 1993, p.
11). A construção da vida a partir da verdade das pequenas sobrevivências, a partir da proteção de
um puído casaco de verão no frio cortante do inverno, ou seja, a partir do aparentemente irrelevante
e “de-formado” cotidiano das histórias individuais. Com efeito, esse é o poder dos fatos, pois o
autor sabe que se engaja numa luta de antemão perdida, afinal, como escrever – e viver – um
“romance de formação” num mundo dramaticamente regido pelas coisas, um mundo regido por
ruínas e fantasmas? A vertigem de Experiência e Pobreza e a fragmentação turbulenta de um
cotidiano aparentemente irrelevante de Rua de mão única tentam traduzir as formas culturais da
Modernidade: do gesto universal do livro para as imagens de atuação dos sujeitos na história real de
uma grande cidade. A própria imagem do escritor-intelectual registra este gesto de atuação: em seu
papel de “o escritor da Modernidade”, ele descobre-se ator e elemento deste meio caótico da Grande
Cidade, sua tarefa, portanto, não poderia ser transformar o mundo ou mesmo a República de
Weimar, mas a si mesmo. A construção da vida está no poder dos fatos e não da idéias e ideais de
“revolução”, ou seja, Benjamin ensina que a sociedade sem classes não é a meta final do progresso
histórico, mas sua freqüentemente fracassada e, no entanto, realizada interrupção (Unterbrechung).
Construir um conceito de história fundado nesta interrupção – ou mesmo na paralização (Stillstand)
– do progresso significa lutar pela reforma do indivíduo, sem a qual, vale dizer, a transformação
social não existe (Bolle, 2000, p. 296). Assumir a pobreza de experiência presente significa,
portanto, conceber o indivíduo, e não a humanidade, como meta da revolução e também da
formação cultural contemporânea.
Feito isso, um segundo caminho aponta uma outra direção, diante da pergunta acima
mencionada, é preciso considerar: Benjamin nunca deixou de assumir sua formação burguesa,
tendo, portanto, poucas ilusões quanto aos limites impostos por essa condição. Sendo assim, para o
escritor, resgatar o potencial crítico do ideal de formação burguês significava resgatar a memória
revolucionária da classe burguesa e assim servir à causa operária. No entanto, como considera
Bolle, “Benjamin jamais pretendeu transformar-se num mestre da ‘arte proletária’, como comentou

“modelo” (Vorbild). Consultar Gadamer, 1997, p. 49.

115
ironicamente tentativas equivocadas de colegas de profissão. Distanciando-se da estratégia da
esquerda populista, viu como tarefa do escritor e artista burguês a atuação “em pontos importantes
do espaço imagético” (Bolle, 2000, p. 166)9.
Bolle remete-nos aqui ao texto de 1929 O surrealismo – o último instantâneo da
inteligência européia, mas também poderíamos ler Experiência e Pobreza ao lado de dois outros
textos de Benjamin: o adendo teórico à peça O que os alemães liam enquanto seus clássicos
escreviam, intitulado Dois tipos de popularidade, de 1932, e O autor como produtor, de 1934. As
referências a estes três textos deixam claro que o autor não está interessado em assinar manifestos,
ou seja, ele não pretende um ativismo de superfície, seu objetivo é propor uma auto-avaliação, um
gestus de reflexão sobre o próprio “fazer” daqueles que se viram traídos pela sua própria classe.
Como lembra-nos Bolle, esta é uma atitude básica da crítica, o gestus auto-reflexivo é um legado da
Aufklärung10. A opção pelo trabalho intelectual de crítica da cultura já ilustra sua adesão aos ideais
de autonomia e irreverência legados pela Aufkärung. Escovar a história a contrapelo é, então, o
sentido da utopia benjaminiana. Não se trata de reencantar o mundo, a concepção de utopia em
Benjamin é transmutada na necessidade do despertar e da ação. Ao contrário de Proust, Benjamin
não busca escapar ao tempo e à morte, ele está mais próximo da lição baudelairiana, de tal modo
que podemos situar seu pensamento na luta, perdida de antemão, contra o tempo devastador.
Benjamin busca uma intensificação do tempo, isto é, “ele busca no passado os signos de uma
promessa a respeito da qual ele hoje sabe se o futuro a cumpriu ou não, a respeito da qual ele se
pergunta se cabe ainda ao presente realizá-la” (Gagnebin, 1999, p. 89). Essa busca de um “futuro
anterior” caracteriza o sentido da utopia benjaminiana11; trata-se de uma consciência altamente
política, ela completa também o sentido da nostalgia benjaminiana: manter viva a tradição sabendo
da impossibilidade real de volta ao passado. Com efeito, fazer explodir a nostalgia sem deixar

9
Segundo Benjamin, “organizar o pessimismo significa simplesmente extrair a metáfora moral da esfera da
política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem. Mas esse espaço da imagem
não pode de modo algum ser medido de forma contemplativa (...) Na verdade, trata-se muito menos de fazer
do artista de origem burguesa um mestre em ‘arte proletária’ que de fazê-lo funcionar, mesmo ao preço de sua
eficácia artística, em lugares importantes deste espaço de imagens (Benjamin, O surrealismo..., OE I, 1994, p.
34).
10
De acordo com Hans-Georg Gadamer, o cultivo de si é uma característica que integra, estreitamente, o
conceito de Bildung moderno, fundamentado no princípio kantiano do “dever para consigo mesmo”,
designando a maneira humana – em contraposição com uma formação natural – de aperfeiçoar suas aptidões a
faculdades (Gadamer, 1997, p. 49).
11
Ao mesmo tempo, como destaca Gagnebin, “Benjamin suspeita da coincidência precipitada entre o “real” e
o “utópico”, que faz esquecer a dimensão crítica da ação política, a única, segundo ele, a justificá-la”
(Gagnebin, 1982, p. 28). Estamos longe também de pensar a experiência benjaminiana, em seu caráter
formativo, em termos pragmáticos.

116
escapar a tradição, sem deixar escapar o passado, eis o modo como Benjamin propõe o resgate do
potencial crítico da Bildung.
Sobre este aspecto, Gagnebin esclarece-nos:

A lembrança do passado desperta no presente o eco de um futuro perdido do qual a ação


política deve hoje dar conta. Certamente o passado já se foi e, por isso, não pode ser
reencontrado “fora do tempo”, numa beleza ideal que a arte teria por tarefa traduzir; mas ele
não permanece definitivamente estanque, irremediavelmente dobrado sobre si mesmo;
depende da ação presente penetrar sua opacidade e retomar o fio de uma história que havia
se exaurido (Gagnebin, 1999, p. 89).

O passado não é mais o ponto fixo em torno do qual gira o presente, é o presente que se
imobiliza, por um instante, atraindo o passado para gravitar em torno de si. Tampouco a reflexão
sobre o futuro da sociedade burguesa interessa a Benjamin, “aceitar” a pobreza de experiência
presente implica “realizar um percurso oposto ao historicismo – que quer dar movimento ao que é
articulação historicista do passado. Em contrapartida Benjamin quer parar o que está em
movimento, em falso movimento, bloquear o trem do progresso” (Matos, 1993, p. 118).
Nesse sentido, a revolução para Benjamin não é fundada sobre o índice temporal da
continuidade, da progressão. Ela não é a locomotiva da história, como afirma o autor em um célebre
trecho das Passagens, ao contrário, “[as revoluções são] o freio de emergência da humanidade que
viaja neste trem”. A dialética benjaminiana, portanto, não está fundada em conceitos e idéias, ela
aparece sob a forma de imagens: em Benjamin a imagem é a dialética em repouso. Seja destacado:
o que está por trás desta dialética é uma experiência do tempo oposta a uma idéia eterna do passado,
oposta também ao esforço infinito de moldar o real segundo um ideal de futuro transcendente. Com
efeito, a sociedade sem classes não é a meta final do progresso histórico, ela é fundada em seus
fracassos e desgraças, quer dizer, são esses os momentos de paralização (Stillstand) e interrupção
(Unterbrechung) da continuidade da dominação burguesa. Tomar nas mãos o contemporâneo nu
não é seguir a trajetória do progresso, mas sim atender à súplica dos derrotados revelando “a fácies
hippocratica da história como [...] a história mundial do sofrimento” (Rouanet, 1987, p. 45). Ao
assumir a “experiência da pobreza” da modernidade o texto Experiência e Pobreza já aponta para a
verdade segundo a qual uma história verdadeiramente humana deve estar mais voltada para os
sofrimentos do passado que para as promessas de futuro – verdade essa expressa mais tarde nas
Teses.

117
É assim que para este autor a reconstrução da experiência só poderá efetivar-se se ela for
acompanhada de uma nova forma de pensarmos o tempo. Só mudando radicalmente nossa maneira
habitual, conceitual, de pensarmos o tempo poderemos reconstruir a possibilidade da experiência
formativa contemporânea no “horizonte do precário”. O “tempo do agora” (Jetztzeit) aparece em
Experiência e Pobreza como emblema da “prontidão de espírito” necessária àqueles que constroem
o presente a partir de suas próprias ruínas e cacos. O conhecimento que resulta deste “agora” é,
então, fundado na dialética entre restauração e inconclusão, ou seja, no desejo de recomeçar e na
consciência de que só é possível viver algo incompleto. O texto de 1933 parece ser o registro deste
movimento, pois a experiência da pobreza não visa ao desenvolvimento progressivo do ser humano
rumo à sua plenitude de homem bem formado, a experiência da pobreza é aquela da incompletude,
do desassossego, da perdição.
Dialética da ruína, este movimento dilacerante entre restauração e inconclusão é o
fundamento da visão alegórica. Em contraposição a constituição de uma consciência em expansão
em direção a plenitude de seu ser, Benjamin afirma o conhecimento como florescer alegórico. De
essência ambivalente, a ruína é a recapitulação do sofrimento, figura de tudo o que na história é
“prematuro, sofrido e malogrado”, sendo, portanto, o monumento de todas s catástrofes; mas ela é
também memória da injustiça, designando o lugar de uma luta, lugar de resistência, em uma
palavra, lugar de uma sobrevivência. Sem dúvidas, as descrições benjaminianas de Experiência e
Pobreza ressaltam o sentimento de desorientação, de falta, de melancolia que esse desmoronamento
da tradição provoca. Mas, ao mesmo, tempo, ao meditar sobre as ruínas do passado o pensamento
benjaminiano não se limita a evocar uma perda: trapos, lixos, destroços, estilhaços, o pequeno
pormenor desprezível, enfim, caco por caco Benjamin constrói o conhecimento. O conhecimento é
produzido imediatamente sobre um objeto histórico que, por sua vez, é constituído
simultaneamente. Essa atitude, cara aos construtores implacáveis, resulta imediatamente do
conceito benjaminiano de alegoria. Ela é da ordem da concretude, das tabulas rasas, por isso exige
um conhecimento imediato, postulado por Benjamin como o único adequado ao historiador – ou, se
preferirmos, ao educador. “Nos domínios que nos ocupam não há conhecimento senão fulgurante”.
Não devemos, entretanto, confundir essa concretude com o materialismo vulgar da assimilação
prematura e imediata entre traço cultural e “processo econômico”. Como explica Rouanet,

118
Nosso olhar mais adestrado na teoria da mímesis12, sabe que esse ziguezague entre a infra-
estrutura e a superestrutura não tem nada a ver com materialismo vulgar, e sim com o estilo
de percepção próprio a Benjamin, que sabe percorrer toda a gama de correspondências entre
a cultura e a economia e dentro da cultura, sem nenhuma preocupação de um primado à
instância econômica (Rouanet, 1997, p. 49-50).

O que caracteriza esse conhecimento é o abandono do conceitual por um pensamento por


imagens – são as imagens dialéticas. Com efeito, Benjamin propõe uma revolução na maneira
conceitual de pensarmos. É isso que ele nos diz ao indicar a necessidade de “educar em nós o
elemento criador de imagens”. Contra as filosofias da Representação, para as quais o conceito corre
o risco de se tornar pura imagem sem objeto, como no cartesianismo, ou seja, tomar-se como um
fim em si mesmo, indiferentes com respeito a seus objetos, para Benjamin “é mais verdade que a
eternidade se encontre no franzido de uma roupa que em uma idéia”, pois “as coisas são a
configuração das idéias”. Ele também se coloca para além da noção de sujeito: o que está em jogo
aqui é um pensamento no qual a instância do sujeito está contida no elemento material do pensar, ou
seja, a construção do conhecimento assemelha-se à construção de mosaicos, onde o todo resulta do
descontínuo, das diferenças justapostas, onde a verdade é da ordem da construção, da imagem, da
materialidade. Sob esse aspecto, é importante ressaltar:

A reviravolta alegórica não se organiza segundo as certezas humanistas – as de um sujeito –


ou segundo a segurança das crenças, mas está repleta de monstros, deformidades naturais.
A natureza se faz história e a história, natureza: uma se faz melancólica e a outra estranha,
assustadora, inumana: uma – a natureza – perdeu o motor imóvel que a organizava; a outra
– a história –, o sentido de uma evolução em direção ao homem (Matos, 1993, p. 150).

Aproximar-se às coisas não significa conceituá-las, e sim, apresentá-las13 em sua inteireza,


grandeza, estranheza, quer dizer, para além de toda medida e de toda “representação adequada”.
Uma atitude que supõe a consciência de tudo o que na razão transborda a razão. “Conhecer sentindo
e sentir conhecendo, pois há sempre algo que não é percebido pela razão quando percebemos”
(Matos, 1993, p. 95). A tentativa de Benjamin não é, como muitas vezes se afirmou, dissolver o

12
Acerca da teoria da mimeses remetemos o leitor às análises de Matos, 1993, p. 94 - 95.
13
Conferir o conceito de Apresentação (Darstellung) in Muricy, 1998.

119
pensamento na imediaticidade do pré-conceitual, trata-se de pensar como o alegorista, por imagens,
chegando do mais abstrato ao mais concreto. A imagem a serviço do pensamento; assim Benjamin
pretende abrir ao pensar a possibilidade de entrar em novas relações.
Sendo assim, o que está em jogo neste texto de 1933 é uma concepção de experiência que
seja ela mesma a expressão da historicidade em que alegoria escolheu se manifestar: a histórica
contraditória, obscura e cruel, decepcionante e provocante. “A experiência da alegoria que se
prende às ruínas é verdadeiramente aquela eterna precariedade”, escreve Benjamin nas Passagens.
Essa experiência da pobreza, da precariedade, da fragilidade humana, é também aquela que
transmuta o desencantamento e a angustia do mundo em um convite à construção da vida e da
história. Ora, essa experiência da pobreza é uma experiência (Erfahrung) do limiar (Schwelle): o
mundo de imagens no qual se converteu a vida moderna – sem centro, sem ponto fixo, inconstante,
impermanente – é um mundo para o qual não está dada nenhum localização, um mundo sem
“onde”. Não se trata de querer ir além dos limites humanos, ao contrário, o limiar benjaminiano é a
expressão de toda a fragilidade de nossa condição humana e justamente como expressão dessa
verdade nua significa etimologicamente mudança, passagem, fuga, desvio. O limiar é então uma
zona de passagem em meio à infinita variedade dos estados de consciência – hesitação, oscilação,
paradoxos, idas e vindas, o limiar é a experiência das sinestesias –, nesta zona não há localização a
não ser como imagem – aliás, Benjamin designa a imagem dialética por limiar –, a qual, por vez,
diz o autor, “não encontra seu lugar em nenhuma realidade”. Esta é a “aura” que, sem perder sua
distancia, possui as criações dos “novos bárbaros”, ou seja, quando a “beleza simbólica se evapora...
o falso brilho da totalidade se extingue... o eidos se apaga... o cosmo que o habita se esgota”, é
nesse espaço vazio que a classe revolucionária pode construir seu futuro, sem o peso inibidor da
tradição. Uma nova cultura pode surgir, fruto de um outro tipo de percepção que não a do
recolhimento “cultual e cultural” (Gagnebin, 1999), uma percepção como aquela que, ao mesmo
tempo difusa e perspicaz, caracteriza o grande público de cinema. De acordo com Gagnebin, “esse
movimento de evasão e dispersão (Zerstreuung), Benjamin o pensa desde seus primeiros escritos
consagrados à origem até os textos ditos materialistas sobre o fim do original – simultaneamente
como o rastro de uma perda infinita e turbilhão de um possível nascimento (Gagnebin, 1999, p. 95).
Para além de uma dimensão de conhecimento na qual o homem não encontra a completude
de seu próprio ser – conhecimento, pois, como um caminho indefinido –, o ser do sujeito é posto em
questão; o homem encontra neste momento do limiar a transfiguração se seu próprio ser. Perder-se a
si mesmo nos labirintos da história e da vida “pede toda uma educação”, escreveu Benjamin em
Rua de mão única. O conceito de experiência benjaminiano afirma um processo de formação que

120
responde à necessidade em que se encontra a existência humana contemporânea de colocar tudo em
questão. Sem repouso admissível, a experiência em seu caráter formativo não leva a porto algum,
mas sim a um lugar de extravio, de contra-senso, de vertigem, de perigo – ela tem no não-saber seu
princípio constitutivo, isto porque quem se perde se procura. Nesse sentido, o presente histórico
não se limita a evocar uma perda, constitui, justamente por essa mediação, outras figuras de sentido.
Benjamin procura reconstruir a Erfahrung no panorama desolado de fragmentação e secularização
da cultura contemporânea. Não há nostalgia, não há utopia: a exigência de felicidade – radicalmente
profana, isto é, finita, mortal, efêmera, temporal – é a única direção possível para a história dos
homens, ela não manifesta o esforço infinito de moldar o real segundo um ideal transcendente, mas
sim a absorção total das utopias e nostalgias na figura frágil e real de uma possível humanidade.

Bibliografia

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Barbosa, Hemerson Alves Baptista – 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas V. III).
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UFRJ, 1993.

122
Indústria Cultural e formação musical: duas faces de uma mesma moeda?

Célio Roberto Eyng (UNIPAN/Mestrando em Educação – UEM)

Maria Terezinha Bellanda Galuch (UEM – Programa de Pós-graduação em Educação)

“A ditadura pulou fora da política


E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura [...]”.

Itamar Assumpção

A epígrafe acima nos remete ao fato de que nos reveses da história brasileira recente um
fenômeno peculiar se manifesta: a ditadura da indústria cultural – fenômeno que tem nos meios de
comunicação de massa um instrumento de sustentação. Se, nos tempos de regime militar,
principalmente a partir de 1968, a produção artística passava pelo clivo da censura, após a abertura
política, os agentes produtores e distribuidores – braço forte da indústria cultural – passaram a ditar
as “novas formas” musicais, imprimindo-lhes padrões que dão a garantia de obtenção de lucro,
excluindo, assim, tudo o que não se encaixa nesse contexto massificador.

Sem desconsiderar as possibilidades estéticas dos principais estilos musicais veiculados


pela mídia, pois mesmo não havendo como negar o seu caráter apelativo há que se considerar a
existência de artistas competentes em relação àquilo que se propõem executar, nota-se que a
estrutura econômica da sociedade brasileira atual que, por sua vez, reproduz uma tendência global,
vai ao encontro e reproduz a lógica da mercadoria. Os objetos artístico-musicais, como produções
humanas, não conseguem escapar desse condicionante. Os músicos não ficam alheios às
circunstâncias enfrentadas: o rompimento com as grandes gravadoras e com seus ditames
mercadológicos conduz ao ostracismo; ao mesmo tempo, o músico desconhecido pôr-se contra o
estabelecido é, sem dúvida, um ato heróico, cujas conseqüências imediatas se expressam na
dificuldade de contratos para a realização de apresentações ao público e na dificuldade de promover
a venda dos seus discos.

Nesse sentido, por mais que a dinâmica da produção musical brasileira não se restrinja às
realizações midiáticas, não há como negar a sua função catalisadora. Pôr-se “fora” das condições

123
estabelecidas pelo mercado é privilégio de poucos músicos. No tocante à formação estética com
relação à música, o rompimento com os padrões ditados pelo mercado fonográfico constitui-se fato
incomum, possível para um número reduzido de pessoas, pois a “submersão dos ouvidos” é
generalizada num “mar” de ondas sonoras bastante imperativas e homogêneas, que desenvolvem
em todos os sujeitos um gosto comum.

Metaforicamente, para o sujeito que consegue sair da caverna em que estava acorrentado e
passa a observar e intuir o mundo ao seu redor, descobrindo que as “sombras” tão reais na parede
não passavam de reflexos da realidade concreta, comunicar as novas descobertas para os seus
companheiros que permanecem na obscuridade parietal não deixa de lhe acarretar riscos. Surgiria,
assim, um ser completamente “deslocado no mundo”.

A alegoria da caverna de Platão, ao se apresentar como subsídio para a reflexão sobre a


relação estabelecida no cenário musical da atualidade, não deixa de causar alguma perplexidade:
existiriam pessoas acorrentadas na caverna das produções midiáticas? A liberdade alcançada pelo
sujeito que se põe do lado de fora da caverna atinge sua plenitude? Ou mesmo, ao dizerem para os
demais habitantes do orifício escuro que aquilo que eles ouvem não passa de uma miragem sonora,
pois haveria músicas distintamente superiores, não estariam correndo o risco de vagarem
cambaleantes e solitários pelo mundo? Afinal, é possível construir um referencial estético capaz de
julgar todas as produções sonoras com base em um mesmo parâmetro?

Ao avançar nessa discussão, percebe-se que termos tão comumente utilizados para
diferenciar as produções musicais possuem caráter ideológico por excelência. Nem mesmo Adorno
(1994;1999) escapou à tentação de rotular de “música séria” determinada tradição musical, em
oposição à música popular, considerada estruturalmente inferior. Este autor expõe seus argumentos
valendo-se de parâmetros bem definidos, que, por sua vez, remetem à sua formação estética. Para
um filósofo que compunha música não como mero passatempo, e sim como atividade relevante, e
que acompanhava o movimento histórico no campo musical, sempre atento às transformações
ocorridas com as inovações modernas de Schoenberg e Stravinsky, entre outros, o “fazer música”
advinha de uma lógica discursiva com ecos nas primeiras polifonias francesas do século XI que, se
constituem uma forma de organização sonora diametralmente diferente da forma do Jazz e da forma
das realizações populares nesse campo.

Hoje, no panorama musical, seriam válidos os mesmos parâmetros estéticos que Adorno
utilizava? Parece que a resposta é relativa: depende. Há que se pensar que nos mais diferentes

124
gêneros e estilos musicais a função social do músico, da obra e do ouvinte assume características
distintas. Como esperar de um pianista de Jazz a mesma lógica de interpretação que um executante
de Chopin? Ao rapper não interessa melodias intrincadas como é comum nas obras dodecafônicas
(se é que o conceito de melodia ainda vigora nessas produções). O guitarrista de Rock precisa
desenvolver uma técnica instrumental diferenciada da desenvolvida pelo músico de orquestra
clássica. Ambos têm necessidades específicas, porém, muitas vezes opostas. Como não cair no
relativismo na análise estético-musical?

Torna-se oportuno, então, considerar como se processa a formação musical no contexto da


sociedade industrial desenvolvida. Vislumbram-se as instâncias de socialização das produções
musicais: os meios de comunicação. Ao se considerar que, no âmbito da comunicação televisiva,
vários programas têm a música como atrativo preponderante; que as redes de rádio pautam-se,
prioritariamente, na programação musical; e, ainda, que a rede mundial de computadores fornece
meios de acesso à produção nesse campo, diagnostica-se que os meios de comunicação de massa
exercem papel preponderante na divulgação dos produtos ou manifestações artístico-musicais, que
participam ativamente da formação de normas, padrões de comportamento, valores, gostos e
costumes que legitimam a sociedade vigente.

Vale destacar que para essa discussão é importante o entendimento de que a cultura, que
no nascedouro da sociedade burguesa se apresentava como uma instância de resistência à ordem
estabelecida, se transforma em cultura afirmativa, que considera as condições atuais de existência
como condições superiores. Desse modo, acaba não havendo motivos para criticá-las e colocá-las
em dúvida. Na arte e na literatura, caracteres como “a mulher vampiresca, o herói nacional, o
beatnik, a dona de casa neurótica, o gangster, o astro, o magnata carismático” (Marcuse, 1967, p.
71), figuras que, antes, condenavam e negavam a ordem estabelecida, se transformam em
“aberrações ou tipos da mesma vida” que, ao invés de negar, afirmam a realidade social. Nas
palavras de Marcuse, o traço decisivo da cultura afirmativa:

[...] é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente


obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente
melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta
diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar
para si ‘a partir do interior’, sem transformar aquela realidade de
fato. Somente nessa cultura as atividades e os objetos culturais
adquirem sua solenidade elevada tanto acima do cotidiano: sua
recepção se converte em ato de celebração e exaltação
(MARCUSE, 1997, p. 96).

125
Desse modo, na sociedade burguesa perde-se a esperança de a formação cultural ser o
instrumento por meio do qual se possa efetivar a liberdade e a autonomia dos homens, pois a
cultural afirmativa, ao contrário de revelar a falsidade da experiência cotidiana, cada vez mais, age
como elemento de integração e de adaptação dos sujeitos à sociedade; isto é, a cultura se transforma
na outra dimensão da realidade, diz Marcuse (1967).

Nesse contexto, a cultura se transforma em mercadoria padronizada, produzida segundo


a racionalidade técnica da sociedade industrial desenvolvida, ou seja, da “racionalidade da própria
dominação”. Esse é o fenômeno para o qual Horkheimer e Adorno, em 1947, cunham o termo
indústria cultural. Segundo estes autores, “[...] a técnica da indústria cultural levou apenas à
padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a
do sistema social” (HORKHEIMER & ADORNO, 1985, p. 114).

Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, a integração de todos foi


possibilitada, independentemente da classe social ou da região geográfica em que vivem. A televisão
divulga produtos, histórias e músicas que desenvolvem nos seus consumidores a certeza de que se
tornarão semelhantes à figura famosa que faz o anúncio, ao cantor, ao artista da novela. Ao se
tornarem “iguais” pelo consumo das mesmas coisas – sejam elas músicas, histórias, ou quaisquer
outros produtos – que, via de regra, naturalizam sofrimentos, todos desenvolvem o sentimento de
engajamento e de participação, perpetuando uma forma de ser, agir e pensar.

Dos elementos que essa reflexão suscita à discussão da formação musical interessa a
seguinte questão: a escola é uma das instâncias que poderiam instrumentalizar os alunos para a
compreensão do fenômeno musical. Todavia, não precisamos de muito esforço para percebermos que
ela vem trabalhando no sentido de endossar a produção midiática, o que limita a possibilidade de
promover experiências formativas, nos termos a que se refere Adorno (1995).

A análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais - Música, revela que esse documento
oficial entende que o adolescente/jovem como o "grande receptor das músicas da moda" (BRASIL,
1999, p. 79). Esse fato expressa um propósito: que a educação musical deve partir do
"conhecimento e das experiências que o jovem traz de seu cotidiano, de seu meio sociocultural e
que saiba contribuir para a humanização de seus alunos" (BRASIL, 1999, p. 79). Ora, pelo exposto,
verifica-se que por considerar o aluno “o grande receptor das músicas da moda”, o ensino proposto
deve partir do que esse aluno traz do seu cotidiano. Logo, percebe-se que está implícita nessa
proposta a idéia segundo a qual a música midiática deve ser o ponto de partida para a aprendizagem

126
musical. Mas, como esse tipo de produção musical pode contribuir para a “humanização” dos
alunos? Que processo humanizador a música midiática pode provocar? Humanizar significa formar
um público consumidor?
Perguntas como essas são deixadas sem resposta no texto oficial, pois não se especifica o
porquê de se partir da apreciação dessas músicas e qual o significado contido no termo
humanização. Como, então, encaminhar o problema? O documento deixa claro: Isso é tarefa do
professor!

O quando e como trabalhar os vários tipos de música levados para a sala


de aula vai depender das opções feitas pelo professor, tendo em vista os
alunos, suas vivências e o meio ambiente, vai depender da bagagem que
ele traz consigo: vai depender de seu "saber música" e "saber ser professor
de música" (BRASIL, 1999, p. 79).

Ao deslocar para o professor de música a necessidade de direcionar a sua prática


pedagógica, de modo que atenda aos ditames mercadológicos e consiga, com base nesse
pressuposto, humanizar seus alunos, desconsidera-se que o processo de humanização só pode ser
entendido para além das orientações acima destacadas que pouco esclarecem a questão. Atentando-
se para a evolução filogenética do ser humano, desde a origem dos primeiros hominídeos até os dias
atuais, bem como para as transformações ontogenéticas fundamentais que possibilitam ao homem
tornar-se um ser social (como a utilização dos instrumentos e o domínio da linguagem), verifica-se
que tal processo remonta aos objetivos imanentes que se quer alcançar: seres humanos plenamente
capazes de dialogar com seus pares sobre música, ou, simplesmente, meros reprodutores do
discurso instituído pela mídia musical.
Dessa forma, a delimitação de conteúdos capazes de provocar o desenvolvimento
intelectual e emocional do estudante no campo musical, diz respeito ao intuito de formar pessoas
aptas para a apreciação crítico-estética, o que não significa negar a contribuição desses conteúdos
na vida diária dos sujeitos. Todavia, está ligado ao desejo de que o maior número de indivíduos
tenha acesso aos rudimentos imprescindíveis para a análise do material sonoro, inclusive dos
condicionantes históricos que permeiam cada estilo, tendência ou compositor em específico, tanto
no que diz respeito aos aspectos formais quanto às significações que estes podem suscitar, conforme
constata Heller:

Todo fruidor de uma obra de arte arrasta consigo, procedente de uma vida
cotidiana vivida e experimentada de um modo totalmente peculiar, um
específico mundo sentimental, conhecimentos específicos e, coisa

127
importantíssima, juízos e ideologias peculiares sobre a vida e a sociedade
(HELLER, 1970, p.203; tradução nossa).

Esse fruidor se constitui na sociedade em que ele está inserido, de forma que mesmo seus
sentimentos mais íntimos estão socialmente condicionados (VIGOTSKI, 2001). Entende-se que
para a efetiva humanização do sujeito em relação ao campo da música é importantíssimo que, ao
longo de sua história particular, passe por mediações capazes de ampliar seu horizonte perceptivo
com relação ao material sonoro. Mediações essas, que, na pior das hipóteses, devem lhe propiciar a
mínima compreensão dos elementos envolvidos na criação musical, como os aspectos rítmicos,
melódicos, harmônicos e timbrísticos; também, a apreensão dos diversos fatores que determinam a
consolidação dos padrões sonoros nas diferentes épocas e culturas é necessariamente importante.
Não basta deixar para o professor a missão quase natural de saber o que ensinar e como ensinar. Um
sistema de ensino precisa ser objetivo, pois supõe-se a formação de um ser humano concreto. De
acordo com Heller:

A arte por si só não pode humanizar a vida; porém quando se tem a


necessidade de humanizar a própria vida e a dos demais também a outros
níveis – a vida política, moral, etc – a arte proporciona um parâmetro e
cumpre a função de apoio sentimental e intelectual para operar a
transformação (HELLER, 1970, p.203; tradução nossa, itálico no
original).

Pelo exposto, constata-se que o devido comprometimento com a transformação da realidade


caótica em que se encontra o ensino da música no Brasil não está expresso ao longo do documento
oficial, pois ocorre o esvaziamento dos conteúdos e a mistificação dos processos de ensino e
aprendizagem, ora centrado no aluno, ora no professor, deslocando, assim, o foco central do
problema: a especificação do que realmente deve ser apropriado pelos cidadãos no tempo e espaço
escolares. Nota-se, assim, que a educação musical no Brasil, de uma forma geral, vem atendendo
aos ditames do mercado fonográfico e pouco tem contribuído para a efetiva humanização de seus
partícipes.

Duas instâncias que deveriam ter objetivos antagônicos – os meios de comunicação e a


escola – acabam corroborando as produções midiáticas. Os meios de comunicação não estão
preocupados em formar pessoas capacitadas para compreender as sutilezas da produção musical,

128
mas criar público consumidor. Todavia, a escola, que deveria promover tal formação, acaba se
limitando em reproduzir o que é divulgado para ser consumido.

Ao se pensar na sociedade capitalista atual, sob a ideologia neoliberal (que prima pelo
consumismo e se orienta pela lógica da mercadoria), torna-se fundamental promover o acesso dos
educandos aos conhecimentos imprescindíveis para a apreciação crítico-estética em música. Isso
não significa ignorar a realidade social imediata, mas, permitir que o sujeito tenha acesso aos
saberes mais elaborados e sistematizados da cultura humana, ou seja, possibilitar que o saber
acumulado ao longo da história da humanidade nessa área específica se torne de usufruto do maior
número possível de pessoas. Assim, a escola estaria cumprindo o papel que lhe é peculiar, conforme
aponta Saviani (1992).

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Editores, 1967.

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Autores Associados, 1992.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

129
Problemas de atualidade da Teoria Crítica? Indústria educacional hoje1
Cláudio Almir Dalbosco2

Nesta comunicação pretende-se mostrar a atualidade do conceito de indústria


cultural de Adorno no tocante à análise do intenso processo de mercantilização
desregulamentada do ensino superior no Brasil a partir do final do século passado. Neste
sentido, reconstroem-se as linhas gerais da interpretação que Helmut Dubiel (1999, p. 293-
313) faz das possibilidades de atualização da teoria da sociedade de Adorno, submetendo-
se tal interpretação também à crítica. Esta reconstrução deve auxiliar no balizamento de um
aspecto atual do conceito de indústria cultural, a saber, o conceito de indústria educacional,
que está na base do diagnóstico sobre o processo acelerado de privatização mercantil da
educação superior no Brasil. Por fim, como forma de recuperar aspectos do conceito
clássico de formação integral (Bildung) e de confrontá-lo, como ideal normativo, às
exigências mercadológicas atuais do ensino, recorre-se ao significado do conceito
adorniado de formação cultural, no modo como é tematizado em suas conferências
radiofônicas dos anos sessenta do século passado. Tal recurso deve servir, ao mesmo
tempo, como contraponto crítico a objeção de que a teoria da sociedade adorniana teria
sucumbido, ela mesma, à tese da sociedade sistemicamente fechada.

As conferências sobre Adorno (Friedeburg/Habermas, 1999), proferidas em 1983 na


Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, tiveram como objetivo avaliar as
influências atuais do trabalho sociológico e filosófico daquele autor. Presentes estavam
vários conferencistas que procuraram cobrir, cada um ao seu modo, os mais diferentes

1
Texto apresentado no Congresso Internacional “A Indústria Cultural hoje”, realizado em
Piracicaba/SP, entre os dias 28/08 a 01/09/2006.
2
Doutor em filosofia pela Universität Kassel e Professor do Curso de Filosofia e do PPG em
Educação da Universidade de Passo Fundo/RS.

130
aspectos da produção intelectual adorniana, sem deixar, evidentemente, de formular
objeções a partir de suas perspectivas teórico-filosóficas. Meu propósito, ao me reportar a
estas conferencias, não é o de relatá-las por completo, mas sim resumir o conteúdo da
interpretação de Dubiel sobre a teoria de Adorno. Em sua conferência intitulada “A
atualidade da teoria da sociedade de Adorno” (“Die Aktualität der Gesellschaftstheorie
Adornos”) o referido autor busca atender um duplo objetivo: primeiro, livrar o pensamento
de Adorno daquelas interpretações baseadas no renascimento de uma crítica cultural
pessimista, que não só afastaria o pensamento adorniano do campo originariamente crítico
do qual emergiu, como também o encurralaria no desfiladeiro de uma posição
conservadora. Em segundo lugar, Dubiel pretende reintroduzir tal pensamento, novamente,
no âmbito de uma refletida teoria filosófico-social do capitalismo tardio. Para poder dar
conta destes dois objetivos, o autor defende a tese de que a atualidade da teoria da
sociedade de Adorno depende da capacidade dela poder incorporar, em seu arcabouço
teórico, as profundas transformações ocorridas na estrutura político-econômica da
sociedade tardo-capitalista.
Para Dubiel a teoria crítica clássica da sociedade, no moldes de Adorno, se constitui
como teoria da forma autoritária do capitalismo tardio que se justifica em um topos teórico
tripartido: a) como teoria do capitalismo estatal, influenciada pelas análises de Pollock; b)
como teoria do caráter autoritário, de procedência freudiana e; c) como teoria da cultura,
enraizada na contraposição estilizada entre duas eras burguesas, uma alta (elevada) e outra
tardia. Depois de resumir os traços característicos de cada uma dessas teorias, Dubiel chega
a seguinte conclusão: uma racionalidade de troca totalitária e hermeticamente crescente;
uma estrutura socializadora que ancora a pretensão autoritária de uma dominação tornada
anônima na estrutura do eu do próprio sujeito e uma cultura de massas fabricada
industrialmente que serve ao objetivo excludente de um consenso manipulado conduzem,
todas conjuntamente, a um quadro assustador de uma sociedade sistemicamente integrada
(Dubiel, 1999, p. 299).
Esta conclusão é acompanha por uma análise crítica do topos teórico tripartido, na
qual Dubiel procura mostrar as transformações sociais e teóricas que se seguiram depois
das formulações de Adorno. Deste modo, em relação ao primeiro ponto, a teoria capitalista
na qual Adorno se baseou para formular sua teoria da sociedade teria seu foco centrado a tal

131
ponto na teoria do fascismo que o levou a conclusão da correspondência entre teoria
capitalista e teoria do fascismo. No entanto, segundo Dubiel, o desenvolvimento da teoria
crítica do período capitalista pós-guerra concentrar-se-ia cada vez mais na formulação de
uma teoria da crise e, neste contexto, teoria do capitalismo tardio passaria a ser entendida
como teoria da crise. A palavra crise é empregada aí, contudo, para indicar um novo estágio
de desenvolvimento capitalista, no qual a estrutura de mediação dos interesses sociais
conflitantes se alterou substancialmente. A crise tornar-se-ia saliente, como descreve
Dubiel, quando a práxis política dos compromissos do Estado do bem estar social depende
de um conjunto de condições econômicas sobre as quais, no entanto, seus próprios
portadores políticos não podem ou não querem mais satisfazer. Isso abriria espaço então ao
desenvolvimento de uma política econômica neoconservadora, cujos resultados deixar-se-
iam sentir imediatamente: elevação dos impostos, desconstrução do social e, entre outros,
desregulamentação e desmontagem de estruturas solidárias e cooperativas. Todas estas
iniciativas, que visam melhorar as condições de acumulação do capital em prejuízo dos
interesses do trabalho assalariado, apontariam, claramente, na direção da “dessocialização”
do Estado para fins predominantemente voltados à acumulação privada do capital (Dubiel,
1999, p. 301-302).
No que diz respeito ao segundo ponto, ou seja, sobre a teoria do caráter autoritário,
Dubiel critica o fato de que as interpretações psicológico-sociais de Adorno pressuporem
ainda uma correspondência direta entre exigências funcionais do capitalismo tardio
autoritário e ações dominantes do caráter social burguês. Isto é, as análises de Adorno sobre
a constituição da identidade e da personalidade na sociedade de sua época desenvolver-se-
iam mediante a tese da influência decisiva do ritmo coercitivo do aparato produtivo e
dominante sobre a célula interna da subjetividade. E, segundo Dubiel, seria este o grande
motivo teórico que formaria a dimensão psicológico-social do quadro adorniano de uma
sociedade que se encontrava, do ponto de vista sistêmico, completamente integrada. No
entanto, a literatura psicológico-social atual, que mal pese sua diversidade e seus limites,
contradiria esta tese de Adorno: estudos sobre o comportamento social e político de grupos
juvenis, bem como o significado acentuado da problemática adolescente, mostrariam que os
tipos hoje dominantes de perturbações não são mais conseqüências do forte controle de
impulsos e afetos exercidos por estruturas institucionais fixas (como família e Estado).

132
Portanto, as análises de Adorno pressuporiam uma relação direta entre exigências
funcionais sistêmicas e orientações subjetivas individuais na formação social do caráter,
relação esta que o próprio comportamento de adolescentes e jovens atuais, motivados pelas
novas exigências oriundas da racionalização extrema da produção, poria em cheque. Em
um capitalismo pós-industrial desfazem-se, entre a juventude de todas as camadas sociais,
àqueles aspectos auto-repressivos de formação social do caráter burguês clássico, como
uma ética de realização ascética, um status de concorrência e uma disposição autoritária à
busca de resultados, os quais confundiriam e tornariam insegura a idéia do que seria
propriamente o novo caráter social resultante deste processo. Estas transformações
apontariam, segundo Dubiel, não só para o enfraquecimento do poder paterno, mas também
para o enfraquecimento do papel familiar e indicariam para uma dificuldade de
identificação coletiva na estruturação social. Isto é, a progressão dramática da
modernização cultural e tecnológica provocaria, por um lado, a erosão dos domínios
tradicionais de experiência e as ofertas clássicas de constituição da identidade e, por outro,
assinalaria para um “eu transformado”, oriundo dos novos padrões de socialização pautados
por uma cultura narcisista.
Por último, a teoria da cultura e sua correspondente teoria da indústria cultural
precisariam ser analisadas mediante as novas transformações sociais e teóricas. A teoria
crítica da cultura repousava, segundo Dubiel, na tese de que o duplo caráter da arte
burguesa fora arruinado pelo capitalismo tardio totalitário. Isto é, cultura, como
confirmação ideológica da dominação e como imagem crítico-utópica de possibilidades
inalcançáveis, transforma-se na parte de uma cultura de massas puramente manipulativa e
em uma arte esotérica de vanguarda. Ora, as análises de Adorno pressuporiam aqui uma
determinação relacional entre arte e sociedade que não corresponderia mais às profundas
transformações do caráter social burguês indicadas acima e que se deixariam resumir pela
expressão “transformações na estrutura de trabalho e consumo no capitalismo tardio
desenvolvido”. Estas transformações possibilitariam o desenvolvimento de uma cultura
pós-vanguardista que confrontaria entre si uma pluralidade de materiais e formas
lingüísticas, cujo resultado, embora seja ainda imprevisível em termos de lógica de
desenvolvimento artístico, seguramente questiona o papel emancipador atribuído por
Adorno à arte concebida em termos vanguardistas.

133
II

Até aqui tenho parafraseado, em largos traços, a reconstrução que Dubiel fez do
topos teórico que, segundo ele, sustenta a teoria da sociedade de Adorno. Inúmeras
questões estão implicadas em sua reconstrução. A primeira delas é se este topos teórico
tripartido consegue apanhar, efetivamente, o significado atribuído por Adorno à sua teoria
crítica da sociedade e, segundo, caso se considere sua tripartição como adequada, como este
topos pode ser unificado, cruzando-se seus pólos dinamicamente, para formar o todo que
compõe a teoria adorniana da sociedade. Independentemente destes questionamentos,
parece-me que dois aspectos da interpretação de Dubiel tornam-se instrutivos à recepção do
pensamento de Adorno no Brasil.
O primeiro refere-se ao seu esforço de distanciar o pensamento de Adorno daquelas
tentativas de integrá-lo no marco de uma crítica pessimista da cultura. No entanto, no caso
da interpretação de Dubiel, para que pudesse tornar conseqüente este aspecto, ela teria que
ter relativizado a tese de fundo que sustenta sua leitura de Adorno, a saber, de que a teoria
da sociedade de Adorno culmina no conceito de uma sociedade completamente integrada
do ponto de vista sistêmico. Ora, o dilema, não enfrentado por Dubiel, consiste em querer
livrar a teoria da sociedade de Adorno de uma crítica pessimista da cultura, mas aferrando-
se, ao mesmo tempo, na reconstrução de tal teoria a partir de um conceito de sociedade
como instância completamente administrada. Para tornar sua pretensão mais conseqüente,
Dubiel deveria ancorar sua análise nos potenciais crítico-reflexivos de Adorno que lhe
ajudaram a contrabalançar a tese de uma sociedade completamente administrada. Neste
contexto, reforça-se também a idéia de que uma recepção produtiva do pensamento de
Adorno, para o campo educacional brasileiro, precisa amparar-se na origem claramente
crítica de seu pensamento, pondo-se aí a exigência de que uma teria educacional, com
pretensão crítica, não pode torna-se prisioneira de uma crítica pessimista da cultura, como
também não pode querer tornar Adorno adepto de tal pessimismo.
O segundo aspecto diz respeito ao fato de que a atualidade da teoria da sociedade de
Adorno depende da condição de se poder interpretá-la como um processo aberto e,
enquanto tal, passível de ser reformulado. Mas Dubiel também parece fraquejar neste

134
ponto, uma vez que toma o projeto da Dialética do Esclarecimento como referência
exclusiva para traçar o conceito de teoria da sociedade de Adorno, projetando-o para o
restante da produção adorniana. Dois problemas estão implicados aí: o primeiro refere-se
ao fato de saber se a Dialética do Esclarecimento culmina, necessariamente, como a análise
de Dubiel parece pressupor, em uma teoria que concebe a sociedade como um sistema
totalmente administrado; o segundo refere-se ao fato de Dubiel desconsiderar outras
formulações importantes, como àquelas feitas por Adorno em seus pronunciamentos
radiofônicos, nas quais, por exemplo, ele atribui poder emancipador à educação. Estes
problemas não descaracterizam, no entanto, a validade da afirmação de Dubiel sobre a
importância de se conceber a teoria da sociedade como processo aberto. Parece-me, pois,
que nesta afirmação está indicado, como qualificação importante do próprio sentido que o
conceito de crítica deve abarcar – inclusive como forma de revidar um possível caráter
retórico que possa estar subjacente ao primeiro aspecto acima referido - de revisão e de
autocorreção de seu âmbito conceitual; isto é, crítica deve assumir o sentido de negação de
qualquer forma de dogmatismo e estagnação da teoria. Ora, é este sentido que se contrapõe
à existência de uma ortodoxia cega, a qual, aferrando-se a defesa intransigente da letra da
doutrina, esquece, freqüentemente, o fato de que a atualidade do seu conteúdo repousa no
confronto permanente com exigências e situações postas pelo contexto social contra o qual
a teoria é vertida. Assim, em um processo dinâmico de mão-dupla, uma teoria crítica da
sociedade pode tornar-se produtiva à interpretação do contexto histórico do qual faz parte
no mesmo grau de abertura que deve dispor-se a ser por ele reformulada.

III

Se a análise de Dubiel autoriza este resultado geral, esboçado acima, ela auxilia-me
a perguntar pela atualidade do conceito de indústria cultural. Isto é, a posição de Dubiel
tornaria inválida a atualidade do conceito de indústria cultural à análise de problemas
educacionais? Embora uma resposta a esta pergunta não seja tarefa fácil, gostaria de
defender a idéia de que, embora se concordássemos com a tese de que a teoria da sociedade
de Adorno precisa ser atualizada naquelas três dimensões do topos teórico apontado por
Dubiel, esta atualização não só não descaracteriza o conceito de indústria cultural

135
formulado por Adorno, como deve manter um aspecto de seu núcleo originário. Para tornar
isso claro vou recorrer agora ao próprio texto de Adorno.
O conceito de indústria cultural, embora já esteja subentendido nos textos de
Adorno e Horkheimer dos anos trinta do século passado, é introduzido, sistematicamente,
na Dialética do Esclarecimento. Com tal obra os referidos autores pretendem compreender
porque a humanidade, contrariando previsões otimistas de alguns iluministas modernos, em
vez de progredir parece estar regredindo a uma nova fase de barbárie. O diagnóstico
oferecido pelos autores consiste em mostrar que a principal causa de tal regresso reside no
monopólio exercido por uma racionalidade de tipo instrumental, que, ao assumir a lógica
do capitalismo moderno e sendo sofisticada pelo aparato tecnológico constantemente
inovado por tal lógica, invade todas as formas de vida, transformando suas produções
culturais em valor de troca.
Com a expressão indústria cultural Adorno e Horkheimer querem dar conta daquele
processo no qual a cultura é transformada em mercadoria no capitalismo tardio e
comercializada em grande escala. Mas, como advertem os autores, trata-se de uma
mercadoria paradoxal, pois a cultura “está completamente submetida à lei de troca que não
é mais trocada. Ela entrega-se tão cegamente ao uso que não se pode mais usá-la. È por isso
que ela se amalgama com a publicidade. Quanto mais sem sentido apresenta-se diante do
regime do monopólio, mais todo-poderosa ela se torna. Os motivos são suficientemente
econômicos” (GS, 3, 185). Ao ser absorvida pelos motivos econômicos, a cultura precisa se
transformar em mercadoria e, para tornar-se essencial como mercadoria, precisa assumir a
forma de valor de troca e, com ele, perde, sob uma outra perspectiva, aquilo que seria sua
característica mais própria. Os autores resumem esta transformação que os bens culturais
sofrem em seu significado numa outra passagem com a seguinte afirmação: “O que se
poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de
troca; no lugar do usufruir (prazer) coloca-se o assistir e o estar informado e coloca-se o
conquistar prestígio no lugar de se tornar um conhecedor” (GS, 3, 181).
Estas duas breves citações permitem-me resumir um aspecto do núcleo central do
significado do conceito de indústria cultural que é assumido pelos autores nesta obra. Com
tal conceito querem indicar a absorção, pelo processo produtivo capitalista, das mais
diversas manifestações culturais, promovendo a incorporação da produção cultural pelas

136
leis do mercado e a conseqüente transformação dos bens culturais em mercadoria, mediante
a qual o valor de uso de tais bens configura-se, hegemonicamente, em forma de valor de
troca com fins eminentemente ideológicos, comerciais e lucrativos. Ideológico no sentido
de que a produção industrial da cultura visa integrar socialmente os membros da sociedade
nos interesses e no modo de pensar dos grupos dominantes e, lucrativo, porque os grandes
monopólios industriais das primeiras décadas do século passado não tardaram em ver no
vasto campo da produção cultural e artística das sociedades capitalistas desenvolvidas
novas possibilidades de aplicar seu capital e obter com isso um nova fonte de ganhos
econômicos.
Este significado do conceito de indústria cultural desenvolvido pelos autores nos
anos quarenta, embora seja reformulado em suas elaborações subseqüentes, não é alterado,
no entanto, naquele aspecto de seu núcleo central por mim acima reconstruído. Ao
contrário disso, tal aspecto é constantemente reforçado. Isso ocorre, por exemplo, na
conferência radiofônica proferida por Adorno em 1962, com o título “Resumo sobre
indústria cultural” (“Résumé über Kulturindustrie”). O aspecto central desta conferência
consiste em mostrar o papel que a indústria cultural exerce na “economia psíquica das
massas” e, portanto, na formação de suas consciências. “O que se considera como
progresso na indústria cultural, o insistentemente novo que ela oferta, permanece na
obscuridade do sempre igual (homogêneo); toda mudança encobre um esqueleto no qual se
muda tão pouco como na própria motivação do lucro, desde que tal motivação ganhou
ascendência sobre a cultura” (GS, 10.1, 339). Para dar conta de explicar o caráter
ideológico exercido pela indústria cultural, Adorno enfatiza, novamente, a idéia de que ela,
graças aos meios atuais da técnica e à concentração econômica e administrativa, configura-
se em um sistema de produção de bens culturais “adaptados ao consumo das massas e que
em grande parte determinam esse consumo” (GS, 10.1, 337). A comercialização das
mercadorias culturais produzidas pela indústria, visando deliberadamente o lucro, e não a
criação cultural e a formação dos indivíduos, é o que, segundo Adorno, caracteriza a
indústria cultural.

137
IV

Portanto, o conceito de indústria cultural assume, na sociedade capitalista tardia,


segundo Adorno, uma dupla finalidade: ideológica, no sentido de exercer o controle social
e, econômica, na medida em que a comercialização capitalista da cultura tornou-se uma
poderosa fonte lucrativa para grandes monopólios financeiros. Desta dupla finalidade,
principalmente a função ideológica atribuída por Adorno ao conceito de indústria cultural
tornou-se alvo de muitas críticas. Kellner (1982), não sem se deixar inspirar pelo trabalho A
mudança estrutural do espaço público de Habermas, formula três objeções à teoria
adorniana da indústria cultural. A primeira consiste em afirmar que a indústria cultural só
poderia desempenhar realmente a função ideológica atribuída a ela por Adorno mediante a
condição da existência de um sistema tão monolítico e manipulativo que, além de ser
impossível, caso existisse, colocaria seus integrantes (“receptores dos bens culturais”) numa
passividade quase absoluta. Portanto, segundo esta primeira objeção, a teoria de Adorno
não consideraria adequadamente o fato de que os próprios indivíduos recebem as
informações da mídia e da cultura de modo muito diversificado. A segunda objeção
questiona a tese de que a indústria cultural reproduz, simplesmente repetindo, de modo
uniforme, a ideologia da sociedade existente. Tal tese ignora, por um lado, o fato de que os
interesses e experiências pessoais do público podem não coincidir necessariamente com os
da indústria cultural e, por outro, ignora também a capacidade criativa de ressignificação
própria do público diante da mensagem ouvida e ou assistida. Por fim, a terceira objeção
volta-se contra a tentativa a-histórica de universalizar o modelo de indústria cultural para
todos os tempos e acontecimentos, desconsiderando as diferenças existentes entre, por
exemplo, o período da República de Weimar, o do Fascismo e o da cultura de massas nos
Estados Unidos (Kellner, 1982, p. 507-510).
Se estas objeções põem dificuldades à atualidade do papel ideológico atribuído por
Adorno ao conceito de indústria cultural, não invalidam, de modo algum, aquele aspecto
que forma o núcleo de seu conceito acima referido, a saber, a finalidade econômica que o
sustenta. Isto é, as transformações da sociedade capitalista tardia e suas novas formas de
legitimação não descaracterizam o fato de que as mais diferentes manifestações culturais
continuam sendo transformadas em mercadorias e, enquanto tais, comercializadas com fins

138
lucrativos. Não só não houve uma perda de validade deste fenômeno, como a indústria
cultural ampliou, gigantescamente, sua finalidade econômica para outros âmbitos da esfera
cultural, âmbitos estes que ainda eram poucos expressivos na época de Adorno. O
fenômeno mais recente e que mostra a atualidade deste aspecto do conceito de indústria
cultural é a mercantilização irracional e desenfreada da educação e, de modo especial, do
ensino superior no Brasil3, configurando o que se pode chamar, conceitualmente, de
indústria educacional.
A indústria educacional denota, do ponto de vista de sua definição, o processo no
qual o capital (investimento financeiro) invade o processo formal de ensino-aprendizagem,
submetendo a educação e, em sentido mais específico, o próprio processo pedagógico, às
leis de mercado e, portanto, às suas leis de valor e lucro. Dito de forma simples, escolas,
faculdades, universidades, alunos e professores tornam-se parte do complexo empresarial
dominado por grandes corporações privadas, as quais se transformam em verdadeiras
agencias comercializadoras do saber. O que se constata, neste processo, é a invasão da
lógica econômico-mercantil no âmbito da educação, impondo sua forma mercadoria ao
processo pedagógico e transformando, com o apóio e incentivo da política educacional
governamental, o ensino superior em negócio rentável. Com isso, processos formativo-
educacionais deixam de ter sua dinâmica e seu tempo próprios, sendo absorvidos pela
lógica econômico-lucrativa e tornando-se prisioneiros de suas exigências. Torna-se
evidente com isso a subordinação do significado da formação cultural (Bildung) e dos
critérios de uma educação de qualidade à lógica da indústria educacional.
A política educacional adotada no país, a partir da metade nos anos noventa do
século passado impulsionou, dando legitimidade administrativo-legal, a especificação da
indústria cultural em indústria educacional. Souza parte, em seu livro a Revolução
Gerenciada (2005), do diagnóstico de que a sociedade mundial passou a viver, a partir das
últimas décadas do século passado, a “terceira revolução industrial”, a qual se
caracterizaria, fundamentalmente, pela passagem de uma sociedade baseada no trabalho
para uma sociedade do conhecimento, da qual uma das principais características seria a
rapidez com que surgem e desaparecem novos conhecimentos. Isso provocaria alteração no

3
Mas esta não é apenas uma tendência brasileira, mas também mundial. Prova disso, são as novas
exigências postas pelo acordo de Bolonha às universidades de países que integram a Comunidade

139
quadro rígido e fixo de carreiras profissionais, exigindo um novo perfil de profissional que
fosse capaz de se adaptar, com agilidade e rapidez, a esta freqüente mudança do
conhecimento e dos interesses do mercado. Especificamente, do ponto de vista educacional,
esta “nova sociedade” exigiria um processo permanente de educação, que não poderia mais
repousar na simples idéia da “transmissão de conhecimento”, mas sim no desenvolvimento
da “capacidade de aprender”.
As exigências oriundas deste novo cenário mundial, aliadas à constatação das
disparidades e a estagnação do sistema educacional brasileiro fortaleceram a decisão,
segundo Souza, de promover uma profunda reforma educacional, a qual passou a ser
implantada sob sua coordenação no Ministério da Educação das duas gestões do Governo
Cardoso. Esta reforma deveria culminar, considerando as novas exigências postas pela
“terceira revolução industrial” e, nela, sobretudo, as exigências de um novo mercado, em
um novo papel a ser assumido tanto pelo ensino básico como pelo ensino pós-médio na
formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos, a saber: estimular sua integração
social, formando consciências que se voltem criticamente contra qualquer tipo de
discriminação e a favor da tolerância. Em síntese, a educação do século XXI e, incluindo
nela a educação brasileira, deveria ser, nas palavras do então Ministro, “bastante
humanista”, sendo de competência, neste contexto, às instituições formais de ensino
oferecer educação integral aos seus membros, visando à formação de um “cidadão global”.
Mas a implantação desta reforma educacional não ocorreu sem conflitos e
contradições. No que diz respeito, especificamente, ao ensino pós-médio, sobretudo o
ensino superior, a política educacional adotada pelo referido Ministro escancarou as portas
à iniciativa privada, sem que isso viesse acompanhado por uma política adequada de
regulamentação, que pelo menos exigisse, entre outras medidas, critérios claros no sentido
de buscar a qualidade do ensino superior. Isto é, o que na prática efetivamente aconteceu,
foi a criação de “imensas oportunidades” para o investimento privado na educação sem que,
no entanto, fosse estabelecida uma regulamentação clara “dos serviços educacionais”,
deixando, como critério exclusivo de uma qualidade seletiva, a própria competição do
mercado educacional. Por isso, o que se verifica na atualidade, como desfecho desta
política, é a proliferação irracional e desordenada de uma multiplicidade de Faculdades

Européia. Sobre isso ver: (BOLOGNA-ERKLÄRUNG, 1999).

140
ocupando fatias rentáveis do mercado educacional, no qual buscam maior lucro com menor
custo possível. Isso caracteriza a corporificação empírica do que denomino de
industrialização mercantil da educação superior no Brasil.
Mas esta política educacional adotada pelo governo Cardoso é perpassada por uma
questão que Souza não enfrenta em seu livro: em que sentido o estímulo desregrado à
mercantilização do ensino superior é compatível com a busca enfática pela qualidade do
ensino, que deveria estar voltada, nas palavras do próprio Ministro, ao desenvolvimento da
capacidade de pensar e à formação integral da pessoa humana na sua dimensão ética e
cidadã? Ao meu ver, o paradoxo deixa-se ver no fato de que a formação integral visando a
formação do cidadão global - que traz como exigência elementar de sua realização a
formação intelectual mínima das novas gerações que as possibilitem entabular um diálogo
vivo e criativo com a tradição cultural passada, condição esta indispensável, inclusive, para
se entender as mudanças do “novo mundo” e as exigências por ele postas – não é
compatível com a pressa e as exigências de uma formação profissionalizante voltada quase
exclusivamente para atender as demandas do mercado. Portanto, a consistência e
vagarosidade do diálogo com a tradição, que proporciona uma formação cultural ampla e
sólida e que, certamente, coloca-se com auxílio indispensável ao aprendizado para o pensar,
não coincide, necessariamente, com a pressa e a versatilidade imposta à educação pela
lógica do mercado do “novo mundo”. Eu penso que, no que diz respeito à formação
cultural, com uma perspectiva crítica à indústria educacional, Adorno ainda nos tem algo a
dizer e, com isso, passo ao ponto conclusivo de minha comunicação.

Em diferentes momentos de sua produção intelectual Adorno se reporta ao conceito


de formação cultural (Bildung). Para meus propósitos, interessa agora rastrear seu
significado em uma conferência radiofônica dos anos sessenta. Tal escolha não é aleatória,
pois deve servir, além de referência normativa crítica ao processo de mercantilização do
ensino superior, também como aval crítico do próprio Adorno à imagem de uma sociedade
completamente administrada, uma vez que, ao se referir ao conceito de formação cultural
como núcleo do processo educacional, Adorno insere-se naquela mais alta e produtiva

141
tradição iluminista que via na educação uma fonte indispensável da busca pela maioridade
humana e social.
Na conferência radiofônica intitulada “A filosofia e os professores” (“Philosophie
und Lehrer”) Adorno analisa a rejeição dos candidatos à presença da disciplina de filosofia
no concurso para docência em ciências nas escolas superiores do Estado de Hessen,
Alemanha. O fato analisado por ele diz respeito à ausência de sentido, de parte dos
candidatos, em relação à presença da filosofia nos exames a serem prestados. Considerando
sua experiência de anos de aplicação de tal exame, tanto oral como escrito e também o
perfil dos candidatos e os resultados das provas, Adorno chega à conclusão de que o que
este fenômeno revela é, de modo geral, a ausência de formação cultural (Bildung)
necessária a quem pretende ser um educador. E isso revela então, na opinião de Adorno, um
fato preocupante, pois quem pretende se dedicar à tarefa de ensinar e formar, humana e
profissionalmente as novas gerações, deveria ter um espírito aberto e, principalmente, um
espírito amoroso que o permitisse compreender os sujeitos envolvidos no processo
pedagógico como sujeitos aptos a desenvolverem sua capacidade de reflexão. E, justamente
com este sentido é que se justificaria a presença da filosofia nos exames, rejeitada pelos
candidatos.
Para Adorno, o problema de tal rejeição está associado a uma “formação geral de
espírito” - que também constitui o modo de pensamento de parte dos candidatos -, oriunda
de um pensamento formalmente conformado que apresenta, entre outras características, a
“disposição a se adaptar ao vigente, uma visão com valorização distinta entre massas e
lideranças, ausência de relações diretas e espontâneas entre seres humanos, coisas e idéias,
convencionalismo impositivo e crença a qualquer preço no existente” (Adorno, 1971, p.
39). Esta forma de pensamento legitima, em última instância, o ensino voltado à formação
especializada, excessivamente centrado no foco profissionalizante, desconectada da
formação cultural ampla. Esta situação revela então a formação de um profissional apto a
legitimar o estado de coisas existente e, por isso, ela conduz ao questionamento sobre a
ausência do aspecto humano e cidadão na formação de tal profissional.
Para contrapor-se a esta situação Adorno reafirma a importância do estudo da
filosofia, como um dos caminhos viáveis para se chegar à formação cultural enquanto
complemento necessário ao estudo profissionalizante. Não se trata, no entanto, de um

142
estudo mecânico dos temas e das disciplinas que compõem o arcabouço do saber filosófico
e nem de repeti-lo, por meio de uma prova oral ou escrita, mas sim de sua apropriação viva
e dinâmica, que leve o candidato a pensar sobre o seu próprio fazer profissional. Isto é, a
importância da filosofia e da formação cultural, em sentido mais amplo, na formação dos
futuros professores justifica-se em auxiliar no desenvolvimento de sua auto-reflexão e na
construção de seu espírito crítico sobre seu próprio fazer profissional, levando-os a se
“desprovincianizar” de seu mundo e exigindo-os a se relacionar criativamente com a
cultura elaborada e, com isso, evitando querer imitar mecanicamente o que é considerado
como culto ou erudito.
Ao conceber a formação cultural como uma disposição aberta, constituída pelo
esforço e capacidade espontâneos de se abrir a elementos do espírito, apropriando-os de
modo produtivo na consciência, Adorno estava profundamente interessado na formação
humana e crítica dos professores, responsáveis pela formação profissional e humana de
futuras gerações. Com isso ele também estava consciente do fato de que a busca pela
formação cultural não poderia compatibilizar-se inteiramente com a lógica do processo de
mercantilização da cultura.

Bibliografia

ADORNO, T. W. Gesammelte Schriften, 20 Bände, hrsg. V. Rolf Tiedemann u. a.


Frankfurt/M., 2003. (=GS)
ADORNO, T. W. Résumé über Kulturindustrie, in: ADORNO, T. W., op. cit., Band 10.1.,
(p. 337-345). (=GS)
ADORNO, T. W. Theorie de Halbbildung, in: ADORNO, T. W., op. cit., Band 8, (p. 93-
121). (=GS)
ADORNO, T. W. Dialektik der Aufklärung, in: ADORNO, T. W., op. cit., Band 3.
ADORNO, T. W. Erziehung zur Mündigkeit. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1971.
BOLOGNA-ERKLÄRUNG. Der Europäische Hochschulraum. Gemeinsame Erklärung
der Eueropäischen Bildungsminister, 19. Juni, 1999, Bologna.

143
DUBIEL, H. „Die Aktualität der Gesellschaftstheorie Adornos“, in: FRIEDEBURG, L.
Von/ HABERMAS, J. (Hrsg). Adorno-Koferenz 1983. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1999, p.
293-313.
KELLNER, D. „Kulturindustrie und Massenkommunikation. Die Kritische Theorie und
ihre Folgen“, in: BONSS, W./ HONNETH, A. (Hrsg.). Sozialforschung als Kritik. Zum
sozialwissenschaftlichen Potential der Kritischen Theorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1982.
SOUZA, P. R. A revolução gerenciada: Educação no Brasil 1995-2002. São Paulo:
Prentice Hall, 2005.

144
A INDÚSTRIA CULTURAL HOJE: PERSPECTIVAS PARA A EDUCAÇÃO

Amarildo Luiz Trevisan1


Cristiane Ludwig2

A partir do diagnóstico da dialética da formação cultural tornada pseudocultura, de


Theodor W. Adorno, e da teoria da ação comunicativa sobre os processos de transformação do
espaço público, de Jürgen Habermas, objetivamos analisar nesse artigo as implicações do
fenômeno da indústria cultural articulado com os mecanismos de estetização do mundo da vida.
Nesse contexto, buscamos interpretar os processos culturais e pedagógicos referendados pela
racionalidade instrumental, que transformou a mercadoria em matriz do modo de vida social.
Nessa lógica, o valor de uso dos bens culturais é substituído pelo valor de troca, convertendo a
cultura em fetiche, em bem de consumo e em diversão. O resultado que assistimos é a exaustão
do conceito de cultura, como uma instância capaz de reverter a sua manipulação realizada pelo
sistema de apropriação da pseudocultura. Frente a esse panorama, propomos desencadear novos
aportes ao campo educacional, visando auxiliar o sujeito a libertar-se do condicionamento
mercadológico e das coações da racionalização. Desse modo, acreditamos que a viabilização de
uma política cultural crítica, interpretativa, criativa e, sobretudo, comunicativa dos usos da
imagem apresenta-se como uma possibilidade imprescindível para o momento atual. Com isso
pretendemos desvendar sentidos, valores e significados orientados pela ação ética e estética a
respeito das diferentes manifestações da cultura mecanizada presente no mundo vital. Seguindo
essa perspectiva, a ação educativa, através de intervenções contextualizadas, pode despertar
possibilidades para a emergência da pluralidade, a alteridade e o reconhecimento do outro. Tudo
isso visando promover o respeito às diferenças e o gosto do público, na singularidade das
escolhas do cotidiano.

1
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria
e pesquisador do CNPq – amarildoluiz@terra.com.br
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria e
bolsista CAPES – crisludwig@yahoo.com.br

145
A esfera cultural como questão central para os frankfurtianos

Em tempos de realidade virtual, de ciberespaço, da cultura do simulacro e a conseqüente


falsificação da vida social cristalizada pela espetacularização do cotidiano, ou, como afirma
Baudrillard, “a banalização do banal” (BELLONI, 2003, p. 135), tudo converge para que a
lógica do capital triunfe. Realmente não se pode negar que as relações humanas estão
atualmente ligadas à cultura do consumo, de modo que a ênfase nas imagens mais do que nas
palavras estabelece novas relações entre o sujeito e o conhecimento. A cultura contemporânea,
através das representações visuais, proporciona estilos fragmentados e experiências fugazes.
Propondo-se a compreender a mudança estrutural das esferas política, social e, em especial,
cultural, os frankfurtianos privilegiaram as pesquisas marxistas acerca da superestrutura. A
superestrutura, segundo Marx, compreendia o campo da vida política, espiritual e cultural. Já a
infra-estrutura envolvia o conjunto das relações sociais de produção e das forças produtivas, ou
seja, a base material da sociedade, origem das riquezas e do desenvolvimento tecnológico. As
contradições da base material, os conflitos entre as relações sociais de produção e as forças
produtivas, se reproduzem nas esferas da superestrutura. Segundo os autores, é na esfera da
superestrutura que se desencadeia o processo de reificação da sociedade, que está ligado ao
processo de alienação. Reificação é o processo no qual tudo se transforma em mercadoria e
adquire vida autônoma. Nesse sentido, a esfera dos bens culturais, como esfera integrante da
superestrutura, é lócus tanto de reprodução do sistema quanto de possibilidade de
conscientização e politização das massas.

Segundo suas análises, o projeto filosófico, político, científico e cultural do Iluminismo,


tido como um esforço consciente de tornar o homem, através da valorização da razão, livre das
autoridades míticas e de preconceitos tradicionais, almejando o progresso da humanidade, não
se realizou. O domínio da razão humana, que consistia a essência do projeto moderno, passou a
dar lugar para o domínio da razão técnica. O mundo conquistado pela racionalidade científica
converteu o homem em apêndice de sua própria criação. Com as novas descobertas científicas,
com o avanço no domínio tecnológico e o capitalismo fortalecido, os valores humanos são
substituídos pelo interesse do capital. O potencial do Iluminismo de libertar a humanidade no
sentido amplo foi pervertido e transformado em um estilo fragmentado de vida. O sentido
autêntico da cultura é transgredido e subordinado à racionalização, ou seja, vira produto, regride
a civilização e se torna um artefato, como qualquer outro produto oferecido no mercado.

146
A tese de modernização da sociedade como resultado de um processo histórico-
universal de racionalização, defendida por Weber, é apropriada pelos frankfurtianos na
constituição da Teoria Crítica3. A lógica da racionalização, da circulação das mercadorias e do
acúmulo do capital converte o homem em mero agente da lei do valor, transformando e
reduzindo os sujeitos a serviço do desencantamento do mundo. As mercadorias passam a ser
ativas e o indivíduo se anula pela divisão social do trabalho. Além disso, a especialização do
trabalho e sua automação reduzem o homem a um mero corolário da máquina, repetindo gestos
vazios de significado. O diagnóstico weberiano da modernidade, conforme descreve Habermas
(1987), baseia-se na concepção crítica, por um lado, da racionalização da cultura,
correspondente a tese da perda de sentido, que ocorre devido à diferenciação das esferas
autônomas de valor. E, por outro lado, da racionalização da sociedade, que conduz à tese da
perda de liberdade, que se dá devido a crescente independência dos sistemas de ação racional
regida por fins. Na tese da perda de sentido, Weber observa o rompimento da unidade dos três
princípios: o cognitivo, o normativo e o expressivo, que fundamentavam as imagens religioso-
metafísicas do mundo, e, conseqüentemente, a impossibilidade de atribuir a esse mundo um
sentido. Não obstante, com a diferenciação das esferas de valor, cada qual seguindo uma lógica
própria de desenvolvimento, a razão se dissocia, aniquilando sua própria universalidade. Na tese
da perda de liberdade, Weber investiga a ameaça à liberdade do indivíduo, representada pela
crescente autonomia da empresa capitalista e do Estado moderno.

A partir da análise da tese da perda de sentido, defendida por Weber, Adorno &
Horkheimer atribuem à cultura um novo realce: o caos cultural anunciado pela perda da unidade
da razão confere à cultura contemporânea, não um novo sentido, mas um ar de semelhança. A
unidade presente no modelo da cultura atual reflete a falsa identidade do universal e do
particular, visto que “sob o poder do monopólio, toda cultura é idêntica” (1985, p. 114). Adorno
& Horkheimer identificam na predominância do universal sobre o particular o totalitarismo,
como culminância da lógica do raciocínio e o conseqüente aniquilamento do sujeito.

É nesse contexto que Adorno, em parceria com Horkheimer, refletem sobre o fenômeno
de regressão da razão na obra Dialética do Esclarecimento. Eles defendem nessa obra que o
Iluminismo não atingiu seus objetivos, nem se manteve fiel aos seus princípios. Ao contrário,
contribuiu para o que eles chamaram de “antiiluminismo”, ou seja, o aparecimento de uma nova

3
A adoção da crítica na teoria frankfurtiana se filia a uma tríplice tradição, com vertente em Kant, Hegel,
Marx, em Nietzsche e na psicanálise de Freud e, por último, na teoria da racionalização do mundo,
segundo Weber. Em linhas gerais, a Teoria Crítica reflete uma espécie de inquietação do mundo moderno
com a implantação de uma ordem social embasada nos pressupostos da razão técnica. Dessa forma, a

147
forma de mistificação alicerçada na ciência e na tecnologia. Da perspectiva da racionalização
capitalista como processo de coisificação, Habermas (1987) deduz que Adorno & Horkheimer, a
partir do conceito de mundo administrado, dão um passo além do argumento defendido por
Weber. Eles afirmam que, por meio da indústria cultural, as próprias consciências se tornam
objeto de manipulação. Com a subjetivação da razão, que corresponde à coisificação da ciência,
da moralidade e da arte, Adorno & Horkheimer identificam, por meio da auto-alienação dos
indivíduos e do desenvolvimento unilateral da modernidade, a fórmula perfeita para a atração da
massificação da cultura: a indústria cultural.

Indústria cultural: passado e presente

A expressão indústria cultural refere-se a um assunto polêmico nos dias de hoje. Adorno
& Horkheimer elaboraram o conceito de indústria cultural4, sintetizando, por um lado, a
exploração comercial e a vulgarização da cultura. Por outro lado, eles quiseram significar nesse
conceito a ideologia da dominação da natureza pela técnica, implicando na dominação do
próprio homem. Tal expressão não se refere simplesmente às empresas produtoras e nem às
técnicas de difusão dos bens culturais. Em essência, significa a transformação da mercadoria em
cultura e da cultura em mercadoria, ocorrida em um movimento histórico-universal, que gerou o
desenvolvimento do capital monopolista, dos princípios de administração e das novas
tecnologias de reprodução. No caso da indústria cultural, os frankfurtianos não a inseriram
como uma esfera existente sobre a sociedade, mas como integrante. Embora o método que eles
usaram se fundamenta no marxismo, alguns de seus pressupostos básicos foram modificados e
recombinados com outras abordagens, como a psicanálise. Em bases gerais, os teóricos da
Escola de Frankfurt procuraram elucidar o caráter contraditório da conquista racional do mundo,
elaborando uma crítica da massificação da cultura mecanizada e dos regimes totalitários, a fim
de compreender o desenvolvimento da personalidade do indivíduo frente ao sistema opressor.

Segundo Adorno, na indústria cultural, tudo se torna negócio. Enquanto negócios seus
fins comerciais são realizados por meio da esquematizada exploração de bens considerados
culturais, expandindo as relações mercantis a todas as instâncias da vida humana. Sendo assim,

Teoria Crítica surge em oposição às estratégias de controle (ir)racionalistas e instrumentais da teoria


tradicional.
4
Adorno & Horkheimer (1985) usam o conceito indústria cultural no lugar de cultura de massas, uma vez
que esse último pode levar a uma idéia equivocada do surgimento de uma cultura espontaneamente
popular. Já o conceito do fenômeno em questão significa uma forma de mercantilização da cultura de
maneira vertical, autoritária, que procura adaptar as mercadorias culturais às massas e vice-versa.
Convém ressaltar que a categoria ‘massas’ significa a homogeneização das classes sociais e que o
processo de alienação atinge a todas elas. Desse modo, tanto os indivíduos das classes mais altas quanto

148
a máquina cultural, fruto de uma sociedade capitalista, acumula tudo o que é produzido pelo
sistema de produção cultural, de forma a influenciar e aumentar o consumo, transformar hábitos,
educar, informar, pretendendo-se, em alguns casos, atingir a sociedade como um todo.

Assim, de um modo geral, o denominador comum de qualquer processo industrial, é,


como diz Adorno, a produção para o consumo das massas:

A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus


consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da
arte superior e da arte inferior. Com o prejuízo de ambos. A arte superior se
vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior
perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza
resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total
(1971, p. 287-288).

Sem dúvida, a produção mercadológica da cultura incorpora os elementos


característicos do arquétipo industrial moderno, exercendo a manipulação ideológica do espírito
objetivo, ou seja, dos processos em ação na estrutura da sociedade. Na lógica capitalista, o
fundamento da mercantilização da cultura visa satisfazer os instintos reprimidos das massas aos
quais se orientam direta ou indiretamente os objetos culturais. Ainda segundo o entendimento de
Adorno, continua a se fazer valer a consideração dos interesses reais das massas, mesmo que de
maneira depreciada. A eficácia do motor industrial consiste em proporcionar ao homem as
necessidades do sistema vigente, isto é, consumir incessantemente. Com isso, o indivíduo viverá
sempre insatisfeito, desejando constantemente novas oportunidades da teia de consumo. É a
lógica do clichê, de esquemas que perpetuam estereótipos e que são repetidos à exaustão, tendo
como condição atingir o fim a que se destinam. Logo, uma das funções da cultura
industrializada é a de regulação moral das massas. Assim, além de infiltrar um padrão de
conduta, domando seus instintos emancipatórios, no sentido de manter e perpetuar o sistema,
promove a tolerância da vida desumana e banalizada.

Compartilhando essa idéia, Jameson (2001) acrescenta que as expressões da cultura de


mercado só são ideológicas na medida em que contém elementos utópicos implícitos ou
explícitos, com os quais satisfazem, mas, ao mesmo tempo, manipulam as necessidades dos
consumidores. Sendo assim, a prática da indústria cultural articula, gerencia e desativa os
problemas sociais e impulsos individuais dos seres humanos sob as condições atuais. E isso de
tal modo que, por mais que distorcido e finalizado o processo, ela permite que o indivíduo
expresse seus medos, mas também seus anseios com relação à vida em sociedade. Nesse caso,
sua intenção consiste em articular os impulsos recalcados, a fim de construir modelos de

das classes mais baixas são seduzidos para o consumo. Com o predomínio da cultura do consumo essas

149
comportamento, promovendo a inversão de valores. A própria felicidade do indivíduo é
influenciada e condicionada por essa cultura. Além disso, intenciona também obscurecer a
percepção das pessoas, resultando na regressão da consciência, como dissemos anteriormente. A
dominação se projeta então no desejo de controle revigorado pelos ideais modernos, de
progresso técnico e científico, e estrategicamente apropriados pela indústria cultural. Todavia,
como indicam algumas literaturas contemporâneas, o esclarecimento não pode ser revogado de
todo e, por isso, a característica central da consciência moderna não é simplesmente a alienação
nos bens de consumo, mas um cinismo bem informado a que as luzes da razão conduziram em
virtude de seu enredamento no capitalismo.

Seguindo esse raciocínio, os conteúdos veiculados nos produtos mercadológicos serão


bons ou maus, alienantes ou reveladores, conforme a mensagem por eles vinculada. De acordo
com o que descreve Adorno, na dialética da indústria cultural, as mensagens estruturam-se em
múltiplas camadas de sentido, de modo a abarcar os níveis dos mecanismos evidenciados pela
psicanálise. Os produtos culturais que os públicos consomem misturam preceitos ideológicos
realistas com fantasias conscientes e inconscientes, satisfação de desejos com ameaça de
punição, estímulos produtivos e dispersivos, expressão conformista e projeções utópicas.
Contudo, o sentido é regressivo, devido à dependência ao valor de troca e à necessidade de o
conjunto atender às expectativas dos virtuais consumidores. Essa constatação revela, de acordo
com Rüdiger, “que a subjetividade das massas constitui, ao mesmo tempo, a matéria-prima e a
arena onde emerge uma esfera pública articulada pela forma mercadoria” (2004, p. 228). Em
síntese, o sistema do engenho cultural, transformando a cultura em mercadoria, não apenas
apropriou os conceitos de consumo, informação, experiência, entretenimento e lazer, mas
conduziu à desintegração da idéia de formação e à maquinização da subjetividade.

Para abarcar tal propósito, a indústria cultural, aliada à publicidade, explora os


processos psíquicos de reconhecimento, identificação e propriedade com os valores dominantes
na sociedade, revestindo-os na (in)consciência do consumidor. Nesse quadro, a função da
publicidade para a afirmação, manutenção e sobrevivência do fenômeno em questão é a de
vender um produto, e assim aumentar o consumo e abrir novos mercados. Em cada anúncio
vende-se estilos de vida, sensações, visões de mundo, relações humanas, sistemas de
classificação, hierarquia, etc., em valores e quantidades maiores que os eletrodomésticos,
roupas, refrigerantes ou cigarros. A recepção e a apropriação dos produtos da indústria das
consciências se tornam, por essa, via, processos sociais complexos. Os sujeitos, interagindo com
outros sujeitos, pelas distintas formas de relação e comunicação (verbal, não-verbal, digital,

classes se mostram objetivamente distantes, mas subjetivamente se apresentam muito próximas.

150
impressa e virtual), atribuirão sentidos às mensagens de uma forma ativa, adotando atitudes
diversas, porém, muitas vezes, regressivas, experimentadas diferentemente nos cursos de suas
vidas.

Indústria das consciências: caminhos de volta

Frente ao crescimento selvagem e caótico do desenvolvimento industrial, gerando a


superpopulação, a pobreza, o desemprego e críticas condições ambientais, principalmente no
meio urbano, muitos países traçaram perspectivas e apontaram soluções para superar tais crises.
A conferência internacional sobre o futuro da cidade no século XXI: a Urban 21, conforme
publicado na Revista Deutschland, reuniu no dia 4 de julho de 2000, em Berlim, 3.500
delegados de países de todo mundo para discutir a questão. O resultado constatado pela
conferência confirma que o desenvolvimento sustentado é um critério especial para a
transformação urbana, visto que satisfaz as necessidades do presente, sem incorrer no risco de
privar as gerações futuras da possibilidade de satisfazer as suas próprias necessidades. O
relatório da conferência apontou três tipos de cidades com problemas diferentes. A cidade
marcada por um crescimento informal e excessivo; a cidade que cresce dinamicamente e a
cidade marcada pelo envelhecimento da população. Para efeitos da nossa discussão, abordamos
apenas a última. A cidade madura se encontra na Europa, na América do norte e na Austrália.
Em princípio, essas cidades resolveram o problema econômico fundamental: industrializaram-
se e desindustrializaram-se mais cedo. Hoje, elas são centros de prestação de serviços altamente
desenvolvidos, onde a maioria das pessoas já não fabrica mais objetos materiais. Investiram no
ensino, nas tecnologias de informação e na sustentabilidade da cidade, oferecendo a todos
oportunidades de viver mais em harmonia com a vida e a natureza. Assim como grande parte do
mundo passou por processos de industrialização em todos os campos, como o meio ambiente,
sociedade, marketing, etc., e hoje estão se voltando para atitudes mais humanizadas, menos
rígidas ou padronizadas, acreditamos também que o tema da indústria cultural pode sofrer um
processo de reversão crítica.

Ora, Adorno, ao final da década de 60, defende que a indústria cultural aliena, distrai,
manipula, mas, ao mesmo tempo, jamais reifica totalmente a subjetividade do indivíduo. Diante
da ideologia e dos bens culturais produzidos e veiculados pelos meios de comunicação de
massa, alguns sujeitos aceitam o produto veiculado, outros se conformam e ainda há aqueles que
conseguem discernir sem ilusão a realidade. Dessa forma, o comportamento dos indivíduos
frente à pressão do sistema para a integração à vida moderna não é, de modo algum, absoluto,
mas ambíguo. Isso tudo leva a concluir que o comportamento dos indivíduos não é resultado

151
unicamente do que propagam os meios de comunicação de massa. Com isso, a indústria cultural
não se reproduz sozinha. Ela é mediada por sujeitos com relativo grau de autonomia e que
procuram se fazer sujeitos diante do processo de reificação. Dialeticamente os pensadores
frankfurtianos, em especial Adorno & Horkheimer, concluíram que a postura crítica consiste em
promover o desenvolvimento da mentalidade dialética e não acelerar a marcha em direção ao
mundo administrado. Nessa mesma linha de raciocínio, Rüdiger (2004) comenta que o
capitalismo avançado é dominado pelas corporações transnacionais e a formação de blocos
político-econômicos. Em função disso, não deve ser visto com um regime totalitário. Antes
disso, constitui um momento de transição, caracterizado por uma dialética, cuja tendência
predominante é a dominação burocrática. Contudo, o curso não é linear, nem estável,
apresentando-se como um processo contínuo de caos e crueldade, ao mesmo tempo em que abre
possibilidades de uma renovação.

Habermas, da mesma forma que Adorno & Horkheimer, está vigilante para os
fenômenos de manipulação das massas. Observa a transformação de um restrito público
pensador de cultura para um amplo público consumidor de cultura. A partir da reformulação do
programa da Teoria Crítica da Sociedade, Habermas compreende que a coisificação não é uma
condição imutável da sociedade capitalista, mas um fenômeno que ocorre quando a
racionalidade instrumental sistêmica sobrepõe-se à racionalidade prático-moral do mundo da
vida. Nesse caso, a alternativa defendida por ele é buscada na ação comunicativa, intersubjetiva,
vivenciada em situações dialógicas nas quais os interlocutores buscam o entendimento, que
significa a “comunicação endereçada a um acordo válido” (1987, p. 500). Habermas, ao
procurar satisfazer as condições de racionalidade da ação comunicativa, passa a defender as
operações interpretativas dos sujeitos que coordenam sua ação através de pretensões de validez
susceptível de crítica. Nesse sentido, a razão comunicativa, diferentemente da razão
instrumental, se refere, não a um processo de coisificação, instrumento perigoso de integração
da sociedade, mas a um mundo da vida simbolicamente estruturado, que se constitui a partir das
contribuições interpretativas e que se reproduz através da ação comunicativa. Assim, segundo
esse autor, é na esfera social e da cultura que devem ser conjuntamente fixados os destinos das
sociedades através dos valores e das normas vigentes no cotidiano (mundo vivido). Entende que
o mundo da vida é racionalizado, na medida que permite interações regidas por um consenso,
não normativamente imposto, mas comunicativamente alcançado. Nessa perspectiva, os
componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber válido, da formação de
atores responsáveis e do estabelecimento de relações de solidariedade grupais.

152
Mas atualmente, numa época em que a industrialização consolidou-se em grande parte
do mundo, será que a cultura poderá sair da dominação do processo de informação industrial?
Será possível estabelecer relações assimétricas entre produtor industrial, produtor cultural e
público consumidor de cultura? Até que ponto a escolha de um produto da indústria cultural
será resultado de uma decisão consciente por parte do público consumidor, tendo em vista que
os padrões estabelecidos nos produtos mercadológicos são articulados com a lógica capitalista?

Buscando respostas a essas indagações, o Grupo de Pesquisa Formação Cultural,


Hermenêutica e Educação (www.ufsm.br/gpforma) tem desenvolvido algumas atividades com
professores/as da rede pública municipal de Santa Maria/RS, por intermédio de um projeto de
pesquisa e extensão intitulado “Formação da Opinião Pública na Escola”. Como exemplo,
apresentamos um trabalho de decodificação de imagem5 realizado com professores/as da Escola
Municipal Vicente Farencena.

5
A propaganda foi também analisada no texto A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de
comunicação, de Tânia Clemente de Souza, e encontra-se disponível no site:
www.uff.br/mestcci/tania39.gif

153
Nas conversas constatamos que os/as professores/as abordaram a idéia de que a coca-
cola é um produto industrial americano com presença marcante na cultura mundial,
patrocinando eventos de diferentes tipos e estilos, buscando nessa etapa confirmar a presença da
marca na cultura brasileira, fazendo alusão ao carnaval. Por esse artifício, ela incorpora a sua
marca (coca-cola) em eventos culturais a fim de abranger e integrar a população como um todo
aos seus objetivos, isto é, o consumo do produto. Essa opinião é reforçada no conteúdo da frase
usada no centro da propaganda: Para patrocinar artes, nada melhor do que alguém que já faz
parte da nossa cultura. A frase junta, sintetiza algo que aparentemente está separado pelas cores
amarelo (manifestação cultural = carnaval) e vermelho (produto a ser consumido = coca-cola).
Logo, ao consumir o produto o indivíduo é levado a pensar que está na verdade consumindo
cultura. Isso denota que cada vez mais a lógica do mercado transforma seus produtos em matriz
do modo da vida social, infiltrando a cultura do consumo nas práticas do cotidiano, por
intermédio dos artifícios da industrialização da cultura. Os/as professores/as constataram ainda
que a globalização, utilizando-se do engenho cultural, edifica uma civilização transnacional que
gera riquezas num ritmo acelerado; ao mesmo tempo, molda uma classe com o mesmo padrão
de aspirações, preconceitos, valores, que fortalecem a cultura da repetição, do simulacro e do
consumo. Ela está condenada, por um lado, por estar presente mundialmente nas propagandas
de caráter comercial, mas também está salva, por outro, por que patrocina produções de caráter
cultural.

Os/as professores/as relacionaram também as cinco máscaras, símbolo do carnaval


veneziano, e, portanto, do cultural, ao modo como a pessoa é moldada uniformemente a pensar
e agir segundo a lógica do capital. As três máscaras de cima, duas verdes e uma amarela,
revelam a alienação das pessoas, quando retrata a expressão de satisfação e de alegria em
consumir o produto. Já as duas de baixo denotam desgosto e tristeza (frustração), que é a
condição para o consumo. Essas máscaras são vermelhas e por isso estão mais identificadas com
a cor do lado em que está o produto coca-cola. Elas representam o público-alvo da propaganda -
as crianças e jovens, portanto. A analogia estabelecida reporta a duas questões chaves: a
reificação e a inquietação. Reificação que leva à regressão do gosto cultural ao consumo.
Estranhamento ou inquietação como possibilidade de reversão da racionalidade coisificada. A
análise desvenda por um lado, que a indústria cultural tem o poder de estimular o desejo, ditar
comportamentos, moda e estilos de vida. Ela trabalha no intuito de vender seus produtos (CD,
calçado, carro, bebida), associando-se aos momentos mágicos vivenciados pelos artistas
famosos e expostos, seja através da televisão, revista, outdoors, etc. O desejo de usar a roupa
das atrizes das novelas, o gosto de consumir a bebida escolhida pelo astro de futebol (já que
estamos em tempos de copa do mundo). Assim, o consumidor adquire o produto, buscando

154
identificar-se com o ídolo. Nesse esquematismo, o público passivo, acrítico, ou seja, reificado,
não distingue mais a ficção da realidade, acreditando alcançar a felicidade por meio da compra
da mercadoria. Adorno identifica nessa conduta o pseudo-indivíduo, que opta por imitar os
comportamentos regressivos, como uma forma de aliviar as tensões da vida. Por outro lado,
manifesta um público crítico, intrigado, inquieto, isto é, indivíduos buscando esclarecer-se
frente ao discurso ideológico. Se as pessoas aceitam a mentira que se tornou sua vida, também
enxergam sem ilusões essa realidade. A conclusão dos/as professores/as revela que eles/as estão
cientes do que está por trás da manipulação ideológica mercantil, reproduzida subjetivamente
através da apropriação da mercadoria, enquanto forma de integração social, ao mesmo tempo
em que admitem estarem imersos nos ordenamentos estabelecidos pela cultura do consumo.

Ora, se considerarmos, por um lado, que na indústria cultural a produção estética


integra-se à produção mercantil, formando a idéia de que é possível alcançar a realização por
meio da compra de bens de consumo. Por outro, não há como se opor diretamente aos rumos do
progresso que envolve o capitalismo industrial, ao mesmo tempo em que a manipulação está
criando o agir inconsciente, sem o desenvolvimento de possibilidades de ação comunicativa e
crítica. É nesse quadro que emerge o compromisso da educação. Pensamos que o conhecimento
do conceito de indústria cultural poderá criar as condições para propor uma política educacional,
cultural e comunicacional, capaz de fornecer subsídios para a compreensão e ressignificação do
próprio conceito. É por meio de alunos críticos, interpretativos que saibam ler a lógica que está
por trás do esquema da mercantilização da cultura que se poderá criar possibilidades de
interferência, a fim de alcançar um equilíbrio entre aquilo que diz respeito ao necessário e
aquilo que reafirma a lógica do mercado. Os produtos veiculados através dos diferentes meios
de comunicação (TV, internet, outdoors, rádio, jornal, revistas, etc.), utilizando-se do cultural
abarcam a quase todos os lugares; percebe-se assim que é impossível compreender o real vivido
pelo aluno sem interpretar as manobras ideológicas que se utiliza a indústria para permanecer
ativa.

Enfim, observamos que a aprendizagem da decodificação de imagens, signos, símbolos


e ícones da cultura do consumo pode enriquecer o processo de formação da opinião pública para
reverter a manipulação (ideológica) do sistema dominante. Nesse sentido, interpretando
Jameson, Trevisan (2002) complementa que não se trata de negar esses fenômenos da cultura
pós-moderna, mas antes, de compreendê-los e aceitá-los como a lógica cultural do capitalismo
tardio, pois as imagens produzidas pelo sistema comercial veiculam valores agregados tanto nos
programas em si quanto na propaganda, que constitui a base financeira do sistema.
Complementa que as pedagogias da indústria cultural, engessadas numa racionalidade

155
instrumental, procuram programar os indivíduos para considerarem normal o apego à teia do
consumo (cultural), como se a cultura não se opusesse a esse estado de coisas. Seguindo essa
linha de raciocínio, se a subjetividade for construída pela narrativa do capital, significa que pode
ser desconstruída e ressignificada culturalmente a partir do uso efetivo das linguagens (figuras,
fotografias, filmes, vídeos, reportagens, publicidade, clipes, etc.), veiculados pelas novas mídias
interativas. Nessa perspectiva, revertendo a tendência do consumo, o professor não será mais
um transmissor de conteúdos processados no livro didático, mas um produtor e socializador de
capital cultural. Apoiado nessa perspectiva, a proposta da pesquisa busca, em última análise,
discorrer a respeito das potencialidades e das contradições da chamada indústria cultural. Suas
implicações, decorrente desse entendimento, transforma professores e alunos em peritos aptos a
decifrar os mecanismos de apropriação do cultural, como forma distorcida da comunicação, que
nega a alteridade do outro e suas diferenças.

Concluímos pela necessidade de viabilização de uma política cultural junto às escolas


trabalhada de maneira interpretativa, crítica e criativa e, sobretudo, comunicativa sobre a cultura
do consumo, como possibilidade de decodificação dos produtos da mídia, a fim de buscar o
refinamento do gosto estético. Seguindo essa perspectiva, acreditamos que a ação educativa,
através de intervenções contextualizadas no mundo vivido, abre novas formas de compreensão
da pluralidade de sentidos que emergem do acervo cultural, principalmente o reconhecimento
do outro, no sentido de promover o respeito às diferenças do gosto do público, considerando a
singularidade dos valores imersos no cotidiano.

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157
Repressão do corpo numa sociedade esportivizada1

Daniela Peixoto Rosa


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação - UNIMEP

Pensar a Educação na sociedade contemporânea tem sido um desafio de resistência.


Pensá-la, significa compreendê-la enquanto parte integrante de uma cultura que se desfalece.
Portanto, não acredito que poderíamos propor aqui neste trabalho, uma proposta pedagógica que
dê conta da carência do sistema educacional. Pensando que com tal proposta, a Educação
poderia, puxando seus próprios cabelos, desatolar-se de um poço de lama. Não tenho, portanto a
pretensão de resolver ou mesmo de pensar a Educação, propondo “Dez competências” para o
futuro.
Enquanto professora de Educação Física, conteúdo de singulares características, na
escola e em outros âmbitos da formação cultural; vejo como necessários e intrigantes, trabalhos
que abordam a questão do corpo. Quando me refiro ao corpo, obviamente não estou entendendo
essa esfera em uma dicotomia cartesiana, corpo-mente. Mas, falo de uma esfera que poderia se
constituir num espaço de autonomia, espaço que se faz tão necessário quando pensamos uma
Educação que se contraponha à barbárie.
Neste sentido, talvez possamos pensar em uma Educação do Corpo que venha
potencializar o sentir e o pensar, enquanto dimensões humanas não dissociadas, ou seja,
potencializar o que se contrapõe a uma racionalidade tecnológica.
Pensando assim, desenvolvi no mestrado uma dissertação intitulada: Repressão do
corpo numa sociedade esportivizada. Esta pesquisa teve como referencial teórico a Teoria
Crítica da Escola de Frankfurt, em especial, Herbert Marcuse, um dos autores da Primeira
Geração. Nela busquei, por uma crítica imanente, elaborar teoricamente a sociedade
contemporânea tendo como objeto a repressão do corpo.
Abordei a questão da repressão do corpo na sociedade contemporânea frente às
possibilidades de experiências formativas que propiciem à racionalidade o ‘exercício’ da
sensibilidade (Sinnlichkeit)2 e da autonomia. As manifestações corporais, em que estariam
expressas a criatividade, a dimensão lúdica que poderiam ser trabalhadas para uma educação
emancipada, ou seja, para um “exercício” da Sinnlichkeit, tendencialmente está sendo abarcada
por uma racionalidade que reprime o desenvolvimento dessa sensibilidade.

1
O presente artigo é fruto de uma pesquisa sistematizada na dissertação intitulada Repressão do corpo
numa sociedade esportivizada, defendida no PPGE/UNIMEP em 2005.
2
Em alemão Sinnlichkeit se refere tanto ao plano dos sentidos, quanto ao plano da sensualidade. “Tanto
expressa a gratificação instintiva (especialmente a sexual) como a percepção sensório-cognitiva e sua
representação (sensação)”. (Marcuse, 1981, p.163)

158
Tendo em vista um dos espaços de formação e informação na contemporaneidade,
ilustrei meu objeto de pesquisa com artigos e reportagens vinculadas aos ‘mass-media’,
delimitando esse estudo na Revista Veja3, no período da organização e realização de um dos
grandes, se não o maior, espetáculo do esporte de alto rendimento: as Olimpíadas e as Pára-
olimpíadas de Atenas, em 2004. Entendo que esta metodologia me deu elementos para refletir
sobre os processos de produção, estetização e publicização do corpo, na dimensão do fetiche,
esfera que ilustra o que denominei ‘sociedade esportivizada’. Uma sociedade ligada à indústria,
ao espetáculo, criada e mantida por uma racionalidade que não é exclusiva do esporte de alto
rendimento, mas que, no entanto se torna ilustrativa nessa manifestação cultural para pensarmos
outras esferas da cultura.
A competição exacerbada, a exaltação do individualismo, a especialização, a divisão
entre os que pensam e os que executam o treinamento, a obsessão por rendimentos e resultados,
ou ainda a valorização incondicional da dor e do sofrimento para se atingir uma meta, são
características presentes no esporte de alto rendimento e não podem ser dissociadas do ambiente
inerente ao trabalho alienado “(...) um trabalho para uma engrenagem que ela (maioria da
população) não controla, que funciona como um poder independente a que os indivíduos têm de
submeter-se se querem viver”.(Marcuse, 1981, p. 58). O atleta de alto rendimento se assemelha,
devido à própria estrutura do espetáculo esporte de alto rendimento, de um trabalhador
envolvido em outras atividades da engrenagem do modo de produção capitalista, no que tange à
alienação inerente aos processos produtivos. No entanto, no que se refere à valorização do
‘produto do seu trabalho’, a espetacularização tecnologizada de seu corpo lhe garante
atualmente um dos maiores ‘rendimentos’ financeiros da esteira do capital.
A produção da indústria do entretenimento traz com ela outros valores, hábitos e
reações que sutilmente controla, impõe limites, padroniza a própria subjetividade e milita contra
uma transformação qualitativa da sociedade. Segundo H. Marcuse, esse controle, esse padrão de
pensamento caracteriza uma sociedade unidimensional.

Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no


qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o
universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou reduzidos a termos
desse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua
extensão quantitativa. (Marcuse, 1967, p. 32)

A tendência à padronização do pensamento que obviamente não está separada da


padronização da sensibilidade (Sinnlichkeit) tem promovido o que venho denominando de

3
Segundo dados retirados do site da editora Abril, www.abril.com.br, no dia 12 de Janeiro de 2005, o
número de assinantes da Revista Veja é de 900.547. Entre assinantes e não assinantes estima-se 10

159
reificação corporal. Unidimensionalidade que se faz sentir também e de forma especial nos
eventos de massa. Nos grandes eventos esportivos os “empolgantes” comerciais, fazem com que
no final de uma partida de futebol, por exemplo, esteja mais evidente o produto que precisamos
adquirir, usar, beber, comer e onde comprar.
Os homens se reconhecem em suas mercadorias, no entanto a aquisição destas é uma
necessidade produzida pela própria sociedade, em prol do controle social. "O resultado não é o
ajustamento, mas a mimese: uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade e
através dela, com a sociedade em seu todo". (Marcuse, 1967, p. 31) Tamanha eficiência da
civilização industrial desenvolvida denota o caráter racional de sua irracionalidade. Assim as
contradições entre realidade opressiva e as possibilidades de libertação se dissolvem no conforto
da elevação da vida material.
Se o trabalhador não consome os produtos propagandeados pelos meios de
comunicação, consome a imagem que o aparato produz para o momento de lazer em uma
identificação imediata com o status quo. Há então, um processo de mimese do trabalhador com a
imagem. Imagem esta, que nas palavras de Kehl (2004), seria “o espelho espetacular de sua
vida empobrecida”.(p.44)
Segundo Guy Debord (1997),

O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social.


Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada
além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna
espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. (Debord, 1997, p. 30)

Esse espetáculo não é composto simplesmente por um conjunto de imagens, mas é


“uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens”, é “o resultado e o projeto do
modo de produção existente” ou ainda, “uma visão de mundo que se objetivou”. (Debord,
1997, p. 14)
O espetáculo perfaz a cena do que tenho denominado de sociedade esportivizada. Uma
sociedade que celebra os índices, os resultados, as premiações. Hegemonicamente, nenhuma
esfera da cultura tem conseguido resistir à lógica do rankiamento que é celebrada em grandes
espetáculos para entrega dos prêmios/estatuetas aos melhores do cinema, da publicidade, dos
programas de TV, rádio e até o “melhor empregado do mês”. O esporte de alto rendimento
coloca-se como um ícone dessa tendência espetacularmente esportivizada da sociedade do
capital.
Escutei uma fala ilustrativa, em um programa esportivo da TV, onde um torcedor de
uma grande equipe do futebol nacional, chorando, disse: “A vida já é tão sofrida, o meu time

milhões de leitores. 11.111 páginas de anúncios, o que corresponderia a 2,5% do volume total da receita

160
ainda cai pra segundona4! O que querem fazer com a gente?” A imagem que se sobressai do
esporte de alto rendimento é espelho espetacular da vida empobrecida dos milhões de
trabalhadores que ocupam seu tempo “livre” lotando os estádios de futebol, ou inchando os
níveis de audiência dos programas esportivos da TV.
A mimese do espectador com o atleta de alto nível, com o corpo economicamente
rentável e esteticamente perfeito, produz não apenas um consumidor, mas uma ‘coisa’ a ser
consumido. Perde-se aqui a singularidade das produções subjetivas, o espetáculo é um modo de
produção da alienação.

A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua


própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla,
menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da
necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.
(Debord, 1997, p.24)

Pude elaborar melhor este contexto da sociedade esportivizada quando tive acesso a
uma pesquisa que, de alguma forma, buscava desmistificar, desmontar o cenário do espetáculo.
Vyv Simson e Andrew Jennings5 trabalharam durante quatro anos num livro intitulado
“Os senhores dos anéis – Poder, dinheiro e drogas nas Olimpíadas Modernas”. Importantes
documentos e entrevistas me aproximaram dos camarins do maior espetáculo proporcionado
pelo esporte de alto rendimento: as Olimpíadas.
Diante da racionalidade irracional e sendo sustentado por ela o esporte de alto
rendimento construiu suas estratégias, se institucionalizou. Atualmente, as Olimpíadas, são
organizadas/administradas por um Comitê Olímpico Internacional (COI), as federações
esportivas internacionais e os comitês olímpicos de cada país.
Um depoimento do espanhol Juan Antonio Samaranch, então presidente do COI,
ilustra bem a cena do espetáculo. Potencializar e controlar a cobertura jornalística dos eventos
esportivos era vital para o sucesso dos mesmos. Segundo Samaranch,

O mundo do esporte está mudando rapidamente, e a complexidade das questões e a


amplitude dos interesses comerciais cresce constantemente. Para lidar com estas
circunstâncias, decidimos aumentar o alcance e a profissionalização de nossas
comunicações. (Simson e Jennings, 1992, p.22)

de publicidade no Brasil. Semanalmente 1.093.813 exemplares são postos em circulação.


4
“Segundona” é uma gíria da linguagem futebolística que diz respeito à Segunda Divisão do Campeonato
Brasileiro de Futebol.
5
Vyv Simson e Andrew Jennings, são jornalistas ingleses, autores de documentários sobre a Máfia, o
caso Irã-contras, o terrorismo e a corrupção na Scotland Yard e declaram: “Para a nossa surpresa, nos
deparamos com a investigação mais difícil de nossas vidas. (...) Jamais encontramos tantas dificuldades
em conseguir entrevistas autorizadas, documentos e fontes primárias. Um dirigente olímpico respeitado
chegou ao ponto de contratar advogados, para tentar impedir a publicação das críticas às lideranças
olímpicas, feitas durante uma longa entrevista gravada.” (p. 07)

161
O presidente da agência de publicidade Grey contratada pelo COI, Ed Meyer, deixaria
mais explícita a questão:

Em nossa opinião (...) o movimento olímpico internacional é como uma marca, e


precisa de um guardião para preservá-la e desenvolver seu potencial futuro. A Grey
se orgulha de seu rol de sucessos em termos de assistência aos clientes na
implementação de marcas mundiais importantes, e pretendemos ajudar o COI neste
sentido. (Simson e Jennings, 1992, p.23)

Segundo o depoimento dos jornalistas Simson e Jennings, o centro de imprensa


ostentava as marcas das multinacionais patrocinadoras do evento. A sala era inundada por Coca-
Cola e chocolates Mars distribuídos gratuitamente e os jornalistas aceitavam, deslumbrados, as
sacolas Adidas. Quando algum jornalista indagava sobre questões obscuras, o único resultado
que conseguia era uma segurança reforçada para afastar a imprensa das entidades, que não eram
atletas, mas sim membros do COI. “Tudo faz parte do esquema de relações públicas. A
imprensa entra para a família olímpica, para o time olímpico”.(Simson e Jennings, 1992, p.33)
Imagens, cenas, ações, discursos e intenções, que permeiam os bastidores da produção
do espetáculo olímpico, não são conhecidos, mas são evidências de uma realidade falseada, da
dimensão do fetiche presente na mercadoria-esporte de alto rendimento e não obstante do
fetiche da publicidade em torno do corpo.
O espírito olímpico é um mito que deve ser cultivado! Essa é a relação que deve ser
mantida com o espetáculo olímpico e é essa a relação que se estende para as relações humanas
que hegemonicamente, na sociedade contemporânea, está mediada por imagens.
A sociedade esportivizada onde o espetáculo se faz presente é o resultado e a
arquitetura do modo de produção capitalista e representa uma visão de mundo que foi
incorporada. O corpo reificado tem mutilada a consciência de si mesmo, tem mutilada a sua
expressão, sua criatividade.
Mas, o atleta de alto nível, além do prazer de ser destaque entre os excluídos, também
carrega o peso de ser imagem. Nas Olimpíadas de Atenas 2004, sentimos o drama vivido pela
atleta de Ginástica Daiane dos Santos, que carregou a imagem de “brasileirinha voadora”.
Uma construção midiática “global” fabricada de forma irresponsável e desmedida. A atleta
voltou de Atenas como “uma grande decepção”, pelo seu insucesso em conseguir a medalha de
ouro. Se é que ter a quarta colocação nas olimpíadas, com todas as desigualdades de condições
de trabalho, seja um insucesso! Mas ainda carrega a imagem de “grande esperança para as
próximas olimpíadas”. O peso de carregar o sonho de uma nação de espectadores nas costas já
foi sentido por vários outros atletas que não conseguiram deixar presos seus sentimentos e, por
alguns momentos, perceberem que, apesar das exigências, não dá pra ser máquina o tempo todo.
Nesse sentido, trazemos as contribuições de Kehl (2004),

162
Evidentemente, as imagens dos ídolos populares, tal como a mercadoria, escondem
um segredo; eles também dependem da venda de sua força de trabalho, que é a
venda de parcelas de sua vida, ao grande capital da indústria cultural. Eles também
se vêem, diariamente, alienados do produto de seu trabalho. Mais ainda, eles se
vêem alienados de uma dimensão de sua própria subjetividade, já que a imagem,
cujo controle lhes escapa a cada dia, sustenta a ilusão de representar uma verdade a
respeito de seu próprio ser. (...) os vendedores de imagens são presas da própria
ilusão que produzem. São, ao mesmo tempo, o fetiche e o fetichista, o ilusionista e o
iludido. (p.82)

Para ser bom é necessário aparecer! A visibilidade na sociedade esportivizada não é


fruto de uma ação política que se oponha à engrenagem do sistema, é uma visibilidade do
espetáculo com todas as suas alegorias.
A distinção entre técnica e tecnologia em H. Marcuse me ajuda a pensar a questão da
reificação corporal na contemporaneidade. Enquanto tecnologia seria “(...) uma forma de
organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e
dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação.”
(Marcuse, 1999, p.73) o termo técnica tem em H. Marcuse uma singularidade, por si só ela
poderia estar ligada tanto à emancipação quanto à barbárie, dependendo do todo em que está
inserida. No contexto do capitalismo, a técnica não estaria separada do objetivo do capital –
lucro crescente. Mas, dialeticamente não está totalmente aprisionada por ele.
H. Marcuse (1981) busca desenvolver o aspecto contraditório referente às
“precondições materiais (técnicas)” de existência da sociedade contemporânea, que apesar do
atual nível de desenvolvimento material e intelectual que poderiam sim, serem utilizados como
“veículo de libertação”, tendo por objetivo satisfazer as pulsões e necessidades da vida; o que se
faz notar na história da humanidade é a contraditória e paradoxal utilização do progresso
científico e tecnológico visando à produtividade da Indústria da Morte, constituindo o elo entre
produtividade e destruição, liberdade e repressão.
Assim como em outras esferas da cultura, também no esporte de alto rendimento, a
tecnologia tem sido o esteio de produção. Mas vejo, no esporte de alto rendimento, uma
singularidade que o faz ilustrativo para pensar a reificação corporal via espetacularização
tecnologizada na contemporaneidade.
No esporte de alto rendimento o produto final diz respeito à performance de um corpo
potencializado para ser máquina. Assim, o corpo, na sua face mercadológica com todas as
nuances de uma mercadoria é o fetiche do espetáculo. Dentre as várias linguagens e leituras que
o corpo pode criar, seu potencial criativo se perde com a padronização tecnológica. Com os
conceitos criatividade e potencial criativo, não estou me referindo a mais uma competência ou

163
habilidade do professor, mas me refiro à mediação para a dura percepção da realidade, uma
percepção corporal e autônoma.
O aparato tecnológico vinculado à produção irresistível da indústria esportiva, a
produção de um corpo esteticamente perfeito, de um sonho, de uma vida longa e saudável com o
uso de determinado suplemento alimentar ou de determinada prática esportiva, a produção de
valores instigam certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores aos
produtores e, através destes, à lógica de uma sociedade esportivizada.
Não é mais possível pensar o esporte de alto rendimento sem um suporte tecnológico
de alto nível, seja durante os treinamentos ou durante as competições. Movimentos corporais em
que estariam expressas uma criatividade e uma diversidade das capacidades humanas,
paulatinamente, são padronizados por uma tecnologia digital que traduz na tela do computador o
movimento exato de um salto ideal, de uma “braçada” certa, da força e velocidade exata de um
chute perfeito.
No treinamento desportivo os atletas se dedicam ao domínio do corpo e para tanto, o
corpo deve ser visto como algo operacionalizável e seu mecanismo de funcionamento
apreendido e monitorado. O controle não é exercido apenas no cronômetro, nos diagramas do
computador, mas é também introjetado, incorporado.
O princípio de desempenho, destacado por Marcuse (1981), como “a forma histórica
predominante do princípio de realidade” (p.51) ganha ênfase no processo produtivo do esporte
de alto rendimento.
O treinamento desportivo se assenta na base da relação estímulo (carga de trabalho) –
descanso (intervalo). O modelo cíclico, idealizado em meados dos anos 50 pelo russo L. P.
Matveiev, no contexto das disputas da guerra fria, apesar das várias alterações, ou melhor,
variações, ainda permanece a sua lógica nas sessões de treino, preconizando momentos de maior
intensidade e⁄ o u volume de carga em associação com momentos de descanso ou de menor
intensidade.

Esse modelo cíclico tem como objetivo permitir uma adaptação do organismo às
condições de estresse que lhe são impingidas. Diz a teoria do treinamento que é
preciso avaliar a treinabilidade de um atleta e, com base nos princípios, nos métodos
e no planejamento executado, garantir que o atleta esteja sob o controle desse
percurso cíclico. (Vaz, 1999a, p. 103)

Esse controle do corpo necessário às várias atividades humanas é levado ao limite no


esporte de alto rendimento e, apesar de estar agindo fisiologicamente no corpo, é um controle
sutil; a recompensa pelo stress do treinamento, seja na forma de dinheiro, ou de fama, ou ainda
pela permanência do mito, mascara os conflitos que poderiam ser sentidos se o corpo já não
estivesse um tanto quanto reificado pelo stress do treinamento, pela dessensibilização em

164
conseqüência do doping metabólico-hormonal, enfim, pelo eixo da irracional racionalidade que
move a cultura contemporânea. Afinal, se é possível através do esporte-espetáculo sair de uma
situação de miséria financeira e ganhar muito dinheiro, tirar a família de uma situação precária,
então vale a pena “entregar o corpo” e transformá-lo numa máquina potente! Se destacar, fazer a
diferença entendendo esta como um “drible no destino dos excluídos” é a necessidade
corporalmente “sentida” e consentida.
Mas tal necessidade, criada muitas vezes pela precária condição de vida,
proporcionada pela sociedade do capital acaba por alimentar a exclusão. Nela estão imbuídos
valores como o individualismo, o rankiamento e é claro o “merecido” acesso aos produtos que
antes lhe eram negado. “Merecido” por que passa a ser normal e aceitável que outras pessoas
não tenham a mesma qualidade de vida, faz parte do sistema, do destino ou de várias outras
“entidades” do capital!
Nessa mimese, nessa identificação imediata do indivíduo com os valores de uma
sociedade excludente, mas embriagada de sutilezas, o modo de produção sustentado pela
tecnologia é na maioria das vezes entendida e difundida em diversas áreas de conhecimento,
como uma socialização, uma democratização de produtos materiais e intelectuais. Temo que tal
consideração, deixe descontextualiza uma questão central: Qual é o conteúdo, os valores éticos
dos produtos que estão sendo socializados? Penso que, socializa-se o cerne da economia
capitalista: a dominação e a exploração coisificadas que se transmuta em barbárie objetivada. E
essa dominação e exploração coisificadas não se faz presente apenas no sentido puramente
econômico. Ela forma necessidades, pensamentos e sentimentos.
A crescente mercadorização dos diversos âmbitos da cultura, aqui ilustrado pelo
esporte de alto rendimento, e a sua “socialização”, “democratização” teve como conseqüência
a otimização do tempo em função da intensificação da produtividade. Time is money! E a
tecnologia passa a ter um papel fundamental no treinamento desportivo de alto nível que luta
pela compressão do tempo e é claro, na “socialização” e “democratização” do espetáculo.
Se pensarmos no calendário esportivo nacional, por exemplo, teremos copa do mundo
de ginástica, atletismo, natação com etapas o ano todo intercaladas com várias outras
competições. O Futebol, esporte de maior popularidade, além de campeonatos continentais,
nacionais, estaduais e outros tantos organizados pelas instituições FIFA6 e CBF7 tem, em cada
temporada, seu calendário se torna cada vez mais inchado. As eliminatórias para a Copa do
Mundo, que se concentravam em alguns meses, tiveram seu calendário alterado para dois anos

6
FIFA – Fédération Internationale de Football Association.
7
CBF – Confederação Brasileira de Futebol.

165
de competição, o mesmo aconteceu com o Campeonato Nacional, que é disputado durante quase
12 meses.
O corpo teve que se adaptar ao “tempo-velocidade” em substituição ao “tempo-
passagem”.

Só há um tempo, o da vivência do êxtase, da emoção, do entusiasmo, do impacto, do


imediato. Um presente de alta intensidade com forte carga afetiva e sem nenhuma
densidade, apenas imagens que se seguem umas às outras, criadas e reproduzidas
pela tecnologia e que não representam mais a hierarquia do tempo. Daí o
investimento cultural e estético atual na momentaneidade, no instantâneo e no
processo de cristalização do aqui agora. (Marcondes Filho, 1996, p.297)

Obviamente o treinamento proporciona melhores resultados esportivos, um corpo mais


saudável, mais bonito e outros tantos valores e normas construídos historicamente e
culturalmente padronizados. Mas o que nos leva a pensar o treinamento desportivo de alto nível
é a operacionalização do corpo e a pauperização dos sentidos.
Se o corpo pode se tornar uma mercadoria rentável, que seja rápido! O treinamento
esportivo precoce tem sido um dos pontos bastante criticados no esporte de alto rendimento,
especialmente em algumas modalidades como a ginástica e a natação. Os treinamentos iniciam-
se entre os 5 e 7 anos de idade, já aos 10 anos a criança está sujeita a treinamentos intensivos.
Seria livre a opção da criança em assumir o treinamento esportivo de forma tão especializada,
sistemática e intensa? Não seria esta uma fase fundamental de experiências formativas variadas?
Outro aspecto instigante no esporte de alto rendimento que se contrapõe à idéia
recorrente de “esporte-saúde” é a questão do doping (potencializador do rendimento), mais uma
forma de operacionalizar o corpo para obter os resultados objetivados.
O doping não está presente apenas no esporte de alto rendimento; o anabólico
esteróide, substância mais utilizada pelos atletas está presente também em academias de
musculação. O que seria uma prática para preservar a vida com qualidade, parece se transferir
para uma linha tênue com a degradação do corpo e com a morte. Poderíamos também pensar no
significado das intervenções cirúrgicas para o embelezamento do corpo e outros tantos recursos
para estetizar o corpo-mercadoria e torná-lo mais “visível”, ou ainda, mais valorizado.

Se é lícito fazer uma cirurgia plástica para aumentar a beleza, por que não intervir
cirúrgica ou quimicamente para aumentar a performance esportiva? Por que é contra
a ética dos esportes? Esta mesma que tolera a violência contra o corpo, as agressões
físicas e psicológicas dos treinamentos e competições? Ou por que é contra a
“igualdade de chances”, algo que, como todos sabemos, não passa de um
formalismo fantasioso? (Vaz, 1999, p.107)

Diante de todo aparato tecnológico e químico presente nos treinamentos desportivos


fica difícil defender a idéia de que “no esporte, todos têm chances iguais”. Não queremos com

166
essa discussão esboçar alguma defesa do uso de substâncias químicas no esporte, o que
propomos é uma reflexão dos chamados “discursos éticos”. É difícil condenar o doping, por
exemplo, alegando que ele feriria esse princípio de igualdade de chances; na realidade, a
desigualdade já é brutal nas condições de treinamento. Treinar um atleta de alto nível é
impossível sem os caros e “bombados” suplementos alimentares e sem uma infra-estrutura
tecnológica que dê conta dos cálculos, tabelas, programações e até mesmo da padronização dos
movimentos para se atingir um nível de precisão desejado. Essa infra-estrutura demanda muito
financiamento em pesquisa científico-tecnológica. E financiamento/capital no atual modo de
produção é algo impossível de ser distribuído igualmente!
No controle e na padronização exercido pela tecnologia nas criações e manifestações
corporais, parece estar subscrito uma relação com a adaptação ao “tempo-velocidade” das
máquinas.
Um drama muito bem representado no filme Tempos Modernos de Charles Chaplin,
como bem interpreta Sevcenko (2001),

Neste filme de 1936, o artista expõe não só a maneira como a nova civilização
tecnológica deforma os corpos e o comportamento das pessoas, sujeitas a
movimentos reflexos incontroláveis e a impulsos neuróticos, como o modo pelo qual
suas relações sociais, seus afetos e sua vida emocional são condicionados por uma
lógica que extrapola as fragilidades e a sensibilidade que constituem o limite e a
graça da nossa espécie. (p.63)

O ritmo das máquinas, hoje digitais, deve ser acompanhado pelos seres humanos, com
isso, os valores sociais se diferenciam. Os indivíduos não são mais avaliados por suas
qualidades ou diferenças que tornam sua personalidade diferente de outras. Não há mais tempo,
nem espaço para percepções (sentidos).
Ficamos encantados com os movimentos corporais de atividades como a Ginástica
Artística, um belo salto no Atletismo, um lance de habilidade no Futebol. Mas até que ponto a
individualidade pode ser mantida neste espaço? O salto da Ginasta Daiane dos Santos, que se
destacou por se diferenciar dos demais numa das etapas da competição da Copa do Mundo,
agora, nas olimpíadas de Atenas, já com a mecânica do salto digitalizada e esquematizada por
treinadores do mundo inteiro, foi batizado de “Salto dos Santos” e logo deverá ser acrobacia
obrigatória para todas as atletas. Assim como se tornaram obrigatórios movimentos que um dia
expressaram singularidade e plasticidade de alguma atleta. Mas, sempre há um limite, um
recorde a ser superado. Neste sentido, o corpo ainda é uma fronteira ainda não conquistada!
O velho mito da criação de super-homens e supermulheres é acentuado no esporte-
espetáculo. “(...) sem a alteração tecnológica dos corpos e mentes não se terá mais chances em

167
esportes competitivos, não se quebrarão recordes e não se avançará nas estatísticas da
‘melhoria’ da espécie”.(Sevcenko, 2001)
A diversidade de expressões corporais, a característica do lúdico que poderia
contribuir para uma educação dos sentidos, para Sinnlichkeit, se padroniza, se automatiza, se
reifica. A qualidade é substituída pela quantidade e pela mercadoria que segue sua lógica de
expansão.
O corpo reificado se traduz em um funcionamento abstrato do mecanismo do
pensamento. Em Marcuse, o conceito de reificação está ligado à tecnologia; segundo o autor:

É apenas por meio da tecnologia que o homem e a natureza se tornam objetos de


organização intercambiáveis. Os interesses particulares que organizam o aparelho ao
qual estão submetidos se dissimulam por trás de uma produtividade e de uma
eficácia universais. Em outras palavras, a tecnologia tornou-se o grande veículo de
reificação – uma reificação que alcançou a forma mais acabada e eficaz. (Marcuse in
Loureiro, 2003, p.30)

Sob o impacto deste aparato um novo modo de pensamento se difundiu, a


racionalidade tecnológica. Segundo Marcuse (1999), “Esta racionalidade estabelece padrões de
julgamento e fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitar e introjetar os ditames do
aparato”. (p.77)
De forma hegemônica, a tecnologia aplicada ao esporte é vista de modo bastante
positivo, sem qualquer leitura mais crítica das implicações deste aparato tecnológico.
Nos movimentos corporais a técnica está presente, desde os menos elaborados aos
mais complexos, desde o balanço no galho de uma árvore a uma prova de ginástica em barras,
está presente em uma simples ação de chutar a bola e em um belo ‘lance de bicicleta’ no
futebol. Mas é difícil pensar em uma técnica que possa servir à emancipação no esporte de alto
rendimento já que aí ela não se encontra desvinculada de uma reificação corporal imanente ao
treinamento desportivo e aos atributos que a ele estão inerentes: a tecnologia de ponta, a política
dos patrocinadores, a exigência de bons resultados e recordes o que possibilitou a construção de
relações estritamente vinculadas ao capital.
A reificação do corpo garante a permanência e o aperfeiçoamento de uma sociedade
esportivizada, de uma racionalidade tecnológica que reprime qualquer alternativa de oposição à
sua dominação, ou mesmo qualquer alternativa de pensamento que perturbe sua lógica. “A
racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política” (Marcuse, 1967, p. 19)
Na sociedade contemporânea, com a perda da singularidade das produções subjetivas,
o corpo torna-se fetiche do espetáculo e o vetor dessa castração consiste no fato de que seu
potencial criativo está mediado pela operacionalidade tecnológica, vinculada aos valores e
normas do status quo numa sociedade esportivizada.

168
Pensar a Educação é elaborar a cultura e é também acreditar no seu potencial
emancipatório. No seu potencial de se constituir enquanto mediação para uma percepção
corporal e autônoma da realidade. Esse potencial criativo do “sentir”, do “pensar” está se
desfalecendo se reificando junto, como não poderia deixar de ser, com a cultura, com a
formação emancipada.
A questão da reificação do corpo na contemporaneidade parece legitimar o que aqui
denomino sociedade esportivizada, ao evidenciar como valores do homem contemporâneo: o
individualismo, a competição exacerbada, o ‘rankiamento’, a hierarquização no âmbito de uma
racionalidade instrumental e tecnológica, permeando todas as esferas da cultura.

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170
Indústria Cultural: experiência, vivência e choque em Walter Benjamin.

Fernanda Pinheiro Mazzante


Davi Rodrigues Poit
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Neste texto procuramos articular os conceitos de vivência, experiência e


choque desenvolvidos por Walter Benjamin em sua obra “Sobre alguns temas em Baudelaire”
para que, a partir deles, a cooptação realizada pela indústria cultural seja pensada como um
sintoma do empobrecimento da experiência a que toda a civilização está sujeita. O progresso
gera nos sujeitos novas formas de sensibilidade e coincide com a formação dos aglomerados
urbanos e com a fundação do modelo de vida citadino. O conforto das cidades trazido pelo
avanço tecnológico não só representa as possibilidades da melhoria das condições de vida para
parte da população mundial, mas também traz o isolamento associado às novas formas de
sensibilidade. Benjamin chama atenção para a normatização a qual está entregue a vida
civilizada, voltada às sensações imediatas que revelam, de fato, a atrofia da verdadeira
experiência. No contexto social mediado pela tecnologia em que o progresso é o condutor do
novo modelo de vida, a vivência – como experiência danificada, superficial e parcelada – tem
em sua essência aquilo que é fugaz e efêmero: não penetra no sujeito.
A indisposição dos sujeitos à experiência como sintoma da mediação social
configurada pelas novas formas de sensibilidade faz com que estes sejam cada vez mais
resistentes aos estímulos exteriores; a proteção dos sujeitos contra os estímulos aperfeiçoa-se e,
desse modo, a experiência, tal como é apresentada por Benjamin, só pode ser possível quando o
choque se torna a norma. A resistência ao choque, porém, aumenta na mesma proporção em que
a proteção do consciente contra os estímulos externos cresce; quanto mais resistentes ao choque,
menores serão as possibilidades dos sujeitos serem tomados pelo susto: estão preparados para
sofrer a ação dos estímulos e negá-los de imediato; vivem, desse modo, uma seqüência de
acontecimentos que compõem sua vivência, jamais sua experiência. As formas de estimulação
externa, para que penetrem nos sujeitos devem ser cada vez mais fortes para que provoquem
uma dose de impacto significativa o bastante nos sujeitos avessos à experiência.
A indústria cultural promete este tipo de choque; as músicas inaudíveis no
último volume do rádio, os programas de auditório que ridicularizam pessoas, filmes de morte,
violência, estupros, vingança: são eles representações da busca individual de negação do estado

171
de torpor trazido pela vivência, como um apelo às sensações humanas. Devem,
preferencialmente, causar horror e desconforto pra que sejam perceptíveis; é a realização do
desejo de manter-se vivo. Não estaria a indústria cultural correspondendo à necessidade
constante do choque? É o que pretendemos discutir neste texto, apoiando-nos na mesma
preocupação demonstrada por Benjamin no século passado: o empobrecimento da vida humana.

Indústria Cultural: experiência, vivência e choque em Walter Benjamin.

Já no século passado a degradação da experiência instigou Walter Benjamin


a refletir sobre o empobrecimento da vida humana; ele chama a atenção para o esforço da
filosofia em tentar se apropriar da “verdadeira” experiência, tendo como contraponto àquela
normalizada a qual está entregue a massa civilizada: experiência inóspita, vida contemplativa ou
simplesmente vivência. Nos leitores não afeitos ao modelo da poesia lírica – que pede por uma
sensibilidade sutil – e voltados aos prazeres dos sentidos imediatos, à melancolia, à informação,
revela-se, para Benjamin, a atrofia da verdadeira experiência.
Na evolução do progresso civilizatório a antiga forma de narrativa é
substituída por outras formas de comunicação, são narrados isoladamente, de modo que não
afetem a experiência do leitor e só cheguem até ele em forma de transmissão, de informação: É
uma narrativa compartilhada e absolutamente integrada à vida do ouvinte, diferentemente
daquela semelhante à narrativa lírica, na qual para Benjamin, “ficam impressas as marcas do
narrador como vestígios das mãos do oleiro no vaso de argila” (Benjamin, 1994:107).
O velho hábito de, ao final da tarde, jovens e velhos se reunirem à calçada
para contar histórias, quase se perdeu por completo. Nas grandes cidades este é um hábito
desconhecido, uma tradição que foi substituída pela narrativa dos jornais impressos em grandes
tiragens. O narrador que sentava à beira da porta de sua casa e reunia para si ouvintes atentos,
rememorava seus casos de infância e juventude imprimindo nos ouvidos sua própria experiência
e marcando neles vestígios qual oleiro no vaso de argila. Nessa forma perdida de narração, a
pretensão não é a de transmitir um acontecimento pura e simplesmente, mas de integrar a vida
dos ouvintes à de seu narrador; a experiência do ouvinte, nessa tradição, é amplamente afetada;
nela, a experiência individual do narrador e a experiência coletiva coincidem: “Na verdade, a
experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva.” (Benjamin,
1994:105).
Teriam os ouvidos se desacostumado a ouvir? A marca trazida do século
XIX é a que realiza um novo homem, não propício à experiência. A organização citadina
crescente opera nos homens uma formação avessa aos vestígios; as cidades são acépticas,

172
projetadas para funcionar coletivamente; as casas, antes identificáveis pelas marcas de seus
moradores, pelas cores e apetrechos particulares, passam a ser numeradas; elas são
despersonalizadas, tal como os edifícios de aço e vidro, construídos para a universalidade e para
a negação de vestígios. As casas se confundem, todas elas são iguais porque as diferenças
particulares são pouco toleradas na cidade. Benjamin concorda com Simmel ao citar o aspecto
desgastante da cidade sobre o homem: a “preponderância notável da atividade da visão sobre a
audição” (Simmel apud Benjamin, 1994:142). Os ouvidos humanos tornam-se mocos a certas
narrativas porque não têm paciência para ouvi-las e porque elas não lhe são compreensíveis o
bastante. Primo Levi (1988) em sua obra “É isto um homem?” faz uma narrativa de sua
experiência como prisioneiro em Auschwitz e, em algum momento do livro relata que, depois
de ser salvo do campo, não encontra palavras para relatar à sua família o que lhe aconteceu. O
terror tirou-lhe as palavras, mas talvez mesmo incompletas elas pudessem ser ditas se os seus
interlocutores não estivessem formados pela aversão à experiência da audição.
O progresso gera nos sujeitos novas formas de sensibilidade: a exemplo dos
transportes coletivos que obrigam as pessoas a estarem ao lado umas das outras por minutos ou
horas, sem que se dirijam a palavra; a exemplo da fotografia, que permite às pessoas serem
identificáveis não mais por suas particularidades, mas pela objetividade fotográfica. O
isolamento provocado pelo conforto trazido por algumas invenções: o fósforo, o telefone, a
máquina fotográfica, são alvos da reflexão de Benjamin a respeito das novas formas de
sensibilidade:
“Com a invenção do fósforo, em meados do século passado,
surge uma série de inovação que têm uma coisa em comum:
disparar uma série de processos complexos com um simples
gesto. A evolução se produz em muitos setores; fica evidente
entre outras coisas, no telefone, onde (sic.) o movimento
habitual da manivela do antigo aparelho cede lugar à retirada
do fone do gancho. Entre os inúmeros gestos de comutar,
inserir, acionar etc., especialmente o ‘click’ do fotógrafo
trouxe consigo muitas conseqüências. Uma pressão do dedo
bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O
aparelho como que aplicava ao instante um choque póstumo.
Paralelamente às experiências ópticas dessa espécie, surgiram
outras táteis, como as ocasionadas pela folha de anúncio de
jornais e mesmo pela circulação na grande cidade. O mover-se
através do tráfego implicava uma série de choques e colisões
para cada indivíduo. Nos cruzamentos perigosos, inervações
fazem-no estremecer em rápidas seqüências, como descarga de
bateria.” (Benjamin, 1994:124)

Benjamin refere-se às novidades trazidas pelo progresso em avanço do final


do século XIX coincidindo com a formação dos aglomerados urbanos e da formação da vida

173
metropolitana. Hoje, o isolamento na urbanidade trazido pelo conforto do progresso multiplica-
se incontestavelmente. Não só o fósforo, mas o isqueiro; não só as câmeras fotográficas, mas a
webcam; não só o telefone, mas o celular permite ao homem, com um breve e simplificado
movimento, dirigir e interagir com o que está a sua volta. Com um pequeno aperto no teclado do
celular, pode-se encomendar o almoço ou o jantar nos chamados “deliveries”; pode-se, via
internet, adquirir qualquer produto sem sair de casa: livros, roupas, carros, eletrodomésticos;
pode-se, sem o contato com o outro, fazer “amigos” nas salas de “bate-papo”; pode-se inclusive,
manter relações sexuais virtuais nos sites eróticos. Tudo isso do modo mais simplificado
possível, com um toque do dedo no teclado do telefone ou mouse, sem qualquer intermediação
humana. Se antes as pessoas eram capazes de estar uma ao lado da outra sem conversarem, hoje
a palavra é invasiva. A vida citadina afastou-as e dirigir a palavra a um desconhecido pode ser
considerado uma grande falta de educação. Mesmo o caminhar pelas ruas já não é mais o
mesmo. Para Benjamin, os pedestres olham, sem qualquer propósito e “são obrigados a fazê-lo
para se orientar pelos sinais de trânsitos. A técnica submeteu, assim, o sistema sensorial a um
treinamento de natureza complexa.” (Benjamin, 1994:125) As pessoas não mais se falam, não
mais se ouvem, não mais se olham.
A única experiência possível, para Benjamin, é aquela na qual o choque se
tornou a norma; quanto maior seja a freqüência de registro dos choques, menos traumático
deverá ser o efeito destes no consciente. Benjamin recorre a Freud para discutir a função dos
choques. Para Freud (1997), o consciente age com a intenção de proteger o organismo contra
estímulos externos e essa função é mais importante que a de recebê-los. A proteção contra os
estímulos criada pela consciência, é a angústia; ela é o escudo que impede que os estímulos
atravessem a consciência e penetrem o inconsciente. Se o escudo da angústia falha, então o
estímulo que penetra o inconsciente transforma-se em choque e, incontrolável como se
apresenta, converte-se em trauma. Para a teoria psicanalítica, a omissão da angústia rompe a
proteção contra o estímulo. Benjamin, no entanto, discorda da teoria freudiana; para ele, o
estímulo externo, ainda que não atravesse a consciência, já é o próprio choque. Nele reside a
essência do que é a vivência, como experiência plenamente empobrecida: fugaz, superficial e
efêmero, não penetra no sujeito.
O choque, para Benjamin, é o estímulo externo que vai à consciência; uma
vez amortecido pelo consciente, empresta “ao evento que o provoca o caráter de experiência
vivida em sentido restrito” (Benjamin, 1994: p.110), ou seja, um caráter de vivência. Na medida
em que cresce o trabalho do consciente na proteção contra os estímulos que lhe são exteriores e
seu êxito em operar contra elas, ”tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência.” (Benjamin, 1994:111). A

174
resistência ao choque aumenta na mesma proporção em que a proteção do consciente contra os
estímulos se aperfeiçoa; quanto mais resistente ao choque, menores são as possibilidades do
sujeito ser tomado de susto: ele está preparado para sofrer a ação dos estímulos e negá-los de
imediato; dessa forma vive uma seqüência de acontecimentos que compõem sua vivência,
jamais sua experiência.
Progressivamente mais resistentes aos estímulos exteriores, os sujeitos
procuram por estímulos cada vez mais fortes que lhes levem ao choque; a crescente resistência
faz com que aquilo que antes lhes causava susto, agora seja apenas objeto contemplativo. As
formas de estimulação devem ser cada vez mais fortes para serem capazes de provocar um
mínimo de impacto no sujeito avesso à experiência. Os acontecimentos exteriores e os estímulos
que os acompanham devem afetá-los e para que de fato o choque se realize, a busca dos sujeitos
por algo que lhes alivie o tédio pode chegar a ser frenética. Ela se expressa nas longas filas dos
parques de diversão, nas quais se enfileiram pessoas de todas as idades em busca do choque;
expressa-se também no crescimento da procura por esportes radicais, o bang jump , ou rafting,
por exemplo; expressa-se na aversão do homem citadino à monotonia do campo, assim como
nas filas do cinema e shoppings centers nos finais de semana, na mão que aciona o controle
remoto inúmeras vezes em menos de um minuto.

A indústria cultural promete este tipo de choque; as músicas inaudíveis no


último volume do rádio, os programas de auditório que ridicularizam pessoas, os filmes de
heróis assassinos que apresentam a morte, o estupro, a vingança e a violência aos componentes
que correspondem à busca individual de negação do tédio e da realização do desejo de sentir-se
vivo. No cinema, a imponência da tela, o volume do som é o apelo às sensações humanas; um
ambiente fechado e escuro, em que as imagens parecem querer devorar os que a assistem não
permite que o expectador veja nada além dela mesma, tampouco ouça algo além da trilha sonora
cinematográfica. As cadeiras almofadadas permitem o prolongamento da permanência dos que
vêem o filme, de modo que eles só consigam perceber o descômodo após o encerramento da
sessão. Agregados a elas, lugares destinados a acomodação de copos de refrigerantes e pacotes
de pipoca, para que não se perca nem o segundo de se voltar a sua própria sede. Filmes de
ficção e horror trazem em sua essência uma linguagem que é a de susto; a história deve ser a
história do inesperado, mas de um inesperado que já é bastante previsível porque repete os
inesperados anteriores. Multidões se afeiçoam ao gênero para que o cinema possa tirar-lhes do
estado de torpor próprio de suas vivências e levá-las ao choque, ainda que efêmero, causado
pelo grito da atriz. Ironicamente, um colunista da Folha de São Paulo conclui: “Uns vão ao
cinema com a expectativa de sonhar de olhos abertos. Outros podem alucinar e muitos até
deliram. Não importa a intensidade dessas experiências, desde que elas aconteçam no espaço

175
escuro e com ótimas condições de imagem e de som”. (Carlos, 2003: E3) Nas palavras de
Horkheimer e Adorno, “o passo que leva da rua ao cinema não leva mais, em todo caso, ao
sonho” (1985: 130); o espectador busca nele um refúgio onde talvez possa sentir-se um pouco
mais vivo, tomado de surpresa, embora ele próprio já saiba que seu destino será marcado
unicamente pela integração.
Dentro de casa, no isolamento, o espectador liga a televisão para ser
massificado solitariamente; os reality shows fazem grande sucesso porque são a vida real
teatralizada; é o modo como o telespectador quer conhecer a vida privada, invadi-la, deixá-la
entrar em sua própria intimidade; é a necessidade de saber qual é a marca particular do sabonete
das modelos, conferindo-a com aquela que ele mesmo usa. É também o momento de talvez
esperar que os atores da vida real, por meio da televisão mostrem suas intimidades, seus corpos,
suas roupas íntimas; que eles se mostrem chorando, tomando banho, fazendo sexo ou em
qualquer outra atividade que apenas poderia ser realizada sem tensão na mais plena privacidade.
Vê-los sem roupa é o choque; tomando banho e fazendo sexo, também. Mas a rotina desta
exibição acostuma ao que assiste e a cada dia será preciso inovar em ousadia para que venha,
junto com a exibição, o susto, algo que os deixe perplexos e os tire do estado morno de suas
consciências. Assim avança a indústria cultural, prometendo choques cada vez mais intensos,
superando as antigas formas de sensibilidade e substituindo-as por outras que torna
progressivamente mais precária a vida humana e os homens menos hábeis aos sentimentos.

Baudelaire, segundo Benjamin, diante dos leitores desacostumados e


arredios ao lirismo, entregues aos prazeres imediatos dos sentidos, tentou por meio de choques
despertar-lhes a experiência, já à época, danificada: ele se lamenta pela experiência perdida e se
encanta com a massa; ele descreve o flaneur que se mistura a ela mas não é parte dela; aponta o
encanto da paixão efêmera pela passante, que se perde dentro da multidão. A tentativa de
reavivar a experiência, tentando buscá-la onde há muito só existe vivência, foi a sua maior
frustração; Baudelaire apelou para o choque para despertar as pessoas à consciência; mas o
choque de sua poesia lírica não é o mesmo daquele empregado pela indústria cultural; o choque
do cinema, por exemplo, é um choque bruto e, apesar de sua brutalidade extremamente
exacerbada e apelativa, é um choque que, no lugar de despertar, adormece: acostuma o
espectador ao horror e não lhe causa qualquer indignação contra ele; ao contrário, a apelação da
indústria cultural já vai direto à consciência porque ela não esconde de seus contempladores,
espectadores e ouvintes que tudo o que ela apresenta é, sem dúvida, uma grande mentira; ela
mostra escancaradamente a desgraça ilimitada, a fome, a tortura e o cárcere, e todos esses
elementos se convertem para nós em entretenimento, enquanto que para ela, significam lucro.

176
Tal é a freqüência com que ela apresenta a miséria humana que já não se pode dar conta do
sofrimento que na vida real similarmente existe. A todo o momento, somos lembrados de que o
filme é a extensão da vida real e ele mesmo nos prepara para enfrentarmos a dureza que nos é
exigida por ela.
Não cabe mais tentar despertar os sujeitos pelo choque; essa tentativa, já
frustrada no lirismo de Baudelaire, adquire um sentido ainda menos humano na indústria
cultural: o de entorpecer as massas para que nenhuma desgraça seja capaz de indigná-las. O
mesmo meio que as adormece, o choque do filme de guerra, do som estridente no rádio, da
ridícula atuação dos programas televisivos, dos jargões nas prateleiras abarrotadas de livros de
auto-ajuda, não as pode mais fazer despertar; por outro lado, o choque que a indústria cultural se
esforça em manter é cada vez mais forte e é evidente que a cada nova tentativa dela em chocar
seus contempladores, depara-se com a insensibilidade crescente dos mesmos como defesa
contra o sofrimento que choques anteriores tentaram causar. A angústia permanente evita
qualquer susto e o maior dos absurdos passa a ser uma ocorrência rotineira, destituída de
qualquer perplexidade. A sensibilidade que o choque da indústria cultural quer provocar é
sinônimo do amortecimento dos sentidos humanos, que não mais se revoltam, não se indignam,
não se põem em recusa ao horror presente. Cabe, sim, pensarmos não só no empobrecimento da
experiência humana como componente do programa de integração já previsto pela indústria
cultural, mas em suas conseqüências para a própria constituição da vida. Enquanto a eminência
da palavra holocausto for ouvida sem que os olhos de toda a humanidade se estatelem, nenhum
outro choque, tanto menos o choque das armas de fogo e estratégias de guerra do cinema será
capaz de sacudir a humanidade dormente; “Na Alemanha, a paz sepulcral da ditadura já
pairava sobre os mais alegres filmes da democracia”. (Horkheimer e Adorno, 1985: 118)

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Janeiro: Zahar.

LEVI, P. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco.

177
Consumo de imagens e formação de estereótipos na relação entre indivíduo e estilos
musicais

Deborah Christina Antunes (Centro de Educação e Ciências Humanas, UFSCar, Programa de


Pós-Graduação em Educação)

Ari Fernando Maia (Faculdade de Ciências, Unesp-Bauru, Departamento de Psicologia)

O objetivo deste texto é apresentar como a indústria cultural atual, por meio dos
produtos padronizados que vende – neste caso a música – e das imagens vinculadas a eles como
forma de pseudo-individuação, acaba por oferecer modelos de identificação aos seus
consumidores. Tais imagens, consumidas pelo indivíduo na sociedade administrada,
representam, ao mesmo tempo, a força que impulsiona o consumo e aquilo que corrói o que os
sujeitos buscam, ou seja, uma real identidade, e, além disso, acabam mediando as relações
sociais, inclusive dando base para o preconceito. Visando a este objetivo este texto percorre os
conceitos de: indústria cultural, música enquanto mercadoria e fetichismo da mercadoria, para
no fim, apresentar como essas questões aparecem empiricamente, nas faladas de pessoas
entrevistadas a respeito do seu “gosto” musical.

1- Alguns pontos em relação à indústria cultural

O termo “indústria cultural” foi empregado pela primeira vez, por Adorno e Horkheimer
(1985) no livro Dialética do esclarecimento, em substituição ao termo “cultura de massa” para
evitar uma interpretação errada do que o conceito significa na realidade. O termo cultura de
massa sugere uma cultura que surge espontaneamente das massas, uma arte popular, assim,
indústria cultural difere radicalmente deste conceito (Adorno, 1994).
A indústria cultural, então, é muito diferente da cultura de massa, pois se configura num
sistema formado por diversos ramos que, ao se apropriar de materiais da arte popular, atribui-
lhes uma nova qualidade adaptando-os ao consumo das massas. Suas ramificações ajustam-se
de forma integral e de modo a evitar qualquer lacuna, o que é proporcionado tanto pelo avanço
tecnológico, quanto pelo sistema econômico e administrativo1. Seu funcionamento como um

1
Neste ponto é importante não perder de vista a discussão de Adorno e Horkheimer (1985) a respeito do
esclarecimento que, como uma forma de negar o mito cria uma nova forma de sabedoria (e de sociedade),
que não deixa ela mesma de ser tratada como um mito pelos homens. Ao estabelecer novas formas de
relação tanto entre os homens, quanto entre eles e os objetos, visando à objetividade, ao controle, este se
torna o fim, e o homem, o meio.

178
sistema engloba não apenas os meios de comunicação de massas, como o rádio e a televisão, por
exemplo, mas o todo da vida social, incluindo até a arquitetura de casas, prédios e centros
urbanos. Em todas essas esferas são comercializados produtos padronizados, que sobre “enfeites
distintos” apresentam a mesma estrutura (Adorno & Horkheimer, 1985; Adorno, 1994).
Tanto a arte popular, quanto a arte superior, como se refere Adorno (1994), quando
engolidas pela indústria cultural e passando a fazer parte dela perdem seu conteúdo de verdade
ao se transformarem em mercadoria, num processo em que o controle social adentra a esfera da
arte e aqui, segundo este autor:

O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de


fazer crer, ele não é o sujeito dessa industriaria, mas seu objeto. (...)
As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural,
ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar (Adorno,
1994, p. 93).

Entretanto, o termo “indústria” diz respeito mais especificamente a duas coisas:


primeiro à padronização de mercadorias, e segundo, à racionalização das técnicas de
distribuição. Quanto ao processo de produção conservam-se formas individuais somadas aos
procedimentos técnicos, à divisão do trabalho e à introdução de máquinas. Tais formas
individuais conferem ao produto a ilusão de individualidade que trabalha em favor do
fortalecimento da ideologia na medida em que, no produto, aquilo que é consumido como
refúgio, na busca pelo consumidor de vida e de autenticidade, é na realidade algo coisificado e
mediatizado pelas relações estabelecidas e predominantes nesta sociedade. O conceito de
“técnica” também se diferencia na indústria cultural e na esfera da arte. Na arte, a técnica se
refere à lógica interna da obra, enquanto que na indústria cultural ela está ligada às técnicas de
distribuição e reprodução mecânicas, sendo totalmente externa ao objeto (Adorno, 1994).
A cultura, que em alguns momentos no capitalismo liberal trazia conteúdos de protesto
contra aquilo que havia de desumano na sociedade, quando assimilada pela indústria perde seu
caráter emancipador e torna-se, junto ao homem que a consome, integrada à barbárie. As
produções humanas, mesmo quando recebem o status de arte, ou quando pretendem sê-lo, já não
o podem mais. Seu estilo integrado ao da indústria – inclusive pela corrosão do homem que a
produziu – confere-lhe integralmente o status de mercadoria. Aqui é importante estar atento para
o papel da indústria cultural na formação da consciência dos homens que consomem seus
produtos, pois ela é, em sua essência, a objetivação do espírito dominante da sociedade atual e
deve, pelo fato de influenciar a economia psíquica das massas, ser submetida à reflexão crítica.
Ela encoraja e explora a fraqueza do eu que se desenvolve na sociedade atual, fazendo com que

179
os indivíduos sofram transformações regressivas, assim, ela reorienta as massas impondo
esquemas de comportamento, num sistema do qual não se consegue fugir (Adorno, 1994).
Mesmo as atitudes do público consumidor dos produtos da indústria cultural, tomado
ideologicamente como base para a produção dos materiais, são partes do sistema. As respostas
padronizadas perante os produtos consumidos, não são apenas causadas pela adaptação dos
sujeitos às características dos produtos, mas são a desculpa da indústria para a manutenção do
seu padrão. Além disso, a indústria cultural domina a esfera da fuga para a diversão, esfera que
atualmente consiste no prolongamento do trabalho e que é procurada por aqueles indivíduos que
precisam “recarregar as energias2” no seu tempo livre, para ter condições de voltar a enfrentar o
trabalho mecanizado – e hoje não é apenas o trabalho do operário na indústria que é
mecanizado, esta qualidade apresenta-se também nos trabalhos chamados de intelectuais. Desta
forma a diversão já não exige qualquer esforço na busca de algo novo, mas oferece produtos que
favorecem a adaptação e a repressão; tais produtos exigem certo esforço em seu consumo, mas
se trata de um esforço que ao invés de construir um novo indivíduo, o destrói em suas
potencialidades (Adorno & Horkheimer, 1985).
O conteúdo das revistas de diferentes preços, as músicas transmitidas pelas rádios, com
seus diferentes títulos, ou mesmo aquelas veiculadas por uma mesma rádio em diferentes
horários, e também aquelas músicas atribuídas às personagens das telenovelas em suas
respectivas tramas, de acordo com sua “personalidade” e seu núcleo, oferecem ao público
distinções que são meramente classificatórias, e que na realidade têm muito pouco a ver com a
qualidade do material apresentado, mas que acabam por servir de exemplos de conduta e
identificação (Adorno & Horkheimer, 1985).
As idéias sedimentadas nos produtos da indústria cultural são aquelas da ideologia
dominante, que são aceitas sem reflexão e análise tão logo as mercadorias são consumidas. São
em certa medida imperativos categóricos que diferentemente do conceito kantiano, revelam-se
enquanto possibilidade apenas de aceitação e submissão cega àquilo que é posto a partir do
exterior, sem a participação do sujeito cujo papel é única e necessariamente passivo (Adorno,
1994).

2- Sobre a música na esfera da indústria cultural

Segundo Adorno (1998), na sociedade administrada, todos tendem a obedecer


cegamente à moda musical, como acontece em outros setores da indústria cultural (alguns deles

2
É interessante como o termo “recarregar as energias”, tão utilizado atualmente, liga o homem à
máquina, como se ele funcionasse também a base de baterias.

180
já citados anteriormente), já que os sujeitos, na exposição exaustiva aos seus produtos, acabam
perdendo a autonomia. Para efeito deste estudo, considero importante dar alguma atenção mais
específica às características do material musical veiculado como um dos produtos da indústria
cultural.
Enquanto arte, a música formava estilos, mas estes, na realidade, eram promessas, pois
o que era expresso pelo estilo deveria se conciliar com a idéia da obra em seu todo. O mais
importante não era pertencer a um estilo ou a outro, mas a realização do confronto com a
tradição na realização da crítica social, na expressão do sofrimento e na busca de sua superação
por meio desta crítica. Assim o estilo autêntico não consistia na realização de uma harmonia,
mas exatamente em seu contrário, no fracasso do esforço da busca pela identidade entre
indivíduo e sociedade. Com isso fica claro que o que hoje a indústria cultural chama de estilo é,
na realidade, a antítese desse estilo autêntico, na medida em que as músicas são produzidas a
partir de um esquema prévio e rígido, que corresponde àquilo que a indústria chama de estilos,
embora, dessa forma, as únicas distinções possíveis entre as obras sejam produzidas pelo
acréscimo de diferentes detalhes, acrescentados aleatoriamente e sem relação com o todo.
(Adorno & Horkheimer, 1985).
De acordo com Adorno e Simpson (1994) a música popular e a música séria possuem
diferenças de níveis. Enquanto que na música séria os detalhes fazem parte do todo e obtém
significado a partir do contexto, não podendo jamais ser padronizada, na música popular, sua
característica fundamental é a padronização (estandardização) da estrutura que conduz “tudo de
volta para a mesma experiência familiar, e que nada de fundamentalmente novo será introduzido
(Adorno & Simpson, 1994, p.117)”. Os detalhes são acrescentados a um esquema padronizado
quanto à forma, e são identificados como efeitos de uma produção individual. Assim cada
detalhe é perfeitamente substituível, já que eles não guardam nenhuma ligação com o todo,
embora as mudanças periféricas sejam a base da pseudo-individuação. É desta maneira que a
padronização da estrutura gera reações padronizadas nos ouvintes, enquanto, ao mesmo tempo,
eles são enganados sobre a natureza estandardizada do produto que consomem; a individuação
buscada no consumo desses produtos recai numa massificação baseada em estereótipos, e isso
pela própria natureza da música na indústria cultural:

A audição da música popular é manipulada não só por


aqueles que a promovem, mas de certo modo, também pela natureza
inerente dessa própria música, num sistema de mecanismos de
resposta totalmente antagônica ao ideal de individualidade (Adorno &
Simpson, 1994, p.120).

181
Esta música, por meio de sua estrutura padronizada, não requer do ouvinte esforço para
realizar a escuta. A ele ficam restritas as respostas condicionadas aos estímulos auditivos. É
desta forma que a música popular se encontra facilitada, pré-digerida. Assim a construção
estrutural do próprio material musical dita o modo como os indivíduos devem ouvir e ao mesmo
tempo torna desnecessário o esforço na escuta, provocando mudanças no hábito de ouvir
(Adorno & Simpson, 1994).
A música popular, ao fazer parte dos produtos rapidamente consumíveis, descartáveis e
substituíveis, responde então a duas demandas, a primeira é a apresentação de estímulos que
provoquem a atenção do ouvinte e a segunda é a necessidade de parecer natural, contendo em si
todas as fórmulas já definidas de antemão. Ou seja, a música, para ser facilmente vendida pela
indústria, deve ser diferente o bastante para chamar a atenção, mas ser suficientemente igual
para ser facilmente reconhecida e, ao não provocar estranhamento no ouvinte, ser aprovada e
consumida. Eis aqui suas características essenciais: a padronização, a facilitação e pseudo-
individuação – esta última caracterizada pelas novas “roupagens” sobre uma estrutura sempre
semelhante (Adorno & Simpson, 1994; Adorno, 1998).
Porém, assim como nos outros ramos da indústria cultural, na música o termo
“industrial” só pode ser aplicado na esfera da distribuição e promoção, sendo que na esfera da
produção ainda permanece uma característica de manufatura, o que garante às canções a ilusão
de individualidade, sendo que a produção artesanal conforma-se com a necessidade de mascarar
a padronização por meio da manutenção da ideologia do gosto e da livre escolha (Adorno &
Simpson, 1994). Adorno (1998) se refere à questão do gosto como algo ultrapassado, uma vez
que o indivíduo não vive mais a sua liberdade de escolha, tanto porque, de fato, não há produtos
essencialmente diferentes para serem escolhidos, já que todos estão padronizados, quanto
porque, exatamente pela exposição massiva a tais músicas, o hábito de ouvir foi modificado,
ocorrendo o que ele chamou de “regressão da audição”. A opinião passou da esfera do indivíduo
para a esfera pública, e o critério de julgamento é apenas a popularidade da canção3, a
possibilidade de seu reconhecimento instantâneo, numa época em que a música, transformada
em mercadoria, tem como conseqüência a liquidação do indivíduo.
O fetichismo da música, que é tomada então como mercadoria, apresenta-se pelo
abandono do seu valor de uso real, em prol de sua aparência, negado pela falta de relação
autêntica, sendo que à música é atribuído um valor abstrato e ilusório. São esses valores que são

3
A respeito da popularidade da canção, Adorno e Simpson (1994) explicaram como, por meio do método
do plugging, as músicas são disseminadas exaustivamente até que ao indivíduo resta apenas a adesão, ao
ser convencido, pela escuta insistente, de que aquela música realmente faz sucesso, e se o faz, é boa.
Entretanto, na realidade, a música não toca nas rádios porque faz sucesso, mas ao contrário, faz sucesso,
justamente por tocar nas rádios.

182
consumidos e com os quais o sujeito ainda estabelece alguma relação, pois as qualidades
específicas da música não podem mais ser compreendidas (Adorno, 1998).

3- Imagens abstratas no lugar de valores de uso – a ampliação do fetiche

Na relação estabelecida entre os sujeitos e as mercadorias, os indivíduos consomem


ilusões, e acabam por viver ilusões, na medida em que a privação é a da própria realidade
concreta. O produto agora não é mais a mercadoria palpável, mas a aparência é o produto em si
mesmo, e por ser apenas aparência, uma ilusão, jamais poderá cumprir a promessa de satisfação
das necessidades dos indivíduos que a consome.
Porém, a imagem, propositadamente vinculada à mercadoria, como um valor agregado a
ela, surge no movimento do capitalismo que se acelera juntamente com o desenvolvimento
tecnológico e a necessidade de desenvolver novos modos de manutenção do sistema capitalista.
A aparência é produzida adicionalmente ao produto, dando-lhe uma característica que, em
essência, ele não possui. O limite está posto quando esta aparência torna-se ela mesma o
produto, substituindo-o (Haug, 1997).
Neste momento, a imagem constitui uma marca, que é integrada de tal forma aos
produtos que constitui o valor e a própria mercadoria, e segundo Haug (1997):

A marca e as promessas mediatas e imediatas do valor de uso


nela contidas não precisam absolutamente referir-se à característica
particular da mercadoria designada por ela (p.38).

Não se referindo às características do material, a marca baseia-se totalmente em


imagens que não correspondem ao real. Ou seja, a qualidade não se refere ao produto, mas à
marca, à sua embalagem:

As mercadorias assim apresentadas praticamente deixam de concorrer


como valores de uso com os produtos correspondentes de outras
empresas. A concorrência deslocou-se consideravelmente para o plano
da imagem. Agora uma imagem concorre com uma outra imagem...
(Haug, 1997, p.43).

No âmbito da música este processo ocorre não apenas na construção do próprio material
musical, na investida de novos timbres ou arranjos (na tentativa de agregar a música uma
qualidade ilusória), por exemplo, mas também na produção do artista como uma imagem, de
valores morais e de condutas que se vende junto com a música. O ouvinte escolhe entre estilos e
artistas supostamente diferentes. É esta “embalagem” que realmente promove as vendas e o

183
consumo de mercadorias iguais, tomadas de forma ilusória como diferentes, mas não a própria
música, que como vimos, permanece sempre sobre uma mesma estrutura. A imagem, que
ideologicamente pretende referir-se ao material, não diz respeito ao seu conteúdo objetivo, mas
se faz enquanto uma representação, um estereótipo. Mas o assustador está numa questão
fundamental explicitada por Haug (1997): o poder das imagens enquanto formadoras de
opinião.
No caso da música padronizada, são as imagens ligadas a ela, como novos fatores de
pseudo-individuação, que acabam formando sua marca, com a qual os sujeitos se identificam no
processo de consumo. As opiniões sobre si mesmo e sobre os outros acabam sendo mediadas
pelos estereótipos vendidos juntamente com a escuta musical. Entretanto, no que se refere à
música popular e aos estilos musicais atualmente correntes, eles não são caracterizados por uma
verdadeira diferença em sua estrutura, como desde Adorno está claro, tampouco por uma
suposta qualidade inerente. O que caracteriza um estilo hoje é a imagem que se liga a ele, a um
conjunto de condutas estereotipadas, com o qual os consumidores devem se identificar no ato de
consumo.

4- O consumo das imagens por meio da música: alguns dados empíricos

Numa pesquisa realizada em 2005 a respeito dos “gostos” musicais, os sujeitos


entrevistados chegaram a citar claramente o vínculo existente entre a música escolhida e
determinados estereótipos existentes utilizados como forma de identificação. Algumas falas,
mais significativas, foram escolhidas a fim de exemplificar esta relação fetichizada com a
música:

1- “Eu acho que porque mexe um pouco com, com meu jeito de ser, sei lá, é... o
Barroco é um estilo muito equilibrado, muito calmo, equilibrado mas é ao mesmo tempo
emocionalmente um pouco forte mas muito equilibrado, e o romantismo todo mundo sabe, não,
eu sou também um pouco romântica (...) a música é isso mesmo, é como a paisagem, é, te
permite tua personalidade, teu estado de ânimo, se aproximar de uma, de outra”.

2- “Com certeza por causa que seus melhores amigos também tem essa preferência, o
estilo mesmo de se vestir, de sair, os locais que eu prefiro freqüentar, com certeza”.

3- “É... o estilo de se vestir, algumas atitudes, isso (...) um pouco agressivo, às vezes um
pouco é... como se fala, um pouco mais calmo”.

184
4- “Eu acho que eu sou um pouco fechado, e geralmente quem ouve rock é um cara
assim, né, eu acho que é meio na dele, não, não gosta muito de se expor, e eu acho que nem
tanto pela música assim, mas a maioria do pessoal que ouve rock é um pouco parecido
comigo”.

No primeiro exemplo, o entrevistado realiza sua identificação com a música por meio de
elementos que caracterizam o intrinsecamente próprio material musical que ele define como seu
predileto, entretanto, mesmo sendo uma análise que explicita conhecimentos teóricos, a ligação
entre música e personalidade foi direta, ou seja, o próprio entrevistado admite que a audição, o
consumo de determinada música se dá de acordo com a personalidade de cada um, não
reconhecendo que a construção do próprio indivíduo ocorre mediada pela a cultura.
Nos três exemplos seguintes a identificação com a música se dá de acordo com
imagens vinculadas a ela, e não com base no material musical. No segundo e terceiro exemplos,
os entrevistados explicitam que a música influencia diretamente na maneira de se vestir, mas
enquanto no segundo exemplo as influências parecem ser “externas” ao sujeito (roupas e lugares
que freqüenta), no terceiro, fica explícito que o “estado de ânimo” também é influenciado na
relação com a música. No quarto exemplo fica clara uma identificação entre o estilo musical
predileto e a identidade com um grupo de pessoas que teriam uma personalidade parecida. Este
é um ótimo exemplo da construção de um estereótipo ligado ao estilo musical, estereótipo este
admitido, aceito e naturalizado, pelo próprio indivíduo. Nestes casos fica a questão: o que estes
sujeitos realmente consomem é a música, ou o que na realidade eles estão consumindo é um
modelo de conduta vinculado ao estilo musical consumido?

Um outro ponto que deve ser tratado aqui é a identificação ou a discriminação de outros
indivíduos com base no estilo musical que eles consomem. A esse respeito também algumas
falas foram selecionadas:

5- “... a gente sempre coloca música num segundo plano, mas não é, ela tá bem
presente, tanto é que você vê assim estilos de pessoa que nem, rock, ele tá formando um estilo
não só, né, de, de pessoa que curte esse tipo de música, mas vestimenta, de conversa, de
conduta, mesmo sertanejo, que tem né a Country Dance, Country Music, não sei, e cê vê que
vão formando grupos, né, em torno desses estilos musicais e que acabam sim influenciando a
maneira de pensar e de agir”.

185
6- “... A música, tipo, envolve muito o estilo mesmo, né, o jeito, tudo. Por exemplo, os
metaleiros vestem preto, aquela coisa, mas eu acho que só, mais isso mesmo”.

7- “Amigos meus que ouvem metal e tipo, só porque o cara usa drogas eles vão também
querer usar drogas...”.

8- “Marcelo D2, Planet Hemp, (...) O Rapa... o pessoal que vai, que curte mais assim,
seria o pessoal mais ‘ligadão’, e tal, e acho que, e eles incentivam o uso, entendeu? Das
drogas, tal, acho que pra eles assim, atrai o publico que usa, mas não que eles vão influenciar
alguma coisa na vida das pessoas, a pessoa ta lá porque quer e fuma porque quer, não porque
eles fazem, porque eles querem”.

Este conjunto de falas mostra que de fato, não é consenso entre os entrevistados se
música influencia a identidade de alguém, como nos exemplos 5 e 7, ou se uma pessoa escutaria
determinada música por causa de sua personalidade, como nos exemplos 6 e 8. E aqui nos
deparamos com duas questões: a primeira é que, se a pessoa consome determinada música por
conta de sua personalidade, e se esta é considerada como uma coisa já formada ou talvez
“natural”, os estilos não deixam de levar à interpretação de que devem ser consumidos apenas
por determinados “tipos” de pessoas, e, além disso, a segunda questão é que, desta forma, de
qualquer maneira, fica claro nos relatos que a música é utilizada como um meio de identificação
de grupos. Porém, se a identidade se forma a partir do contato com a música, ou de forma mais
abrangente, no contato com as produções sociais, fica admitida a ausência de autonomia e
reflexão nesta relação, e aqui também as generalizações ocorrem de maneira fluida. Outra
questão importante é que aos indivíduos que consomem os estilos musicais rejeitados pelos
entrevistados são atribuídas características negativas, ou melhor, características que não são
valorizadas socialmente, como o uso de drogas, no caso do 8º exemplo.

5- Considerações finais

A existência da música na vida das pessoas cada vez mais em todos os ambientes, como
parte do cotidiano, é tomada como algo natural, e sua proximidade dos e acessibilidade aos
indivíduos evidencia sua função na sociedade. A necessidade de música raramente é
questionada. Tal função, enquanto objeto ideológico difere de fato da opinião dos próprios
sujeitos – ou seja, essa função não é reconhecida pelos consumidores – no entanto, a opinião
acaba por conformar seus efeitos tanto no consciente quanto no inconsciente (Adorno, 1976).

186
Admitindo que algumas características da música relacionadas à rejeição de
determinados estilos musicais sejam legítimos, os argumentos perdem seus elementos de
verdade em decorrência da fixidez com que a relação é estabelecida. A repetição de uma crítica
sem reflexão, muitas vezes advinda de um estereótipo divulgado no grupo com o qual o sujeito
se identifica, coloca-se no lugar da experiência musical legítima. Assim, uma vez que o
julgamento é realizado sem que existam condições para tanto, a opinião é tão estereotipada
quanto a música.

Como objeto-fetiche, a música parece ser dotada do poder de atribuir determinadas


características aos seus consumidores. De fato valores, modos de conduta e personalidades são
vinculados aos produtos, na forma de imagens, de marcas ou de estilos socialmente valorizados
em uma determinada época e sociedade. Como uma forma de garantir a circulação do capital,
como uma maneira de fazer com que as pessoas consumam os produtos, é dada a elas a ilusão
de que eles são algo novo. Porém, embora inicialmente a imagem seja vinculada à música, e
assim apresentada à sociedade, neste processo de consumo alienado os sujeitos passam a
identificar a si mesmos com tais imagens que se tornam a garantia de sua existência – é como se
sem consumir tais imagens os sujeitos não soubessem mais quem são.
O problema é que o consumo não vai além do consumo de uma ilusão, que os sujeitos
vivem como se fosse a realidade efetiva. Ora, aquelas características apresentadas não
pertencem de fato à música consumida, tampouco passam a fazer parte dos sujeitos que a
consomem. Ou seja, na busca por uma identidade os sujeitos se frustram por não encontrá-la, e
assim continuam buscando-a no consumo contínuo, e desta forma, sem conseguir se dar conta
de sua frustração, o que poderia de algum modo gerar questionamentos e uma possibilidade de
emancipação, os sujeitos continuam a alimentar o ciclo de manutenção da indústria cultural,
ciclo que mina tal possibilidade exatamente porque o consumo é contraditório com o objetivo
dos consumidores, a saber, de constituírem-se como indivíduos.
A falta de experiência efetiva em relação ao objeto e a sua conseqüência, o consumo
contínuo que frustra ao invés de realizar o desejo do sujeito, talvez possa ser analisado tomando
como base as idéias de experiência e de vivência em Benjamim (1994). Em linhas gerais
experiência e vivência são dois pólos de diferentes formas de relação com o objeto, sendo que
existem gradações entre esses pólos. A experiência ocorre quando há uma relação de troca entre
o indivíduo e o objeto, sendo que neste processo o sujeito reflete sobre o objeto, a partir de suas
experiências anteriores, reformulando seus conceitos. Esta relação é essencial para a formação
do indivíduo, que se faz no contato com a cultura e que o torna capaz de agir sobre ela. A
vivência, no entanto, não colabora com a construção do indivíduo, pois se caracteriza por uma

187
relação em que ele nada coloca de si, e mesmo o objeto é instantaneamente consumido, o sujeito
nada leva. Na experiência todas as relações passadas fazem sentido para o sujeito, pois
colaboraram para sua própria formação, mas na vivência a história se apaga, é vazia, e nesse
sentido o contato com o objeto deve ser realizado constantemente, para que se viva o que de
forma ilusória foi vivido nas outras relações sujeito-objeto. Está claro que há algo de vivência
mesmo na experiência, assim como a experiência poderia se constituir a partir da vivência.
No entanto, a incapacidade de análise do material musical por parte dos sujeitos, ou
mesmo da ideologia transmitida no conjunto das imagens vinculadas a ele, proporcionada pelas
características do próprio material padronizado, pseudo-individualizado e facilitado, e pelo
processo de semiformação ao qual os indivíduos estão expostos, leva a uma relação com o
objeto em que predomina a vivência nos termos conceituados acima, ou seja, o consumo
freqüente é necessário para que o sujeito se recorde daquilo que ele teve a impressão de ser no
fugaz contato com o objeto – o extermínio do indivíduo é fator essencial para a manutenção do
capitalismo tardio. Mas mesmo no contato com o objeto a partir de uma relação de vivência
poderia se dar uma experiência, se a reflexão se iniciasse mesmo após o consumo.
Ao mesmo tempo, a indústria cultural não cessa de lançar mão de imperativos, que
inculcam valores e “ordenam” que os sujeitos sejam dessa ou daquela maneira, que façam isso
ou aquilo, que pensem dessa ou daquela forma, e até que sintam ou não. A necessidade de
identificação e sua impossibilidade, a constante repressão a qual os sujeitos são expostos na
medida em que não podem ser o que são, mas devem ser o que está posto e que é valorizado,
pode levar ao que Freud (1996) chamou de projeção no objeto, um mecanismo de defesa que se
caracteriza por atribuir a outro uma característica que é do próprio sujeito, ou que ele gostaria
que fosse, mas não consegue admitir (Laplanche & Pontalis, 2001). Na realidade, pode-se dizer
que se trata de falsa projeção (Adorno & Horkheimer, 1985) uma vez que as características não
estão de fato no sujeito, mas no objeto, sendo que esta falsa projeção atende as necessidades de
um ego frágil, de alguém que se desenvolveu numa sociedade em que as relações de autoridade
são mascaradas.
O consumo sem reflexão, a falta de possibilidade de negociação com a autoridade que
dita valores e normas de conduta e a conseqüente aceitação da sociedade como é apresentada,
como sendo algo natural, leva o indivíduo a visões e condutas preconceituosas em relação
àqueles que de algum modo diferem do que eles imaginam que seja valorizado e do que buscam
para si. É a indústria cultural, por meio de seus produtos, corroborando para a formação de
estereótipos, que acabam mediando relações entre os sujeitos e fornecendo as bases sociais para
a ocorrência do preconceito. Tal preconceito é resultado do ressentimento em relação à própria
sociedade e à repetição incessante nos produtos da indústria cultural.

188
Mas essa questão da produção de estereótipos que medeiam as relações entre os
indivíduos não é o único fator. Soma-se a ele a produção de opiniões estereotipadas e
irrefletidas que culminam também em uma impossibilidade de participação social efetiva. As
pessoas se sentem livres para julgar, mas ao mesmo tempo em que essa liberdade é formalizada,
as bases objetivas que permitiriam uma opinião legítima não existem de fato. Essa contradição
vivenciada pelos sujeitos, que acaba impedindo uma real participação na cultura, ainda indica
uma possibilidade de emancipação na medida em que é pelo menos reconhecida e que se possa,
a partir daí, refletir sobre o que foi reconhecido.

Referências Bibliográficas

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Nova Cultural. Col.Os Pensadores, 1998.
_____________. A indústria cultural. In: Cohn, G. (Org.) Theodor W. Adorno. São Paulo:
Editora Ática, 1994.
_____________. Public opinion and critics. In: Introduction to the sociology of music.
Translated by E. B. Ashton. New York, Seabury Press, 1976.
ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Tradução Guido Antônio da Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
ADORNO, T.W.; SIMPSON, G. Sobre música popular. In: Cohn, G. Theodor W. Adorno.
Tradução de Flávio R. Kothe. São Paulo: Ed Ática, 1994.
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras
Escolhidas, Vol I; Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet.7ª ed.
São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
FREUD, A. O ego e os mecanismos de defesa. Tradução de Álvaro Cabral. 10ª edição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen.
4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HAUG, W. F. Crítica da estética da mercadoria. Tradução de Erlon José Paschoal. São
Paulo. Ed. Unesp, 1997.

189
Indústria cultural, educação e preconceito: a mosca no vidro

Divino José da Silva (UNESP/Presidente Prudente-SP)

O nosso desafio neste texto será pensar alguns vínculos entre indústria cultural e a
produção de clichês e estereótipos que limitam nossa experiência com o mundo. Partimos do
pressuposto de que a indústria cultural, ao induzir-nos à uma percepção fragmentada da
realidade, a partir de pares binários: feio e bonito, útil e inútil, bem e mal, perfeito e imperfeito,
reforça estereótipos, os quais conforme Crochik (1997, p. 18), "[...] se mostram propícios à
estereotipia do pensamento do indivíduo preconceituoso, fortalecendo o preconceito e servindo
para a sua justificativa [...]".
O dignóstico realizado por Adorno e Horkheimer a respeito da cultura contemporânea e
das possibilidades emancipatórias a ela inerentes revela os indícios da crise da própria cultura e,
por conseguinte, dos mecanismos de formação. No artigo Teoria da semicultura, Adorno (1996,
p. 389) é contundente: "A formação cultural agora se converte em uma semiformação
socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não
antecede à formação cultural, mas a sucede. [...] Apesar de toda ilustração e de toda a
informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) a semiformação passou a ser a forma
dominante da consciência atual [...]". O diagnóstico adorniano se confirma na dissociação entre
cultura espiritual e a vida real dos homens. Mesmo os cultores dos chamados bens culturais se
renderam ao ideário nazista.
No capitalismo tardio, segundo Adorno (1986, p. 67), diferentemente do período da
Revolução Industrial, a dominação ocorre de forma anônima, tornando real a fórmula
nietzschiana: "nenhum pastor e um rebanho". Esta dominação encontra todo seu vigor na
indústria cultural mediada pelas avançadas tecnologias de comunicação, por meio das quais os
indivíduos se tornaram presas fáceis do autoritarismo inerente à semiformação. Neste caso,
salienta Duarte (2003), o autoritarismo delineia um traço comum entre semiformação e indústria
cultural, pois suprimem o potencial libertador da cultura. A semiformação constitui, para
Adorno (1996, p. 402), inimiga da formação, pois a impossibilita: "o entendido e experimentado
medianamente - semi-entendido e semi-experimentado - não constitui o grau elementar da
formação, e sim seu inimigo mortal."
O caráter autoritário da indústria cultural, como bem o esclarece Adorno (1986),
manifesta-se em seu poder integrador dos consumidores, que como uma espécie de "espírito
objetivo" limita a possibilidade de qualquer exterioridade: nada pode ficar de fora. A tensão
entre particular e universal é eliminada. A consciência e o trabalho da reflexão cedem lugar ao

190
conformismo. Afirma Adorno (1986, p. 97): "O imperativo categórico da indústria cultural,
diversamente do de Kant, nada tem em comum com a liberdade. Ele enuncia: 'tu deves
submeter-te', mas sem indicar que, como reflexo do seu poder e onipresença, todos, de resto,
pensam". Segundo Adorno (1986, p.99), a indústria cultural, produto do iluminismo e cúmplice
da ideologia capitalista, é a expressão manifesta da racionalidade instrumental, que a tudo
confere um ar de utilidade ou inutilidade. O efeito produzido pela indústria cultural, em sua
totalidade, continua Adorno, é o de uma “antidesmistificação”, a de um “antiiluminismo”, pois a
dominação técnica transformou-se na grande adulação astuciosa das massas, tolhendo-lhes a
consciência e impedindo a formação de indivíduos autônomos. A produção cultural e as
criações espirituais foram subsumidas pela prática da indústria cultural, em favor do lucro. A
cultura, enquanto instrumento de protesto contra as relações esclerosadas, teria sido integrada a
essas relações, aviltando, ainda mais, a vida humana.
No livro Dialética do esclarecimento Adorno e Horkheimer (1985) denunciam o
processo de mercantilização da cultura e a maneira como ela se apropria da capacidade do
sujeito ao referir suas múltiplas percepções aos conceitos fundamentais, conforme definira o
esquematismo kantiano. O esquematismo na acepção kantiana é substituído pelo esquema
classificatório da indústria cultural que se antecipa aos consumidores, determinando portanto,
sua percepção da realidade. Ao tratarem da apropriação do esquematismo kantiano pela
indústria cultural, Adorno e Horkheimer (1985, p. 117) afirmam o seguinte: "A função que o
esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade
sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o
primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto
destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o
segredo está hoje decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos organizadores
dos dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que
permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua
passagem pelas agências do capital do modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências.
Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no
esquematismo da produção."
Além deste aspecto atinente ao esquematismo da indústria cultural, é importante
destacar que Adorno e Horkheimer (1985), identificam na ciência moderna elementos da
dissolução do mundo nas leis do pensamento, o que teria contribuído para a produção da
identificação e conformação dos indivíduos com a realidade imediata. Os autores confirmam
este argumento a partir da relação entre sujeito e objeto na modernidade: "A abstração, que é o
instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetos do mesmo modo que o destino,

191
cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidação.
Sob o domínio nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em algo de
reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o reproduzível"
(ADORNO; HORKHIEMR, 1985, p. 27).
A relação sujeito-objeto na modernidade define-se de forma abstrata, em que há o
predomínio do primeiro sobre o segundo. O pensamento que ordena não precisa misturar-se
com seu objeto, mas faz isso impessoalmente, antecipando, no plano dos conceitos, o que deve
ser realizado na prática. Adorno e Horkheimer (1985) identificam nesse processo a obliteração
da capacidade reflexiva do pensamento, pois o pensar tornou-se uma atividade reificada e foi
substituído pelos procedimentos do “pensamento identificante”, próprio das ciências
matemáticas, em que sujeito e objeto tornam-se idênticos. Não há nada de novo no objeto que o
sujeito já não tenha antecipado, produzindo a anulação de ambos: “>...@ a dominação universal
da natureza volta-se contra o próprio sujeito; nada sobra dele senão justamente esse eu penso
eternamente igual que tem que acompanhar todas as minhas representações. Sujeito e objeto
tornam-se ambos nulos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 38).
Adorno e Horkheimer (1985, p. 176) tratam desta relação sujeito-objeto no texto
Elementos do anti-semitismo: limites do esclarecimento, em termos de um comportamento
projetivo: "Entre o verdadeiro objeto e o dado indubitável dos sentidos, entre o interior e o
exterior, abre-se um abismo que o sujeito tem de vencer por sua própria conta e risco. Para
refletir a coisa tal como ela é, o sujeito deve devolver-lhe mais do que recebe." A percepção da
realidade depende da constituição do sujeito. Posto isso, um sujeito que apresenta limites em sua
constituição interior torna a realidade igual a si mesmo ou a ela se submete sem nenhum
estranhamento. A este procedimento os autores denominaram falsa projeção. Ela acontece
quando se dá a eliminação de um dos pólos, ou seja, quando o sujeito projeta-se de forma
ilimitada sobre o objeto eliminando seus vestígio ou quando o sujeito se anula frente ao objeto,
a ele se submetendo. Dessa relação resultaria uma percepção equivocada dos objetos e das
relações sociais. Neste ponto, acreditamos não constituir nenhum exagero afirmar que este tipo
de percepção vincula-se ao espírito objetivo da semiformação e da indústria cultural.
Associado, ainda, a estes aspectos reconhecem Adorno e Horkheimer (1985) que a
cultura contemporânea caracteriza-se pelo de modo pensar "à base do ticket", resultante dos
processos de burocratização e mecanização que cada vez mais têm exigido dos indivíduos
respostas rápidas às demandas de adaptação à vida contemporânea. A mentalidade do ticket se
sustenta na unanimidade, em que os indivíduos têm que fazer suas opções a partir de blocos. No
lugar da experiência põe-se o clichê que substitui o trabalho da reflexão.

192
No capitalismo tardio com o aumento da pressão do mercado sobre os indivíduos, todo
comportamento refratário à lógica da produtividade, da eficácia na ação ou toda forma de pensar
que denote dúvida ou incerteza devem ser eliminados. Hoje, conforme Crochik (1997), se exige
do indivíduo que ele se posicione sobre os mais variados assuntos. Por isso mesmo, ele tem que
se valer, rapidamente de mecanismos que lhe possibilitem explicar o novo a partir de "esquemas
ordenadores já prontos", os quais impossibilitam a experiência. A indústria cultural, ressalta
Crochik (1997), fornece os clichês que permitem o indivíduo se livrar da ansiedade inerente ao
trabalho da reflexão e da experiência.
Até o momento estivemos empenhados em explicitar os vínculos entre semiformação,
indústria cultural e produção de estereótipos que favorecem as justificativas para o preconceito.
Crochik (1997, p. 21) sintetiza assim os vínculos entre estereótipo e preconceito: "Se uma das
características do preconceito é a fixidez das mesmas reações de repúdio ao objeto, o pensar
estereotipado, que utilizamos por motivos diversos em diferentes esferas do cotidiano, não deixa
de se caracterizar pela fixidez de procedimentos que são aplicados indistintamente a qualquer
objeto e, assim, não deixa de contribuir para a formação do preconceito."
È a partir desta visão ampla sobre os vínculos entre semiformação e indústria cultural,
que buscaremos pensar a relação entre educação e preconceito. A educação, em seu sentido
geral, tem como objetivo desenvolver nos indivíduos capacidades físicas, intelectuais e morais
e visa inseri-los nos usos e costumes de uma determinada sociedade. É por meio da educação,
quer formal ou informal, que o processo de socialização enquanto resultado da cultura e de sua
história ganha eficácia e efetividade. É também por esta dupla via que o indivíduo se modifica e
se forma como indivíduo em função da adaptação e da luta pela sobrevivência. A formação do
indivíduo no contexto dos processos de socialização se dá marcado por conflitos, lutas e pela
competição. O preconceito, segundo Adorno (1995), Horkheimer (1976a) e Crochik (1997),
emerge como resposta a esses conflitos inerentes a socialização própria ao processo
civilizatório. Posto nestes termos, podemos inferir que a formação de indivíduos mais ou menos
preconceituosos tem suas raízes nos processos de socialização a que são submetidos, dos quais a
escola faz parte.
Há, assim, um vínculo intrínseco entre educação e preconceito quando pensados em
sentido amplo, que impregna também o contexto das práticas escolares. Esta relação é de
natureza ambígua e põe em dúvida as boas intenções de educadores e daqueles que se propõem
a lidar com as manifestações de preconceito na escola. Além desse caráter ambíguo, este
vínculo coloca em dúvida as certezas de toda Pedagogia que tem como orientação os princípios
do iluminismo, que se fundamenta na razão enquanto força esclarecedora que acredita poder

193
superar visões de mundo sustentadas no mito e na superstição. Há nesta Pedagogia a crença de
que o homem pode ser educado para a perfectibilidade moral.
A despeito desta crença nos poderes da razão e da Pedagogia que dela decorre, enquanto
um saber sobre a prática e sobre as condições e possibilidades de se educar alguém, não
podemos aceitar depois de Marx e Freud, conforme sugere Rouanet (1987, p. 12), “>...@ a idéia
de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não
há como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma
razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de
Adorno, não é mais possível escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia
imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza e sobre os homens. Depois de
Foucault, não é lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder.”
A crítica aos pressupostos da razão iluminista instaura a incerteza sobre os resultados
que podemos alcançar por meio dos processos formativos. Os questionamentos acima apontam
os limites da razão quanto às possibilidades de conduzir a bom termo a emancipação dos
indivíduos. Entre as atividades humanas a tarefa de educar se revela a mais incerta, por estar
submersa em crenças, valores e preconceitos nem difíceis de serem elucidados via
esclarecimento ou pelo auto-esclarecimento, visto que vivemos numa sociedade em que a
percepção que os indivíduos têm da realidade traz a marca do espírito objetivo da
semiformação, que reiteram e limitam nossa experiência com o mundo. Os fatos, a realidade
social e a vida são reduzidos a esquemas classificatórios que impõem limites à atividade do
pensamento e da reflexão. Esta forma de pensar enrijecida funciona como impeditivo à
realização de experiências com o outro. Quando isso acontece, afirma Horkheimer (1976b, p.
183): “A porta está fechada para tudo aquilo que o outro possa expressar. Já não é considerado
como um ser com quem se possa falar e poder, quem sabe, descobrir a verdade. Pertence a uma
espécie inferior. As perseguições são a conseqüência lógica disso.”
Esta forma rígida de pensar própria da atitude preconceituosa tem produzido pelo
mundo a fora algozes e vítimas. As vítimas quase sempre são negros, estrangeiros, judeus,
homossexuais, índios, mulheres, pobres, deficientes, velhos, obesos, desempregados ... . São
descritos como indivíduos inferiores, ameaçadores e física e moralmente diferentes de nós.
Postas as diferenças e racionalmente convencidos de que esse Outro não é um sujeito moral
como nós, estão lançadas as condições sócio-psicológicas “para que a crueldade cometida não
seja percebida em seu horror” (COSTA, 1994, p. 123). O passo seguinte é lançar contra ele todo
o ódio e crueldade.
É importante ressaltar que o preconceito em sua manifestação individual responde às
necessidades psíquicas do indivíduo, articulado aos processos de socialização mais amplos. Isso

194
significa dizer, conforme Crochík (1997, P. 12), que as idéias que o preconceituoso tem sobre
seu objeto não surgem do nada, mas emergem desta relação entre indivíduo e sociedade e dos
estereótipos oriundos da cultura, os quais fixam comportamentos e modos de pensar. Esta
relação não é direta, pois os estereótipos são modificados mediante as necessidades dos
indivíduos e das demandas socialmente postas. Por outro lado, ressalta o autor que o indivíduo
preconceituoso está mais propenso a desenvolver o preconceito com relação a diferentes
objetos, porém os conteúdos do preconceito acerca desses diferentes objetos são distintos entre
si. Os afetos são distintos para cada objeto. Assim, a percepção que o preconceituoso tem do
negro ou do deficiente é diferente daquilo que ele imagina ser o judeu ou o homossexual. Por
esta razão argumenta Crochík (1997, p. 12): “Não se pode por isso estabelecer um conceito
unitário de preconceito, pois este tem aspectos constantes, que dizem respeito a uma conduta
rígida frente a diversos objetos, e aspectos variáveis, que remetem às necessidades específicas
do preconceituoso, sendo representadas nos conteúdos distintos atribuídos aos objetos.”
O preconceito funciona como uma força estruturante do caráter, sob o qual estão ocultos
sentimentos e comportamentos bárbaros que a civilização até hoje não foi capaz de evitar. A
nossa vida está marcada, desde a infância, por preconceitos expressos em gestos, palavras e
insinuações que funcionam como filtros que barram ou simplificam nossas experiências. Desde
muito cedo no convívio familiar e nos primeiros anos escolares, fazemos o nosso curso de
racismo, em que a mediocridade adulta aprisiona a criança no mundo do preconceito. Desta
maneira, o preconceito funciona como um conjunto de idéias socialmente adquiridas, por meio
das quais passamos a valorar o mundo dos objetos e das relações sociais e se convertem em uma
disposição do caráter.
A origem dos preconceitos podem estar, conforme Horkheimer (1976b, p. 180), nos
instintos de conservação, podem ser fruto do amor próprio e do prestígio social que
determinados tipos de comportamentos proporcionam aos indivíduos. Além desses instintos, há
outros que relacionam-se com os preconceitos de outra forma; estes se referem ao poder, à
inveja e à crueldade, que estiveram sempre presentes na história da humanidade, os quais têm
sua origem no próprio processo civilizatório que impôs aos indivíduos o domínio dos instintos
em nome da cultura.
É a partir do impacto desse caráter repressivo da cultura que Horkheimer (1976b) e
Adorno (1995) vão atentar para o relativo insucesso que as instituições sociais e a educação têm
tido em formar pessoas que possam dedicar-se livremente ao trabalho e à vida em sociedade,
onde a felicidade do todo fosse garantida. Para Adorno (1995) este relativo insucesso é inerente
ao próprio processo civilizatório que traz em si o anticivilizatório. Esta constatação evidencia o
limite de todo empreendimento que se proponha, de forma idealista, opor-se aos processos

195
regressivos. Diante disso a atitude mais eficaz poderá vir da conscientização sobre o que eles
representam para a vida em sociedade. Adorno(1995) reconhece que a melhor maneira para se
lutar contra a barbárie é reconhecermos o quanto podemos estar identificados com ela.
Em função dos novos mecanismos de controle e dominação, dos quais tratamos
inicialmente, Adorno (1995) retoma a tese do mal estar na cultura, de Freud, ressaltando que a
mesma tem muito mais força hoje, para além do que o psicanalista podia imaginar, pois a
pressão civilizatória, nos moldes contemporâneos, produziu um mundo administrado e
claustrofóbico que aumenta a raiva das pessoas contra a civilização, a qual torna-se seu alvo.
A racionalidade produtivista do capitalismo contemporâneo, marcada pela
competitividade no mercado, nos transformou em indivíduos descartáveis, classificados como
úteis ou inúteis, produtivos ou improdutivos, sobre quem recai todo o peso da luta pela
sobrevivência e pelo sucesso. Esta racionalidade nos conduziu à “apatia” e à “frieza” e o outro é
visto nessa lógica como uma ameaça, por isso deve ser física ou simbolicamente eliminado.
Diante de tudo isso, como pensar uma educação que se contraponha a esse potencial
regressivo dos indivíduos na atualidade, presentes nas práticas preconceituosas, as quais limitam
a possibilidade de identificação com a dor e sofrimento do outro? Horkheimer (1976a,) tem
consciência que para mudá-la não é suficiente o esclarecimento ou a inculcação de convicções
contrárias aos valores e crenças do preconceituoso. Antes é fundamental formar e restabelecer
nos indivíduos, por meio de uma educação adequada, a capacidade de se relacionarem de
maneira espontânea com as outras pessoas e coisas.
Implícita a esta sugestão de Horkheimer está o argumento de que o indivíduo
preconceituoso carece de capacidade para realizar experiências. A princípio todos os indivíduos
estão sujeitos a se comportarem de modo autoritário, pois os preconceitos estão arraigados na
própria cultura. Essa cultura caracteriza-se hoje, segundo Horkheimer (1976a), pelo modo de
pensar “à base do ticket”, conforme salientamos. Quanto mais frágil é a capacidade dos
indivíduos de pensarem autonomamente o seu destino, mais facilmente são obrigados a se
adaptarem às estruturas institucionais e a formas prévias de pensar, prescindindo do próprio
juízo e da própria experiência.
São muitos os limites a uma educação que pretenda se contrapor ao preconceito. As
relações econômicas marcadas pelas desigualdades, pela disputa e competitividade, propícias ao
desenvolvimento de práticas preconceituosas, permanecem inalteradas. Por outro lado lidar com
os aspectos subjetivos que produzem o preconceito também encontra limites, pois como
reconhece Horkheimer (1976b, p. 183), “é coisa vã argumenta contra os preconceitos rígidos”,
visto que os mesmos atendem conflitos psíquicos, em grande parte, da ordem do inconsciente.
Conforme Crochik (1997), argumentar racionalmente contra preconceituoso ou insistir para que

196
ele se abra para experiência com o objeto de seu preconceito, pode não produzir os efeitos
esperados. Aliás, dependendo da circunstâncias pode aumentar ainda mais o ódio.
Mesmo as reivindicações mais justas de uma educação que lute contra o preconceito, e
que para tanto exige que os pais estejam atentos aos filhos e lhes dediquem cuidados, carinho e
amor, Adorno (1995) põe em dúvida nossa capacidade de colocar em prática um afeto puro,
verdadeiro. Por outro lado, destaca Crochik (1997), a forma como os pais pensam a educação
dos filhos tendem a seguir os padrões educacionais e as normas consideradas socialmente
corretas. Além disso, os pais não conseguem educar os filhos para uma realidade que ainda não
existe. Sempre pensam a educação na perspectiva da competitividade e para se defenderem das
ameaças do tempo presente.
Ainda que Adorno e Horkheimer estejam cientes dos limites da educação no combate ao
preconceito reconhecem a necessidade e importância da mesma nesta empreitada. Afirma
Adorno et al. (1965, p. 906): “Seria realmente desastroso que o conhecimento da verdadeira
magnitude do problema fundamental que nos preocupa induzisse a reduzir os esforços para
combatê-lo. Não há forma de atacar o problema que não inclua necessariamente múltiplos
objetivos secundários que é dever de indivíduos e grupos concretizar. Todo ato, por limitado
que seja em espaço e tempo, útil para se contrapor ou diminuir o espírito destrutivo, pode
considerar-se como um tipo de microcosmos de um programa total efetivo.”
No texto “Educação após Auschwitz”, Adorno apresenta alguns aspectos que uma
educação que se contraponha à barbárie deveria levar em conta: a) uma educação que se ocupe
sobretudo da primeira infância; b) uma educação voltada ao esclarecimento em geral, que
possibilitasse a produção de um clima cultural e social contrário à barbárie, em que os
indivíduos pudessem se conscientizar de seus motivos. Afirma Adorno (1995, p. 125): “O único
poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana;
o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.”
Uma educação que tenha como meta a autonomia deverá se contrapor aos processos que
integram e subjugam o indivíduo ao coletivo, conduzindo-o à uma identificação heterônoma
com normas, mandamentos e poderes, em que a consciência moral é substituída por autoridades
exteriores. Esta identificação cega com o coletivo submete os indivíduos à dor e ao sofrimento,
ao mesmo tempo em que produz neles o ressentimento e um desejo de vingar humilhações
sofridas, que recaem geralmente sobre os mais fracos e felizes.
É nestes termos também que Adorno (1995) se opõe a uma educação para a virilidade,
que privilegie a força, a disciplina e severidade. Uma educação que se oriente por estes
princípios tende a desenvolver nos indivíduos a capacidade para suportar a dor e se identificar

197
com o sadismo. Por trás desta idéia de dureza que este ideal educacional propaga, há a
indiferença à dor e sofrimento do outro.
Pessoas educadas para a identificação com o coletivo, para a dureza e para a virilidade
estariam mais propensas a desenvolverem uma personalidade rígida e teriam dificuldades de se
abrirem para experiências humanas profundas. Neste caso, o indivíduo com este tipo de caráter
está mais propenso a pensar e agir de forma preconceituosa.
Um outro aspecto importante na luta contra o preconceito é o esclarecimento
(Aufklärung), entendido enquanto explicitação, explicação e clarificação: “Aufklärung designa
o que fala com clareza à consciência racional, o que ajuda a compreensão clara e racional –
contra a magia, o medo, a superstição, a denegação a repressão, a violência.” (GAGNEBIN,
2003, p. 40). O esclarecimento posto nestes termos, constitui importante instrumento na
explicação das crenças e valores nos quais estão imersas as práticas escolares. Ainda que isso
não seja garantia contra práticas preconceituosas, pode funcionar como um espelho em que
podemos nos ver.
Em termos adornianos, uma educação que esteja preocupada em se contrapor aos
aspectos autoritários da nossa cultura e aos seus elementos regressivos, que alimentam o
preconceito, deve proporcionar aos indivíduos uma ampla experiência com a cultura, e evitar
reforçar o desejo de poder, o ódio e a inveja. Esta educação deve ter como meta desenvolver nos
indivíduos a sensibilidade e a alteridade opondo-se, portanto, à “apatia” e à “frieza”, num
mundo em que as esferas dos valores, portanto, da cultura, foram submetidos a processos
instrumentalizantes.
É também desta perspectiva que Adorno(1995) faz a defesa de uma educação que
produza uma clima cultural contrário à barbárie, portanto, que favoreça a identificação com o
Outro. O filósofo argumenta que Auschwitz só foi possível porque as pessoas foram
indiferentes ao que acontecia com às outras: “A incapacidade para a identificação foi sem
dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em
meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas” (ADORNO, 1995, p. 134). Assim, o
autor acena para o quanto a nossa indiferença e incapacidade para a identificação, próprias da
atitude preconceituosa, funcionam como dispositivos que dão livre passagem para práticas
cruéis.
Um passo importante, segundo Silva (2005, p. 139) para se lidar com o preconceito
passa pelo esforço em estar disposto a reconhecer que somos preconceituosos; que estamos
imersos em valores e crenças que limitam nossas experiências e vivências nos espaços
escolares. Por essa razão deveríamos manter uma permanente dúvida sobre o que fazemos e
falamos no desenrolar da nossa prática pedagógica. Esta atitude perante “crenças” e “verdades”,

198
poderia conduzir-nos à consciência de que nosso trabalho como professores comporta ilusões
difíceis de serem detectadas.
Por fim, é preciso reconhecer que a luta contra o preconceito no âmbito das práticas
escolares passa, necessariamente, pelos cursos de formação de professores, ou como sugere
Skliar (2004, p. 86), por uma pedagogia que seja pensada “como um oferecimento, como um
dar – um dar a conhecer, dar a ser, dar a pensar, dar a narrar, dar a imaginar, dar a sentir etc”.
Portanto, uma pedagogia que possibilite a experiência de sermos outros, de olharmos e
sabermos outras experiências e de senti-las. Assim, salienta o autor, que ao pensarmos questões
como as que envolvem o preconceito, o racismo e a tolerância, não podemos nos limitar a
abordá-las somente quando elas aparecem, mas deveriam ser pensadas como experiências, para
além das eventualidades e tematizações esporádicas.

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SKLIAR, Carlos. A materialidade da morte e o eufemismo da tolerância. Duas faces, dentre as


milhões de faces, desse monstro (humano) chamado racismo. In: GALLO, Silvio; SOUZA,
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LIBÓRIO, Maria Renata Coimbra (Orgs.). Valores, preconceito e práticas educativa. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

200
Matrix: rede, ética e o direito na pós-modernidade

Dorothee Susanne Rudiger


Universidade Metodista de Piracicaba, Mestrado em Direito

A partir de uma leitura do filme Matrix, marco estético para o início do século XXI, é feita uma
análise das dimensões materiais e virtuais da rede apresentada como sendo um sistema que manda
e desmanda no mundo pós-moderno. Diante do controle exercido pela Matrix , o presente estudo é ,
em primeiro lugar, uma reflexão sobre a possibilidade da justiça e da emancipação se realizarem
enquanto relação entre capital e trabalho, marcada pela reificação do trabalhador. A redução do
homem a objeto , presente no filme, é abordada a partir de uma releitura dos manuscritos
filosofico-econômicos de Karl Marx. Para a abordagem da virtualidade da rede, é uma reflexão
acerca do direito e da justiça posmodernos. Por outro lado, as experiências históricas que envolvem
a ciência, o Estado e o direito no século XX, pedem uma nova abordagem do tema da ideologia. A
partir da obra psicanalítica de Jacques Lacan, segundo o qual há um registro no sujeito que não
tem lógica , registro esse que chama de real, parte da filosofia e das ciências sociais criticam a
possibilidade da ética enquanto arte da conduta no campo simbólico e imaginário. Jean Baudrillard,
autor citado em Matrix, denuncia, assim, a amálgama entre o simbólico e o imaginário presente
em nossa sociedade que nos faz prisioneiros da própria linguagem. Diante da prisão da mente ,
surge, tal como nos personagens no filme, o desejo de emancipação e de justiça, promessas não
cumpridas da modernidade, segundo Jürgen Habermas. Nasce uma nova ética para a qual é
necessário tomar a atitude da denúncia e do combate às redes globais que substituíram a
dominação pelo controle. Diante disso , a questão da justiça e da emancipação podem ser vistas sob
o ângulo da causa, da bandeira, e não apenas do princípio que permeia as normas positivas. A lei,
vista por Sigmund Freud pela lente do complexo de Édipo, renominado por Jaqcques Lacan
como nome-do-pai , é necessária para conter o desejo e , com ele o caos e a ditadura do poder sem
legitimidade . Nesse sentido, o direito significa um limite à fúria do capital que avança sem perdão
sobre a vida do trabalhador. Pela psicanálise, a lei também constitui o sujeito de direito , lhe dá um
estatuto simbólico e imaginário, impregnado, por assim dizer, pelo nome-do-pai. Na sociedade
orientada pelo pai, não há de se estranhar que , no estatuto jurídico, o trabalhador aparece
legalmente enquanto dominado. No entanto, as relações sociais na globalização, orientam-se cada
vez menos no nome-do-pai como um significante guia da sociedade. A própria Matrix torna-se
metáfora de uma nova forma de sujeitar numa sociedade de controle. Mas, se há um deserto do

201
real, um campo não coberto pelo estatuto, como se descobre em Matrix com referências a Jean
Baudrillard, a causa da justiça e da emancipação não está perdida. Velhas promessas da
modernidade, bandeiras do movimento operário, reaparecem, no campo do desejo, onde podem ser
retomadas e reinventadas.

A título de introdução: “O que é a Matrix”?

“O que é a Matrix?” Eis a questão que move as personagens no mundo do filme dos irmãos
Wachowski que, na virada do ano 2000, moveu milhões de pessoas no mundo globalizado para as
salas de cinema e para as vídeo- locadoras. Matrix sensibilizou não somente a juventude adepta
de vídeo-games, de rock metálico ou de música tecno. Mexeu com a fantasia dos artistas1 e a
curiosidade acadêmica de filósofos, teólogos, sociólogos, psicanalistas.2 Algo acontece na Matrix
que nos é tão suspeito ao ponto de causar estranhamento. , até hoje, depois da desilusão de Matrix
Reloaded e Matrix Revolution.

A estória de Neo e de seus companheiros recoloca a questão da verdade. Ser capaz de discernir o
verdadeiro do falso é um desejo da humanidade.. Neo vive o drama de quem desvenda os
mistérios da caverna de Platão. Para matar o desejo de descobrir a verdade, mergulha para além
da imagem refletida no espelho e enxerga , num primeiro momento, nada. Tal qual ao prisioneiro
que sai da caverna de Platão os olhos lhe doem. .3 Tentando orientar-se, Neo pergunta a seu mentor
Morfeus : “Onde estou?” Recebe como resposta : ”Mais importante que a questão 'onde' é a do
'quando'!“ Neo e Mórfeus vivem as últimas conseqüências da sociedade humana globalizada: a
destruição, não somente do meio ambiente, como também a destruição da história , artificialmente
congelada enquanto sociedade norteamericana, no final do século XX. Onde estamos? Nos
escombros da globalização! Quando? Em torno do ano 2199. Quem somos? Só nos resta uma
auto-imagem residual , uma “imagem projetada pela mente de nosso Ego digital ”!

Mas, afinal, o que é a Matrix? O guia Morfeus resume: “... é o mundo de sonhos gerado por

1 Resultado é o filme japonês Animatrix


2 A título de exemplo: BISCALCHIN, Fábio Camilo. A caverna de Platão no filme Matrix. Piracicaba:
Biscalchin Editor, 2003; YEFFETH, Glenn. A pilula vermelha: questões de ciência, filosofia e religião
em Matrix. Trad. Carlos Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003. FORBES, Jorge. Você quer
o que deseja? São Paulo: Bestseller, 2003.
3 “Sócrates: Pensemos se o forçassem a olhar diretamente para a luz, vocês não acham que os olhos dele
doeriam e que ele preferiria ficar de costas para luz, e se pudesse voltaria para o fundo da caverna, ou
para algo escuro , onde pudesse enxergar de maneira mais nítida? “ PLATÃ O. Alegoria da caverna, 29
IN: BISCALCHIN, Fábio Camilo . Op. cit. , p. 17

202
computadores , construído para manter-nos sob controle , para mos transformar nisso” e exibe
uma pilha Duracell .

Matrix e a força bruta do capitalismo

A Matrix tem duas dimensões: uma virtual, outra material. Matrix é um mundo virtual, uma
ideologia, que sugere uma sociedade de livres e iguais , na qual há um exercício de poder difuso.
Esse poder é legitimado nas mãos da empresa empregadora e de um poder público visível apenas
pela ação da polícia. Na sociedade em Matrix, há normas a seguir. Há organizações que exercem o
poder disciplinar ao lado de um controle difuso que repousa sobre o auto-controle de seus sujeitos.
Não há escapatória desse melhor dos mundos, no qual Neo vive sua existência enquanto Thomas
Anderson, o bom rapaz empregado de uma multinacional , pagador de imposto de renda e solícito a
sua senhoria. Nas palavras do agente Smith, só nessa existência há futuro, pois quem nela não se
enquadra é impiedosamente perseguido pelo poder inominado que funde aspectos públicos e
privados, disciplina e controle. O agente policial e o chefe de departamento da empresa
empregadora de Thomas Anderson têm a mesma aparência, o mesmo discurso disciplinar!Diante
do poder da Matrix não há os direitos mais elementares tais como o direito à assistência por um
advogado A voz de quem o reivindica é violentamente calada.

Thomas Anderson ou Tomé , o incrédulo, suspeita que esse mundo não é real. Mas, para tornar-se
Neo deve , tal como uma Alice, atravessar o espelho, perceber que vivia até então sua existência
numa espécie de país das maravilhas. Paradoxalmente, para perceber sua real existência, emerge
dela no sentido literal da palavra e enxerga a Matrix, isto é, o grande útero, a rede de máquinas,
o hardware que nutre e se nutre de energia humana, cultivando campos de seres humanos
mantidos pela violência física absoluta. A máquina Matrix consegue realizar a reificação do
humano, sobre a qual Marx alerta no Capital quando analisa o caráter fetichista da mercadoria e
4
seu segredo. Isolados cada qual em seu útero particular, os seres humanos são igualmente
desiguais perante a grande mãe que os alimenta, explora e lhes dá , ao mesmo tempo , suas
referências de valores. Todos, com a exceção dos rebeldes , libertos ou nascidos livres em Zion ,
levam uma existência de escravos. A prisão real e a prisão virtual se fundem na rede: pura
dominação , seja pela força bruta, seja pelas suas projeções mentais, da qual as normas a serem

4 MARX, Karl. [1867] Das Kapital: Kritik de politischen ökonomie. Erster Band. Buch I: Der
Porduktionsprozess des Kapitals. In: MARX, Karl &ENGELS , Friedrich. Werke. Band 23. Berlin:

203
seguidas fazem parte. Quando Thomas Anderson chega atrasado ao trabalho, provoca uma
advertência do chefe de departamento da empresa. Tal qual o empregado insubordinado Thomas
Anderson será dispensado, o hacker rebelde Neo será eliminado. A Matrix é , em soma, um
sistema , uma totalidade organizada , discursiva , mas, ao mesmo tempo, palpável. 5

A dimensão da força bruta do Capital , a alienação do trabalho, como Marx denuncia nos
Manuscritos Econômicos- Filosóficos, escritos em 1844, reaparece na Matrix em dois antológicos
diálogos entre Morfeus e Neo, ou seja, no momento da escolha entre a pílula azul e a vermelha e
no momento da revelação do enigma.

O trabalho não repoduz somente mercadorias: produz a si próprio e o trabalhador


como uma mercadoria na medida em que produz mercadorias. ... O objeto que o
trabalho produz , isto é, seu produto, retorna a encará-lo como um ser estranho, como
um poder independente de seu produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se
fixa num objeto, tornou-se coisa, é a reificação do trabalho.6

O trabalho humano é, como revela Morfeus, pilha Duracell! Somos permanentemente reificados,
verdadeiros escravos da civilização capitalista global , res no sentido jurídico romano , não por
7
cativeiro, mas por nascimento. Os campos de reprodução de seres humanos nus e indefesos
revelam a mais absoluta redução dos seres humanos a seu estado primário. As cenas do grande
útero, verdadeira obra prima da ficção científica cinematográfica, nos lembram o quanto isso é
espantoso.

O mundo de ponta a cabeça

Mas, ao mesmo tempo, a própria indústria cinematográfica participa do lado discursivo da Matrix,
uma vez que colabora, paradoxalmente, para colocar um mundo diante de nossos olhos, , para criar
uma prisão para nossa mente. O filme é um produto, uma projeção, que reacendeu o debate em
torno da ideologia, tema abordado por Karl Marx e Friedrich Engels na obra A ideologia alemã. Os

Dietz, 1979, p. 85 ss.


5 Vide o verbete Sistema In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Da 1a. ed. Brasileira
Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Catilho Benedetti. 4. ed. São Paulo,
Martins Fontes, 2000, p. 908 ss.
6 MARX, Karl. Ökonomisch-filosofische Manuskripte aus dem Jahre 1844. In: MARX, Karl &ENGELS
, Friedrich. Werke. Ergänzungsband. Berlin: Dietz, 1973. pp. 511 s.
7 Sobre as causas da escravidão vide ROLIM, Luiz Antônio. Instituições de direito romano. São Pulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 144s.

204
dois autores partem do pressuposto que existe um mundo da vida real, ligado à atividade material
dos homens, e um mundo das idéias que se manifesta na produção intelectual “quando esta se
apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica etc., de um povo.” No entanto,
as representações intelectuais são condicionadas pela existência material das forças produtivas.
Chegam daí à conclusão de que :

A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente; e o Ser dos homens é o
seu processo da vida real. E se em toda ideologia os homens e as sua relações nos
surgem invertidos, tal como acontece numa camera obscura, isto é apenas o resultado
do seu processo de vida histórico , do mesmo modo que a imagem invertida dos
objectos que se forma na retina é uma conseqüência do seu processo de vida
directamente físico.8

O caráter da ideologia, porém, se revelaria como não sendo tão simples. A alegoria do especular, da
imagem distorcida pelo reflexo inerente ao mundo das idéias , os jovens Marx e Engels dividem
não somente com Platão, como também com pensadores, que , anos depois, tratam da questão da
representação de idéias. Mas, vale lembrar, ainda , que o tema da confusão da mente pelo
capitalismo e o tema do sofrimento pela alienação permanece em sua obra. Analisando o Capital,
Karl Marx dá mais uma pista para a compreensão que nele há algo espetacular , algo representativo
e confuso: A mercadoria, ensina Marx, não é somente o produto do trabalho , mas uma coisa que
carrega em si uma projeção que vai para além do sensual ( “sinnlich übersinnlich”) que lhe confere
um lugar social fantasmagórico. 9 Em outras palavras: rodeados por mercadorias, as pessoas vêem
apenas fantasmas. É preciso tomar a pílula vermelha, adquirir consciência, e apreender a enxergar
a verdade!

Anos mais tarde, Sigmund Freud enfrenta os fantasmas que se escondem no subterrâneo da
consciência e elabora uma teoria do inconsciente que Karl Marx não chegou a conhecer. Ao
mesmo tempo que a psicanálise fazia, no início do século XX , o inconsciente perder seu caráter
fantasmagórico, a ciência em geral procurava reafirmar a modernidade como processo de o
10
desencanto do mundo. Nasciam, junto à psicanálise, a sociologia, a lingüística e as teorias que

8 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da filosofia alemão mais recente.
[1845/1846] Vol I. Trad. Conceiçào Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira,. Lisboa/São Paulo: Presença/
Martins Fontes, 1980.
9 MARX, Karl. Das Kapital: Kritik de politischen ökonomie. Erster Band. Buch I: Der Porduktionsprozess
des Kapitals. [1867] In: MARX, Karl &
ENGELS , Friedrich. Werke. Band 23. Berlin: Dietz, 1979, p. 86
10 HABERMAS, Jürgen. Der Philosophische Diskurs de Moderne: zwö lf Vorlesungen. 6. Aufl. Frankfurt

205
tentavam colocar o direito em base racionais. Para o direito é fundamental a contribuição de Max
11
Weber quem descreve seu processo de racionalização formal e material e o exercício da
dominação legitimada através do Estado moderno. Na mentalidade científica da época tudo tem
explicação, pois o que resta para ser decifrado, por assim dizer, Freud explica. Nessa linha de
raciocínio insere-se também Hans Kelsen e a teoria pura do direito. O empenho na tentativa de
captar o mundo através da razão pode ser resumido na tese de Ludwig Wittgenstein, enunciada no
prefácio do Tractatus lógico philosophicus: “... em geral o que pode ser dito , o pode ser
claramente, mas o que não se pode falar deve-se calar” 12.

A razão como prisão da mente

No entanto, a convicção de que tudo pode ser dito, descrito, analisado, racionalizado, e normatizado
sofreu, em decorrência da existência dos campos de concentração nazistas e das bombas
norteamericanas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki , um forte abalo. O desencanto do mundo
através do pensamento moderno tinha se transformado num instrumento de dominação e
repressão.13 O desafio, doravante, seria descobrir as causas do fracasso da razão. Max Horkheimer
e Theodor W. Adorno escrevem, em 1947: “O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do
que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano,
está afundando em uma nova espécie de barbárie”.14 A proposta da Escola de Frankfurt , a teoria
crítica, consiste em dar uma última chance à razão . Postula o uso da “razão como instrumento de
libertação para realizar a autonomia, a autodeterminação do homem”.15

Ao final do século XX, o debate em torno da razão reacende , quando filósofos e cientista sociais
se deparam com a teoria psicanalítica de Jaques Lacan. Contrário ao aforismo 7 de Ludwig
Wittgenstein, o que não se pode falar, deve-se calar , Lacan afirma o real é impossivel. O real
equivale aquilo que Freud denomina pulsão e constitui , ao lado dos simbólico e do imaginário um

am Main: Suhrkamp, 1998. P. 9


11 WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie.[1921] 5.ed.
Tübingen: Mohr, 1980, p. 387-513.
12 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico philosophicus. [1918] . Trad José Arthur Gianotti. São
Paulo: Nacional/EDUSP , 1968, p. 53. Vide também : HELFERICH, Christoph. Geschichte der
Philosophie: von den Anfängen bis zur Gegenwart und sötliches Denken. 3. ed. München: DTB, 1999, p.
387-389.
13 ADORNO, Theodor W. &HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.1985, p. 19.
14 Ibid., p. 11
15 FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: ontem e hoje. 3.ªed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 41 .

206
dos registros do sujeito. Para Lacan, o real é o que não faz sentido: " parece que o real tem seu
fundamento onde não há sentido, naquilo que exclui o sentido, ou, mais exatamente, repousa sobre
o fato de ser excluído do sentido"16
17
O Real, sendo obsceno, é um constante desafio para a cultura que, por sua vez, tenta ,
desesperadamente, cobrir com símbolos esse buraco indominável. Cria-se a simulação com a
finalidade de fazer crer que o mundo simbólico, a rede de significados, e o mundo imaginário,
nossas representações, coincidam com o Real.

Na sociedade capitalista pós-moderna, a simulação transcende o simbólico e se funde com o


imaginário numa linguagem autoritária que impossibilita até a utopia. Jean Baudrillard denuncia:

Já não existe o espelho do ser e das aparências , do real e do conceito. Já não existe a
coextensividade imaginária: é a miniaturização genética que é a dimensão da
simulação . O real é produzido a partir de células miniaturizadas , de matrizes, e de
memórias , de modelos de comando – e pode ser reproduzido em número indefinido de
vezes a partir daí. ... 18

Feito em Matrix, nossa cultura dos meios de comunicação de massa cria imagens que fundem
informação e interpretação e e vendem esse produto apelando a nossos desejos. Esse real produto da
simulação acaba sendo consumido sem resistência. 19 Karl Marx , em meados do século XIX, ainda
concebia ideologia enquanto representação , estabelecia uma equivalência do signo e do real e
denunciava a simulação como falsa referência, a qual era possível desvendar colocando o espelho
em pé. No século XXI, a esperança de encontrar a verdade e , com ela, a emancipação, depara-se
com um obstáculo quase intransponível, isto é o fato de que a linguagem, como diz o personagem
Morfeus, é a prisão da mente . Pois na era da simulação nos deparamos com a liquidificação de
todas as referências : tudo que é sólido, desmancha no ar, intuíam Karl Marx e Friedrich Engels
no Manifsto Comunista, de 1848. Hoje, seguindo o raciocínio de Jean Baudrillard, já

não se trata de imitação , nem de dobragem , nem mesmo de paródia. Trata-se de uma
substituição no real dos signos do real , isto é, de uma operação de dissuasão de todo

16
LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre XXIII. Le sinthome. Paris: Seuil, 2005, p. 65.
17
Idem , op. cit. p. 69
18 BAUDIRLLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereiria. Lisboa: Relógio
d'Água, 1991, p. 8.
19FELLUGA, Dino. Matirx: paradigma do pós-modernismo ou pretensão intelectual? 1a. Parte. In:
YEFFETH, Glenn. A pilula vermelha: questões de ciência, filosofia e religião em Matrix. Trad. Carlos
Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003, pp. 84 s.

207
processo real pelo seu duplo operatório , máquina, sinalítica metastável,
programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita
todas as peripécias.20

Se para Jacques Lacan, o real está fora do sentido, há também limites para o imaginário e o
simbólico e, portanto para o alcance da cultura sobre a mente. Do buraco de sentidos e imagens
sai o desejo como força criadora do novo. Há uma sobra que se encontra “além da linguagem e,
portanto, da representabilidade, embora continue a perturbar a plácida atividade da ideologia ,
21
porque nos faz lembrar a artificialidade da ideologia “. O mapa, diz Jean Baudrillard, não é
capaz de alcançar a totalidade do território. Subsiste um vestígio, “o deserto do próprio real”22!
Vivendo no deserto do real, há a possibilidade de se criar. Neo dá o recado à Matrix, vaticinando
“um mundo sem você, sem regras nem controle, sem fronteiras, nem amarras, um mundo onde tudo
é possível” .

A Matrix existe?

A Matrix da ficção cinematográfica lembra em muitos aspectos as mais diversas redes que cobrem
nossa sociedade globalizada. A globalização permite uma maior facilidade para a circulação de
capital. De outro lado, percebe-se a sociedade em crise: a organização fordista da atividade
empresarial cede à acumulação flexível, o Estado nacional deve administrar uma crise de
legitimação, o direito vê o seu maior postulado, a justiça, posto em xeque. Há fragmentações por
toda parte: visíveis no espaço doméstico, cujas questões subjetivas são politizadas. Renascem o
fundamentalismo religioso e étnico. Sindicatos são desestruturados, não por último pela
descentralização produtiva. Nesse sentido, o Grande Outro , o “lugar para significar uma ordem de
elementos significantes que são os que articulam o inconsciente e marcam a determinação
simbólica do sujeito”, 23 deixa de existir.24 Pois a textura social criada pela cultura moderna está se

20 BAUDIRLLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d'Água, 1991, p. 9.
21 FELLUGA, Dino. Matrix: paradigma do pós-modernismo ou pretensão intelectual? 1a. Parte. In:
YEFFETH, Glenn. A pilula vermelha: questões de ciência, filosofia e religião em Matrix. Trad. Carlos
Silveira Mendes Rosa. São Paulo: Publifolha, 2003, p. 90.
22 BAUDIRLLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d'Água, 1991, p. 8.
23 VALLEJO , Américo &MAGALHÃ ES, Lígia C. Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Perspectiva ,
1981, p. 105
24 Nesse sentido, ZIZEK, Slavo. Matrix: ou os dois lados da perversão. In: IRWIN, William (org.) Matrix:
bem-vindo ao deserto do real. Trad. Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras , 2003, p. 263.

208
desmanchando diante de nossos olhos, incluído aí o direito.

Esse fenômeno é visível na crise do Estado nacional perante a globalização:

Desprovido de capacidade unificadora, tanto em decorrência de abusos na


instrumentalizaçào de metanarrativas , quanto pela consciência contemporânea da
capilaridade do poder , o Estado nacional como locus moderno da realização social
perde gradativamente até mesmo a função identitária.25

Conseqüência da crise do Estado é, de um lado, a formação de outras comunidades como


aglutinadores e centros de identificação ( daí a importância dos novos movimentos sociais
mundiais), de outro lado , o renascimento de regimes fundamentalistas , muitas vezes teocráticos.

No entanto, a sociedade informacional, cuja ferramenta principal são as redes constituídas pela
tecnologia da comunicação, é capaz de religar pessoas, movimentos culturais e sociais por toda
parte do mundo, abrigando uma esquizofrenia estrutural entre a divisão e a integração , entre a
fragmentação e a identidade dos sujeitos, enfim, entre “a Rede e o Ser”.26 Tal qual no filme
Matrix, sujeitos isolados pelo neoliberalismo, religam-se em comunidades virtuais na internet.

A conexão de indivíduos em rede, porém, é nada mais que um sub-produto da sociedade


informacional. Função primordial da rede é conectar e coordenar a atividade econômica. Para a
relação entre capital e trabalho isso traz consigo graves mudanças, já descritas e analisadas em outra
oportunidade. Novas formas organização do trabalho, fortemente inspiradas no modelo toyotista,
abrigam o paradoxo entre o isolamento e a conexão em rede. Pois, marca registrada do toyotismo
é uma nova divisão do trabalho. A empresa preserva um núcleo no qual se realizam as atividades
indispensáveis por empregados polivalentes e estáveis . Em atividades auxiliares, trabalhadores
menos qualificados são contratados com contatos de trabalho mais precários: geralmente
delimitados no tempo, garantem menos direitos. Além dos trabalhadores contratados pela própria
empresa, há uma rede de fornecedores de peças e serviços prestados just in time, ou seja, na hora
em que a empresa necessita das peças ou dos serviços. Esse método administrativo exige, por sua
vez, relações jurídicas do trabalho que estão na raiz da flexibilização do direito do trabalho. À
desintegração do corpo social antes formado pelos trabalhadores reunidos na fábrica fordista,
correspondem relações jurídicas trabalhistas igualmente fragmentadas. A própria empresa

25 ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva,
2005, p. 28.
26 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Trad. Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra,
1999. Coleção: A era da informação: economia , sociedade e cultura . Vol 1.

209
externaliza suas atividades para um grande número de empresas, pessoas jurídicas isoladas.
Estamos diante da fragmentação do Grande Outro do mundo do trabalho industrial, isto é, a
empresa empregadora.

No entanto, é o conjunto das empresas que constitui a rede como forma de organização. Resultado
da reorganização do processo produtivo e , ao mesmo tempo, dos investimentos em pesquisa e
desenvolvimento, a rede está inserida na economia informacional, capaz de superar a
impossibilidade de planejamento num mercado global dinâmico e adaptar-se a suas oscilações,
distribuindo , além do ônus do custeio da pesquisa e do desenvolvimento, os riscos. A rede é um
híbrido entre mercado e hierarquia ,27 entre operações econômicas descentralizadas e a
concentração de capitais. Ao mesmo tempo que seus elementos obedecem ao livre jogo de
interesses, formam uma organização, isto é, um sistema específico “de meios voltados para a
execução de objetivos específicos”.28. Em soma, “cooperam e competem neste admirável mundo
novo econômico, onde amigos e adversários são os mesmos.”29 Cooperação e concorrência,
isolamento e interligação são a marca registrada da Matrix do século XXI que transforma energia
humana em lucro e poder! Cria e recria uma nova ordem simbólica, para a qual, ao menos por
enquanto, não existem conceitos jurídicos, pois convivem ainda com uma concepção do direito,
cuja fonte central é o poder do Estado, e com uma concepção do direito do trabalho centrado na
idéia da relação de emprego estabelecida entre a empresa moderna e o trabalhador subordinado.
Diante da crise do Estado e da reorganização do capital em redes mundiais , o direito moderno só
pode responder pontualmente, quanto menos realizar justiça. Ao mesmo tempo, o Outro , no caso ,
o Estado ou a empresa , se desconfigura como endereçado e receptor de reivindicações coletivas
politicas e normativas.

Não há conceitos no direito que dêem conta dos problemas jurídicos colocados pelas redes. No
entanto, as redes articulam-se também de forma jurídica, em outras palavras, atuam num universo
simbólico normativo. As inúmeras formas jurídicas de conexão em rede não se comunicam mais
com os conceitos tradicionais da propriedade, do contrato e da personalidade jurídica,
desenvolvidos num contexto histórico de concorrência aberta no mercado.30 O problema para o
direito é desvendar a rede enquanto construção normativa, investigar as formas jurídicas de

27 CHESNAIS, François. A Mundializaçào do Capital. Trad. Silvana finzi Foá. São Paulo: Xamã , 1996, p.
104.
28 CASTELLS, Manuel. Op. cit. p. 173.
29 CASTELLS, Manuel . Op. cit. p. 184.
30 ROPPO, Enzo. O Contrato. Trad Ana Coimbra &M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p.

210
integração e analisar o paradoxo entre a unidade e a multiplicidade, entre a cooperação e a
hierarquia, entre a pluralidade e a unidade. Pois é nesse paradoxo que reside sua capacidade de
controle. O lema dividir para mandar ganha na rede um novo sentido.

Àconexão em rede dos elementos fragmentados corresponde um mundo virtual que religa, ainda
que artificialmente, os elementos isolados. Faz crer que não há outro mundo a não ser o do fim da
história, o fim das grandes narrativas do belo, da verdade, da justiça e da emancipação,31 que há
como destino da humanidade a globalização e o cartão de crédito, reunindo símbolos e fantasias do
capital para aprisionarem as mentes do Brasil até o Afeganistão. O Capital finge “ter o que não se
tem” (o valor de uso dos produtos, o poder do Estado, a relação personalíssima , no trabalho, a ética
na política ) e constrói na globalização um simulacro, um “edifício de representação”,32 o qual,
ao mesmo tempo que desestrutura o referencial cultural da modernidade, o Grande Outro do século
XX, estabelece como única lei a “lei radical de equivalência e de trocas , a lei de bronze do seu
poder.”33 Para o direito do trabalho isto significa que , em nome da competitividade e da e da
empregabilidade, transfere-se a fonte do direito do Estado, autor da lei geral e abstrata, para as
partes individuais e coletivas da relação de emprego que negociam o contrato, instrumento
jurídico de troca aparente de equivalentes. O contrato torna-se o instrumento jurídico pós-moderno
por excelência, pois , além de ser uma lei em miniatura e adaptar-se a um mundo em constante
mutação, é um instrumento capaz de articular relações sociais e, portanto, viabilizar as redes e o
controle social.

“Um outro mundo é possível”

Apesar da amálgama entre o simbólico e o imaginário que forma , nas palavras de Jean
Baudrillard, o simulacro, resta o deserto do real . No entanto, é preciso o mergulho no espelho,
para perceber o outro mundo. Mergulhando no espelho, Neo depara-se consigo mesmo.

Em nossa cultura pós-moderna , cercada por espelhos por toda parte, o espelho tem um papel
fundamental: antes mesmo que o complexo de Édipo, e com este a lei, tenha e chance de se instalar
em nossa mente, o espelho molda nosso eu . No ensaio O estádio do espelho como formador da

17
31 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
32 BAUDIRLLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereiria. Lisboa: Relógio
d'Água, 1991, p. 13.
33 BAUDIRLLARD, Jean. Op. cit. , p. 33.

211
função do eu tal co mo nos e revelada na experiência psicanalítica , Jaques Lacan reflete sobre a
experiência lúdica de bebês entre 6 a 18 meses diante do espelho. O prazer de se ver diante do
espelho é para Lacan a “matriz simbólica onde o eu se precipita em forma primordial , antes que se
objective na dialéctica da identificação ao outro e que a linguagem lhe restitua no universal a sua
função de sujeito”34 A formação do imaginário é anterior ao complexo de Édipo , isto é, à
linguagem que molda o sujeito através da lei. Através do espelho , o ser humano, imaturo e
dependente por natureza e , conseqüentemente, com uma percepção retalhada do seu corpo, tem a
ilusão da unidade. Mas, o reflexo no espelho é fantasmagórico , uma trapaça que parece delinear o
35
mundo , “parece ser o limiar o mundo visível”. Em nossa cultura, seguindo esse raciocínio, o
desejo do outro, da mãe, por exemplo, é percebido como sendo uma falta e coberto com todo um
universo simbólico. Esse desejo do outro é posterior ao estado do espelho. O imaginário é
fundamental para o eu , uma vez que previne a dispersão psicótica . Fortalecido pela imagem
integral da Gestalt, o eu suporta o discurso do outro, mas paga o preço da trapaça, da falsa unidade
que, no imaginário, o torna onipotente e o faz sofrer diante das imposições do mundo simbólico.36

O mergulho no espelho, realização do desejo primário de escapar do mundo visível, desvenda


algo espantoso: livre dos simbólicos e das fantasias da Matrix, está o deserto do real tão assustador
quanto a liberdade! O que ocorre com Neo em Matrix, ocorreu com o prisioneiro liberado da
caverna de Platão: “o real causa náusea! A existência 'nua e crua' nos faz preferir viver na
37
ignorância a lutar pela mudança dos fatos como estão postos.” Aceitar o deserto do real , um
mundo imperfeito , um sub-mundo, causa pavor e o desejo de permanecer na ignorância da Matrix,
isto é, do mundo criado pelas telenovelas, do ambiente climatizado dos shopping centres, da
exclusividade do Club Méditerranée e dos condomínios fechados, dos Maracanãs e Palácios da
Justiça, onde ocorrem os simulacros de solução de conflitos, do mundo do Congresso Nacional ,
simulacro do poder político. Traumático é acordar e perceber que para lá do espelho existe um
outro mundo, tão mundo quanto o nosso, quem deixou de cumprir a promessa da felicidade contida
na Declaração da Independência dos Estados Unidos de 1776, a promessa de dignidade e
fraternidade , contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 ou, ainda a promessa

34 LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da funçào do eu tal como nos é revelada na
experiênca pslcanalítica [1949] In: SEIXO, Maria Alzira (org.) O cvorpo e a letra : ensaios de escrita
psicanalítica . Trad. Fernando Cabral Martins e Maria Margarida Calvent Barahona. Lisboa: Arcádia,
1977, p. 22.
35 LACAN, Jacques. Op. cit. , p. 23.
36 VALLEJO , Américo & MAGALHÃ ES, Lígia C. Op. cit. , pp. 48s.
37 BISCALCHIN, Fábio Camilo. Op. cit. p. 34.

212
de justiça e solidariedade , contida na Constituição Federal do Brasil , de 1988.38

Há uma escolha a fazer. A pílula amarga é vermelha tal como a fraternidade e a bandeira do
movimento operário. Uma vez feita a escolha tomada a pílula vermelha, e desvendada a servidão
imaginária e simbólica, que nos davam a “ilusão de autonomia”39, somos, feito os personagens
em Matrix a bordo da nave Nabucodonosor , responsáveis pela nossa liberdade conquistada, diria
Jean Paul Sartre . Para os libertos , sempre há escolhas amargas a serem feitas que põem a prova
a ética , isto é, a arte da conduta. No violento e alienante mundo da Matrix , a liberdade é uma
conquista , mas também um fardo.

Nessa luta, a tentação , personificada em Cypher, personagem que lembra Judas e Mephisto, é
voltar para o útero da Matrix, ser “alguem importante, tipo ator de cinema”, isto é , fazer parte de
seu jogo espetacular. Resistir a essa tentação é tarefa quase impossível, pois o real sem a presença
do imaginário é insuportável. Os rebeldes a bordo da Nabucodonosor necessitam de fantasia,
seja da mulher de vermelho ou das roupas para lá de elegantes que usam quando se encontram na
Matrix.

O que o herói da estória persegue não é um ideal , isto é, ser the One projetado pela Matrix , mas
ser Neo, o novo, porque assim o deseja quem tomou a decisão de desvendar a Matrix e abraçou
uma causa. Se a luta pela causa leva ao resultado desejado, pouco importa. A causa , o desejo de
liberdade e justiça persiste, sendo mais real que seus símbolos. O outro mundo é possível na
medida que se luta por ele. Thomas Anderson não é The One, o predestinado pela Matrix, mas sim
Neo, o novo, persona que escolheu de ser. E sendo persona, deixa de ser escravo! Neo vai pela
causa da liberdade até o fim, custe o que custar. Um novo mundo é possível , porque há um desejo
que assim seja. Lembremos que esse mundo é um mundo sem controle e sem regras!

A questão da liberdade remete faz lembrar que o direito abriga um paradoxo. A lei que significa
disciplina para conter o caos pela a ditadura do poder sem legitimidade, garante também a
liberdade circunscrevendo um espaço de não-poder e , conseqüentemente , de autonomia do
indivíduo. Nesse sentido, por exemplo, os direitos humanos são a “afirmação do indivíduo contra
esse mesmo poder” 40, mas também instrumentos contra o que Michel Foucault costumava chamar
de poder capilar, isto é, o poder exercido por agentes não estatais. Parte do Grande Outro,

38
Sobre as promessas não cumpridas da modernidade : HABERMAS, Jürgen. Der Philosophische Diskurs
de Moderne: zwölf Vorlesungen. 6. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.
39 LACAN, Jacques. Op. cit. , p. 26
40 ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva,

213
representado na cultura, na linguagem , enfim no simbólico , a lei, é um dos campos que constitui
o sujeito. Mas, o sujeito possível da lei , conceito construído por Lacan, só existe em sua relação
com os outros sujeitos jurídicos, numa relação especular com o semelhante. Em outras palavras, o
sujeito de direito se espelha nos outros sujeitos de direito, formando uma unidade imaginária que
faz possível a identificação contida no direito.

A título de conclusão: A utopia de um mundo sem regras?

Vivemos , no mundo globalizado do século XXI, numa espécie de Matrix. A crise das instituições
orientadas no pai, isto é, da família patriarcal, do Estado, da empresa fordista e dos sindicatos, para
citar apenas alguns exemplos, implicam a passagem de uma sociedade disciplinar para uma
sociedade de controle. No campo do direito, o controle social é realizado por novos atores sociais
globais, tais como as redes empresariais que se utilizam do instrumento jurídico do contrato,
capaz de construir verdadeiros mundos contratuais , para usar um conceito do jurista Gunther
Teubner. As pessoas que vivem nesses mundo contratuais sujeitam-se á padronização e ao controle
exercido por poucos atores transnacionais capazes de normatizar e fiscalizar a vida na rede global
para, finalmente acumularem poder e riqueza, valendo-se do trabalho alheio. Exemplos são redes
empresarias de produção e de distribuição de bens ou de divulgação de informações. Curiosa é
também a paralela entre a internet e a Matrix, constituindo-se de hardware e de software capaz de
conectar os indivíduos em rede causando verdadeira dependência dos símbolos e das imagens que
oferece.
Diante desse quadro, os direitos humanos ganham nova importância. Deixam de ser direitos
fundamentais positivados na constituições para voltarem a ser bandeiras, hoje, de uma sociedade
global.41 Em Matrix , os direitos humanos não são mais garantidos. Contra a prisão da mente pelo
controle social e a exploração por quem transforma a vida dos seres humanos em fonte de energia
deve-se lutar.

Deixar de ser escravo da globalização exige, portanto, ética, atitude. No deserto do real há
terrenos inexplorados abertos para a criação de um mundo sem regras, como imaginam Neo e seus
companheiros. Um mundo sem exploração, sem dominação alienante, imaginam os militantes dos

2005, p. 40
41
FERRAZ, Tércio Sampaio IN: FORBES, Jorge et alii. A invenção do futuro: um debate sobre a
pósmodernidade e a hipermodernidade. São Paulo: Manole, 2005.

214
movimentos sociais globais. Mas, para tanto, é necessário enfrentar a Matrix, reinventar liberdade
e justiça, algo tão inominável quanto o desejo que a carrega.

Referências bibliográficas:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Da 1a. ed. Brasileira Alfredo Bosi; revisão
da tradução e tradução de novos textos Ivone Catilho Benedetti. 4. ed. São Paulo, Martins Fontes,
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217
REFLEXÕES SOBRE A IDEOLOGIA DA RACIONALIDADE TECNOLÓGICA, O
NARCISISMO E A MELANCOLIA

Dulce Regina dos Santos Pedrossian


UFMS/PUCSP

Este estudo é resultante da pesquisa teórica intitulada A ideologia da racionalidade


tecnológica, o narcisismo e a melancolia: marcas do sofrimento, que teve como objetivo
verificar a relação entre o narcisismo, a melancolia e a ideologia da racionalidade tecnológica,
por meio de alguns conceitos mediadores, tais como indústria cultural, fenômenos de massa,
que tendem a reproduzir a dominação social, nas diversas instâncias da vida do indivíduo na
sociedade atual. Para sua elaboração, concentramo-nos nos escritos de Theodor W. Adorno,
Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Sigmund Freud. Recorremos também aos apontamentos
de outros autores, sobretudo, de estudiosos dessas teorias, com o intuito de dar sustentação à
pesquisa que realizamos.
Desde a épica de Homero, como assevera Matos (1993), a subjetividade de Ulisses
constituiu-se por intermédio de sacrifícios constantes devido à necessidade de autoconservação.
A subjetividade é o espaço interno onde o auto-sacrifício acontece, e a formação do indivíduo
(de sua subjetividade) é fruto da apropriação individual da cultura. Esta, efetivamente, é meio
para a individuação e para a constituição da subjetividade, e poderia ser diversa do que é, pois,
no momento atual, o indivíduo tem despendido demasiada energia para a preservação da própria
vida, sobrepujando sua capacidade de tolerância, e, diante disso, a via menos custosa para a
superação dos obstáculos - apesar de seu aprisionamento subjetivo - é a afirmação da realidade
estabelecida. Não é casual que, de um lado, a falsa consciência diante de sua alienação passa a
ser uma condição significativa para revelar a desrazão da sociedade. De outro, o recolhimento
do indivíduo em si mesmo - uma das características do narcisismo e da melancolia - já é indício
da presença do sofrimento corporal e psíquico vivido.
O ponto de partida para a elaboração deste estudo foi a tese de livre-docência do Profº.
Dr. José Leon Crochík (1999), denominada A ideologia da racionalidade tecnológica e a
personalidade narcisista, em que desenvolve uma pesquisa empírica com o objetivo de verificar
se há correlação significativa entre a ideologia da racionalidade tecnológica e as características
narcisistas de personalidade. Crochík (1999) chama a atenção para o fato de que a sociedade
medeia a relação entre ideologia e personalidade e que essa relação é histórica. Não apenas a
ideologia se transforma devido às mudanças sociais, como também a irracionalidade social
abrange a todos, colaborando para preservar a dominação de poucos sobre muitos.

218
Não só evidenciamos o princípio de que os meios são mais importantes do que os fins,
mas também o fato de o esclarecimento estar tolhido diante da falta de clareza do que seja
verdadeiro. Por mais que se revele de modos diversos, a marca de dominação social esteve
presente desde os tempos antigos. Quanto mais a sociedade progride, mais racionalizada
apresenta-se, convertendo-se em espaço de domínio dos indivíduos entre si, sobre a natureza e
sobre a cultura, e não apenas, como afirmam Horkheimer e Adorno (1947, p. 159), “[...] a
racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do sofrimento”, como também algo
específico da ideologia da racionalidade tecnológica é o seu caráter formal de dominação. Os
conceitos de dominação e de ideologia da racionalidade tecnológica estão, portanto,
intimamente relacionados e, com isso, os termos ideologia, racionalidade tecnológica,
racionalidade técnica e razão técnica, presentes nos escritos dos frankfurtianos estudados,
conservam a dominação social.
No plano da consciência, tem-se que sem reflexão não ocorre o conhecimento, e o
pensamento perpassa a experiência. Esta envolve riscos, porque, como dizem Horkheimer e
Adorno (1947, p. 82), “[...] é sempre um agir e um sofrer reais”. Porém, o que dá sentido à
vida é o envolvimento com os objetos, a busca em compreendê-los. Para Adorno (1970, p.
119): “Só há compreensão quando o conceito transcende o que ele quer apreender”, e, quando
o pensamento reflete sobre si mesmo, o que ele divisa acima de tudo é uma contradição.
Apesar de reconhecer o descompasso entre cultura e condições objetivas, Horkheimer
(1968) acredita na ciência, advertindo para a importância da estruturação da sociedade em
organização humana. Quando aborda a passagem da sociedade liberal para a sociedade
administrada, deixa evidente o aspecto destrutivo da planificação e da racionalização da
sociedade industrial, concorrendo para a transformação mais íntima dos terrenos individuais e
coletivos. A coletividade, ao prescindir dos ideários de liberdade e de justiça, contribui para
que o indivíduo não mais se empenhe em desenvolver o que lhe é singular.
O conceito de ideologia da racionalidade tecnológica refere-se à racionalização da
própria dominação, e a totalização da dominação nas diversas esferas da vida oculta a inverdade
do todo em um momento de integração geral. Por essa razão, a ideologia da racionalidade
tecnológica auxilia a própria base da relação de dominação, sendo expressão das condições e
das contradições sociais. A cultura é mais do que ideologia. A cultura tecnológica não tem o
mesmo significado da ideologia da racionalidade tecnológica. Mas tanto a cultura tecnológica
quanto a ideologia da racionalidade tecnológica estão enredadas no que têm de destrutivo -
alimentam o processo de dominação continuado. De um lado, admitir a cultura tecnológica é
mais progressivo do que negá-la - criticá-la e não se apropriar de sua contribuição é uma crítica
romântica, e esta passa a ser inimiga do esclarecimento. De outro, o enaltecimento da cultura

219
espiritual passa a ser também uma ilusão, pois, ao guiar-se pelo lado pueril, o indivíduo abre
mão do pensamento crítico como resistência à situação de poder e de cegueira frente à
dominação.
O desempenho do indivíduo, na sociedade capitalista, é guiado por normas externas, ou
melhor, a liberdade individual está limitada à escolha dos meios mais adequados para atingir
uma meta que ele não delimitou de forma direta. Não apenas a ideologia da racionalidade
tecnológica exerce influência no estilo de vida das pessoas, como também a primazia das
necessidades está relacionada com a crescente organização produtiva que as preestabelece. Nos
dias de hoje, a dominação se expressa no conteúdo do transmitido pelos meios de comunicação
de massa e na ideologia da sociedade industrial mediante um processo de racionalização
crescente, escravizando-nos cada vez mais. O consumo de bens simbólicos, como música,
programas de televisão, leitura de horóscopos, livros e uso de computadores são incorporados
nos atos que consideramos corriqueiros, sem que reflitamos sobre eles. Como afirma
Horkheimer (1946, p. 38): “Quanto mais a propaganda científica faz da opinião pública um
simples instrumento de forças obscuras, mais a opinião pública surge como um substitutivo da
razão”. Não só a opinião pública como sucedâneo da razão impossibilita a compreensão do
todo, bem como a cultura industrializada turva a consciência do indivíduo ao funcionar como
instrumento de determinação dos fins.
O indivíduo diante do sentimento de dependência geral é impedido de refletir sobre as
possibilidades de tornar a vida mais humana, e as condições materiais já podem estar voltadas
para o bem-estar de todos os indivíduos. É evidente a importância de revelarmos o todo para
possibilitar sua transformação pelo resgate do particular. Pelo fato de vivermos em uma
sociedade não-livre, não devemos nos preocupar em aperfeiçoá-la (realizar os ideais que ela
promove ideologicamente). Trata-se de modificação social, apesar das barreiras impostas pela
ordem estabelecida, como diz Marcuse (1964, p. 55):
[...] a sociedade tem de criar primeiro os requisitos de liberdade para todos os seus
membros antes de poder ser uma sociedade livre; tem de criar primeiro a riqueza,
antes de poder distribuí-la de acordo com as necessidades individuais livremente
desenvolvidas; deve primeiro possibilitar aos seus escravos aprender, ver e pensar,
antes que eles possam saber o que se está passando e o que podem fazer para
modificar as coisas (Grifos do autor.)

Esse enunciado remete-nos ao estado de aprisionamento, de submissão e de miséria


interior em que se encontram os indivíduos. As pessoas não estão conseguindo viver
experiências e refletir sobre os seus atos; estão destituídas de qualquer possibilidade de
pensamento emancipável - o progresso aliou-se à barbárie devido ao caráter irracional da
ideologia da racionalidade tecnológica. Com isso, são evidentes as implicações dessa ideologia

220
na constituição do indivíduo por meio do seu nexo imediato aos fenômenos de massa, e, com
certeza, as marcas de sofrimento incidem no corpo e na psique.
Não podemos conceber o corpo e o espírito separados um do outro, entretanto, tal
divisão pode ser explicada pela ruptura entre indivíduo, natureza e cultura, que coloca à mostra
o exigido pelo caráter formal da ideologia atual. Por seu lado, a condenação da cisão significa,
ao mesmo tempo, crescimento da dominação e seu desnudamento. O amor-ódio pelo corpo
indica que ele foi coisificado em face da dominação social. A necessidade de ser corpo vivo -
livre, valorizado e amado - não deixa de estar latente no corpo que se adaptou aos mecanismos
sociais, afastando-se do espírito. A compulsão à destruição e à crueldade indica ser formação
reativa diante das situações objetivas. Decerto, para Adorno (1947, p. 160): “O absurdo
perpetua-se através de si mesmo: a dominação é legada, de geração em geração, através dos
dominados”. Não só sua individualidade vem sendo negada, bem como o indivíduo vem
perdendo a capacidade de resistir diante da engrenagem da cultura de massas.
No momento atual há uma tendência no sentido do “encapsulamento” do sujeito
conforme expressão de Matos (1998, p. 61), de modo que o individuo regredido facilmente
passa a dar sustentação à ideologia da racionalidade tecnológica. E, para Crochík (1996, p. 59),
“[...] à medida que a contradição entre a sociedade e o indivíduo se amplia, a contradição interna
ao indivíduo também aumenta”. A auto-reflexão torna-se necessária para que ele (indivíduo)
perceba as contradições sociais, no entanto, a ideologia da racionalidade tecnológica, ao
procurar acomodar as contradições sociais ao sistema social atual, funciona como mecanismo de
dominação - as contradições da realidade passam a ser percebidas como contradições do
pensamento.
A dominação social não apenas se impõe de uma forma cada vez mais determinada e
passa a integrar a subjetividade humana, como também atinge alguma coisa que gratifica o
indivíduo, e a negação dos seus desejos implica o controle do corpo e da psique na relação com
a cultura, que enfatiza o desenvolvimento tecnológico. Conseqüentemente, para Crochík (1990,
p. 153): “A ideologia da racionalidade tecnológica, representante de um todo totalitário,
constrói os espelhos para o narcisista se mirar. No reino dos monopólios, não há mais a
necessidade de um ego independente e livre, pois a administração cuida da racionalidade da
vida”.
Existe uma relação estreita entre a ideologia da racionalidade tecnológica e o
narcisismo, e o caráter irracional da cultura incita a irracionalidade individual. A cultura, nos
dias atuais, valoriza o indivíduo considerado narcisista, de modo que não podemos desvincular
a análise do narcisismo individual do narcisismo coletivo. Não só o indivíduo se sente
debilitado diante do individualismo da sociedade atual, bem como tem ilusão, ao identificar-se

221
com a totalidade, de que esta vai lhe restituir a descrença ante a própria vida. Com o narcisismo
individual reprimido, o nacionalismo - em sua força nefasta - (ou o narcisismo coletivo) ameaça
a identidade individual. Na época da racionalidade individualista em que os valores pessoais
eram de alguma forma preservados, a razão podia ser direcionada para o bem-estar da
humanidade. No entanto, nos dias atuais, o indivíduo não tem conseguido despender energia
para a alteração da realidade externa. Não é um acaso percebermos que o princípio de prazer e o
princípio de realidade estão irreconciliáveis. De um lado, o princípio de prazer, que exalta o
indivíduo, também o condena, e o fato de o sujeito procurar alívio de tensão por intermédio de
reflexos condicionados, não o torna realizado, ao contrário, eterniza a não superação do impulso
mimético. De outro, mesmo quando o princípio de realidade sobressai, pressupondo um
equilíbrio entre os dois, o princípio de realidade administrado é que está em evidência.
Sentimentos de frieza e de alheamento para com o outro mascaram, evidentemente, o caráter
narcisista do indivíduo atual; identificação e solidariedade já estão submersas pelo desprezo,
pela rigidez e pelo individualismo. Não só os indivíduos passam a normalizar a violência que a
realidade sustenta, bem como se revestem de uma capa de indiferença para suportar a exclusão
dos miseráveis do sistema de produção e de consumo. Há, portanto, o fortalecimento da ordem
estabelecida que seria a herança da perpetuação do conformismo. Apesar do sofrimento, os
indivíduos estão cada vez mais se identificando com a cultura que suscita o narcisismo - que
não deixa de ser uma totalidade sombria e melancólica -, diante da impossibilidade de
autonomia de decisão individual.
No texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914) adverte-nos que um
indivíduo afligido por dor e por mal-estar orgânico desinteressa-se pelos acontecimentos
externos, pois não dizem respeito ao seu sofrimento, retirando, inclusive, o interesse libidinal
de seus objetos amorosos, deixando de amar enquanto sofre. Com referência a essa formulação,
não deixa de apontar uma aparente contradição: “Um egoísmo forte constitui uma proteção
contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos,
e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de
amar” (FREUD, 1914, p. 101). Nessa passagem, por mais que não tenha sido a intenção de
Freud - ele não despreza as dificuldades do mundo externo -, a incapacidade de amar e a
propensão a adoecer são conferidas ao indivíduo, deixando de fazer uma conexão com a
totalidade social. Assinala, em um outro texto, que a perda do amor e o fracasso deixam atrás
de si uma marca permanente a autoconsideração, sob forma de uma cicatriz narcísica, que
concorre para o sentimento de inferioridade facilmente encontrado entre os neuróticos
(FREUD, 1920).

222
O sentimento de inferioridade corresponde a uma marca decorrente das frustrações
amorosas, de experiências concretas, e o egoísmo guarda relação com o narcisismo,
constituindo defesa do organismo contra o adoecer. E mais: o narcisista utiliza-se do sentimento
de falsa consciência para compensar não apenas o sentimento interior de desajustamento, como
também a perda da esperança diante de sua impotência na sociedade atual. A fragilidade interior
decorre da história da civilização humana, não podendo ser reduzida a uma explicação clínica.
Em certa medida, o sofrimento do indivíduo advém dos lamentos da libido insatisfeita devido às
frustrações - o sentimento de perda ocorre no próprio ego do indivíduo em conseqüência das
forças históricas da produção.
Enquanto Freud parte, sobretudo, do estudo do particular - indivíduo - para explicar o
narcisismo, descobrindo, como afirma Marcuse (1963, p. 91), “[...] na dimensão profunda das
pulsões e das satisfações pulsionais, os mecanismos do controle social e político”, Lasch (1983),
Adorno et al (1950), Adorno (1955), Costa (1998) e Crochík (1999) colocam em evidência o
todo - sociedade - como condicionante do narcisismo, sem desprezar os componentes
individuais, chamando a atenção para as feridas narcísicas sofridas pelo ego, pois este é o
reservatório da libido narcisista: o indivíduo passa a não investir nas relações objetais, ao
contrário, retém a libido em seu ego enfraquecido.
Como afirma Adorno (1952), o narcisismo em sua forma atual é um esforço
desesperado do indivíduo por compensar, ao menos em parte, a injustiça social da sociedade de
troca; diante das dificuldades insuperáveis que o indivíduo tem na via de qualquer relação direta
e espontânea com as pessoas, vê-se forçado a reverter sobre si suas energias instintivas sem
utilizá-las, colocando à mostra a gênese das neuroses. Tocamos, nesse momento, em uma
questão que nos leva ao âmago do entendimento do narcisismo na relação entre indivíduo e
cultura. Para Adorno (1955), todos os mecanismos de defesa têm uma marca de narcisismo, e
todos os tipos de personalidade têm algo de narcisista. Pressupomos, então, tomando as palavras
de Freud (1914, p. 90), que, nesse caso, o narcisismo não seria considerado uma perversão, “[...]
mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida,
pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva”. Como afirma Crochík (2000a, p. 22):
[...] nem a sociedade irracional criticada por Adorno, nem o indivíduo que abdica da
consciência, ao abandonar as relações com os objetos, isto é, o tipo narcisista,
podem ser reduzidos à nosografia psicanalítica; antes, deve-se buscar, nas exigências
sociais, as reações individuais a elas.

A vida subjetiva tem uma tendência que leva à regressão e, sem dúvida, os meios de
comunicação fortalecem algumas propensões no indivíduo, que passa a aderir ao ideário
irracional, e provocam a apropriação do psíquico pelo mundo da produção. O consumo passa a
prevalecer, e o princípio do lucro é irracional, porque não é voltado para os homens, mas, sim,

223
para o capital. A cultura que estimula a dominação social transforma-se cada vez mais em
mercadoria, incluindo as obras de arte, e a felicidade, de um modo geral, vai ficando distante.
Uma contribuição importante nos é dada por Crochík (1999), ao asseverar que, com a
pulsão de morte, o narcisismo que até então fora interpretado como regressão, assume também o
caráter de destruição e passa a ser não apenas representante das pulsões eróticas, no intento de
estruturação do ego, como também representante das pulsões de morte, pelo desligamento dos
objetos do mundo externo. Afirma, ainda, que o narcisismo evidencia-se nas manifestações das
pulsões de vida e das pulsões de morte, e do mesmo modo que se pode dizer de amor narcisista,
talvez se possa falar de ódio narcisista (CROCHÍK, 1999). Nesse momento, cabe indagarmos:
tal proposição aproxima o conceito de narcisismo ao de melancolia? O pensamento de Freud a
respeito das pulsões pode ser um ponto importante de análise.
Freud (1923a) evidencia o dualismo pulsional da pulsão de morte. As pulsões eróticas
ou sexuais e as pulsões de morte estão unidas, dificilmente atuam em separado, sem
desconsiderar as “desfusões” que podem acontecer. Ao que parece, quando há predomínio das
pulsões de morte, estas operam em silêncio e teriam como objetivo conduzir o indivíduo à
morte - auto-agressividade -, e ao dirigirem-se para fora seriam consideradas como impulsos
agressivos ou destrutivos, provavelmente, devido à tendência à intensificação da compulsão à
repetição. É claro que, para Adorno (1986, p. 122):
[...] aquilo que depois retorna - quer dizer, esse significado simbólico e irracional -,
aquilo que retorna sob pressão não é diretamente o que era antes. Diria que agora
trata-se muito mais de uma espécie de resultante da situação real na qual o homem
se encontra e do mundo da imaginação ao qual recorre e para o qual inclusive
retrocede [...] e o que vem evocado do passado, mas que já não tem nenhuma
realidade, através desse momento de específica falsidade no presente, se transmuda
numa espécie de veneno.

Adorno excede ao pensamento de Freud, que considera o caráter atemporal do


inconsciente, além de ressaltar que o conteúdo que retorna não pode ser desvinculado da
experiência concreta do indivíduo. Parece-nos claro que não apenas a compulsão à repetição
advém da manifestação da força do reprimido, como também é decorrente do enfraquecimento
do ego e da regressão psíquica, de modo que o indivíduo, ao prescindir da reflexão e da
projeção consciente, perde a capacidade de discernir a esfera psíquica da social. A opção por
uma ideologia corresponde, de alguma forma, às exigências subjacentes do indivíduo, depende
das necessidades de cada personalidade. Dito de outro modo, para Crochík (2001a, p. 74-75):
“[...] a ideologia se reproduz a partir da incorporação individual, mediada por necessidades
psíquicas. Mesmo essas necessidades psíquicas são históricas [...] A estruturação psicológica é
fruto das condições históricas da sociedade”. Esse aspecto gera retorno à teoria de Freud (1940),
que não deixa de assinalar que o ego, ao sofrer conflito entre as demandas externa e interna,

224
passa por dificuldades psíquicas, provavelmente, pelo fato de o indivíduo não ter consciência do
que o faz sofrer.
A consciência torna-se importante como crítica à ideologia da racionalidade
tecnológica. O indivíduo deve não só pensar a ideologia como justificação do status quo -
perceber as leis objetivas que regulam a constituição da sociedade atual -, bem como conhecer
as determinações psicológicas da ideologia, considerando-se que a estruturação psicológica é
decorrente das condições históricas da sociedade. No momento atual, por certo, o domínio do
indivíduo foi interiorizado, de modo que o cativeiro do narcisista está diretamente relacionado
com o cativeiro social, conforme assinala Adorno (1969). Em outros escritos, Adorno (1967a)
argumenta que em cada época a sociedade produz a personalidade - tipo de distribuição da
energia psíquica - que necessita. O indivíduo - tipo manipulador -, está mais disseminado do
que se pode pensar, caracterizando-se pela consciência coisificada - não preparada para a
experiência (ADORNO, 1967b), evidenciando a manifestação do narcisismo no tipo
manipulador. Na pesquisa realizada por Crochík (1999), os dados obtidos confirmaram a
previsão de Adorno: o manipulador, tipo de caráter anal notadamente investido de narcisismo,
coaduna-se com o apego à técnica - a dominação que exerce sobre o meio, incluindo coisas e
pessoas, evidencia, ao mesmo tempo, o desinteresse abrigando a agressão.
Freud emprega, no transcurso de sua obra, os termos melancolia, distúrbio narcísico,
psiconeurose narcísica, neurose narcísica, depressão e depressão melancólica, sem distingui-los
claramente. Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud (1926) coloca a depressão no campo das
inibições. Como bem destaca Crochík (1999), a teoria freudiana estabelece uma
correspondência entre narcisismo, como sofrimento psíquico, e melancolia, cuja representação
exprime-se pela modificação do ego em função de um objeto perdido, ainda que não se conheça
que objeto é esse.
Para Freud (1917), a melancolia é algo semelhante ao luto, em que existe desalento,
falta de amor, retração dos investimentos nos objetos, em decorrência de uma perda não sabida,
não subjetivada. O melancólico não entende, conscientemente, o que ele acredita ter perdido,
diferentemente do que ocorre no luto. O sujeito no luto sabe o que perdeu; o melancólico não
sabe. Na melancolia, o que se perdeu, inconscientemente, foi o próprio ego que deu lugar ao
objeto com o qual rompeu a catexia, diferenciando-se do luto, que, para Freud (1917, p. 275),
geralmente, “[...] é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que
ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por
diante”. Acrescenta: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
ego” (FREUD, 1917, p. 278). Em outros termos: no luto evidencia-se uma perda relativa a um
objeto e na melancolia uma perda que diz respeito ao ego (FREUD, 1917).

225
A crueldade melancólica é uma característica peculiar da melancolia, e no entendimento
de Freud (1933, p. 79):
Seria difícil familiarizarmo-nos com a idéia de um superego [...] que goza de um
determinado grau de autonomia, que age segundo suas próprias intenções e que é
independente do ego para a obtenção de sua energia; há, porém, um quadro clínico
que se impõe à nossa observação e que mostra nitidamente a severidade dessa
instância e até mesmo sua crueldade, bem como suas cambiantes relações com o
ego. Estou-me referindo à situação da melancolia, ou, mais precisamente, dos surtos
melancólicos.

Fica claro que, para Freud - ressaltando o primado do sujeito -, a crueldade melancólica
decorre do conflito entre o ego e o superego, evidenciando o aspecto mortífero do superego do
melancólico. Crochík (2001b, p. 29), por sua vez, priorizando a relação entre indivíduo e
cultura, afirma que a crueldade resulta do ódio a si mesmo, da auto-agressão devido à ameaça
contínua: “A crueldade, que, segundo Horkheimer e Adorno, é formação reativa ao impulso de
expansão de eros, ajuda a manter a dominação social a partir do ódio a si mesmo que se
fortalece e satisfaz a necessidade de controlar o medo frente a existência da ameaça constante”.
A ameaça do mundo externo converte-se em ameaça interna - a melancolia -, e, a partir
dos dizeres de Adorno (1965), podemos supor que a obstinação e o sofrimento podem
manifestar nos indivíduos diante da violência do todo. A vida interior, por certo, desprovida de
objetos é o locus no sentido de que tudo o que ela produz segue a lei da compulsão à repetição,
e a própria confinação do indivíduo melancólico possibilita a obstinação sem reflexão, apesar de
ter potencial para reverter o declínio da razão e a falsa consciência.
Freud (1917) não deixa de realçar que na mania ocorre regressão da libido ao
narcisismo. Afirma, também, que uma das pré-condições da melancolia é a regressão da libido
ao ego, ou melhor, na melancolia há o retorno da libido para o ego do indivíduo. Será a
melancolia a manifestação do narcisismo ferido? Pelo fato de o narcisismo trazer a marca do
sofrimento, não se revela na própria potencialidade melancólica? Decerto, com a introdução do
conceito de narcisismo - a revelação de que o próprio ego se encontra catexizado pela libido, de
que o ego constitui o recinto original dela -, a libido narcísica volta-se para os objetos,
modificando-se para libido objetal e podendo alterar-se, novamente, para libido narcísica,
conforme assevera Freud (1930). Sob outra perspectiva, para Crochík (1996, p. 61): “A
consciência e o ego se estabelecem pela relação com os objetos; na medida em que a libido deve
retornar para o ego para se defender de ameaças internas ou externas, o indivíduo regride e
passa a se alimentar de si mesmo em um movimento autofágico”. Parece provável que o
movimento autofágico, fruto das ameaças internas e externas, encontra-se presente tanto no
narcisismo como na melancolia e guarda relação com a violência, com a crueldade, de modo
que a sociedade atual indica estar em processo crescente de regressão, e, de acordo com Maar

226
(2003), pelo fato de o todo ser falso, em sua ordem determinada, o espírito construído nesses
termos volta-se contra o espírito.
Como Freud (1923b) percebeu há uma ligação estreita entre o narcisismo e a
melancolia, considerando o fato de esta última ser caracterizada como neurose narcísica,
implicando o conflito entre as instâncias psíquicas ego e superego sob a incitação de uma culpa.
Em outra dimensão, Freud (1923b) deixa subentendido que existe uma pura cultura da pulsão de
morte, não se atendo em promover uma relação entre a melancolia e o mal-estar na cultura,
direcionando a atenção novamente para o conflito entre o severo superego e o ego,
provavelmente pelo sentimento de culpa que gera sofrimento, ou melhor, pelo prazer com culpa.
Freud (1924, p. 189) em Neurose e psicose assevera, de início, a respeito da “[...]
diferença genética” entre uma neurose e uma psicose: a primeira é resultante de um conflito
entre o ego e o id, e a segunda “[...] é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas
relações entre o ego e o mundo externo” (Grifos do autor). Freud (1924, p. 192) ressalta
ainda que:
[...] tem de haver também doenças que se baseiam em um conflito entre o ego e o
superego. A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico
desse grupo, e reservaríamos o nome de “psiconeuroses narcísicas” para distúrbios
desse tipo. Tampouco colidirá com nossas impressões se encontrarmos razões para
separar estados como a melancolia, das outras psicoses. Percebemos agora que
pudemos tornar nossa fórmula genética simples mais completa, sem abandoná-la. As
neuroses de transferência correspondem a um conflito entre o ego e o id; as neuroses
narcísicas, a um conflito entre o ego e o superego, e as psicoses, a um conflito entre
o ego e o mundo externo. (Grifo do autor.)

Freud (1923a, p. 302), em um outro texto, parte da constatação de que:


O mais importante progresso teórico foi certamente a aplicação da teoria da libido
ao ego repressor. O próprio ego veio a ser encarado como um reservatório do que foi
descrito como libido narcísica, do qual as catexias libidinais dos objetos fluíam e
para o qual podiam ser novamente retiradas. Com a ajuda dessa concepção tornou-se
possível empenhar-se na análise do ego e efetuar uma distinção clínica das
psiconeuroses em neuroses de transferência e distúrbios narcísicos. Nas primeiras
(histeria e neurose obsessiva), o sujeito tem à sua disposição uma quantidade de
libido que se esforça por ser transferida para objetos externos, fazendo-se uso disso
para levar a cabo o tratamento analítico; por outro lado, os distúrbios narcísicos
(demência precoce, paranóia, melancolia) caracterizam-se por uma retirada da libido
dos objetos e, assim, raramente são acessíveis à terapia analítica. Sua
inacessibilidade terapêutica, contudo, não impediu a análise de efetuar os mais
fecundos começos do estudo mais profundo dessas moléstias, que se contam entre as
psicoses. (Grifos do autor.)

Freud (1923a; 1924) coloca a melancolia na linha divisória entre a neurose e a psicose,
sendo classificada como psiconeurose narcísica ou distúrbio narcísico. Chegados a esse ponto da
análise, podemos perguntar se o melancólico, ao saber do desencanto que recobre a realidade, e
insistir em manter vínculo com ela, não está munido de traços narcisistas que sustentam sua
adesão às condições atuais. Ou, então, o indivíduo melancólico, ao adaptar-se à totalidade social

227
que o dispensa a todo o momento, não está se convertendo em indivíduo com características
narcisistas.
Para Freud (1950), na melancolia ocorre uma perda na esfera da vida pulsional. Com
efeito, “[...] não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia consiste em luto por
perda da libido” (FREUD, 1950, p. 276, grifos do autor), tendo como efeito: “[...] inibição
psíquica, com empobrecimento instintual e respectivo sofrimento” (p. 281, grifos do autor).
O “[...] buraco é na esfera psíquica” (p. 282). Mais ainda: “[...] instala-se um empobrecimento
da excitação [...] - uma hemorragia interna, por assim dizer - que se manifesta nos outros
instintos e funções. Essa retração para dentro atua de forma inibidora, como uma ferida, num
modo análogo ao da dor” (FREUD, 1950, p. 282, grifos do autor).
Delimitando a mônada psicológica (espaço psíquico) do indivíduo, a sociedade aparece,
de modo que o narcisismo e a melancolia não podem ser analisados unicamente pela teoria de
Freud e nem mesmo dispensá-la. O eu entrelaçado na sociedade, que trata o indivíduo como
sucata a todo instante, torna-o empobrecido, bem como a opressão social impede-o de
desenvolver sua capacidade de protesto, apesar do sofrimento no plano da racionalidade e da
afetividade. No entanto, o fato de o indivíduo viver ainda que sofrendo é, em si, sinal de seu
protesto. De certo modo, o sofrimento individual ou a corrosão interna denuncia a injustiça
social.
A sociedade administrada mediante o seu caráter formal de dominação está preocupada
com a produção de configurações psíquicas para a reprodução do status quo. Tanto no
narcisismo como na melancolia estão presentes o enfraquecimento do ego e a regressão
psíquica, e, para Adorno (1947, p. 166): “[...] a vida transformou-se na ideologia de sua própria
ausência”. Não apenas os conceitos de dominação e de ideologia da racionalidade tecnológica
estão intimamente relacionados, como também os conceitos de narcisismo, de melancolia e de
ideologia da racionalidade tecnológica. A melancolia é uma forma de o narcisismo manifestar-
se; toda melancolia tem marcas do narcisismo. Por seu lado, o narcisismo apresenta-se na
melancolia, mas não somente nela, a exemplo do tipo manipulador. Este é um dos tipos de
personalidade que a sociedade estimula, conforme estudos, sobretudo, de Adorno et al (1950),
de Adorno (1967a; 1967b) e de Crochík (1997; 1999; 2001a). Na autoconservação existem
dimensões implicadas, como dominação para fins de satisfação de necessidades básicas e
mecanismos para alimentar o narcisismo do indivíduo, e, pelo fato de a sociedade notabilizar-se
pela adaptação do indivíduo à totalidade, a frieza do manipulador não deixa de ser defesa contra
o sofrimento real ou psíquico existente. Além do mais, para Crochík (2000b), quanto maior
adesão à ideologia da racionalidade tecnológica, maior tendência ao autoritarismo e vice-versa,
de modo que além dos traços narcisistas de personalidade, os do sadomasoquismo estão

228
associados, de igual modo, à ideologia da racionalidade tecnológica, pois, subjacentes à
aparência da neutralidade da técnica, podem estar presentes desejos de destruição: a tecnologia
favorece sua manifestação e expressão, podendo caracterizar-se como forma tênue de violência,
encoberta até mesmo para o indivíduo que a pratique. Conclui que a adesão irrefletida à
tecnologia guarda maior vínculo com o sadomasoquismo do que com o narcisismo, apesar de
também associar a esse último.
Uma suposta vida segura, decerto, privilegia uma vida repetitiva em vez da experiência,
entremostrando o estigma - reclusão do narcisista e do melancólico - com que a sociedade
marca o indivíduo. Este se vê nutrido pela mesmice, pelo tédio, pelo fastio, pela monotonia e
pela compulsão à repetição, de modo que a regressão psíquica é um fato. Da mesma forma, a
noção de “hibernação social”, conforme expressão de Costa (1989, p. 134), aproxima-se da
“claustrofobia da humanidade”, que se traduz, de acordo com Crochík (2001c, p. 4), em um
excesso de regras da sociedade versus indignação contra elas; a crueldade - formação reativa do
desejo de proximidade dos corpos - é um dos sinais dessa claustrofobia, e não por acaso, a
passividade ativa entremostra o sofrimento de desamparo interior.
O narcisismo e a melancolia são traços constitutivos do indivíduo, e, como vimos, a
estruturação da subjetividade burguesa vem constituindo-se historicamente. No entanto, quanto
mais o mundo avança, mais se torna destrutivo mediante a racionalidade tecnológica, de modo
que a violência, da sociedade atual, contribui para inibir a pulsão de vida e, conseqüentemente,
impede a ligação libidinal entre as pessoas. Não por acaso, a melancolia, ao atingir intensidade
maior na contemporaneidade, pode tornar-se um mecanismo psíquico patológico, e, sem dúvida,
a relação entre narcisismo e melancolia traz a marca do sofrimento: a necessidade de
autoconservação torna-se segunda natureza, e a satisfação das pulsões é obstada, inclusive pela
manutenção do trabalho e do tempo de lazer administrados. Pelo fato de a cultura atual trazer a
marca da ambivalência (inibitória e maníaca), e o conceito, a experiência e a reflexão estarem
inibidos, os melancólicos encontram solo favorável para a manifestação da dor de existir -
sofrimento corporal e psíquico -, pois o desamparo da condição humana não pode ser
desconsiderado diante da totalidade social que é desprovida de racionalidade. O desapontamento
diante da não constituição de um indivíduo com valores humanitários está na base da
melancolia, e a crise dos valores culturais, ao minar as reflexões e as ações individuais, favorece
a conformação com a realidade atual. A concepção do porvir mobiliza a opção de escolha do
indivíduo entre resistir ao que lhe é dado ou aceitar as condições da cultura que favorece a
crueldade, e, assim, o conflito entre indivíduo e cultura parece sobrepujar o conflito entre id,
ego e superego, levando-nos a considerar que estamos vivendo um período, desde os tempos
antigos, que a autoconservação e a irracionalidade do todo perpassam o funcionamento social.

229
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232
O design masculino na indústria cultural: a metrossexualidade no catálogo das
subjetividades contemporâneas ou o “homem do espelho”.

Elaine C. S. Costa

UNICAMPO – Faculdades Campo Real – PR


UNICENTRO – PR

RESUMO

No mito de Narciso, a imagem de beleza refletida nas águas seduz o homem que a
produziu e o convida a atravessar o espelho em direção a si próprio. Subjetivamente, temos a
morte do indivíduo que mergulha em si mesmo, o narcísico. O “homem do espelho” de hoje é
vazio, é imagem refletida do sistema que o calculou e planejou. Através da teoria crítica da
cultura e da psicanálise pretendeu-se refletir neste trabalho sobre uma manifestação da
sexualidade masculina, intitulada metrossexualidade. A mídia trata hoje o homem como novo
modelo de valorização da aparência pessoal: um produto designado para ser objeto de desejo e
de consumo, promovendo, dessa forma, o aparecimento de novas subjetividades. A indústria
cultural, nas considerações de Adorno e Horkheimer, é cínica e perversa e não pretende
esconder os interesses pelo metrossexual, buscando uma uniformidade massiva em seu
consumo, explorando, com isso, novos nichos de mercado antes inexplorados: a vaidade do
homem. O corpo vem sendo tratado como mercadoria: um acessório a ser redefinido, submetido
ao design estipulado, projetado racionalmente e assim poder exibir uma identidade assimilada a
partir dos mass media. Como uma prótese de um indivíduo narcísico, o corpo precisa ser
modelado, adaptado aos movimentos do mercado do desejo, como emblema de uma identidade
masculina metrossexual. Esta designação “fashion-mercadológica” foi criada na década de 90 e
indica o “homem metropolitano e heterossexual urbano, empreendedor de si mesmo e
excessivamente preocupado com a aparência, gastando grande parte do seu tempo e dinheiro em
cosméticos, acessórios, roupas de marca e engajado na cultura pop”. O “homem do espelho”,
vaidoso, vem a coincidir com o desejo feminino de um homem mais sensível, socialmente
consciente e engajado, porém produto de uma sociedade altamente administrada. O
metrossexual não escapa à padronização, ao design planejado, onde a forma segue a função do
“novo homem esclarecido” ou do “homem heterossexual melhor”. Personifica o fetiche pelo
corpo jovem (ou seria do corpo infantil?): sem marcas masculinas grosseiras, sem pêlos,
cheiroso e limpo como um bebê. Acaso não estaria a masculinidade sendo banalizada e
empobrecendo, assim, os homens da experiência social, uma vez que buscam novos modelos
que são produzidos culturalmente de forma a coincidir com um suposto d́esejo feminino´e de
mercado? A indústria cultural atende as necessidades subjetivas, apropriando-se dos anseios
íntimos, visando exclusivamente exacerbar o controle social através do oferecimento de um

233
catálogo de opções de escolha e assim promover a reconciliação forçada entre particular e
universal. O indivíduo adestrado e subsumido na totalidade social está sob um controle mais
irracional e que promove regressão e auto-sedução: encapsulado em si mesmo, o indivíduo
narcísico procura uma adaptação funcional ao isolamento social e reproduz a estratégia de
atomização engendrada pelos sistemas personalizados. O que vale é aparecer, ser reconhecido
socialmente como objeto de prazer e de consumo. Adaptado ao seu mundo interior,
empobrecido pela falta de experiências sociais e pela falha na identificação com o outro, o
indivíduo torna-se um espelho vazio, fenômeno apresentado por Adorno e Horkheimer como
pseudo-individualidade narcísica.

Subjetividades disponíveis em catálogos luxuosos, invólucros sedutores que garantem a


notoriedade aos seus usuários, semelhantemente, ou dir-se-ia, identicamente aos ícones que as
propagam, divulgam. Um jogo de espelhos, de reflexos que despistam a origem da imagem
primordial.
O “homem do espelho” contemporâneo reflete involuntariamente uma imagem ideal,
produto de uma “inteligência criadora da perfeição”, do design funcional e massivo, da
racionalidade instrumental.
Este estudo sobre a metrossexualidade masculina, um pequeno recorte na dimensão das
subjetividades contemporâneas, utilizou os debates da teoria crítica da cultura sobre indústria
cultural e pseudo-individualidades, associados à algumas discussões da psicanálise sobre
narcisismo. As considerações aqui apresentadas consistem em articulações elaboradas a partir
dos temas citados e de ilustrações recolhidas junto aos mass media. Foram consultados textos de
articulistas, sites de relacionamento virtual e os objetivos e justificativas de um programa
televisivo global.
O design surge da necessidade de planejamento da atividade funcional que atendesse a
sociedade do século XIX, ávida pelo crescimento industrial e econômico. Com o fim da
Primeira Guerra Mundial iniciava-se um novo período de reconstrução na Europa e o objetivo
principal era produzir com funcionalidade e atender as massas.
Em 1919 foi criada em Weimar a Staatliches Bauhaus , uma escola de design, artes
plásticas e arquitetura de vanguarda, tendo sido a maior e mais importante expressão do
modernismo na arquitetura e design.
Na Bauhaus, os intelectuais estavam voltados para a criação de bens de consumo que
primassem pela funcionalidade, pelo custo reduzido e que fossem orientados para a produção
em massa, associando para isso a arte, artesanato e tecnologia. Os produtos arquitetados

234
intelectualmente, modelados e ajustados interativamente deveriam ser altamente funcionais e
apresentar atributos artísticos.
A palavra design significa intenção, desígnio, indicando a ação administrada e
objetivamente voltada para a produção e consumo de massas. A justificativa principal da
primeira escola de design era que alguns dos aspectos do universo e da vida eram complexos ou
perfeitos demais para serem originados sem uma inteligência criadora.
O planejamento calculado, a valorização da máquina e da produção industrial e o
desenho de produtos estavam intrinsecamente ligados ao design como a arte de produção de
bens de consumo, seja na arquitetura ou no consumo de massas. Àtítulo de curiosidade, o lema
da Bauhaus era “A forma segue a função”.
O modelo fabril, planejado e administrado do século XIX ultrapassou os limites das
indústrias e galgou terrenos apropriando o conhecimento técnico e científico, provocando a
unidimensionalização da razão instrumental sobre as demais esferas sociais.
Em busca do domínio da natureza “o mito converte-se em esclarecimento e a natureza
em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação
sobre o que exerce poder” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985).
O esclarecimento totalizado culminou na reificação do sujeito, tornando-o mero
instrumento de produção, visando sua adaptação ao projeto econômico emergente.
Em termos de indústria cultural, Adorno e Horkheimer destacam o caráter de
mercadoria impingido à cultura que passa a ser produzida e dirigida de forma alienante para as
massas. A fruição estética passa à manipulação de fórmulas simplificadas e reificadas que
facilitam a adesão dos sujeitos igualmente reificados, impedindo a reflexão ou mesmo a
sublimação.
As formas estereotipadas, simplificadas para fácil assimilação e identificação são
introjetadas sem qualquer reflexão pelos indivíduos, que fragilizados pela atomização à que
foram forçados, não possuem condições suficientes para se auto-determinarem, ficando assim
suscetíveis às ideologias das quais adquirem suas convicções, buscando proteção e auto-
preservação. Ou seja, “a dominação da natureza pelo esclarecimento eliminou o potencial
subjetivo do homem para a autonomia, deixando-o exposto à subjugação dos sistemas
econômicos” (COSTA, 2004).
O sujeito impedido de existir fica privado de seu objeto, o ego e não conseguindo
desenvolver estrutura de personalidade, acaba ficando submetido à dominação externa e aos
imperativos da indústria cultural, massificante e pré-reflexiva (FABIANO, 2003).
Segundo Costa (2004), Adorno explicita que o sistema econômico promove
fragmentação, devido à necessidade dos sujeitos se defenderem dos conflitos sociais no
processo de adaptação à sociedade. Pela incapacidade de auto-determinação são levados à

235
regressão pelas determinações sociais, ficando assim impedidos de desenvolver uma estrutura
de personalidade satisfatória.
Essa fragmentação da personalidade foi denominada por Adorno como pseudo-
individualidades negadas por condições de não-liberdade, ou simplesmente, pseudo-
individualidades narcísicas.
O sujeito narcísico busca auto-preservação e nesse movimento volta-se para si próprio
ficando encapsulado, atomizado e absolutizado pela administração da realidade. Perde a
capacidade de experienciar o real ficando cada vez mais empobrecido psiquicamente pela falta
de trocas:

A perda da experiência, o isolamento, a concorrência deixaram os


sujeitos dominados ressentidos pela dominação e pela reificação a
que foram submetidos, fazendo com que a tensão entre sociedade e
indivíduos fosse anulada pela desproporcionalidade entre as partes
e o sujeito acabou sendo aniquilado, impedido de satisfazer-se.
(COSTA, 2004)

O sujeito cativo, segundo Adorno, só tem como recurso a aparência de que salvaguarda
alguma auto-conservação de seu ego, não podendo emancipar-se por não conseguir se
enriquecer com a realidade.
Apresenta “uma configuração psicológica que associa o máximo de individualismo, de
acordo com o qual mantém uma relação instrumental com o mundo, com a destruição do
próprio indivíduo, ou melhor, de seu Eu, privando o narcisismo...de seu objeto primordial de
investimentos” (AMARAL, 1997).
Em condições de pseudo-individualidade os estereótipos fornecidos pela indústria
cultural são assimilados como verdadeiros, dando a impressão de que são convicções próprias
dos sujeitos. Nesse sentido, estes são adestrados à auto-sedução, valorizados pelo
individualismo sem limites, pela apatia de sensibilização para com o mundo, profunda
indiferença e desinvestimento da intersubjetividade.
O ego torna-se alvo de todos os investimentos e o narcisismo ajusta a personalidade ao
mundo interno empobrecido e acolchoado, engendrado socialmente (LIPOVETSKY
, 1983).
Atomizado e subsumido na totalidade social, o sujeito está exposto a um controle
irracional e regressivo, restando apenas a adaptação funcional à realidade para auto-preservação
e a reprodução da estratégia de atomização correspondente.
O sujeito torna-se um espelho vazio, adaptado ao mundo interior, acolchoado pela
busca de satisfação constante, refletindo apenas a vacuidade de uma vida individual forjada
externamente.

236
No mito de Narciso encontram-se justapostos os conceitos de reflexão e reflexo,
indicando caminhos diferenciados para o sujeito que se encontra mergulhado em uma imagem.
Algumas versões do mito concluem que Narciso morreu de inanição ao deixar-se envolver pela
admiração de sua imagem, a imagem de um deus, refletida nas águas puras de um lago.
Há ainda uma interpretação contemporânea que sugere uma interação tão intensa de
Narciso consigo próprio, agindo em reciprocidade a si mesmo, refletido nas águas, que o faz
mergulhar e desaparecer, indicando assim uma metáfora da irresistível atração para dentro de si
mesmo.
A palavra Nárkissos tem em seu radical nárke que significa entorpecimento, torpor e é a
base da palavra narcótico.
Nárke considerada como fonte de narcose, o sono produzido por meio de narcótico
(BRANDÃ
O, 2005) traduz a idéia de reflexão como “concentração do espírito sobre si próprio”.
O ato de reflexão é um movimento introspectivo de reflectere (re – novamente, flectere –
curvar-se), etmologicamente é o ato de voltar-se para trás. A reflexão é a base da consciência de
si.
Entretanto, Narciso reflete de maneira patológica, uma vez que se deixa dominar pela
concentração de seu espírito sobre si próprio. Não conseguindo mais sair do pensamento auto-
contido, atomizado, morre por estar fechado ao contato externo, à cultura e às suas necessidades
vitais.
Por outro lado, reflexo é o retorno, é aquilo que não atua ou não se produz diretamente.
Reflexo é o imitado. Temos ainda no mito a metáfora de um sujeito atomizado, esvaziando-se
pela concentração em si mesmo e o seu reflexo vazio nas águas.
A indústria cultural não fornece mais modelos estruturados de personalidade, antes

incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de


identidades. Na verdade, o setor mais avançado da cultura do
consumo não forneceria mais ao eu a positividade dos modelos
estáticos de identificação. Ele forneceria apenas a forma vazia da
reconfiguração contínua de si...(SAFATLE, 2004)

A contemporaneidade é entendida como sociedade pós-industrial do consumo, devido


ao fato de que o sistema produtivo alcançou seu ápice tecnológico e industrial e foi expandido
para o setor terciário, de prestação de serviços e ampliação de consumo. Segundo Safatle
(2004) tal crescimento do setor indica que a grande maioria de empregos hoje estão “envolvidos
em processos de ampliação de consumo, de manuseio da retórica do consumo (vendas,
publicidade, marketing, design, administração)” (SAFATLE, 2004).

237
O autor considera que os modos de alienação necessários à sociedade do consumo são
distintos daqueles previstos para a sociedade da produção:

De uma maneira esquemática, podemos afirmar que o mundo


capitalista do trabalho está vinculado à ética do direito ao ascetismo
e da acumulação. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética
do direito ao gozo. Pois o que o discurso do capitalismo
contemporâneo precisa é da procura ao gozo que impulsiona a
plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no
universo de consumo. Ele precisa da regulação do gozo interior de
um universo mercantil estruturado. (SAFATLE, 2004)

É necessário um “mercado do gozo” (expressão de Lacan) que disponibiliza formas-


mercadorias plasticamente infinitas e que disponibilizam o gozo, um gozo imperativo.
(SAFATLE, 2004).
O autor ainda considera que os discursos sociais contemporâneos são liberadores do
desejo e do gozo, na medida em que incitam ao encontro da forma individual de gozo e
preconizam “a liberação multicultural da multiplicidade das formas possíveis de sexualidade”.
A dessublimação repressiva, ou seja, a “possibilidade de instrumentalização social
direta das monções pulsionais sem recalcamento” é a base de funcionamento da sociedade de
consumo que necessita que o ego seja frágil e não consiga se impor como mediador entre as
pulsões inconscientes e o princípio de realidade.
É uma construção reificada do ego narcísico, funcional, a partir de imagens socialmente
ideais, ou como Marcuse configura tal expropriação do ego, como sendo: “uma liberalização
controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a
integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios e dos divertimentos, a própria
repressão é recalcada” (MARCUSE IN SAFATLE, 2004)
As imagens ideais proliferam nos mass media como forma de instrumentalizarem as
escolhas do gozo subjetivo e são introjetadas a partir do imperativo superegóico desse gozo,
que exige a satisfação imediata e irrestrita.
“Goze sendo objeto de seu desejo” conforme os tipos socialmente fornecidos pela
indústria cultural. A sexualidade é apresentada como mercadoria, com modelos estipulados em
catálogos e as identificações precisam ser com tipos distantes de modelos fixos e determinados:
mais vale parecer ser do que ser realmente.
Segundo Lipovetsky (1983) o narcisismo contemporâneo pode ser entendido como a
busca da idiossincrasia forçada, a personalização do corpo que se torna um sujeito.

238
O corpo é emblema de si, do sujeito e precisa ser cuidado, tratado para não apresentar
as marcas de envelhecimento. O corpo vem sendo tratado como mercadoria: um acessório a ser
redefinido, submetido ao design estipulado para a estação, projetado racionalmente e assim
poder exibir uma identidade assimilada a partir dos mass media.
Como uma prótese de um indivíduo narcísico, o corpo precisa ser modelado, adaptado
aos movimentos do mercado do desejo, como emblema de uma identidade masculina, no caso
deste estudo, metrossexual.
Segundo Le Breton (2003), “o extremo contemporâneo erige o corpo como realidade
em si, como simulacro do homem por meio do qual é avaliada a qualidade de sua presença e
no qual ele mesmo ostenta a imagem que pretende dar aos outros”. É pelo corpo que se revela
autenticidade e idiossincrasia.
Uma outra característica do narcisismo contemporâneo é a flutuação, sem grandes
motivações e a pasteurização dos afetos, que são superficiais na medida em que o objeto de
investimento é o próprio ego. Entretanto, é necessário relacionar-se, sendo imperativo desejar
aparecer e ser reconhecido, caso contrário o sujeito entra em auto-destruição.
A mídia trata hoje o homem como novo modelo de valorização da aparência, um novo
e valoroso mercado emergente e consumista, o da vaidade e oferece uma padronização estética,
o design do novo homem metrossexual que é assimilado de forma indistinta pelos sujeitos. A
superficial valorização da aparência estipula ao homem heterossexual e metrossexual a
artificialidade dos produtos expostos em uma perfumaria.
A construção do corpo, absolutamente reificado visa espetacularizar sujeitos que
necessitam de reconhecimento numa sociedade que trata coisas e pessoas cada vez mais
substituíveis e indiferenciáveis. Diante do pavor de ser descartado, as sexualidades têm sido
construídas em conformidade com o oferecimento de imagens ideais, especulares.
Segundo Türcke,

Em meio à avalanche de inúmeras ofertas, a mercadoria individual


só consegue afirmar-se como algo reconhecível, especial, se ela
dispuser de um logotipo, de um signo de reconhecimento que lhe
confira a aura do inconfundível, da exclusividade, e só assim
instaure a sua identidade... Já não importa mais distinguir-se do
outro por meio de ideais diferentes que a gente exibe em signos de
identificação, importa exibir signos de identificação para distinguir-
se dos outros (TÜRCKE, 2001)

239
Caracteriza-se por metrossexual o homem heterossexual urbano, metropolitano,
empreendedor de si mesmo e consumidor de si próprio, excessivamente preocupado com a
vaidade e aparência. A expressão “fashion-mercadológica”, como é ironicamente aventada pela
indústria cultural, surgiu na década de 90.
De acordo com o que a mídia publica indiscriminadamente, o metrossexual é o “novo
homem esclarecido”, um homem que precisa estar à altura da mulher contemporânea. É um
homem mais sensível, engajado na cultura pop, acompanha revistas especializadas (como a
Vanity Fair, Vip, Playboy) para ser socialmente consciente (Programa televisivo Queer eye for
a straight guy)..
É um homem cujo design está em função de um suposto desejo feminino de um homem
sem marcas e comportamentos grosseiros, padronizado esteticamente e indiferenciado em sua
sexualidade e comportamento. A forma estipulada pelo novo design masculino segue a função
do “homem heterossexual melhor”, assimilando valores anteriormente construídos
culturalmente para o gênero feminino, como a vaidade, a suscetibilidade ao consumismo.
Conforme assertivas de um articulista, Mark Simpson, publicadas no The New York
Times em 2002, o metrossexual é o novo homem, recolocado no lugar do homem pouco
cuidadoso consigo mesmo, ocupando, assim, novos espaços antes restritos às mulheres, ou seja,
as compras, o ser notado, isso ao custo de uma mudança em sua identidade:

For some time now, old-fashioned (re)productive, repressed,


unmoisturized heterosexuality has been given the pink slip by
consumer capitalism. The stoic, self-denying, modest straight male
didn't shop enough (his role was to earn money for his wife to
spend), and so he had to be replaced by a new kind of man, one less
certain of his identity and much more interested in his image -- that's
to say, one who was much more interested in being looked at
(because that's the only way you can be certain you actually exist). A
man, in other words, who is an advertiser's walking wet dream.

O “homem do espelho” existe em função da aparência que produz de si: gasta grande
parte do tempo e de dinheiro com roupas de grife, acessórios, cosméticos. Os ícones oferecidos
pelos mass media são de homens bens sucedidos, que consomem luxo e ocupam posições de
destaque e admiração de outros homens e mulheres ávidos por admirar suas belezas
artificialmente produzidas.
O corpo personificado do metrossexual atende de maneira primitiva o desejo feminino,
produzido culturalmente, de possuir um homem sem marcas másculas: a pele suave, delicada,
sem barba, sem pêlos nos peitos, axilas, indicando um corpo prótese de um sujeito.

240
O suposto desejo feminino pode estar sendo subsidiado pela negação feminista ao
poder abusivo masculino, à agressividade e ao desfrute de privilégios. Portanto, o novo estilo
do “homem heterossexual melhor”, além da indiferenciação, personifica o fetiche pelo corpo
jovem, ou melhor dizendo, pelo corpo infantil, oferecendo um produto que possui atributos que
atendem um desejo materno inconsciente feminino.
O texto de Mark Simpson é bastante elucidativo ao descrever o jogador de futebol
inglês, David Beckham como fenômeno de publicidade, tendo sido (ele, como produto)
veiculado em jornais de grande circulação, anúncios televisivos, revistas masculinas,
billboards, anunciando vários acessórios de moda masculina.
O autor ainda considera que enquanto revistas célebres revelam uma mulher mais
independente, saudável, auto-centrada e forte, mais essas mulheres querem homens atraentes,
bem vestidos e bem cuidados à sua volta. O narcisismo sob seu ponto de vista é uma estratégia
de sobrevivência e a metrossexualidade um fetichismo de comodites, uma coleção de fantasias
masculinas produzidas pela publicidade.
O que vale é o cuidado com o corpo, com a aparência, a imagem e a premente vaidade
em torno de um homem antenado com seu tempo e preparado para as situações previstas no
modelo ideal metrossexual. Por ser um “novo homem”, distanciado da identidade rígida do
homem da antiga sociedade de produção, o metrossexual é flexível, ávido por mudanças e
culturalmente letrado, ágil para a sociedade de consumo.
Em um site de relacionamentos na internet (orkut) podem-se encontrar diversas
“comunidades virtuais” que discutem a metrossexualidade. Em uma delas, brasileira, havia o
tópico “O que um metrossexual leva em sua bolsa?”. Ali, constata-se uma lista extensa de
produtos cosméticos, dentre os mais citados: bloqueadores solar, gel para lábios, creme para o
rosto, para acne, desodorantes, espelhos, etc.
Precauções e proteções a todo custo, presentes nos diversos produtos citados: o
metrossexual está exposto e necessita de proteção extra, assim como, precisa estar preparado
para qualquer situação. Asséptico, carrega um arsenal de suporte para adversidades: roupas
extras para sair do trabalho e ir às compras ou à balada, sunga, camisetas, bonés, desinfetante
bucal. O “novo homem” está permanentemente preparado para o consumo.
O sujeito narcísico, fragilizado, cede ao consumismo desenfreado, porque acredita que
todas as suas necessidades podem ser satisfeitas por produtos oferecidos ao mercado do qual
participa:

A renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira


daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem,
seguem-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens
de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo

241
cidadão. Por outra parte, a necessidade, imposta pelas leis do
mercado, de ocultar tal equação conduz à manipulação do gosto e à
aparência individual da cultura oficial, a qual forçosamente
aumenta na proporção em que se agiganta o processo de liquidação
do indivíduo (ADORNO & HORKHEIMER, 1991).

O que um metrossexual vê ao espelho?


Vê apenas um reflexo, “não conseguindo mais devolver ao objeto o que dele recebeu, o
sujeito não se torna mais rico, porém mais pobre. Ele perde a reflexão nas duas direções:
como não reflete mais o objeto, ele não reflete mais sobre si e perde assim a capacidade de
diferenciar. (ADORNO,1985a )
Vê o “homem vazio do espelho”, sem profundidade, sem essência. O homem que
mergulhou e desapareceu em sua própria vacuidade psíquica.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1985.

ADORNO, T.W. & HORKHEIMER,M Elementos do anti-semitismo, IN: _________


Dialética do esclarecimento, RJ: Zahar ed.,1985a .

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Textos escolhidos, IN: Os pensadores. São Paulo:


Nova Cultural, 1991.

AMARAL, M O espectro de Narciso na modernidade: de Freud a Adorno, SP: Estação


Liberdade, 1997.

BRANDÃ
O, J.S. Mitologia Grega RJ: Vozes, 2005.

COSTA, E.C.S. Pseudo-individualidades narcísicas e a tendência racista:


contribuição do pensamento d T.W. Adorno para a psicologia social do
racismo, Piracicaba – Universidade Metodista de Piracicaba, Dissertação de
mestrado, 2004.

FABIANO, L H Auschwitz via internet: seis milhões e meio de cadáveres nos contemplam,
IN: PUCCI, B, LASTORIA, L. A & COSTA, B.C.G. – Tecnologia, cultura e formação ...
ainda Auschwitz, SP: Cortez, 2003.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade, Campinas, SP: Papirus, 2003.

LIPOVETSKY
, G A era do vazio, Lisboa: Relógio DÁ́gua Editores, 1983.

SAFATLE, V Um corpo obsoleto: sobre a relação entre fragilização das identificações e


reconstrução contínua do corpo, Mesa redonda – Colóquio Internacional “Teoria Crítica e

242
Educação” , Piracicaba: Unimep, 2004, CD-Rom.

TÜRCKE, C A luta pelo logotipo, IN: DUARTE, R & FIGUEIREDO, V (orgs) Mímesis e
expressão, BeloHorizonte: Ed Humanitas, 2001.

243
Adorno: uma análise entre o campo ético, o mundo tecnológico e o processo de formação
CARVALHO, E.M.C.1 Docente UNIDERP - Campo Grande/MS. E-mail liamcc@terra.com.br.
ELIAS, E. O.2 - Campo Grande/MS. E-mail liamcc@terra.com.br

Este ensaio propõe uma análise do Projeto Moderno, considerando suas relações com a ética
e a educação. A nossa contribuição consiste em oferecer subsídios que concorram para uma
melhor compreensão em torno da contradição em que se tornou a razão no esclarecimento. A ética,
também sofreu a influência das transformações e percebemos que ao ser utilizada por aqueles
que se apropriaram da doutrina norte-americana do “politicamente correto” esvaziando-a do seu
sentido original, e pela mídia, teve banalizada sua essência, influenciando assim, de certo modo, na
qualidade das relações humanas. Por outro lado, alterações graves também ocorreram com o
processo educacional da vida contemporânea diante da “sociedade da informação”, propiciada
pelas possibilidades interativas: ao invés de democratização da cultura e da plenitude do homem
emancipado e livre (ideais embasados na razão), as possibilidades foram expropriadas, passando-
se a visar a uma formação humana ajustada aos ideais burgueses relativos às “leis de livre
mercado”. Nesse contexto, vimos surgir à indústria cultural, a apologia ao individualismo, o
hedonismo, a ampliação dos exércitos de excluídos dos bens sociais e o declínio de valores como
justiça, solidariedade, respeito, diálogo. Vimos também o processo de escolarização não oferecer
nenhuma resistência a tal fenômeno, pelo contrário, criar mecanismos até para corroborá-lo em
larga escala e mecanicamente num propósito funcional do sistema sem instigar, valorizar ou
permitir qualquer questionamento a respeito. Por essa razão, o que aqui se propõe é pensar as
relações entre o Projeto Moderno e a ética na educação à luz do pensamento de Adorno. Uma das
intenções que este ensaio persegue é de se estabelecer uma análise entre o campo ético, o mundo
tecnológico e o processo de formação, cujo fim seria contribuir para enriquecer o debate teórico a
partir das pesquisas e reflexões-críticas de Theodor W. Adorno para a Educação.

Palavra-chave: teoria crítica, esclarecimento, emancipação, ética.

1
Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação/UNESP- Marília/SP; Doutoranda em Educação/UNESP – Marília/SP.
2
Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica/PUCSP- São Paulo/SP; Mestre pelo Programa de Pós-graduação
em Comunicação e Semiótica/PUCSP.

244
1. Introdução

Este texto propõe uma análise do Projeto Moderno, considerando suas relações com a ética
e a educação. Neste trabalho, recortaremos do Projeto Moderno o período a partir do Iluminismo
(séc. XVIII) e a nossa contribuição consiste em oferecer subsídios que concorram para uma melhor
compreensão em torno da contradição em que se tornou a razão no esclarecimento.
Nesse sentido, atualmente o conceito de ética, também sofreu a influência das
transformações e percebemos que ao ser utilizado por aqueles que se apropriaram da doutrina
norte-americana do “politicamente correto” 3 esvaziando-a do seu sentido original, e pela mídia,
teve banalizada sua essência, influenciando assim, de certo modo, na qualidade das relações
humanas. Por outro lado, alterações graves também ocorreram com o processo educacional da vida
contemporânea diante da “sociedade da informação”, propiciada pelas possibilidades interativas:
ao invés de democratização da cultura e da plenitude do homem emancipado e livre (ideais
embasados na razão), as possibilidades foram expropriadas, passando-se a visar a uma formação
humana ajustada aos ideais burgueses relativos às “leis de livre mercado”.
Nesse contexto, vimos surgir a indústria cultural, a apologia ao individualismo, o
hedonismo, a ampliação dos exércitos de excluídos dos bens sociais e o declínio de valores como
justiça, solidariedade, respeito, diálogo. Vimos também o processo de escolarização não oferecer
nenhuma resistência a tal fenômeno, pelo contrário, criar mecanismos até para corroborá-lo em
larga escala e mecanicamente num propósito funcional do sistema sem instigar, valorizar ou
permitir qualquer questionamento a respeito.
Por essa razão, o que aqui se propõe é pensar as relações entre o Projeto Moderno e a ética
na educação à luz do pensamento de Adorno. Uma das intenções que este ensaio persegue é de se
estabelecer uma análise entre o campo ético, o mundo tecnológico e o processo de formação, cujo
fim seria contribuir para enriquecer o debate teórico a partir das pesquisas e reflexões-críticas de
Theodor W. Adorno para a Educação.

3
Doutrina difundida na década de 90 nos meios intelectuais dos Estados Unidos, seu objetivo era defender as minorias por meio de políticas
afirmativas.

245
2. Racionalidade e Comportamento Unidimensional

A meta do esclarecimento era, por meio da racionalidade, dissolver mitos, alcançar o


progresso no conhecimento da natureza, no aperfeiçoamento moral e na emancipação social.
Contudo, a razão instrumental da sociedade administrada parece transformar, em inúmeros fatos
históricos, o racional em irracional, a razão em desrazão. A razão “iluminista” não é dialética, mas
unidirecional. Não raras vezes, “ciência” e “civilização” encontram-se mergulhadas no mito e na
barbárie (aqui, o indivíduo torna-se instrumento de produção e troca de mercadoria).
As raízes da suposta neutralidade científica, técnica, operacional encontram-se na
organização da classe burguesa que, quando ainda distante do poder, buscou na idéia de progresso
– confirmada pelo Iluminismo – uma justificativa para as suas transformações sociais e o seu
projeto de emancipação. Entretanto, ao alcançar as posições de poder, a burguesia transformou,
rapidamente, o conceito de progresso em ideologia, a razão em racionalização, a libertação em
opressão.
A Dialética do Esclarecimento mostra a ascendência da razão instrumental e a
conseqüente decadência da razão que se propusera emancipatória. É importante observarmos que
Horkheimer considera a razão em duas instâncias: racionalidade formal ou instrumental e
racionalidade objetiva; a primeira destinada a atingir fins tidos como racionais, e a segunda
relacionada aos fins últimos. Em Eclipse da Razão (2002, p.62) o autor coloca que a razão
instrumental, razão subjetiva e formalizada, é a razão como instrumento de interesse a serviço do
irracional, e que ela se pretende neutra:

A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo


objetivo e de seu poder de julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência
executiva mais preocupada com o como do que com o porquê, transforma-a cada
vez mais num simples mecanismo enfadonho de registrar os fatos. A razão subjetiva
perde toda espontaneidade, produtividade e poder para descobrir e afirmar novas
espécies de conteúdo – perde a própria subjetividade.

Nesses termos, caberia acrescentar que ao tornar-se neutra a racionalidade perde o


sentido de finalidade, ou seja, sua relação entre meios e fins, podendo servir ao serviço desumano
e a barbárie sem constrangimento. Enfim, as aporias da racionalidade moderna reitera a
instrumentalização do indivíduo, paradoxalmente incapaz de divisar as irrupções da desrazão e do
irracional no cerne da razão instrumental4.
Segundo Adorno e Horkheimer, (1985, p.41-42) “O positivismo que afinal não recuou
nem mesmo diante do pensamento (...)”, e acabou por eliminar “(...) a última instância entre a “(...)
ação individual e a norma social”. E assim com o fim da consciência, a razão tornou-se um “(...)
mero adminículo da aparelhagem econômica.”

4
A semiformação está em estreita relação com a razão instrumental. (HORKHEIMER, 2002).
3

246
Os autores nessa citação comparam a “razão”, a um instrumento universal que serve a
todos os outros instrumentos. Neste ponto a razão para eles se assemelha à manipulação calculada.
(formalismo matemático).
Nesse sentido, a razão no mundo esclarecido, apresenta um duplo significado, ou seja,
passa a servir ao sistema, “ (...) a contradição que consiste na estupidez da inteligência é uma
contradição necessária. Pois a ratio burguesa tem que pretender a universalidade, ao mesmo
tempo, desenvolver-se no sentido de restringi-la” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.196).
Essa asserção de Adorno e Horkheimer ilustra, com precisão, o paradoxo em que se
transforma a razão, suas aporias, a autodestruição do esclarecimento e o domínio da razão
instrumental sobre a razão emancipatória. Trata-se do triunfo da técnica, da máquina, do trabalho
altamente racionalizado e do concomitante fracasso ou minorização de uma razão estética sensível,
razão movida pelo anseio à liberdade (fatores determinantes da auto-alienação e da dominação).

O que não se diz é que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a
sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma
sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade própria da dominação, é o
caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena. (ADORNO, 2002, p.9)

Sendo assim, as relações de dominação existentes hoje na sociedade agravam-se a partir


da racionalidade técnica que amplia o hiato entre as classes sociais. Contudo, esta dominação está
disfarçada sob o signo de que no “contrato social capitalista” todos têm condições de tornarem-se
cidadãos.
Horkheimer em uma conferência, em 1951, com o título Sobre o Conceito de Razão,
afirmava “que o positivismo caracteriza-se por conceber um tipo de razão subjetiva, formal e
instrumental, cujo único critério de verdade é seu valor operativo, ou seja, seu papel na dominação
do homem e da natureza”(GRÜNNEWALD, J. L. et al, 1980, p.21).
O esclarecimento regride à mitologia e o eu totalmente apreendido pela civilização, se
limita a ser um elemento cruel, o domínio do homem sobre si, desencadeia a destruição do seu eu
(sujeito), ao fugir do sacrifício ele próprio se sacrifica:

O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos
objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens
foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.41).

Esta asserção nos remete ao fato de que para os autores no “esclarecimento” a dimensão
da razão instrumental (ou razão subjetiva)5, a autoconservação incentivada pela “divisão burguesa
do trabalho”, toma conta não apenas do corpo, mais também da alma e o sujeito transcendental é

5
A expressão razão instrumental trata da razão técnico-analítica da ciência. A razão subjetiva é um conceito mais amplo porque inclui a
constituição da subjetividade autoconservadora, além daquele aspecto científico subsidiário. (MATOS, 1989, p.206).

247
suprimido, assim como, sua subjetividade. E assim, esta “objetificação coisificada”, seria para os
autores como a semiformação. A unidimensionalidade da civilização e da cultura é também,
conseqüência e característica da razão instrumental: ciência, técnica, empirismo esvaziando a
“razão” em função do “progresso inequívoco”, tornando-as presas do mito.
Neste contexto, os paradigmas civilização e cultura parecem ter sucumbido à
modernidade, a dimensão da civilização que agrega a práxis e a realização econômica submete a
dimensão da cultura que refere-se as artes, sonho e espírito. O impacto do progresso transforma a
razão, e a humanidade busca um “bom estilo de vida”6, que contradiz a transformação qualitativa,
e assim surge um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais.
A definição do pensamento e comportamento unidimensionais aqui tomada de
empréstimo de Marcuse (1979, p. 32), significa um padrão “(...) no qual as idéias, as aspirações e
os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são
repelidos ou reduzidos a termos desse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema
dado e de sua extensão quantitativa.”
Vale asseverar que Marcuse partiu de uma proposição de Adorno para chegar a esta
definição “Essa absorção da ideologia pela realidade não significa, contudo, o fim da ideologia.
Pelo contrário, em sentido específico, a cultura industrial avançada é mais ideológica do que sua
predecessora, visto que, atualmente, a ideologia está no próprio processo de produção”
(ADORNO, apud MARCUSE, 1979, p.32). 7
Neste sentido, a dimensão da cultura estaria desaparecendo na sociedade de consumo
em função da Indústria Cultural. A indústria cultural na perspectiva frankfurtiana, constitui-se na
sistematização da cultura contemporânea, que se transforma em “mercadoria padronizada”. Desse
modo a arte limita-se à esfera do consumo, e o consumidor é o objeto da indústria cultural. Por ser
a cultura uma “mercadoria paradoxal”, com dificuldade para fixar juízos de valores, a indústria
cultural apoiou-se na publicidade e no entretenimento, com o objetivo de justificar a ideologia por
ela difundida.
O avanço tecnológico que marcou a modernidade trouxe como conseqüência as
transformações sociais que, em função de um suposto progresso ascendente e inequívoco,
produziram tal unidimensionalidade. A “cultura de massa”, que parece democratizar os bens
culturais, unifica, padroniza mensagens e dirige sua recepção.
Segundo Adorno a indústria cultural, para além de adaptar seus produtos ao consumo,
determina o que deve ser consumido. (GRÜNNEWALD, J. L. et al, 1980, p.26). O autor questiona
o resultado das inovações tecnológicas como benefício à sociedade e à democracia. Para ele a

6
Marcuse esclarece que os produtos doutrinam e manipulam, tornando-se um estilo de vida (MARCUSE, 1979, p.32).
7
No livro a Ideologia da Sociedade Industrial (MARCUSE, 1979) refere-se oito vezes a Adorno, entre todas as referências este é o autor
mais citado.

248
produção em alta escala de baixo custo e padronizada, para além da “socialização”, causa à
manipulação das consciências.
Contrapondo-se ao progresso que visa apenas à massificação da sociedade, Adorno
denuncia em Indústria Cultural e Sociedade (2002), a racionalização que se torna irracional e
acusa o iluminismo como responsável pela mistificação das massas. Sendo assim, de acordo com
Adorno, a transformação da sociedade exige a transformação da razão e da filosofia que a
promove. A razão modificada seria aquela que não trabalha sob a lógica da autoconservação, mas
que, essencialmente, opera com as diferenças sem pretender anulá-las.
Em tempos de globalização, a discussão sobre a dominação a partir das estruturas da
própria razão tornam-se atualizadas e mesmo, fundamentais. Aqui, a utopia do esclarecimento
traduz-se sob o signo de um desencantamento do mundo.
De acordo com Bueno (2003, p.29), o mundo atual é conseqüência, “de um trajeto
histórico da razão no sentido da destruição da esfera mítica, ou seja, do desencantamento do
mundo” porém, “a vitória sobre o mito não trouxe emancipação para os homens, que apenas se
libertaram de seus deuses e demônios para se submeterem a outras formas de poder” e diga-se, a
uma nova mitologia.
A asserção de Adorno e Horkheimer, ao iniciar o conceito de Esclarecimento, na
Dialética do Esclarecimento, ilustra bem estas relações:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem


perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na
posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de
uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do
mundo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.18).

E assim, retomamos ao paradigma civilização e cultura, que indica que a ausência de


referências como o belo, o sublime, a experiência estética e a moral, prejudica a experiência
formativa do ser humano, que se torna um adulto insensível, implacável na sua forma de ver e
sentir o mundo. Interromper esse percurso, não é tarefa fácil, visto que os indivíduos estão cada
vez mais integrados, o que confirma a existência de uma sociedade administrada que, segundo
Adorno, é caracterizada pela supremacia da Indústria Cultural e da técnica que domina e dirige a
vida das pessoas conforme os interesses do mercado.

2. Ética, Educação e o Projeto Moderno

Vivemos um período de grandes transformações e estamos testemunhando uma


revolução tecnológica de proporções avassaladoras jamais vista na História. A World Wide Web
diminuiu as barreiras geográficas, revolucionando conceitos como tempo/espaço e criando novos
6

249
como virtualidade/ciberespaço. Atrelados a esses avanços, entretanto, encontramos a miséria que
atinge milhares de pessoas, a violência que cresce a cada dia, a discriminação, o preconceito e a
intolerância.
Esse quadro afeta o pensamento pedagógico, e os poucos educadores, que não estão
totalmente envolvidos nas malhas da alienação do sistema administrado, colocam-se em alerta na
tentativa de buscar soluções. A ética sempre esteve associada à educação, a princípio, na Idade
Média dividia-se entre a fé (Agostinho) e a razão (Aristóteles). Atualmente, totalmente integrada à
razão, encontra-se em crise, visto que essa passagem entre a fé e a razão causou lacunas
intransponíveis e equívocos imensuráveis, tais como: drogas, individualismo, violência,
intervenção genética, meio ambiente, desemprego e os orientadores da fé coletiva parecem não
mais responder às urgências do nosso momento histórico.
O século XXI impõe-se com suas limitações, possibilidades e principalmente
contradições. Essas contradições refletem no processo pedagógico que, para além de atender a
formação (ou semiformação) do homo faber, deve preocupar-se em formar cidadãos de um mundo
solidário, Gamboa (2001, p.102) auxilia nesse entendimento.

(...) nenhum processo pedagógico pode ser entendido apenas como aplicação de
técnicas ou metodologias: ao contrário, esses processos só têm sentido quando estão
presentes os conteúdos científico-filosóficos que capacitam o homem para seu
desempenho como sujeito social e histórico, que transforma a si próprio, ao mundo e
a sociedade; não apenas como indivíduo, mas como ser social e político.

Ora, não se trata de um “pedagogismo ingênuo”, acreditar na possibilidade de uma


educação voltada para uma transformação social embasada em conteúdos científico-filosóficos,
mas de recusar-se a aceitar o “niilismo pedagógico” como fato consumado; tendências extremas
tem o poder de falsear as condições, contudo, a análise crítico-filosófica tende a superar esse
obstáculo.
Em nosso país revivemos barbáries que nos aproximam de Auschwitz como o episódio
da Candelária, Carandiru entre outros. Fatos que nos remetem a atualidade dos estudos
frankfurtianos, especificamente as teses adornianas que, em nosso entendimento, possui um
potencial educativo crítico, capaz de intervir e quem sabe transformar as relações sociais vigentes.
Adorno, apesar de ter se dedicado a reflexões filosófico-morais, negou-se a elaborar
uma ética. Entretanto, mesmo não deixando um legado específico sobre ética, pode-se constatar,
claramente, que a moral perpassa continuamente suas obras, especialmente, Minima Moralia.
Nessa obra o autor analisa aspectos relevantes da moral:

Com a dissolução da religião e de suas secularizações filosóficas palpáveis, as


interdições limitadoras perderam seu modo de ser confirmada, sua substancialidade.
A princípio, porém a produção material era ainda tão pouco desenvolvida que era
possível proclamar com alguma razão que não havia o bastante para todos. Quem
não criticava a economia política enquanto tal via-se constrangido a ater-se ao

250
princípio restritivo que era formulado então como uma apropriação não
racionalizada à custa dos mais fracos. (ADORNO, 1993, p.83-84 ).

Nessa asserção, Adorno esclarece que inicialmente a moral balizada pela razão
apresentava argumentos positivos e que veio substituir as lacunas criadas pela dissolução da
religião, contudo, o que parecia coerente, com o aumento da produção, transformou-se, e a
abundância que deveria ser distribuída, visto que a “moral dos senhores” foi criada para proteger
os que ficavam em desvantagem, foi substituída pela “troca de equivalentes”.
Para Adorno (1992 apud Silva, 2001, p.157), a igualdade que a princípio foi um dos
motores do progresso, a partir da “troca” – intercambialidade universal entre equivalentes –
converteu-se num agente contra as transformações sociais, legitimando assim, as pretensões
ideológicas de permanência no poder. Esse princípio de troca de equivalentes, base da noção
burguesa de igualdade e justiça, converteu-se, no âmbito do trabalho assalariado, em fonte
ininterrupta de acumulação de desigualdades e injustiças.
Adorno vislumbra em seus estudos um “antídoto” para a crise em que se encontra a
moral na sociedade contemporânea e afirma ser a autocrítica da razão “sua mais autêntica moral,”
o contrário dela “na fase mais recente de um pensamento que dispõe de si mesmo, nada mais é que
a abolição do sujeito” (ADORNO, 1993, p.110).
Diversos pesquisadores associam os estudos de Adorno com educação e moral, (Adorno
prefere utilizar o conceito moral em vez de ética) reforçando as potencialidades pedagógicas das
obras do autor, indicando caminhos ainda não percorridos, mas que podem conduzir e possibilitar
a construção de uma pedagogia voltada para o desenvolvimento da consciência auto-reflexiva.
Schweppenhäuser (2003, p. 396) esclarece que Adorno impõe a discussão entre o
universal e o particular como problema básico da filosofia moral a qual teria sido condenada à
esfera da vida privada, uma vez que vivemos numa sociedade individualista. Afirma ainda que
para Adorno não existe identidade entre particular e universal, a questão central de toda filosofia
moral seria “a relação entre o particular, ou seja, os interesses particulares, as formas de
comportamentos dos indivíduos e o universal que se encontra em oposição com o particular”, o
que sugere como pertinente a averiguação de como está sendo encaminhada a formação individual
dentro desse contexto mais amplo em que está situada a educação, isto é, o problema central da
filosofia moral, a partir da ótica adorniana, não parece ser distante do problema central da
educação em termos éticos e morais.
Não por acaso, a dialética, para Adorno, só se perfaz negativamente no mundo
administrado pelo capitalismo. A dialética negativa de Adorno assume assim um paradoxo que
para Giacoia Júnior (2001) significa efetuar a crítica permanente da identificação absoluta como
sujeição da individualidade, a denúncia da igualdade realizada sob a forma da uniformidade e da
dissolução da diferenciação. Sobre essa questão ética, a igualdade, Adorno coloca:

251
Que todos os homens sejam iguais uns aos outros, é precisamente o que viria a
calhar para a sociedade. Ela considera as diferenças reais ou imaginárias como
marcas ignominiosas, que atestam que não se avançou o bastante, que algo escapou
da máquina e não está inteiramente determinado pela totalidade. (ADORNO, 1993,
p.89 )

Nesse sentido, ser igual é abolir o diferente, acreditar numa igualdade abstrata. Para
Adorno, uma sociedade emancipada não poderia propagar a igualdade e sim restabelecer a
realização efetiva do universal na reconciliação das diferenças. Não existe nada mais
discriminatório do que tratar como iguais aqueles que não o são, contudo, essa é uma prática
comum em nossa sociedade, corroborada principalmente pela escola.
A necessidade de se partir da autocrítica da razão para se chegar à autêntica moral
constitui tarefa da educação, a qual encontra na teoria crítica um meio teórico para se repensar
possíveis técnicas e modos formativos que induzam a superação da barbárie. Essa educação deve,
necessariamente, para se estabelecer como tal, transpor os limites da unidimensionalidade da
cultura e da razão. E essa tarefa de reflexão sobre a educação só pode ter como fonte a “filosofia
crítica” na medida em que:

A filosofia oficial serve a ciência que funciona dessa maneira. Ela deve, como uma
espécie de taylorismo do espírito, ajudar a aperfeiçoar seus métodos de produção, a
racionalizar a estocagem dos conhecimentos, a impedir o desperdício de energia
intelectual. (Adorno e Horkheimer, 1985, p.226)

Não que não possa haver uma divisão do trabalho, ou que Adorno e Horkheimer sejam
contra o progresso, tanto a divisão do trabalho, quanto o progresso, devem estar a serviço do
homem na sua pluralidade, e, em decorrência, é tarefa do pensamento reflexivo recorrer ao
arcabouço conceitual da filosofia crítica para a análise e busca de alternativas a esse contexto.
Hermenau (2004, p. 162), ao analisar “a crítica da razão”, no modo como ela é
exercitada por Adorno, esclarece que enquanto a razão for pensada como dominação, ela
permanecerá prisioneira das relações que quer dominar: “O progresso que a dominação da
natureza, tanto interna como externa, deveria possibilitar seria somente aquele em que por seu
intermédio nenhuma dominação mais seria necessária.” Assim, no progresso da civilização estaria
imbricado o progresso da humanidade e não a sua decadência.

Considerações Finais

Simultaneamente ao avanço tecnológico constatamos, na sociedade contemporânea, a


ruína progressiva da praxis cultural fundada no princípio da identidade. O principio da identidade
para Adorno e Horkheimer é a base lógica da razão subjetiva e suscita o domínio com fins de
autoconservação e provoca a regressão ao mito que afirmava condenar. Quanto à razão objetiva,
ela recriaria as condições de um novo progresso fundado na autoconsciência, ou seja, o princípio

252
de contradição, que por meio do movimento real da totalidade e a relação dialética com o sujeito,
desenvolve a autoconsciência, a emancipação. (MATOS, O., 1989 p.183).
A partir desta premissa começamos a alinhavar as relações entre razão e ética e ambas e
a educação. Se conforme os autores existe um predomínio da razão instrumental em detrimento de
uma razão emancipatória na modernidade, podemos inferir que ocorre também a decadência da
capacidade crítica, do respeito ao ser humano, enfim num “mundo identificante”, não existe
espaço para a sensibilidade, visto que tudo é semelhante.

Contudo, os escritos de Adorno, principalmente no texto A educação após Auschwitz,


revela que é possível resgatar a função educativa do refletir, seus estudos abrem possibilidades
para se constituir uma interpretação crítica aos conceitos envolvidos na relação entre ética e
educação e em Mínima Moralia, o autor nos convida a essa reflexão “(...) Apesar disso, é no olhar
para o desviante, no ódio à banalidade, na busca do que ainda não está gasto, do que ainda não foi
capturado pelo esquema conceitual geral, que reside a derradeira chance do pensamento”
(ADORNO, 1993, p.58).
Essas oportunidades de mudanças, enfatizadas por Adorno, deve partir do princípio de
que se faz necessária uma nova consciência. A racionalidade instrumental, a serviço da
dominação, não enxerga fronteiras e avança impondo abismos entre grupos, comunidades,
sociedades, que podem usufruir do desenvolvimento científico-tecnológico e aqueles condenados a
permanecerem à margem dos seus benefícios.
A perversidade desse “empreendimento” (a racionalidade instrumental voltada para a
autoconservação) não pode escapar aos educadores. Como observa Zuin, com respeito às possíveis
contribuições de Adorno para a dimensão do educativo:

É verdade que não se pode afirmar que Adorno propôs a construção de uma nova
pedagogia, composta por procedimentos metodológicos que, uma vez executados,
forneceriam as respostas para todos os problemas educacionais. (...) Por outro lado,
podemos pensar um tipo de concepção de educação que permita o fortalecimento do
sujeito ao se reconhecer os mecanismos objetivos e subjetivos que estabelecem
atitudes irracionais, buscando evitar que se manifestem novamente, promovendo
uma conscientização geral dos mesmos.(ZUIN, 1997, p. 133-134)

Com essa asserção, Zuin esclarece que o potencial pedagógico da teoria adorniana não
consiste numa aplicabilidade imediata de seus conceitos na análise de questões pedagógicas, mas
que pode subsidiar o entendimento das transformações que ocorrem no âmbito da educação.
O entendimento do qual se parte, tomando a acepção adorniana, é o de que a educação
não deve formar pessoas “adaptadas” a reproduzirem a barbárie social e sim emancipadas,
conscientes e críticas. Maar (2004, p. 171 – 172) afirma:

A educação no sentido formativo tradicional – de Hegel, por exemplo – significa


uma recuperação formativa, pelo sujeito, do estranhamento exterior, tido como
10

253
inevitável. E nesse sentido a educação tradicional, como adequação, reproduz a
barbárie social ao formar sujeitos que “aceitam” para se tornarem aptos a sobreviver.
Ao contrário do que aparentemente seria esperado, nesses termos a educação
barbariza. Para Adorno, no entanto, a educação – enquanto conceito – implica
emancipação, isto é, não se reduz a essa perspectiva de adequação, identificada
como novo tipo de barbárie. A educação deve ser “educação contra a barbárie”.

A reflexão histórico-filosófica subsidia o entendimento de como a sociedade alcançou o


atual grau de alienação e de dessensibilização a partir do projeto moderno que, a princípio,
anunciava a liberdade e a emancipação social. O cerne da ética remonta a esse tempo em que a
dissolução das normas religiosas criaram lacunas, que foram ao longo dos anos utilizadas para
legitimar interesses dominantes.
Nesse sentido, os conceitos do “bom e do rico”, desde os primórdios, estão entrelaçados.
A sociedade, ao desmistificar a condição de moralidade relacionada aos deuses, condicionou-a aos
bens materiais. O impacto de tais equívocos, ou melhor, a ausência de parâmetros mais justos,
registra a cada dia um número maior de barbáries.
Diante desse panorama, a educação muitas vezes assume o papel de mediadora, ou até
mesmo, reprodutora desses juízos de valores. A ausência de reflexão-crítica permeia o trabalho do
operário e também do professor. O pensamento hegemônico, enfatizado pelo “mundo
administrado”, expande com tal força o processo de alienação social que “encanta” os
responsáveis pela educação.
Para a fase atual do capitalismo avançado, a educação é apenas um instrumento de
capacitação profissional; os excluídos desse sistema incomodam, mas não chegam a ser
empecilho, pelo contrário, oferecem também segurança para a funcionalidade do sistema à medida
que constituem o exército de reserva; e a ética parece mesmo não oferecer parâmetros ou
referenciais valorativos contestadores ou denunciadores dessa violência. A ética, tal como a
educação, não pode servir de campo de resistência a desumanização imposta pelos mecanismos do
processo produtivo globalizado?
Em nosso entendimento, sim, e para que não fique a falsa impressão que acreditamos em
uma educação redentora de todos os males que afligem a sociedade utilizaremos o próprio
pensamento de Adorno:

Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais
abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em
posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria
servidão, tornando-as indignas; que continue a haver Bogers e Kaduks, contra isto é
possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento. (ADORNO,
1995 , p. 137-138)

11

254
Neste sentido, ignorar as possibilidades da ética imanente à educação, ou mesmo da
educação para a emancipação equivale a aceitar a ausência de possibilidades, contudo resistir por
meio da cultura, da educação e da arte contribui para um novo tempo.

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13

256
CONFORMISMO E MIMESE – a influência do consumo mediado pela televisão na
relação entre indivíduo e sociedade.

Fabiana Paola Mazzo

Resumo

O trabalho a ser apresentado se apóia em textos de Herbert Marcuse e Theodor W.


Adorno e estuda neles as suas concepções acerca da relação entre indivíduo e sociedade. O
objetivo é o de tentar configurar tanto o comportamento mimético (Marcuse, 1979) quanto o
conformismo (Adorno/ Horkheimer, 1985) e entender as conseqüências de ambos em relação à
desmedida expansão do consumo de bens supérfluos que atendem o que Marcuse denomina de
“falsas necessidades”. Para tanto, destacar-se-á também o papel da televisão, entendida tanto
como instrumento tecnológico de dominação quanto como “guia dos perplexos” e a sua
influência tanto na relação entre indivíduo e sociedade quanto na relação dos indivíduos com o
consumo.

Palavras-chave: indústria cultural; subjetividade; conformismo; mimese; consumo;


televisão.

A relação entre indivíduo e sociedade, complexa como é, transformou-se


significativamente quando os bens de consumo, principalmente os culturais, começaram a ser
produzidos em massa e para as massas. É nesse momento que surge a indústria cultural que
passa a agir também como mediadora de tal relação. Na concepção de Adorno a indústria
cultural suprimia a autonomia da obra de arte. Isso, a partir do momento em que todo bem
cultural poderia ser introduzido em um universo kitsch e banalizado através de sua reprodução
em larga escala. Tais produtos culturais seriam dessa forma distribuídos como qualquer outro
produto de necessidade secundária e fútil. Esse universo favoreceria a expansão crescente de um
tipo de adesão incondicional dos indivíduos à sociedade vigente, possibilitando desse modo uma
espécie de identificação deles com a sociedade. O agente desta identificação seria o consumo de
uma enorme gama de produtos destinados a satisfazer necessidades geradas por essa sociedade,
a qual Marcuse denomina “tecnológica”, ou seja, a sociedade industrial desenvolvida, moldada
por meio do desenvolvimento tecnológico.
Marcuse nos mostra que com o advento da indústria moderna são constituídas novas
formas de organização social – no que diz respeito às sociedades industrializadas. Tais formas
de organização são abordadas pelo autor, que evidencia e problematiza as relações sociais e a

257
relação entre indivíduo e sociedade constituídas durante o processo de desenvolvimento
tecnológico nessas sociedades (Marcuse 1979). Partindo deste pressuposto afirma haver nas
sociedades industrializadas desenvolvidas relações de repressão e supressão dos impulsos
individuais relacionadas à imposição da ordem e da dominação por parte das instituições
detentoras do poder, tanto no plano social como no plano político. Em um artigo anteriormente
publicado Marcuse já distingue no processo de desenvolvimento tecnológico esse movimento,
no qual a tecnologia é tida como

[...] um processo social no qual a técnica propriamente dita (isto é, o aparato


técnico da indústria, transportes, comunicação) não passa de um fator parcial.
[...] A tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos,
dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo
tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais,
uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes,
um instrumento de controle e dominação. (1998, p.73)

Tomada por esse ângulo de visão, a tecnologia desenvolve-se junto a um plano de


controle social que já vinha sendo engendrado para que a racionalidade se impusesse como uma
forma eficiente de organização e doutrinamento social (Marcuse, 1998). A tecnologia, nesse
sentido, funciona como reprodutora de relações de poder e dominação bem como se apropria da
racionalidade técnica dos meios de produção desenvolvida até então para controlar eficazmente
tanto o mercado quanto o sistema social no qual ela se estabelece. Essa característica faz da
tecnologia não só um instrumento, mas sim, um sistema social que visa a maior produção
quantitativa e a maior diversidade de bens a fim de que o consumidor sinta-se incluído e
satisfeito –no quanto possa estabelecer um padrão de vida que o sustente dentro desse sistema.
O que se pode perceber é que esse processo faz parte de uma racionalidade tal em que o
indivíduo é pressupostamente livre para o consumo e na qual ele próprio se identifica com os
produtos que consome. É por meio do trabalho que esse indivíduo se inclui na racionalidade do
sistema e é por meio das relações sociais que se inclui num plano normativo de adequação a
esse sistema. Marcuse vai dizer que a racionalidade tecnológica é ideológica num novo sentido;
não naquele da falsa consciência, mas num sentido em que ela (a racionalidade tecnológica) é a
verdadeira consciência (Marcuse, 1979). Tal sistema social faz com que novas relações de
trabalho e consumo sejam estabelecidas ao indivíduo e levam, segundo Marcuse, a “uma falta
de liberdade confortável, suave, razoável e democrática”, onde,

258
Nas condições de um padrão de vida crescente, o não-conformismo com o
próprio sistema parece socialmente inútil, principalmente quando acarreta
desvantagens econômicas e políticas tangíveis e ameaça o funcionamento suave
do todo (1979, p. 23-24).

Esta “falta de liberdade confortável” irá se configurar nas sociedades industrializadas


sob a forma própria da liberdade, ou melhor, sob a idéia de liberdade, na medida em que os
indivíduos acreditam serem livres em uma sociedade pressupostamente democrática, quando, na
verdade, estão submetidos a um sistema social que lhes dá a liberdade de consumir os produtos
oferecidos pelo mercado e satisfazer seus desejos – não os deles, mas os do mercado – enquanto
têm que, para sobreviver (para sustentar seu consumo), trabalhar horas a fio. Este tipo de relação
entre indivíduo e sociedade suprime, pois, o indivíduo enquanto sujeito de suas ações e desejos
e, portanto, esfacela sua subjetividade1.
Diante dessa nova realidade, Marcuse verifica que o termo “introjeção”, que vinha
sendo utilizado para explicar a relação entre indivíduo e sociedade até então não poderia ser
utilizado para explicar a relação que surge na “sociedade tecnológica”. Isso porque o termo
(“introjeção”) está relacionado a um movimento de interiorização da sociedade pelo indivíduo e
isto implicaria a existência de um espaço interno e subjetivo desse indivíduo o que, para o autor,
não ocorre. Chega então à conclusão de que, na sociedade industrial desenvolvida, ou
tecnológica, a qual se regra por uma nova forma de organização social, o indivíduo é privado de
sua subjetividade e se relaciona com a sociedade numa relação mimética por meio da qual ele se
identifica “com a sua sociedade e, através dela, com a sociedade me seu todo” (MARCUSE,
1979, p.31).
Até o momento, essa discussão mostra o quanto o desenvolvimento da sociedade
industrial moderna se fez com base na repressão dos impulsos propriamente humanos, em favor
de uma racionalidade técnica que assegura tanto o seu desenvolvimento econômico-produtivo
quanto prepara os indivíduos para uma convivência harmônica, seja com os meios de produção,
seja com a atividade do consumo. O processo social propicia assim uma espécie de
reconciliação forçada, porém eficiente, do indivíduo com a sociedade, gerando, portanto, o
conformismo.
É nesse sentido que as reflexões de Adorno tornam-se imprescindíveis para esta
discussão na medida em que cercam tais formas de organização as quais, com base na repressão,
proporcionam o que ele define como a semiformação dos indivíduos. A semiformação permite o

1
É de se notar, porém, que, atualmente, o trabalho começa a ser desmantelado em todas as regiões e
atividades e que esse fato acarreta amplas conseqüências para todos.

259
aparecimento de “pseudo-indivíduos” e provoca a regressão de suas potencialidades
transformando-os, assim, em instrumentos engendradores (ao mesmo tempo em que
engendrados) de um sistema que se constitui sobre bases violentas de dominação por meio da
racionalidade tecnológica. Adorno traz ainda à tona a força, a eficiência com que a indústria
cultural integra os indivíduos num mesmo sistema, no qual nem sequer a possível resistência
consegue se isolar. Segundo o autor,

Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua


diferença pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o
participante da reforma agrária ao capitalismo. A rebeldia realista torna-se a
marca registrada de quem tem uma nova idéia a trazer à atividade industrial [...]
Quem não se conforma é punido com uma impotência econômica que se
prolonga na impotência individual do individualista (1985, p. 123-4/125).

A indústria cultural absorve o que é diferente e transforma essa diferença em produto,


ou seja, integra, torna-a apenas mais um objeto de consumo, perpetuando assim “a reprodução
do que é sempre o mesmo”. Por mais que a indústria defenda a força do indivíduo, este não tem
lugar nela. O conformismo torna-se necessário à sobrevivência na medida em que a integração
ao sistema é forçada. A força maior é a da sociedade e é por isso que Adorno (1985, p.139)
defende que “apesar de todo o progresso da técnica de representação, das regras e das
especialidades, apesar de toda a atividade trepidante, o pão com que a indústria cultural alimenta
os homens continua a ser a pedra da esteriotipia”. É dessa forma que, na concepção desse autor,
a indústria cultural, privando os homens de sua subjetividade e de seu direito de liberdade,
transforma-os em peças para o funcionamento do mercado, em dados quantitativos para o
consumo dos bens culturais.
Marcuse, por sua vez, refere-se não só aos bens propriamente culturais, mas também a
todos aqueles cuja produção não visa a satisfação das necessidades vitais, mas que atendam,
sim, as “falsas necessidades”. Falsas seriam, portanto, as necessidades que não emergem do
indivíduo, mas de interesses sociais de dominação:

Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por


forças externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o
desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são heterônomos.
Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do
próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência;

260
independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua
satisfação, elas continuam sendo o que eram de início – produtos de uma
sociedade cujo interesse dominante exige repressão (MARCUSE, 1979, p.26).

A diversidade presente nos produtos desta sociedade garante o funcionamento


incessante do mercado por meio de sua dimensão quantitativa e efêmera. Dessa forma, a
produção e o consumo das “falsas necessidades” são manipulados de forma a manter a ordem
estabelecida por meio da liberdade de escolha (que faz com que o indivíduo sinta-se sujeito de
uma ação que, na verdade, é controlada pelo mercado) e da sensação de satisfação obtida, que
na verdade é falsa, uma vez que a satisfação não é a do consumidor, mas a do mercado. Essa
relação entre indivíduo e sociedade que toma forma a partir desse sistema social será entendida
como degradante e desumanizada.
Com base nessa discussão pode-se perceber, portanto, que o resultado do processo
tecnológico e da conseqüente produção e consumo de bens faz emergir um aspecto próprio da
sociedade contemporânea, que é o esfacelamento da subjetividade. Isso se dá por conta do
estabelecimento de uma racionalidade tecnológica que desenvolve nas sociedades uma
organização social em que predominam relações de poder. Dessa forma, o indivíduo fica
submetido ao sistema estabelecido e perde, ou melhor, tem deturpada – através da apropriação
de suas necessidades pela racionalidade tecnológica – a consciência de suas próprias ações, pois
a sua realidade não é outra senão aquela que se mostra através dos instrumentos tecnológicos.
Tal aspecto existe porque foi naturalizado através desses instrumentos – criados sob a promessa
do progresso.
Da união entre tecnologia e indústria cultural, tendo sido tal união auxiliada pelo
crescimento dos meios de comunicação em massa, surge a televisão. A televisão pode ser
entendida, portanto, sob dois aspectos; tanto como instrumento tecnológico que reproduz a
dominação como instrumento da indústria cultural, que duplica o mundo e faz com que o
indivíduo desacostume-se de sua subjetividade. Para Adorno,

A televisão permite aproximar-se da meta, que é ter de novo a totalidade do


mundo sensível em uma imagem que alcança todos os órgãos, o sonho sem
sonho; ao mesmo tempo, permite introduzir furtivamente na duplicata do mundo
aquilo que considera adequado ao real (1971b, p.346).

Dessa forma, atrofia também a autonomia do indivíduo na medida em que, ao identificar-


se com a “realidade” presente na tela de TV, toma-a para si como sua própria realidade. Nesse

261
sentido, na sociedade contemporânea, a televisão apresenta-se talvez como o principal dentre os
instrumentos tecnológicos que se desenvolveram dentro da lógica do ordenamento social, uma
vez que é responsável pela reprodução das relações sociais, agindo como um grande mentor
deliberativo de padrões de comportamento e, como conseqüência, de consumo.
Num movimento de retroalimentação com a sociedade, a televisão reforça, sistematiza e
propõe modos de vida que tendam ao consumismo exacerbado e ao controle social, como
mostra Adorno:

Quanto mais inarticulada e difusa a audiência da mass media pareça ser, mais
ela tende a obter sua ‘integração’. Os ideais de conformidade e
convencionalismo eram inerentes nos romances populares desde o seu início.
Agora, entretanto, esses ideais têm sido traduzidos na forma de claros conselhos
a respeito do que se deve ou não fazer. A procedência dos conflitos é
preestabelecida, e todos os conflitos são meras farsas. A sociedade é sempre a
vencedora, e o indivíduo é apenas um marionete manipulado através das regras
sociais (1991, p.140, tradução livre)

O conteúdo televisivo reforça, pois, o sistema social em que prevalece o poder na


medida em que faz com que os indivíduos, “conscientes” de que fazem parte desse sistema,
reproduzam através do consumo e, conseqüentemente das relações sociais, todo um esquema em
que a violência é banalizada e legitimada enquanto meio para que se alcance o poder. O
telespectador, portanto, tomando a realidade da TV como molde de sua própria realidade, ao
identificar-se, toma para si discursos, comportamentos e adquire os produtos sugeridos a ele
durante a programação deste ou daquele canal. O que é necessário ressaltar, porém, é que esse
movimento de identificação pressupõe uma imediata inclusão social e, dessa forma, o indivíduo
fala, se veste, age e consome de acordo com essa outra realidade presente na televisão, como se
dessa forma ele obtivesse, também imediatamente, respeito e inserção perante a sociedade. Por
meio da televisão, uma relação entre identificação e consumo é reproduzida e reforçada de
forma a proporcionar a manutenção de um sistema social dominador através tanto da relação
entre indivíduo e sociedade quanto da relação entre indivíduos.
Para concluir, quando se pensa como esse tipo de relação se apresenta no Brasil,
descobre-se um amplo sistema em que a relação entre indivíduo e sociedade é grandemente
influenciada pela televisão, o que se torna problemático de acordo com a influência que ela
exerce para essa sociedade:

262
O que é alarmante num país como o Brasil é que a televisão tenha adquirido
uma importância tão grande na vida das pessoas, suprindo a falta de cultura,
informação escrita e até a falta de formação escolar da maioria dos brasileiros
(KEHL, 1995, p.178)

É de se notar que a televisão no Brasil faz parte do dia-a-dia de grande parte de sua
população. Tendo, portanto, adquirido grande importância e garantido sua presença na vida dos
telespectadores, pode-se perceber o quanto ela os envolve, seja através de novelas, programas
ou comerciais. Essa relação entre o brasileiro e a televisão faz também parte das discussões até
agora feitas na medida em que mostra claramente a força da sociedade, reproduzida e duplicada
pela televisão sobre o indivíduo, que também é telespectador e que, a partir dessa relação,
identifica-se e consome de acordo com os conselhos de uma realidade que ele identifica como
sendo sua.

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265
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MÍMESIS E IDEOLOGIA

Fábio Luiz Tezini Crocco


UNESP/Marília

A presente pesquisa origina-se de uma preocupação com a alienação induzida pelos diversos
veículos da indústria cultural. Essa reflexão, entretanto, será indireta, mediada por uma análise de
natureza teórica acerca de dois conceitos centrais da Teoria Crítica: ideologia e mímesis. Julgamos
que a abordagem teórica sobre dois conceitos intrinsecamente relacionados com a problemática da
alienação na indústria cultural, na mesma medida em que nos põe a uma certa distância de nosso
objeto de reflexão, que não será empiricamente abordado neste projeto, nos põe igualmente em
condições adequadas para futuras reflexões, talvez menos distantes e eventualmente menos
centradas em aspectos exclusivamente teóricos.
Evidentemente, ideologia e mímesis são conceitos amplos, de larga história, cada um deles
solicitando reflexões exaustivas, que nem de longe fazem parte dos objetivos modestos e bem
delimitados do presente trabalho. Mesmo no interior da Teoria Crítica, aqui recepcionada
exclusivamente por meio de Adorno, Horkheimer e Marcuse, a articulação entre esses dois
conceitos suscitaria pesquisa volumosa que em muito ultrapassaria os horizontes de uma Iniciação
Científica. Assim, o que pretendemos, consiste em delimitar uma problemática própria da indústria
cultural em nossa sociedade, por meio da articulação entre ideologia e mímesis a partir de alguns
poucos textos dos referidos autores. Ainda que obras complexas como a Dialética do
Esclarecimento estejam arroladas na Bibliografia, propomos um recorte específico, limitado a
capítulos e, eventualmente, a trechos de capítulos ou fragmentos que serão abordados a partir de
nossa preocupação central. Esperamos, dessa forma, contemplar os objetivos próprios a uma
pesquisa introdutória típica do nível de graduação, que possa produzir resultados teoricamente
promissores para sua continuidade futura em níveis mais elevados.
***
Como sabemos, em sua concepção marxista clássica, a ideologia é definida como
representação invertida da realidade, que, ao ocultar seus condicionamentos materiais, apresenta as
representações da consciência como princípios explicativos verídicos e definitivos. As idéias da
classe dominante, em particular da classe burguesa, apresentam-se como representações definitivas
e legítimas, silenciando as contradições econômicas e sociais, produzindo uma universalidade
abstrata que tem por função acomodar os indivíduos frente ao existente e ao instituído. Sérgio Paulo

266
Rouanet, ao contextualizar historicamente as preocupações que mobilizaram o Instituto de
Pesquisas Sociais de Frankfurt, que desde os anos 20 produziu trabalhos teóricos muito relevantes
convencionalmente denominados “Teoria Crítica”, destaca uma mutação teórica que teve por eixo
justamente o conceito de ideologia (ROUANET, 1986, p.71). Segundo Rouanet, em um primeiro
momento, que vai até aproximadamente a década de 40, a ideologia era enfocada em seu aspecto
marxista tradicional, ou seja, como esfera da dissimulação da dominação, graças ao encobrimento
de sua materialidade. Em um segundo momento, desde os anos 40, a ideologia passou a ser
abordada de acordo com parâmetros qualitativamente diferentes, que caracterizam as produções
mais fecundas e consistentes da Teoria Crítica. A ideologia assume papel afirmativo, que não
consiste mais em deformar a realidade, mas em identificar-se com esta: “é a própria realidade,
agora, que desempenha as funções de mistificação antes atribuídas à ideologia” (ROUANET, 1986,
p.71) Para Rouanet, a tarefa de desmistificação da ideologia torna-se agora muito mais complexa,
“praticamente insolúvel”, pois “a mentira assume a última de suas máscaras, que é a verdade”.
(ROUANET, 1986, p.71). Recorrendo à terminologia proposta por Marcuse, Rouanet caracteriza
essa transformação qualitativa da ideologia como nova etapa do esclarecimento. Nesta, o discurso
ideológico, sintonizado com um momento histórico de “unidimensionalização absoluta do real”,
deixa de encobrir a realidade, passando, pelo contrário, a invocá-la como prova de sua veracidade.
Com efeito, a obra madura de Marcuse apresenta a sociedade industrial do pós-guerra como
“sociedade sem oposição”, em que a própria liberdade é instrumento de uma dominação suave e
confortável, mediada pelas “falsas necessidades” do lazer e do consumo. Na sociedade
unidimensional, o “próprio conceito de alienação parece tornar-se questionável quando os
indivíduos se identificam com a existência que lhes é imposta e têm nela seu próprio
desenvolvimento e satisfação” (MARCUSE, 1969, p.31). O caráter inteiramente objetivo da
alienação marca um certo tipo de absorção da ideologia pela realidade, mas sem que tenhamos o
“fim” da ideologia, pois, conforme ressalta Rouanet, “a síntese unidimensional é uma caricatura, e
não uma reconciliação autêntica” (ROUANET, 1986, p.72). Para Marcuse, a cultura no mundo
capitalista tornou-se mais ideológica do que era antes, apresentando novos desafios ao pensamento
crítico, cuja tarefa agora consiste em desmistificar o próprio estilo de vida unidimensional. Pois
“surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idéias, as
aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da
ação são repelidos ou reduzidos a termos desse discurso” (MARCUSE, 1969, p.32).
As implicações dessa unidimensionalização da realidade, centralmente marcada pela
absorção da ideologia pela própria realidade são detalhadamente abordadas por Adorno em seu

267
texto Crítica cultural e sociedade. Para Adorno, a ideologia no capitalismo tardio converteu-se em
“aparência socialmente necessária” que se identifica com a própria sociedade real (ADORNO,
1998, p.22). Em uma realidade tornada “prisão ao ar livre”, a ideologia deixa de desempenhar o
papel de “falsa consciência”, tendo se transformado em “propaganda a favor do mundo”
(ADORNO, 1998, p.22).
Conforme foi proposto neste trabalho, com relação ao processo de transformação
qualitativa da ideologia a mímesis é duplamente abordada pela teoria crítica. Numa primeira
abordagem a mímesis promove o desenvolvimento ontogenético do indivíduo, é a primeira forma
de relação com o todo. Segundo Freud é uma forma de identificação com o existente e uma
forma de integração social. Já na segunda abordagem, a mímesis é irreflexão imediata, imitação
heterônoma, relacionada com o não desenvolvimento desse sujeito e pela sua assimilação direta a
cultura, a qual ele imita e da qual se esconde. Pretendemos aqui demonstrar de forma específica
nesse estudo como, e por quais razões principais esse processo ocorre, e principalmente como a
mímesis é utilizada pelo poder para gerar a identificação da massa com a ordem vigente.
A mímesis em sua concepção “primária” é instrumento de autodefesa de seres primitivos
pela sua imitação do meio, é utilizada como uma forma de autoproteção, forma de ocultar sua
presença no ambiente em que está, ou imitar, fazer parte dele. A experiência de mimetizar a força
que ameaçava o indivíduo ocorria pelo medo da aniquilação. Assim como determinados animais
possuem caracteres que os confundem com o meio ambiente livrando-os do ataque de seus
predadores e permitindo-lhes a sobrevivência, o homem através do impulso mimético, se
assemelhava ao inimigo para escapar do perigo da destruição. Neste impulso de sobrevivência,
contudo, ele perdia sua identidade, na medida em que extrapolava os limites que o caracterizavam
como diferente. Era uma mímesis constituída pelo medo daquilo que mostrava toda sua força: a vida
selvagem, as intempéries, a falta de alimento, e ainda, aspectos geográficos. Na luta pela
sobrevivência, os primitivos só podiam contar com a sua constituição física, extremamente frágil
frente às forças naturais. Neste momento, a capacidade mimética foi fundamental para a
autoconservação. A necessidade de proteção e o medo gerado pela natureza impeliam à integração
entre ambos. O primitivo para se manter vivo não podia se destacar ou se diferenciar da natureza.
Tendo em vista os poderes naturais superiores a ele, via-se impelido à fusão e à perda de si nas
características e leis naturais. Tal perda, entretanto, também estava associada à sensação de prazer,
por ter ultrapassado as barreiras da individuação e ter proporcionado a confusão com a natureza.
Num estágio posterior ao aprendizado primitivo a mímesis é suprimida. Tanto o progresso
da cultura, como o desenvolvimento ontogenético do indivíduo dependem da proscrição da

268
mímesis, esta proscrição é condição para o desenvolvimento do aprendizado racional, o homem
relaciona-se com o todo não mais pela simples imitação, mas sim pela adaptação consciente. A
civilização desenvolve-se mediante a proscrição dessa mímesis primitiva, do afastamento do sujeito
dessa forma irracional de relação com o mundo. Desta forma surge o indivíduo consciente como
resultado de uma repressão de seus instintos primários. A partir da constituição do sujeito ocorre a
“passagem da mímesis refletora para a reflexão controlada” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985,
p.169), a qual possibilita o desenvolvimento da razão e a formação do sujeito.
A proscrição da mímesis se relaciona com a formação do sujeito para o desenvolvimento da
civilização, é condição para essa realização o afastamento físico do homem frente à natureza. A
civilização passa a organizar os desejos e a alteração da realidade que antes era vinculada ao próprio
sujeito. Essa nova organização reprime e modifica os instintos originais. Esta estreita relação entre
perda de si e sentimento de prazer é aquilo que, para Adorno e Horkheimer, torna a experiência
mimética perigosa para a edificação da civilização. Mas, para os homens “civilizados” a realização
dessa mímesis existe apenas em resquícios, é uma caricatura da mímesis original, isso impossibilita
sua realização plena com a natureza, o seu reencontro. A sociedade é um prolongamento da
natureza que ameaça os seres humanos e estes se protegem dela a partir de sua dominação.
Entretanto, posteriormente às transformações do início do século XX, num momento
unidimensional da realidade o sujeito negativamente consciente se dissipa e a razão passa a ser
utilizada como a forma totalitária para promover a dominação. O aprendizado pelo mimetismo que
se apresenta por um processo ético-pedagógico, o qual transforma a imitação irrefletida em
reflexão autônoma não se completa. Diferentemente no mimetismo que proporciona o reencontro
homem-natureza, a mímesis transforma-se em integração direta do homem a cultura. O homem
primitivo se une à natureza e a imita para sua autoconservação, o homem contemporâneo se
assimila à cultura vigente. Este, através da técnica, burocratiza os processos sociais e automatiza as
relações. Essa identificação promove o status quo e a consolidação do modelo existente. O homem
sobrevive graças à falsa mímesis, através de sua assimilação com o meio. Desta forma, num
processo de fusão entre ideologia e realidade ocorre a síntese unidimensional e não uma autêntica
reconciliação, assim, a mímesis, enquanto imitação imediata integra o sujeito a realidade sem
distinguir tal ambigüidade. Tem-se a impressão de estar vivendo o fim da ideologia, enquanto,
segundo Marcuse, a cultura no mundo capitalista tornou-se mais ideológica do que antes.
A mímesis é duplamente abordada pela teoria crítica. Numa primeira abordagem ela
promove o desenvolvimento ontogenético do indivíduo, é a primeira forma de relação com o
mundo. Diferentemente, na segunda abordagem, a mímesis é irreflexão imediata, imitação

269
heterônoma, relacionada com o não desenvolvimento desse sujeito e pela sua assimilação direta à
cultura. Como vimos, a mímesis é reprimida para a formação da cultura, pela diferenciação entre
homem e natureza, separação esta que forma a civilização, entretanto ao realizar essa ruptura o
homem assimila-se à cultura e regressa àquela unidade primitiva. “A mímesis transforma-se em
paródia da mímesis. A unidade primitiva com a natureza converte-se em assimilação integral do
indivíduo à cultura” (ROUANET, 1986, p.129). Essa assimilação integral relaciona-se com a
ideologia que no período tradicional da teoria marxista apresentava-se como obscurecimento das
relações concretas, mas no período posterior à reorganização capitalista do início do século XX
apresenta-se como “aparência socialmente necessária” que em conexão com a paródia mimética não
deixa brechas para a transposição da realidade existente.
A autopreservação do indivíduo contemporâneo é promovida através de sua plena
integração à cultura, pois com a desintegração do sujeito autônomo, a capacidade de resistência foi
comprometida. Segundo Marcuse, o não desenvolvimento de sujeitos autoritários e autônomos está
relacionado intimamente com a sociedade sem pai que se apresenta com as transformações da
sociedade industrial do período entreguerras (MARCUSE, 1998). Neste sentido, como foi abordado
antes, na época liberal do capitalismo ainda existe um pequeno espaço progressivo para a realização
dialética entre adaptação e crítica, pois o indivíduo pode formar sua individualidade na medida em
que se integra à sociedade. Esta separação entre mundo interior e mundo exterior é resultado do
momento histórico em que há abertura à livre concorrência e empreendimento como forma de
liberdade crítica. Entretanto o processo de transformação do capitalismo para sua forma
monopolista conduziu à abertura ao totalitarismo. Com o declínio da fase liberal a cultura perde sua
mediação dialética entre individualidade e mundo exterior. Agora o indivíduo é inteiramente e
diretamente submetido ao poder totalitário, o que promove, mais ainda sua, subjugação ao status
quo.
Segundo Horkheimer, a recusa da mímesis para o desenvolvimento da sociedade não
promete sua satisfação libidinal e sim a sua repressão, esta promove desprazer e impede o
desenvolvimento pleno das potencialidades humanas. Assim, “esse impulso estará sempre à
espreita, pronto para emergir como uma força destrutiva” (HORKHEIMER, 1976, p.127). Neste
sentido, Marcuse afirma que a mímesis, enquanto identificação imediata, reaparece na sociedade
industrial elevada (MARCUSE, 1969, p.31). O processo que promove uma “sociedade sem
oposição” se intensifica com a relação entre mímesis e ideologia, pois os átomos sociais
impossibilitados de resistir às imposições da cultura ideológica que se apresenta como realidade
efetiva e superior, agem identicamente às suas determinações. Na sociedade unidimensional

270
apresentada por Marcuse a mímesis irrefletida retorna porque não é mais possível a adaptação
consciente do indivíduo à realidade, o sujeito autônomo se dissolveu. A mímesis retorna como
caricatura da mímesis original (reencontro com a natureza). A cultura é um prolongamento da
natureza, a qual ameaça os indivíduos. Como seu poder é extremamente superior ao dos átomos
sociais, os quais perderam sua única forma de resistência - a capacidade de negação – sua
identificação ao meio é imediata e irrefletida.
A mímesis promove a satisfação da realização libidinal, principalmente pela harmonização
do conflito e pela plena identificação com o meio. Entretanto, como foi dito, a edificação da
civilização só é possível pela repressão destes instintos. No momento unidimensional em que se
apresenta a sociedade o poder manipula os resquícios nostálgicos da mímesis original para instigar a
felicidade perdida. Neste sentido, as transformações ocorridas com a dissolução da psicologia
individual possibilitam o surgimento das massas, nas quais a mediação entre o “eu” e o “outro” dá
lugar a uma identificação imediata (MARCUSE, 1998). O “sujeito” é administrado por um sistema
que utiliza técnicas miméticas para criar a ilusão de reencontro com a natureza reprimida. Portanto
tal manipulação promove a identificação do átomo social ao modelo estabelecido. Os indivíduos
são debilitados em sua capacidade de confrontar a violência da realidade, em vez disso, identificam-
se e não mais se relacionam de forma racional com essa realidade. Aceitam a dominação e
identificam-se com os mais fortes, mais poderosos.
Num Estado fascista a identificação plena com o líder representa a identificação acrítica
com o todo existente. Entretanto, posteriormente a “queda” dos Estados fascistas, o líder
personificado se transubstancia numa confusão entre líderes fungíveis que são coordenados pelo
aparato de produção dominante. Este se utiliza desordenadamente das produções culturais para a
vinculação de sua ideologia que se apresenta como plena realidade. A principal função da cultura
de massas é promover uma falsa síntese do seu produto com o próprio real e adaptar a população ao
existente através da indústria cultural, que manipula esteticamente o retorno da mímesis reprimida.
Como vimos, a sociedade de massas surge na sociedade industrial do pós-guerra como
“sociedade sem oposição”, em que a própria liberdade é instrumento de uma dominação suave e
confortável, mediada pelas “falsas necessidades” do lazer e do consumo. A produção desta indústria
incita o mundo anímico-espiritual pressupondo-o numa posição superior em relação à vida
quotidiana. O mundo das idéias, da cultura é diferente do mundo do trabalho, (labuta), e é neste
mundo ideal que o indivíduo é incitado a realizar-se, sem modificar sua situação real. Este é o
resultado da regressão unidimensional, que promove a identificação do sujeito com o todo
repressivo, o qual modificou-se estruturalmente por causa do processo histórico da sociedade

271
industrial e promoveu a degradação da cultura. Neste ambiente degradado o sistema expande sua
produção de falsas necessidades e, progressivamente os indivíduos são levados a perder sua
autonomia enquanto sujeitos sociais conscientes. A superabundância de bens, alimentada por esta
lógica da criação de necessidades, promove a adesão dos átomos sociais aos novos produtos e
serviços. Neste processo de produção e reprodução da mesmice e da superabundância tem-se a
impressão de completude, entretanto esta falsa satisfação promove a dissolução das consciências
que se subjugam ao produto e ao dinheiro como bens superiores. Neste sentido, os bens culturais
têm seu preço.
Segundo Adorno, a cultura mudou a sua função em relação às transformações das relações
materiais. A cultura européia se degenerou em mera ideologia e se oferece ao consumo (ADORNO,
2001, p.12) como um produto considerado “socialmente necessário”. Sendo assim, o consumo dos
produtos culturais, realizado em uma sociedade massificada, é consumo mimético em cujo
processo a ideologia do aparato se renova. Neste sentido, Adorno e Horkheimer explanam em
Dialética do Esclarecimento que neste momento específico da ideologia o conformismo e o
descaramento da produção tornam-se claramente conscientes e, mesmo assim, os indivíduos
contentam-se com a reprodução do mesmo. A cultura de massas determina o consumo, e através
dele, exclui o novo e as novas experimentações porque o desconhecido, diferente da forma
instituída, pode ser um risco (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.125-126).
Essa transformação qualitativa no papel da ideologia aponta para um paradoxo
fundamental, que constitui o objetivo central de nossa pesquisa. Esse paradoxo é explicitado por
Adorno da seguinte maneira: “ninguém mais se preocupa com o conteúdo objetivo das ideologias,
desde que estas cumpram sua função”. Igualmente, para Marcuse, “as pessoas sabem ou sentem que
os anúncios e as plataformas políticas não têm de ser necessariamente verdadeiros ou certos e, não
obstante, os ouvem e lêem e até se deixam orientar por eles” (MARCUSE, 1969, p.107). Segundo
Marcuse na sociedade unidimensional a veracidade das mensagens assume aspecto secundário, pois
o que verdadeiramente importa é o fato de que, embora as pessoas não acreditem nos conteúdos
veiculados pela “linguagem mágico-ritual” do aparato, elas, não obstante, agem em concordância
com a adaptação prescrita. Perante esse quadro de identificação integral com a realidade, as
implicações da transparência material do discurso ideológico (ADORNO, 2001, p.25) são apontadas
de maneira exemplar por Paulo Arantes. Para esse pensador, a redundância da crítica marxista em
um mundo monopolizado pelo pensamento único equivale à impressão de estar arrombando uma
porta aberta (ARANTES, 2004, p.127).

272
Segundo Adorno, esse “deslocamento geográfico” ocorrido nas transformações do
entreguerras transforma o contexto social e, sendo assim, uma teoria que tem a pretensão de abarcar
a realidade não pode desconsiderar tais movimentos. Neste sentido, Adorno escreve aos críticos que
não consideram essas transformações: “a criação que se recusa refletir sobre esses processos e que
segue o antigo caminho como se nada tivesse acontecido, está condenada à futilidade estéril”
(ADORNO, 1973, p.12). A caracterização do conceito de ideologia se transforma e a crítica que se
propõe a simples tarefa de desvelar a dominação torna-se insuficiente e redundante, pois a
dominação cada vez mais se mostra transparente e, mesmo assim os indivíduos sujeitam-se a ela.
O aspecto paradoxal do discurso ideológico contemporâneo, que consiste de promover a
adesão das massas por meio da veiculação de mensagens claramente falsas até para seus próprios
receptores encontra uma abordagem criticamente muito fecunda em outra obra de Adorno. Em seu
texto acerca da relação entre sociologia e psicologia, Adorno propõe que a explicação segundo a
qual os meios de comunicação de massa moldam a opinião pública é insuficiente, pois se as massas
se deixam enganar por uma propaganda claramente falsa, isso ocorre porque tais mensagens são
adequadas a condições subjetivas heterônomas geradas pela irracionalidade objetiva (ADORNO,
1991, p.135-6). A falsidade evidente das mensagens não impede que indivíduos atomizados,
condicionados ao sacrifício irracional e à servidão, comportem-se de acordo com os slogans
sistematicamente prescritos por seus senhores.
Segundo Marcuse, numa sociedade unidimensional a linguagem se torna funcionalizada,
impossibilitada de desenvolver e expressar conceitos. Através de sua imediação impede os
indivíduos de pensar dialeticamente. A abstração e a mediação são retiradas do discurso e
abreviadas em imagens fixas. “A linguagem funcional unificada é uma linguagem
irreconciliavelmente anticrítica e antidialética. Nela a racionalidade operacional e behaviorista
absorve os elementos transcendentes, negativos e de oposição da razão” (MARCUSE, 1970, p.103).
Nota-se que o funcionamento da linguagem unificada e da sociedade unidimensional impossibilitam
a transcendência frente ao existente, entretanto é importante frisar que não é a linguagem abreviada
e unificada que, de forma mecânica, molda a opinião das massas. Diferentemente do discurso
fascista hitlerista, a linguagem funcionalizada se adequa as personalidades unidimensionais que
paradoxalmente se comportam conforme a linguagem claramente enganadora. Este discurso não
pretende passar por verdadeiro, mas sim, estar de acordo com a forma social previamente instituída.
A veracidade do discurso tornou-se secundária, a crítica à totalidade se esvaziou porque as
consciências individuais se tornaram vazias. Numa sociedade unidimensional o discurso que
pretende revelar instâncias da dominação torna-se paradoxal, pois mesmo revelando tais instâncias

273
não há um pensamento dialético que negue sua identidade com a realidade. Neste sentido, Paulo
Arantes explana sobre “a experiência regressiva de uma sociedade sem oposição”, em que foi
decapitada a negação, o lado oposto, sem o qual não há vida no pensamento. Segundo este autor
seríamos levados a acreditar quase totalmente que vivemos no melhor dos mundos e mesmo com
tanta destruição e miséria ainda o afirmamos. Para as “consciências anestesiadas” “pior que a
exploração é não ser explorado, e assim como a primeira passa a atender pelo nome eufemístico de
emprego, a moeda forte se representa como o bem supremo da sociedade humana (ARANTES,
2004, P.128). Assim sendo, segundo Adorno em Ideologia, as coisas apresentam-se como são e não
poderiam ser diferentes. A ideologia da cultura de massas pretende a duplicação afirmada de todo o
existente que caminha para a destruição da crítica e de qualquer possibilidade de transcendência. A
impossibilidade de resistência subjetiva adapta os homens à mentira, mas ao mesmo tempo os
indivíduos conseguem enxergar além deste véu de que não precisam mais, e o qual já não pretende
esconder nada. Sendo assim, “bastaria ao espírito um pequeno esforço para se livrar do manto dessa
aparência onipotente, quase sem sacrifício algum. Mas esse esforço parece ser o mais custoso de
todos” (ADORNO, 1973, p.14).
Conforme Adorno, realidade e ideologia se identificam (ADORNO, 2001, p.25) e a crítica
inserida numa sociedade sem oposição perde sua ambivalência. Também para Arantes as
“consciências anestesiadas” se subjugam a um discurso claramente falso pela sua incapacidade de
negação. Diferentemente de um momento anterior em que revelar as instâncias ocultas era sinônimo
de libertação, hoje esta libertação não ocorre, mesmo desveladas as instâncias da exploração e da
dominação os indivíduos continuam servir a seu poder (ARANTES, 2004, p.127). Segundo
Marcuse “o novo toque da linguagem mágico-ritual é, antes, o de as pessoas não acreditarem nela,
ou não se importarem com ela, mas, não obstante, agirem em concordância com ela”. (MARCUSE,
1969, p.107). Por mais que a falsidade se apresente esboçada não há resistência efetiva, o poder não
se preocupa em esconder seu interesse real, “seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se
confessa de público” (ADORNO, 1985, p.114). Assim não é mais preciso esconder nada, a
exploração e a dominação que se apresentam de forma confortável e suave já foi confessada e
mesmo assim é aceita pelas “consciências anestesiadas”.
Igualmente, os motivos subjetivos da adesão a mensagens ideológicas que sequer solicitam
a crença em seus conteúdos, embora prescrevam comportamentos submissos à totalidade
repressiva, são sugeridos por Marcuse quando este caracteriza a forma pela qual se dá esse tipo de
adesão. Para Marcuse, o resultado da síntese unidimensional consiste na mímesis: “uma

274
identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade e, através dela, com a sociedade em seu
todo” (MARCUSE, 1969, p.31).
Em termos psicológicos, essa síntese somente é possível em virtude da dominação direta
exercida pela totalidade sobre a subjetividade do indivíduo. Para Adorno, Horkheimer e Marcuse, o
capitalismo tardio caracteriza-se pelo que este denominou “obsolescência da psicanálise”. Ou seja,
o fato de que, atualmente, a dissolução da individualidade, a substituição das instâncias psíquicas
clássicas postuladas por Freud (id,ego,superego) por uma administração direta exercida pela
indústria cultural, apontam para o anacronismo de supormos a existência da própria individualidade.
Este fenômeno, central na análise do capitalismo proposta pela Teoria Crítica, é descrito por
Adorno e Horkheimer: “O indivíduo não precisa mais recorrer a si mesmo para decidir o que deve
fazer, numa dolorosa dialética interna de consciência moral, autoconservação e impulsos. Sua vida
profissional é determinada pela hierarquia das organizações e pela administração pública, e sua vida
privada pelo esquema da indústria cultural, que seqüestra até os últimos impulsos íntimos dos
consumidores compulsórios. (...) As massas, privadas até da aparência de sua personalidade, se
conformam mais docilmente aos modelos e as palavras de rodem que as pulsões à censura interna”.
(HORKHEIMER, 1985, p.181). Dessa forma, os resultados de nossa pesquisa indicam a articulação
entre mímesis e ideologia, vínculo que julgamos poder explicar a eficiência de um discurso
ideológico que pode se permitir dispensar o recurso à dissimulação da realidade, apresentando-se
como identificado à própria realidade. Ou seja, quando o discurso ideológico pode dar-se ao luxo de
revelar plenamente a própria realidade, sem encobrir suas contradições, esse aperfeiçoamento nas
estruturas da servidão voluntária indica, sobretudo o desaparecimento do próprio sujeito capaz de
refletir negativamente a realidade. Esse desaparecimento é consubstanciado pela manipulação
sistemática exercida pela indústria cultural sobre os impulsos miméticos reprimidos dos indivíduos
atomizados na sociedade de massas.

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277
Educação crítica pós-Auschwitz: a dialética entre formação cultural e barbárie segundo
Theodor W. Adorno e Zygmunt Bauman

Felipe Quintão de Almeida


Universidade Federal de Santa Catarina

1. Introdução

O capítulo Elementos do Anti-semitismo: limites do esclarecimento, embora não estivesse presente


no projeto inicial da Dialética do Esclarecimento (WIGGERSHAUS, 2002), obra conjunta de
Adorno e Horkheimer (1985), se insere no contexto descrito pelo livro ao narrar a tendência ideal e
prática à autodestruição do esclarecimento: sua reversão à mitologia. Desde então, Auschwitz tem
ocupado um lugar central no trabalho dos frankfurtianos, sendo reservada a ele uma atenção
especial na filosofia tardia de Adorno. Alves Júnior (2003, 2005), um dos autores que no Brasil tem
se dedicado a estudar a constelação do anti-semitismo e seus desdobramentos na tradição
frankfurtiana, assume a tese segundo o qual há continuidade de pressupostos na reflexão adorniana
sobre essa questão, estendendo-se na obra de Adorno, desde a Dialética do esclarecimento e A
personalidade autoritária, passando por Minima Moralia até Educação após Auschwitz, apontando
uma série de problemas filosóficos cuja elaboração plena leva às idéias centrais da Dialética
Negativa. Essa centralidade assumida por Auschwitz na obra de Adorno foi tal que, conforme a
interpretação de Gagnebin (1999, 2001, 2003), toda sua filosofia posterior à experiência nacional-
socialista tentaria, fundamentalmente, responder à questão de como seria possível ao pensamento
filosófico evitar que Auschwitz se repetisse.

À semelhança do que acontecera com Adorno, a presença dessa chaga (Auschwitz) na modernidade
marcou profundamente a escrita sociológica de Bauman, a tal ponto de alguns comentadores
(TESTER, 2002; SMITH, 1999; BEILHARZ, 2001) a considerarem um ponto de inflexão na obra
desse autor. Essa inflexão resultou na publicação de Modernidade e Holocausto (1998), livro cuja
preocupação é trazer à luz as lições políticas, sociológicas, mas também psicológicas que
Auschwitz pôde proporcionar ao processo civilizador adjetivado de moderno. Sua profícua reflexão
sobre o Shoah insere-se no contexto de sua crítica à ânsia inexoravelmente moderna do
estabelecimento da ordem, sendo imputado aos judeus nesse bojo o papel de refugo (ambivalência)

278
da modernidade. Tal como Adorno, ele desenvolveu suas idéias no sentido de ressaltar a função de
cesura que Auschwitz, em sua singularidade, desempenha na história da razão moderna.

Alguns aspectos da interpretação que Adorno e Bauman realizam de Auschwitz podem


proporcionar elementos importantes para o debate educacional contemporâneo. Cientes disso, o
objetivo deste artigo é apresentar a maneira pela qual Bauman, em sua análise sobre a ocorrência de
Auschwitz na modernidade, retoma e atualiza a consagrada tópica adorniana de crítica à razão
instrumental. Procuramos ainda situar o lugar reservado nos escritos de Bauman aos temas da
formação cultural e da educação, já que eles cumprem um papel importante na filosofia de Adorno
por serem essenciais na auto-reflexão crítica do indivíduo no sentido da elaboração do passado nazi-
fascista de forma esclarecida no presente.

2. Modernidade e holocausto: a crítica adorniana da razão instrumental atualizada por Zygmunt


Bauman

Indisposto com aquelas leituras sociológicas que marginalizam o Shoah como fenômeno singular na
história do progresso e do esclarecimento, Bauman compreende que a visão nacional-socialista de
uma sociedade harmoniosa e ordeira extraía sua legitimidade e atração de crenças bastante
arraigadas no mundo intelectual da sociedade moderna, repleta que ela estava da confiança na
capacidade da razão, de sua propaganda cientificista e da assombrosa potência da tecnologia já
produzida. Conforme seu argumento, se a decisão de ir até o fim e ultrapassar todos os extremos era
do Fürher do Estado Nacional-Socialista, sua lógica, porém, refletia a visão de mundo e prática da
modernidade. E isso, pelo menos, em dois aspectos intimamente ligados ao projeto moderno de
busca da ordem como tarefa (BAUMAN, 1998, 1999) ou, nos termos frankfurtianos, de uma
sociedade esclarecida: o papel da ciência e da burocracia estatal moderna na perpetração do
Holocausto.

Bauman (1998) procura demonstrar no livro Modernidade e Holocausto de que maneira se deu a
participação de parcela importante da comunidade científica na política de higiene racial que
culminou no Holocausto. Segundo argumenta, a tomada do poder pelos nazistas não mudou em
nada a conduta profissional das elites científicas na Alemanha, já que, interessadas na busca
desinteressada da verdade ou na objetividade dos fatos, foram fiéis ao princípio da neutralidade
moral da razão e à busca da racionalidade, esperando dessa forma contribuir com a construção de

279
uma Alemanha melhor, livre da “sujeira judaica” e, assim, mais apropriada ao que se considerasse a
vida humana “adequada”. O culto da racionalidade pelos cientistas revelou-se, desse modo, não só
impotente para impedir o Estado de partir para o crime organizado, mas, ao contrário, foi
instrumental na sua reafirmação.

Essa mentalidade científica, para atingir sua máxima instrumentalidade, necessitava de meios de
mobilização e distribuição planejadas, de uma organização que dividiria a tarefa global em funções
parciais e especializadas para pôr em prática todo serviço sujo, melhor, de “limpeza”. Para ser
eficiente, portanto, o assassinato de milhões de judeus, como qualquer genocídio que se pretenda à
maneira da modernidade, necessitava da imensa parafernália burocrático-estatal. A formidável
eficiência do Holocausto baseou-se na utilização puramente racional e técnica da violência – uma
racionalização da dor e do sofrimento humano, em termos adornianos – distribuída no seio da
estrutura burocrática do Estado Nacional-Socialista1. Dentre esses elementos técnicos, Bauman
(1998) dá destaque à meticulosa divisão funcional do trabalho e à substituição da responsabilidade
moral pela técnica.

Dois efeitos desse contexto são importantes, em particular: 1) a irrelevância dos padrões morais
para o sucesso técnico da ação burocrática: não há espaço para a capacidade de julgar e/ou do ego
de lá extrair conseqüências espirituais. Uma vez escolhida a lógica racional da autopreservação
como critério da ação humana, tanto por parte das vítimas como dos perseguidores, ela revelar-se-ia
no sinuoso caminho para Auschwitz como inimiga do dever moral, já que, no mundo nazista,
seguindo uma tendência desde seu desabrochar como sistema esclarecido, a razão era inimiga de
tudo aquilo que representava seu outro (BAUMAN, 1998)2; 2) a desumanização dos objetos da
operação burocrática, quer dizer, a possibilidade de expressá-lo em termos puramente técnicos,
neutros ou amorais. Eis o segredo do embrutecimento que, na opinião de Adorno e Horkheimer

1
Nos escritos de Bauman o Estado moderno é do tipo jardineiro, que deslegitima todos os mecanismos
existentes de reprodução e auto-equilíbrio social e coloca em seu lugar mecanismos construídos com a
finalidade de apontar a mudança na direção de um projeto racional. Se o projeto de um jardim define o que é
erva daninha, há ervas daninhas em todos os jardins; e ervas daninhas precisam ser destruídas pois constituem
uma desordem na serena ordenação. Os judeus, como ervas daninhas, foram o refugo do zelo de organização
do Estado nacional-socialista. Foi à visão de ordem por ele projetada que eles não se ajustaram. O resultado,
todos sabemos: sua completa destruição. Em Bauman, a melhor descrição da metáfora da jardinagem como
tarefa do Estado moderno pode ser encontrada em Legisladores e intérpretes: sobre la modernidad, la
posmodernidad y los intelectuales (1997b).

280
(1985), favoreceria a lógica que desembocou em Auschwitz, já que a falta de consideração pelo
sujeito no contexto burocrático torna as coisas mais fáceis para a administração. Os indivíduos
tornaram-se um obstáculo à produção. Justifica-se, pois, por qual motivo precisam ser distanciados
dos resultados últimos da operação para o qual contribuem, uma vez que suas preocupações morais
apenas podem se concentrar na execução racional (mais eficiente, com menos custos) da tarefa à
sua frente. Em função disso, as vítimas em potencial da operação burocrática são desumanizadas, já
que reduzidas a cifras e a um conjunto de medidas quantitativas: não há qualquer brecha para o
sofrimento alheio chegar ao conhecimento daquele cuja função é apenas premer botões. Sob a lei da
pura funcionalidade, os judeus não passam de mero objeto das técnicas administrativas, intolerantes
que estas são ao mínimo de excedente que não aquele consumido no instante da ação burocrática
(BAUMAN, 1997a, 1998, 1999).

Em termos psicanalíticos, essa interpretação poderia indicar a debilidade do eu – fenômeno descrito


por Adorno et. al. (1965a) pelo nome de antiintracepção – que decorre da desvalorização do
humano e do apego a tarefas práticas, nas quais a capacidade de amar, que ainda resiste de alguma
forma, acaba sendo aplicada aos meios. Na sociedade industrial ocorre uma regressão na capacidade
de efetuação do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, do poder de discriminação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985). Quando isso acontece, torna-se bastante difícil para o indivíduo cogitar a
possibilidade de imaginar ou fazer do mundo algo diferente do que ele é; ao contrário, ele é “[...]
possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele
faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na
propaganda do homem ativo.” (ADORNO, 1995a, p. 129). Adorno (1965d) nos recorda que a
compulsividade presente no comportamento desse indivíduo é o equivalente psicológico para o que
em sociologia chama-se de reificação. É por isso que adotará (ADORNO, 1995a) a coisificação
como fórmula para caracterizar esse tipo de caráter manipulador (ADORNO, 1965d), incapaz de
perceber a si próprio e aos outros a não ser como coisas; uma consciência que abole toda
possibilidade de vir-a-ser, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo.

Antes de o poder burocraticamente organizado dispor da atuação da categoria marcada para morrer
– restava saber se hoje ou amanhã –, era preciso selar as vítimas (BAUMAN, 1998), quer dizer,

2
Para Adorno, Auschwitz representou a supressão mais radical do momento de natureza no indivíduo, sua
mimese originária, corporal, somática. Não à toa que “Auschwitz confirma a teoria filosófica que equipara la
pura identidade com la muerte” (ADORNO, 1975, p. 362).

281
removê-las da vida diária e separá-las psicologicamente de outros grupos, seja atribuindo a elas
características depreciativas ou enfatizando sua singularidade, como os traços corporais do judeu,
sua língua, religião etc. Não há um anti-semitismo genuíno nem um anti-semita “nato”: o alvo do
preconceito precisa ser socialmente produzido. Esse isolamento espiritual, cortando todo e qualquer
tipo de experiência com o outro pela raiz, segundo a já clássica interpretação adorniana, foi
conseguido mediante incessante propaganda, insuflando o já milenar anti-semitismo popular, e,
talvez mais eficazmente, pela elaboração de medidas administrativas antijudaicas. O resultado
destas foi alcançado a partir do momento em que aquele judeu ao lado, o outro que conheço, se
transformou, na prática, em exemplares de uma categoria: a do judeu metafísico. Nesse caso,
tornando-se outro como categoria abstrata, perderam a proteção que a responsabilidade como
proximidade pode oferecer para a deflagração do comportamento moral autônomo (BAUMAN,
1998). O outro que conheço e o outro como categoria abstrata são típicos representantes daquilo
que Adorno (1965b) cunhou de dos clases de judíos para distinguir entre os judeus que conseguem
estabelecer uma experiência concreta com pessoas não-judias e aqueles que, por meio de uma
distância socialmente produzida, só podem ser enxergados através de fórmulas estereotipadas.
Nesses casos, nos quais a própria experiência estaria predeterminada pela estereotipia, seria preciso
“[...] reconstruir la capacidad de tener experiencia si es que se quiere evitar el desarrollo de ideas
que cabe considerar malignas en el sentido más literal, clínico, de la palabra” (ADORNO, 1965b, p.
580). Compreende-se porque para Adorno a incapacidade de os seres humanos levarem a cabo
experiências, no pleno sentido da palavra, foi um dos principais motivos que favoreceu a
identificação de coletivos inteiros ao nacional-socialismo.

Auschwitz, eis a lição que tanto Bauman como Adorno tem a nos ensinar, em nenhum momento ao
longo de seu tortuoso progresso entrou em conflito com os princípios da racionalidade. Libertando a
ação com um propósito de todas as restrições que escapassem à finalidade cega da racionalidade
instrumental, a modernidade tornou Auschwitz possível. Concebido desta forma, ele pode funcionar
não apenas como paradigma da moderna racionalidade tecno-burocrática, mas também como
paradigma político da modernidade, já que é do casamento entre a ciência moderna, a teoria
política moderna e a moderna burocracia estatal que se concluiu aquela tarefa que, para Bauman
(1999, 1998), caracteriza a modernidade: a ordem como tarefa. Sem o projeto estatal-ordenador e
burocratizante de uma Alemanha racionalmente pura, e sem a participação dos mais renomados
cientistas da época, o ódio anti-semita acumulado ao longo de séculos não teria desembocado em

282
Auschwitz. O que Bauman (1998, p. 37) irá sugerir, retomando uma tradição de pensamento que o
liga diretamente aos escritos de Adorno, é que

[...] as regras da racionalidade instrumental são singularmente incapazes de evitar


tais fenômenos; que não há nada nestas regras que desqualifique como impróprios
os métodos de ‘planejamento social’ usados no Holocausto ou, mesmo, como
irracionais as ações a que serviram. Sugiro, ademais, que a cultura burocrática
que nos capacita a ver a sociedade como objeto de administração, como uma
coleção de tantos ‘problemas’ a resolver, como ‘natureza’ a ser ‘controlada’,
‘dominada’ e ‘melhorada’ ou ‘refeita’, como um alvo legítimo para o
‘planejamento social’ e no geral como um jardim a ser projetado e mantido à
força na forma planejada [...] foi a própria atmosfera em que a idéia do
Holocausto pôde ser concebida, desenvolvida lentamente mas de forma
consistente e levada à conclusão. E também sugiro que foi o espírito da
racionalidade instrumental e sua forma moderna, burocrática de
institucionalização que tornaram as soluções do tipo Holocausto não apenas
possíveis mas eminentemente razoáveis – e aumentaram sua probabilidade de
opção. Este aumento de probabilidade está mais do que casualmente ligado à
capacidade da burocracia moderna de coordenar a ação de grande número de
indivíduos morais na busca de quaisquer finalidades, também imorais.

A opção pelo extermínio físico de milhões de judeus (a Solução Final alemã) foi produto de
procedimentos burocráticos de rotinas e da cultura de racionalidade instrumental que ela resume.
Sua lógica, diz Bauman (1998) – qualquer semelhança com o exemplo utilizado por Adorno
(1995a) para caracterizar o fetiche pela técnica e seu véu tecnológico não é mera coincidência –,
permite que se construa uma estrada férrea que leve diretamente a Auschwitz sem que se discuta a
responsabilidade pessoal (moral) na ação, já que o Know-how técnico (ou o puro doing things a que
Adorno se referia) é unicamente o que interessa.

Do ponto de vista do processo civilizador adjetivado de moderno, a lição do Holocausto é que


aquele se mostrou incapaz de garantir, por meio de suas salvaguardas (dentre elas a formação
cultural), o recurso à responsabilidade moral no horizonte dos terríveis poderes que trouxe à luz.
Compreendem-se os motivos pelos quais, como notou Adorno (1996), muitos indivíduos usufruíam
com paixão e entendimento os chamados bens culturais ao mesmo tempo em que se mostravam
moralmente neutros à práxis assassina do nacional-socialismo. Essa constatação, conforme nos
indica Bauman (1998), é um duro golpe contra aquelas interpretações que, ao marginalizar a
responsabilidade da cultura moderna3 na perpetração do Holocausto, o concebe como uma

3
Desde Auschwitz os conceitos de cultura, formação e civilização passam a ser objetos de dúvida radical.
Não somente a beleza lírica para Adorno transforma-se em injúria aos mortos do Shoah, mas a própria
cultura, na pretensão de formar uma esfera superior que exprima a natureza humana, revela-se um engodo, um

283
interrupção do curso “normal” da história, um câncer que seria resultado de uma loucura
momentânea no inabalável progresso da vida organizada e civilizada (BAUMAN, 1998, 1999).
Neste tipo de leitura emerge – e aqui o alvo da crítica de Bauman é a teoria do processo civilizador
de Elias (1993a, 1993b) –, de forma explícita ou não, intacta e incólume da experiência do
Holocausto, a compreensão do impacto humanizador e/ou racionalizador da organização
social/cultural sobre pulsões desumanas que governam a conduta de indivíduos ainda não
completamente integrados às normas desencadeadas por aquele processo, reforçando, assim, o mito
etiológico da civilização moderna.

Essa visão, embora necessariamente não enganosa, é apenas o verso da história que tanto
admiramos, já que, segundo a notória argumentação freudiana (1974), todo processo civilizatório
traz consigo, em seu reverso, mal-estar. Entre progresso e barbárie há um pacto imanente, e as duas
faces desse processo estão presas uma a outra como os dois lados da moeda, de tal modo que se
torna quase inconcebível que ambas possam existir sozinhas. Esta ambigüidade da civilização,
expressão da própria dialética do esclarecimento, torna-se particularmente visível se confrontada à
experiência do Holocausto. Concentrando-se apenas numa faceta desse processo histórico, aquela
vinculada às maiores realizações da sociedade moderna e seu crescente humanismo, a teoria do
processo civilizador de Elias

[...] traça uma linha arbitrária entre a norma e a anormalidade. Ao tirar


legitimidade de alguns aspectos recorrentes/elásticos da civilização, [essa visão]
falsamente sugere que são de natureza casual e transitória, ao mesmo tempo
encobrindo a formidável ressonância entre os seus atributos mais eminentes e as
pressuposições normativas da modernidade. Em outras palavras, ela desvia a
atenção da permanência do potencial alternativo e destrutivo do processo
civilizador e efetivamente silencia e marginaliza a crítica que insiste na
duplicidade do moderno acordo social. (BAUMAN, 1998, p. 48).

É por isso que Bauman (1998, 1999, 2002) convida-nos a pensar o Holocausto como um produto e,
ao mesmo tempo, fracasso da modernidade, uma espécie de teste raro e singular, embora confiável,
das possibilidades ocultas da sociedade moderna. Eis, então, sua singularidade e normalidade,
momento em que a dialética do esclarecimento se concretiza sem disfarces e tudo o que está oculto
se mostra à luz do dia, como apontam Adorno e Horkheimer (1985) na Dialética do

compromisso covarde com a injustiça, uma reprodução como documento de barbárie. Auschwitz, assim,
demonstrou irrefutavelmente o fracasso da cultura, já que sob o malefício desta gravitam algo decomposto
que se orienta à barbárie

284
Esclarecimento. Hoje, após mais de seis décadas, a interpretação de Bauman nos alerta que ainda
não foi feito o suficiente para sondar o potencial medonho dessa receita e menos ainda para impedir
seus efeitos potencialmente aterradores. Os motivos pelos quais a racionalidade instrumental e as
redes humanas criadas para servi-la permanecem moralmente cegas decorrem, por um lado, do fato
de o Holocausto ter mudado pouco o curso da história subseqüente de nossa consciência coletiva e
autopercepção, causando quase nenhum impacto na imagem que fazemos do significado e da
tendência histórica da civilização moderna. Por isso, avançou muito pouco a compreensão dos
mecanismos e fatores que tornaram um dia o Holocausto possível. Por outro, é que, o que quer que
tenha acontecido ao curso de nossa civilização, “[...] não aconteceu muita coisa àqueles produtos da
história que com toda a probabilidade continham o potencial do Holocausto – ou pelo menos não
podemos ter certeza do contrário. Até onde se sabe (ou, melhor, até onde não se sabe), eles podem
ainda estar entre nós, à espera de uma oportunidade.” (BAUMAN, 1998, p. 109).

Tanto Bauman como Adorno reconhecem, portanto, as aporias da razão esclarecida na modernidade
e do processo civilizador desencadeado por esta. Compartilham, assim, o pertencimento à tradição
de pensamento segundo o qual, ao invés de exceção histórica na civilização moderna, Auschwitz
constitui sua regra geral. Poder-se-ia dizer que, para ambos, o campo de concentração representa a
fronteira ou o limite do esclarecimento, uma cesura na história do crescente domínio racional da
natureza e que é condição da própria civilização.

Se Bauman retoma e procura avançar na consagrada crítica adorniana à razão instrumental,


diferencia-se deste por não recorrer à terminologia psicanalítica na compreensão do horror nazista.
Quais as implicações dessa ausência para o imperativo educacional adorniano pós-Auschwitz, já
que ele, por atuar na psicologia profunda dos indivíduos, poderia, para Adorno, transformar algo de
decisivo em relação à não-propagação da barbárie no presente?

3. Que Auschwitz não se repita: o imperativo educacional adorniano à luz da sociologia de


Bauman

A partir da análise empreendida por Bauman, compreende-se que o Holocausto não resultou de uma
ruptura da ordem, mas de um impecável e indiscutível império da ordenação, da busca da perfeição
que teve na modernidade e na sua luta para livrar-se da ambivalência irredutível da vida humana
(nesse caso, da anti-raça judia) seu principal palco. Seus executores, responsáveis e amáveis pais de

285
famílias nos momentos de folga, eram homens uniformizados, obedientes e cumpridores de normas,
uma imagem bem distinta daquela que associa os nazistas a figuras bizarras, a bandidos ou
psicopatas4. Segundo as evidências históricas a que Bauman recorre, o Holocausto nos mostrou que
a violência contra os judeus não foi efeito do despertar ou da eclosão de tendências pessoais
adormecidas, mas a idéia de que nós, pessoas comuns, poderíamos perpetrá-lo, pois a produção
social do comportamento desumano relaciona-se a certos padrões de interação social de “[...]
maneira muito mais íntima que às características de personalidade ou outras idiossincrasias
individuais de seus executores. A crueldade é social na origem, muito mais do que fruto de caráter”
(BAUMAN, 1998, p. 194). Isso significa que muitas pessoas gentis, numa situação que não exige
boa escolha, podem se tornar cruéis uma vez que adotem os preceitos do interesse cego da
racionalidade da autopreservação. Se há algum fator adormecido em nossa (in)consciência, pode
“[...] continuar assim para sempre se tal situação não ocorrer. Nesse caso jamais saberíamos da sua
existência” (BAUMAN, 1998, p. 196).

A recusa de Bauman em creditar a ocorrência do Holocausto a características individuais ou a


personalidades que, em seu íntimo, seriam autoritárias, marca uma importante diferença de sua
interpretação em relação àquela desenvolvida por Adorno – ao mesmo tempo em que evidencia um
equívoco de interpretação. Embora Adorno tenha argumentado com a maior veemência que o anti-
semitismo é resultado de tendências sociais objetivas, sejam elas econômicas, políticas ou sócio-
culturais, ele, na companhia ou não de Horkheimer, irá advogar o papel desempenhado pela
psicologia social – a psicanálise – na compreensão das maneiras pelas quais determinadas
características do caráter, nas condições do capitalismo tardio, são mais propensas à identificação
com o regime nazi-fascista do que outras. Não é outro o motivo para que na Dialética do
esclarecimento os dois principais elementos da constelação anti-semita (ALVES JÚNIOR, 2003,
2005) sejam pensados recorrendo-se a conceitos-chave da metapsicologia freudiana: projeção e
identificação. Sem mencionar o fato de o livro A Personalidade autoritária (ADORNO et. al.,
1965) ser todo ele direcionado à investigação das condicionantes psicológicas que atuam na
estruturação de uma personalidade propensa à propaganda antidemocrática e fascista.

Bauman definitivamente não opera com categorias psicanalíticas para compreender a presença de
Auschwitz na modernidade. O capítulo do livro Modernidade e Holocausto (1998) dedicado aos

4
Certamente é a figura do burocrata Eichmman (ARENDT, 1999) o protótipo desse tipo individual cumpridor

286
ensinamentos psicológicos de Auschwitz à civilização moderna cumpre apenas o papel de ratificar
suas explicações sociológicas e políticas do fenômeno, seus interesses centrais na obra. Aquela
pouca centralidade, já notada por Rabinovitch (2003), pode ser corroborada numa crítica direta de
Bauman à Adorno e demais autores do livro A Personalidade autoritária. Nela, baseando-se nos
estudos do psicólogo Stanley Milgram, Bauman critica em Adorno et. al. (1965) a forma como eles
situaram o problema e a estratégia de pesquisa do livro. Segundo a leitura que faz de A
Personalidade autoritária, o triunfo dos nazistas seria decorrência do acúmulo incomum de
personalidades autoritárias. Adorno et. al. (1965), continua Bauman, se recusaram a enfrentar a
investigação de todos os fatores extra ou supra-individuais que poderiam produzir personalidades
autoritárias, despreocupando-se, assim, com a possibilidade de que são esses os fatores que
poderiam produzir um comportamento autoritário em pessoas destituídas de personalidade
autoritária, o que ratificaria sua tese da natureza social do comportamento desumano.

Segundo o lemos, apesar de correto ao argumentar que a crueldade é social na origem, mais do que
fruto do caráter, Bauman erra o alvo de sua crítica, especialmente se considerarmos a posição e o
papel desempenhado por Adorno no referido livro bem como o desenvolvimento da questão de
Auschwitz em sua obra. A crítica de Bauman é unilateral, pois embora o interesse dos autores no
livro fosse realmente os fatores de personalidade que atuam na psicologia profunda do indivíduo,
uma teoria que queira dar conta do anti-semitismo em sua totalidade, comenta Adorno (1965b) no
próprio A personalidade autoritária, não deve basear-se na enumeração de distintos fatores nem
tampouco se ocupar, como em uma análise marxista vulgar, de uma única causa específica do
fenômeno. Mas precisa, ao contrário, tratar de estabelecer um esquema unificado no interior do qual
estejam presentes todos os elementos do anti-semitismo. Essa seria, em sua opinião, uma teoria
sobre a sociedade moderna em sua totalidade. É por isso que coube mormente a Adorno, em meio
a tantos psicólogos de profissão na pesquisa, relacionar os fatores psicológicos com os de natureza
sociológica, segundo uma declaração dada pelo próprio Horkheimer (1965) no prefácio do livro.

Se para ambos Auschwitz é a regra geral do sistema esclarecido, a elaboração de um estado de


emergência pós-Auschwitz passaria necessariamente, para Adorno, pela atuação na psicologia
profunda dos indivíduos. O motivo dessa inflexão em direção ao sujeito (ADORNO, 1995a) não é
outro senão o fato de que, estando congeladas as condições objetivas de superação da sociedade de

de normas e obediente à lei.

287
classe, as tentativas de se opor à repetição de Auschwitz são necessariamente impelidas para o lado
subjetivo das pessoas. Mas como? Refletindo, no plano individual, sobre a frieza burguesa que foi a
condição da barbárie, tomando consciência de sua presença e, assim, tornando possível a atuação
contra seus pressupostos. Diante desse quadro, a proposta de Adorno é utilizar todos os métodos
científicos disponíveis, sobretudo a psicanálise, para estudar os culpados de Auschwitz, “[...]
visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que eles ainda podem fazer de
bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as
coisas não se repitam.” (ADORNO, 1995a, p. 131).

Não por outro motivo caberá à educação, por atuar precipuamente na psicologia das pessoas, refletir
sobre a recaída da civilização na barbárie, sendo seu imperativo categórico evitar que Auschwitz
novamente aconteça. Agrada a Adorno pensar que as chances são maiores quanto mais, por um
lado, voltarmos nossa atenção para a primeira infância e sua educação com vistas à formação de
personalidades não propensas à repetição de Auschwitz: em fases precoces do desenvolvimento os
bloqueios da criança estão afrouxados, o que permitiria a correção pedagógica e o fortalecimento da
reflexão crítica; por outro lado, precisaríamos voltar nossa atenção quanto ao esclarecimento geral,
“[...] que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um
clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes.”
(ADORNO, 1995a, p. 123).

Uma proposta de inflexão desse tipo não faria muito sentido a Bauman; primeiro porque se a frieza
burguesa do qual Adorno falava não se vincula a idiossincrasias ou características de personalidades
autoritárias, não se trataria para Bauman de procurar entender como as pessoas se tornaram assim,
já que mesmo as vítimas dos algozes nazistas poderiam perder boa parte de sua humanidade no
caminho para a perdição. Segundo, Bauman mantém-se incrédulo quanto às possibilidades de um
pensamento esclarecido que fosse capaz de superar Auschwitz num processo em direção à
emancipação. À diferença de Adorno, Bauman não atribui à educação e à formação cultural uma
função a ser desempenhada no sentido da não-repetição do passado nacional-socialista no presente.
O esforço do esclarecimento dirigido às pessoas que foram co-participes da desgraça nazista (a
inflexão a si próprio) não é suficiente para a profunda reforma a ser realizada na condição
existencial pós-Auschwitz, estando a chave para isso não nas mãos de filósofos, psicólogos
profissionais ou educadores, mas sim na política e na inalienável responsabilidade moral de cada
um em resistir à imposição das normas morais pela sociedade (BAUMAN, 1997a, 1998, 2000,

288
2001). A questão que se apresentaria à política e à moralidade seria a de saber, para Bauman, por
qual maneira ela poderia realizar algo de decisivo em relação à não-repetição da barbárie que foi
Auschwitz.

Adorno, porém, não deixa dúvidas: se o centro de toda educação política deveria ser a não-repetição
de Auschwitz, isso só será possível na medida em que esta se ocupasse da mais importante das
questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto deveria se transformar em
sociologia, evidenciando os jogos de forças localizados por debaixo da superfície das formas
políticas. No tempo de Adorno, isso significava tratar criticamente o tão respeitável conceito de
razão do Estado, pois “[...] na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus
integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente.” (ADORNO, 1995a, p. 137). No
tempo moderno líquido no qual estamos imersos, se seguirmos a caracterização dada pelo próprio
Bauman (2001), tratar-se-ia de discutir criticamente, por meio de uma educação política, não a
razão de Estado a que Adorno se referia, mas sim a retirada em bloco do poder do Estado em nome
da desregulamentação e privatização promovidas pelas forças cegas dos mercados financeiros e de
consumo, já que essas (potências) se encarregariam hoje de levar adiante o potencial genocida da
modernidade. A luta pela emancipação e auto-reflexão crítica a que Adorno tanto se referia,
recorrendo a Kant, passaria hoje necessariamente por esta tarefa. Se não escapa a Bauman o fato de
a autonomia da sociedade ser inalienável da autonomia da cada um de seus membros, falta-lhe
porém o reconhecimento segundo o qual a formação cultural é uma condição implícita ao ideal de
uma sociedade autônoma: “[...] quando mais lúcido os singulares, mas lúcido o todo” (ADORNO,
1996, p. 392). A presença de indivíduos semifomados, por seu turno, continuaria a produzir “[...] ad
infinitum aquele estado intelectual que não considero ser o estado de uma ingenuidade inocente,
mas que foi co-responsável pela desgraça nazista” (ADORNO, 1995b, p. 64).

Se em Adorno o sentido mais profundo do pensamento é sua capacidade de levar a cabo


experiências, adulterando a própria vida do espírito ao nele fundir-se, talvez fizesse sentido a
Bauman a sentença adorniana segundo o qual a educação para a experiência pós-Auschwitz é uma
educação para a emancipação, só que desta vez da fluidez, da liquidez, da fugacidade, da
instantaneidade, da insegurança, da flexibilidade, da incerteza, enfim, de todas aquelas
características que hoje configuram a vida (episódica) naquilo que Bauman (2001) denomina de
modernidade líquida e que estariam solapando na base as condições objetivas que possibilitariam a
formação para a autonomia e emancipação sem fim dos sujeitos que vivem na sociedade pós-

289
Auschwitz. É a partir do entrelaçamento do mundo e da própria experiência (Erfahrung) da vida
fragmentados que a formação cultural enfrentaria, para Bauman, seu maior desafio na atualidade.

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291
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292
Sobre os esquemas da indústria cultural: declínio do sujeito e da experiência segundo as
Minima Moralia

Franciele Bete Petry


UFSC/CAPES

A indústria cultural é caracterizada segundo a Dialética do esclarecimento como um


processo que ocorre no contexto da economia capitalista em sua fase monopolista e que tem o
poder de produzir bens culturais para a massa. Tal processo se colocou como preenchimento de
uma lacuna proveniente da perda da religião e da dissolução de resíduos pré-capitalistas na
sociedade, mostrando seu caráter fortemente ideológico e revelando que, ao contrário do que se
supunha, o caos cultural não encontrou lugar na sociedade. Conjuga-se a isso o declínio da
figura paterna e a fraqueza do ego como elementos que possibilitam à indústria cultural exercer
seu poder diretamente sobre os indivíduos. Esse movimento que se expressa tanto no cinema, no
rádio, em revistas, entre outros, monopolizou a criação e disponibilidade dos bens culturais
destinados às massas. Apesar de seus produtos terem essa característica, de serem de certa
forma “populares”, ou seja, destinados ao consumo de um grande número de pessoas, estas,
porém, não têm qualquer participação na produção.
Outra característica fundamental dessa nova forma de produção dos bens culturais é o
fato de tudo ser mera repetição, cópia e identidade. Para Adorno e Horkheimer, “a cultura
contemporânea confere a tudo um ar de semelhança”,1 que se manifesta não só na própria obra
de arte, se é que ainda se pode falar de uma autêntica “obra de arte”, mas de um modo geral em
todas as formas estéticas, como a fachada decorativa dos prédios e a própria arquitetura. A arte
parece ser banida de tais representações que seriam essencialmente estéticas para se converter
em simples mercadoria, passível de reprodução, manipulação e fabricação.
Para os autores, o cinema e o rádio, nesse contexto, já nem precisam ter aparência de
arte, são um negócio que legitima a própria inutilidade dos produtos que pretendem vender,
como se de fato fossem necessários às massas.2 Assim, o poder concentrado nessa indústria,
diga-se, poder econômico, acaba por exercer-se sobre a sociedade, mascarado nas mercadorias
produzidas, as quais são aceitas sem qualquer resistência pelos indivíduos.
Cabe dizer que a necessidade que a indústria pretende suprir não consiste exatamente
numa demanda dos consumidores, como ela deseja mostrar, mas naquela que ela mesma cria. O
poder exercido sobre a sociedade mediante a imposição de bens culturais sob a aparência de

1
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução
Guido A. de Almeida . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 113.

293
uma necessidade resultante dos próprios indivíduos é um engodo que intensifica seu próprio
poder, já que esses não passam de meros espectadores a ansiar pela novidade dos produtos
culturais, os quais são, dadas as características de quem os fabricam, sempre a mesma coisa.
Como afirmam Adorno e Horkheimer, “a necessidade que talvez pudesse escapar ao controle
central já é recalcada pelo controle da consciência individual”.3 Isso significa algo mais
profundo que a simples aparência de uma realidade manipulada, ou seja, não é somente
problemático o fato de a indústria cultural ter nas mãos a lógica da produção, mas porque
mediante seus mecanismos ela se infiltra até mesmo na estrutura da consciência dos indivíduos.
Aqui já se delineia o que os autores pretendem mostrar como sendo uma das
principais tentativas feitas pelo processo de mercantilização da cultura, que é o de realizar uma
falsa identidade entre o particular e o universal.4 Esta é uma promessa que não tem possibilidade
de ser cumprida, já que os bens culturais não oferecem oportunidades de uma oposição à
realidade, pois eles próprios são extensões dela. De acordo com os autores, “o todo e o detalhe
exibem os mesmos traços, na medida em que entre eles não existe nem oposição nem ligação”.5
Assim, o filme que se assiste é facilmente confundido com a realidade, pois a racionalidade
técnica empregada para a sua produção é a mesma existente na sociedade, ou seja, o mecanismo
que faz parte da lógica dos produtos culturais oferecidos pela indústria é uma contraparte
daquele que rege o funcionamento social, fazendo com que já não seja possível ao indivíduo
distinguir-se do meio em que vive.
Isso por dois motivos: primeiro, porque ao indivíduo é negada uma espécie de
dissolução da própria individualidade na contemplação estética, já que a arte não possui mais
aquela dimensão de universalidade oposta à particularidade. Isso fica mais claro na seguinte
passagem da Dialética do esclarecimento:

a reconciliação do universal e do particular, da regra e da pretensão específica do


objeto, que é a única coisa que pode dar substância ao estilo, é vazia, porque não
chega mais a haver uma tensão entre os pólos: os extremos que se trocam passaram a
uma turva identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa.6

Segundo, porque há nos produtos culturais um elemento objetivo que altera a


sensibilidade daqueles que com eles se relacionam. Nas palavras de Adorno e Horkheimer,
“atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa

2
Ibid., p. 114.
3
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, p. 114.
4
Ibid., p. 114.
5
Ibid., p. 118.

294
ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar
o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude da sua própria
constituição objetiva”.7 Disso resulta a resignação diante deles, já que não há uma consciência
forte o suficiente para suscitar a oposição. A reconciliação entre o particular e o universal,
portanto, é falsa e impossível de acontecer, uma vez que a obra de arte já não se opõe à
realidade, portanto, nada mostra de novo, apenas repete a estrutura social vigente. Assim, aquilo
que ela apresenta não é algo criado, que possa ser expressão de uma universalidade por dar
forma a um traço de existência na própria obra de arte, mas é simplesmente um produto
fabricado já segundo uma estrutura que deve ser aceita sem resistência pelos indivíduos. Isso se
relaciona àquela idéia de identificação presente na psicanálise, segundo a qual haveria a
internalização de uma autoridade externa no desenvolvimento do ego. Mas, como na sociedade
descrita pelos autores tal processo já não ocorre, o indivíduo só realiza essa identificação em
relação a si mesmo. Assim, não há uma reconciliação com um universal, mas com um ideal que
é mero reflexo do ego, portanto, um narcisismo que se manifesta na carência de um elemento de
diferenciação.
É nesse contexto que, para alcançar aquela identidade, a indústria cultural promete o
prazer, a diversão, o riso, todos como sinônimos de uma sublimação, a qual, na realidade, não
acontece, pois o que ela faz é exibir algo e, ao mesmo tempo, mostrar que ele não está ao
alcance do indivíduo. Conforme a psicanálise, a sublimação seria um modo de desviar as
pulsões para uma finalidade diferente da satisfação sexual. No caso da indústria cultural, porém,
não há como sublimar um impulso que já está reprimido por uma constante renúncia
experienciada pelo indivíduo. Como afirmam Adorno e Horkheimer,

a indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está
continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e
pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que
afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o
convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por
nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do
quotidiano cinzento ao qual ela queria escapar. De seu lado, as obras de arte
tampouco consistiam em exibições sexuais. Todavia, apresentando a renúncia como
algo de negativo, elas revogam por assim dizer a humilhação da pulsão e salvavam
aquilo a que se renunciara como algo mediatizado. Eis aí o segredo da sublimação

6
Ibid., p. 122.
7
Ibid., p. 119.

295
estética: apresentar a satisfação como uma promessa rompida. A indústria cultural não
sublima, mas reprime.8

Ademais, o narcisismo que se torna comum na sociedade da indústria cultural, fecha


as possibilidades para a resistência frente ao modelo que é imposto. Isso quer dizer que a
aceitação da realidade não apenas é fácil, como é de certa forma determinada. A renúncia da
realização das pulsões não ocorre ao preço de uma sublimação, pois o que surge no lugar dela é
o prazer e a satisfação de desejar, e não de possuir, nem mesmo de reorientar aquele instinto
para outra atividade. Ele fica do mesmo jeito como antes se encontrava, ou pior, ainda mais
reprimido pelos mecanismos empregados pela indústria cultural. Como afirmam os autores,
“não somente ela lhe faz crer que o logro que ela oferece seria a satisfação, mas dá a entender
além disso que ele teria, seja como for, de se arranjar com o que lhe é oferecido. (...) a indústria
cultural volta a oferecer como paraíso o mesmo quotidiano”.9
O trabalho mimético da indústria cultural não pertence apenas à esfera subjetiva, na
qual o indivíduo sofre um processo de identificação com aqueles ideais, mas também na própria
estrutura das mercadorias, que são produzidas segundo padrões sempre iguais, em seu caráter de
mesmice, de identidade e em que a distinção é mera aparência. E tais elementos encontram seu
correspondente na expectativa criada nos consumidores, que anseiam pela repetição e desejam a
novidade sem perceberem que ela é apenas um disfarce de algo que é sempre o mesmo. Nas
palavras de Adorno e Horkheimer, “quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam
os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o
prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. (...) A vida não deve mais,
tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro”.10 O que esse elemento mimético traz é
uma acomodação ao existente, pois aquela realidade, uma vez pronunciada pela indústria
cultural, converte-se em verdade, contra a qual o indivíduo não deve se voltar. Assim, se o filme
imita a vida, o que acontece nele (e é determinado segundo os padrões da indústria cultural),
ocorre necessariamente. O indivíduo já não existe como confrontação dessa realidade. Como
afirmam os autores, “a indústria cultural tem a tendência de se transformar num conjunto de
proposições protocolares e, por isso mesmo, no profeta irrefutável da ordem existente”.11
Além disso, podemos destacar as observações dos autores sobre o valor dos bens
culturais. Para Adorno e Horkheimer, o fato de a obra de arte se tornar uma mercadoria em que
o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso é que se torna problemático na sociedade

8
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, p. 130.
9
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, p. 133.
10
Ibid., p. 119.
11
Ibid., p. 138.

296
capitalista, pois com isso a arte foi banalizada. Se antes era o primeiro que predominava, ainda
se mantinha um respeito com a obra de arte, mesmo que fosse pela grande soma necessária para
dela se apropriar. Mas com o seu barateamento e fácil acesso, tem-se como resultado a
indiferença e até mesmo a vulgarização delas, já que as condições para a experiência artística
tampouco estão presentes naqueles que não receberam uma formação adequada para a fruição
estética. A crítica dos autores tem sua razão de ser, pois a banalização da arte, que também fazia
parte de uma verdadeira formação cultural do sujeito, distancia-se cada vez mais dessa intenção
e acaba por agir em sentido oposto, obstruindo a chance que os indivíduos poderiam ter de se
apropriar dos bens culturais de forma mediada.
Esses artifícios utilizados pela indústria cultural sugerem que o indivíduo ainda seja
constituído como tal, com liberdade de escolha, de desejo, de opinião, mas esconde que estas
são construídas quando ele se submete aos mecanismos. A formação dos ideais do ego é
importante para compreender a propaganda fascista e explicar como ela se disseminou tão
facilmente. Os indivíduos se identificam com o líder porque não há uma autoridade constituindo
seu próprio caráter e aquele que aparece na sua frente, então, é imitado.
Tais temas reaparecem nas Minima Moralia. Destacamos neste texto, principalmente a
impossibilidade de uma apropriação da cultura em decorrência dos esquemas da indústria
cultural. É nesta obra que a influencia de Benjamim pode ser percebida de forma mais explícita,
como, por exemplo, com a constatação de que as obras de arte perderam sua autenticidade. De
acordo com Benjamin, o que está ausente é “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única,
no lugar em que ela se encontra”12 e ele é incompatível com a reprodução, pois não diferencia
uma obra original de sua cópia, mesmo porque a produção em massa dá a todas o mesmo caráter
ou pode acentuar o detalhe que quiser daquela que seria a original. Cabe dizer que Benjamin
chega a reconhecer que a reprodução pode até não alterar o conteúdo da obra, mas, de qualquer
modo, afeta o “aqui e agora” que lhe é essencial, pois ele é “a quintessência de tudo o que foi
transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu
testemunho histórico”,13 o qual, justamente, lhe conferia a sua autoridade. E é esta que permitia
à obra ter uma significação, possível, por sua vez, somente dentro de uma tradição, mas
inexistente com a reprodução técnica. Tal conseqüência também é apontada por Adorno, no
sentido de que além da obra de arte perder seu sentido enquanto parte de uma tradição, na
medida em que passa a ser apenas um produto dentre outros oferecidos para as massas pela
indústria cultural – sem que aquelas estejam prontas para a recepção –, o que decorre daquela
perda é também a ignorância por parte do indivíduo em entender o contexto de criação da obra.

12
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 167.

297
Assim, tem-se uma total inaptidão para a apropriação da obra de arte, que pode ser vista tanto
como prejuízo para ela quanto para o indivíduo, que permanece alheio à importância dos bens
culturais. Tanto Benjamin quanto Adorno parecem concordar que a contemplação de uma obra
não se dá de forma imediata, nem apenas pela linguagem que ela apresenta em si mesma, ou
seja, não se compreende uma ópera apenas por meio do estudo da música erudita, mas,
sobretudo, pela tradição e pelo contexto em que a obra está inserida, que podem escapar mesmo
àqueles familiarizados com a técnica musical. De acordo com Adorno,

a crença, disseminada por teóricos da estética, de que a obra de arte, enquanto objeto
de contemplação imediata, deve ser compreendia apenas a partir dela mesma, não é
plausível. Ela não encontra seus limites meramente nos pressupostos culturais de uma
obra, sua “linguagem”, que só o iniciado é capaz de seguir. Mesmo quando não se
apresentam dificuldades dessa espécie, a obra de arte exige mais do que o simples
entregar-se a ela. Quem quiser achar belo O morcego, precisa saber que é O morcego:
é necessário que sua mãe tenha-lhe explicado que não se trata do anima lado, mas de
um traje de fantasia; ele precisa lembra-se de que lhe disseram: amanhã podes ir a O
morcego. Estar na tradição significativa: ter experiência da obra de arte como uma
obra reconhecida, tendo validade; nela participar das reações de todos os que a viram
antes. Se isso falta, então a obra está exposta em sua nudez e falibilidade. A ação
deixa de ser um ritual para tornar-se uma idiotice, a música, em vez de ser um cânon
de formulações significantes, torna-se choca e insípida. Efetivamente, não é mais tão
bela. É daí que a cultura de massas extrai seu direito de fazer adaptações. A fraqueza
de toda cultura tradicional afastada de sua tradição fornece o pretexto para melhorá-la
e, assim, desfigurá-la barbaramente.14

Essa passagem densa das Minima moralia comporta vários elementos pertinentes a
nossa investigação sobre a possibilidade ou não da arte na indústria cultural. Destacaremos aqui,
primeiramente, a concordância com Benjamin sobre a perda da autoridade da arte no contexto
de um mundo dominado pela técnica, que se dá na relação da significação da obra com a
recepção dela por parte do sujeito. Não se trata apenas de contemplá-la, pois sua estrutura, por si
mesma, não fornece as condições para sua apreensão. É por isso que a reprodução em massas
impede uma apropriação viva, na medida em que a cópia ou mesmo os produtos culturais em
geral adquirem o caráter trivial que pertence a qualquer outro produto oferecido pelo mercado.

13
Ibid., p. 168.

298
Da obra de arte é retirada, devido à sua grande disponibilidade, aquela autenticidade da qual
Benjamin falara e que conferia a ela sua autoridade e sentido. Nesse caso, Adorno parece
concordar com aquele, pois o conteúdo pode até ser preservado, mas como a obra de arte é
retirada de seu contexto, torna-se banal. A arte exige a experiência, pois é necessário que seja
assimilada por um exercício mediado, podemos até dizer no sentido kantiano, que o prazer que
com ela se obtenha seja oriunda de um livre jogo entre imaginação e entendimento, mas não
uma simples percepção. Só desse modo é possível participar da contemplação objetiva do belo,
aquela que somos permitidos a exigir também dos outros. É isso o que significa participar da
tradição, das experiências que outras pessoas tiveram frente à mesma obra de arte e entender o
significado dela em sua profundidade.
A indústria cultural não só oferece os produtos na condição de meros possuidores de
valor de troca, sem valor intrínseco, como também, pela configuração da criação e distribuição
deles, influencia a sensibilidade de modo a restringir o potencial que o indivíduo teria em se
apropriar da cultura. Nega, pela superficialidade com que apresenta as obras de arte, que a
contemplação precise de um momento e de um estado espiritual incompatíveis com aquele
desenvolvido pelo indivíduo, por exemplo, na realização de seu trabalho. A arte exige como
contrapartida para sua fruição, a constituição de um sujeito realmente capaz de contemplá-la e
não de um indivíduo que possa simplesmente comprá-la. Não é sem razão que Adorno critica o
mecanismo da indústria cultural por alimentar a ilusão dos consumidores em pertencerem a uma
espécie de “elite de estetas”, como se a posse da cópia de uma obra de arte lhes garantisse um
verdadeiro conhecimento (entendido aqui não no sentido conceitual) sobre o objeto de sua
contemplação. Tal ilusão se manifesta no fato de muitos terem reproduções em casa, de
poderem expressar opiniões sobre o que consideram belo, que geralmente é aquilo que recebeu
o “Imprimatur” da indústria e, ainda pior, por haver uma tendência em perceber a beleza em
todas as coisas. É o que está expresso na seguinte passagem: “na fase em que o sujeito capitula
diante da supremacia alienada das coisas, sua disponibilidade para perceber por toda parte algo
de positivo e belo indica uma resignação tanto da capacidade crítica quanto da imaginação
interpretativa, que é inseparável da primeira”.15 Numa sociedade marcada pela desigualdade
social tanto quanto cultural, não é possível que todos possam conhecer e apreciar as obras de
arte. Se isso acontece, é só na esfera da aparência. Entretanto, não se deve pensar que seja
preconceito por parte de Adorno, mas um efeito de sua consideração de que as condições
objetivas para a apreciação de uma obra de arte não coexistem com a indústria cultural. Esse é
um argumento plausível pela forma como, por exemplo, a indústria cultural retira dos seus

14
ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2. ed. São Paulo: Ática,
1993, 196, § 143.

299
consumidores a capacidade, na linguagem kantiana, de aplicarem as categorias aos objetos
sensíveis e, também, pela impossibilidade de uma estética baseada, como Kant defendia, na
finalidade sem fim.
A validade do gosto é posta em dúvida por Adorno, pois em meio a uma padronização
calculada pela indústria cultural, o juízo sobre o que é belo ou não fica comprometido pelo seu
próprio condicionamento. Em vez de ele provir da reflexão do indivíduo, surge como
conseqüência de uma imensa propaganda da indústria cultural, de um apelo para que se “fique
por dentro” das novidades. Perde-se a legitimidade do juízo de gosto por não ser este fundado
em nada senão aquilo que é conhecido ou que aparece na mídia. Como diz Adorno, “todo juízo
é aprovado pelos amigos, todos os argumentos eles já conhecem de antemão”.16 A determinação
prévia do que é a beleza – que pode ser qualquer coisa que “apareça” –, assim como o
condicionamento dos juízos proferidos pelos indivíduos, mostram, sobretudo, que a arte, ao
invés de ser concebida como “finalidade sem fim”, acaba por servir à ordem econômica da
sociedade. Ela é incluída na esfera dos produtos oferecidos pelo mercado, portanto, passíveis de
consumo, mas restringe-se a apenas isso, pois servem aos interesses econômicos e de
dominação. Para Adorno, é justamente a “finalidade sem fim” da arte que deveria ser
considerada como resistência a esse processo. Se fosse concebida de tal modo, ela teria a
capacidade de mostrar, na medida em que escapa ao imperativo de dominação da sociedade que
a tudo atribui uma utilidade, que outra realidade poderia ser construída.
Além da obra de arte perder seu elemento de autenticidade, extingue-se o que o autor
chama de “aura”. Na definição de Benjamin, ela é “uma figura singular, composta de elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”.17 É
aquele caráter de algo que existe somente naquele momento, que não pode ser apreendido
novamente e do mesmo modo, portanto, que conserva sua natureza única, original, singular e se
mostra apenas em si mesmo. Isso está em concordância com Adorno na medida em que este
defende uma posição crítica em relação à indústria cultural. O processo pelo qual ela opera atua
sobre a sensibilidade dos indivíduos, alterando não somente seu modo de perceber os objetos,
como Benjamin defende, mas, além disso, sua possibilidade de conhecê-los. Vimos,
anteriormente na observação de Adorno sobre a opereta O morcego, que uma obra de arte exige
para sua compreensão não somente um conhecimento técnico, mas, principalmente, da tradição
dentro da qual ela está inserida. E esta, assim como Benjamin mostrou, requer a “aura”, a
autenticidade da obra que faz dela algo único num certo momento histórico e garante também
sua autoridade. Mas se isso se extingue com o surgimento da reprodução em série dos bens

15
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 65, § 48.
16
Ibid., p. 181, § 132.

300
culturais, perde-se o contexto que fornecia significado às obras. Portanto, não há como
compreendê-las. Essa é apenas uma forma da impossibilidade de uma apropriação adequada dos
bens culturais. A perda da “aura” no sentido em que Benjamin se referiu também aparece nas
Minima moralia como a crítica ao caráter de “identidade” dos produtos culturais. Nas palavras
de Adorno,

o caráter sempre igual dos bens produzidos com máquinas, a rede de socializações
que por assim dizer captura e assimila os objetos e o olhar sobre eles transforma tudo
o que surge em algo já visto, em exemplar contingente de um gênero, em sósia do
modelo. A classe das coisas não premeditadas, desprovidas de intenção, a única onde
podem medrar s intenções, parece esgotada. É com ela que sonha a idéia do novo. Ele
mesmo inatingível, ele se instala no lugar do deus destronado, defronte à primeira
consciência do declínio da experiência.18

Uma conseqüência apontada na passagem acima é que a falta de autenticidade dos


produtos culturais enfatiza a idéia do novo. Uma vez que as mercadorias são sempre cópias e
não são criadas segundo aquela idéia do “aqui e agora”, não chegam a adquirir o caráter de algo
original. Para que sejam consumidas, os produtos devem ter o aspecto de novidade, algo
diferente que ainda não seja possuído pelos indivíduos. Isso explica, em parte, o surgimento de
uma nova “ontologia” da cultura, pois “ser” igualou-se, de certa forma, àquilo que “aparece”. O
anseio pelo novo reflete uma nova maneira de percepção por meio da sensação, a qual, por sua
vez, atesta o fracasso da experiência. Ao invés da arte contar com a mediação e assimilação da
experiência contida no ato da contemplação, é vista em sua imediatidade. Por isso, tudo aquilo
que é posto pela indústria cultural como novidade é recebido com excitação por parte dos
consumidores. Segundo Adorno,

ser ainda capaz de perceber alguma coisa, sem se preocupar com a qualidade,
substitui a felicidade, porque a onipotente quantificação tirou-nos a própria
possibilidade de perceber. No lugar da relação preenchida da experiência com a coisa
entrou algo meramente subjetivo e ao mesmo tempo isolado em termos físicos, a
sensação, que se esgota na oscilação do manômetro.19

17
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 170.
18
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 206, § 150.
19
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 206, § 150.

301
Para Adorno, “o fascismo era a absoluta sensação”20 e isso sugere o porquê da guerra
ter se tornado objeto da imensa propaganda. Segundo o autor, “no Terceiro Reich, o horror
abstrato das notícias e dos rumores era saboreado como o único estímulo capaz de acender por
alguns momentos o enfraquecido sensorium das massas”.21 Na guerra, a experiência é
substituída por uma sucessão de estímulos que não podem sequer ser elaborados. Quando ela é
transposta para o domínio da imagem, da propaganda, serve como acomodação dos sentidos,
uma vez que se aquilo que é exibido é a própria realidade, deve haver, de certa forma, uma
preparação para que ela seja enfrentada. Isso não significa criar resistência a ela, pelo contrário,
mostra que os sentidos acabam por tolerar a violência, pois sabem que ela pode ocorrer a eles a
qualquer instante. É nesse sentido que a guerra, ao ser “estetizada” devido à forma que lhe é
atribuída pelo mercado, torna-se também um objeto de fascínio, um espetáculo que desperta a
atenção e induz a aceitação da realidade por parte dos indivíduos.
O mesmo mecanismo da guerra opera na indústria cultural, pois como os bens
oferecidos pelo mercado são apenas feitos para um consumo imediato, sem o envolvimento de
qualquer faculdade, seja da imaginação ou do entendimento, como poderia ser colocado nos
termos kantianos, aquilo que for mais chocante, fascinante e capaz de abalar a percepção do
indivíduo, será sentido com prazer e desejado. E essas características estão presentes na idéia da
novidade, que reclama o desejo dos indivíduos em troca da possibilidade de felicidade e prazer,
pois ao colocar-se como algo diferente daquilo que existe, traz em si a esperança do progresso,
no sentido de um avanço para algo qualitativamente melhor. Mas, ao mesmo tempo, “o novo,
um lugar vazio na consciência, aguardando como que de olhos fechados, parece ser a fórmula
que permite extrair do horror e do desespero algo de estimulante”.22 É assim que ele é esperado,
mas na medida em que a indústria cultural oferece produtos que são sempre iguais ou variações
sutis de uma mesma coisa, muito mais que não cumprir sua promessa, ele pode ser visto como
uma ilusão, pois não existe. Nas palavras de Adorno, “hoje, o apelo ao novo, indiferente quanto
à sua espécie, desde que seja arcaico o suficiente, tornou-se universal, é o medium onipresente
da falsa mimese. A decomposição do sujeito se completa através de seu abandono à mesmice
diferente a cada vez”.23 Isso pode ser entendido no sentido de que os produtos culturais realizam
falsamente a identidade entre o particular e o universal, mas como não fazem oposição alguma,
são mera aparência desse pretenso contraste. Aquilo que aparece acaba por se tornar verdadeiro,
conseqüentemente, o indivíduo é levado a conformar-se com sua situação, a adaptar-se à

20
Ibid., p. 207, § 150.
21
Ibid., p. 206, § 150.
22
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 206, § 150.
23
Ibid., p. 208, § 150.

302
realidade que se lhe apresenta, pois não havendo diferença entre a própria vida e o que é
exibido, seja pela televisão, cinema ou jornal, não há confronto com uma realidade exterior.
Outro argumento retomado nas Minima moralia por Adorno e que já havia aparecido
na Dialética do esclarecimento é a idéia de que, falsamente, a indústria cultural procura fazer
acreditar que a necessidade de que existem certos produtos provém dos próprios consumidores.
No aforismo Serviço ao cliente, o autor procura mostrar que a indústria cultural age, em relação
aos seus consumidores, como se ela própria fosse cliente deles, ou seja, realizando uma inversão
dos papéis. Oculta, desse modo, que as necessidades, supostamente atribuídas aos indivíduos
são resultantes de um processo de dominação e de uma ideologia difundida pela indústria
cultural mesma. Segundo o autor, “não se trata tanto para a indústria cultural de adaptar-se às
reações dos clientes, mas sim de fingi-las. Ela as inculca neles ao se comportar como se ela
própria fosse um cliente”.24 Assim, ela gera a ilusão de que os indivíduos participam da
produção dos bens culturais, quando, na verdade, são manipulados para desejarem aquilo que o
mercado quer vender. Como afirma Adorno,

mesmo que as massas tenham, enquanto clientes, influência sobre o cinema, esta
permanece tão abstrata quanto os demonstrativos de receita, que substituem o aplauso
diferenciado: mera escolha entre sim e não a algo oferecido, inserida na desproporção
entre poder concentrado e impotência dispersa.25

O próprio juízo sobre o belo é condicionado, portanto, o gosto da massa é suspeito e


sua escolha por um ou outro produto não se deve a algo objetivo presente na mercadoria, mas a
padrões impostos pela indústria cultural. Se na esfera subjetiva já não há um sujeito autônomo
propriamente, mas indivíduos alienados e subjugado pelos mecanismos de dominação,
tampouco a esfera coletiva pode ser vista como detentora de poder ou comando sobre a
produção cultural, pois, de acordo com Adorno, “nenhuma coletividade, à qual a expressão do
sujeito se confiasse, é sujeito”.26 Não se pode exigir de uma coletividade não esclarecida que ela
possa ditar as normas sobre a estrutura dos bens produzidos. A impossibilidade de uma
apreensão adequada das obras de arte mostra isso: se os indivíduos não são capazes nem de uma
apropriação verdadeira da cultura, como estariam eles aptos a decidirem sobre a produção? A
indústria cultural desenvolve-se como um processo autônomo, do qual tanto os produtores
quanto os consumidores são apenas partes, mas que não deixa por isso de manter uma relação
com o status quo, dirigindo-se para a manutenção dele. Se a produção das mercadorias tem em

24
Ibid., p. 176, § 129.
25
Ibid., p. 179, § 131.

303
vista o lucro, como ela poderia estar em consonância com o gosto das massas, que supostamente
quereria se colocar numa situação de não-dominação? A concordância entre elas só pode se
efetivar se o gosto for idêntico ao que precisa ser para que haja lucratividade, portanto, mostra a
necessidade de uma conformação, obtida pela ilusão de uma integração dos particulares no
poder, pela alteração da forma de recepção dos produtos culturais, pelo desenvolvimento de um
mecanismo de acomodação dos sentidos que permite a conformação à realidade, assim como, e
em decorrência desses elementos, pelo enfraquecimento da subjetividade. Nas palavras de
Adorno, “a imediatidade, a comunidade popular produzida pelos filmes, conduz à mediação sem
resíduo, que rebaixa os homens e tudo que é humano a coisas de uma forma tão perfeita, que a
oposição deles às coisas, ou seja, o sortilégio da reificação, não pode mais ser percebida”.27
A naturalidade, ou melhor, o “pseudo-realismo” da indústria cultural, como o próprio
autor chama,28 é outra característica que sugere a fragmentação da experiência, portanto, da
própria subjetividade, na medida em que aquilo que é exibido, cabe dizer, produzido segundo
interesses do mercado, é tratado pelo indivíduo como algo real. Tal espécie de estrutura presente
nos bens produzidos, como nos filmes, por exemplo, suscitam o conformismo e a falsa
compreensão da realidade. O que é dito pelos noticiários acaba sendo apropriado,
imediatamente, como existente. E o que não aparece, é simplesmente ignorado pelos indivíduos.
Conforme Adorno, “caímos numa armadilha: o conformismo é produzido a priori pelo ato em si
de significar, pouco importando o que possa ser o significado concreto e, no entanto, somente
através do ato de significar poder-se-ia abalar o conformismo, a respeitosa repetição da
factual”.29
A reificação da subjetividade também pode ser imputada aos próprios artistas. Na
medida em que eles, segundo Adorno, renunciaram ao prazer infantil de imitar o exterior e
voltaram-se para o interior,30 transformaram sua subjetividade em mercadoria, algo que pode,
além de ser expresso, comunicado e vendido por meio do produto por eles criados. A exposição
da própria interioridade torna esta uma “coisa” que pode ser submetida à venda assim como os
outros objetos disponíveis para o consumo das massas. Isso se relaciona com um outro aforismo
das Minima moralia chamado Segunda colheita. Nele, Adorno fornece uma espécie de
definição para explicar o que seja o talento. Este, diz o filósofo,

26
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 193, § 141.
27
Ibid., p. 180, § 131.
28
Ibid., p. 124, § 93.
29
Ibid., p. 125, § 93.
30
Cf. ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 188, § 137.

304
talvez nada mais seja do que a fúria sublimada de um modo feliz, a capacidade de
transpor para a concentração de uma consideração paciente as energias que outrora se
intensificavam desmesuradamente para destruir os objetos recalcitrantes, e de não
largar mão do segredo dos objetos com a mesma insistência com que outrora a gente
não se dava por satisfeito enquanto não conseguia arrancar um gemido ao objeto
maltratado.31

Entretanto, o talento assim concebido é algo inexistente nos produtos dotados de um


caráter de reificação, pois neles a subjetividade se transforma em algo manipulável e já não
pode ser vista como algo próprio do indivíduo. Aquilo que aparece na obra, então, não reflete
nem mesmo um conflito interior entre o desejo de satisfazer as pulsões e a impossibilidade de
que isso aconteça. Como diz Adorno, “a transformação do conteúdo da expressão de um
impulso incontrolado em uma matéria manipulável torna-o, porém, ao mesmo tempo em que se
pode deitar as mãos, exibir, vender”.32 Quanto mais a interioridade passa a ser dominada, por
exemplo, para atender os padrões do mercado, mais ela se converte em objetividade,
contrariando a sua verdadeira natureza, no sentido de que a interioridade deveria ser sempre
subjetiva. Para Adorno, essa modificação que ocorre em relação à subjetividade do artista
significa o declínio da arte, pois o controle que é exercido sobre a interioridade acaba por fazer
com que o sujeito objetive a si mesmo. Esse processo se desenvolve como correlato da técnica,
pois esta tinha como objetivo a dominação da natureza exterior por meio do conhecimento e
controle dos objetos. Na arte, porém, ela se manifesta como domínio da natureza interior,
reificando a subjetividade para torná-la também um objeto passível de manipulação. É por isso
que Adorno pode dizer que “a cultura de massas contemporânea é historicamente necessária”,
pois assim como a razão instrumental é predominante na sociedade capitalista, para que possa se
desenvolver e se manter como tal, necessita de vários mecanismos de sustentação, como o é a
indústria cultural. A reificação da subjetividade, nesse sentido, condiz com o projeto do
esclarecimento em sua forma instrumental. É possível, conseqüentemente, constatar tanto a
impossibilidade de uma arte “verdadeira”, aquela que não se submete a essa estrutura exigida
pelo progresso da técnica, quanto a deformação da subjetividade, como decorrência necessária
do mecanismo de dominação da natureza.
Referências

31
ADORNO, Theodor W. Minima moralia, p. 95, § 72.
32
Ibid., p. 188, § 137.

305
Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1993.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras
escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.


Tradução Guido A. de Almeida . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

306
1

TEORIA CRÍTICA E RAZÃO INSTRUMENTAL: AS INTERFACES DO


PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO DA RACIONALIDADE EMANCIPATÓRIA EM
HORKHEIMER

Geraldo Balduino Horn


Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

1. INTRODUÇÃO

Esse artigo procura contextualizar um dos aspectos fundamentais da discussão sobre a


racionalidade, que é a relação entre razão instrumental e razão emancipatória. Assim, partir de
uma interpretação da proposição da Teoria Crítica problematiza os alicerces da importante
questão sobre a diferença entre a experiência e a reflexão.

Para evitar o deslize da subjetividade ou do abstrato Horkheimer propõe a Teoria


Crítica, cujos baluartes foram constituídos pela crítica à ideologia, ao dogmatismo da ontologia
e do positivismo, bem como ao materialismo ortodoxo. A proposta é de uma teoria não
arbitrária, não ocasional e não meramente especulativa, mas construtiva. Em certa medida é a
expressão da racionalidade, mas de uma racionalidade superior porque transcende à razão
idealista e positivista.

A adaptação do modelo das ciências naturais ao social, pelo positivismo, elaborou um


paradigma de neutralidade axiológica, respaldando os conflitos dos anos 20 a partir dos quais
foram pré-configuradas as catástrofes das décadas seguintes . A Teoria Crítica é a busca de uma
forma não alienada de teorizar o social, opondo-se a ciência utilitária que se apóia no avanço do
processo industrial capitalista. Nesse sentido, Horkheimer denuncia as bases da ciência
moderna que se funda na razão instrumental e no sistema burguês perverso, o que pode ser
percebido inclusive nas perseguições feitas pelo regime nazi-fascista aos integrantes da Escola
de Frankfurt face às posições críticas por eles assumidas.

Estruturalmente, o presente artigo está organizado de forma a mostrar, num primeiro


momento, as relações entre a Teoria Crítica e a Razão Instrumental, entendida aqui como
incapaz de realizar as potencialidades do ser humano, apesar dos espantosos avanços científicos
do séc. XX, tidos outrora como uma verdadeira panacéia dos males sociais e garantia de
felicidade futura para a humanidade. Num segundo momento, discute-se a questão das relações
entre a Teoria Crítica e a Razão Emancipatória, esta última entendida como possibilidade de
superação da razão instrumental, da ciência pautada pelo pensamento pragmatista, e colocada
como possibilidade de criticidade dos meios de produção excludentes e marginalizantes.

307
2

A guisa de conclusão destacamos alguns pontos que podem oferecer maiores


desenvolvimentos, como a tensão entre a prática social, por um lado e, de outro, do
individualismo, espontaneísmo e idealismo.

2. TEORIA CRÍTICA E RAZÃO INSTRUMENTAL

Horkheimer quando defendeu em 1922, sob orientação de Hans Cornelius, sua tese de
doutorado sobre o pensamento de Kant, intitulada Contribuição à antinomia da faculdade de
julgar teleológica, propôs um viés fenomênico disposto a superar a fenomenologia, porque não
desejava a simplificação de um retorno às coisas mesmas para abstrair a essência dos dados
originários da experiência submetida à intencionalidade eidética. Questionava tanto a
significação idealista dos conceitos quanto o enfoque exclusivamente causal e genético,
admitindo, contudo, que sob este prisma é realizada a descrição pura dos fenômenos ao invés de
situar-se apenas em sua reconstrução empírica. Isto porque os conceitos que elaboram o
conhecimento não podem ser dissociados da realidade, do todo e da experiência nesta realidade.
O conhecimento é construído através da experiência, não parcial, mas pautada em juízos de
valor caracterizados por sua universalidade, condição à liberdade da ação humana histórica e
cultural. Este pensamento influenciou tanto Horkheimer, como também os demais membros da
Escola de Frankfurt.

No século XX, principalmente nas primeiras décadas, a ciência adquiria uma posição
fundamental na sociedade, pois era associada ao progresso da técnica e objetivada na pujança da
industrialização e dos benefícios materiais decorrentes. As teorias da física atômica, relativa e
quântica de Bohr, Einstein e Heisenberg deslumbravam os investidores. O darwinismo que se
difundira através de Spencer e Lombroso, dentre outros, dava consistência científica à eugenia
e, conseqüentemente, à exacerbação nacionalista. Daí a naturalidade com que nazismo,
fascismo e racismos em geral passavam pela aceitação explícita ou implícita —
nesta última, via
omissão —
, da sociedade.

A transposição do capitalismo para o âmbito do imperialismo acirrou a disjunção entre


as classes sociais e a questão social que emergiu deste contexto de urbanização, industrialização
e expropriação, ao invés de ser tratada na condição de sua perversidade, consolidou o
positivismo Comteano, passando por Durkheim e Weber, credenciando a Sociologia como
ciência, bem como a utilização do método científico oriundo das ciências naturais para o trato
do homem e da sociedade. Enfim, o espírito cientificista foi propagado moldando teorias sob a
credibilidade da verdade possível, mensurável e comprovável, portanto inquestionável.

308
3

O desenvolvimento dos meios de comunicação varreu o Ocidente com o new way life,
introduzindo-o no Oriente, modelo que se alimenta do consumo, realimentando-o e criando-o
como um novo e mais danoso fundamentalismo, substitutivo do anterior que era constituído
pela religião.

Para este tempo entre guerras mundiais o cessar fogo não possuía o sentido da
terminalidade, mas apenas o de um intervalo para uma reorganização que possibilitasse a
recrudescência do poder destruidor que se agigantava. Foi neste contexto de agitações,
contradições, tumultos e transformações que a Escola de Frankfurt se organizou e, sob o destino
de seus integrantes, tornou-se itinerante, ou seja, iniciou seu próprio êxodo, vivências que se
estabeleceram como referentes à Teoria Crítica.

Em Eclipse da razão: Crítica da razão instrumental, Horkheimer aprofunda o conceito


de racionalidade que, segundo seu próprio entendimento, está na base da moderna cultura
industrial. Afirma que o conceito de racionalidade que a civilização industrial tomou como base
está comprometido pela raiz, isto é, a doença da razão encontra-se no fato de que ela nasceu da
necessidade que o homem possui de dominar a natureza. Isso também fica claro na análise de
Almeida quando afirma que:
O esclarecimento cumpre seu programa através da progressiva dominação da natureza.
Esta perde suas qualidades, passando a ser considerada apenas enquanto objeto da
dominação. Submetido ao primado da calculabilidade, o mundo torna-se uma incógnita
a ser deduzida. A contrapartida disso é redução do saber à técnica e ao método. O
conhecimento passa a ser medido por sua eficácia e a razão instrumentalizada torna-se
fundamento do poder. (ALMEIDA, 1997, p.4-5).

É próprio da concepção moderna de ciência, o fato de o homem dominar a natureza


beneficiando-se dela para satisfazer as suas necessidades. Ocorre, no entanto, que essa vontade
de dominar a natureza, de compreender suas leis para submetê-la, exigiu do homem a
instauração de uma organização social de caráter burocrático e impessoal, que em nome da
razão reduziu-o a mero instrumento. Isso mostra em certo sentido que os avanços técnicos que a
sociedade de hoje alcançou não garantem a segurança e o domínio dos efeitos da ação humana
sobre a natureza e sobre o próprio homem, o que pode, por um lado, refletir positivamente no
campo da ciência e do progresso tecnológico, mas por outro, pode gerar medo e desilusão na
medida em que as esperanças e os anseios da humanidade parecem mais longe e mais difíceis de
se concretizar do que em tempos passados. Em relação a esse aspecto é importante ressaltar a
interpretação de KURZ:

309
4

A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem


degrade o próprio homem a mero objeto da natureza [...] Os mais antigos esboços da
vontade (ainda impotentes) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história – no
próprio ‘pré-animalismo’ já se acha ‘a separação entre sujeito e objeto’. Mas se o
homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza
predominante e buscava conjurar sua impotência com assimilações mágicas de objetos
naturais (mimese), mito por sua vez dá início à objetivação: ‘o mito já é o
Esclarecimento’ e ‘Esclarecimento é a angústia mítica tornada radical. (KURZ, 1997, 5-
5).

Horkheimer percebeu o aspecto paradoxal e contraditório da razão humana que produz


conhecimentos técnicos ampliando o horizonte do pensamento e da ação humana, ao mesmo
tempo diminuindo a autonomia do homem como indivíduo, como ser independente e capaz de
juízo próprio. Assim, o progresso técnico ao invés de iluminar a mente do homem, ao contrário,
ameaça desumanizar e destruir seu projeto humano.

Forte ilustração dessa perspectiva encontra-se nas artes daquela época, de um modo
geral e, mais particularmente, no cinema. Filmes como a película “Tempos Modernos”
(realizada por Charles Chaplin, em 1936), aludem à automação do próprio ser humano,
transformado, de certo modo e em determinada medida, num mero instrumento, mais uma peça
do maquinário em que opera. É famosa a cena do operário que acaba sendo engolido pela
máquina na fábrica. Ferramenta inconsciente dos processos de produção capitalista, o ser
humano torna-se como que objeto dos aparelhos e utensílios que ele próprio fabrica nas linhas
de produção das indústrias. Denuncia assim, igualmente, a perda de sentido do trabalho
humano. Limitado a atividades massificadoras e enfadonhas, o trabalhador prescinde de
qualquer possibilidade de exercitar sua capacidade criativa enquanto ser capaz de agir e
transformar a realidade.

Ironicamente, a atualidade dessa análise aponta uma sociedade como a de hoje, onde
toda tentativa de dominação da natureza desemboca na criação de um mundo hostil,
representado por uma sociedade de alta competitividade. Os códigos de conduta e inserção
profissional sofisticaram-se de tal maneira e a tal ponto, que uma pessoa, até estar
razoavelmente apta, precisa estudar por cerca de quinze anos, preparando-se arduamente para
exercer uma atividade profissional que lhe possa conferir autonomia, liberdade e independência.

A emancipação, o poder de crítica e de criatividade do homem, a própria idéia de


humanidade encontram-se ameaçados pelo sistema da civilização industrial que substituiu os

310
5

fins pelos meios transformando a razão em instrumento para atingir determinados objetivos, nos
quais a razão não mais se reconhece.

Quanto à natureza, sofreu também por conta dos excessos autodestrutivos de uma
racionalidade voltada a exarcebação dos lucros. A extração indiscriminada de recursos naturais,
tanto renováveis quanto não-renováveis, tornou o planeta muito vulnerável. Isso criou um
desajuste quase que irreparável do ponto de vista biológico. Essas observações concorrem para
demonstrar mais uma vez as contradições de um sistema que deveria garantir sua própria
sustentabilidade, mas em vez disso, se aniquila paulatinamente a si mesmo, esgotando suas
últimas reservas.

Na verdade, há um deslocamento do sentido clássico da razão: razão objetiva enquanto


princípio imanente da realidade. Trata-se agora da razão subjetiva como capacidade de calcular
probabilidades e coordenar os meios adequados com dado fim, podendo o pensamento servir
para qualquer fim ou objetivo estabelecido pelo sistema.

... tendo renunciado a sua autonomia, a razão tornou-se instrumento. No aspecto


formalista da razão subjetiva, destacado pelo positivismo, põe-se em relevo a sua
independência em relação ao conteúdo objetivo; no aspecto instrumental, destacado
pelo pragmatismo, põe-se em relevo sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão
encontra-se agora completamente subjugada pelo processo social: o seu valor
instrumental, a sua função de meio para dominar os homens e a natureza, tornou-se o
único critério. (HORKHEIMER, in. REALE; ANTISERI. 1991, p. 848)

Ao lado da crítica à visão absolutista de razão e de sua adequação ao modo de produção


capitalista, surgem os primeiros passos da construção da teoria crítica. A teoria no sentido usual
da pesquisa científica, segundo HORKHEIMER (1991), é entendida como conjunto de
proposições, ligadas entre si, de um determinado campo do conhecimento humano, resultando
em princípios mais elevados e, em termos de conclusões, quanto menor for o número de
princípios mais completa será a teoria. A validade efetiva de uma teoria é medida pela
coerência das proposições deduzidas e os fatos na sua existência real. A constatação de
contradições entre a teoria e a experiência implica numa revisão de ambas para detectar se a
falha está nos princípios ou na observação feita. É certo, no entanto, naquilo que concerne aos
fatos que a teoria permanece sempre hipotética, podendo ser alterada “... sempre que se
apresentem inconvenientes na utilização do material.” (HORKHEIMER, 1991, p.37)

A teoria tradicional, de certa forma, aproxima-se da concepção moderna de teoria: teoria


como modelo explicativo de um fenômeno ou conjunto de fenômenos que pretende estabelecer

311
6

a verdade sobre esses fenômenos, determinando sua natureza. Ou ainda, como um conjunto de
hipóteses sistematicamente organizadas que pretende, através de sua verificação, explicar uma
determinada realidade.

As proposições mais gerais de onde partem as deduções são vistas conforme a


respectiva posição filosófica do lógico. Para John Stuart Mill , por exemplo, elas são
ainda juízos empíricos (Erfahrungsurteile), induções; nas correntes racionalistas e
fenomenológicas são consideradas intelecções evidentes (evidente Einsichten),
enquanto a moderna axiomática as toma como estipulações arbitrárias. [...] Os
empíricos não tem outra representação melhor de teoria do que os teóricos. Estão
meramente convencidos de que em vista da complexidade dos problemas sociais e do
quadro atual da ciência, o trabalho com princípios gerais deve ser considerado como
ocioso e cômodo. [...] São os métodos de formulação exata, especialmente métodos
matemáticos, cujo sentido está em estreita conexão com o conceito de teoria esboçado
acima, que são muito apreciados por estes cientistas. Não é o significado da teoria geral
que é questionado aqui, mas a teoria esboçada ‘de cima para baixo’ por outros,
elaborada sem o contato direto com os problemas de uma ciência empírica
particular.(HORKHEIMER, 1991, p.32-33).

O ponto de partida para entender os pressupostos da teoria tradicional, para Horkheimer,


consiste exatamente em situar o conceito de teoria que está no bojo da epistemologia moderna:
A representação tradicional de teoria é abstraída do funcionamento da ciência, tal como
este ocorre a um nível dado da divisão do trabalho [...] Nesta representação surge,
portanto, não a função real da ciência nem o que a teoria significa para a existência
humana, mas apenas o que significa na esfera isolada em que é feita sob as condições
históricas. (HORKHEIMER, 19991, p.37).

Metodologicamente, a teoria da ciência tradicional permanece alheia ao conhecimento


que se pretende por meio da ciência. Torna-se nula. Se o conhecimento científico não pode estar
dependente das condições materiais que não podem interferir nos processos decisórios de
encaminhamentos das pesquisas, é certo também que não pode simplesmente alienar-se da
realidade em que se processa, a pretexto de cientificidade ou imparcialidade. A teoria
tradicional peca principalmente quando não consegue libertar o ser humano de suas próprias
implicações metodológicas, quais sejam, os limites impostos pelo desenvolvimento particular de

312
7

cada ciência, com seus problemas específicos, que não podem ser tratados adequadamente
quando considerados de maneira generalizadora.

Portanto, é na crítica ao método da teoria de ciência tradicional que se encontram os


fundamentos para elaborar uma nova teoria: a Teoria Crítica. O autor diferencia a teoria
tradicional da crítica da seguinte maneira:

A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em todas


as ciências especializadas, organiza as experiências à base da formulação de questões
que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual [...] a
teoria crítica não almeja de forma alguma apenas uma mera ampliação do saber, ela
intenciona emancipar o homem de uma situação escravizadora. (HORKHEIMER, 1991,
p. 69-70).

O papel da ciência como forma de libertação social confere à Teoria Tradicional um


poder que ela pretensamente deveria possuir, o de controle sobre os fatos que investiga. Cria-se
assim um impasse, porque tal determinismo não vale sequer para as ciências ditas exatas, quanto
mais para as humanas. O problema é que, a rigor, não se pode pré-determinar os resultados das
investigações científicas, e muito menos pretender um modelo teórico que não leve em conta as
profundas diferenças entre as ciências naturais e as humanas.

Pode-se inferir daí que o pensador associou a Teoria Tradicional à teoria no sentido da
ciência propriamente dita, entendendo ciência como
...ordenação dos fatos de nossa consciência que ela permite, finalmente, alcançar cada
vez, em um lugar exato do espaço e do tempo, aquilo que exatamente deve ser esperado
ali. O mesmo vale para as ciências humanas: quando um historiador afirma algo com
pretensão à cientificidade, deve-se estar em condições de encontrar sua afirmação nos
arquivos (HORKHEIMER, in.: MATTOS, 1995, p.88).

A Teoria Tradicional é entendida como ciência, mas no sentido positivista do conceito,


visto que o objetivo da ciência é a exatidão, a ordem dos fatos, conhecer as leis dos fenômenos
para prevê-los e modificá-los em nosso benefício, como defendia Comte.

Assim, a teoria tradicional se insere no conjunto do pensamento racionalista e


racionalizante, ordenador, no sentido cartesiano do termo. Um mundo assim postulado favorece
todo tipo de dogmatismos que podem resultar, no campo político-social, em regimes total-
totalitários.

313
8

Isso se explica pela tendência ao controle determinístico dos fatos e ações engendrado
por meio de proposições da razão instrumental, notadamente formalizantes. Trata-se de uma
forma de pensamento que visa à perpetuação, validade universal, e necessidade, o que
desemboca num engessamento aparentemente natural das práticas sociais e políticas, bem como
um recuo no campo das artes e outras áreas do conhecimento humano para as quais são
imprescindíveis as condições de autonomia criativa e a extrapolação constante de conceitos
fortemente arraigados.

3. TEORIA CRÍTICA E RACIONALIDADE EMANCIPATÓRIA

Uma das indagações da Teoria Crítica refere-se à falta de reflexão sobre o sentido da
cientificidade, isto é, a própria ciência não explica porque põe em ordem os fatos numa
determinada direção e não em outra, nem porque se concentra em certos objetos deixando
outros de lado. Falta à ciência uma reflexão sobre si mesma, é com essa indagação que a Teoria
Crítica começa a se afirmar nos anos 20 tendo como idéia principal à busca de uma sociedade
melhor. Daí porque pesquisar com olhar crítico tanto em relação à sociedade quanto à ciência
dominantes. Os temas publicados pela Revista para a Pesquisa Social são a expressão clara da
denúncia contra o fascismo (nacional-socialismo na versão Alemã) e o comunismo terrorista
(stalinismo soviético) e ao mesmo tempo a defesa em favor da revolução, a partir dos
dominados como Marx a concebeu – com o mesmo pressuposto de uma sociedade justa -
tornando assim também o pensamento mais justo.

A Teoria Crítica, na origem, possuía um posicionamento que difere em muitos aspectos


comparada à Teoria Crítica atual, consolidada nos anos 60 e 70. O pensador apontou para
alguns dos motivos que justificaram essa mudança:

A primeira razão foi constatar que Marx se equivocou em diversos pontos [...] Marx
afirmou que a revolução seria o resultado de crises econômicas cada vez mais agudas,
crises ligadas a uma pauperização crescente da classe operária em todos os países
capitalistas. Isso, pensava-se deveria conduzir finalmente o proletariado à por fim a esse
estado de coisas e criar uma sociedade justa. Começamos a perceber que essa doutrina
era falsa, pois a situação da classe operária é sensivelmente melhor que na época de
Marx. De simples trabalhadores manuais que eram, inúmeros operários tornaram-se
funcionários com um estatuto social mais elevado e um melhor nível de vida [...]
Segundo, as crises econômicas de impasse estão cada vez mais raras. Podem, em larga
medida, ser contornadas graças a medidas políticas econômicas. Por último, aquilo que
Marx esperava da sociedade justa é falso – não fosse por outra razão -, este enunciado é

314
9

importante para a Teoria Crítica, porque a liberdade e a justiça tanto estão ligadas
quanto opostas. Quanto mais justiça, menos liberdade. Se quisermos caminhar para a
equidade, devem-se proibir muitas coisas aos homens, notadamente de espezinharem
uns aos outros... (HORKHEIMER, in.: MATTOS, 1995, p.89-90).

Então, não se trata de adotar um critério de aplicabilidade das ciências para medir o grau
de adequação da racionalidade vigente às necessidades humanas. O próprio avanço tecnológico
mostrou ser possível melhorar a vida do trabalhador em termos de conforto material. A razão
emancipadora não serve apenas a isso, mas à condição humana superior, no sentido da
possibilidade de descoberta e apreensão de um mundo novo, dinâmico, sempre em construção.
Esse constante desenvolvimento atinge seu ápice na própria elaboração dos princípios pelos
quais a razão se concretiza como instrumento, digamos assim, para o pensamento, em sua
elaboração formal – com a postulação de princípios ou axiomas até o momento intransponíveis,
exigidos pelas descobertas da física quântica.

A lei da indeterminação (princípio da incerteza), postulado por W. Heisenberg aceita a


possibilidade de que existam certos domínios da natureza onde nossa racionalidade clássica não
funcionaria adequadamente. A própria mecânica quântica questiona o conceito de objeto físico
clássico, o que demonstra mais uma vez a necessidade de superação da razão instrumental, cujo
arcabouço teórico nem mesmo pode manter-se, face às incríveis descobertas científicas de nosso
tempo, que tendem a crescer cada vez mais.

Horkheimer contrapõe sua teoria tanto à racionalidade instrumental quanto ao


pragmatismo cultural, mostrando a parceria entre Iluminismo e utilitarismo técnico. Considera
que a teoria tradicional emergindo da lógica cartesiana às adequações positivistas da indução
das ciências naturais, elabora enunciados a partir dos quais outros devem ser derivados,
submetidos à experiência e transformados em teorias. O processo verificatório empírico não
pode assumir importância maior do que o sentido construtivo que caracteriza a teoria.

Ele traz para o terreno filosófico, em oposição ao positivismo que propõe a


imparcialidade na relação sujeito e objeto, a visão contemporânea da física quântica que
assevera sobre a interferência do sujeito sobre seu objeto de estudo e vice versa, tanto na
própria física como nas ciências naturais, portanto, de forma ampliada na área de humanas e
sociais.

A práxis onde se efetiva o desenvolvimento da racionalidade emancipatória exige um


processo de reflexão radical acerca dos fenômenos. Em sentido kantiano do esclarecimento –
passagem da minoridade à maioridade –, busca os fundamentos, os significados e o rigor

315
10

necessários para garantir ao sujeito a coerência e o exercício da crítica sistemática no tratamento


e compreensão desses fenômenos.

A Teoria Crítica, além de diferir dos métodos científicos convencionais, inclusive das
ciências humanas, na medida em que não estabelece discursos limitados a fatos e coisas (ao
contrário, busca relacionar convergências e divergências, concepções teóricas e fatos históricos
evidenciando questões e desafios que são suscitados pelas mudanças de valores e paradigmas
sociais), estabelece uma relação efetiva, indissociável, entre teoria e prática. Isto é, propõe um
conhecimento ativo que se vincula diretamente à realidade histórico-existencial. Propõe, na
verdade, uma práxis que encontra na pólis o espaço onde o cidadão conquista sua cidadania.
Esse espaço pode ser entendido, em última instância, como o campo onde se realiza e efetiva a
sua formação humana.

4. CONCLUSÃO

A teoria não é conclusiva e se constitui na tensão entre experiência e reflexão. Por um


lado, a experiência não pode dar um sentido absoluto ao conhecimento adquirido, nem
tampouco servir puramente de base para a racionalidade humana, uma vez que tornaria esse
conhecimento altamente subjetivo, tomando por referencial hábitos e costumes oriundos não de
um processo intelectual de conhecimento teórico, mas de um modo particular da percepção. Por
outro lado, a reflexão mostra-se igualmente insuficiente, pois postula axiomas de modo
totalmente arbitrário, pautada numa racionalidade muitas vezes determinada por uma forma de
pensar tradicionalmente aceita, equivale dizer, bitolada.

Conforme apontamos ao longo do artigo, o mundo das descobertas científicas, atreladas


ao alto desenvolvimento tecnológico adquirido pelo patamar atingido nas instituições científicas
de pesquisa tornou-se mais complexo do que jamais esteve apresentado ao ser humano.

Nesse sentido, Horkheimer estabelece uma crítica ao transplante do modelo indutivo


das ciências naturais para as ciências humanas; em relação a Kant ele critica o sujeito do
conhecimento, em Hegel o fato de atribuir à razão um patamar de história universal e objetiva.
Assim, a teoria crítica se constrói em tensão, de um lado, com o espontaneísmo, idealismo e
individualismo e, de outro, da prática social.

316
11

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, J. A promessa de libertação. In Folha de São Paulo. São Paulo, 24 de agosto de


1997.

HORKHEIMER, M.. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor, 1976.

_____. Teoria Crítica I. Trad. Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva,1990.

_____. Teoria Tradicional e Crítica. Filosofia e Teoria Crítica. São Paulo: Nova Cultural,
1991.

KANT, I. Textos Seletos. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1974.

_____. Sobre a Pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Unimep, 1996.

KURZ, Robert. Até a última gota. In Folha de São Paulo. São Paulo, 24 de agosto de 1997.

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã I. São Paulo : Martins Fontes, 1976.

_____; _____. A Sagrada Família ou Crítica da crítica crítica: contra Bruno Bauer e
Consortes. São Paulo: Martins Fontes. s/d.

_____; _____. Textos. V. I. São Paulo: Edições Sociais,1975.

MATTOS, Olgária. C. F. A escola de Frankfurt, São Paulo: Moderna, 1995.

REALE, G; ANTESERI, D. História da Filosofia. Vol.III. São Paulo: Paulus, 1991.

317
O PROBLEMA DO TECNOCENTRISMO E A QUESTÃO PEDAGÓGICA

Gildemarks Costa e Silva


Professor Introdução à Educação/DFSFE/UFPE

1. Introdução

Neste texto, procura-se apresentar os principais elementos teóricos da pesquisa de


doutorado A tecnologia como um problema para a teoria da educação, defendida na Faculdade de
Educação da UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Sílvio Ancizar Sanchez Gamboa
(FE/UNICAMP). Nessa apresentação geral da estrutura da pesquisa, o diálogo entre os “estudos da
tecnologia” e os “estudos da educação” ganha destaque, procurando, assim, fazer emergir a
tecnologia como um problema para o campo pedagógico.
Nesta pesquisa, de natureza teórica, tem-se por objetivo central interrogar e compreender a
crítica da tecnologia no pensamento de Andrew Feenberg, tendo como horizonte pensar a relação
tecnologia e educação. Procura-se, com isso, contribuir para a superação do problema – em especial
no campo educacional - do tecnocentrismo, que significa a visualização da tecnologia como um
destino e não como uma possibilidade (a cega idolatração ou a irracional negação do fenômeno
tecnológico). Não é sem razão, portanto, que a tecnologia, embora seja parte constituinte de
poderosos processos e modalidades de ação que modelam a existência humana (FEENBERG, 1991;
MARTINS, 1998; 2003), é pouco vista como objeto de análise teórico-crítica por parte das
humanidades (FEENBERG, 1991; 2001) e da teoria da educação (PUCCI, 2003; CROCHÍK,
2003). Destaca-se que “a crítica da sociedade deveria implicar, também, a crítica dos instrumentos
técnicos, considerando-se estes últimos representantes das relações dos homens com a natureza e
dos homens entre si, em determinado momento histórico” (CROCHIK, 2003, p. 99). A hipótese
central que norteia este trabalho é que a teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg permite as
bases para se aprofundar o diálogo entre moderna tecnologia e educação. Espera-se demonstrar,
ainda, que a tecnologia pode ser considerada como um elemento chave na compreensão da
sociedade moderna e, portanto, a compreensão dela não pode se reduzir à dimensão instrumental do
fenômeno, o que exige uma abordagem teórico-crítica ao problema por parte da teoria da educação.

318
2. O tema da tecnologia

A preocupação com o tema da tecnologia não é recente. O fundamental, porém, é que,


embora alvo de preocupação há alguns anos, a questão da tecnologia ingressa no século XXI como
tema merecedor de reflexões, contestações, provocações; é um tema que continua inquietante. O
termo provocação não está evidentemente destituído de sentido nesse contexto, pois só os que estão
seguros na defesa de que o atual desenvolvimento tecnológico não deve ser questionado é que se
sentem provocados por reflexões que procuram aprofundar os caminhos desse desenvolvimento; e,
como nota Heidegger (2001), só os que estão seguros de sua ciência é que se sentem incomodados
com a reflexão que trilha os caminhos do pensamento livre.
De fato, a tecnologia é um dos principais problemas teóricos e práticos do atual século. Da
Engenharia à Sociologia da ciência, da História à Biotecnologia, da Antropologia aos Estudos
Sociais da Ciência, da Física/Química/Matemática à Pedagogia/Psicologia/Economia, passando
pelas Ciências da Computação, ecoam questões que envolvem a condição tecnológica. Não só! O
tema não se restringe ao universo acadêmico e um observador mais estimulado não terá dificuldade
de encontrar nas transmissões televisivas, nos jornais, nos mercados, nas praças, nos diálogos do
cotidiano, elementos teóricos problematizadores da referida temática.
No caso específico das Ciências Humanas, a tecnologia tem sido temática recorrente. Para
Sterne (2003), se as Ciências Humanas passaram por uma virada hermenêutica nos anos 1970 e
1980, ao que parece, a partir das décadas de 1990 e 2000, talvez elas estejam passando por uma
virada tecnológica. Para Sterne (2003) não há, porém, como fazer uma correlação direta entre as
duas perspectivas, uma vez que, atualmente, as administrações das universidades têm muito mais
interesse naquilo que denominam de tecnologia do que tinham na questão da hermenêutica. De
acordo com o autor, sobre o que se denomina tecnologia, as universidades têm criado novas
faculdades, departamentos, novas iniciativas de ensino e novos temas de pesquisa. E, nesse
contexto, complementa o autor, não são poucos os recursos financeiros para os pesquisadores
interessados em determinadas questões da tecnologia ou, mais diretamente, para os pesquisadores
interessados em efetuar determinadas aplicações da tecnologia digital para o campo dos negócios,
da pesquisa e das tarefas pedagógicas.
Esse universo, aparentemente estimulante, coloca, no entanto, empecilhos para uma
consistente pesquisa nas Ciências Humanas sobre questões como as características da moderna
tecnologia, seus efeitos sociais, a relação ciência e tecnologia, a interação tecnologia e progresso, o

319
conceito de ser humano na sociedade tecnológica e, mais especificamente, a relação tecnologia e
educação - para mencionar alguns temas.
De fato, existem muitas forças que estimulam a colocar certas questões para a tecnologia,
para definir a tecnologia de certa maneira em exclusão de outras formas, e aceitar os termos do
debate público para os programas de pesquisa. Os problemas de pesquisa podem, por um lado,
parecer evidentes, conforme o pesquisador se relacione com a tecnologia como consumidor, leitor
de jornais, usuário, investidor etc.; mas também pode a questão da tecnologia ser a afirmação de
uma certa autonomia relativa do intelectual frente à preocupação dos meios de comunicação, dos
empresários, do lucro, e colocar questões que estes não fazem, não podem fazer, ou não farão. E
esta é a perspectiva que neste trabalho se pretende aprofundar: interroga-se a análise teórico-crítica
à questão da tecnologia no pensamento de Andrew Feenberg. Quais os principais elementos
teóricos da teoria crítica da tecnologia? Como ela supera o problema do tecnocentrismo? Até que
ponto a proposta de Andrew Feenberg permite uma abordagem teórico-crítica à questão da
tecnologia? Com base no arcabouço teórico proposto pelo autor, como é possível pensar a relação
moderna tecnologia e educação? Em síntese: Quais as contribuições da teoria crítica da tecnologia
para se pensar a relação tecnologia e educação?
É provável que as pressões institucionais e econômicas sobre os pesquisadores tenham
proporcionado a ausência de um aprofundamento sistemático e crítico sobre a questão da tecnologia
nos últimos anos. Com efeito, a tecnologia, que parece ser um dos “metarrelatos” do Século XXI
(FEENBERG, 1991), um dos “grandes acordos sociais”, algo de inserção social cada vez maior,
contraditoriamente, apresenta-se para parte da academia, dos políticos e o cidadão comum, como
tema não merecedor de reflexão teórico-crítica, ou algo que possa sofrer uma abordagem digna dos
grandes temas humanísticos, ou, até mesmo, algo que possa ser inserido no universo cultural. Em
resumo: a tecnologia é vista, por muitos, como um destino e não como uma possibilidade.
Não há, porém, como negar que a revolução tecnológica existe, e, como expõe Klinge
(2003), as possibilidades de retorno são nulas. De fato, Feenberg (1991; 2001) aponta com precisão
que posições que propõem uma saída ahistórica para o problema da tecnologia - talvez em alusão a
um controle da tecnologia por dimensões que lhe são externas - e fazem apologia a um mundo não
tecnológico não se sustentam. A não existência da possibilidade de retorno não significa, contudo, a
condição de refém do desenvolvimento tecnológico e de aceitação das escatologias teóricas de um
progresso contínuo da tecnologia. Neste trabalho, concorda-se com Klinge (2003), para quem as
abordagens sobre a tecnologia sofrem, no momento, por excesso de tecnocentrismo (visualizar a

320
tecnologia como um destino e não como possibilidade) e, em conseqüência disso, não encontram o
caminho a seguir. O fato é que “tudo isto evidencia a importância de fazer uma reflexão que aborde
seriamente o fenômeno tecnológico e suas conseqüências sobre a humanidade” (Klinge, 2003, p. 1).
O problema da técnica “(...) e de sua relação com a cultura e a História não se põe até o
século XIX” (SPENGLER1, 1932, p. 13), embora tenha raízes profundas. Como esclarece Klinge
(2003), o tema acompanha os seres humanos desde a Antigüidade e é possível encontrar em
Aristóteles, na Metafísica, a referência ao fato de que o ser humano vive pela arte e o raciocínio
(technei kai logismos). “Este conceito de techne – já foi traduzido como arte, ciência e
procedimento, simultaneamente – constitui a base a partir da qual se desenvolveram a técnica e a
tecnologia” (KLINGE, 2003, p. 2). É evidente que, após 2000 anos, os conceitos não têm o mesmo
significado, porém a reflexão aristotélica ilustra que a preocupação com a tecnologia tem um longo
percurso. Aliás, sobre a relação técnica-tecnologia, aceita-se, por ora, “por razões de clareza uma
equivalência no fundamental da técnica com a tecnologia, precisando, entretanto, que a tecnologia
agrega um componente teórico que a técnica não tem” (KLINGE 2003, p. 2).
De fato, Klinge (2003) coincide sua análise com a de Spengler (1932) ao observar que,
embora o assunto técnica apareça integrado a outras reflexões durante séculos, somente no século
XIX o tema obtém a centralidade que detém no momento. Nesse século, a técnica conquista o status
de assunto independente, impõe-se como problema social e exige reflexões sobre sua natureza e
suas conseqüências para a humanidade. “Pouco a pouco começará a constituir um fenômeno
singular, isolável do resto dos fatores da realidade” (KLINGE, 2003, p. 2). O autor esclarece que é
possível observar, por exemplo, a preocupação com o fenômeno da técnica na literatura do século
XIX, com a obra de Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) e, mais fortemente, na segunda metade
do século XIX, com o gênero literário denominado de “antecipação”, com as obras exemplares de J.
Verne (1828-1905) e H. G. Wells (1866-1946).
No mesmo período, a filosofia do século XIX volta-se para o problema da tecnologia: “(...)
o filósofo alemão Ernst Kapp (1808-1896) definirá o termo filosofia da técnica. Influenciado pelo
pensamento de Hegel e de Ritter, vai desbravando o caminho desta reflexão” (KLINGE, 2003, p. 2).
A filosofia atribui à tecnologia uma natureza peculiar, a ponto de propor um ramo específico, a
filosofia da tecnologia2, o qual está em processo de consolidação até o presente, sem desconhecer
que ela possui seus cânones.

1
A utilização do pensamento de Spengler (1932) se resume a aceitação de algumas constatações históricas.
2
Compreende-se por filosofia da tecnologia o esforço por parte dos filosófos em abordar a tecnologia como
um objeto de reflexão sistemática (MITCHAM, 1989).

321
A constituição histórica do problema da tecnologia, sem dúvida, encontra já no início do
século XX o viés polêmico e paradoxal que se observa até os nossos dias. Não é sem razão que, ao
refletir sobre a tecnologia nesse século, Klinge (2003) o denomina de “o paradoxal século XX”. O
desenvolvimento industrial - que carrega consigo a polêmica e consistente aliança entre ciência e
técnica - instalou, efetivamente, a preocupação sobre as conseqüências do desenvolvimento
tecnológico para o futuro da humanidade. A velocidade com que a aliança descrita se concretizou,
bem como suas conseqüências desumanizantes mais imediatas, fizeram eclodir um volume de
reflexões sobre o novo fenômeno, a maioria delas, para Klinge (2003), marcadamente pessimistas3.
“A partir de campos diversos ergueram-se vozes de alarma contra o desenvolvimento que a técnica
estava alcançando e visto como desumanizante” (KLINGE, 2003, p. 3). Na literatura, passando pela
sociologia até a filosofia, não foram poucos os autores, às vezes de perspectivas teóricas díspares,
que se voltaram para o fenômeno da tecnologia e suas conseqüências negativas para o seio da
sociedade4.
Na década de sessenta, Klinge (2003) observa o início de uma virada nessa abordagem
negativa da tecnologia. “Nessa época, a reflexão explode e sai dos trilhos prioritários da literatura,
de filosofia e da sociologia, no qual havia-se movido até esse momento” (KLINGE, 2003, p. 4).
Para o autor, a reflexão agora assume uma matiz “popular” e vê-se consolidar uma perspectiva
propriamente técnica. Entusiasmados pelo desempenho cada vez mais consistente e amplo dos
fenômenos tecnológicos no seio da sociedade, os novos teóricos constróem algumas apologias da
“bondade natural da tecnologia”.
O fato é que a compreensão da temática da tecnologia tem sido marcada pelas divergências
sobre seus efeitos positivos e/ou negativos para a sociedade moderna. Distante de um consenso
sobre a relação entre tecnologia e sociedade, as reflexões caracterizam-se, até recentemente, pela
existência de duas posições aparentemente antagônicas. O certo é que a tecnologia tem uma
penetração cada vez maior no seio da sociedade moderna, de modo que não é fácil negar benefícios
sociais advindos do desenvolvimento tecnológico; porém é temerário, para não dizer ingênuo,
defender tal desenvolvimento como algo que tem levado a melhoria contínua para o conjunto dos
seres vivos do planeta terra. “Apareceram, em decorrência, os defensores da tecnologia – que alguns

3
As reflexões pessimistas se restringem a momentos específicos. No geral, as reflexões que tomam a
tecnologia como fenômeno positivo constituem a tendência dominante.
4
Para citar alguns: Ellul (1968), Heidegger (2001), Marcuse (1967;1999), McLuhan (1966;1969), Mumford
(1982; 2001), Spengler (1932).

322
têm chamado de tecnófilos – os quais tomaram posição contra os detratores deste desenvolvimento
– qualificados de tecnófobos” (KLINGE, 2003, p. 1).
O concreto é que, como escreve Klinge (2003), a tecnologia é contraditória e ambígua.
“Tem suas luzes e suas sombras”. Klinge (2003) encontra na ambigüidade a dificuldade de muitos
em refletir adequadamente sobre a tecnologia e conseguir formular um diagnóstico consistente
sobre o que denomina sociedades tecnificadas. Reconhece, no entanto, que a academia, em especial,
tem feito significativos esforços para compreender o tema e não é sem motivo a existência de vários
ensaios, artigos, livros, teses que tomam a tecnologia como foco de análise.
No caso específico da educação, ela ainda não possui um corpus de conhecimentos
próprios, estruturados e sólidos acerca de sua relação com o fenômeno tecnológico. Assim, é em
virtude da não existência de uma tradição de reflexão sistemática e crítica sobre a tecnologia no
campo educacional que impõe que neste trabalho se concentre, num primeiro momento, por dentro
da filosofia da tecnologia para, a partir daí, promover o diálogo com o campo pedagógico,
estabelecendo, assim, as bases para a constituição, no futuro, de uma filosofia da tecnologia
educacional. Reconheçe-se que, no Brasil, existem significativos filósofos da educação, como
Dermeval Saviani, Paulo Freire, entre outros, no entanto, a discussão da tecnologia no pensamento
desses filósofos, tem sido relegada a um segundo plano ou, quando não, ela aparece “limitada” por
esquemas de interpretação de contextos sócio-econômicos mais amplos. Na teoria da educação
como um todo e, especialmente, na teoria da educação de esquerda no Brasil, a reflexão sobre a
tecnologia e suas repercussões no seio da sociedade ainda não mereceu a centralidade que o tema
impõe (GHIRALDELLI JR., 2003). A tecnologia aparece sempre tributária de outras reflexões nas
obras dos filósofos da educação brasileira, embora a filosofia da tecnologia possua um corpus de
conhecimentos sistematizados. Para Ghiraldelli Jr. os que fazem a filosofia da educação brasileira
“nunca abriram espaço para uma discussão séria, sem preconceitos, a respeito das novas tecnologias
educacionais” (GHIRALDELLI JR., 2003, p. 4).

323
3. Tecnolofia e tecnofobia

O fato é que a compreensão da tecnologia, seja por parte da filosofia da tecnologia, seja na
educação tem seus extremos. “Alguns observam o futuro com otimismo e vislumbram mais
benefícios do que problemas. Outros têm uma visualização crítica com variados graus de reservas,
inclusive alguns com acentuado pessimismo, e até rejeição” (KLINGE, 2003, p. 5). Tais pensadores
são tecnófilos e tecnófobos, e a tecnologia, nesse universo, acaba por ser compreendida apenas na
sua dimensão instrumental; na verdade, ela é compreendida como um destino e não como uma
possibilidade, o que se traduz na existência de um problema, o tecnocentrismo.
Com efeito, formulações extremas acerca da tecnologia existem há um certo tempo, porém
elas, como se enfatizou, continuam a ser forte clivagem para entender o fenômeno tecnológico. Tal
reflexão é compartilhada por Andrew Feenberg, para quem as teorias da tecnologia reduzem-se a
dois grandes grupos: a) teoria instrumental, que é a visão dominante dos atuais governos e suas
políticas científicas; b) teoria substantiva, que atribui um elevado grau de autonomia para a
tecnologia.
De acordo com Feenberg, a teoria instrumental considera que a tecnologia está subserviente
a valores estabelecidos em outras esferas sociais, por exemplo, cultura e política, enquanto que a
teoria substantiva compreende a própria tecnologia como uma força autônoma capaz de se sobrepor
às diferentes formas de valores, anulando-os.
Considerando a importância de sua posição para este trabalho, aprofunda-se um pouco mais
a posição de Feenberg. Para Feenberg (1991; 2001), as teorias sobre a tecnologia podem ser
diferenciadas conforme as suas respostas a duas questões básicas: a) É a tecnologia neutra ou
carregada de valores? b) Pode o impacto da tecnologia ser humanamente controlado, ou ela opera
de acordo com sua própria lógica autônoma? Ou seja, é a humanidade capaz de guiar o sentido
histórico no qual a tecnologia está nos levando?
“A teoria instrumental oferece a visão mais amplamente aceita da tecnologia. Ela está
baseada na idéia senso comum de que tecnologias são ‘ferramentas’ prontas para servir aos
propósitos de seus usuários” (FEENBERG, 1991, p. 5). Para os teóricos dessa visão, a tecnologia é
neutra, o que significa, de acordo com Feenberg (1991), pelo menos quatro aspectos:
a) tecnologia como instrumentalidade pura, ou seja, ela é indiferente a variedade de fins
nos quais ela pode ser empregada. “A neutralidade da tecnologia é meramente exemplo

324
especial da neutralidade dos meios instrumentais, que são apenas eventualmente
relacionados aos valores substantivos que eles servem” (FEENBERG, 1991, p. 5);
b) tecnologia como neutra politicamente, ou seja, ela é indiferente a questão política,
especialmente na sociedade moderna; fica descartada sua relação com projetos sociais
sejam capitalistas ou socialistas. “Um martelo é um martelo, uma turbina é uma turbina,
e tais ferramentas são úteis em qualquer contexto social” (FEENBERG, 1991, p. 6);
c) tecnologia como racional e de verdade universal, ou seja, a tecnologia tem sua
neutralidade atribuída a seu suposto caráter racional e, como conseqüência, é portadora
de uma verdade universal. “As proposições causais verificáveis em que ela está baseada
não são nem socialmente nem politicamente relativas, como as idéias científicas,
mantêm status cognitivo em todo contexto social concebível” (FEENBERG, 1991, p.
6);
d) “Sua universalidade também significa que os mesmos padrões de medida podem ser
aplicados a ela em diferentes cenários” (FEENBERG, 1991, p. 6). Assim, pressupõe-se
que a tecnologia pode incrementar a produtividade em diferentes regiões, países e
culturas. “A tecnologia é neutra porque permance essencialmente sob as mesmas
normas de eficiência em todo e qualquer contexto.” (FEENBERG, 1991, p. 6).

A “teoria substantiva” da tecnologia é aceita por uma pequena minoria de pensadores,


conforme explica Feenberg (1991).“[Eles] argumentam que a tecnologia constitui um novo sistema
cultural, que reestrutura todo o mundo social como um objeto de controle” (FEENBERG, 1991, p.
7). E mais: “esse sistema é caracterizado por uma dinâmica expansiva que ultimamente alcança
todos os enclaves pré-tecnológicos e molda toda a vida social. A instrumentalização total é, não
obstante, um destino do qual não há maneira de escapar que não seja retrocedendo.” (FEENBERG,
1991, p. 7).
Até aqui, enfatizou-se a existência de dois grandes modelos de abordagem teórica da
tecnologia (tecnofilia/instrumentalismo; tecnofobia/substantivismo). Tais modelos, trabalhados
como extremos, induzem à idéia de que as duas teorias são antagônicas. De fato, há diferenças
significativas entre elas, como se viu. No entanto, conforme Feenberg (1991; 2001), Bourg (1998) e
Klinge (2003) - entre outros autores - elas, em certa medida, coincidem-se e fazem parte de um
mesmo problema, o tecnocentrismo.

325
Para Feenberg (1991), embora as “teorias instrumentais e substantivas” tenham diferenças,
elas se aproximam na atitude diante do fenômeno da tecnologia, qual seja: uma atitude de “pegar ou
largar”. O que quer dizer:

de um lado, se a tecnologia é uma mera instrumentalidade, indiferente aos valores, então seu design
não está em questão no debate político, apenas a extensão e a eficiência de sua aplicação. De outro
lado, se a tecnologia é o veículo de uma cultura de dominação, então nós estamos condenados a
seguir seus avanços em direção a distopia ou regressar a um modo mais primitivo de vida. Em
nenhum dos casos, nós podemos mudá-la: em ambas teorias, a tecnologia é o destino. (FEENBERG,
1991, p. 8).

Seja para os “instrumentalistas” (tecnófilos), seja para os “substantivistas” (tecnófobos), a


tecnologia aparece determinando os rumos dos seres humanos, ou seja, o mundo é uma “nave” na
qual não existem chances de reorientação do seu rumo.
A posição tecnocêntrica (o tecnocentrismo) se transforma em problema na medida em que a
sua existência impede a real compreensão do fenômeno da tecnologia e de sua repercussão no seio
da sociedade e, de modo especial para este estudo, da educação. O problema do tecnocentrismo, ao
não colocar a questão da tecnologia em termos adequados, necessita ser superado: “a correta
aproximação ao assunto deve rejeitar as posições inspiradas por esta perspectiva tecnocêntrica e
buscar colocar a tecnologia em um marco mais amplo, no âmbito humano (...)” (KLINGE, 1991, p.
6).
É assim que, neste estudo, pretende-se compreender e interrogar a abordagem teórico-crítica
à questão da tecnologia no pensamento de Andrew Feenberg, com a finalidade de pensar a relação
tecnologia e educação. Como a tecnologia é quase um fenômeno formativo no mundo atual
(FEENBEG, 1991; MARTINS 2003; KLINGE, 2003, entre outros), ela impõe aos que compõem a
teoria da educação a necessidade urgente de refletir sobre os seus efeitos e suas possibilidades.
Antes de continuar torna-se necessário definir os termos.
A tecnologia, neste texto, é compreendida como um modo de produção, uma totalidade de
instrumentos, dispositivos e invenções que fazem parte de uma sociedade, “era da máquina”: “(...) é
assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma
manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de
controle e dominação” (MARCUSE, 1999, p.73). Conforme esse conceito, a técnica (aparato
técnico da indústria, transportes, comunicação) corresponde apenas a uma parte da tecnologia, a
qual tem que ser vista como um processo social muito mais amplo (MARCUSE, 1999).

326
Neste trabalho, a educação é compreendida como uma atividade, um fenômeno social, cuja
meta envolve um movimento de transformação interna de uma condição de saber a outra condição
de saber mais elevada, ou ainda, à compreensão do outro, de si mesmo, da realidade, da cultura
acumulada, do seu presente (CHAUÍ, 2003). E mais: a educação é inseparável do processo de
formação humana, é permanente (CHAUÍ, 2003), e deve, ainda, proporcionar aos educandos a
capacidade de compreensão e intervenção na sociedade. Conseqüentemente, por teoria da educação
se define o processo de (re)pensar de modo normativo e projetivo a atividade educativa.
O fato é que, neste texto, além de assumir como argumento a noção de “meio técnico”,
busca-se a defesa da teoria da educação, mais especificamente, aceita-se o conceito de teoria crítica
da educação, conforme formulação de Schmied-Kowarzik (1988).
Para Schmied-Kowarzik (1988), a teoria crítica da educação tem como tarefa primeira
superar o problema dos modismos educacionais, ou seja, a adesão a-crítica da educação a reflexões
oriundas em outras áreas do conhecimento. Porém, isso não deve ser tomado como a não
necessidade de diálogo entre educação e demais áreas do conhecimento, ao contrário, a afirmação
da teoria da educação, que toma como o cerne a educação, é vista como a possibilidade de
estabelecer as bases para o diálogo entre a educação e demais campos do conhecimento que podem
trazer algumas contribuições para o pensamento pedagógico.
Este trabalho é permeado pela perspectiva metodológica defendida por Mayorga (1990) a
qual prevê que o trabalho teórico só pode se exercer no domínio de uma reflexão crítica. “Com base
na teoria filosófica de Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, o conceito de crítica utilizado nestas
reflexões enfatiza que (...) as elaborações teóricas estão determinadas por fraturas, ambigüidades e
contradições internas” (MAYORGA, 1990, p 10). Nesse caso, sustenta Mayorga (1990), não há
teoria absolutamente verdadeira e, por isso, o trabalho da crítica - a reflexão do pensamento sobre si
mesmo - pode visualizar problemas não explorados, e ampliar a verdade a partir das rupturas e
fissuras dos pensamentos existentes. “Trata-se de uma ‘lógica de la desintegración’ (Adorno, 1968,
p. 146) que ataca a reificação dos conceitos e rechaça de imediato aquela percepção equivocada do
conhecimento científico como simples aplicação de modelos universais a situações particulares”
(MAYORGA, 1990). Como enfatiza o autor, é uma espécie de propedêutica que tem por finalidade
pensar determinados problemas de forma a evidenciá-los, sem cair, ao mesmo tempo, na distorção
da redução ideológica.
Nesse contexto, então, a reflexão proposta é concretizada com base em referências de
natureza teórico-histórica, num primeiro momento, para, na parte seguinte, concentrar-se nos textos

327
da filosofia da tecnologia. Busca-se analisar a obra de um dos expoentes da filosofia da tecnologia
americana que tem penetração no Brasil, o professor Andrew Feenberg. Pensa-se em Feenberg
como uma alternativa, além de sua presença teórica no contexto brasileiro, pelo fato de que ele
formula uma proposta de teoria crítica da tecnologia, cuja meta é apontar para um conceito
ampliado de tecnologia. Entre os vários textos de Feenberg, utiliza-se, de forma especial, o texto
“Questionamento da tecnologia” (2001), uma vez que tal texto se apresenta como uma síntese da
posição teórica do autor.

4. Notas finais

Assim, neste trabalho, ao se concentrar numa tradição teórica específica, a da teoria crítica,
pretende-se, essencialmente, compreender a crítica da tecnologia em um dos expoentes da filosofia
da tecnologia, mantendo-se sempre o horizonte de pensar a relação tecnologia e educação. Feenberg
foi escolhido, entre outros motivos, por buscar inspiração para o seu trabalho em uma das tradições
mais representativas do debate acerca da tecnologia na filosofia dos últimos tempos.
Situada, portanto, na articulação da crítica da sociedade à crítica dos instrumentos técnicos,
a pesquisa tem como hipótese central a defesa de que a teoria crítica da tecnologia permite as bases
para aprofundar o diálogo entre moderna tecnologia e educação. Espera-se demonstrar, ainda, a
tecnologia como um elemento chave para a compreensão da sociedade moderna e, portanto, a
compreensão dela não pode se reduzir a dimensão instrumental do fenômeno, exigindo, assim, uma
abordagem teórico-crítica ao problema por parte da educação.
Ao ser concretizado em referências de natureza teórico-histórica, num primeiro momento, e
em textos de filosofia da tecnologia, num segundo momento, em especial o texto Questionamento
da tecnologia, no trabalho acredita-se confirmar a hipótese estabelecida, principalmente quando se é
confrontado com a noção de ambivalência da tecnologia, conforme proposição de Feenberg.
O conceito de ambivalência da tecnologia significa que não há uma única relação entre o
avanço tecnológico e a distribuição social do poder. Esse conceito, como se viu, apresenta dois
princípios: a) conservação da hierarquia – enfatiza que a hierarquia social pode ser preservada e
reproduzida quando uma determinada tecnologia é introduzida. Esse princípio explica a
continuidade do poder nas sociedades capitalistas avançadas sobre as últimas gerações, o que foi
possível, para Feenberg, graças a estratégias tecnocráticas de modernização, apesar das enormes
transformações tecnológicas; b) racionalização democrática – isso quer dizer que tal tecnologia

328
também pode ser utilizada para minar a hierarquia social existente ou forçá-la a visualizar
necessidades que essa hierarquia tem ignorado.
Acredita-se, em síntese, que o conceito de ambivalência da tecnologia, que significa dizer
que a tecnologia está disponível a desenvolvimentos alternativos com diferentes conseqüências
sociais, abala a tão propalada noção de eficiência, com o culto tecnológico que lhe é peculiar, e
permite, ao mesmo tempo, articular moderna tecnologia e educação sem comprometer,
evidentemente, o caráter emancipatório desta última.
A noção de que determinados interesses e valores estão incorporados nos objetos técnicos
abre, assim, a possibilidade de implicar a perspectiva dos usuários e dos consumidores nos próprios
objetos técnicos que, nesse caso, aproxima-se da condição de objetos sociais. Essa perspectiva
permite a crítica dos objetos técnicos existentes, ao mesmo tempo que possibilita preservar
dimensões desses objetos, as quais poderiam contribuir para o desenvolvimento de determinadas
dimensões humanas atualmente negadas pela sociedade de consumo. Quer dizer, a construção de
outra sociedade é possível a partir das fissuras dos objetos existentes. E, nesse aspecto, o trabalho
de Feenberg parece ser uma alternativa consistente entre as perspectivas do instrumentalismo e do
substantivismo.
Essa alternativa de compreensão do desenvolvimento tecnológico permite, ainda, situar
melhor a tecnologia como uma dimensão da vida humana. E isso, no caso da educação, torna-se
fundamental para quebrar parte do culto tecnológico, com a conseqüente noção de
instrumentalidade pura. A noção de que a tecnologia é neutra e, portanto, não incorpora valores
parece ser fragilizada pela referência de Feenberg às pesquisas que mostram como determinados
interesses e valores dos grupos dominantes acabam por se incorporar nos próprios objetos técnicos.
Nesse sentido, o trabalho de Feenberg se constitui, também, numa dimensão heurística, ao alertar
para a fragilidade das teses da tecnologia como um destino, e não como uma possibilidade humana.
Conforme enfatiza CUPANI (2004, p. 517): “de qualquer modo, a análise da tecnologia realizada
por Feenberg tem, sem dúvida, o caráter que o autor lhe atribui, ou seja, possui ‘função heurística’
de ‘quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está recoberto’.
Com isso, a contribuição de Feenberg está no sentido de construir uma perspectiva teórica
que possibilita a visualização da tecnologia como um espaço em disputas. Descortina-se, então, a
possibilidade da educação contribuir para que as pessoas estejam atentas a questionar o moderno
tecnológico e, ao mesmo tempo, procurarem incorporar, cada vez mais, os seus interesses nos

329
próprios mecanismos. Pode-se, até mesmo, com essa noção de tecnologia ampliar a urgente e
necessária participação dos usuários nos destinos da moderna tecnologia.

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335
Ideologia, Indústria Cultural e Literatura

Jaquelina Maria Imbrizi – Universidade Presbiteriana Mackenzie

Resumo: A atualidade do conceito Indústria Cultural é refletida à luz da


mesmice que impera nos vários segmentos que a compõem. A concepção adorniana de
ideologia como duplicação do mesmo auxilia na reflexão sobre a resistência ao novo, a
negação do diferente e a ocultação dos valores morais e éticos inerentes à convivência
coletiva. Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago oferece elementos para o
desenvolvimento dessas questões, como também, para o enfrentamento da seguinte
contradição: são as imagens e idéias veiculadas pela Indústria Cultural que apresentam sempre
o mesmo ou o indivíduo que perdeu a capacidade de discernir nuances na realidade. Neste
sentido, o objetivo desta comunicação é pensar a literatura como forma de produção cultural
que escaparia aos ditames da Indústria Cultural, ou melhor, como uma forma de expressão
estética que por um estilo diferençado de exposição de idéias, de escolha de palavras,
suscitaria no leitor a retomada do humano. Busca-se compreender a produção literária como
uma manifestação cultural, que por meio da expressão artística pode moldar formas de pensar
no indivíduo e estimular uma percepção diferençada do mundo.

336
Introdução

Em que medida e em que direção, a literatura poderia quebrar com os ditames


ideológicos da Indústria Cultural? A literatura como expressão artística poderia contribuir
com um clima cultural que suscitaria o humano no homem? Q
ue tipo de dispos ição psíquica
poderia ser despertada no leitor que tem contato com a boa literatura?

A hipótese norteadora é que os estímulos suscitados pela leitura do livro


Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago fortaleceriam as possibilidades de emancipação
do indivíduo, ou que no mínimo, despertariam a idéia de que uma outra forma de vida é
possível. Mais do que isto, esse romance poderia fortalecer um clima de esclarecimento geral
de resistência aos elementos da ideologia. Trata-se aqui de considerar os estímulos
suscitados pela obra literária como fortalecedores de disposições psíquicas, estruturas de
pensamento, e futuras ações que resistam à crueldade e à mesmice que impregnam a cultura
contemporânea. Pois, segundo Adorno1: “O burguês deseja que a arte seja voluptuosa e a
vida ascética; o contrário seria melhor”.

A Literatura de José Saramago

A importância da Literatura de José Saramago pode ser representada na


insistência em desvelar as condições materiais e intelectuais que impedem a felicidade e a
liberdade dos homens. Para Perrone-Moisés2 toda a obra de Saramago é a negação das
condições sociais que desencadeiam o sofrimento: “Embora em suas narrativas, como na
vida, a infelicidade seja a mais constante, em todas elas são indicadas as possibilidades de a
ela escapar: pelo amor, pela solidariedade, pela arte, pela recusa de pactuar com o statu quo.”
Mais do que nunca, José Saramago3 pensa a sociedade e o homem à luz de um projeto
humanista que antevê possibilidades e alternativas: “(...) a evocação do passado como a
visão do presente abre-se para o futuro. Um futuro que tanto o destino real dos homens como
aquele, essencial para que este não seja mero destino, isto é, fatalidade cega: o da
preservação de seus valores, dentre os quais a arte”.

A importância da literatura para a formação da personalidade humana se


instaura nesse mote: a obra de arte como elemento de resistência à fatalidade cega. Trata-se
aqui de refletir sobre os estímulos suscitados pela leitura do texto de José Saramago de modo
a confirmar a boa literatura como meio importante de subjetivação da cultura que pode
contribuir para a formação de um indivíduo autônomo, singular e humano.

1
Adorno, Theodor ( 1993, p.25). Teoria Estética. Lisboa: Edições 70.

337
Adorno indica a crise da formação cultural4 expressa pelo fato de que ao
invés da singularidade, emergem indivíduos incapazes de diferençar matizes nos objetos e
nas pessoas da realidade; ao contrário de uma autonomia calcada na auto-reflexão e na
capacidade de perceber a fragilidade, o desamparo e a solidão do homem contemporâneo,
cresce a formação heteronômica cimentada na idéia de um indivíduo que deve aparentar
força, rigidez, frieza e segurança vinculadas a valores como competência e eficácia5.

Horkheimer e Adorno6 afirmam que a autonomia, inerente aos homens livres,


estaria vinculada à mobilidade intelectual, à imaginação e à fantasia que subsidiariam a
flexibilidade, a elasticidade, a espontaneidade e a criatividade frente às intempéries da vida.
O que acarreta dizer que o humano se forma pela sensibilidade à diferença7, pela capacidade
de criar frente aos obstáculos e agruras da vida, que apesar do sofrimento suscitado, é capaz
de enfrentá-lo para superá-lo8 e, assim, deixar-se levar em direção ao novo e ao
imponderável e, isto não é pouco: representa uma luta constante pela vida. Ao contrário
disso, a rigidez em excesso tem sua raiz na compulsão à repetição e à regressão, próprias da
pulsão de morte9. Se Freud alertou que é impossível cindir as energias próprias das pulsões
porque estão mescladas na dinâmica psíquica do indivíduo, Marcuse sustenta que
dependendo das condições objetivas da sociedade uma será mais favorecida do que outra e,
sob o princípio de desempenho, é a autodestruição e a crueldade que se alastram10. O
primordial seria analisar as condições sócio-psicológicas, ou seja, o clima cultural que
favorece o predomínio de uma destas características sobre a outra. Para Horkheimer &
Adorno11 é necessário analisar que: “O ‘cl ima natural’ tem suas raízes em condições de fato,
em grande parte independentes da vontade do indivíduo e o seu poder é muito superior ao
deste”.

2
Perrone-Moisés, PERRONE-MOISÉ S , Leyla (2000, p.194-195) Saramago e um sobrevivente. Inútil
Poesia. São Paulo: Companhia das Letras.
3
Saramago, José. (1999) Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.
4
Imbrizi, Jaquelina M. (2002) Responsabilidade e culpa: considerações acerca dos tabus que pairam
sobre o magistério. Eccos: Revista Científica do Centro Universitário Nove de Julho. V.4, n.02.
5
Crochík, José L. (2002). Apontamentos Sobre a Educação Inclusiva. In SILVA, Divino. (org) Estudos
sobre Ética: A construção de valores na sociedade e na educação. São Paulo: Casa do Psicólogo.
6
Horkheimer, Max & Adorno, Theodor W. (1973a). Preconceito. Temas básicos da sociologia. São
Paulo: Cultrix.
7
Adorno, T. (1991) ____________. (1991). “De la relacion entre sociologia y psicologia”. Actualidad de
la Filosofía. Pensamiento Contemporáneo n. 18. Barcelona: Paidós.
8
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. (2001) Sobre as relações entre ética e estética no pensamento de Adorno. In
PUCCI, Bruno (org.) Teoria Crítica, Estética e Educação. São Paulo, Unimep.
9
Freud, Sigmund. (1974) Para Além do Princípio do Prazer. In Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago.
10
Freud, Sigmund. (1974a). O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago.
Marcuse, Herbert. (1999). Eros e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
11
____________. (1973a, p.182). Preconceito. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix.

338
Para caracterizar as raízes destas condições cabe afirmar que o indivíduo, no
processo de socialização, troca possibilidades de satisfação por um pouco de segurança e
esta é ilusória em função das ameaças constantes de uma sociedade organizada de forma
excludente12. A ameaça é fruto de uma escolha política dos homens que não faz jus às
condições econômicas alcançadas pelo capitalismo tardio, pois a tecnologia adquirida
possibilita a eliminação da fome na face da terra, mas o homem continua escravo do
trabalho13. Éneste sentido que Horkheimer &
Adorno 14
denominam deslocamento geológico
a invasão da racionalidade própria ao mundo da produção sobre a racionalidade da cultura e,
assim, oferecem as bases para caracterizar a Ideologia da Racionalidade Tecnológica –
firmada no princípio de equivalência, exclui o conflito, a contradição, o dissidente e, assim,
só considera fatos observáveis e mensuráveis. Marcuse15 e Crochík16 afirmam que a lógica
formal, base desta ideologia e do positivismo comteano, também representa a opção histórica
da cultura ocidental: a ênfase no pensamento unidimensional que obsta a subjetividade em
nome dos valores inerentes ao princípio de desempenho e, assim, favorece a cisão entre o
âmbito da razão e a esfera das paixões humanas.
17
Horkheimer &Adorno ao caracterizarem a ideologia como fruto de um
deslocamento geológico, comparam a obra de arte a um sismógrafo que expressaria as
oscilações entre as duas esferas, mas ela pode ser mais do que isto, quando resiste e aponta
poros possíveis de emancipação aos imperativos do mundo do trabalho que invadiram a
cultura. Q
uando a obra de arte adere imediatamente à cultura, se transforma em abstração e
sacralização, quando é engolida pela estrutura econômica é transmutada em mercadoria, nos
dois casos perdeu características que antes a definiam e foi convertida em um produto da
Indústria Cultural.

Adorno (apud Crochík, 1996, p.61) compara os efeitos da Indústria Cultural


sobre o processo de formação do indivíduo como o de uma psicanálise às avessas: “ (...) o
18
controle que é feito diretamente sobre aquilo que foi descoberto por ela” . O imperativo
ideológico que impregna as mensagens é: “Converte-te naquilo que és” e que representa à

12
Crochík, José L. (1997). Preconceito: indivíduo e cultura. 2a ed. São Paulo: Hobbe.
13
_____________. (2005) Prefácio. In Imbrizi, Jaquelina M. A formação do indivíduo no Capitalismo
tardio. São Paulo: Hucitec/Fapesp.
14
Horkheimer, Max & Adorno, Theodor W. (1973a). Ideologia. Temas básicos da sociologia. São Paulo:
Cultrix.
15
Marcuse, Herbert. (1967). Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
____________. (1988). Razão e Revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
16
Crochík, José L. (1998a). O computador no ensino e a limitação da consciência. São Paulo: Casa do
Psicólogo.
17
Op cit (1973a)

339
intenção de desviar o sujeito de seu próprio caminho e, assim, desacostumá-lo de sua própria
subjetividade19.

Como representantes destas mercadorias da Indústria Cultural, Adorno20


analisou o conteúdo e os estímulos da seção astrológica do jornal Los Angeles Times. O
autor verificou que os textos se estruturam de forma binária e com padrões repetitivos que
confirmam a estereotipia do pensamento. Os conteúdos, calcados no senso comum, reforçam
o statu quo e, assim, naturalizam a divisão social do trabalho de modo a confirmar a cisão
entre os espaços de lazer e o tempo no emprego. As hipóteses sobre as disposições psíquicas
suscitadas no leitor indicam: a adaptação do indivíduo às normas de convivência, o reforço
do sentimento de culpa, as atitudes defensivas, a regressão da consciência e a identificação
com o agressor.

Os panfletos sobre a propaganda fascista também reproduzem uma


psicanálise às avessas e, desta forma, oferecem as bases para a manutenção da menoridade
dos seus leitores e seguidores. Adorno21 analisa os dispositivos usados nestes panfletos: o
texto estrutura-se por meio de locuções autoritárias que utilizam a personificação como
subterfúgio e, nas entrelinhas, expressa a reverência a um líder onipotente que deve ser
obedecido e idolatrado. Os propagandistas longe de serem sumidades intelectuais ou
artísticas, são fiéis representantes de um senso comum calcado na divisão estanque entre
bom-mau/forte-fraco e na valorização do narcisismo das pequenas diferenças22. As hipóteses
sobre as disposições psíquicas suscitadas fazem referência às satisfações vicárias que
reforçam a fobia e a paranóia de um tipo psicológico passivo-masoquista e, assim,
confirmam: a regressão da consciência, a extrojeção do superego, a identificação narcísica
calcada nos processos de idealização e o desejo infantil pela repetição interminável.

Épossível afi rmar que um texto representa uma atmosfera que potencializa o
atalho entre o pensamento, as atitudes e as ações dos indivíduos e, no caso da propaganda
fascista, a linguagem utilizada se sustenta na redução do caminho que vai das emoções

18
Crochík, José L. (1996, p.61) . “Nota sobre a psicologia social de T. W. Adorno”. Psicologia e
Sociedade, v. 8, n. 1, jan./jun. São Paulo.
19
Horkheimer, Max & Ado rno, Theodor W. (1985). Indústria Cultural. In Dialética do esclarecimento.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
20
Adorno, Theodor W. (1971) Superstición de segunda mano. In HORKHEIMER, Max & A DORNO, W.
Theodor. Sociologica. 2ª ed. Madrid: Taurus.
____________________. (1986). Bajo el signo de los astros. Barcelona: Editorial Laia.
21
Theodor, Adorno ( 2006). A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. Margem Esquerda –
Ensaios Marxistas. São Paulo: Boitempo Editorial.
22
Freud, Sigmund (1974b) Psicologia de Grupo e Análise do ego. In Obras Completas. Rio de Janeiro:
Imago.

340
violentas para ações violentas. A hipótese desta comunicação é que o livro Ensaio sobre a
Cegueira contém elementos para resistir aos ditames ideológicos e nefastos da Indústria
Cultural e, mais do que isso, para sustentar um clima cultural que obsta a formação de
indivíduos heteronômicos.

O texto de José Saramago apresenta contradições, o herói é frágil e


questiona a força física, há a historicização das relações entre os homens, há sempre a
flexibilização do vir a ser humano. Assim, a parábola Ensaio sobre a Cegueira incita a
fantasia e a imaginação humana ao narrar àquilo que foi deformado no processo de
socialização do indivíduo.

Saramago, por sua vez, inova na escrita e no tratamento dos temas. Perrone-
Moisés23 analisa o estilo deste literato inveterado que não se repete em seus livros e, assim,
respeita o movimento dos temas escolhidos ao diversificar na escolha dos gêneros literários.
Sua nota pessoal está em suprimir a “maior parte dos sinais convencionais de pontuação” –
quase ausência de parágrafos e a inexistência dos travessões –, reproduz a musicalidade da
linguagem oral: “Em sua escrita, a frase portuguesa adquire um ritmo particular, obtido por
simetrias, incisas, retomadas e inversões, num balanço harmonioso que conduz a um
acabamento perfeito. Écom o se a língua chegasse aí a uma beleza e a uma funcionalidade
plenas”.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, o autor constrói um texto que se aproxima de


uma parábola. O tema faz referência à atrofia dos órgãos sensoriais, alegoria que remete a
um processo de socialização que não favorece a formação da autonomia do sujeito, mas sim,
a deformação do indivíduo. Neste romance, uma cidade é acometida por uma cegueira
branca, que remete ao órgão sensorial que segundo Horkheimer & Adorno24 ainda propicia a
diferenciação e o distanciamento entre o sujeito e o objeto: “Ao ver, a gente permanece quem
a gente é, ao cheirar a gente se deixa absorver”. Parece que Saramago fala de uma mutilação
remetida aquilo que vemos e não somos mais capazes de diferençar e significar, enxergamos
e não conseguimos transformar25.

No que se refere à atrofia sensorial sofrida pelos indivíduos, no livro Ensaio


sobre a Cegueira, o indivíduo não enxerga a realidade. O narrador descreve a situação:

23
Perrone-Moisés, Leyla. (2000b, p.184) As artemages de Saramago. Inútil Poesia. São Paulo:
Companhia das Letras.

24
Horkheimer, Max & Adorno, Theodor. (1985, p.171-172). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
25
Nestrovisk, Arthur (1999). Prefácio. O Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.

341
“Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam
não era, afinal, senão a simples ausência de luz, que o que chamamos
cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas,
deixando-os intactos por traz de seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo
que se encontrava numa brancura tão luminosa, tão total, que decorava mais
do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-as,
por essa maneira, duplamente invisíveis26.”

Para Adorno27 é função do romance realista, delatar as circunstâncias que


anulam o indivíduo:

Não é só o fato de informação e ciência terem confiscado tudo o que é


positivo, apreensível – incluindo a facticidade do mundo – que força o
romance a romper com isso e a entregar-se à representação da essência e
distorção, mas também a circunstância de que, quanto mais fechada e sem
lacunas se compõe a superfície do processo social da vida, tanto mais
hermeticamente esta esconde, como véu, o ser.

A importância desse romance está em como ele oferece elementos para a


reflexão sobre o conceito ideologia. Horkheimer & Adorno28 comparam a ideologia a um véu
que impede o indivíduo de enxergar a mentira manifesta da sociedade e, mais que isso, apontam
que ela responde às necessidades psíquicas inconscientes e, assim, o que caracteriza o sujeito
contemporâneo é a diminuição da capacidade de enxergar nuances na realidade em função da
formação de um pensamento estereotipado calcado na falsa projeção: vê o mundo conforme
suas próprias fobias29. É a obstrução da visão própria da introjeção dos conteúdos da Ideologia.
Éa revelaçã o de um processo de socialização que atrofia os órgãos sensoriais e ao invés do
30
singular, reforça a padronização dos indivíduos . Neste sentido é possível pensar a
fragmentação do indivíduo nos romances de Saramago que, ao sofrer a invasão e o excesso das

26
Op. Cit ( Saramago, 1999, p.16).
27
Adorno, Theodor. _________. (2003a, 271) A posição do narrador no romance moderno. Notas de
Literatura I. São Paulo: Editora 34.
28
Horkheimer, Max & Adorno, Theodor W. (1973b). Indivíduo. Temas básicos da sociologia. São
Paulo: Cultrix.
29
Op. Cit. (Horkheimer &
Ad orno, 1985)
30
Adorno, Theodor W. (1986a) Sobre Música Popular. In Cohn, Gabriel. Sociologia. São Paulo: Ática.

342
imagens na sociedade contemporânea, perde a distância entre os conteúdos do mundo interno e
os valores do mundo externo, o que favorece a regressão da consciência. Adorno31, em seu texto
sobre a televisão, afirma que “(...) na TV a relação recíproca entre as vozes reproduzidas de
modo até certo ponto natural e as figuras reduzidas permanece inconfundível. Mas tais relações
equívocas são próprias a todos os produtos da indústria cultural, e recordam a ilusão da vida
duplicada”:
Ensaio sobre a Cegueira oferece elementos para problematizar uma cultura
que no lugar da individuação, favorece um processo de socialização que enfatiza a imitação e
não a identificação. Desta forma dispõe alegorias para refletir sobre a consciência moral fruto da
incorporação de normas e valores. Segundo Saramago32:

“A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais


renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos
filósofos do Q
uaternário, quando a alma mal passava ainda de um projeto
confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as
trocas genéticas, acabamos de meter a consciência na cor do sangue e no sal
das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie
de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de
mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a
boca”.

Neste sentido é importante pensar a literatura como forma de produção


cultural que escaparia às normas e ditames da Indústria Cultural, ou melhor, como uma forma
de expressão estética que por um estilo diferençado de exposição de idéias, de escolha de
palavras, suscitaria no leitor uma reflexão em direção a retomada do humano ou a delação do
inumano na sociedade contemporânea:

“O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de


fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da
harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior
e do exterior, do indivíduo e da sociedade -, mas nos traços em que

31
Adorno, Theodor. (1973, p. 348). “Televisão, consciência e indústria cultural”. In: COHN, Gabriel.
Sociologia da comunicação: teoria e ideologia. São Paulo: Pioneira.
32
SARAMAGO, José. (1999,p.26) Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.

343
aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado
em busca da identidade”33.

Identificação e Experiência Estética

Identificação e experiência estética são dois conceitos importantes para


analisar as hipóteses sobre as disposições psíquicas suscitadas no leitor:

No que se refere ao conceito experiência estética, faz-se necessário diferençar


as hipóteses sobre a experiência suscitada pela obra de arte – aqui a boa literatura – e pela
Indústria Cultural. A obra de arte suscita o esforço de participação do sujeito de modo a
compartilhar sentidos e significados da cultura, o que é muito diferente do que é evocado
pela indústria cultural, que baseada na estandardização, reforça a distração no receptor: “A
distração está ligada ao atual modo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de
trabalho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas”.34

Assim, enquanto a experiência suscitada pela leitura de uma boa literatura


alimenta o espírito por meio de uma linguagem calcada em metáforas, imagens e alegorias; a
vivência possibilitada pela Indústria Cultural leva ao embotamento do espírito. Se as
mercadorias desta não passam de um objeto de consumo “sem qualquer projeção para além
de si mesmo”, a obra de arte, ao contrário, “(...) exige que todas as faculdades de um homem
sejam nela utilizadas, e cujas obras são tais que todas as faculdades de um outro homem
sejam invocadas no interesse de compreendê-las.” 35

Em contraposição à distração que remete à desatenção, descuido, irreflexão


e inadvertência inerentes à corrida contra o tempo na sociedade capitalista; o esforço
demandado pela experiência estética vincula-se ao devanear – associado ao imaginar,
fantasiar e sonhar36– , possível quando o indivíduo consegue sustar o tempo linear, e só
assim, projetar imagens de um outro estilo de vida37. “A pura imediatidade não é suficiente
para a experiência estética. Além da espontaneidade, necessita também da intencionalidade,
da concentração da consciência; não se pode eliminar a contradição” 38.

33
Op. Cit. (Horkheimer & Ad orno, 1985, p.123)
34
Op. Cit. (Adorno,1986a, p.110)
35
Adorno, Theodor. (2003a, p.155) O artista como representante. In Notas de Literatura. São Paulo:
Editora 34.
36
Ferreira, Aurélio. (1986) Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
37
Op. Cit. (Marcuse, 1999)
38
Adorno, Theodor W. (1993, p.86). Teoria Estética. Lisboa: Edições 70.

344
Matos39 retoma uma característica importante da formação cultural humanista
que encontrava na experiência da leitura um modo paciente de alcançar “(...), a formação do
espírito que desestabiliza a apatia da razão, o torpor dos hábitos, a inércia do preconceito”.
Para Freitag40 a leitura “(...) desencadeia processos cognitivos, diálogo interior, reflexão e
crítica” e, assim, é um alargamento do horizonte lingüístico, ético e estético do leitor. Para
Birman41 a leitura de uma boa literatura pode: “(...) promover fissuras na realidade simbólica
instituída, provocando rupturas nas ideologias, que funcionam pela produção da inércia e
pela homogeneidade de sentidos”. Portanto, cabe perguntar: Seria o conteúdo e a forma de
um texto literário capaz de estimular o leitor no sentido de desvelar o aparente? Q
ue tipo de
indivíduo seria mais suscetível a tal esclarecimento? Seria a tensão entre as representações
de um texto literário e a realidade, uma instância importante para a crítica à ideologia
contemporânea?

No que se refere ao conceito identificação é possível supor que o indivíduo


para além de se identificar com pessoas que estão a sua volta, também se identifica com as
idéias42, os personagens e a trama da história. A identificação entre leitor e narrador está
pautada nas oscilações do distanciamento estético. No romance moderno, segundo Adorno43,
o narrador se posiciona como a câmara no cinema, que se distancia e se aproxima de modo,
ora a suscitar a impossibilidade da identificação e ora a estimular a identificação com as
experiências do personagem. Cândido44 afirma que a distância insuperável entre narrador e
personagem pode esconder uma “técnica ideológica inconsciente” que impede o tratamento
ou uma representação humanizadora do homem na cultura.

Nos romances de José Saramago o distanciamento é expresso pela incerteza


do narrador ante o destino dos personagens e que poderia suscitar no leitor a reflexão sobre o
propósito da narração e o sentido de sua existência. A posição do narrador também pode
tensionar ficção e realidade, ou seja, o narrador toma “(...) partido contra a mentira da
representação, e na verdade contra o próprio narrador, que busca, como um atento

39
Matos, Olgária C. F. (1996, p.25) Para que filosofia? In Paiva, Vanilda (org.) Contemporaneidade e
Educação. Rio de Janeiro: ano 01, n 0.
40
Freitag, Barbara. (2001a, p.61) Leitura, aprendizagem e cidadania. O indivíduo em formação. São
Paulo: Cortez.
41
Birman, Joel. (1996, p.62) O sujeito na leitura: comentários psicanalíticos sobre os sujeito da recepção.
Por uma estilística da existência – Sobre a Psicanálise, a modernidade e a arte. São Paulo: Editora 34.
42
Op. Cit. (Freud, 1974b).
43
Adorno, Theodor W. (2003b) A posição do narrador no romance moderno. Notas de Literatura I. São
Paulo: Editora 34.
44
Candido, Antonio. (2002) A literatura e a formação do homem. In Dantas, Vinicius (org.). Textos de
Intervenção. São Paulo: Duas Cidades e Ed. 34.

345
comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva”45. Gobbi46 afirma a
ironia como um dos estilos utilizados pelo narrador em Saramago e que pode ter função
formadora quando partilha o trauma da irredutibilidade do fato à palavra: “A ficção se
apresenta como um simulacro do real, naquele sentido (...) de uma consciência da natureza
completamente diversa entre os materiais da realidade e aqueles que permitem sua
expressão.”

Éclaro que cabe aqui explicitar os li mites das identificações propiciadas por
um texto literário, a arte por si só não transforma as condições objetivas que escravizam os
homens. Diante disso, é possível pensar as relações entre as transformações no discurso que
suscitam imagens diferençadas e as transformações “no plano real”. Daí que cabe comparar
e analisar as oscilações no distanciamento estético, pois uma das características dos textos
representantes da indústria cultural é que eles eliminam, ou no limite, atuam de forma a
encurtar a distância estética, no sentido de suscitar a imitação e a duplicação da mesmice.
Nos produtos da Industria Cultural são as relações entre fato e ficção que ficam
embaralhadas e, assim, acaba por satisfazer: “(...) um desejo diante do qual nada de espiritual
se pode manter que não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância real
entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas” 47.

Birman48 e Cândido49 afirmam que a criatividade do escritor pode estimular


uma receptividade à arte no leitor. O primeiro autor aplica as análises de Freud sobre os
escritores criativos no sentido de compreender uma recepção à arte no leitor e, assim, se a
matéria-prima da criação literária é a experiência imaginária, esta suscitaria no leitor a
atualização e rememoração de fantasias que propiciariam o contato com desejos recônditos
do sujeito, ou seja, a experiência da leitura pode ser uma fonte de revelação de desejos, pois
mediante o reconhecimento e a compreensão do conteúdo de um texto, o leitor sofre um
processo de desestabilização do eu que favorece a emergência da fantasia. Para Cândido, a
literatura ao responder a uma necessidade universal de ficção e fantasia, atuaria inconsciente
e subconscientemente de forma a inculcar imagens nas camadas profundas da personalidade
do leitor. Em síntese, os dois autores oferecem elementos para pensar que a leitura de uma

45
Op cit. (Adorno, 2003b, p.55-60)
46
Gobbi, Márcia V. Z. (1999, p.163) Assim é se lhe parece: um estudo da “História do cerco de Lisboa”.
In Berrini, Beatriz (org.) José Saramago – uma homenagem. São Paulo: Educ.
47
Adorno, Theodor W. (1973, p.351). Televisão, consciência e indústria cultural. In: COHN, Gabriel.
Sociologia da comunicação: teoria e ideologia. São Paulo: Pioneira.
48
BIRMAN, Joel. (1996, p.56) O sujeito na leitura: comentários psicanalíticos sobre os sujeito da
recepção. Por uma estilística da existência – Sobre a Psicanálise, a modernidade e a arte. São Paulo:
Editora 34.

346
boa literatura suscitaria uma recepção criativa no sujeito que estaria articulada, entre outras
coisas, ao fortalecimento da capacidade de memorização do indivíduo.

Para Marcuse a verdade da memória está em conservar as promessas e


potencialidades que são traídas pelo indivíduo adaptado50. Nesta linha de raciocínio
Cândido51 defende a força da literatura, pois, ela pode exercitar o contato com a fantasia e
estimular a imaginação do leitor, obstadas pela cultura contemporânea.

Então, é possível levantar a hipótese de que a identificação com as idéias,


com os personagens, com o narrador e com o autor de um texto literário seria uma das fontes
para incitar a dimensão estética – denominação que não só faz referência ao belo, como
também, ao desenvolvimento da sensibilidade no indivíduo que está vinculada à superação
da cisão entre a razão e a paixão: “(...) uma esfera que preserva a verdade dos sentidos e
reconcilia, na realidade da liberdade, as faculdades ‘inferiores’ e ‘superiores’ do hom em,
52
sensualidade e intelecto, prazer e razão”. Marcuse afirma a importância da imaginação
estética e do devaneio que estimulam no indivíduo: a sensualidade, a criatividade e a
receptividade. Éneste sen tido que os conteúdos literários poderiam oferecer formas de o
indivíduo resistir ao véu ideológico: se a ideologia da racionalidade tecnológica contribui
para a formação de um homem embrutecido, prático e pragmático, o conteúdo da literatura
favoreceria a emergência de um indivíduo sensível com menos medo de enfrentar os seus
próprios sofrimentos, os seus conflitos e contradições e, quiçá, exercitaria a abertura para
com os seus semelhantes. Dizendo de outra forma: o texto literário pode contribuir para a
construção de um clima cultural que estimule as forças psicológicas que tornem os
indivíduos mais receptivos àquilo que é próprio do humano.

Portanto, uma obra de arte digna do nome se distingue dos valores e


normas da ideologia contemporânea e se contrapõe aos ditames da Indústria Cultural.
A produção literária pode ser compreendida como uma manifestação cultural, que
por meio da expressão artística pode moldar formas de pensar no indivíduo e
estimular uma percepção diferençada do mundo. Mais do que qualquer outra obra de
arte, ela exige um esforço de compreensão e interpretação de conteúdos. Cândido
(2002, p.77) aponta a importância da função social da literatura: “(...) a capacidade
que ela tem de confirmar a humanidade do homem”.

49
Op. Cit (Cândido, 2002, p. 82)
50
Op. Cit (Imbrizi, 2005)
51
Op. Cit. Cândido (2002, p. 86-84)
52
Op. Cit. (Marcuse, 1999, p.156)

347
TEORIA DA SEMICULTURA: REFLEXÕES SOBRE UMA PSEUDOFORMAÇÃO
CULTURAL

João Luis Pereira Ourique

Vivemos em um mundo de escravos conscientes


que tornam o conceito de liberdade perigoso.

RESUMO: Esse trabalho tem o objetivo de apresentar algumas considerações sobre a condição
de “passividade ativa” que o indivíduo exerce perante a sua formação cultural. Essa
incapacidade de refletir sobre as contradições existentes em um contexto histórico em
transformação pode levar a sedimentações de comportamentos e estruturas capazes de interferir
diretamente na maneira como o indivíduo se relaciona consigo mesmo, com os outros e com as
diversas formas de expressões culturais que o cercam, levando em consideração,
principalmente, a ideologia de uma linguagem que sustenta e manifesta a face oculta da
catástrofe como se fosse a salvação. Tomando por base as reflexões de Theodor Adorno sobre a
crise da formação cultural, há o interesse em investigar as relações entre os modelos propostos
como alternativas à cultura tradicional dominante e a noção de uma identidade cunhada em um
ambiente marcado por uma alienação onipresente. Também se pretende discutir a noção de
semiformação cultural, que vislumbra uma idéia de incompletude, na perspectiva de uma
“pseudoformação” cultural, uma vez que aponta para um processo acabado, concluído, ou seja,
a formação encontra a sua realização em condições que não permitem a inserção de uma
reflexão crítica, visto sua apropriação objetiva. Além disso, pretende-se discutir alguns
mecanismos que o indivíduo inserido nessa estratificação social utiliza para conservar os
modelos que o formaram, em especial a sua abdicação da experiência, considerada sob a
perspectiva benjaminiana, e a subversão consciente àquilo que julga ser inevitável,
comprometendo, contraditoriamente, a própria noção de mudança existente da sociedade pós-
industrial.

1. NAS MALHAS DA SOCIALIZAÇÃO

Essa proposta reflexiva visa apontar a presença de algumas características de um processo


de “semiformação socializada”, no qual a consciência abdicou da autodeterminação prendendo-
se a uma cultura legitimada por valores outros que não os oriundos de uma visão dialética crítica
das suas estruturas, tornando-se, dessa forma, intocável e inquestionável:

348
Apesar de toda a ilustração e de toda informação que se difunde (e até mesmo com
sua ajuda) a semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual, o
que exige uma teoria que seja abrangente. Para esta teoria, a idéia de cultura não pode
ser sagrada – o que a reforçaria como semiformação -, pois a formação nada mais é
que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva.1

A apropriação subjetiva realizada sem a construção de filtros sobre as informações


recebidas e percebida como formação cultural, faz com que o espírito alienado se expanda e
fique preso nas malhas da socialização. Com isso, os instrumentos que a consciência poderia
lançar mão para tecer tais filtros sobre as informações recebidas ficaram perdidos em meio a
outros tantos que lhe foram apresentados como mais um subterfúgio, de caráter tão geral que
nada consegue dizer do particular em que a consciência se encontra ou de caráter tão específico
que em nada contempla as relações com o contexto, pois a “semiformação não se confina
meramente ao espírito, adultera também a vida sensorial. E coloca a questão psicodinâmica de
como pode o sujeito resistir a uma racionalidade que, na verdade, é em si mesma irracional.”2
Essa semiformação que não é capaz de refletir ou questionar, indagar ou repensar o seu
próprio papel dentro de uma visão de construção da sociedade, visto que relativiza as bases
autoritárias em que foi construída e exalta ao extremo os elementos positivos que a constituem,
embasando-se, principalmente, nos eventos históricos que também são interpretados de acordo
com uma visão parcial, aproveita-se do processo de exclusão (cultural, social, político e
econômico) dos indivíduos para se legitimar, afirmar e autoregular:

O semiformado culturalmente, na medida em que está excluído da cultura e, ao


mesmo tempo, com ela concorda, passa a dispor de uma segunda cultura sui generis,
não oficial, que, por conseqüência, se alivia graças a um autêntico encontro marcado
pela indústria cultural: o mundo dos livros que não deixa nas estantes sem ler e que
parecem ser igualmente a-históricos e tão insensíveis diante das catástrofes da
história como seu próprio inconsciente. E, da mesma maneira que este último, a
semicultura aparece como isenta de responsabilidades, o que muito dificulta sua
correção pedagógica. Sem dúvida, somente uma atuação de psicologia profunda
poderia contestá-la, uma vez que, em fases precoces do desenvolvimento, se
afrouxam seus bloqueios e se pode fortalecer a reflexão crítica.3

A isenção de responsabilidades vinculada a fatores que a sociedade pós-moderna4 não tem


como preocupação e, em alguns casos, até mesmo repudia como sendo um ranço de uma

1
ADORNO, Theodor W. Teoria da semicultura. In: Revista Educação & Sociedade. Campinas: Papirus,
Ano XVII, dez. 1996. p.389.
2
ADORNO, 1996, p.400.
3
ADORNO, 1996, p. 408.
4
Sobre a nova realidade cultural do Pós-modernismo, Jameson observa a existência de um espaço
caótico, algo que compreende o ecletismo, que aponta para uma visão não-homogênea. O Pós-
modernismo é, na cultura, um posicionamento político-social que influencia o campo artístico, visto que a

349
modernidade que trouxe tragédias e ignorou as diferenças culturais, faz com que a presença de
uma possibilidade de reflexão crítica fique cada vez mais distante, pois, a resistência ao mundo
das trocas é a resistência do olho que não quer as cores do mundo para enfraquecer5.
Assim, a falta de profundidade6; o enfraquecimento da história7; a esquizofrenia8 e a
intensidade e euforia9 se caracterizam como um espaço de oposição ao modelo dialético
preconizado por Adorno, pois se identificam, contraditoriamente, com a idéia de “semicultura”
na busca por uma valorização, principalmente, dos grupos sociais e das culturas periféricas que
ficaram sucumbidas sob uma visão universalista e, em alguns casos, elitista e conservadora de
uma sociedade burguesa.

A semiformação não se confina meramente ao espírito, adultera também a vida


sensorial. E coloca a questão psicodinâmica de como pode o sujeito resistir a uma
racionalidade que, na verdade, é em si mesma irracional. (...) A perene sociedade do
status absorve os restos da formação e transforma-os em símbolos daquele. Na
verdade, o status nunca esteve alheio à formação burguesa, que desde sempre se
havia degradado ao dissociar do povo seus chamados líderes e os que sabiam o latim,
como declarou Schopenhauer com toda ingenuidade. Só sob a proteção dos muros

produção estética está integrada à produção industrial e ao mercado. Essa nova cultura é global, mas tem
bases na cultura norte-americana – Way of life. In: JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou a lógica
cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
5
ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1973. Esse pensamento de Adorno
reflete a idéia de ressaltar o viés negativo de qualquer situação presente na sociedade e na cultura, com o
intuito de não se deixar seduzir por soluções fáceis, pois como bem alertou Walter Benjamin: “Nunca
houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a
cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”. Com isso, a
noção de terra arrasada é mantida, ou seja, a essência da barbárie é reciclada sob uma outra lógica de
cultura, vinculada a uma semiformação socializada.
6
Percebida por uma sincronia/imediatez em oposição à diacronia, apontando para um novo tipo de
superficialidade que caracteriza o esmaecimento de afeto. In: JAMESON, 1996.
7
Atingido progressivamente através da transformação da paródia em pastiche e do pastiche em simulacro.
Na modernidade o que se tinha era a paródia (para atender a um posicionamento crítico), na pós-
modernidade existe o pastiche (uma tentativa de realizar a paródia sem fundo crítico – o pastiche é uma
paródia branca). Nessa situação o pastiche vem lentamente tomar o lugar da experiência que cede sua vez
para a vivência. O pós-moderno faz irromper várias culturas, na modernidade a história era linear,
progressiva (marcas que atendem ao poder), na pós-modernidade há várias histórias - uma história em
espiral que choca com os conceitos lineares. A cultura do simulacro aponta para o sincrônico, não mais
para o diacrônico, para uma sociedade onde o valor de troca é maior que o valor de uso: a forma final da
reificação evidenciada pela sociedade do espetáculo. O passado isolado ajuda na formação do simulacro,
as imagens são vistas como elas parecem ser (propaganda/publicidade), não como são de verdade. In:
JAMESON, 1996.
8
Existe uma problemática em relação ao tempo, o indivíduo descentrado influencia a produção literária
através e uma escrita esquizofrênica que é um reflexo do que o sujeito experimenta no meio
contemporâneo: um amontoado de fragmentos não relacionados entre si. In: JAMESON, 1996.
9
São traços bastante freqüentes na retomada do simulacro, pois ocorre a desrealização do mundo
circundante da realidade cotidiana. O mundo perde a sua profundidade e ameaça se tornar uma ilusão: a
euforia e a intensidade são reproduzidas pela mídia quando implicam a desrealização do mundo e
apresentam uma falsa verdade. O sublime kantiano possui uma base que não existe no pós-modernismo,
há uma falsificação do belo, um procedimento antinatural do trabalho humano. In: JAMESON, 1996.

350
desses privilégios podiam pôr-se em ação aquelas forças humanas que, voltadas para
a prática, inaugurassem uma situação sem privilégios. Mas essa dialética da formação
fica imobilizada por sua integração social, por uma administração imediata. A
semiformação é o espírito conquistado pelo caráter de fetiche da mercadoria.10

Considerando que algumas características do pós-modernismo ressaltadas por Jameson


não são necessariamente uma conduta errônea como alguns dos intérpretes da Teoria Crítica da
Escola de Frankfurt fazem questão de afirmar, colocando, muitas vezes, o debate no campo
ideológico de oposição e de negação às possibilidades decorrentes das mudanças culturais e
sociais, há o interesse em discutir o problema oriundo dessas transformações. E esse problema
reside no apagamento da formação, como se o conceito de humano existisse a priori, não como
processo, mas como essência da natureza humana.
Sobre isso, Adorno enfatiza que “é ainda a formação cultural tradicional, mesmo que
questionável, o único conceito que serve de antítese à semiformação socializada, o que expressa
a gravidade de uma situação que não conta com outro critério, pois descuidou-se de suas
possibilidades.”11. Com isso, a crítica de Adorno se dá tanto em função do modelo conservador,
quanto da ideologia da Indústria Cultural12, em um paralelismo crítico entre a sociedade e a
sociedade de massas13 que é capaz de observar o processo sem se deixar levar por modismos ou

10
ADORNO, 1996, p. 400.
11
ADORNO: 1996, p. 395.
12
Conforme Francisco Rüdiger, “A crítica à indústria cultural não se esgota na rigidez das proposições
negativas porque, no método dialético, a contradição é tão essencial quanto a identidade para conhecer e
interagir com a realidade. (...) A sustentação de uma postura crítica e o reconhecimento de certas linhas de
força não negam, antes supõem, a natureza contraditória, ambígua e, em princípio, aberta à mudança dos
fenômenos de indústria cultural. A manipulação das massas e a plenitude mundial, promovidas por seu
intermédio, constituem ideologia, na medida em que são aparência socialmente necessária. (...) os
processos referidos não são ficções – existem fora da cabeça das pessoas, mas ao mesmo tempo são
falsos, porque realmente não são criados só por esse agenciamento (o da indústria cultural). As massas só
se encaixam nesse processo porque, mal ou bem, ele conta com seu consentimento”. In: RÜDIGER,
Francisco. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural. 3. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p.
14-15.
13
Hannah Arendt preocupa-se em saber se o que é legítimo para a sociedade de massas também o é para a
cultura de massas, ou, em outras palavras, se a relação entre sociedade de massas e cultura será idêntica à
relação anteriormente existente entre sociedade e cultura. Talvez a principal diferença entre a sociedade e
a sociedade de massas esteja em que a sociedade sentia necessidade de cultura, valorizava e desvalorizava
objetos culturais ao transformá-los em mercadorias e usava e abusava deles em proveito de seus fins
mesquinhos, porém não os “consumia”. A sociedade de massas, ao contrário, não precisa de cultura, mas
de diversão, e os produtos oferecidos pela indústria de diversões são, com efeito, consumidos pela
sociedade exatamente como quaisquer outros bens de consumo. Contudo, o problema não provém
realmente da sociedade de massas ou da indústria de entretenimento que satisfaz suas necessidades. Ao
contrário, visto não querer cultura, porém apenas divertimento, a sociedade de massas provavelmente é
uma ameaça à cultura menor que a hipocrisia da sociedade tradicional, pois mesmo com a indústria do
divertimento as artes e as ciências, em contraposição a todas as questões políticas, continuam a florescer.
Arendt afirma que não podemos censurar a indústria de divertimentos quando da produção dos seus
próprios bens de consumo e pela não-durabilidade de seus artigos, visto que é o papel para o qual se
destina. No entanto, a indústria de entretenimentos se defronta com necessidades cada vez maiores e

351
teorias descomprometidas com o devir histórico, ou seja, com a tentativa de contribuir para
aquilo que poderia ser chamado de uma verdadeira consciência histórica.

2. A FÁCIL CONSCIÊNCIA COMO ENTRAVE PARA A EXPERIÊNCIA

O processo de construção de uma consciência histórica mencionado anteriormente se


aproxima daquilo que Benjamin definia como “experiência”14, uma interpretação do mundo
capaz de romper com as idiossincrasias de um modelo de sociedade excludente e autoritário em
sua essência, oportunizado pelo olhar histórico a partir de uma concepção materialista. Segundo
Adorno, no seu ensaio Posição do narrador no romance contemporâneo15, a identidade da
experiência na forma de uma vida articulada e possuidora de um desenvolvimento interior foi
desintegrada e, de acordo com Martin Jay16, essa idéia se relaciona com a afirmação/constatação
de Benjamin de que a narrativa como continuidade tem sido quebrada pelos choques
traumáticos e pela geral ininteligibilidade da moderna arte da guerra. Isso aponta para uma crise
geral e demonstra uma preocupação em reviver a experiência perdida através de uma reflexão
dialética para que ao menos a esperança sobreviva (visão nostálgica de um ideal que não se
concretizou, mas que precisa ser mantido vivo).
Com isso, o processo de semiformação/pseudoformação17 atua como fator de oposição à
experiência, visto que esta tem sido substituída pela seleção, desconexão, intercambiabilidade e
pelo estado efêmero da vivência. Efêmero porque pode ser modificado constantemente por outra
informação, ou seja, não há uma base confiável, somente um vazio a ser preenchido, submisso à

insaciáveis, e visto seus produtos desaparecerem com o consumo, ela precisa se renovar constantemente,
apresentando novas mercadorias. Assim, o material que era denominado como “alta cultura” não pode ser
fornecido tal como é, deve ser alterado para se tornar entretenimento, deve ser preparado para o consumo
fácil. Dessa forma, a cultura de massas passa a existir quando a sociedade de massas se apodera dos
objetos culturais, em uma relação dialética-destrutiva de apropriação e de consumo dos objetos culturais.
In: ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importância social e política. In: _____. Entre o passado e
o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
14
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: _____ . Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
15
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: VÁRIOS. Textos
escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril, 1983.
16
JAY, Martin. Is experience still in crisis? Reflections on a Frankfurt School lament. In: RASMUSSEN,
David; SWINDAL, James (ed.): Critical Theory. vol. III: The future of Critical Theory. London,
Thousand Oaks, New Delhi: Sage, 2004.
17
A idéia de semiformação aponta para uma noção de incompletude, de não realização que o termo
“semi” compreende. Visando abordar uma noção de completude, ou seja, considerando que a crítica ao
processo de semiformação socializada em Adorno não está relacionada com uma possibilidade simplista
de completar a formação visto que esta ainda está inacabada, é que o termo “pseudo” – que já aparece em
algumas traduções – será utilizado para enfatizar a idéia de que uma pseudoformação se constitui em uma
formação completa, destacando, assim, que não é possível apenas completá-la, é necessário refletir as
suas contradições bem como o processo acrítico que a embasou.

352
qualquer informação que traga uma ilusão de completude, de totalidade que altera a percepção
através de uma visão redentora:

O semiculto dedica-se à conservação de si mesmo sem si mesmo. Não pode permitir,


então, aquilo em que, segundo toda a teoria burguesa, se constituía a subjetividade: a
experiência e o conceito. Assim procura subjetivamente a possibilidade da formação
cultural, ao mesmo tempo em que objetivamente, se coloca todo contra ela. A
experiência – a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e
em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo – fica
substituída por um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e
efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras
informações.18

Com isso, Adorno aponta para uma recusa a essa fácil consciência, produzindo a
realização da experiência através de pequenas (e difíceis) expectativas nas quais os perigos e
obstáculos não se constituem em uma salvação da história, mas uma rememoração dos
encontros com os outros e com o novo. O reconhecimento de que essas expectativas não
promoverão uma redenção da história não se vincula ao fato de que somente pode ter uma
experiência aquele que tem consciência da sua historicidade. Há, por assim dizer, um alerta para
uma conduta que alicerça os usos de jargões ou clichês em substituição aos conceitos,
sufocando o espírito e convertendo o existente em ideologia.
Essa conversão do espírito em ideologia, segundo Adorno, ocorre através da linguagem,
ou seja, a utilização da linguagem como uma ideologia capaz de servir a fins demagógicos,
através de um formalismo que não obriga as pessoas a dizerem o que pensam, desvaloriza o
pensamento e aponta para a existência de acordos sociais por meio de uma noção de “verdade”
sacralizada e inquestionável. Assim:

Si reviste de aureola las palabras destinadas a expressar lo empírico; a cambio de eso


da uma mano tan espesa de conceptos generales e ideas filosóficas, como la del ser,
que su substancia conceptual, la mediación por el sujeto pensante, desaparece bajo la
pintura de cobertura: entonces atraen como lo más concreto. La trascendencia y la
concreción resultan irisadas; la ambigüedad es el médium de uma actitud lingüística,
cuya filosofia favorita condena a aquélla.19

Com isso, a linguagem passa de uma oportunidade de reflexão e de espaço para o


questionamento para uma retórica que leva a embates nos quais o que vale é a voz de autoridade
daquele jargão sacralizado que deturpa o conceito original e não produz nada que seja capaz de
avançar dialeticamente. Essa incapacidade se vincula a uma tentativa – quase sempre alcançada
- de manter a força de coerção através de um argumento no qual os estereótipos carregam uma

18
ADORNO, 1996, p. 405.
19
ADORNO, Theodor. La ideologia como lenguaje. 2. ed. Madrid: Taurus, 1982. p. 16.

353
garantia de autonomia, assim como a indústria cultural trabalha a favor de uma pseudo-
individualização.
Isso leva à questão sobre o “consentimento” da sociedade ao sistema dominante,
principalmente por parte daqueles que nada têm a ganhar com a assimilação de novos valores
(especial atenção ao comportamento adotado pelas massas trabalhadoras que se postam -
contraditoriamente - ao lado desse consentimento). Se, por um lado, é evidenciado o caráter
estratégico que o sistema adota em função dos seus interesses, estimulando que as pessoas
consintam e aceitem como sendo uma escolha própria e autônoma, por outro, isso não é mantido
apenas através de mecanismos ideológicos, tendo em vista que o “problema da ideologia é
fornecer uma interpretação, dentro de uma teoria materialista, de como as idéias sociais
surgem”20.

3. OS ACORDOS SOCIAIS PERMEADOS PELA IDEOLOGIA: A LINGUAGEM


REIFICADA

O conjunto de fatores necessários para o surgimento das idéias sociais destacadas por
Stuart Hall passa necessariamente pela linguagem. Assim, o ideológico não é a única causa, mas
corrompe a estrutura do pensamento através de uma irracionalidade que possui uma força
aglutinante capaz de chantagear a consciência angustiada.

La constitución social doma a los hombres esencialmente para su propia


reproducción, y la coacción para ello se prolonga en su psicologia, en cuanto se
desvanece exteriormente. Gracias a la autoconservación, inflada hasta convertirse en
totalidad, vuelve a ser uno supropio fin, lo que ya se era de todos modos. Tal vez con
este contrasentido se disipara también la apariencia de absurdo, la tan celosamente
asegurada nulidad del sujeto, sombra del estado en que cada uno es literalmente su
própio prójimo.21

A simplificação falaciosa acaba por apontar conceitos absolutos, verdades inquestionáveis


e direitos adquiridos que, se mantidos, são capazes de comprometer qualquer possibilidade de
novos acordos sociais22. Dessa forma, a mitologia lingüística e a reificação se mesclam com

20
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização: Liv Sovik; Tradução:
Adelaide La Guardia Resende... [et al]. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO
no Brasil, 2003. p. 267.
21
ADORNO, 1982. p. 35.
22
“Ninguna sociologia podrá decirme que és lo que quiero como destino; ninguna psicología me aclarará
qué soy; el próprio ser del hombre no se puede criar como raza. Por doquier hay um limite de lo que se
puede planificar y hacer. El marxismo, el psicoanálisis y la teoria de las razas poseen, em efecto,
cualidades peculiarmente destructivas. Así como el marxismo cree desenmascarar toda existência
espiritual como superestructura, el psicoanálisis por su parte, cree hacerlo como sublimación de instintos
reprimidos; lo que después se sigue llamando cultura, está construído como uma neurosis compulsiva. La

354
aquilo que faz com que a linguagem seja uma possibilidade de racionalizar as questões
colocadas em pauta, pendendo, obviamente, para o argumento mais genérico, fácil e, ao mesmo
tempo, incorrompível e corrompedor.
Um bom exemplo dessas reflexões pode ser extraído do referendo sobre a venda de armas
e munições no Brasil que ocorreu no ano de 2005. Os debates entre os grupos favoráveis e
contrários à proibição não se pautaram – salvo algumas manifestações isoladas – em um
questionamento real sobre as estruturas que consolidam as práticas violentas de conduta da
sociedade brasileira. Sustentaram-se, quase que exclusivamente, na idéia de que a proibição
traria mais segurança, pois diminuiria o trânsito de armas de fogo e a violência urbana
principalmente, ou na noção de direito de defesa pessoal, visto que o Estado não apresenta
garantia aos indivíduos.
O que é muito interessante é que os argumentos acabaram se invertendo em sua essência
na busca por votos favoráveis a cada ponto de vista. A inversão ocorreu exatamente na questão
do direito. Conceitos como liberdade, autonomia, respeito, foram empregados pelos defensores
da manutenção do comércio de armas, enquanto que a limitação de determinados direitos, a
presença do Estado como regulador eram argumentos utilizados pelos defensores da proibição.
O que estava por trás de tudo isso, ao menos no campo hipotético dos debates demagógicos, era
exatamente o Estatuto do Desarmamento como um todo, a idéia de apresentar para a sociedade
um modelo capaz de avançar na discussão sobre a questão da violência e das relações humanas
em uma conjuntura cada vez mais excludente.
O resultado final, conhecido por todos, foi a manutenção do comércio de armas,
chegando, em alguns estados da federação, ao índice de 87%. Independentemente da “verdade”
e da “razão” que cada setor da sociedade se propunha a defender, estava em jogo uma
oportunidade ímpar para o questionamento dessa organização social e da possibilidade para que
fosse possível a geração de novos acordos sociais. Tal debate, ao se distanciar desse caminho,
abriu brechas para que todo o período de esclarecimento à população se transformasse em
discursos de campanha, favorecendo, dessa forma, a utilização especulativa dos clichês e dos
jargões publicitários em prol de uma visão de intolerância sobre a realidade circundante,
salientando que os diversos setores da sociedade se caracterizam por posições binárias, de
polarizações que se fecham a qualquer argumento que não se sustente sobre uma falsa noção de
verdade.

teoria de las razas trae consigo uma concepción de la historia que resulta deconsoladora; com la selección
negativa de los mejores pronto se logrará la ruína del auténtico ser hombre; o forma parte de la esencia
del hombre el que el, durante este proceso, crea em la mezcla de razas las máximas posibilidades para
dejar, uma vez terminada la mezcla em unos poços siglos, a la existencia mediana y sin tuétano de sus
restos encaminarse ao infinito. In: ADORNO, 1982. p. 35-36.

355
Nesse sentido, a progressiva ampliação da dimensão do reconhecimento na luta por
direitos sobrecarrega as práticas de tolerância de uma tal maneira que não apenas o
quadro liberal clássico se mostra insuficiente, mas também o estabelecimento mesmo
de fronteiras para a tolerância se torna altamente problemático, colocando em risco o
próprio conceito.23

Marco Aurélio Weissheimer, em seu artigo Cuidado, aqui mora um homem de bem!24,
propõe um debate que transcende os argumentos até então apresentados sobre o referendo e
questiona as idéias que legitimam o entendimento do que seria um “homem de bem”,
salientando que essa expressão consegue concentrar preconceitos de gênero, de classe e étnicos
enraizados na cultura brasileira. Passando por vários temas tratados pelo jornal Zero Hora,do
grupo RBS de comunicação, o autor encerra com uma provocação muito forte, buscando realçar
essas disparidades presentes na formação social do Brasil:

Afinal de contas, como um pai (...) vai levar seu filho de 10 anos, com segurança, ao
banco para ensinar-lhe as primeiras experiências na área financeira? No lado de fora
da agência, há uma legião de "homens do mal", prontos para tentar cercear esse
direito. Como um "homem de bem" vai ensinar ao seu filho que ele "deve deixar a
faca em diagonal depois de cortar a carne, à direita do prato, passando o garfo para a
mão direita", se a sua casa pode ser invadida a qualquer momento por um "homem do
mal" e ele não tem o direito de estourar os miolos deste sujeito na frente do seu
filho?25

Tal texto circulou durante esse período e, como não poderia deixar de ser, recebeu
restrições de muitos leitores. Houve uma preocupação em desautorizar e relativizar a questão
apresentada partindo para o apontamento de alguns exageros no texto, evidenciando uma leitura
parcial das idéias. A principal delas – e que mais chama a atenção – é a defesa de que “homem
de bem” serve, nesse contexto, para designar homens e mulheres da sociedade brasileira
contrários à proibição e que o fato de possuir uma arma não faz necessariamente uma pessoa
criminosa.
E aí está o problema: o de uma pessoa ser capaz de ler o argumento que lhe interessa e
passar por cima de certas expressões – realizando aquilo que no campo da lingüística se entende
por um pacto entre o leitor e o escritor para que seja possível o entendimento – e ao mesmo
tempo não estar disposta a discutir a questão central: a de que a organização social existente
hoje no Brasil – e não só no Brasil – se apresenta contraditória, excludente e autoritária no
espaço das relações interpessoais. Isso ressalta um – se não impossibilidade – grave entrave para

23
NOBRE, Marcos. Elementos de um conceito crítico de tolerância. In: FÁVERO, Altair Alberto;
DALBOSCO, Cláudio Almir; MARCON, Telmo (orgs.). Sobre filosofia e educação: racionalidade e
tolerância. Passo Fundo: Ed. UPF, 2006. p. 41.
24
WEISSHEIMER, Marco Aurélio. Cuidado, aqui mora um homem de bem! In: Idéias. Disponível em
<www.agenciacartamaior.com.br>. Acesso em 17 out. 2005.
25
WEISSHEIMER, 2005.

356
a reflexão, havendo a necessidade da teoria crítica da sociedade se posicionar contra os modelos
– os jargões – trazidos por uma ideologia consagrada por um modelo conservador e autoritário.
Tal entrave, como foi apresentado, está diretamente relacionado aos conceitos deturpados
pela ideologia de uma linguagem que colabora decisivamente para uma pseudoformação
cultural. Ao poder é destinado o espaço legitimado pelo gesto lingüístico, pois o seu exercício –
o do poder – está alicerçado em condições de enfrentamento ideológico como uma peça do
espírito negativo do tempo atuando como uma força coercitiva da sociedade. Segundo Adorno,
o jargão se veste de autenticidade na busca da manutenção de algo que deve ser preservado
como se disso dependesse a própria existência humana, como uma missão que evoca “en la
jerga vulgar de la autenticidad, una autoridad no solicitada. Su falibilidad es disimulada con el
absoluto uso de la palabra”26. Assim, a fala apelativa sem interpelação racional constitui-se em
um meio de disposições autoritárias que contribuem para que o indivíduo se descomprometa,
cada vez mais, do seu papel social e da preocupação que deveria ser de todos em relação ao
modelo de sociedade na qual está inserido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1973.

_____ . La ideologia como lenguaje. 2. ed. Madrid: Taurus, 1982.

_____ . Posição do narrador no romance contemporâneo. In: VÁRIOS. Textos escolhidos. 2.


ed. São Paulo: Abril, 1983.

_____ . Teoria da semicultura. In: Revista Educação & Sociedade. Campinas: Papirus, Ano
XVII, dez. 1996.

ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importância social e política. In: _____. Entre o
passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.

BENJAMIM, Walter. Experiência e pobreza. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1985.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização: Liv Sovik;


Tradução: Adelaide La Guardia Resende... [et al]. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo:


Ática, 1996.

26
ADORNO, 1982. p. 68.

357
JAY, Martin. Is experience still in crisis? Reflections on a Frankfurt School lament. In:
RASMUSSEN, David; SWINDAL, James (ed.): Critical Theory. vol. III: The future of Critical
Theory. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage, 2004.

NOBRE, Marcos. Elementos de um conceito crítico de tolerância. In: FÁVERO, Altair Alberto;
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racionalidade e tolerância. Passo Fundo: Ed. UPF, 2006.

RÜDIGER, Francisco. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural. 3. ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.

WEISSHEIMER, Marco Aurélio. Cuidado, aqui mora um homem de bem! In: Idéias.
Disponível em <www.agenciacartamaior.com.br>. Acesso em 17 out. 2005.

358
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, INDÚSTRIA CULTURAL E SEMIFORMAÇÃO

José Francisco Custódio (Departamento de Física, Universidade do Estado de Santa Catarina)


Elio Carlos Ricardo (Curso de Física, Universidade Católica de Brasília)
Mikael Frank Rezende Junior (Departamento de Física e Química, Universidade Federal de
Itajubá)

I – Introdução

Quando Kant (1988) respondeu a pergunta: o que é esclarecimento? Defendia a


necessidade do homem ter coragem de fazer uso do seu próprio entendimento, ou seja, a saída
da menoridade. A menoridade é um estágio no qual os indivíduos voluntariamente deixam os
outros pensarem por eles, de tal sorte que não haja preocupação com as dificuldades inerentes
aos objetos. Assim, quem domina o conhecimento garante a si o direito de gerenciar os outros
de maneira a atrofiar suas ferramentas intelectuais e, além disso, mostram os perigos do
abandono desta tutela. Abandonar a menoridade, no plano da razão, trouxe uma inversão no
modo de compreensão da natureza; em vez de ser dirigido por ela o homem passaria ao seu
controle. O conhecimento não estaria mais submetido à boa vontade dos objetos, mas passaria a
regulá-los. Em conseqüência, assim como um predador domina a presa, os homens debelaram a
natureza, controlando-a e, ao mesmo tempo, usufruindo desse controle.
Rumo ao domínio completo da natureza, a emancipação dos homens frente à natureza e
aos homens se deu de maneira a fomentar as relações entre poder e conhecimento, o que
demonstra uma evolução unilateral do projeto do esclarecimento, pois, se, de um lado, houve
um progresso da ciência e dos artefatos da técnica, de outro, os homens se mantiveram
apartados do potencial emancipatório propalado por tal projeto. Nesse sentido, o processo de
racionalização sobre o indivíduo e a sociedade é foco de análise de Horkheimer e Adorno na
obra Dialética do Esclarecimento. Para eles, o esclarecimento não pode ser desvinculado da
idéia de liberdade. Contudo, o esclarecimento guarda em si uma dimensão regressiva, uma vez
que o preço por ele exigido são privações e mutilações tão intensas quanto aquelas do
pensamento mítico. A obra, então, compromete-se em pensar esse lado regressivo contido no
progresso do esclarecimento, pois só assim haveria uma retomada rumo à liberdade
(Horkheimer e Adorno, 1985, p.13).
Neste trabalho, inicialmente, retoma-se a crítica lançada por Horkheimer e Adorno ao
projeto do esclarecimento e, em particular, da sua execução em termos do que se chama de
atividade científica e da regressão à consciência mítica. Em seguida, aponta-se que tal regressão
redunda na mistificação das massas através das redes da indústria cultural e de sua prole, a
semicultura. Finalmente, o foco principal consiste em interrogar o conceito de divulgação

359
científica à luz dos dois últimos conceitos, na medida em que ele se apresenta como meio de
esclarecimento para o grande público.

II – Mito e Ciência

A ciência tem se mostrado na modernidade como a expressão maior daquilo que se


chama racionalidade. Sob essa égide, o homem pretendia a superação de toda e qualquer
atribuição dos processos naturais por meio dos quais estava sujeito a entes espirituais; nada lhe
escaparia, pois a natureza estaria sempre à disposição, mesmo para as perguntas mais dolorosas.
Investido no centro do mundo o homem não precisaria mais sucumbir ao medo, estariam por
fim vencidas as superstições e aniquilado o pensamento mítico. Saber e poder tornaram-se
sinônimos, só que a sabedoria proveniente do entendimento do mundo ganhou uma nova
linguagem bem diferente daquela proferida pelo homem arcaico. Tal conjunto simbólico, da
lógica e da matemática, propiciou um canal de comunicação perfeito entre senhor e servo:
homem e natureza. Pensava-se nunca mais viver à sombra do mito. Portanto, não fosse a
eloqüente narrativa de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno na Dialética do Esclarecimento,
tratar-se-ia de um anacronismo sem precedentes supor que ainda habita na razão esclarecida o
mito. Para eles, “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”
(Horkheimer e Adorno, 1985, p.15). Nessa perspectiva, a análise sobre a razão esclarecida
assume o papel de mostrar aonde ela deixou escapar as suas potencialidades e converteu-se no
seu contrário. Mais ainda, da simbiose entre mito e esclarecimento Horkheimer e Adorno
exploram os limites dessa mesma razão, sobretudo, na supremacia da ciência e da técnica e na
fixação delas como padrão das relações sociais. Cobra-se, então, na Dialética do Esclarecimento
as promessas não cumpridas pelo projeto global do esclarecimento. Porque

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre


o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra
totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. (Horkheimer e
Adorno, 1985, p.19).

Alojada no seio do projeto do esclarecimento, a ciência ditou os caminhos da


dominação da natureza e aos olhos dos mais entusiastas conduziu a humanidade a uma era de
progresso infindável. Mas, como a dominação da natureza pressupunha o alcance de
conhecimentos e a criação de artefatos úteis ao bem estar da humanidade como um todo,
aqueles antes apartados dos frutos do trabalho assim se mantiveram e não se tardou a perceber

360
que por esse mesmo caminho contrabandeava-se a própria doutrina de dominação dos homens.
Nessa dinâmica, segundo Horkheimer e Adorno, tanto o substrato verdadeiro do esclarecimento
quanto o clandestino operam com a mesma lógica, daí, como se verá adiante, enredam-se mito e
esclarecimento, pois “no trajeto para ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e
substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” (Horkheimer e
Adorno, 1985, p.21) e, assim, a formulação da razão esclarecida calcada na idéia de processo,
tomou de assalto as rédeas do jogo e o conduziu de tal maneira que “o que não se submete ao
critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (Idem).
Fortaleza segura ao homem esclarecido, a linguagem matemática legitimou-se como
critério de verdade e intérprete da natureza principalmente porque é dotada da capacidade de
antecipar os acontecimentos futuros, ao contrário do mito1, fundamentado na repetição de
acontecimentos primordiais; porém, dizem Horkheimer e Adorno, o preço pago pelo poder de
previsão, nascido da conversão da natureza em peças matemáticas, é a própria obliteração do
pensamento.“O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina
que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado
a exigência clássica de pensar o pensamento” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.37).
Para Horkheimer e Adorno, esse modelo de atividade intelectual ampliou seus domínios
além do âmbito restrito da atividade científica de maneira que se tornou uma espécie de “ritual
de pensamento”, no qual o factual se torna a única referência, calando qualquer tipo de
ampliação do pensamento que, outrora, dera voz ao desejo de conhecer. Rumo ao domínio
completo da natureza o “pensamento transforma-se em coisa” e, conseqüentemente, a própria
estratégia de dominação da natureza empregada pelo homem conspirou contra ele, de tal sorte
que “o que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao
formalismo lógico, tem por preço a subordinação da razão ao imediatamente dado”
(Horkheimer e Adorno, 1985, p.38). Tal subordinação é um traço marcante na alienação da
sociedade contemporânea, uma vez que a consciência que se torna outra com relação a si
própria, fixando na realidade empírica existente a forma acabada da realidade em geral (Duarte,
1997). Mais que isso, perde-se a capacidade de

Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados não apenas suas relações espaço-
temporais abstratas, com as quais se possa então agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a
superfície, como aspectos mediatizados do conceito que só se realizam no desdobramento de
seu sentido social, histórico e humano. (Horkheimer e Adorno, 1985, p.38-39)

361
É precisamente nesse entendimento do factual, revestido do formalismo matemático,
como último tribunal de recurso a toda e qualquer pretensão de conhecimento, que Horkheimer
e Adorno reconhecem a origem do aprisionamento do pensamento ao imediatamente dado.
Aceitá-lo significaria atribuir ao conhecimento um caráter de espelho do factual e à ciência o
papel de justificadora do existente. Nesse sentido, mesmo que, por um lado, ao mito consiste
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas e, ao
homem arcaico cabe, pela mera repetição dos eventos míticos, apaziguar o medo e conter as
forças naturais que lhe eram estranhas e, de outro, a ciência tenha criado uma nova forma de
síntese pautada na correlação racional de experiências, na linguagem matemática e sem recorrer
a entes sobrenaturais; persiste a intersecção entre eles como apontam Horkheimer e Adorno: “a
subsunção do factual, seja sob a pré-história lendária mítica, seja sob o formalismo
matemático, o relacionamento do presente ao evento mítico no rito ou à categoria abstrata na
ciência, faz com que o novo apareça como algo predeterminado, que é assim na verdade o
antigo” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.39). Assim,

Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se
contenta com esta reprodução. Desse modo, o esclarecimento regride a mitologia da qual jamais
soube escapar... o mundo como um gigantesco juízo analítico, o único sonho que restou de todos
os sonhos da ciência, é da mesma espécie que o mito cósmico que associava a mudança da
primavera e do outono ao rapto de Perséfone. (Horkheimer e Adorno, 1985, p.39)

Vale ressaltar que, na opinião dos autores, mito e ciência são elementos distintos:
“como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento
progressivo em relação ao objeto” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.25). Todavia, será esse
mesmo distanciamento, na figura do critério de objetivação, que irá denunciar a presença da
consciência mítica. Quer dizer, a submissão à lei natural verdadeira para o presente, passado e
futuro, mantém viva a essência de tal consciência, pois ela expressa nada mais que a exigência
que tudo deva ocorrer como repetição: “o princípio da imanência, a explicação de todo
acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o
princípio do próprio mito” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.39). Ao que parece, em si mesmo, o
ponto de vista científico não é, necessariamente, mais lógico que o mítico.

1
Convém lembrar que o mito também é “antecipador” e que em outras passagens Horkheimer e Adorno
mostram as suas afinidades com a matemática, expressão maior do pensamento esclarecido.

362
III – Sobre a indústria cultural e a semiformação cultural

No segundo capítulo da Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno tratam do


conceito de indústria cultural. A indústria cultural é para eles a expressão máxima da
deturpação do esclarecimento. Ela infiltra-se no projeto do esclarecimento como “idolatria
daquilo que existe e do poder pelo qual a técnica é controlada” (Horkheimer e Adorno, 1985,
p.16) e, ao tentar incutir nos homens a falsa identidade do universal e do particular, catalisa o
próprio processo de regressão do esclarecimento, mais precisamente porque ao contrário do que
proclamavam os ideais iluministas, mantém velada uma forma de controle social. Nesse
contexto, faz sentido Horkheimer e Adorno terem abandonado o termo “cultura de massa”,
uma vez que este denota a emergência de manifestações culturais das massas, não um
movimento de cima para baixo como na verdade ocorre.
Nos tempos atuais, asseveram Horkheimer e Adorno, a indústria cultural assumiu a
tutela do patrimônio cultural da humanidade, transformando-o em mera mercadoria; além, é
claro, de criar seus próprios bens de cultura, legitimados somente no seu âmbito. Assim, “o
cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de
um negócio, eles a utilizam como ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente
produzem” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.114). Ao recuar assumindo a postura de negócio, a
indústria cultural alega que “o fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria
imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens
padronizados para a satisfação de necessidades iguais” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.114).
Portanto, tal padronização decorreria das necessidades dos próprios receptores dos produtos
ofertados pela indústria cultural, o que explicaria sua aceitação passiva. Com relação a esse
argumento Horkheimer e Adorno replicam:

De fato, o que se explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a


unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a
técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes
exercem sobre a sociedade. (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 114).

Nas malhas da indústria cultural qualquer tipo de produto veiculado (informação, livros,
entretenimento) oferece a comodidade de ser algo de fácil assimilação, devidamente degustado
e preparado para não derrubar expectativas ou romper hábitos. Nada neles instiga alguma
espécie de reflexão, tudo é planejado de maneira a causar o menor desequilíbrio cognitivo.
Envolta nesse “esquematismo” a atividade intelectual do consumidor é banida submetendo-o a
uma série de clichês prontos, cujo único pré-requisito é tempo disponível. Desse modo,

363
operando numa estrutura “self-service”, a indústria cultural pretende alcançar o maior número
de consumidores: “cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade
com o seu ‘level’, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos
produtos de massa fabricada para o seu tipo” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.116). Mas a
falácia, dizem Horkheimer e Adorno, reside justamente no fato dessa hierarquização “perpetuar
a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.116).
Na verdade, os consumidores acabam recebendo sempre os mesmos produtos e a indústria
cultural, pretensamente concedendo um favor a eles, rouba aos poucos seu potencial
emancipatório. E, nesse quadro

A invocação de seu próprio caráter comercial, de sua profissão de uma verdade atenuada, há
muito se tornou uma evasiva com a qual ela tenta se furtar à responsabilidade pela mentira que
difunde. (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 16).

Como se sabe, muito antes de alcançarem a idade escolar, os indivíduos já estão


submetidos aos esquemas da indústria cultural e mesmo quando já participam da educação
formal a indústria cultural continua influindo na sua formação cultural. Cabe, portanto,
considerar-se que “o que hoje se manifesta como crise da formação cultural não é um mero
objeto da disciplina pedagógica” (Adorno, 1992). Tal crise assume contornos específicos
quando investigada a partir dos vestígios deixados pelo processo de massificação da cultura
posto em movimento pela indústria cultural. Conforme Adorno (1992), o vestígio mais singular
desse processo é a semicultura, a apropriação da cultura através dos moldes da indústria
cultural. Isso significa uma total submissão às lógicas de padronização e funcionalidade do
mercado, ou seja, os produtos culturais deixam de ser predominantemente valores de uso para
tornarem-se valores de troca (Pucci,1997).

O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor
de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é
conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor [...] tudo só tem valor na medida em que se
pode trocá-lo, não na medida que é algo em si mesmo. (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 148)
A eliminação do privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz
as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais
existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara.
(Horkheimer e Adorno, 1985, p. 150).

364
A crise da formação cultural, diz Adorno (1992), manifesta-se exatamente na tensão
entre a autonomia do sujeito, quer dizer, da capacidade de servir-se do seu entendimento, sua
resistência à estrutura social e à própria cultura que lhe é inculcada e a adaptação à vida real.
Originalmente a formação cultural privilegiou e reforçou a dicotomia entre esses momentos.
Sobretudo na época da ascensão da classe burguesa ao poder, conviviam pacificamente, de um
lado, a implantação e consolidação da nova classe dominante e, de outro, através de intelectuais
e artistas, a crítica da sociedade emergente face à manutenção das desigualdades sociais (Pucci,
1997). Todavia, a formação cultural progrediu unilateralmente com a exacerbação do momento
da adaptação, uma vez que o outrora potencial emancipatório encontrado na consciência
burguesa cedeu espaço à cristalização da ordem vigente. Essa submissão é explicada
precisamente porque a adaptação é “o esquema da dominação progressiva: o sujeito só se torna
capaz de sujeitar o existente mediante algo que se acomode à natureza, mediante uma
autolimitação frente ao existente” (Adorno, 1992, p.34). Porém, mesmo que para Adorno
implicitamente a formação cultural seja tida como condição de uma sociedade autônoma, não se
trata de recuperar o terreno perdido pelo caráter autônomo da formação por mera ação de
despejo contra o seu complemento, pois, congelada em categorias fixas, a formação cultural
presta-se à ideologia, ou seja, sua própria regressão. “A formação cultural seria impotente e
enganosa se ignorasse sua dimensão de adaptação e não preparasse os homens para realidade.
Por sua vez ela seria incompleta e falsa se limitada a ajustar os homens à realidade e não
desenvolver-se neles a desconfiança, a negatividade, a capacidade de resistência” (Maar, apud
Pucci, 1997).
Como já se discutiu, os produtos veiculados pela indústria cultural exigem a mínima
ação cognitiva devido a sua literalidade. Na qualidade de produtos semiculturais são superficiais
por excelência. Tudo se passa como se o indivíduo realmente estivesse inserido no âmbito da
verdadeira formação cultural; a alta do dólar, bolsa de valores, o big-bang, em tudo ele é capaz
de opinar. Nada escapa aos olhos do semiculto!Ma s ele vive, na verdade, da mórbida sensação
que sabe o que não sabe. A efemeridade das informações culturais a que deve sujeitar-se implica
o seu rápido abandono e a desnecessidade de aprofundamento, uma vez que continuamente
haverá uma novidade. E, nessa dinâmica voraz, o que se perde é o poder de crítica, na medida
em que a reposição dos conceitos se dá de maneira a tolher qualquer iniciativa de agarrá-lo e
tentar compreendê-lo para além da idéia de “ter uma noção de”. Para Adorno:

[o semiculto] procura subjetivamente a possibilidade da formação cultural e, ao mesmo tempo,


objetivamente se coloca contra ela. A experiência, a continuidade da consciência em que perdura
o não presente e em que o exercício e associação fundamentam uma tradição no indivíduo, fica
substituída por um estado informativo pontual, desvalorizado, intercambiável e efêmero, e que se

365
deve destacar que ficará borrado no próximo instante por outras informações. (Adorno, 1992,
p.51).

É, no entanto, precipitado se supor que a semiformação cultural é o estágio precedente


da formação cultural quando se atenta para o pensamento de Adorno. Para ele, “o entendido, o
experimentado medianamente – semi-entendido e semi-experimentado – não constitui o grau
elementar da formação, e sim seu inimigo mortal” (1992, p.47). Significa dizer, em outras
palavras, que a semiformação não pode ser remediada ou complementada “ad hoc” de maneira
a recuperar o caminho em direção à formação cultural e, não somente conduz a um estado falso
de sabedoria, mas também rechaça qualquer abertura a real possibilidade do saber. “A não-
cultura , como mera ingenuidade e simples ignorância, permitia uma relação imediata com os
objetos e, em virtude do potencial de ceticismo, engenho e ironia – qualidades que se
desenvolvem naqueles que não são inteiramente domesticados – podia elevá-los à consciência
crítica. Eis algo fora do alcance da semiformação cultural” (p.41).
Em suma, toda massificação de produtos da cultura acaba sabotando a proposta de uma
formação cultural calcada na autonomia do indivíduo, entretanto, curiosamente, esta mesma
industrialização dos produtos simbólicos, não obstante, far-se-á portadora da esperança de
emancipação que ela própria retirou. Em vista disso, pretende-se, em seguida, discutir algumas
implicações do exposto acima na esfera da divulgação científica, na medida em que ela se presta
a porta-voz dos feitos da ciência ao grande público e, por isso mesmo, não está imune aos
imperativos de tal massificação.

IV – Divulgação científica: um quadro danificado do contexto cultural da ciência

Em seu discurso amplamente difundido os tenazes defensores da divulgação científica


asseveram principalmente que ela: (1) contribui para o esclarecimento público do que é a
ciência e dos seus frutos; (2) desenvolve o espírito crítico. Assume-se que essas sejam as
funções elementares de qualquer tentativa de divulgar a ciência e que qualquer outra deva ser
uma decorrência dessas duas. No momento procura-se demonstrar como essas singelas tarefas
acabam sendo postas a serviço da indústria cultural e acabam culminando em semicultura no
plano da consciência do indivíduo. Veja-se a seguinte passagem:

O debate informado depende do conhecimento científico dos fatos. Cientistas e tecnólogos têm
especial responsabilidade em contribuir para o esclarecimento do público. Devemos comunicar
os resultados de seus estudos sobre as conseqüências reais e potenciais da tecnologia ao público
mais vasto possível e em termos facilmente entendidos pelo cidadão comum. As descobertas

366
importantes devem ser analisadas e discutidas em termos críticos através de todos os meios
possíveis de comunicação. Se quisermos que a tecnologia seja usada criativamente para o
benefício da humanidade como um todo, precisaremos de um público esclarecido e apto a avaliá-
la imparcialmente... algo que não temos atualmente. (Kneller, 1980, p.268).

Ela sintetiza muito bem tudo que a divulgação pretende ser. Todavia, a problemática
que imediatamente se submete não lhe deixa fôlego para se recuperar. Em primeiro lugar, sua
existência torna imprescindível a “didatização” do material a ser divulgado; das mãos dos
cientistas até o meio de divulgação, o material passa por diversos filtros para ser oferecido em
linguagem inteligível ao receptor. Desse modo, acaba-se criando verdadeiras caricaturas do
conhecimento científico que, em geral, converte-se em uma série de dogmas e verdades
absolutas. Por exemplo, comumente os textos de divulgação científica substituem conceitos
complexos por análogos concretos mais próximos do entendimento comum. Tal facilitação
redunda, seguindo-se o pensamento de Adorno, no acoplamento da divulgação científica ao
vasto espectro de ação da semiformação cultural. Para ele, “toda chamada vulgarização –
entretanto se chegou a afinar o ouvido para suficientemente escolher esta palavra – padeceu da
ilusão de que se poderia revogar a exclusão [...] da formação” (Adorno, 1992, p.36). Revela-
se, precisamente nessa “didatização”, o primeiro degrau a caminho da perda da autonomia.
Voltar-se-á a esse assunto depois.
A indústria cultural reconheceu bem um valor de mercado na divulgação científica. Em
momentos de crise da cultura, principalmente no que tange à educação científica formal, o livro
O universo numa casca de noz, do cosmólogo Stephen Hawking, alcança agora sua quarta
edição, em comemoração à marca de 100 mil exemplares vendidos no Brasil. Há certamente um
motivo, algum engodo, que seduz as pessoas a ponto de tornar um livro altamente complexo,
mesmo depois das simplificações exigidas pelas editoras, em um best seller. A divulgação
científica, via de regra, vale-se da apresentação de conteúdos fantásticos, isto é, conteúdos que
manipulam o imaginário dos indivíduos em função da sensação de mistério envolvido. Assim, a
mecânica quântica, a relatividade, o tele-transporte, a clonagem, dentre outros temas, povoam
densamente os principais meios de divulgação. Todavia, a maioria dos conhecimentos
científicos evoluiu para abstrações cada vez mais complexas e estranhas, em virtude dos
esforços da ciência em compreender a realidade, ao passo que, no campo da indústria cultural,
essas mesmas abstrações servem de pedra filosofal: fetiche da ciência e da técnica.
A questão que se coloca diz respeito ao prejuízo formativo relativo ao contato com tais
abstrações. Inicialmente, poderia ser entendida como uma atitude discriminatória supor a
necessidade de pressupostos formativos para o contato com certas obras culturais, mas na
verdade não se trata disso. Veja-se, por exemplo, as conseqüências drásticas do livro O grande o

367
pequeno e a mente humana, de Roger Penrose. Nele, Penrose expõe uma série de idéias
puramente especulativas assegurando que o fenômeno da consciência é atribuído a processos
quânticos no cérebro, em particular, ao efeito da não localidade. Contudo, há uma enorme
quantidade de debates no meio científico que contestam as afirmações de Penrose e apontam
nelas falhas visíveis do ponto de vista teórico. Não tardou a seguirem-se dessa obra uma
avalanche de psicologias quânticas legitimadas em nome da sumidade Roger Penrose e seu
despretensioso livro. Para agravo da situação, idéias desse tipo, em várias disciplinas científicas,
infectam o próprio meio acadêmico a ponto de muitos temas como esses, alocados como
divulgação científica, acabarem transformando-se em referência teórica. Segundo Adorno:

Elementos que penetram a consciência sem fundir-se em sua continuidade se transformam em


substâncias tóxicas e, tendencialmente, em superstições mesmo quando criticam as superstições,
da mesma maneira como aquele mestre toneleiro que, em seu desejo por algo mais elevado, se
dedicou a crítica da razão pura e acabou na astrologia. (Adorno, 1992, p. 47).

Deve-se levar em conta também que, ao invés de lançar um ataque vigoroso ao


misticismo, a divulgação científica acaba inúmeras vezes fortalecendo as defesas do, outrora,
flanco exposto do inimigo. Para um espírito menos preparado, a justaposição de elementos de
doutrinas ditas científicas e outras se torna plenamente possível, pois a apropriação indevida do
conteúdo da ciência nos moldes delineados pela semicultura inviabiliza a rejeição desses
conteúdos, mesmo quando encontrados em um ambiente semântico distinto. “Os teoremas
supremos da semicultura continuam irracionais, e disso procedem suas simpatias pelo
irracionalismo de qualquer cor, sobretudo por aquele que viciosamente faz apoteose da
natureza e da alma”(Idem). E ainda:

As conseqüências são a confusão e o obscurantismo, porém, antes de tudo, uma relação cega
com os produtos culturais não percebidos como tais, a qual chega a obscurecer o espírito ao que
esses produtos culturais, vivos, proporcionariam expressão viva. (Adorno, 1992, p.48).

Nesse sentido, é comum perceber em conversas de transportes coletivos ou filas de


bancos aquilo que Horkheimer e Adorno (1985) chamaram de valor behaviorista das palavras.
Conceitos científicos são proferidos incessantemente e baseiam sua popularidade na magia do
incompreensível considerado como rompante de erudição. Há pessoas que após lerem 10 artigos
de divulgação científica adquirem idéias claras e precisas a respeito da fundação do universo,
enquanto a própria comunidade científica se vê envolta numa série de problemas abertos. E,
conforme diz Adorno: “A atitude em que se reúnem a semicultura e o narcisismo coletivo é a

368
de dispor, intervir, adotar ares de informado, estar no jogo” (Adono, 1992, p.50). Em tudo se
quer ser um iniciado!No e ntanto, a absorção compulsiva de conteúdos de divulgação científica
compele o indivíduo cada vez mais à superficialidade. Afinal

Um grande setor da produção da indústria cultural vive disso e, por sua vez, cria essa semiculta
necessidade, as biografias romanceadas, que informam sobre os fatos culturais e, ao mesmo
tempo, constroem identificações baratas e vazias, ou o resumo de ciências inteiras, como a
arqueologia ou bacteriologia, adulteradas em excitantes grosserias. Convencem o leitor que está
a par das coisas. Tudo isso reproduz e reforça a necessidade que se nutre o mercado cultural. E a
alegre e despreocupada expansão da formação cultural nas condições vigentes é, de modo
imediato, única e mesmíssima coisa que sua aniquilação. (Adorno, 1992, p. 46).

É claro, nem todo conteúdo de divulgação científica se vale do fantástico, contudo,


ainda assim persiste a superficialidade. O fato de contar as novidades do meio científico não
introduz os indivíduos em uma real cultura científica porque, de um lado, a ciência não é
redutível aos seus conteúdos e, por outro, a mera aproximação indiscriminada a esses conteúdos
não garante a conquista da autonomia do indivíduo. Como já foi citado, o semiculto pensa que
sabe o que não sabe, fragilizando sua resistência às condições sociais existentes, seja com
relação às condições econômicas, seja na compra do sabão em pó cuja marca usa a máxima
“cientificamente comprovado”. Participar desse culto acrítico à ciência joga, também no plano
do seu entendimento coletivo, na órbita do mito.
Tal postura vem sendo atacada na educação científica formal, entretanto, os
divulgadores da ciência acusando-a de precária, ao tomarem para si a responsabilidade pelo
esclarecimento público da ciência e da tecnologia, esquecem-se de suprir esta lacuna, já
detectada pela educação formal, e que está longe de solução na divulgação científica. A adoção
de um ponto de vista crítico exigiria por parte dos indivíduos a capacidade de discutir
abertamente muitas questões resolvidas em instâncias tecnocratas, pois a verdadeira formação
cultural se fundamenta nessa concepção. Implica também que se evite a confusão entre os
domínios da ciência e da técnica, dos debates éticos e políticos. Comprar uma geladeira é uma
decisão puramente técnica, mas quando se considera a decisão sobre clonagem, fala-se de um
debate ético na medida em que compromete a existência humana e seus valores. Mesmo quando
se defende a clonagem terapêutica, catalisa-se o perigo potencial envolvido, uma vez que a
história ensina quem viu os escombros de Hiroshima. Sobretudo, dever-se-ia evitar a crença
que se podem trocar deliberações éticas e políticas por reflexões técnicas. Contudo, o discurso
em favor da absolutização da ciência empregado pela divulgação científica, legitima, a cada
passo que dá, tais instâncias. Sujeito a uma visão tão danificada do que é a cultura científica, só

369
resta ao indivíduo, na condição de semiculto, engrenar-se ao sistema que já o envolveu e, nessa
conjuntura, é plenamente aceitável aos indivíduos esperar que sempre haja justificativas
intelectuais para fome ou para guerra.

V – Um possível enfrentamento do problema da divulgação científica

O problema passa a ser, então, como utilizar a divulgação científica sem ser iludido.
Adorno (1995), no texto Televisão e formação, afirma a idéia de que as pessoas deveriam ser
conduzidas a desmascarar ideologias protegidas ante as identificações falsas e problemáticas. A
divulgação científica, na compreensão aqui assumida, também deveria acolher essa proposta, e,
ao contrário de ensinar critérios de escolha entre certo e errado, poderia desenvolver o senso
crítico dos indivíduos deslocando a questão para por que tais suposições são certas ou erradas,
ou se são as únicas classes de suposições. Caberia, aos divulgadores da ciência, não somente o
próprio esclarecimento dos limites das funções que exercem, mas também avançar o seu
entendimento acerca do que é a ciência, uma vez que muitos divulgadores não pertencem ao
meio científico.
Finalmente, entendendo-se como os frankfurtianos que a educação é voltada para a
emancipação do indivíduo, a exploração dos limites da divulgação científica deve ser analisada
a cada passo ou como iniciativa nesse sentido. Refletir sobre a divulgação científica somente
nas condições necessárias para a manutenção do estado atual da realidade é configurá-la como
mero recurso ao momento da adaptação, anteriormente discutido. Conforme Adorno, a
experiência formativa se estende além dos muros escolares e, portanto, deve submeter-se
também a um processo de evolução e ampliação para recuperação da verdadeira formação
cultural. A proposta dos frankfurtianos oferece, em tempos de panacéias, uma boa profilaxia a
ser considerada nesse contexto.

VI – Referências bibliográficas

ADORNO, T. W. Teoria da semicultura. Tradução de Newton Ramos de Oliveira. São Carlos/


UFSCar, 1992.
ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
DUARTE, R. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: UFMG,
1997.
HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.

370
KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988.
KNELLER, G. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar; São Paulo, EDUSP,
1980.
PUCCI, B. A teoria da semicultura e suas contribuições para a teoria crítica da educação. In:.
ZUIN, A. A. S. et. al. (Orgs). A educação danificada: contribuições à teoria crítica da educação.
Petrópolis/ São Carlos: Vozes/ UFSCar, 1997. p. 89 – 115.

371
Clandestino Querer na Fuga das Horas: arte como expressão da vida danificada

Kety Valéria Simões Franciscatti


Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ/MG

Este trabalho expõe algumas considerações da tese de doutorado em Psicologia Social pela
PUC/SP intitulada “A maldição da individuação: reflexões sobre o entrelaçamento prazer-medo
e a expressão literária” (Franciscatti, 2005), na ocasião desenvolvida com bolsa do CNPq. A
tese discorre, com base na Teoria Crítica da Sociedade, sobre o paradoxo da maldição da
individuação – os sofrimentos vividos por se estar entre as (im)possibilidades de sofrer o outro
e se diferençar – como decorrência do fracasso da cultura que impede e mutila o movimento
formativo do amor, focalizando sua reflexão no entrelaçamento do prazer e do medo e nas
potencialidades da expressão literária. As argumentações sobre estes dois focos podem ser
descritas em duas perspectivas que se entrecruzam. A primeira busca evidenciar os danos
impostos pela repressão sexual e pela renúncia erótica ao processo de formação do indivíduo, o
quanto este processo mantém e propaga a barbárie, e o ódio como proveniente da mutilação dos
sentidos, da estupidez da razão e do conseqüente endurecimento do ego. A segunda procura
mostrar a expressão artística e a experiência estética, presente e proporcionada pela literatura,
como condição privilegiada de contato e de reflexão sobre a maldição da individuação – sobre
os impedimentos objetivos e subjetivos ao processo de individuação.
O presente texto traz aspectos que compõe, especialmente, a segunda perspectiva de
argumentação. Assim, com esta base, considera-se a expressão artística, com cuidado para não
recair no psicologismo, como um movimento que envolve três dimensões concomitantes: como
testemunho, por manifestar os sofrimentos injustificados, como resistência, por conter o ódio
(destruição do objeto), e como possibilidade de transformação do existente, por também guardar
estilhaços que podem iluminar saídas deste estado, vestígios para se ir além da destruição.
Considera-se também que a possibilidade da experiência estética, na tensão entre interno-
externo e particularidade-universalidade, pode tornar vivificada, na particularidade, as
determinações da totalidade social revelando a vida obstada.
Desse modo, na composição deste texto, além da fundamentação teórica dos autores
frankfurtianos Adorno, Horkheimer e Marcuse, estão presentes algumas considerações de Freud
– este como pano de fundo da argumentação desenvolvida – e trechos literários de Lispector e
Sabino, com o qual Lispector trocou correspondências – especialmente as considerações de
Sabino sobre o escrever entre o “sofrer muito” e o “sofrer bem”. Não há pretensão de discutir a
totalidade da obra destes escritores, os trechos destacados (contos, romances e cartas) são
trabalhados como representantes da expressão artística nas dimensões já mencionadas.

372
Urgência e Ausência: escrever entre o “sofrer muito” e o “sofrer bem”

A morte deveria lembrar a urgência da vida e não celebrar a sua ausência. A vida envolve
movimento, tensões entre presença e ausência de algo; a morte em ausência ou até presença de
uma ausência. Estando na ausência da vida, como elaborar o luto do que não foi? Desistir do
que não encontrou? Despedir-se da (im)possibilidade do movimento de vida no encontro com
objetos de amor? Sair do sentimento de perda por um tempo não vivido? Desvencilhar-se da
morte ditando o tempo durante a vida?

“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o
mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho
que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso:
dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem
outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.” (Lispector, 1978, p.13.)

O movimento para revelar aquilo que está oculto e visível está presente no ato de escrever. As
palavras não devem se resignar na apresentação de algo fechado pelo contrário, devem dizer o
que não foi dito e, nisto, dizer o indizível. Segundo Horkheimer e Adorno (1994), o próprio
pensamento é tateante: por meio das palavras “se move tateando, experimentando, jogando com
a possibilidade de erro” (p.228). Se o pensamento é tateante, tal movimento indica que ele
provém e também é guiado pelo exercício dos sentidos no contato com os objetos; contato que
pode ser entendido como uma coordenação preponderante do exercício do tato por este ser
capaz de reunir a expressão dos outros sentidos. Sobre este entendimento, estes autores, indicam
que o caracol reúne, com uma coordenação interligada em sua antena, três sentidos básicos da
experiência: por meio do tato ele enxerga e cheira o que está ao seu redor. Experimentar o
mundo dessa forma depende do músculo, de seu exercício como expansão e retração do contato
com os objetos. Neste confronto, são geradas tensões que inscrevem em seus sentidos as
semelhanças e as diferenças encontradas e sofridas no contato com os objetos que, assim,
passam a marcar o seu corpo e o modo como este volta a experimentar o mundo e seus objetos.

“Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho
enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo
porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito.
Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras
mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever – esse meu pensamento de palavras é precedido por
uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento – palavra que se seguirá, quase imediatamente –
diferença espacial de menos de um milímetro. (...) O pré-pensamento é em preto e branco. O pensamento com
palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do
instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos
guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem.
À
s vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta
depois de pensar – com palavras.” (Lispector, 1978, pp.16-17.)

373
Pode-se dizer que a palavra, o nome, guarda o intento de pegar o objeto. Com o próprio
exercício do tato o sujeito, em sua formação, abre-se para o objeto, deixa-o penetrar (introjeção)
em sua constituição e, no confronto novamente dos sentidos coordenados ao tato, diferencia-se
do apropriado e do conhecido. “‘Escrever’ existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma
coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por
quê – é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?”
(Lispector, 1978, p.14; aspas no original). Trata-se do paradoxo subjetivo da arte que aparece
na tensão entre a expressão artística e o sentimento formal da produção da obra de arte:

“O sentimento formal é a reflexão simultaneamente cega e necessária da coisa (Sache) em si, a que ela se
deve abandonar; a objetividade fechada a si mesma que cabe ao poder mimético subjetivo que, por seu turno,
se reforça no seu contrário, isto é, na construção racional. A cegueira do sentimento formal corresponde à
necessidade na coisa (Sache). Na irracionalidade do momento expressivo, a arte tem o objetivo de toda a
racionalidade estética. (...) A arte não atribui ao acaso, pelo qual a sua necessidade percebe o seu momento
fictício, o que lhe é próprio, ao incorporar intencionalmente de modo fictício o elemento contingente, para
assim enfraquecer as suas mediações subjetivas. Faz antes justiça ao acaso tateando na via obscura da sua
necessidade. Quanto mais fielmente a segue, tanto menos ela é transparente a si própria. Obscurece-se. O seu
processo imanente tem algo de vedor. Seguir sua direção é mimese enquanto execução da objetividade (...)”.
(Adorno, 1988, p.135.)

Mas, se escrever traz testemunhos e resistências, a quem é dada voz nesse esforço que
caracteriza as obras dos escritores? “Vós me obrigais a um esforço tremendo de escrever; ora,
me dê licença, meu caro, deixa eu passar. Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque
esta é proibida. Eu não aplico o proibido mas eu o liberto” (Lispector, 1978, p.17). A literatura
revela muito daquilo que a ciência psicológica deve investigar e denunciar: os sofrimentos
injustificados que são provenientes da dominação da natureza interna dos homens, a pulsão.

“Outrora era o esforço da arte, da literatura e da filosofia para expressar o significado das coisas e da vida,
para ser a voz de tudo que é mudo, para dotar a natureza de um órgão que manifestasse os seus sofrimentos,
ou, pode-se dizer, chamar a realidade pelo seu nome legítimo. Hoje, a língua da natureza foi arrancada.
Outrora pensava-se que cada expressão, palavra, grito ou gesto tivesse um significado intrínseco; hoje é
apenas um incidente.” (Horkheimer, 2000, p.105.)

Ainda assim, escrever, tateando cada expressão, cada palavra, pode ser um testemunho do
sofrimento. Em “Teoria Estética”, Adorno (1988) indaga: “(...) que seria a arte enquanto
historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado?” (p.291). Para o
autor “valia mais desejar que um dia melhor a arte desapareça do que ela esquecer o sofrimento,
que é sua expressão e na qual a forma tem a sua substância. Esse sofrimento é o conteúdo
humano, que a servidão falsifica em positividade” (p.291). E, ainda em um estado que causa
profunda dor, talvez um testemunho entre o sofrer muito e o sofrer bem. Fernando Sabino, em

374
carta (17/09/1946) à Clarice Lispector, comentando sobre o conto que ela tinha enviando
anteriormente para ele,1 escreve:

“Como eu já disse, gostei muito do seu conto: admiravelmente bem escrito, não falta nem sobra nada. (...) Por
ele posso perceber uma coisa muito mais importante do que a própria importância do conto: que você está
escrevendo bem, com calma, estilo seguro sem precipitação. Talvez porque agora você já não esteja sofrendo
muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário sempre me chamava a
atenção. A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade
de quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo. É o reflexo disso
que vejo no seu conto, você procura escrever bem, e escreve bem.” (Sabino e Lispector, 2002, p.60; itálicos
no original.)

Em outra ocasião, Clarice Lispector, em carta (08/01/1957) para Fernando Sabino comentando a
leitura dos originais do livro “Encontro Marcado” e referindo-se ao seu livro recém escrito “A
maçã no escuro”, escreve:

“Espantou-me também o ‘tempo dele’. É angustiante a rapidez com que ele decorre – sem que se possa fazer
nada. O livro me deu grande tristeza. Eu não queria que fosse tão assim, tão rolando para a salvação ou para a
perdição, e tudo por questão de pendurar-se um segundo a mais ou a menos num minuto, tudo às vezes
questão de mão recusada ou dada, tudo às vezes por causa de um passo a mais ou a menos.
(...) O envolvimento, é insensível, é feito por acumulação, por estrangulamento gradativo que vem de todos os
lados. Sei que estou usando palavras que talvez lhe soem fortes demais (tive uma noite de insônia, acredite...),
mas, Fernando, foi assim que senti: encostada à parede, e me deu um desespero que me deu vontade de lhe
dizer: Fernando, vamos mentir que não é assim. Você dizer que não há problema é dizer que não há solução.
Mas, Fernando, o fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu, não é o começo de maturidade?
Acho que você não teria conseguido o livro se não o tivesse escrito como o escreveu. Gostei muito, muito. Se
bem que preferia que você não fosse a pessoa capaz de escrevê-lo. Mas você foi, e fico contente.” (Sabino e
Lispector, 2002, pp.186-188; aspas e grifo no original.)

Como testemunho não é possível esconder as palavras, mentir; cada mão estendida ou não, cada
passo, cada expressão, devem estar exatas. Em outra carta (03/1955), escrita logo após a leitura
de alguns contos de Lispector, Sabino comenta: "Todos estão querendo ler (...) mas não deixo:
clandestino o livro me veio, clandestino vai"(S abino e Lispector, 2002, p.127). Os contos foram
parar de modo clandestino nas mãos dele e sua carta expressa a urgência de escrever naquilo
que o anseio do momento trazia, não deixar para depois, não correr perigo de que as
determinações do tempo, do só fazer isso amanhã, sustassem o que a leitura dos contos trazia
logo após o seu término: "exatamente a emoção de leitor capaz e na expectativa e desprevenido
que vai lendo com medo de não ser exatamente e é exatamente como exatamente!"(p.126).
Muitas vezes o confronto dos dois momentos – já, no exato momento e depois, no momento do
exato – revela possibilidades significantes, pois até os mais importantes anseios estão
aprisionados pela eficiência do tempo na ordem da dominação e, nisso, os mais importantes
anseios o são apenas aparentemente, ilusão que solicitam oposição, sensibilidade e reflexão.

1
O conto foi, em carta anterior (14/08/1946), intitulado O crime e Lispector se refere a ele assim: “a história tosca de um homem
que não quis ser punido” (Sabino e Lispector, 2002, p.54). Mais tarde o conto foi publicado no livro Laços de família com o título
de O crime do professor de matemática.

375
Junto com essas considerações sobre o exato, vale pensar no que Adorno (1995), em junho de
1969, escreve no prefácio à edição alemã do livro “Palavras e sinais”: “Quando o assunto é
extremo, a morte cruel, nós nos envergonhamos de uma maneira tal como se este injuriasse o
sofrimento ao torná-lo, inevitavelmente, um material do qual dispõe” (p.12). Deve-se ter
cuidado ao escrever: “o respeito pelo assunto ou mesmo pelo sofrimento racionaliza com
facilidade o rancor apenas em relação a quem não consegue suportar, na forma reificada da
linguagem, os vestígios do que sucede às pessoas: a degradação” (Adorno, 1993, p.74).
Portanto, escrever bem – entre o sofrer muito e o sofrer bem – corresponde dizer o que se tem a
dizer de acordo com o reflexo da realidade, expressando e pensando o movimento do objeto,
tomando a si mesmo como objeto, então, desse modo, “se consegue dizer inteiramente o que
pretende dizer, então é belo o que diz” (p.74). Entretanto,

“Na fase em que o sujeito capitula diante da supremacia alienada das coisas, sua disponibilidade para
perceber por toda parte algo de positivo e belo indica uma resignação tanto da capacidade crítica quanto da
imaginação interpretativa, que é inseparável da primeira. Quem acha tudo belo arrisca-se a não achar nada
belo. O universal da beleza só consegue se comunicar ao sujeito na obsessão do particular. Nenhum olhar
atinge o belo se a ele não estiver associada uma indiferença, quase um desprezo por tudo o que não é objeto
contemplado. (...) Seria quase possível dizer que a própria verdade depende do ritmo, da paciência e da
perseverança do ato de permanecer no individual: o que vai além disso sem primeiro ter se perdido
inteiramente, o que passa ao juízo sem ter-se feito primeiro culpado das injustiças da intuição, acaba por se
perder no vazio.” (Adorno, 1993, pp.65-66.)

Tal empreendimento está presente, como expressão artística, na literatura. Mas neste caso não se
trata de uma beleza fácil. A literatura que consegue dizer inteiramente o que pretende dizer
alcança com isso o belo. Nesse sentido, escrever entre o sofrer muito e o sofrer bem, mantida a
tensão, pode trazer a possibilidade, para quem escreve e para quem lê, de encarar as mutilações
ocasionadas pelos impedimentos culturais e históricos. Sofrer bem como expressão literária é
encarar a morte em vida para que deste estado a vida seja potencializada. Assim, pode ser,
momento do exato, que em algumas ocasiões escrever – perguntar, tentar narrar e assim
denunciar o sofrimento desmedido, o horror – traga derivações das possibilidades de vida. “Em
cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida” (Lispector,
1978, p.16). É um ato, não imediato, mas um ato: tentativas de salvar a vida vivida, não vivida,
desejada, a ser vivida.

“O resultado disso tudo é que vou ter que criar um personagem – mais ou menos como fazem os novelistas, e
através da criação dele para conhecer. Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada
um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias realidades? Tenho força
para isso como todo mundo (...). Escolhi a mim e ao meu personagem – nÂgela Pr alini – para que talvez
através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. Vida não tem adjetivo. É uma mistura em
cadinho estranho mas que me dá em última análise, em respirar. E às vezes arfar. E às vezes mal poder
respirar. É. Mas às vezes há também o profundo hausto de ar que até atinge o fino frio do espírito, preso ao
corpo por enquanto.” (Lispector, 1978, p.18.)

376
Porém, as (im)possibilidades de falar em um contexto que instaura a morte em vida são visíveis.
Vive-se em guerra cotidiana. E diante do horror resta uma espécie de grito mudo: “desintegrou-
se a identidade da experiência – a vida articulada e contínua em si mesma – que só a postura do
narrador permite. É preciso apenas ter presente a impossibilidade de quem quer que seja, que
tenha participado da guerra, a narrasse como antes uma pessoa contava suas aventuras”
(Adorno, 1980, p.269). As pessoas não passam do papel de sobreviventes e obedientes.
Obedecem para sobreviver. No conto “Os obedientes”, Lispector escreve a respeito de seus
personagens:

“Tinham a compenetração briosa que lhes viera da consciência nobre de serem duas pessoas entre milhões
iguais. ‘Ser um igual’ fora o papel que lhes coubera, e a tarefa a eles entregue. Os dois, condecorados, graves,
correspondiam grata e civicamente à confiança que os iguais haviam depositado neles. Pertenciam a uma
casta. O papel que cumpriam, com certa emoção e com dignidade, era o de pessoas anônimas, o de filhos de
Deus, como num clube de pessoas.” (Lispector, 1987, p.84; aspas no original.)

Mencionar a possibilidade da narrativa ou de querer ser narrador já encerra pretensões


ideológicas, pois “narrar algo significa, na verdade, ter algo especial a dizer, e justamente isso é
impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmidade” (Adorno, 1980,
p.270; itálicos no original). Pretensões que trazem, tanto como forma quanto como conteúdo, o
encobrimento do estado geral da sociedade e a ilusão de uma possível existência humana, e
manifestam-se “(...) como se o curso da vida ainda fosse em essência o da individuação, como
se o indivíduo alcançasse o destino com suas emoções e sentimentos, como se o íntimo do
indivíduo ainda pudesse alguma coisa sem mediação” (p.270) – espaços internos que vêm sendo
tomados e dispersados, mutilações que restringem possibilidades, obstam a individuação.
Possibilidades de contatos danificados por se viver sob mediações opressivas.
É na possibilidade do indivíduo – autônomo e diferenciado – que existe resistência à totalidade
opressiva, cega e irracional. Entretanto, essa possibilidade vem se desenvolvendo na história
como engodo, pois “o recurso do eu para sair vencedor das aventuras: perde-se para se
conservar, é a astúcia” (Adorno e Horkheimer, 1994, p.57) reproduzindo-se de maneira
igualmente opressiva, cega e irracional. Mas, ainda assim:

“Os traços radicalmente individuais e irredutíveis de uma pessoa são sempre duas coisas num só: o que não
foi totalmente capturado pelo sistema dominante e sobrevive para sorte nossa e as marcas da mutilação que o
sistema inflige a seus membros. Esses traços repetem de maneira exagerada as determinações básicas do
sistema: na avareza, por exemplo, a propriedade fixa; na doença imaginária, a autoconservação irrefletida. Na
medida em que o indivíduo utiliza esses traços para se afirmar desesperadamente contra a compulsão da
natureza e da sociedade, contra a doença e a bancarrota, esses traços assumem necessariamente um caráter
compulsivo.” (Adorno e Horkheimer, 1994, p.225.)

Como Horkheimer e Adorno (1994) discorrem na gênese da burrice, o caráter compulsivo é


composto e manifesto pelos caracteres duros e capazes que se deformaram com as cicatrizes
impressas nos homens desde a infância. Cicatrizes que dificultam ao espírito perceber o sentido

377
da vida e que ocasionam a apreensão de seu curso como fragmentos. A cicatriz é a marca no
corpo e no espírito do sofrimento, da dor desnecessária. Os fragmentos refletem as cicatrizes na
esfera simbólica: estilhaços de vida refletidos na memória; simbolização interrompida pela
morte prematura ainda durante o curso da vida, ofuscamento do movimento que traz o seu
sentido. Mas neste processo tanto as cicatrizes como os fragmentos ainda guardam certa
ambivalência: ceder e perpetuar a renúncia, resistir para possibilitar a vida se forem tocados,
sensibilizados e pensados.

“Minha vida é feita de fragmentos e assim acontece com nÂgela. A minha própria vida tem enredo
verdadeiro. Seria a história da casca de uma árvore e não da árvore. Um amontoado de fatos em que só a
sensação é que explicaria. Vejo que, sem querer, o que escrevo e Ângela escreve são trechos por assim dizer
soltos, embora dentro de um contexto de...” (Lispector, 1978, p.19; reticências no original.)

Por isso, a pretensão da narrativa guarda um pouco da tensão entre não estar realizada a
individuação e a própria possibilidade disso acontecer. O intermédio ou o entremeio entre não
ser indivíduo e ter elementos que apontem para sua existência. Isso seria viver sob a maldição
do entremeio do humano? A maldição da individuação? Ora, “em sua célula mais íntima o
indivíduo choca-se com o mesmo poder do qual ele foge para dentro de si mesmo. Isso torna sua
fuga numa quimera sem esperança. As comédias de Molière conhecem essa maldição da
individuação (...)” (Adorno e Horkheimer, 1994, p.225). O que significaria tocar nas marcas da
mutilação? Isso é possível no intercurso da particularidade e da totalidade? A literatura traz essa
possibilidade? “Porque a individuação, com a dor que ela gera, surge como lei social é que a
sociedade só individualmente se pode experimentar” (Adorno, 1988, p.290).
Não encarar a maldição da individuação é “(...) uma situação simples, um fato a contar e
esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um
pé afunda dentro e fica-se comprometido” (Lispector, 1987, p.82). Acontece que o simples, a
tarefa de esquecer presente no conto “Os obedientes” de Lispector, também é insuportável em
toda sua expressão. Não é fácil esquecer, pois desprende muita energia na mobilização de
mecanismos de defesa eficazes mas frágeis que, quando deixam de atuar, desmoronam
profundamente as versões tão pioradas, ainda que a melhor conseguida, forjadas diante desse
estado de coisas. “Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a meus
personagens. Só que não agüento e faço-os chorar à toa” (Lispector, 1978, p.15). Esquecer
também é comprometedor por conter a complexidade do ato mesmo: nele anula-se a vida, falta-
lhe movimento, fixa-se o inanimado da coisa morta, pois “toda reificação é um esquecimento”
(Horkheimer e Adorno, 1944, p215). Pode demorar mais ou menos, ser profundo ou nem tanto,
pode mesmo nem acontecer... entretanto, pode chegar um instante em que esse momento é
encarado, até porque ainda expressa algo de um possível humano “e pessoas precisam tanto
poder contar a história delas mesmas” (Lispector, 1987, p.84). Encarar tal situação e chegar à

378
conclusão de que não se tem quase o que contar nem a si próprio e nem com, nem para, os
outros – e o a si próprio já implica a relação com o outro – é lembrar-se da necessidade de
desobedecer, de não ficar só na sobrevivência. É contar o horror para trazer alguma esperança
da desesperança vivida. É lembrar-se, não da continuidade e da articulação da vida, porque a
experiência – que é formativa – não está sendo possível, mas sim dos fragmentos que revelam a
quase vida, que indicam sentir e querer um outro existir. No conto “Os obedientes”, lê-se:

“Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a
faltar as palavras que não o trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se
tornar apenas a sua difusa repercussão. Que, se for retardada demais, vem um dia explodir como nesta tarde
de domingo, quando há semanas não chove e quando, como hoje, a beleza ressecada persiste embora em
beleza.” (Lispector, 1987, p.82.)

Em condições propícias à identificação com algo que expressa um possível humano ainda que
negado nessa sociedade, pode ser que se tenha o incômodo, a sensação de algo fora do tom.
Desespero por estar em meio à presença da ausência, do vazio... Neste estado, pode até ser que
aconteça alguma explosão. Seriam passagens pela maldição da individuação? Parece que às
vezes isso acontece. Seriam momentos que não sucumbem ao sofrimento intenso? Estariam
além da dor determinada pelas condições e pelo funcionamento da engrenagem social?

“A coisificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas características humanas em
lubrificantes para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto-alienação universais, reclamam ser
chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas formas artísticas”. (Adorno, 1980,
p.270)

Escrever, nomeando a dor, o querer e os impedimentos ao querer, pode conter alguma


resistência e centelhas de transformação. A isso se dedicaram vários autores e em diferentes
registros – por meio da filosofia, da ciência, da literatura. Propriedades da humanidade que se
tornam condição e meio da vida gritar ante a imposição da morte, de buscar saídas da miséria do
existente restrito à sobrevivência e à obediência.

Momentos Clandestinos: o querer e a fuga das horas


Nos dias atuais, a atitude de resistência ao ritmo do progresso aparece como excentricidade,
como abuso ou excesso a exemplo da canção lembrada por Adorno (1993), que conta a história
de duas lebres, que, após comerem grama desmesuradamente, foram, aparentemente, abatidas
por caçadores e, quando percebem que estão vivas, saem correndo do local do abate. Nestas
reflexões o autor também indica que “a capacidade para o medo e a capacidade para a felicidade
são o mesmo: a abertura ilimitada, que chega à renúncia de si, para a experiência, na qual o que
sucumbe se reencontra” (p.175). Isso pede tanto a realização do prazer como a elaboração do
medo. Só é feliz quem se dedica a fazer os outros felizes, o que está muito dificultado nas

379
condições de prisão que as pessoas se encontram, pois “não só a possibilidade objetiva – mas
também a capacidade subjetiva para a felicidade é própria da liberdade” (p.78).
Talvez momentos de felicidade sejam como os descritos no conto “Felicidade clandestina”
(Lispector, 1987): clandestinos – realizados às ocultas; ilegal; escondido –, ligado ao querer e o
tempo segundo esse querer. Contato com o objeto por meio dos sentidos; o querer objetivado no
tempo: esconder para encontrar, adiamento do prazer para intensificá-lo no encontro com o
objeto catexizado; intensificação da satisfação na tensão presença, ausência, presença. No conto,
uma menina sofre com a espera do empréstimo de um livro tão ansiado, “As Reinações de
Narizinho”, de Moteiro Lobato.

“E assim, continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.” (Lispector, 1987, p.9.)

Aquela que emprestaria o livro, filha do dono de livraria, percebia o sofrimento da outra e
continuava inventando desculpas, estendendo indefinidamente a entrega do livro. Até que, pela
intervenção de sua mãe, teve fim o tempo de espera e a menina pôde ter o livro em suas mãos:

“Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora
mesmo. E para mim: ‘E você fica com o livro por quanto tempo quiser.’ Entendem? Valia mais do que me dar
o livro: ‘pelo tempo que eu quisesse’ é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de
querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse
nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro
grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois
abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava
as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei!Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em
mim. Eu era uma rainha delicada.
À
s vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” (Lispector, 1987, pp.9-10;
aspas e reticências no original.)

Adorno (1993) compara a felicidade com a verdade como luz: “nós não a temos, mas sim
estamos nela” (p.97). É um estar envolvido – uma volta ao útero materno e a segurança por ele
proporcionada – que não se pode saber como é a não ser depois de passado esse momento.
Vive-se. O relato consciente já implica em recordação e gratidão. O momento de felicidade
neste caso aparece como oculto e ilegal, pois quebra o princípio de realidade que impera nessa
sociedade, pede pela presença do querer regulando o tempo. No estado de infelicidade os
homens têm noção, aparentemente muito clara, do que não se quer, exatamente pelo querer estar
encoberto por tantas renúncias já realizadas. Iluminado o querer, a configuração de seu estado

380
muda completamente e o novo sentido atribui características diferentes aos velhos elementos ao
mesmo tempo em que faz emergir outros.
Na infância as pessoas estão mais próximas do que leva à felicidade. Nela têm-se ainda
experiências que buscam realizar as pulsões. Essa proximidade é revivida, já adulto, com a
lembrança suscitada por odores, sons, imagens que se remetem aos tempos de criança: a
possibilidade da percepção espontânea que “ainda apreende a contradição entre o fenômeno e a
fungibilidade – que a percepção resignada dos adultos não alcança mais – e tenta a ela se
subtrair” (Adorno, 1993, p.200); a quebra da rotina de casa ao hospedar pessoas amistosas, mas
diferentes, o que traz a transformação da vida e “libera da maldição a felicidade do que está
mais perto ao casá-la com a distância mais longínqua” (p.156). Traz de volta, por instantes, as
promessas de uma percepção livre do princípio do equivalente e de reencontrar a diferença sem
medo, que por sua vez apazigua as ambigüidades do familiar estranho e do estranho familiar. É
também nessas possibilidades que se fundamenta o amor e

“É por isso que espera a existência inteira da criança, e é assim que, mais tarde, deverá ainda esperar quem
não esquecer o melhor da infância. O amor conta as horas até aquela em que o visitante transpõe a soleira
deposta, restituindo à vida desbotada todas as suas cores com um imperceptível: ‘Aqui estou eu de novo/
vindo de bem longe.’”. (Adorno, 1993, p.156; aspas no original.)

É do aprisionamento desse esquecer que, em algumas noites de tristeza inconsolável, as pessoas


vêm-se liberadas: “uma melancolia, que me arrastava de maneira irresistível para o abismo da
infância, despertou esse antigo som, que aguardava impotente no fundo. Como um eco, a
linguagem devolveu-me a humilhação que a infelicidade me infligiu esquecendo o que eu sou”
(Adorno, 1993, p.96). Um esquecer levado a cabo por todas as mutilações que impedem a
experiência e que deixam a sensação de falha, de humilhação, de erro no que pode ser vivido
pelo adulto, uma sensação de que a sua existência está reduzida ao nada, mesmo ainda
expressando um querer muito. Talvez, já adulto, em meio a alguma crise, pode-se perceber o
incômodo. Segundo Marcuse, para o querer se fazer presente é preciso liberá-lo do
esquecimento, liberar a memória da repressão:

“Desde o mito de Orfeu até à novelística de Proust, felicidade e liberdade têm estado associadas à idéia de
reconquista do tempo: o temps retrouvé. A recordação recupera o temps perdu, que foi o tempo de
gratificação e plena realização. Eros, penetrando na consciência, é movido pela recordação; assim, protesta
contra a ordem da renúncia; usa a memória em seu esforço para derrotar o tempo num mundo dominado pelo
tempo. Mas, na medida em que o tempo retém o seu poder sobre Eros, a felicidade é essencialmente uma
coisa do passado. (...) só a recordação fornece a alegria sem a ansiedade sobre a sua extinção e, dessa
maneira, propicia uma duração que de outro modo seria impossível. O tempo perde o seu poder quando a
recordação redime o passado.” (Marcuse, 1981, p.201; grifos no original.)

Pensar e sentir o peso do tempo patente nas renúncias vazias e na suspensão de realizações
acessíveis: muitas vezes a literatura expressa isso. Trazem, como mergulho na particularidade,
momentos de insônia e melancolia que podem ser sentidos em certas ocasiões da vida. O tempo

381
se conta em horas, dias ou anos? Fernando Sabino em carta à Clarice Lispector, que tinha
mencionado anteriormente que o tempo se conta em anos, escreve: “(...) acho que o tempo se
conta é em dias mesmo” (Sabino e Lispector, 2002, p.101). E Clarice responde:

“(...) o tempo se conta mesmo em anos. Deus me livre se fosse em dias. É como crescer ou envelhecer que só
se vê em anos. Como é que se pode ver a curva tão larga das coisas se se está tão próximo como é próximo o
dia? Pois se às vezes a palavra que falta para completar um pensamento pode levar meia vida para aparecer.”
(Sabino e Lispector, 2002, p.104.)

Mas, para quem está passando por um momento de angústia, sentindo a urgência da vida em
condições nada favoráveis para ela, o tempo se conta em segundos com as horas se queimando,
tornando-se cinzas. Assim, entre o ardor da vida se esvaindo e os vestígios do tempo se
consumindo como nada, as noites são sobressaltadas pela insônia:

“Mas é horror o que provocam as noites sem dormir, nas quais o tempo se contrai e se esvai infrutiferamente
entre as nossas mãos. (...) Nesse estado de completa impotência, o indivíduo percebe o tempo que lhe resta
para viver como o quarto de hora concedido antes da execução. Ele não espera viver de si sua vida até o fim.
A perspectiva de morte violenta e martírio, presente a cada um, prolonga-se na angústia de saber que os dias
estão contados e que a duração da própria vida está submetida à estatística; que envelhecer tornou-se uma
espécie de vantagem espúria que necessita ser surripiada à média. Talvez já se tenha esgotado a revogável
quota de vida posta à disposição pela sociedade. Essa angústia é registrada pelo corpo na fuga das horas. O
tempo voa.” (Adorno, 1993, p.145.)

O fluxo do tempo, tal como vem se apresentando hegemonicamente, é mantenedor da prisão, do


cativeiro caracterizado pelo esquecimento dos acontecimentos. Assim, relegando possibilidades
de liberdade e felicidade a paraísos ilusórios e inatingíveis, “o fluxo do tempo ajuda os homens
esquecerem o que foi e o que pode ser: fá-los esquecer o melhor passado e o melhor futuro”
(Marcuse, 1981, p.200). Tanto a capacidade de esquecer como a de lembrar são características
humanas, produtos do desenvolvimento da cultura. Não seria possível conviver com todas as
lembranças dos acontecimentos vividos, faz parte da saúde física e mental um nível de
esquecimento, ter um foco mais específico de atenção, estar atento a elementos mais
discriminados. No entanto, a memória vem encerrada ao sentimento de culpa e aos meros
deveres; isso escamoteia a origem dos sofrimentos e os transveste como punição e ameaça não
identificada, além de revestir a infelicidade como perpétua; com isso ficam obstruídas à
memória as possibilidades de prazer e as promessas de felicidade e liberdade. Assim, o que
prevalece é o medo de morrer e o sobreviver em vez de viver; por medo de morrer não se vive o
suficiente, não vivendo o suficiente, que é o satisfatório, não se vive de fato. É nesse sentido
que a capacidade para esquecer se configura como

“(...) a faculdade mental que sustenta a capacidade de submissão e renúncia. Esquecer é também perdoar o
que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecerem. Esse perdão reproduz as condições que
reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram – sem
derrotar essas forças. As feridas que saram com o tempo são também as feridas que contêm o veneno. Contra

382
essa rendição ao tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos, como veículo de libertação, é uma
das mais nobres tarefas do pensamento.” (Marcuse, 1981, p.200.)

Ir contra o tempo aprisionado ao sempre em frente da dominação, subverter esse contínuo,


implica em relembrar e redimir o passado. No entanto, para Marcuse (1981) só relembrar não
basta. São necessárias realizações, ação histórica, proporcionar fatos, acontecimentos. É
necessária a junção destas dimensões: memória, relembrar; realizar, acontecimento. Junção que
traga algo bom e que responda ao precisar e ao querer: poder sentir de um jeito diferente, ser
possível o aparecimento do novo. Nesse mundo essa atitude é difícil e arriscada. Talvez valha o
risco. Ora,

“É possível saber se se é feliz, ouvindo o vento. Este lembra ao infeliz a fragilidade de sua casa e basta para
arrancá-lo de seu sono leve ou de algum pesadelo. A quem é feliz, a canção do vento sugere segurança e
proteção: o furioso silvar do vento anuncia que este último não tem mais poder algum sobre aquele.”
(Adorno, 1993, pp.41-42.)

Literatura: testemunho ante ao sofrimento injustificado


O contato com as obras de arte, com a literatura, pode proporcionar alguma experiência, ser
formativo? Mantida a tensão expressão e forma no processo de criação artístico, a literatura
oferece ao escritor condições de, em vez de unir-se a um objeto na destruição, voltar-se para a
realização de uma obra na qual os sofrimentos condensados da parte revelam os de todos –
conhecimento que permite a denúncia estrita de como a sociedade deforma e não como um ou
outro está deformado. Trata-se de tomar contato com o sofrimento próprio de modo peculiar e
nisso ser capaz de tocar o sofrimento alheio. Momento exato que acontece entre contrastes de
vida e morte, ausência e presença do clandestino querer, que neste movimento ainda traz,
mesmo mutilado em meio à ordem da renúncia, a fidelidade ao objeto. Momento que toca a
danificada sensibilidade do receptor como passagens que também podem proporcionar
entendimento – um tateante pensar sobre si mesmo, sobre o outro, sobre a sociedade que está
dentro de cada um. Talvez seja bom considerar que é só tentando ir além da miséria do
existente, da ideologia que mascara e tenta justificar o sofrimento, que de fato se encontra
vestígios de transformação:

“Só o eu autônomo pode virar-se criticamente para si e eliminar o seu embaraço ilusório. Isso não é
concebível enquanto o momento mimético for reprimido a partir de fora por um superego estético alienado,
em vez de desaparecer na sua tensão com o que lhe é oposto na objetivação, e de se conservar. (...) A
expressão é a priori uma falsificação. (...) Mas a expressão não permanece inteiramente sob o encanto da
magia. O fato de ser dita e de aí ganhar uma distância em relação à imediatidade cativa do sofrimento,
transforma-a da mesma maneira que o brado atenua a dor insuportável. A expressão objetivada em linguagem
persiste inteiramente, o que um dia foi dito dificilmente se esvanece de modo completo, tanto o mau como o
bom, tanto o slogan da solução final como a esperança da reconciliação. O que acede à linguagem integra-se
no movimento de algo de humano que ainda não existe e se agita em virtude da impotência que o constrange
à linguagem. O sujeito, tateando por detrás da sua reificação, limita esta mediante o rudimento mimético,
representante da vida intacta no seio da vida mutilada, que o sujeito erigia em ideologia. (...) A arte autêntica
conhece a expressão do inexpressivo, o choro a que faltam as lágrimas. (...) Se o sujeito já não deve poder

383
exprimir-se imediatamente, deve, no entanto (...) falar através das coisas, da sua forma alienada e mutilada.”
(Adorno, 1988, pp.137-138.)

Por isso, as possibilidades presentes na elaboração objetiva da obra de arte e no contato com
esta, podem trazer elementos para o entendimento e a superação dos obstáculos sociais que
danificam a vida além de resguardar, àqueles que têm essas possibilidades, das manifestações de
destruição (Adorno, 1993). Ainda que, vedado o contato com os objetos na realidade social, no
entrelaçamento da expressão e da forma, o prazer e o medo são confrontados, como não-
violência, com possíveis objetos de satisfação. Na tensão entre o externo e o interno busca-se
lidar com a dor, pois ficar aquém da percepção da dor e/ou na louvação da própria dor é morte
em vida, sobrevivência, obediência.
Se a obra literária guardar a possibilidade de expor como estilhaço as cicatrizes (marcas da
sociedade na subjetividade) causadas por se viver sob o medo e não realizar o prazer, se não se
esquecer do sofrimento, como expressão e que confere substância à forma, talvez ela ainda
possa se contrapor à Indústria Cultural: um sistema coerente que exige a execução do ritmo de
aço, que imprime o caráter compulsivo da sociedade industrial ao converter o processo técnico
como conteúdo dos bens culturais (Horkheimer e Adorno, 1994). Na intensificação deste
processo, tanto as capacidades sensíveis (sensuais) como as intelectuais (racionais) são
atrofiadas, embrutecidas em meio à falta de contato. Como exposto, para Adorno (1988) o
sofrimento é o conteúdo humano que a servidão, de certo modo consciente, exigida pela
Indústria Cultural, falsifica.
Desse modo, torna-se fundamental para as ciências sociais, em particular a psicologia, estar
atenta àquilo que a arte pode revelar do sofrimento. Trata-se de buscar condições mais
apropriadas de defesa do indivíduo: que este, na autonomia e na satisfação, possa de fato viver e
não gastar energia simulando uma sobrevivência vazia em meio a tantos bens do infortúnio.
Procura-se com estas considerações focalizar o aspecto cinzento, “o gris da teoria, (...) função
do caráter desqualificado da vida” (Adorno, 1995, p.203), sem desprezar a possibilidade de, no
contraste com o infortúnio e com a morte, trazer alguma esperança na cor que possa estar
presente na arte.

“O esplendor estético não é apenas a ideologia afirmativa, mas também reflexo da vida não submissa: apesar
da ruína, há nela esperança. O esplendor não somente o sortilégio pútrido da indústria cultural. Quanto mais
alto se situa uma obra tanto mais magnificente ela é; só a cinzenta se arruína no tecnicolor.” (Adorno, 1988,
p.66.)

Busca-se em meio aos bens do infortúnio, no desespero organizado na obra literária, considerar
a importância da arte como “trabalho em algo que resiste” (Adorno, 1988, p.20) como um
momento em que alguns, como representantes da obra a ser realizada pela humanidade e

384
expressando o aprisionamento entre o querer e o não conseguir viver, realizam obras na
esperança desesperada (que não espera mais nada da ordem da dominação) de poder enfim
viver.

Palavras-chave: Teoria Crítica da Sociedade – Formação do Indivíduo – Indústria Cultural –


Expressão Artística – Experiência Estética – Literatura

Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Minima moralia; reflexões a partir da vida danificada. Tradução de
Luiz Eduardo Bicca; Revisão da Tradução Guido de Almeida. 2ed. São Paulo: Editora Á
tica,
1993. 216p. . [Publicado originalmente em 1951].
______. Posição do narrador no romance contemporâneo. In. ______. Os pensadores; textos
escolhidos Walter Benjamim, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas. São
Paulo: Abril Cultural, 1980, pp.269-273. . [Publicado originalmente em 1954].
______. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. [Publicado
originalmente em 1970].
______. Palavras e sinais; modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1995. 259p. [Publicado originalmente em 1969].
FRANCISCATTI, Kety Valéria Simões Franciscatti. A maldição da individuação: reflexões
sobre o entrelaçamento prazer – medo e a expressão literária. São Paulo: 2005. Tese
(Doutorado em Psicologia: Psicologia Social) – PUC SP.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Centauro Editora, 2000. 187p. [Publicado originalmente em 1946].
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento; fragmentos
filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994. pp.113-156. [Publicado originalmente em 1944].
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida; pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
162p. [Publicado originalmente em 1978].
______. Felicidade Clandestina. 5ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. 167p. [Publicado
originalmente em 1971].
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização; uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
8ed. Tradução de Á
lvaro Cabral. Rio de Jan eiro: Zahar Editores, 1981. 232p. [Publicado
originalmente em 1955].

385
SABINO, Fernando e LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. 4ed. Rio de Janeiro/São
Paulo: Editora Record, 2002. 222p. [Publicado originalmente em 2001, as cartas escritas
entre 1946/69 ].

386
Texto fílmico e indústria cultural: uma dimensão democratizadora?

Leila Beatriz Ribeiro


Valéria Cristina Lopes Wilke
Carmen Irene C. de Oliveira
André Januário da Silva
Wagner Miquéias Félix Damasceno

Instituição: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Introdução
A proposta de problematizar produtos culturais de natureza fílmica no contexto teórico
das formulações da Escola de Frankfurt, colocou-nos diante de algumas opções que podem ser
sintetizadas em dois posicionamentos: a escolha do pensamento de Walter Benjamin, em virtude
de sua intencionalidade e potencialidade, e, como conseqüência, a procura de um caminho que
nos levasse a enfocar a linguagem no contexto frankfurtiano. Tal atitude possui suas razões. A
primeira tem como sustentação a postura de Benjamin diante da cultura de massa, em oposição
mesmo àquela de Adorno e Horkheimer que localizam os representantes dessa cultura,
especialmente o cinema, assim como seu produto, o filme (o texto fílmico), como
exemplificadores de uma condição alienante, na medida em que apresentam dois traços
significativos que é o da reificação e da alienação, constituindo, assim, “o último e mais sutil
avatar da repressão [...] de tal modo triunfante, que dispensa tôdas as suas formas físicas e
diretas [...]” (MERQUIOR, 1969, p. 99). Nesse sentido, vale lembrar que o conceito de indústria
cultural desenvolvido por Adorno e Horkheimer, assim como os meios de comunicação de
massa e a cultura de massa, surgem como funções do fenômeno da industrialização. Nessa
esteira, a transformação de bens culturais em mercadorias ocorre a partir de sua produção
conforme a lógica da industrialização e a do mercado, voltado basicamente para o
entretenimento, que funcionaria mascarando a realidade. Dessa forma, o cinema traria consigo
as marcas de sua produção alienante, visto que o homem, durante o processo – e mesmo
posteriormente – não medita sobre si mesmo e sobre a totalidade do meio social circundante,
tornando-se um simples produto alimentador do sistema que o envolve. Devemos ressaltar aqui
a condição desse mesmo produto como um constructo social de um tempo. Nesse sentido, o
texto fílmico apresenta-se como um documento, passível de análises e indagações, tendo em
vista aspectos e dimensões que o processo massificador cultural não previra desencadear.

387
Um dos aspectos da análise benjaminiana nos indica a dimensão pedagógica do cinema,
que ensina, num primeiro momento, o indivíduo a se relacionar com a metrópole, porque,
utilizando-se de imagens em movimentos rápidos, contribuía para treinar os sentidos e a
consciência conforme o ritmo frenético dos hiperestímulos presentes na grande cidade.
(RIBEIRO, 2005) No segundo momento, o cinema promovia também o aprendizado em relação
à presença da técnica na vida moderna em seu todo, pois o filme exercitava o homem

[...] nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo
papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco
aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa
tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.
(BENJAMIN, 1994, p. 174)

Por outro lado, quando se pensa a relevância da linguagem, como destacada por
pensadores contemporâneos, vemos a possibilidade de alimentar o pensamento de nossa época,
situando os produtos culturais circulantes, materializando produções ideológicas sob a forma de
diferentes códigos e formas de expressividade (GHIRALDELLI JR., 2001). A nossa segunda
postura, então, apóia-se em algumas considerações, que abrem a perspectiva de releitura dos
produtos culturais, no quadro da Escola de Frankfurt, tendo em vista a linguagem,
especificamente a cinematográfica. Procuramos, assim, pensar que o sistema capitalista, cenário
propiciador da onipotência do mass media, produzia e fazia circular produtos como
representação, mas não previa, como conseqüência, que o potencial da linguagem
cinematográfica, em específico nesse trabalho, no lugar de re-presentar, funcionando meramente
como veículo, apresenta e concretiza questões que, no caso de O Vingador do Futuro e
Metrópolis, não somente representam temas ficcionais sobre um futuro, mas dão forma e
constroem perspectivas utópicas e/ou distópicas contemporâneas.
Aqui procuraremos problematizar essa noção do cinema como uma produção típica da
indústria cultural tendo em vista seu potencial como gerador e depositário de uma memória que
contém narrações das experiências humanas. Nesse sentido, uma leitura das concepções de
Walter Benjamin, que transita entre a constatação da perda da aura da obra e a sua condição
reprodutora e disseminadora, que criaria possibilidades de renovação e democratização, sustenta
nosso posicionamento. Em nossas pesquisas, trabalhamos com filmes de sci-fi e no seu
potencial de elaboração/construção de representações de futuro, efetuadas no presente,
sustentando uma idéia de memória de futuro. Nesse sentido, o texto fílmico não funcionaria
apenas como veículo de representações; constituiria, como uma forma narrativa, uma instância
na qual representações se materializam, justamente em função do potencial da linguagem
cinematográfica e do cinema como indústria. Tal conceito, no âmbito das produções fílmicas,
possibilita a percepção de que este produto da indústria cinematográfica não se reduz a um texto

388
de inculcação ideológica, com vistas à alienação e ao embotamento, mas à constituição de novas
representações sobre e a partir da sociedade e das forças motrizes que colocam em movimento
os novos quadros de compreensão do mundo, pautados no advento da sociedade da informação.

A arte e sua reprodutibilidade técnica


No ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica não encontramos os
conceitos de cultura de massa ou de indústria cultural explicitamente determinados. Contudo,
podemos inferir que Benjamin percebeu uma nova situação que se insinuava “nos fatores sociais
específicos que condicionam o declínio atual da aura, [que derivaria] de duas circunstâncias,
estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas” ou ainda
quando esse autor se refere ao “abalo violento da tradição.” Ademais, Benjamin destacou a
substituição da primazia da noção de beleza pela de divertimento em tempos da
reprodutibilidade técnica dos produtos artísticos/culturais. Portanto, nos produtos desse novo
contexto histórico, numa época de uma arte sem aura, o que entretém, o que diverte possui mais
valor do que a beleza. (BENJAMIN, 1994, p. 170)
Segundo Benjamin, o momento atual da destruição da aura corresponderia a “uma
forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças
à reprodução ela consegue captá–lo até no fenômeno único”. Por conseguinte, o autor
identificava nas massas modernas duas características: “fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’
[e] sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”.
Posteriormente, essa nova situação foi definida por Adorno e Horkheimer como a da indústria
cultural. Portanto, vimos que acerca da reprodutibilidade técnica da arte, Benjamin desenvolveu
a seguinte reflexão: os procedimentos da reprodução técnico–industrial arruinariam a idéia da
unicidade da obra, a qual concedia à obra de arte um revestimento que a distinguia – a aura.
Devido a sua aura, um objeto artístico seria único e raro. A aura desse objeto, por sua vez,
dependia de seu hic et nunc. O desaparecimento da aura, causado pela multiplicação em série do
objeto artístico, proporcionado pelas condições técnicas da moderna sociedade industrial,
corresponderia a efeitos sociais e estéticos. No primeiro caso, teríamos a perda do caráter
aristocrático da arte; e no segundo, a experiência do espectador com o objeto de arte não seria
mais a da contemplação desinteressada e sim a da participação e a do divertimento.
Benjamin não viu com maus olhos a perda da aura e a conseqüente cultura feita para as
massas (o momento da indústria cultural). Essa seria um sintoma positivo, uma vez que
abarcaria os experimentalismos de Einsenstein, de Brecht, de Maiakovski, de Chaplin. A perda
da aura abriria, assim, a possibilidade da democratização da cultura e a ela o fascismo respondia
com a “estetização da arte” e com a “estetização da política”. No que diz respeito ao cinema, é

389
possível perceber, nessa obra, o otimismo de Benjamin com relação aos efeitos positivos da
expansão tecnológica.

Esta perspectiva otimista coloca subitamente Benjamin nos antípodas da


desconfiança total em relação aos ‘milagres’ do tecnológico partilhada por
Adorno e Marcuse. A partir desse traço utópico, Benjamin considera
positivos até mesmo os aspectos inconscientes da atuação do cinema.
(MERQUIOR, 1969, p. 121)

Memória do futuro e sci-fi


No que diz respeito à ficção científica cinematográfica, fixadas em suas imagens
encontramos o desencanto, a diagnose e a crítica do presente, lançados ao futuro e
materializados, tal como linhas de fuga, em uma Memória do Futuro, que, como qualquer
memória construída coletivamente, documenta e pode ser acionada e evocada por aqueles que a
compreendem.
Desde Thomas More, sob uma utopia se insinuam a crítica social e a aspiração por uma
transformação radical da ordem social vigente. Por isso elas decorrem do descontentamento
com uma determinada ordem, que é vista como desordem. A esta ordem corresponde um certo
tipo de poder contra o qual se insurge a utopia, desafiando-o ao propor uma nova ordenação que
organiza o convívio humano tendo em vista um outro contexto. Esta “realidade diferente” pode
ser reinventada seja à maneira de More, pelo fim daquilo que origina o mal na terra, ou de
Bacon, apostando-se na salvação tecnocrática, ou à la Marx e Engels, a partir de considerações
estruturais; e mesmo dentro de cada uma destas perspectivas há inúmeras possibilidades de
realização utópica. Ela também pode ser projetada em um futuro distante ou ainda situada no
mesmo tempo, mas numa outra região, tal como a ilha Utopia.
No futuro imaginário ou no presente diferenciado geograficamente, as criações utópicas
e distópicas se voltam para o presente daqueles que as criam, atuando como fonte de diagnóstico
e como elemento de crítica ou sintoma do desencantamento. Isto ocorre porque cada uma delas
tem por base a inserção ideológica de seu ou de seus criadores. Por isso, mesmo que uma utopia
e/ou distopia sejam apresentadas na forma ficcional, tal como a novela filosófica de More ou um
texto fílmico de ficção científica, elas, de fato, têm algo de uma não-ficção porque, elaboradas a
partir do posicionamento ideológico de seu criador, têm o poder de diagnosticar e de criticar o
seu contexto social de origem ao apontar para uma outra “realidade” não-existente e que, talvez,
nunca venha a existir.
Encontramos, também, no pensamento deleuziano (1988) duas metáforas, a da dobra e
do duplo, por intermédio das quais podemos refletir sobre algo que a ficção científica
cinematográfica pode apontar sobre nossa época. Com elas, Deleuze parece explicar as novas
formas de construção de subjetividade a partir de uma relação entre um “espaço de fora” –

390
espaço da absoluta memória – que dá forma a um “espaço de dentro” – espaço da curta
memória. Com a dobra temos o lado de fora e o de dentro. Duplicar o presente é interiorizar o
lado de fora; é determinar, por dobras que se sobrepõem as subjetividades (individuais e
coletivas): a primeira diz respeito “à parte material de nós mesmos”, nível da percepção
corpórea – ou como nos percebemos como seres de carne e osso; a segunda é a da relação de
forças; a terceira é a dobra da verdade, “condição formal para todo saber”; finalmente, a quarta
dobra é o próprio lado de fora, espaço do qual o homem espera a imortalidade ou a eternidade, a
liberdade, a morte... espaço de projeção de algo que só toma forma em outro lugar. O
movimento das dobras não é estável, logo podemos pensar em subjetividades que não se
cristalizam; para Deleuze, trata-se “da luta por uma subjetividade como direito à diferença, à
variação e à metamorfose”. (DELEUZE, 1988, p. 113)
As duas memórias – curta e absoluta – constituem-se nesses dois espaços: do lado de
fora (absoluta memória) há outras condições de possibilidade as quais promovem o
deslocamento espaço-temporal das utopias e das distopias, que o homem elabora a partir do lado
de dentro. Este é o espaço da curta memória, que é pesada porque aprisiona, cristaliza e torna
fardo subjetividades e memórias (coletivas e sociais) que procuram se constituir como
identidades fixas. É dela que são postos para fora o que é ruim, tal como num expurgo, e ainda o
que é benfazejo e esperançoso. Um e outro caso nos indicam a necessidade de rompermos com
o cristalizado.
Os filmes de ficção científica, nesse contexto, seriam uma “pálida” tentativa de
descristalização do que vivemos “no dentro”. Quando nos situamos na intercessão da dobra,
pelas representações imaginadas destes filmes, as tentativas de projeções realizadas para “o
fora”, lugares utópicos e distópicos, estão sempre se referindo “ao dentro”. Essas ficções
científicas cinematográficas ao duplicarem o presente (“o dentro”) de seus contextos de
produção, remetendo-nos para “realidades diferentes” (“o fora”) e expurgando o “infernal” ou
sonhando com o futuro benfazejo, servem para nos desalojar de nossas certezas ao apontarem
para o Diferente.

Metrópolis – “luzes e sombras”; “mentes e mãos”


No ano de 2026 o mundo encontra-se dividido em duas classes sociais distintas: a elite
dominante que representa a “mente” que planeja e organiza o mundo, e a classe trabalhadora
que é representada pelas “mãos” que executam e vivem no subsolo das cidades. Maria, líder
pacifista, prega uma paz conciliadora entre patrões e empregados e convoca os companheiros a
esperarem por aquele que fará a mediação entre os dois estratos. Representando o “coração”,
esse que fará o papel de articulador, surge a figura de Freder, filho do patrão que ao mesmo

391
tempo em que se apaixona por Maria toma consciência das péssimas condições de vida dos
trabalhadores. Para acabar com as reuniões e com o trabalho do operariado, é criado um robô
que ao tomar o lugar de Maria insufla os trabalhadores para a destruição das máquinas. Quando
a trama é desvendada com a morte do cientista criador do robô e o reaparecimento de Maria,
patrões e empregados unem-se simbolicamente com um aperto de mão.
Visto como autêntico representante do expressionismo, o filme de ficção científica
Metrópolis, épico marcado fortemente por um futuro carregado de pessimismo e tristeza,
apresenta as péssimas condições de trabalho do operariado, escravos de uma tecnologia e com
uma acirrada luta de classes. A partir de um aperto de mãos entre “mentes” e “mãos”, dá-se o
desenlace “apaziguador”, intermediado por Freder, filho do patrão, e pela personagem Maria,
líder pacificadora dos operários, que busca uma reconciliação. Contudo, ainda assim, o final da
história não consegue “apagar” o conflito: “Não pode haver compreensão entre as mãos e o
cérebro, a menos que o coração aja como mediador” (Diz Maria para Freder). No entanto,
nesse desfecho, mesmo acompanhado de polêmicas, muitos enxergam finalmente a ascensão da
classe trabalhadora ao poder, ainda que “reconciliada” com o poder hegemônico burguês.
Outros entendem que, na verdade, esse ato conciliatório, representado pelo aperto de mãos final
entre o capataz do dínamo central e o patrão, sugere que a classe operária havia finalmente se
rendido incondicionalmente, à elite dominante.
Na monumental e superdesenvolvida cidade do filme Metrópolis, os contrastes são
patentes, percebidos através dos imensos edifícios futuristas e dos espaços a sua volta, viadutos
e ruas estreitas em que sobrevoam máquinas voadoras, apresentando uma imagem
claustrofóbica em relação a grandiosidade das escadarias e das máquinas, por exemplo. No
entanto, mesmo com uma estética futurista a projeção é “absolutamente vinculada à conjuntura
de então”. (LINS, 1988, p. 20) A luta ou diferença de classes é marcada fortemente por meio da
localização dos espaços de trabalho e de moradia de ambas. Assim, enquanto a classe dominante
mora e trabalha nos espaços superiores, as classes baixas habitam as partes inferiores e
trabalham para o desenvolvimento e para o progresso da metrópole, acorrendo às antigas
catacumbas para escutarem as narrativas “quase bíblicas” de Maria, sua líder espiritual. Os
exemplos são bastante pontuais, já no início do filme uma imagem babilônica e idílica do
“Jardim dos Prazeres” é apresentada; local em que Freder, filho do poderoso John Fredersen
brinca despreocupadamente com sua irmã, um cenário composto luxuosamente e no qual
percebemos uma enorme fonte e um pavão. “Nas profundezas” encontra-se a Sala das
Máquinas, onde, distribuídos em pequenos nichos, manipulando engrenagens, os trabalhadores
transmitem a idéia de que funcionam como parte dela. A moradia dos trabalhadores, situada
mais abaixo, é vista, metaforicamente, como uma referência à discriminação dos guetos judeus

392
(ROSATTI, 2004). Mas essa concepção de segmentação social também encontra-se refletida
nos espaços urbanos de Metrópolis, cujo expoente máximo é a arquitetura de Le Corbusier. A
tônica dessa arquitetura é um projeto estético racionalizante dos espaços e das formas,
acompanhado de um projeto político que acreditava em uma fusão positivada entre a arte e a
indústria como instrumentos de progresso social. Nesse sentido, o papel (conflituoso) que a
ciência e a técnica ocupam no filme, representados pelo cientista Rotwang e pela parafernália
visual, que compõe tanto o seu laboratório quanto a sua imagem, como a mão mecânica e os
cabelos despenteados que se tornaram recorrentes em filmes de ficção científica e de horror,
constituindo uma representação imagética do “cientista louco”. O cientista, perverso, insano,
sempre ao lado do poder e dotado de um conhecimento invulgar é capaz de criar, a pedido do
industrial, a mais fantástica criatura: um robô. E com o auxílio de seus instrumentos e
equipamentos, máquinas enormes; alavancas; botões; tubos de ensaio etc. representantes da
“energia”, no dizer de Rosatti (2004), mantêm o poder e o luxo dos ricos e serve como
instrumento de tortura dos pobres que a operavam incessantemente.
A máquina, construída e criada de forma semelhante à Maria, com o intuito de tomar o
seu lugar junto aos trabalhadores e incitá-los à revolta é uma “máquina-vamp”,
excepcionalmente sensual e diabólica, uma referência explícita sobre a relação existente entre
máquina e mulher. Uma visão em que o feminino, demoníaco, foge ao controle do masculino e
ameaça a existência humana, já que a mulher resiste à tecnologização por conta de sua função
reprodutora. Assim, segundo Huyssen (apud LINS, 1988), no momento em que o cientista
inventou esse ser técnico, realizou a fantasia masculina de criação sem a presença feminina e
pôde então, solitário, unificar-se consigo mesmo. É um tempo que vivencia a expansão do
universo e a revolução da indústria, um tempo em que os referentes tornam-se sígnicos e, dessa
forma, isentos de tradição, podendo ser criados em série. Assim, o ser representante por
excelência dessa época será o robô, um simulacro de segunda ordem que, ao eliminar a
“diferença metafísica entre o homem e o autômato”, absorve e busca igualar-se a ele. (LINS,
1988, p. 10) Além disso, o efeito cenográfico do cinema expressionista será reforçado pela
iluminação contrastante entre claros e escuros radicais, associados aos grandes cenários e aos
personagens dramáticos e exagerados, beirando às vezes uma imagem caricatural da realidade.
Com os efeitos de iluminação, agregados ao apuro técnico e cenográfico utilizados na abertura
de Metrópolis, Fritz Lang nos leva ao conhecimento, de forma gradativa, da espetacular cidade.
Mostra-nos através de uma fusão de imagens, o ritmo e o movimento de uma grande metrópole,
apresentando também o tempo do trabalho marcado pela visão do relógio, dos pistões e de
outras engrenagens das máquinas, das sirenes, dos feixes de luz, da fumaça e da troca de turnos
dos trabalhadores que, cabisbaixos e simetricamente enfileirados, marcham para pegar os

393
elevadores para mais um dia na fábrica. Manzano (2003), em sua análise, privilegia essa
seqüência, identificando nela uma sonoridade implícita e espetacularmente visualizada na
demonstração da abertura inicial de Metrópolis.
Usando os principais elementos da arte expressionista, Metrópolis reverencia a luz e a
sombra, os grandes coros, os elementos simétricos, a atuação exagerada e deformada e o vigor
da “alma alemã” ao expressar angústia através dos personagens fortemente desenhados. Ao
tematizar acerca do futuro, Fritz Lang, influenciado por uma arquitetura futurista e com seus
conhecimentos de desenho e de arquitetura, fez de seu cinema um traçado detalhado e
desprovido de formas e elementos supérfluos, tão caro à estética modernista.
Em Metrópolis, os trabalhadores ou são mostrados como passivos e esperançosos ao
ouvirem e esperarem o “conciliador”, conforme pregado por Maria ou são indivíduos facilmente
manobráveis, como uma massa incontrolável diante do instigamento realizado pelo robô,
travestida de Maria. Essa tipificação ainda é explorada, quando há exacerbação de sentimentos
irracionais, pois a massa é incapaz de discernir acerca das conseqüências de seus gestos, quando
destrói as máquinas e inunda a cidade dos trabalhadores, colocando em risco seus empregos e a
vida de seus filhos. A reconciliação entre patrão e trabalhadores aponta para um mundo em que,
talvez a garantia do trabalho ainda permaneça através do expurgo do cientista, com sua morte e
a demonização da ciência, e com a destruição do robô na fogueira da Inquisição. Mostra a
iminência do desenrolar dos acontecimentos que, via de regra, dizem respeito à marcação do
minuto a minuto do trabalho, como em uma cena do filme, que opõe a figura do trabalhador
exausto controlando a máquina ao relógio marcando a passagem do tempo. As “máquinas que
devoram trabalhadores” anunciam uma contemporaneidade simbiótica carregada de dispositivos
e de tecnologias biológicas. São elas que metaforicamente engolem e regurgitam trabalhadores,
numa relação antropofágica bastante compreensível em um contexto de crise de desemprego e
automação crescente àquela época.

O Vingador do Futuro: memória e identidade na sobrevivência do sujeito


O filme O Vingador do Futuro (Total Recall) de Paul Verhoeven explora a dificuldade
de se diferenciar experiências reais de experiências fantásticas. Filme de ficção científica, a
história se passa no ano de 2084, onde o planeta Terra está dividido entre os Blocos Norte e Sul.
O mundo está baseado na alta tecnologia, que garante uma grande especialização tanto na esfera
do trabalho quanto na do lazer. Marte foi colonizado, e como colônia a sua principal função é
fornecer um minério chamado tribinium que o filme nos mostra como sendo essencial para os
esforços de guerra. A personagem de Arnold Schwarzenegger é Douglas Quaid, homem que se
enquadra como um cidadão comum médio daquela sociedade, casado e com um emprego,

394
levando, aparentemente, uma vida comum. O cenário no qual o filme se desenvolve nos
apresenta uma sociedade altamente avançada sob o ponto de vista tecnológico com motoristas
de táxis robôs e dispositivos de implante de memórias embora o filme mostre Quaid trabalhando
em uma firma que nos lembra uma pedreira, onde ele tem por função chacoalhar com uma
britadeira, tarefas ainda desenvolvidas por humanos. Quaid tem fixação na idéia de viajar para
Marte, e está insatisfeito com sua vida levada no planeta Terra, embora o noticiário evoque as
conturbações da colônia que no momento recebe investida de rebeldes caracterizados em sua
maioria por mutantes telepáticos criados pela radiação, e que visam à independência da colônia
sob o jugo do tirânico Vilas Cohaagen que é implacável na condução de chefiar o Planeta
Vermelho. Quaid procura uma empresa, a Rekall, que insere memórias de férias ideais, para
encomendar as suas. Após sofrer uma embolia esquizóide, provocada pelo fato de que suas
memórias “reais” já haviam sido apagadas por uma instituição chamada Agência, Quaid
descobre que não é o trabalhador que pensava ser, e que sua vida pregressa está ligada a
atividades que desenvolvia em Marte. Assim, ele decide ir àquele planeta em busca de sua
verdadeira identidade e descobre que lá ele era Hauser, um agente duplo que trabalhava
infiltrado no grupo dos rebeldes, sob ordem de Vilas Cohaagen.
Tendo em vista as questões com as quais trabalhamos, dois aspectos se destacam: o alto
nível de desenvolvimento tecnológico, que permite vivências experenciais diferenciadas e
concomitantes e, como decorrência, o problema da memória e da identidade.
Rivera nos fala acerca do filme a partir do apetite faustiano presente nessa ficção
científica, que segundo ele, é um “apetite desmesurado de somar vidas à nossa vida, até acabar
querendo vivê-las todas.” (2004, p. 220) Para ele, uma alternativa em dar vazão a esse apetite é
oferecida no filme, quando Douglas Quaid experimenta o ego-tour, que o possibilitaria “ser”
um playboy, herói do esporte, agente secreto, ou qualquer outra personalidade, sendo essa
última biografia, a de agente secreto, que o cativa de forma irresistível. Tal máquina que
proporciona as férias ideais de si mesmo promete “romper” com sua rotina diária, sua vida
comum.
Através desse poderoso engenho gerador de ficções, em tudo semelhante ao
real, Doug satisfará suas inclinações faustianas. Esse não se resignar a viver
uma só vida e tentar manter ativadas trajetórias distintas dentro da árvore de
decisão vital é característico dos anseios faustianos. Por mais estranho que
possa parecer, esse apetite por viver muitas existências em uma só é
completamente normal, e nos entregamos a ele de forma cotidiana nos
sonhos, no consumo de ficções literárias ou cinematográficas, ou na ingestão
de alucinógenos. (RIVERA, 2004, p. 222)

Dessa forma, não seria o ego-tour um produto da indústria cultural, mas, agora, de uma
sociedade industrial mais evoluída, pós-industrial? A situação vivida por Douglas Quaid como
um trabalhador comum – operário – desejoso por viver uma vida mais prazerosa e instigante,

395
tirando férias de si mesmo sendo outro, através de um meio tecnológico, o ego-tour, parece
evidenciar, também, a “contradição” entre trabalho e lazer, sempre evocada ao se pensar em
indústria cultural e seu produto, a cultura industrial. É pelo apetite faustiano da busca pelo
lazer/prazer que Quaid tenciona encontrar refúgio para sua existência rotineira e maçante. E é
na dissociação da sua “realidade” permitida pela virtualidade, que Quaid parece ser, em
princípio, não muito diferente do indivíduo alienado descrito por Marx, e que o ego-tour,
apresenta-se antes como uma possibilidade evolutiva, de uma indústria cultural. No entanto,
assim como em Metrópolis, a narrativa conduz a uma solução utópica na qual se verifica a
emergência de um potencial revolucionário, que visa à mudança das condições de existência
presentes na diegese, rompendo com as condições de alienação mascaradoras. Por que
permanecem tão fortes as representações de uma sociedade alienante e de sua “salvação” por
parte de um herói? O que tais representações apresentam quando se instauram em textos
ficcionais dos meios de comunicação de massa? No nosso contexto e no do filme, a discussão
sobre memória e identidade parece trazer um caminho para respostas, talvez tão provisórias
quanto as “personalidades” de Quaid-Hauser.
Em um artigo sobre o filme, Rowlands (2005), nos mostra que a trama apresenta, como
elemento intrínseco de uma história que se desenvolve no contexto do refinado desenvolvimento
tecnológico associado ao lazer e cultural de massa, a questão da busca de identidade pessoal por
parte de Quaid. A identidade pessoal de seu verdadeiro eu é o que diferencia as pessoas, e o
filme desenvolve a idéia de que as memórias são o diferencial na caracterização de um
indivíduo único em relação aos outros. Com o passar dos anos todos nós seres humanos
sofremos mudanças fisiológicas embora o nosso ser imutável seja garantido por nossas células
cerebrais que, ao contrário das outras células do corpo, não morrem ou são substituídas; elas são
células “perenes”, enquanto o organismo humano tiver vida. Este então seria o diferencial no
nosso constituinte fisiológico e o que nos remeteria a idéia de que o cérebro é o nosso regente.
Para focalizar a questão da mudança, Rowlands inicia seu argumento a partir da filosofia de
Heráclito (Você não pode entrar duas vezes no mesmo rio). Ele acrescenta que na Grécia
Antiga, Aristóteles já discutia tal problema, levando em conta dois tipos de mudança que seriam
denominadas como: essenciais e acidentais. As mudanças essenciais seriam aquelas que, ao
ocorrerem seriam suficientes para terminar a existência de alguma coisa. Em contrapartida,
existiriam as mudanças acidentais que abarcariam as mudanças não significantes, o suficiente
para finalizar a existência daquilo que muda. Sob este prisma, a trama de O Vingador do
Futuro se aproxima dos princípios aristotélicos, pois a personagem de Quaid se enquadra no
princípio de que existe um eu que persiste ao longo do tempo, apesar das mudanças nele
ocorridas no âmbito fisiológico e psíquico. O fato de que estamos mudando constantemente, não

396
significa que não manteríamos uma identidade pessoal que em sua essência é imutável. O
sentido que temos de igual e diferente remete à idéia qualitativa que formamos quando usamos
estes termos para a comparação. Isto ocorre quando dizemos que uma pessoa não é mais a
mesma em relação ao que ela foi no passado, quando esta idéia está ligada ao sentido que
queremos empregar para discorrer à respeito de uma mudança de posição ou de caráter pessoal.

A distinção entre mudanças essenciais e acidentais nos fornece uma forma


de abordar estas questões. [...] Isto porque a mudança essencial é aquela que
finaliza nossa existência, acaba com nossa identidade numérica, a pessoa
que somos. [...] podemos descobrir o que nos é essencial, podemos descobrir
nossa natureza mais profunda, ao descobrir a quais mudanças podemos e as
quais não podemos sobreviver. (ROWLANDS, 2005, p. 92)

A partir de tais considerações, temos, inicialmente, em O Vingador do Futuro, a questão


da busca do ser, configurado pela personagem de Arnold Schwarzenegger, na tentativa de
desvendar sua natureza essencial para garantir sua sobrevivência na sociedade que habita. A
afirmação desta personagem é de que a mudança ocorrida consiste na luta pela sobrevivência de
Quaid frente às memórias de Hauser. No entanto, o que a embolia esquizóide faz é liberar um
dilema clássico encarnado na essência de uma única pessoa: a da luta entre o bem e o mal.
Dessa forma, Quaid-Hauser pode ser entendido como um campo de lutas, projeção das
condições sócio-políticas e econômicas da relação não mais entre países, mas entre planetas
que, por sua vez, é projeção da relação Norte-Sul do Planeta Terra. Temperado com os traços do
herói-mítico, reconfigurado no contexto da narrativa fílmica norte-americana, ele realiza as
expectativas positivadas de uma revolta popular e instaura uma nova ordem.

Considerações Parciais
O nosso conceito de memória de futuro tem como elementos constitutivos básicos as
noções de utopia e distopia, conforme elas foram construídas por pensadores do tema. A
projeção torna-se, nesse sentido, um procedimento essencial, cuja natureza determina-se em
função de um desejo de futuro com base em expectativas e visões de mundo do presente. A
insatisfação ou desilusão com a situação determina uma projeção utópica – o que deveria ser,
em outro lugar ou tempo, em oposição ao que é, no aqui e agora – ou distópica – não há
condições de realização ou instauração de uma perspectiva ou nova ordem, em oposição ao
que se é, no aqui e agora. Assim, a memória do futuro é redesenhada a cada narrativa fílmica
ficcional e, na presente análise, o ideal de Benjamin sustenta uma perspectiva de futuro na qual
a tecnologia, pode ser ou é positivada, representando um elemento, em potencial,
emancipatório. Tal aspecto é mais evidente em O Vingador do Futuro, onde o controle de uma
tecnologia alternativa possibilita a emergência de uma nova ordem social. Já em Metrópolis, é

397
pela destruição da epistème tecnológica alienante que se cria a condição de emergência de uma
sociedade conciliatória.
Por fim, procuramos destacar a condição do texto fílmico com bem cultural e
econômico que apresenta narrativas condensadoras de elementos de um imaginário coletivo
ocidental e as faz circular em um contexto mundial globalizado. Em específico, no caso da sci-
fi, os textos fílmicos apresentam, também, as condições de uma memória de futuro baseada na
representação de ciência, que se vincula à projeção utópica ou distópica de nossa civilização,
sendo, eles mesmos, produtos de um desenvolvimento tecnológico com uma longa trajetória.

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399
Indústria Cultural e Presentificação do Tempo

Leilyane O. A. Masson (UFG)


Anita C. A. Resende (UFG)

A visão a-histórica do tempo obstaculariza o desvelamento de sua constituição e de seu


caráter social. O tempo como se apresenta na sociedade capitalista é visto como natural, sem
alusão ao passado, é tratado sem estranheza, como mostra o emblema “sempre foi assim”.
A naturalização do tempo se dá de forma a desconsiderar sua história, sua relação com a
objetividade ao longo do tempo. Nesse sentido, o tempo é tratado como algo que sempre existiu
da forma como se apresenta, e portanto, destinado a que assim continue
Nesse contexto, a divisão social do trabalho se coloca como questão definitiva, pois
constitui as novas formas de relações humanas e sociais e altera a maneira de lidar com o tempo.
A presentificação do tempo é emblema de uma razão funcional pautada na imediaticidade, na
exclusão e na opressão travestida de liberdade.
Posto que, a forma como o tempo se articula está relacionada com a organização social
de determinado período histórico, na sociedade burguesa o tempo é instrumentalizado para se
adequar aos interesses da produção e do consumo, nesse processo, o presente ganha destaque
por responder ao imediatismo exigido pelo processo produtivo. A presentificação do tempo é
uma forma de articulação de temporalidades que nega o passado e o futuro. Se, em outro tempo,
o passado afirmava sua força constituindo sujeito e cultura predominantemente a partir da
tradição e da experiência transmitida, na atualidade, o presente se destaca e afirma sua
correspondência com o status quo.
Apagando os rastros do passado e se distanciando da perspectiva do futuro, a cultura, que
deveria possibilitar o desvelamento da realidade, é convertida, no contexto da sociedade
capitalista, em afirmação do real.

Nesse contexto, a aceleração do processo de produção, institui um ritmo alucinante ao


trabalho e ao trabalhador, que se expande para todas as dimensões sociais e psíquicas, e acaba
por constituir o ritmo da sociedade e, portanto do sujeito. O imperativo capitalista de que as
mercadorias precisam circular, exige que o consumo acompanhe o ritmo da produção criando
incessantemente novas e falsas promessas.

400
3.2 (Expressões da presentificação do tempo) – (Subtítulo provisório)

A busca de compreensão do tempo e suas formas de divisão e medição estão presentes


historicamente. No entanto, a intensificação do tempo quantificado e o ritmo acelerado foram
constitutivos e constituídos na sociedade industrial. O ritmo fabril reduz o tempo ao tempo
produtivo, tempo de trabalho que ultrapassa os limites da indústria.

O modelo de divisão social do trabalho se transfere automaticamente


para a vida do espírito, e esta divisão do reino da cultura é um
corolário da substituição da verdade objetiva pela razão formalizada,
essencialmente relativista (Horkheimer, 2002, p.27-28).

Nesse contexto, a aceleração do processo de produção, institui um ritmo alucinante ao


trabalho e ao trabalhador, que se expande para todas as dimensões sociais e psíquicas, e acaba
por constituir o ritmo da sociedade e, portanto do sujeito. O imperativo capitalista de que as
mercadorias precisam circular, exige que o consumo acompanhe o ritmo da produção criando
incessantemente novas e falsas promessas.
Esse procedimento racional, contemporâneo a presentificação do tempo, tem diversas
expressões nas instâncias constitutivas do sujeito, no trabalho, na família, nos grupos. No
entanto é a indústria cultural uma das expressões mais radicais desse processo, por negar os
elementos constitutivos do sujeito, ali mesmo onde estes deveriam ser formados, na cultura.
Adorno (1987) cunhou o termo Indústria Cultural para se contrapor à idéia de cultura de massas,
pois a cultura não surge da massa, na verdade, a indústria cultural cria “produtos adaptados ao
consumo das massas e que, em grande medida, determinam esse consumo” (p.287).
Sobre o termo indústria, Adorno (1987) afirma ser este apenas o emblema, “a
estandartização da própria coisa”, já que não se trata apenas do processo de produção, o
procedimento racional presente na Indústria Cultural é encontrado também na esfera da
reprodução, da distribuição e do consumo. Além da produção das máquinas, da lógica da
fragmentação e da divisão do trabalho, conserva-se ainda a produção individual. Cada produto é
apresentado como único, especial, sendo que essa ilusão encobre a padronização e
homogeneização de comportamentos e pensamentos. Os homens, em condição de heteronomia,
passam a operar de acordo com ditames externos, semelhantes àqueles da estrutura econômica.
Conseqüentemente, a noção de totalidade existente no processo de objetivação do
trabalho humano enquanto condição ontológica fica obstacularizada pela fragmentação do modo
de produção, a partir da mecanização da indústria e todas as suas implicações. “Nesse processo,

401
o homem vai sendo submetido a essa realidade fragmentada e a seus sistemas abstratos, de
modo que tanto no nível do pensamento, quanto da realidade, vai perdendo sua referência de
totalidade” (Resende, 1992, p.158).
O ritmo da produção industrial foi acelerado pela quantificação do tempo, porém a
economia de tempo por conseqüência deste processo, não culminou em maior tempo para as
necessidades culturais do sujeito. A princípio, a jornada de trabalho não diminuiu, o homem
passou a trabalhar com e como as máquinas, durante doze horas consecutivas na repetição de
uma mesma atividade. Segundo Lasch (1983) nos primórdios do capitalismo, o trabalhador era
visto como um animal de carga, um produtor, mas o controle e supervisão do trabalhador
terminavam ao fim do expediente, quando o operário saía da indústria.
Nessa lógica, o tempo do trabalho deveria consumir todo o tempo do trabalhador e o
tempo livre, passou a ser relacionado à criminalidade, ao desemprego e à falta de vontade de
trabalhar. O ócio e o lazer foram, então, demonizados pelo capitalismo. Surgiram campanhas
contra o álcool e o fumo e a favor da família e do trabalho como uma primeira forma de
controle fora da fábrica.
Contudo, a diversidade e a aceleração da produção de mercadorias exige um número
cada vez maior de consumidores. Nesse processo, a indústria cultural apropria-se do tempo do
não trabalho e o converte em espaço de consumo e, portanto de controle. Se a racionalidade do
trabalho se expande para a vida privada, o controle e a supervisão também invadem os lares e o
lazer do sujeito. Há algumas décadas os clubes, times de futebol e festas da empresa mantinham
os funcionários à vista no tempo do não trabalho. Na atualidade, o controle vai muito além, a
fidelidade ao emprego é garantida pela necessidade do consumo.

O ritmo da produção industrial foi acelerado pela quantificação do tempo, porém a


economia de tempo por conseqüência deste processo, não culminou em maior tempo para as
necessidades culturais do sujeito.
(...) compreenderam que o trabalhador poderia ser útil ao capitalista
como consumidor; que ele precisava ser imbuído de um gosto por
coisas elevadas; que uma economia baseada na produção de massa
exigia não somente a organização capitalista da produção, mas
também a organização do consumo e do lazer (Lasch, 1983).

Oferecendo mercadorias que aparentemente preenchem esse tempo e prometem o bem-


estar. “(...) O capitalismo, enquanto sistema totalizante, conseguiu ampliar seus pilares também

402
para o espaço do tempo de não trabalho, manipulando-o segundo sua lógica” (Antunes, 2000,
p.175).
Uma das origens do processo de administração do tempo livre está na transformação do
conceito de trabalho e de sua materialidade, que ao longo da história moderna foi se despindo de
seu caráter contraditório e sendo convertido em sua expressão particular e reduzida, tomado
como emprego. Convém retomar Marx (2001a), para lembrar que o trabalho convertido em
emprego, sua forma imediata,

(...) surge de tal modo como desrealização que o trabalhador se


invalida até a morte pela fome. A objetivação revela –se de tal
maneira como perda do objeto que o trabalhador fica privado dos
objetos mais necessários, não só a vida, mas também ao trabalho.
Sim, o trabalho transforma –se em objeto, que ele só consegue
adquirir com o máximo esforço e com interrupções imprevisíveis. A
apropriação do objeto manifesta –se a tal ponto como alienação que
quanto mais objetos o trabalhador produzir tanto menos ele pode
possuir e mais se submete ao domínio de seu produto, do capital.
(p.159).

Transformado em mercadoria, o produto do trabalho humano adquire um aspecto


“enigmático”, uma estranha autonomia frente ao seu criador. Isso se deve ao não
reconhecimento, à relação de externalidade entre sujeito e objeto, a mercadoria convertida em
fetiche e mediada pelo dinheiro, hostiliza todo o trabalho humano concreto nela contido e
adquire vida própria, além de um invólucro “místico” que obscurece o trabalho e, portanto o
passado nela contido.
Se, nesse contexto, o tempo de trabalho implica sacrifício e alheiamento. O fato de não
estar trabalhando toma significado de um ócio condenável para o sistema, acarretando
culpabilidade e mal-estar. Em tempos de trabalho alienado, o tempo livre evidencia um vazio,
que o sujeito procura erradicar.

403
Não significa menos do que, mesmo onde o encantamento se atenua e
as pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por
vontade própria, essa vontade é modelada por aquilo de que desejam
estar livres fora do horário de trabalho (Adorno, 1995b, p.71).

A mesma lógica que administra o tempo de trabalho, guia o sujeito em seu tempo livre.
Segundo Adorno (1995b), a idéia de tempo livre, no mundo moderno, está diretamente
relacionada ao oposto do tempo em que se está trabalhando, e este fato define questões
essenciais em sua compreensão. Em um tempo em que as pessoas são tomadas pelas suas
funções, o tempo livre acarreta um sentimento de angústia, pois, na verdade, o sujeito não é
livre nem em seu trabalho, nem em sua consciência.
O tempo em que o sujeito está trabalhando é administrado de forma explícita, há um
horário determinado de princípio e fim do trabalho diário, formas de controle quanto à
produtividade e uma conduta a ser rigorosamente seguida. Além disso, o ritmo e a serialização
do trabalho industrial são, também, formas de controle. O tempo livre, porém, possibilita a
ilusão de liberdade; a administração é um tanto mais sutil e, portanto, mais perversa.

A própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida


pelo comércio; o que elas querem lhes é mais uma vez imposto. Por
isso, a integração do tempo livre é alcançada sem maiores
dificuldades, as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde
mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi
abstraída delas (Adorno,1995b, p.74).

Para Adorno (1995b) o procedimento racional da indústria cultural é expresso ainda na


idéia de hobby. A separação e oposição entre trabalho e tempo livre evidenciam a racionalidade
alienada do não reconhecimento no trabalho e ao mesmo tempo da banalização de atividades
culturais e contemplativas. Como se não pudesse ser ao menos lembrada a possibilidade de
satisfação e reconhecimento na profissão escolhida e a seriedade e importância de atividades
como leitura, música ou contemplação na vida do sujeito.1 “Só o astucioso entrelaçamento de

1
Nem sempre o tempo livre foi pensado dessa forma. Os pensadores gregos, em especial, Platão e
Aristóteles, na busca de uma concepção de polis ideal, da elevação humana, entendiam que o ócio é
intrínseco à idéia de teoria, de pensamento. Nessa concepção, a temporalidade própria do trabalho
intelectual está vinculada a experiência e a contemplação e no cerne destes conceitos está a idéia de ‘ver
aquilo que é’, de transcender a aparência em busca da perfeição. Esse movimento indica a
impossibilidade da formação para a excelência na perspectiva de uma temporalidade fragmentada.
Segundo Aristóteles, todo movimento requer tempo e é realizado visando uma finalidade, tornando-se

404
trabalho e felicidade deixa aberta, debaixo da pressão da sociedade, a possibilidade de uma
experiência propriamente dita” (Adorno, 1993, p.114).
Na contemporaneidade, comportamentos padronizados, desprovidos de sentido e
distantes da realidade são convertidos na ocupação do sujeito em seu tempo livre. Os momentos
de contemplação, de experiência, proporcionados pela arte, música ou leitura se perdem nesse
contexto. Trata-se da coisificação do tempo livre.

Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada


vez mais semelhantes, as pessoas passam a separá-los de um modo
cada vez mais rígido com invisíveis linhas de demarcação. De ambos
foram expulsos, na mesma proporção, o prazer e o espírito. Lá como
cá imperam a seriedade sem humor e a pseudo-atividade (Adorno,
1993, p.114).

Adorno (1995b), afirma que fenômenos relacionados com o tempo livre, como o
turismo e o camping, impregnados de idéias de liberdade e fuga da realidade são produtos da
indústria cultural como outras mercadorias quaisquer. Desse modo, o tempo em que o sujeito
está livre do trabalho teria a característica de não se assemelhar ao trabalho, e a função de
restaurar forças para que possa, depois, trabalhar ainda melhor. O consumo é programado, a
partir de uma infinidade de opções de divertimentos lucrativos que possibilitam a ilusão de
liberdade, prazer e simultaneamente impõem formas de conduta.

Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair,


não cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho
assalariado, e suas normas forma interiorizadas. Por outro lado, deve
o tempo livre, provavelmente para que depois possa trabalhar melhor,
não lembrar em nada o trabalho. Está é a razão da imbecilidade de
muitas ocupações do tempo livre. Por debaixo do pano, porém, são

completo ao realizar tal fim. “Ele fica completo, portanto, apenas quando se considera o tempo em sua
totalidade” (Ét. nic., X, 4, 1174a).A totalidade, nessa concepção, consiste na superação das partes e na
busca de um objetivo ainda não alcançado, o que exclui a idéia moderna de utilidade. O que é um fim em
si mesmo não tem utilidade imediata, ao contrário, busca transcender o imediatismo visando a arete. Para
Aristóteles, a atividade mais digna do cidadão é buscar conhecer, o que era chamado de theorein, que
significa ver, contemplar. Essa atividade, conforme a virtude que lhe é própria, levaria o homem ao bem
comum. Assim, o ócio, banalizado e demonizado pelo capitalismo; no pensamento grego é a atividade
racional, superior a qualquer outra “por não visar a nenhum outro fim que não ela mesma” (Ét. nic. X, 7,
1177b). Refletir sobre tais conceitos essenciais ao pensamento grego possibilita a compreensão de um
movimento histórico que evidencia questões universais e, portanto, atemporais e ao mesmo tempo marca
a particularidade de um tempo que deu origem a todo o pensamento ocidental moderno.

405
introduzidas de contrabando, formas de comportamento próprias do
trabalho, o qual não dá folga às pessoas (Adorno, 1995b, p.73).

Não é difícil compreender porque os consumidores aderem a esta lógica, pois o artifício
para que as mercadorias preparadas para o tempo livre sejam aceitas é atingir os anseios das
pessoas. As promessas ilusórias são dirigidas a anseios reais: liberdade, segurança, afeto,
proteção, completude. Como o tempo, o sujeito tem sua vida fragmentada, e como o trabalho foi
convertido em sacrifício e punição, o tempo livre é, muitas vezes, visto como falsa recompensa.
“(...) a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo comércio; o que
elas querem lhes é mais uma vez imposto” (Adorno, 1995b, p.74).
O consumo de mercadorias oferecidas pela indústria cultural que ocupa o tempo livre se
deve ainda ao esmaecimento da capacidade criativa que faz com que o sujeito se sinta perdido
em seu tempo livre e o que poderia ser um momento de prazer e reconhecimento, se converte na
incomoda busca do que fazer. Visto que o tempo livre precisa ser “preenchido” de acordo com a
programação administrada externamente, Adorno (1995b) cita a heteronomia e o tédio descrito
para compreender o movimento instituído pelo tempo livre. O tédio se instala devido a ausência
de autonomia “o tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa
divisão do trabalho (...) se as pessoas pudesse decidir sobre suas vidas, se não tivessem
encerradas no sempre igual, então não se entediariam” (p.76).
O atrofiamento da fantasia e o sentimento de impotência têm íntima relação com o
tédio. Os elementos da indústria cultural deformam a fantasia e os sentidos do sujeito2. A
transitoriedade dos objetos e a mercadoria fetichizada são elementos importantes para que
produtos e idéias sejam consumidos nessa lógica. O sujeito é objeto de manipulação,
convencido da necessidade de uma infinidade de produtos ditados comumente a partir dos
meios de comunicação e persuadido com a idéia de que estes lhe trarão o alívio para o mal-
estar3 negado, ainda que presente.
No entanto, a promessa do fim do mal-estar relacionada com a aquisição de
mercadorias, não se sustentaria se não houvesse um constante aperfeiçoamento e diversidade de
produtos. De acordo com Lasch (1986), as mercadorias ‘envelhecem’ mesmo quando não foram
utilizadas, pois foram projetadas para serem substituídas por outras similares em muito pouco

2
“Existe efetivamente um mecanismo neurótico da necessidade no ato da audição; o sinal seguro deste
mecanismo neurótico é a rejeição ignorante e orgulhosa de tudo o que sai do costumeiro. Os ouvintes,
vítimas da regressão, comportam-se como crianças. Exigem sempre de novo, com malícia e pertinácia,o
mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido” (Adorno, T. O fetichismo na música e a regressão da
audição. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).
3
Ver FREUD, S. (1929). O mal-estar na civilização. Em: Edição Standart das Obras Completas de
Sigmund Freud (pp. 75-173, vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago.

406
tempo, a fim de criar novas necessidades. A idéia de presentificação do tempo é fundamental
para a indústria cultural atingir seu objetivo, as mercadorias são repostas constantemente para
que o mesmo retorne como novo. Na medida em que só o presente interessa, a reposição de
mercadorias e as constantes novidades são legitimadas pela racionalidade da fixação do tempo.
Nessa racionalidade, os rastros do passado precisam ser apagados, o futuro é incerto,
desprezado, e o imperativo individualista é o prazer imediato. Na esfera da indústria cultural, a
conseqüência desse movimento se dá no consumo incessante.

A propaganda solapa o horror ao endividamento, exortando o


consumidor a comprar agora e a pagar mais tarde. À medida que o
futuro se torna ameaçador e incerto, só os tolos deixam para o dia
seguinte o prazer que podem ter hoje. Uma profunda mudança em
nosso sentido de tempo transformou os hábitos do trabalho, seus
valores e a definição de sucesso. A autopreservação substituiu o
autocrescimento como o objetivo da existência terrena (Lasch, 1983,
p.80).

Adorno (1987) afirma que a novidade constante apresentada pela indústria cultural na
forma de progresso, na verdade, “encobre um esqueleto no qual houve tão poucas mudanças
como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou ascendência sobre a cultura” (p.289).
Trata-se do “sempre semelhante” apresentado como incessantemente novo. Segundo
Horkheimer e Adorno (1985), existe uma coerência entre todos os setores urbanos da cultura
contemporânea, que tem como expressão um mesmo ritmo e aparência. “A seu serviço estão o
ritmo e a dinâmica. Nada deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só
a vitória universal do ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada
mudará, de que nada surgirá que não se adapte” (Horkheimer e Adorno, 1985, p.126).
Mais uma vez, a serialização e o ritmo da indústria invadem todas as esferas da vida do
sujeito, o que não funciona bem precisa ser substituído. Na lógica imediatista do razão
instrumentalizada, o consumidor, enquanto objeto da indústria cultural, crê na promessa de
alívio para sua angústia, trazido pelas mercadorias. Diante do fracasso dessa promessa,
imediatamente novas mercadorias atualizam a mesma.

407
Em uma época mais simples, a publicidade meramente chamava a
atenção para o produto e exaltava suas vantagens. Hoje em dia, ela
procria um produto próprio: o consumidor, perpetuamente
insatisfeito, intranqüilo, ansioso e entediado. A publicidade serve não
tanto para anunciar produtos, mas para promover o consumo como
um modo de vida. Ela “educa” as massas para ter um apetite
inesgotável não só por bens, mas por novas exigências e satisfação
pessoal. Ela defende o consumo como a resposta aos antigos
dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação sexual; ao
mesmo tempo, cria novas formas de descontentamentos peculiares à
era moderna. Joga sedutoramente com o mal-estar da civilização
industrial (Lasch, 1983, pp. 102-103).

Segundo Adorno (1987), a importância da indústria cultural na constituição psíquica do


sujeito não pode ser menosprezada. Reconhecer essa importância não significa deixar de lado a
compreensão e a crítica, ao contrário, incita desvelamento. A articulação dos veículos da
indústria cultural limita a possibilidade da reflexão que levaria a perceber que se trata apenas de
aparência, que a realidade apresentada pela indústria cultural é falsa.

Assim como mal podemos dar um passo fora do período de trabalho


sem tropeçar em uma manifestação da indústria cultural, os seus
veículos se articulam de tal forma que não há espaço entre elas para
que qualquer reflexão possa tomar ar e perceber que o seu mundo não
é o mundo (pp. 346-347).

A indústria cultural promete a realização do desejo, mas ocupa-se também em


ditá-lo. Nesse sentido, o desejo é convertido em falsas necessidades. O sujeito moderno almeja
aquilo que está ao seu alcance, mesmo diante da possibilidade de qualquer desejo, a “escolha” é
pelos estereótipos e objetos oferecidos pela indústria cultural, uma casa, um carro, viagem de
férias. Tais anseios não ameaçam em nada a ordem dominante, ao contrário, a afirma. Lasch
(1983) discute a dupla função da propaganda de mercadorias. “Em primeiro lugar ela defende o
consumo como uma alternativa para o protesto e a rebelião”. As insatisfações são aplainadas
pela reposição de mercadorias e o ímpeto à mudança cede lugar à fuga no consumo. “Em
segundo lugar a propaganda do consumo transforma a própria alienação em mercadoria”
(p.103).

408
A presentificação do tempo no mundo capitalista consiste em um dos elementos que
impedem o afastamento da realidade que implicaria possibilidade de reflexão e crítica. O tempo
de reflexão é substituído pela rápida apreensão dos acontecimentos, a mídia é emblema disto, o
ritmo acelerado de imagens e informações, a transitoriedade da moda e das mercadorias e, em
última instância, o próprio sujeito impedido de envelhecer.

A “mídia” dá substância e, por conseguinte, intensifica os sonhos


narcisistas de fama e glória, encoraja o homem comum a identificar-
se com as estrelas e a odiar o “rebanho”, e torna cada vez mais difícil
para ele aceitar a banalidade da existência cotidiana (Lasch, 1983,
p.43).

Os personagens midiáticos são apresentados como ideais na aparência almejada pelo


homem comum e ao mesmo tempo apresentam traços e condutas servis, semelhantes àquelas
desejadas pela indústria cultural. “O que fosse diferente seria insuportável, porque recordaria
aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como se lhe pertencesse, porque ele próprio não se
pertence” (Adorno, 1987, p.349).
O horror a velhice é uma das expressões desse processo. Os homens sempre temeram a
morte e desejaram viver eternamente, mas o medo da morte adquire uma nova intensidade em
uma sociedade que despreza o passado e o futuro. Lasch (1983) afirma que com o aumento da
população de idosos, a questão da velhice se converte em um problema a ser resolvido pela
ciência. Surgem especialidades médicas, além de uma lucrativa indústria de produtos entre
cosméticos e manuais, na “luta para aliviar ou abolir os estragos do tempo – uma luta cara ao
coração de uma cultura moribunda” (p.251).
No fetiche da juventude apoiados na idéia de que é preciso controlar e mesmo apagar as
marcas do tempo a qualquer custo, econômico e/ou psíquico;

O moderno problema da velhice, sob este ponto de vista, tem origem


menos no declínio físico, do que na intolerância da sociedade para
com os idosos, em sua recusa de fazer uso de sua sabedoria
acumulada e em sua tentativa de relegá-los à margem da existência
social (Lasch, 1983, p.251).

409
Mais uma vez a categoria trabalho se impõe como visto que a

degradação senil começa prematuramente com a degradação da


pessoa que trabalha (...) Como reparar a destruição sistemática que os
homens sofrem desde o nascimento, na sociedade da competição e do
lucro? (...) Como deveria ser uma sociedade para que na velhice um
homem permaneça um homem? A resposta é radical (...) seria preciso
que ele sempre tivesse sido tratado como homem. A noção que temos
da velhice decorre mais da luta de classes do que do conflito de
gerações” (Bosi..ver.).

Os jovens balizavam suas ações e pensamentos nas gerações anteriores cujos traços
marcavam identificações e confrontos. No contexto atual até mesmo o confronto perde sentido,
já que os jovens são hostis ao contato com pessoas mais velhas e aparente conciliação se dá no
mundo do consumo

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que


vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um
dos fenômenos mais característicos e lúgrubes do final do século XX.
Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente
contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da
época em que vivem (Hobsbawn, ANO, p.14).

O movimento de manutenção do status quo precisa ser constante, a partir da reposição


do mesmo apresentado como novo. Na sociedade capitalista, a supremacia do sempre novo se
apóia na idéia de superação do passado. Nesse contexto, os grandes acontecimentos históricos,
são percebidos pelo sujeito na atualidade como fragmentos de um passado remoto,
ridicularizado por um suposto atraso tecnológico e desvinculado da realidade atual.
(desenvolver)
O ritmo industrial instaurado a partir do capitalismo não permite conselhos, em primeiro
lugar porque não há mais narradores, os homens estão pobres de experiência, não há tempo para
contar e para ouvir. Em segundo, porque o culto ao novo despreza tudo que possa vir da
experiência de outras épocas.
Um dos marcos da extinção da narrativa é o nascimento do romance na modernidade. O
romance está vinculado ao livro e não mais a tradição oral e ainda trata do indivíduo isolado,

410
que perplexo e perdido diante de sua realidade renuncia a sabedoria e ao ensinamento. Dom
Quixote é a primeira grande obra romanesca.

Desventurado de mim! - disse Dom Quixote, ouvindo as tristes novas


que o seu escudeiro lhe dava. – Antes quisera que me tivessem
deitado abaixo um braço (uma vez que não fosse o da espada);
porque te digo, Sancho, que boca sem queixais é como moinho sem
mós; e muito mais se há de estimar um dente que um diamante. Mas a
tudo isto andamos sujeitos os que professamos a apertada ordem de
cavalaria. Monta, amigo, e vai guiando, que eu te sigo na andadura
que te parecer. (Cervantes, 2003, p.112).

Porém, na contemporaneidade, uma nova forma de comunicação se sobrepõe ao


romance e deixa pra trás a verdadeira narrativa, trata-se da informação. Em um tempo
administrado que não permite experiências comuns e formas narrativas de transmissão. Entram
em cena, formas adequadas à sociedade do capital, transformadas em mera informação, o que
pode ser percebido claramente nos veículos da mídia. As notícias são transmitidas em uma
velocidade alucinante que não permite reflexão ou crítica. “A informação só tem valor no
momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e
sem perda de tempo tem que se explicar nele” (Benjamin, 1994, p.204).
Na lógica da informação só é valorizado o que é imediato, as notícias são repostas
incessantemente e o sujeito passivo só se reconhece no seu espelho, na semelhança do que é
próximo. O saber que vem de longe causa profundo desinteresse. As referências de conduta e
moral são permanentemente renovadas, atualizadas a partir de personagens e costumes exibidos
pelos veículos de comunicação. Os heróis modernos se traduzem em personagens que nada
questionam, se limitam a atingir seus objetivos através de regras determinadas externamente.
Não há transgressão, autonomia ou crítica no reino da auto-afirmação e do narcisismo4.

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem


a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda
experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e
tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente
possa resultar disso (Benjamin, 1994, p.118).

4
Narcisismo .............

411
Esses mesmos homens se gabam por não serem ignorantes, por “devorarem” as
informações, diz Benjamin (1994) “a cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no
entanto, somos pobres em histórias surpreendentes” (p.203). As informações sempre são
acompanhadas de explicações, de legendas e comentários que, além de sua velocidade,
impossibilitam qualquer reflexão. Já a arte da narrativa é caracterizada justamente por evitar
explicações. A narrativa abre questões, o que surpreende é narrado em pormenores, porém, a
interpretação é ilimitada. Diferente da informação que só tem sentido enquanto é nova, a
narrativa preserva sua força mediante o tempo, por isso é capaz de provocar espanto e reflexão
por muitos milênios.
(...) a narração, que é uma das mais antigas formas de comunicação.
Esta não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e
simplesmente (como a informação o faz); integra-o à vida do
narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam
impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do
oleiro no vaso da argila (Benjamin, 1989, p.107).

412
Indústria Cultural e Presentificação do Tempo1

Leilyane Oliveira Araújo Masson


Anita Cristina Azevedo Resende

Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-graduação em


Educação

O preço da dominação não é meramente a


alienação dos homens com relação aos
objetos dominados; com a coisificação do
espírito, as próprias relações dos homens
foram enfeitiçadas, inclusive as relações de
cada indivíduo consigo mesmo (Horkheimer
& Adorno, 1985, p.40).

A busca de compreensão do tempo e suas formas de divisão e medição estão presentes


historicamente. No entanto, a intensificação do tempo quantificado e o ritmo acelerado foram
constituídos na sociedade industrial. O ritmo fabril reduz o tempo ao tempo produtivo, tempo de
trabalho que ultrapassa os limites da indústria.

O modelo de divisão social do trabalho se transfere automaticamente para a


vida do espírito, e esta divisão do reino da cultura é um corolário da
substituição da verdade objetiva pela razão formalizada, essencialmente
relativista (Horkheimer, 2002, p.27-28).

Nesse contexto, a aceleração do processo de produção, institui um ritmo alucinante ao


trabalho e ao trabalhador, que se expande para todas as dimensões sociais e psíquicas, e acaba
por constituir o ritmo da sociedade e, portanto do sujeito. O imperativo capitalista de que as
mercadorias precisam circular, exige que o consumo acompanhe o ritmo da produção criando
incessantemente novas e falsas promessas.
O mesmo procedimento racional expresso na presentificação do tempo, tem expressões
nas diversas instâncias constitutivas do sujeito, no trabalho, na família, nos grupos, na indústria
cultural. A expressão da razão instrumental na indústria cultural é uma das mais radicais desse
processo, por negar os elementos constitutivos do sujeito, ali mesmo onde estes deveriam ser
formados, na cultura. Adorno (1987) cunhou o termo Indústria Cultural para se contrapor à idéia
de cultura de massas, pois a cultura não surge da massa, na verdade, a indústria cultural cria

1
O presente artigo é uma síntese do trabalho de pesquisa realizado no Mestrado em Educação Brasileira

413
“produtos adaptados ao consumo das massas e que, em grande medida, determinam esse
consumo” (p.287).
Sobre o termo indústria, Adorno (1987) afirma ser este apenas o emblema, “a
estandartização da própria coisa”, já que não se trata apenas do processo de produção, o
procedimento racional presente na Indústria Cultural é encontrado também na esfera da
reprodução, da distribuição e do consumo. Além da produção das máquinas, da lógica da
fragmentação e da divisão do trabalho, conserva-se ainda a produção individual. Cada produto é
apresentado como único, especial, sendo que essa ilusão encobre a padronização e
homogeneização de comportamentos e pensamentos. Os homens, em condição de heteronomia,
passam a operar de acordo com ditames externos, semelhantes àqueles da estrutura econômica.
A quantificação do tempo foi intensificada a partir do ritmo da produção industrial,
porém a economia de tempo por conseqüência deste processo, não culminou em maior tempo
para as necessidades culturais do sujeito. A princípio, a jornada de trabalho não diminuiu, o
homem passou a trabalhar com e como as máquinas, durante doze horas consecutivas na
repetição de uma mesma atividade. Segundo Lasch (1983) nos primórdios do capitalismo, o
trabalhador era visto como um animal de carga, um produtor, mas o controle e supervisão do
trabalhador terminavam ao fim do expediente, quando o operário saía da indústria.
Nessa lógica, o tempo do trabalho deveria consumir todo o tempo do trabalhador e o
tempo livre, passou a ser relacionado à criminalidade, ao desemprego e à falta de vontade de
trabalhar. O ócio e o lazer foram, então, demonizados pelo capitalismo. Surgiram campanhas
contra o álcool e o fumo e a favor da família e do trabalho como uma primeira forma de
controle fora da fábrica.
Contudo, a diversidade e a aceleração da produção de mercadorias exige um número
cada vez maior de consumidores. Nesse processo, o tempo do não trabalho se converte em
espaço de consumo e, portanto de controle. Se a racionalidade do trabalho se expande para a
vida privada, o controle e a supervisão também invadem os lares e o lazer do sujeito. Há
algumas décadas os clubes, times de futebol e festas da empresa mantinham os funcionários à
vista no tempo do não trabalho. Na atualidade, o controle vai muito além, a fidelidade ao
emprego é garantida pela necessidade do consumo.

(...) compreenderam que o trabalhador poderia ser útil ao capitalista como


consumidor; que ele precisava ser imbuído de um gosto por coisas elevadas;
que uma economia baseada na produção de massa exigia não somente a
organização capitalista da produção, mas também a organização do consumo
e do lazer (Lasch, 1983, p.23).

da Universidade Federal de Goiás.

414
Oferecendo mercadorias que aparentemente preenchem esse tempo e prometem o bem-estar.
“(...) O capitalismo, enquanto sistema totalizante, conseguiu ampliar seus pilares também para o
espaço do tempo de não trabalho, manipulando-o segundo sua lógica” (Antunes, 2000, p.175).
O tempo livre é um importante emblema da indústria cultural, assim como o mercado, a
moda, os meios de comunicação. A indústria cultural oferece atividades permeadas pelo
consumo a serem desempenhadas nesse tempo. Atividades de lazer e entretenimento ligadas à
empresas, mercadorias e lucros. Coerente com a razão instrumental e com a ordem capitalista, o
tempo em que não se está trabalhando precisa ter uma função produtiva, seja para o descanso e
recuperação da energia para o trabalho, seja para o consumo. Como o trabalho e o trabalhador, o
tempo livre também é convertido em mercadoria.

Não significa menos do que, mesmo onde o encantamento se atenua e as


pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por vontade
própria, essa vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres fora
do horário de trabalho (Adorno, 1995, p.71).

A mesma lógica que administra o tempo de trabalho, guia o sujeito em seu tempo livre.
Segundo Adorno (1995), a idéia de tempo livre, no mundo moderno, está diretamente
relacionada ao oposto do tempo em que se está trabalhando, e este fato define questões
essenciais em sua compreensão. Em um tempo em que as pessoas são tomadas pelas suas
funções, o tempo livre acarreta um sentimento de angústia, pois, na verdade, o sujeito não é
livre nem em seu trabalho, nem em sua consciência.
Uma das origens do processo de administração do tempo livre está na transformação do
conceito de trabalho e de sua materialidade, que ao longo da história moderna foi se despindo de
seu caráter contraditório e sendo convertido em sua expressão particular e reduzida, tomado
como emprego. Convém retomar Marx (2001), para lembrar que o trabalho convertido em
emprego, na sua forma imediata,

(...) surge de tal modo como desrealização que o trabalhador se invalida até a
morte pela fome. A objetivação revela –se de tal maneira como perda do
objeto que o trabalhador fica privado dos objetos mais necessários, não só a
vida, mas também ao trabalho. Sim, o trabalho transforma –se em objeto,
que ele só consegue adquirir com o máximo esforço e com interrupções
imprevisíveis. A apropriação do objeto manifesta –se a tal ponto como
alienação que quanto mais objetos o trabalhador produzir tanto menos ele
pode possuir e mais se submete ao domínio de seu produto, do capital.
(p.159).

Se, nesse contexto, o tempo de trabalho implica sacrifício e alheiamento, o fato de não
estar trabalhando toma significado de um ócio condenável para o sistema, acarretando

415
culpabilidade e mal-estar. Em tempos de trabalho alienado, o tempo livre evidencia um vazio,
que o sujeito procura erradicar.
O tempo em que o sujeito está trabalhando é administrado de forma explícita, há um
horário determinado de princípio e fim do trabalho diário, formas de controle quanto à
produtividade e uma conduta a ser rigorosamente seguida. Além disso, o ritmo e a serialização
do trabalho industrial são, também, formas de controle. O tempo livre, porém, possibilita a
ilusão de liberdade; a administração é um tanto mais sutil e, portanto, mais perversa.

A própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo


comércio; o que elas querem lhes é mais uma vez imposto. Por isso, a
integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades, as pessoas
não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem, porque
a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas (Adorno, 1995, p.74).

Para Adorno (1995) o procedimento racional da indústria cultural é expresso ainda na


idéia de hobby2. A separação e oposição entre trabalho e tempo livre evidenciam a racionalidade
alienada do não reconhecimento no trabalho e ao mesmo tempo da banalização de atividades
culturais e contemplativas. Como se não pudesse ser ao menos lembrada a possibilidade de
satisfação e reconhecimento na profissão escolhida e a seriedade e importância de atividades
como leitura, música ou contemplação na vida do sujeito. “Só o astucioso entrelaçamento de
trabalho e felicidade deixa aberta, debaixo da pressão da sociedade, a possibilidade de uma
experiência propriamente dita” (Adorno, 1993, p.114).
Na contemporaneidade, comportamentos padronizados, desprovidos de sentido e
distantes da realidade são convertidos na ocupação do sujeito em seu tempo livre. Os momentos
de contemplação, de experiência, proporcionados pela arte, música ou leitura se perdem nesse
contexto. Trata-se da coisificação do tempo livre.

Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada vez mais


semelhantes, as pessoas passam a separá-los de um modo cada vez mais
rígido com invisíveis linhas de demarcação. De ambos foram expulsos, na
mesma proporção, o prazer e o espírito. Lá como cá imperam a seriedade
sem humor e a pseudo-atividade (Adorno, 1993, p.114).

2
No ensaio “Tempo livre”, Adorno (1993) se refere a uma experiência pessoal, quando em entrevistas o
questionam sobre seu hobby - atividades para ‘matar o tempo’. “Quando me toca essa questão fico
apavorado: Eu não tenho qualquer hobby. Não que eu seja um besta de trabalho que não sabe fazer
consigo mesma nada além de esforçar-se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com que me ocupo
fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a idéia
de que se tratasse de hobbies portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o
tempo (...)” (p.72).

416
Adorno (1995), afirma que fenômenos relacionados com o tempo livre, como o turismo
e o camping, impregnados de idéias de liberdade e fuga da realidade são produtos da indústria
cultural como outras mercadorias quaisquer. Desse modo, o tempo em que o sujeito está livre do
trabalho teria a característica de não se assemelhar ao trabalho, e a função de restaurar forças
para que possa, depois, trabalhar ainda melhor. O consumo é programado, a partir de uma
infinidade de opções de divertimentos lucrativos que possibilitam a ilusão de liberdade, prazer e
simultaneamente impõem formas de conduta.

Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não


cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado,
e suas normas forma interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre,
provavelmente para que depois possa trabalhar melhor, não lembrar em nada
o trabalho. Está é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo
livre. Por debaixo do pano, porém, são introduzidas de contrabando, formas
de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folga às pessoas
(Adorno, 1995, p.73).

É possível compreender porque os consumidores aderem a esta lógica, pois o artifício


para que as mercadorias preparadas para o tempo livre sejam aceitas é atingir os anseios das
pessoas. As promessas ilusórias são dirigidas a anseios reais: liberdade, segurança, afeto,
proteção, completude. Como o tempo, o sujeito tem sua vida fragmentada, e como o trabalho foi
convertido em sacrifício e punição, o tempo livre é, muitas vezes, visto como falsa recompensa.
“(...) a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo comércio; o que
elas querem lhes é mais uma vez imposto” (Adorno, 1995, p.74).
A adesão ao consumo de mercadorias, oferecidas pela indústria cultural, se deve ainda
ao esmaecimento da capacidade criativa que faz com que o sujeito se sinta perdido e o que
poderia ser um momento de prazer e reconhecimento, se converte na incomoda busca do que
fazer. Visto que o tempo livre precisa ser “preenchido” de acordo com a programação
administrada externamente, Adorno (1995) cita a heteronomia e o tédio descrito para
compreender o movimento instituído pelo tempo livre. O tédio se instala devido a ausência de
autonomia “o tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão
do trabalho (...) se as pessoas pudesse decidir sobre suas vidas, se não tivessem encerradas no
sempre igual, então não se entediariam” (p.76).
O atrofiamento da fantasia e o sentimento de impotência têm íntima relação com o
tédio. Os elementos da indústria cultural deformam a fantasia e os sentidos do sujeito3. A

3
“Existe efetivamente um mecanismo neurótico da necessidade no ato da audição; o sinal seguro deste
mecanismo neurótico é a rejeição ignorante e orgulhosa de tudo o que sai do costumeiro. Os ouvintes,
vítimas da regressão, comportam-se como crianças. Exigem sempre de novo, com malícia e pertinácia,o

417
transitoriedade dos objetos e a mercadoria fetichizada são elementos importantes para que
produtos e idéias sejam consumidos nessa lógica. O sujeito é objeto de manipulação,
convencido da necessidade de uma infinidade de produtos ditados comumente a partir dos
meios de comunicação e persuadido com a idéia de que estes lhe trarão o alívio para o mal-
estar4 negado, ainda que presente.
No entanto, a promessa do fim do mal-estar relacionada com a aquisição de
mercadorias, não se sustentaria se não houvesse um constante aperfeiçoamento e diversidade de
produtos. De acordo com Lasch (1986), as mercadorias ‘envelhecem’ mesmo quando não foram
utilizadas, pois foram projetadas para serem substituídas por outras similares em muito pouco
tempo, a fim de criar novas necessidades. A idéia de presentificação do tempo é fundamental
para a indústria cultural atingir seu objetivo, as mercadorias são repostas constantemente para
que o mesmo retorne como novo. Na medida em que só o presente interessa, a reposição de
mercadorias e as constantes novidades são legitimadas pela racionalidade da fixação do tempo.
Nessa racionalidade, instrumentalizada, os rastros do passado precisam ser apagados, o
futuro é incerto, desprezado, e o imperativo individualista é o prazer imediato. Na esfera da
indústria cultural, a conseqüência desse movimento se dá no consumo incessante.

A propaganda solapa o horror ao endividamento, exortando o consumidor a


comprar agora e a pagar mais tarde. À medida que o futuro se torna
ameaçador e incerto, só os tolos deixam para o dia seguinte o prazer que
podem ter hoje. Uma profunda mudança em nosso sentido de tempo
transformou os hábitos do trabalho, seus valores e a definição de sucesso. A
autopreservação substituiu o autocrescimento como o objetivo da existência
terrena (Lasch, 1983, p.80).

Adorno (1987) afirma que a novidade constante apresentada pela indústria cultural na
forma de progresso, na verdade, “encobre um esqueleto no qual houve tão poucas mudanças
como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou ascendência sobre a cultura” (p.289).
Trata-se de uma expressão clara da presentificação do tempo, o “sempre semelhante”
apresentado como incessantemente novo.
Segundo Horkheimer & Adorno (1985), existe uma coerência entre todos os setores
urbanos da cultura contemporânea, que tem como expressão um mesmo ritmo e aparência. Na
lógica do tempo presentificado, tudo é produzido para ser descartado em pouco tempo. Tudo o

mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido” (Adorno, T. O fetichismo na música e a regressão da
audição. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).
4
Ver FREUD, S. (1929). O mal-estar na civilização. Em: Edição Standart das Obras Completas de
Sigmund Freud (pp. 75-173, vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago.

418
que é velho parece intolerável, e tudo se torna velho muito depressa. Nesse sentido, a
inesgotável novidade nada mais é que a recriação do mesmo apresentado como novo.
Esse movimento expõe a lógica comum da presentificação do tempo e da indústria
cultural e encontra-se presente nos seus mais diversos produtos, na moda, na arquitetura, na arte
convertida em mercadoria, na música, na literatura.

A seu serviço estão o ritmo e a dinâmica. Nada deve ficar como era, tudo
deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do ritmo da
produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que
nada surgirá que não se adapte (Horkheimer & Adorno, 1985, p.126).

Mais uma vez, a serialização e o ritmo da indústria invadem todas as esferas da vida do
sujeito, o que não funciona bem precisa ser substituído. Na lógica imediatista da razão
instrumentalizada, o consumidor, enquanto objeto da indústria cultural, crê na promessa de
alívio para sua angústia, trazido pelas mercadorias. Diante do fracasso dessa promessa,
imediatamente novas mercadorias atualizam a mesma. A constante reposição do mesmo como
novo e o imediatismo são, portanto, expressões de uma temporalidade que supervaloriza o
presente.

Em uma época mais simples, a publicidade meramente chamava a atenção


para o produto e exaltava suas vantagens. Hoje em dia, ela procria um
produto próprio: o consumidor, perpetuamente insatisfeito, intranqüilo,
ansioso e entediado. A publicidade serve não tanto para anunciar produtos,
mas para promover o consumo como um modo de vida. Ela “educa” as
massas para ter um apetite inesgotável não só por bens, mas por novas
exigências e satisfação pessoal. Ela defende o consumo como a resposta aos
antigos dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação sexual;
ao mesmo tempo, cria novas formas de descontentamentos peculiares à era
moderna. Joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial
(Lasch, 1983, pp. 102-103).

Em se tratando da constituição do sujeito e, portanto, da cultura, a importância do


procedimento racional, que tem como expressões a presentificação do tempo e a indústria
cultural, não pode ser menosprezada. Segundo Adorno (1987), reconhecer essa importância não
significa deixar de lado a compreensão e a crítica, ao contrário, incita desvelamento. A
articulação dos veículos da indústria cultural e as formas de presentificação do tempo limitam a
possibilidade da reflexão que levaria além da aparência, do imediato.

Assim como mal podemos dar um passo fora do período de trabalho sem
tropeçar em uma manifestação da indústria cultural, os seus veículos se
articulam de tal forma que não há espaço entre elas para que qualquer
reflexão possa tomar ar e perceber que o seu mundo não é o mundo (pp.
346-347).

419
A indústria cultural promete a realização do desejo, mas ocupa-se também em ditá-lo.
Nesse sentido, o desejo é convertido em falsas necessidades. O sujeito moderno almeja aquilo
que está ao seu alcance, mesmo diante da possibilidade de qualquer desejo, a “escolha” é pelos
estereótipos e objetos oferecidos pela indústria cultural: uma casa, um carro, viagem de férias.
Tais anseios não ameaçam em nada a ordem dominante, ao contrário, a afirma.
Como o passado é constantemente negado, é negada também a recordação de que a
realidade já foi muito diferente do que é no presente. A própria lembrança da ausência de
recursos tecnológicos dos mais diversos é extirpada, ou referida como atraso ou pobreza, em
especial pelos mais jovens. Da mesma forma, o futuro não está em pauta, a busca de uma
realidade melhor, diferente, não se coloca em um tempo em que se acredita que o progresso se
concretizou e a insatisfação ou insucesso são atribuídas ao desempenho individual. Mais uma
vez, é o triunfo do presente.
Lasch (1983) discute a dupla função da propaganda de mercadorias. “Em primeiro lugar
ela defende o consumo como uma alternativa para o protesto e a rebelião”. As insatisfações são
aplainadas pela reposição de mercadorias e o ímpeto à mudança cede lugar à fuga no consumo.
“Em segundo lugar a propaganda do consumo transforma a própria alienação em mercadoria”
(p.103).
A presentificação do tempo no mundo capitalista consiste em um dos elementos que
impedem o afastamento da realidade que implicaria possibilidade de reflexão e crítica. O tempo
de reflexão é substituído pela rápida apreensão dos acontecimentos, a mídia é emblema disto, o
ritmo acelerado de imagens e informações, a transitoriedade da moda e das mercadorias e, em
última instância, o próprio sujeito impedido de envelhecer.

A “mídia” dá substância e, por conseguinte, intensifica os sonhos narcisistas


de fama e glória, encoraja o homem comum a identificar-se com as estrelas e
a odiar o “rebanho”, e torna cada vez mais difícil para ele aceitar a
banalidade da existência cotidiana (Lasch, 1983, p.43).

Os personagens midiáticos são apresentados como ideais na aparência almejada pelo


homem comum e ao mesmo tempo apresentam traços e condutas servis, semelhantes àquelas
desejadas pela indústria cultural. “O que fosse diferente seria insuportável, porque recordaria
aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como se lhe pertencesse, porque ele próprio não se
pertence” (Adorno, 1987, p.349).
O horror à velhice é uma das expressões desse processo. Lasch (1983) afirma que os
homens sempre temeram a morte e desejaram viver eternamente, mas o medo da morte adquire

420
uma nova intensidade em uma sociedade que despreza o passado e o futuro. Com o aumento da
população de idosos, a questão da velhice se converte em um problema a ser resolvido pela
ciência e desse modo, mais um importante aspecto da presentificação do tempo. Surgem
especialidades médicas, além de uma lucrativa indústria de produtos entre cosméticos e
manuais, na “luta para aliviar ou abolir os estragos do tempo – uma luta cara ao coração de uma
cultura moribunda” (p.251).
Segundo Lasch (1983), por trás das propostas de rejuvenescimento e da infinidade de
produtos e serviços que prometem parar o tempo, está sendo criada socialmente uma verdadeira
aversão ao processo de envelhecimento. O horror à decadência física encobre, quase por
completo, o acúmulo de experiências da velhice.
O horror ao envelhecimento assume nova forma em uma sociedade em tempos de
presentificação. Não envelhecer, não só revela o desprezo ao passado, mas também o
desinteresse pelo futuro. Trata-se portanto de congelar o tempo, ou melhor de que o presente se
repita incessantemente.
Além da movimentação de uma indústria milionária de cosméticos, as cirurgias
plásticas, apoiadas na idéia de que a medicina avança em benefício de uma vida melhor para os
homens, representa a ilusão do triunfo do homem sobre o tempo. Interessante notar, que a
própria lógica da indústria do rejuvenescimento demonstra a ilusão dessa idéia, pois novos
produtos são lançados incessantemente. E como, usando uma expressão popular, o tempo
“continua passando”, apenas uma intervenção cirúrgica nunca é o bastante.
No fetiche da juventude apoiados na idéia de que é preciso controlar e mesmo apagar as
marcas do tempo a qualquer custo, econômico e/ou psíquico;

O moderno problema da velhice, sob este ponto de vista, tem origem menos
no declínio físico, do que na intolerância da sociedade para com os idosos,
em sua recusa de fazer uso de sua sabedoria acumulada e em sua tentativa de
relegá-los à margem da existência social (Lasch, 1983, p.251).

Outra importante questão apontada por Lasch (1983) refere-se ao modo de produção da
vida. Em uma forma de organização social em que a produtividade é sinônimo de “força física,
destreza, adaptabilidade e à capacidade de surgir com novas idéias” (p.253), a experiência e
sabedoria da velhice não tem lugar. Mais uma vez a categoria trabalho se impõe como visto que
a
degradação senil começa prematuramente com a degradação da pessoa que
trabalha (...) Como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem
desde o nascimento, na sociedade da competição e do lucro? (...) Como
deveria ser uma sociedade para que na velhice um homem permaneça um
homem? A resposta é radical (...) seria preciso que ele sempre tivesse sido

421
tratado como homem. A noção que temos da velhice decorre mais da luta de
classes do que do conflito de gerações” (Bosi, 1998, p.80).

Os jovens balizavam suas ações e pensamentos nas gerações anteriores cujos traços
marcavam identificações e confrontos. No contexto atual até mesmo o confronto perde sentido,
já que os jovens são hostis ao contato com pessoas mais velhas e aparente conciliação se dá no
mundo do consumo. Desse modo,

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam


nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos
mais característicos e lúgrubes do final do século XX. Quase todos os jovens
de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação
orgânica com o passado público da época em que vivem (Hobsbawn, 2001,
p.14).

O movimento de manutenção do status quo precisa ser constante, a partir da reposição


do mesmo apresentado como novo. Na sociedade capitalista, a supremacia do sempre novo se
apóia na idéia de superação do passado. Nesse contexto, os grandes acontecimentos históricos,
são percebidos pelo sujeito na atualidade como fragmentos de um passado remoto,
ridicularizado por um suposto atraso tecnológico e desvinculado da realidade atual.
Em um tempo administrado que não permite experiências comuns e formas narrativas
de transmissão. Entram em cena, formas adequadas à sociedade do capital, transformadas em
mera informação, o que pode ser percebido claramente nos veículos da mídia. As notícias são
transmitidas em uma velocidade alucinante que não permite reflexão ou crítica. “A informação
só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se
inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele” (Benjamin, 1994, p.204).
Na lógica da informação só é valorizado o que é imediato, as notícias são repostas
incessantemente e o sujeito passivo só se reconhece no seu espelho, na semelhança do que é
próximo. O saber que vem de longe causa profundo desinteresse.

A emergência de uma personalidade narcísica reflete, entre outras coisas,


uma mudança drástica em nosso sentido de tempo histórico. O narcisismo
emerge como a forma típica de estrutura de caráter, em uma sociedade que
perdeu o interesse pelo futuro (Lasch 1983, p.255).

As referências de conduta e moral são permanentemente renovadas, atualizadas a partir


de personagens e costumes exibidos pelos veículos de comunicação. Os heróis modernos se
traduzem em personagens que nada questionam, se limitam a atingir seus objetivos através de
regras determinadas externamente. Não há transgressão, autonomia ou crítica no reino da auto-
afirmação e do narcisismo.

422
Mais uma vez a supremacia do presente é imposta como afirmação do status quo. A
fugacidade da informação, o declínio da narrativa, o horror a velhice, a transitoriedade das
mercadorias, o desinteresse pelos fatos históricos são expressões dessa presentificação do
tempo, encontradas nos mais diversos âmbitos da cultura.
Essa forma de articulação temporal aparece como se o presente prescindisse do passado
e do futuro e como se o tempo quantitativo fosse único. O processo de naturalização do tempo
encobre suas mediações históricas e lógicas e legitima interesses dominantes em uma sociedade
na qual esquecer o passado e abandonar o projeto humano para o futuro torna-se coerente com a
lógica do individualismo e do consumo.

Referências Bibliográficas

x ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria


Cultural. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1987.
x __________________. Mínima Moralia. São Paulo: Ática, 1993.
x __________________. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
x __________________. O fetichismo na música e a regressão da audição. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
x ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2000.
x BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas - Vol. I Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
x BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, T. A. Queiroz, 1998.
x FREUD, S. (1929). O mal-estar na civilização. Em: Edição Standart das Obras Completas
de Sigmund Freud (pp. 75-173, vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago.
x HOBSBAWM, E. Era dos extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
x HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2002.
x HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro Zahar,
1985.

423
Reflexões sobre o cinema: um convite ao debate com Dziga Vertov
Lineu Norio Kohatsu
Universidade Presbiteriana Mackenzie

Vertov – o homem do movimento perpétuo

Denis Arkadievich Kaufman nasceu em 02 de janeiro de 1896, em Bialystok, na época uma


província anexada pela Rússia Czarista e atualmente parte da Polônia. Era o filho mais velho de um
casal de bibliotecários que teve um outro filho chamado Mikhail que trabalhou com Denis no
cinema como chefe dos operadores de câmera. No liceu estudou arte e literatura, desenvolvendo
gosto pela poesia. Também se dedicou ao estudo da música no conservatório da cidade, de 1912 a
1915. Com a invasão da Polônia pelos alemães na Primeira Guerra, sua família mudou-se para
Moscou em 1915. Na nova cidade, prosseguiu seus estudos em literatura, aproximando-se do
circuito de jovens e intelectuais que proliferavam na época. Entusiasmado pelos movimentos
artísticos e pelo futurismo, muda seu nome para Dziga Vertov. Dziga, de origem ucraniana,
significa cigano, povo errante; Vertov, originário do verbo russo vertet, quer dizer girar, dar voltas.
Desse modo, podemos entender que o significado de seu pseudônimo Dziga Vertov é movimento
perpétuo, uma roda que gira sem parar (GRANJA, 1981; SADOUL, 1973).
Entre 1916-17 estuda medicina no Instituto de Psiconeurologia. Com interesse especial pela
percepção humana, cria o Laboratório do Ouvido, realizando experiências com a gravação e
montagem de sons de diversas origens como a fala humana, sons cotidianos das ruas, das fábricas,
máquinas, utilizando um fonógrafo. Estas experiências não tiveram grandes repercussões no
momento, mas foram importantes em suas investigações posteriores relacionadas às idéias de
montagem cinematográfica.
Em 1917 retorna a Moscou e engaja-se com entusiasmo na Revolução. É nesse período que
Vertov inicia suas atividades no cinema, trabalhando no Kino Komittet como redator e montador do
primeiro cine-jornal semanal de atualidades chamado Kino Nedelia (cine-semana). Vertov recebia
as reportagens filmadas e enviadas pelos numerosos correspondentes de toda a Rússia, escolhia os
melhores fragmentos e montava o filme acabado. Em junho de 1918 era lançado o primeiro número
do Kino Nedelia, sendo produzido semanalmente até o ano seguinte dezenas de filmes1. Em 1919
deixa de ser lançado semanalmente por falta de película virgem e em meados desse ano deixa de ser

1
É difícil precisar o numero exato dos jornais publicado. No livro de George Sadoul fala-se em 40 números
produzidos entre 1918-19, ao passo que o livro de Vasco Granja refere-se a 29 números até o final de 1918.

424
publicado. Este fato que a princípio mostrou-se como um problema impulsionou Vertov a recorrer a
todo material fílmico produzido até então e arquivado por ele cuidadosamente para produzir o filme
“O aniversário da Revolução”. Considerado um filme de grande porte, organizado em doze partes e
três horas de projeção, foi lançado em comemoração do segundo ano da Revolução de Outubro.
Ainda em 1919 Vertov finaliza seu primeiro “Manifesto sobre o desarme do cine teatral”
que posteriormente foi expandido no “Nós. Uma variante do Manifesto”, publicado em 1922.
(GRANJA, 1981, p.21). No mesmo ano começa a trabalhar no Kinopravda (cine-verdade) que era
uma extensão do jornal Pravda fundada por Lênin em 1912.
Vertov formou um grupo chamado de kinoks (cine-olho) e um dos princípios defendidos
por eles era o posicionamento contra o cinema teatralizado. O grupo dos kinoks era formado por
jovens câmeras, editores, técnicos, além de Mikhail Kaufman e Elizaveta Svilova, respectivamente
irmão e mulher de Vertov. Juntos formaram o Conselho dos Três, órgão máximo dos kinoks,
responsável pela produção política do grupo (PETRIC, 1987).
Para Vertov o filme de ficção era contrário ao espírito dos tempos revolucionários e o
cinema deveria estar alinhado politicamente com a nova realidade socialista (PETRIC, 1987). Ele e
os kinoks defendiam que as pessoas deveriam rejeitar os melodramas burgueses considerados por
eles como ópio do povo, referindo-se a famosa frase de Marx.
O cine-olho (kinoglaz) era um método que possibilitaria penetrar na realidade externa e
mostrar a “vida como ela é”. Em oposição ao filme de ficção, os kinoks defendiam que o cinema
deveria mostrar a representação não dramatizada da realidade, sem a utilização de atores ou
cenários. As imagens deveriam captar a “vida em improviso” e estas deveriam posteriormente ser
reestruturadas através da montagem compreendida como um processo de criação. Desse modo, o
produto final não seria um filme como mera cópia da realidade objetiva, uma representação realista,
mas uma síntese dialética promovida pela montagem resultando em uma nova estrutura visual. É
nesse sentido que o cinema possibilitaria um novo olhar para a realidade, de modo não usual ou
natural, mas mediado pelos recursos proporcionados pelo uso do equipamento.

As vanguardas artísticas

Segundo Petric (1987), a década que se sucedeu à Revolução de Outubro desencadeou um


dos períodos mais promissores da arte russa, apesar das resistências de muitos artistas

425
conservadores e das divergências teóricas e ideológicas existentes entre os diversos grupos
vanguardistas. De toda forma, essas diferenças de opinião não impediram que esses grupos
promovessem coletivamente as mais diversas formas de experimentação e liberdade de expressão.
As idéias vanguardistas encontraram solo fértil para se difundirem em um país sedento por
mudanças e faminto para encontrar uma nova representação de mundo após a derrubada de um
regime de governo decadente e agonizante. A aspiração à modernidade fez com que a Rússia
abrisse as portas e janelas para receber os novos ventos trazidos pelos movimentos vanguardistas.
Todavia, os artistas russos não se limitaram simplesmente a reproduzir as novas idéias e procuraram
desenvolver de modo original as suas próprias experiências artísticas que, que sua vez, exerceram
também influências nas concepções artísticas ocidentais.
No campo da literatura o futurismo foi uma das correntes que mais influenciaram os
escritores e poetas russos, contudo as idéias políticas defendidas pelos vanguardistas italianos foram
totalmente rejeitadas, tal como será mostrado posteriormente.
Nas artes o abstracionismo teve grande repercussão gerando três correntes fundamentais:
racionismo, suprematismo e construtivismo. Segundo Micheli (1991) mesmo o expoente mais
importante do abstracionismo sendo Mondrian, é na Rússia, num primeiro momento (1905-14), e
posteriormente na jovem República Soviética (1917-25) que ele se firma amplamente com pesquisa
e elaboração teórica gerando um movimento e uma cultura abstracionista. O racionismo foi definido
como uma síntese do cubismo, futurismo e orfismo pelos criadores Larionov e Gonciarova. Em
relação ao suprematismo, um dos nomes mais proeminentes é Malevitch que levou ao extremo a
concepção abstracionista, tendo como uma das obras mais conhecidas o famoso quadro “Quadrado
negro sobre fundo branco” (1913). Para o pintor, suprematismo significava supremacia absoluta da
sensibilidade, o mundo da não representação, libertação da arte em relação à objetividade. O
construtivismo, por sua vez, foi concebido por Vladimir Tátlin e tem como obra referência o projeto
para o Monumento à III Internacional (1922).
Como foi mostrado inicialmente, aquilo que se denominou como vanguarda russa não
correspondia a um movimento homogêneo, mas era formada por diversos grupos com posturas bem
diferentes e até antagônicas em relação às concepções estéticas e políticas. As afinidades que
existiam inicialmente resultavam em rompimentos, como no caso de Malevitch e Tátlin. Enquanto o
primeiro entendia que não deveria haver nenhuma relação entre a sensibilidade plástica e os
problemas da vida prática (MICHELI, 1991, p. 239), o segundo defendia exatamente o contrário, a
inserção prática da arte na sociedade. Tátlin e seu grupo de construtivistas desenvolveram
atividades relacionadas à publicidade, composição gráfica, arquitetura e à produção industrial,

426
sendo o artista considerado o pioneiro do que atualmente se denominou com desenho industrial. As
diferenças entre os artistas e seus grupos não se limitavam ao campo estético, mas também em
relação à politização da arte. Muitos artistas e escritores apoiaram a Revolução de Outubro e
defendiam que a arte deveria tornar-se expressão da verdade revolucionária, tomando para si
inclusive a responsabilidade de educar as massas. Um grupo de artistas liderado pelo poeta
Maiakovski fundou a LEF – Frente de Esquerda nas Artes, em torno do qual se reuniram os
futuristas e construtivistas. E, entre eles estava Vertov que defendia que cinema não deveria servir
ao entretenimento, mas à educação e conscientização das pessoas. Há que se lembrar, contudo, que
mesmo dentro dos próprios grupos dos futuristas e construtivistas existiam opiniões divergentes
quanto ao engajamento político da arte.
Se, por um lado existiam as divergências, por outro havia também momentos em que um
artista pertencente a um determinado grupo poderia aproximar-se de outro, como ocorreu com
Maiakovski, do grupo dos futuristas, que colaborou com o Manifesto do Suprematismo, publicado
em 1915, em São Petersburgo (MICHELI, 1991, p. 234). Um outro aspecto importante que também
deve ser considerado é que, diferenças à parte, havia entre os diversos grupos um ponto em comum:
a fascinação pela revolução tecnológica, a exaltação da máquina e das fábricas e o entusiasmo pela
modernização da sociedade (PETRIC, 1987, p.41).
As vanguardas artísticas, especialmente o construtivismo e o futurismo, tiveram um grande
peso na concepção de cinema desenvolvida por Vertov e os kinoks e isto pode ser claramente
notado, não somente nos manifestos redigidos, mas principalmente no filme “O homem com a
câmera”.
O futurismo nasceu na Itália e desde o seu surgimento provocou muitas polêmicas. Como
todas as manifestações vanguardistas questionou as concepções estéticas vigentes, mas o que o
tornou polêmico foram alguns argumentos defendidos como o nacionalismo que, segundo algumas
opiniões, deram sustentação ao fascismo. Embora tendo como um dos pontos a crítica à burguesia,
algumas idéias como a exaltação da máquina, do modernismo, da velocidade permitiu a
identificação com a burguesia industrial do norte da Itália que via vantagens numa eminente guerra.
A chegada dos fascistas ao governo não favoreceu a difusão das concepções vanguardistas,
mas o seu contrário. Não necessitando mais do apoio dos futuristas, os fascistas entenderam que o
novo Estado demandava uma concepção de arte mais imponente e menos improvisada, retomando
os valores neoclássicos (MICHELI, 1991, p. 210). E este é um fato curioso, pois ocorreu também
em outros países com governos totalitários como a Alemanha e a própria União Soviética. Em todos
esses países as experiências vanguardistas foram suprimidas em função da retomada das concepções

427
clássicas e da representação realista na arte, ou seja, de uma representação estética que estivesse em
consonância com o restabelecimento da ordem, valorizando o equilíbrio e a harmonia. Desse modo,
não haveria mais a necessidade de denunciar a crise social e questionar os valores éticos, estéticos e
políticos deteriorados, tão bem representados pelos vanguardistas em suas obras contrastantes,
desarmônicas e dissonantes.
O futurismo soviético teve como um dos expoentes mais importantes o poeta Maiakóvski
que, por sua vez, exerceu grande influência sobre Vertov. Embora compartilhasse algumas idéias do
futurismo italiano, Maiakóvski e seu grupo não concordavam com as posições defendidas por
Marinetti, considerado por eles como um representante da burguesia belicista. As concepções
futuristas que influenciaram o cinema de Vertov são inspiradas pela poesia de Maiakovski. Para o
poeta, a organização rítmica das palavras para alcançar um impacto musical na poesia era de
excepcional importância. O poema deveria refletir o dinamismo da nova era tecnológica (PETRIC,
1987, p.26). As experimentações rítmicas de Maiakovski na poesia inspiram Vertov a pensar nas
possibilidades de organizar e compor as imagens pela montagem de modo que o resultado
permitisse causar no espectador a sensação do ritmo musical no filme, efeito que consegue alcançar
perfeitamente no filme O homem com a câmera considerado uma verdadeira sinfonia visual.
Se por um lado as cenas da vida cotidiana são consideradas a matéria-prima para o filme de
Vertov, a montagem significaria o processamento fabril responsável pela produção do filme como
um objeto, com um significado novo e diferente daquilo que o originou. Desse modo, é pelas
concepções presentes na montagem que Vertov se diferencia de outros cineastas documentaristas
russos de sua época. E é pela montagem que ele cria e explora as possibilidades expressivas das
imagens cinematográficas, escolhendo a ordem das seqüências, cortando, realizando justaposições,
alterando ritmos, ora diminuindo, ora acelerando. O objetivo da montagem, portanto, não é dar às
imagens a impressão de se estar observando a realidade natural, mas justamente mostrar a
interferência que se faz nas imagens por meio dos recursos fílmicos. Vertov elabora então a Teoria
dos Intervalos no processo de edição.
As idéias futuristas e construtivistas não comparecem de modo isolado na concepção
cinematográfica de Vertov. É difícil dizer onde começa a influência de uma e termina a de outra.
Vertov é considerado como um dos artistas mais não-ortodoxos da vanguarda, tendo inclusive uma
leitura particular das influências recebidas. Há que se considerar também que além das influências,
existiam as divergências. Apenas como exemplo pode ser citada a divergência que mantinha com os
futuristas e construtivistas que insistiam no domínio absoluto dos fatos na arte, eliminando qualquer
subjetividade na interpretação. Tal como foi mostrado anteriormente, Vertov não concordava em

428
restringir seus filmes a uma abordagem meramente factual, buscando um balanço entre a autêntica
representação e a reconstrução estética do mundo externo por meio da montagem (PETRIC, 1987,
p. 08).

O homem com a câmera

O homem com a câmera – uma sinfonia visual (The Man with que movie câmera – A visual
Symphony), de 1929, é o segundo maior documentário realizado por Dziga Vertov no período do
cinema mudo. O filme sintetiza as influências que recebeu das vanguardas artísticas e põe em
prática os princípios defendidos em seus manifestos elaborados juntamente com os kinoks.
Vertov, com o auxílio de seu irmão Mikhail Kaufman, responsável pela operação das
câmeras, e sua esposa Elizaveta Svilova, editora, realizaram um filme a partir de cenas captadas do
cotidiano, nas mais variadas situações: uma mulher despertando em seu quarto, pedestres na rua,
carruagens, automóveis, bondes e trem, uma telefonista, um casal formalizando o divórcio no
cartório, um policial controlando o tráfego, um funeral, pessoas dormindo em banco de rua, um
parto, um acidente na rua, uma ambulância, um salão de beleza, uma barbearia, uma costureira em
sua máquina, uma empacotadora de cigarros, uma datilógrafa, uma máquina de calcular, um
telefone, mãos tocando piano, um mágico, atletas em atividade, uma partida de xadrez, máquinas de
tecelagem entre outros. Há ainda imagens que, mesmo obtidas a partir de objetos reais, dão a
impressão de serem composições abstratas, geométricas, pela exploração dos planos de filmagem.
Todas essas cenas não são mostradas uma única vez, mas intercaladas, repetidas em diferentes
ritmos e seqüências. As imagens são em alguns momentos aceleradas e em outras são mostradas em
slow-motion. Os planos também variam, desde planos gerais e panorâmicos – como as cenas das
ruas e da cidade -, até planos bem fechados em detalhes de objetos ou partes de pessoas, como boca
ou olhos. Em relação aos ângulos, alguns são pouco usuais, obtidos a partir do posicionamento da
câmera em locais bem inesperados como abaixo do trilho do trem ou do alto de uma chaminé. As
tomadas não são realizadas somente com a câmera fixa, sendo muitas imagens captadas em
movimentos.
O filme traz também um aspecto importante e marcante que é a presença da
metalinguagem, isto é, a inserção de imagens do operador de câmera – Mikhail, irmão de Vertov-
realizando a filmagem, a editora – Elizaveta, a esposa - realizando a montagem do filme, além da
exibição do público assistindo ao filme numa sala de cinema.

429
Por meio da montagem é dado um ritmo à aparição das imagens, como uma sinfonia, tal
como se apresenta no título. Aliás, o filme mostra inclusive músicos de uma orquestra. Em algumas
passagens realiza-se também a fusão de imagens, obtendo-se um efeito visual bastante interessante,
como se a cidade estivesse sendo implodida ou sugerindo o choque dos bondes.
A partir desse detalhes é possível notar que a intenção de Vertov não é mostrar imagens de
um modo usual, ainda que as cenas possam ser a princípio bem familiares. Os recursos são
explorados para provocar no espectador a sensação cinestésica a partir das imagens, possibilitar um
outro modo de ver as cenas que estão acostumados a ver cotidianamente. Vertov mostra imagens de
um mundo em movimento, num ritmo acelerado como uma máquina, anunciando as transformações
que estão acontecendo ou irão acontecer. O dinamismo das imagens traça um paralelo com o
dinamismo das mudanças sociais.
A influência das vanguardas, principalmente do futurismo e do construtivismo são
evidentes no filme como, por exemplo, nas imagens das fábricas e das máquinas em funcionamento.
Aliás, a máquina não é vista como algo apartado do homem, com ele deve constituir um amálgama
para potencializar suas ações e percepção sobre o mundo. Diversas vezes o olho é mostrado
refletido na lente da câmera de filmar. A máquina é uma extensão do corpo humano, como inclusive
Vertov e os kinoks afirmam em seu manifesto.
Vertov compartilhava com os futuristas e construtivistas que a idéia de que arte deveria ser
engajada politicamente e possibilitar as massas uma visão revolucionária da sociedade. Sua
intenção era explorar ao máximo o poder do cinema como instrumento de educação do povo para a
construção de um novo mundo. As imagens cinematográficas possibilitavam a construção de
sentenças e frases que expressavam idéias de um modo mais poderoso do que muitos meios de
comunicação.O filme era visto como uma linguagem universal de expressão, acessível a todas as
pessoas apesar das fronteiras nacionais. E isto fazia pleno sentido no momento em que se constituía
a República Soviética.
O homem com a câmera é considerado o filme mais construtivista da história do cinema;
uma realização conceitualmente e criativamente além de seu tempo. (PETRIC, 1991, p. 13).

Cinema: entre o mito e o esclarecimento

O cinema surge como instrumento da ciência, como recurso para registrar o movimento que
o olho humano não conseguia captar. Pioneiros nesse sentido foram o fisiologista Marey e o
fotógrafo inglês Muybridge que usaram o cinema como recurso para captar e estudar o movimento

430
dos animais (GUIDI, 1991). Mas quem levou a fama de inventores do cinema foram os irmãos
Lumière que ousaram, em 28 de dezembro de 1895, a realizar a primeira exibição pública do
cinematógrafo (GUIDI, 1991; MERTEN, 2003). O cinema ainda não havia saído totalmente do
círculo científico e quem percebe e explora a potencialidade dessa invenção para o espetáculo é
Georges Méliès, homem do teatro que trabalhava com mágicas. Contudo, é somente com D. W.
Griffth que se inicia a construção da linguagem cinematográfica, sendo o seu filme “O nascimento
de uma Nação” (The Birth of a Nation – 1915) considerado um marco na história do cinema.
(MERTEN, 2003). Griffth se emancipa do teatro filmado e começa a explorar diferentes planos nas
filmagens. Desenvolve o que posteriormente foi conhecido como a “decupagem clássica”, isto é, a
realização da montagem com o intuito de dar ao filme a ilusão de uma continuidade espaço-
temporal, proporcionando um ar de naturalidade na narração de uma história (XAVIER, 2005). Se
por um lado o cinema de Griffth passou a ser considerado como um divisor de águas do cinema
americano e mundial, criando uma linguagem cinematográfica que foi incansavelmente explorada
pelo cinema comercial, não é preciso dizer que esta linguagem foi totalmente rechaçada pelos
cineastas soviéticos de vanguarda como Eisenstein e Vertov. Divergências à parte, era exatamente
este encantamento provocado pelo filme que ambos se esforçaram em desconstruir com o intuito
promover outras formas de representação não realistas e desvincular o cinema do entretenimento. E
nesse sentido, Adorno e Horkheimer também fizeram duras críticas ao cinema como meio de
diversão e alienação das massas.
O posicionamento dos pensadores frankfurtianos em relação ao cinema é bem conhecido,
tendo sido explicitado por eles no texto “A indústria cultural – o esclarecimento como mistificação
das massas”, publicado pela primeira vez em 1947, em Amsterdã. No prefácio do livro Dialética do
Esclarecimento, no qual está inserido o texto, os autores escrevem: “O segmento sobre a “indústria
cultural” mostra a regressão do esclarecimento à ideologia, que encontra no cinema e no rádio sua
expressão mais influente” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 16). Para eles, o cinema não
precisava mais se apresentar como arte porque os próprios produtores consideravam a realização de
um filme como indústria e sua produção era encarada como um negócio. Em seu conhecido texto
“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” Benjamin também reforça esta idéia do
cinema como negócio, revelando que um filme de longa metragem precisaria atingir um público de
nove milhões para se tornar rentável. E ele estava se referindo ao cálculo realizado em 1927.
Como se pode ver, a realização de uma obra cinematográfica está implicada à condição
necessária de sua reprodução técnica e, conseqüentemente, a vinculação do valor de troca, isto é, a
redução da obra à condição de mercadoria.

431
A questão da reprodução técnica traz ainda uma outra implicação, dessa vez no campo
conceitual. A obrigatoriedade da reprodução coloca o filme numa condição diferente de outras
obras de arte, implicando, assim, na necessidade de se repensar a questão da autenticidade da obra e
o conceito de aura em relação ao cinema.
O desenvolvimento tecnológico acelerado pela Revolução Industrial, ao interferir
radicalmente nos modos de produção, inclusive na produção da obra de arte e na invenção de outros
meios de expressão e representação, forçou a necessidade de se repensar os conceitos até então
relacionados ao campo estético, assim como refletir sobre os modos de recepção das obras e sua
relação com a sociedade.
Recordando o pensamento de Marx, Benjamin observa que a “superestrutura se modifica
mais lentamente que a base econômica” (1985, p.165) e no ritmo em que ocorrem as
transformações no campo tecnológico, difícil se torna ao pensamento acompanhar e elaborar tudo o
que ocorre à sua volta. Se por um lado a invenção da fotografia e do cinema provocaram mudanças
conceituais no campo estético, por outro, o contínuo aprimoramento técnico e a utilização crescente
da tecnologia digital obriga, conseqüentemente, a uma revisão no próprio conceito de cinema e a
fotografia como signos mistos, ou seja, como um índice-iconográfico (DUBOIS, 1994; KOSSOY,
1989) visto que o modo de produção da imagem não está mais restrito à conexão física com seu
referente, podendo os objetos representados serem criados, modificados ou suprimidos
virtualmente. Desse modo, a fotografia e o cinema se distanciam de suas origens e se aproximam da
pintura e do desenho, tornando-se cada vez mais difícil a distinção entre as formas de representação.
Não há dúvidas que o desenvolvimento tecnológico tem acelerado transformações nos
modos de produção e representação e também provocado novas relações no interior da sociedade.
Até então não há nada de novo nessa constatação. A questão a ser colocada é que tipo de
subjetividade estas mudanças têm produzido. Certamente Adorno e Horkheimer responderiam que
os avanços tecnológicos não têm possibilitado ao homem viver verdadeiramente como sujeitos,
visto que a racionalidade técnica, responsável pelo progresso, produziu também a regressão das
consciências. . Progresso técnico e regressão das consciências de fato parecem caminhar juntas e de
mãos dadas e isso é compreensível porque o único objetivo da razão parece ser a simplificação da
vida. As máquinas se tornam mais sofisticadas para livrar o homem do fardo de pensar, reduzindo a
liberdade dos indivíduos e sua capacidade de escolha.
A utilização crescente da tecnologia nos novos meios como a fotografia, o cinema, o vídeo,
a televisão e a Internet não produziu necessariamente uma melhoria nos conteúdos veiculados, nem
tampouco tem colaborado no sentido de promover a reflexão das massas. Todo o aparato técnico se

432
restringe ao uso como parafernália para realização do espetáculo. A indústria cultural, investida
somente do intuito de vender a sua mercadoria, não quer provocar o sofrimento em seus
espectadores fazendo-os pensar e, nesse sentido, simplifica os conteúdos para que esses possam ser
facilmente assimilados pela consciência fatigada. A tecnologia é empregada somente para dar
aparência de novidade ao velho conteúdo. Na verdade, é sempre a mesma repetição do desgastado
clichê. No cinema, com o argumento de ter que atender ao gosto do público, a indústria
cinematográfica acaba produzindo filmes de modo padronizado e repetitivo. Não é à toa que
Adorno e Horkheimer escreveram que “desde o começo do filme já se sabe como ele termina...”
(1985, p.118). ´
A indústria cultural apropriou-se do cinema e o reduziu, segundo seus interesses, a única
possibilidade de existência: servir como espetáculo. E nisso reside a sua condição de mito,
duramente criticada por Adorno e Horkheimer. Mas será essa sua única vocação?
Como foi visto inicialmente, o cinema foi criado como instrumento para uso da ciência.
Embora pouco divulgada, esta vocação nunca deixou de ser realizada. Contudo, há que se
considerar que, mesmo empregado pela ciência, seu uso nesse âmbito também carrega o germe do
mito na medida em que vislumbra o domínio da natureza pelo uso da razão.
Na verdade, desde o seu surgimento, o cinema, assim como sua prima-irmã, a fotografia, já
poderiam ser considerados como representações típicas da era burguesa e expressavam claramente
os valores defendidos por essa classe social. Ambas viabilizaram a concretização do anseio da
burguesia de encontrar uma forma de expressão que possibilitasse a representação do mundo, não
como ele é, mas como ele era visto por esta classe social em ascensão: um mundo dominado pela
técnica, administrado por uma razão instrumental: objetiva, precisa e veloz. Captar a velocidade do
movimento, do progresso, das transformações sociais, este era o desafio. O cinema e a fotografia
sintetizam o desejo da burguesia em inventar um espelho em que ela pudesse contemplar não o
mundo, mas a sua imagem e semelhança projetadas nele. Ciência e técnica, arte e ideologia são
sintetizados na nova forma de representação do mundo.
As vanguardas artísticas, e entre elas o futurismo, criticavam esse mundo burguês e, no
entanto, surpreendentemente se viram compartilhando e defendendo os mesmo valores. Os artistas
soviéticos, por sua vez, mediados pelas influências das vanguardas, absorveram os mesmos ideais
de progresso, representados pela industrialização dos modos de produção e a modernização da vida
pelo emprego da tecnologia.
No elogio e admiração pela máquina, os artistas soviéticos, e entre eles Vertov, ainda não
conseguiam vislumbrar a contradição que o progresso técnico carregava, tão bem expresso por

433
Adorno e Horkheimer na “Dialética do Esclarecimento”. Isto é compreensível porque a situação
histórica da jovem República Soviética, que se encontrava nos primórdios de sua industrialização e
sedenta pela modernização, ainda não possibilitava a percepção dessa contradição. Ainda havia o
sonho que a modernização, liberta dos interesses capitalistas, pudesse promover a emancipação do
homem. Os rumos tomados na história não permitiram comprovar a validade do sonho.
Tal como seus companheiros vanguardistas, Vertov compartilhava o entusiasmo provocado
pela Revolução de Outubro e o sonho de uma nova sociedade transformada pela máquina. O filme
“O homem com a câmera” de Vertov é, em certo sentido, o prenúncio dessa sociedade. Nele se
mostra uma empacotadora de cigarros que sorri possivelmente porque não se sente oprimida em seu
trabalho, não se sente explorada por nenhum patrão capitalista. Mas o que o filme não questiona é a
presença da separação entre o trabalho braçal e o intelectual. Se o filme de Vertov representa o
sonho de uma nova sociedade, neste o homem ainda não está emancipado do sofrimento do
trabalho. Como poderia este homem usufruir dos bens mais sofisticados da cultura se ainda se
encontrava submetido à pressão do trabalho mecânico e repetitivo?
Vertov conhecia muito bem as possibilidades do cinema como meio para provocar a ilusão
nos espectadores e assim o fez, até certo ponto. Mas ele fez questão também de revelar que por trás
da mágica e do encantamento das imagens havia um processo de construção técnico e racional.
Vertov procurou explorar em seu filme a metalinguagem como estratégia didática, intercalando
entre as cenas do cotidiano da cidade, imagens que mostravam a realização do filme, desde a
captação pelo operador de câmera até o processo de edição.
Vertov entendia que o filme que realizava era destinado à massa, mas ao mesmo tempo se
recusava a atender somente ao gosto popular, marcando uma oposição ao pensamento vigente na
indústria cultural. Nesse ponto, é possível ver uma concordância entre Adorno e Vertov, tal como
pode ser visto em “Televisão e Emancipação”, quando Adorno defende que os conteúdos
veiculados pela televisão não devem subestimar a capacidade intelectual dos espectadores e entende
que deve existir espaço para conteúdos que não correspondam aos interesses do grande público.
(1995, p. 93).
Vertov defendia, portanto, que o cinema deveria ter uma função educativa. A questão a ser
colocada é: o que era entendido como educação ou conscientização das massas? E quais as
possibilidades do cinema realizá-lo?
Tal como no trabalho de outros cineastas soviéticos, há uma explícita concepção ideológica
no filme de Vertov. Aquilo que se entende por educação ou conscientização é, nesse sentido, a
divulgação de uma determinada visão de mundo, ainda que seja um mundo socialista. Nessa

434
perspectiva, aquilo que se entendia como conscientização ou educação poderia correr o risco de se
tornar massificação no sentido de produzir um pensamento único. O cinema, desse modo, poderia
ser usado não como veículo de conscientização, mas como meio de propaganda do regime, assim
como fez Leni Riefenstahl em seus filmes sobre o nazismo. Difícil se torna distinguir entre um e
outro. Para Adorno, a educação deveria estar voltada para a emancipação, para autodeterminação,
promover a capacidade de reflexão formação de experiência. Não acredito que Vertov defendesse
idéias muito diferentes de Adorno sobre educação devido ao fato de Vertov mostrar-se não-
ortodoxo no modo como lidava com as idéias vanguardistas, não sendo um homem que se submetia
facilmente aos sectarismos de grupos.
Em relação às possibilidades do cinema como meio de conscientização, Vertov era um
entusiasta, mas não era ingênuo. Ele não defendia o cinema incondicionalmente, justamente pelo
fato de saber que o meio poderia ser usado como mistificação. Ele se dedicava à elaboração de uma
teoria e uma técnica para tirar o máximo proveito do cinema como meio para atingir as pessoas e
provocar um outro modo de recepção para torná-las receptoras ativas e participantes. Em relação a
Adorno, sua posição em relação ao cinema é bastante crítica. Mas de que cinema ele estava se
referindo? Pelo que se pode ver no texto sobre a indústria cultural, a referência era o filme de
entretenimento produzido por Hollywood. Ele não faz uma menção explícita a outras experiências
cinematográficas como o próprio expressionismo alemão ou o cinema russo e soviético. Mesmo em
relação as vanguardas artísticas, sua referência mais conhecida é no campo da música em que
analisa a obra de Schönberg (Adorno, 2004). Para se ter uma idéia, poderíamos tomar novamente
como referência “Televisão e Emacipação”, ocasião em que ele não se diz contra a televisão, mas
alerta para o uso que se faz dela. Nessa perspectiva, podemos inferir que o filósofo não apresentaria
em relação a toda e qualquer experiência cinematográfica uma atitude de reprovação generalizada.
Isto não quer dizer, necessariamente, que aprovaria o trabalho de Vertov.
O que tentei fazer nesse breve trabalho foi a apresentação do cinema de Vertov e a partir
dele, mais especificamente o filme “O homem com a câmera”, realizar algumas reflexões sobre o
cinema, procurando trazer para o debate as reflexões de Adorno, Horkheimer e Benjamin. Procurei
refletir sobre o cinema a partir de suas contradições, abordando-o tanto como mistificação como
esclarecimento. Mas refletir sobre o cinema de Vertov me obrigou necessariamente a pensar
também sobre as experiências das vanguardas artísticas. Onde teriam chegado se não tivessem sido
abortadas pelos regimes totalitários? Qual teria sido o destino dessas experimentações? E que lições
será que podemos tirar dessas experiências?

435
Tenho ciência que muitos aspectos deste trabalho ainda devem ser aprofundados e revistos,
por isso não o considero finalizado. De toda forma, senti-me na necessidade de compartilhar essas
idéias, mesmo nesse estágio de construção.

Referências bibliográficas

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______. Filosofia da Nova Música. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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2005.

436
A disciplina escolar hoje: uma reflexão a partir de Foucault, Adorno e Horkheimer

Luciana Azevedo Rodrigues (UNIOESTE – UFSCar)


Marcio Norberto Farias (UFSCar- UNESP/Araraquara)

Este texto é fruto de inquietações mobilizadas no interior da sala de aula por discussões
acerca da indisciplina observada por universitários nas escolas de ensino fundamental e médio. Ao
mesmo tempo, que eles lamentavam a perda daquela disciplina e obediência de seus anos de escola
primária e secundária, os universitários não percebiam que por vezes ocorriam aproximações de
suas atitudes com as dos alunos dos níveis anteriores, especialmente, nos momentos que
implicavam o exercício de concentração e atenção por mais de alguns minutos sobre algo. Esta
situação ambígua produziu a indagação que nutre este texto, qual seja: aquilo que os universitários
identificavam na escola de ensino médio e fundamental como indisciplina, pode ser uma expressão
atual da disciplina que marcou o espaço escolar no inicio da sociedade de massas? Partimos do
pressuposto de que numa sociedade em que o mercado dita o valor da vida, em que esta precisa
assumir um quê de espetacular, em que o instantâneo se tornou o máximo e o ser humano fungível,
a escola se conserva como uma instituição disciplinar, ou seja, ela ainda é palco onde os corpos são
docilizados, tornados mais úteis economicamente e menos capazes politicamente. Um espaço que
ainda conserva o que Foucault, em Vigiar e Punir, chamou de panoptismo. Como este autor abordou
os mecanismos disciplinares que nasceram com a sociedade moderna, a partir de uma perspectiva
histórica, podemos depreender de seu texto o processo histórico que parte de uma arquitetura
idealizada para fins de encarceramento de vagabundos e criminosos, denominada Panóptico, e que
vai se desmaterializando até se tornar, um esquema capaz de permear todos os âmbitos sociais, que
constitui aquilo que Foucault chama de sociedade disciplinar, marcada pela fabricação e pela
vigilância ininterrupta dos indivíduos. Tendo em vista a perspectiva histórica que Foucault assume
para tratar o panoptismo, buscamos aqui pensar a manutenção deste princípio na sociedade atual,
mesmo que modificado pelas transformações tecnológicas, e a sua presença no sistema de
mistificação das massas denominado por Adorno e Horkheimer de “Indústria Cultural”. O
panoptismo que ainda hoje persiste no interior da escola parece cada vez operar por meio da
Indústria Cultural, cada vez mais percebida como um modelo para organização e administração dos
conhecimentos, das relações sociais, do tempo e do espaço escolar.
O trabalho foi estruturado em duas partes. Na primeira, analisamos uma das características
dos mecanismos disciplinares modernos, analisados na obra de Foucault: a estrutura arquitetural do

437
panóptico; e estabelecemos algumas relações entre ela e aquilo que Adorno e Horkheimer
chamaram de Indústria Cultural. Na segunda parte, destacamos algumas exigências da sociedade
atual, mediada pelos produtos da Indústria Cultural, para existência individual. Apontamos a partir
desses destaques a expressão atualizada daquele mecanismo disciplinar e questionamos até que
ponto é possível falar de indisciplina na escola.
Sobre a arquitetura, idealizada pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832),
Foucault descreve
[...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é
vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz,
pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade,
as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas,
tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. [...] A plena luz e o olhar de um
vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A
visibilidade é uma armadilha.(Foucault, Vigiar e Punir,1987, p.177)

Nesta passagem, encontramos um dos principais elementos que caracterizam as formas de


disciplina inerentes à sociedade moderna e contemporânea. Diferentemente das formas de controle
anteriores ao século XVII, que captavam o louco, o doente, o condenado, o súdito (operário), o
escolar, utilizando a escuridão, prendendo, privando de luz, escondendo, exilando; as formas de
controle modernas utilizam a “plena luz”, liberando e fazendo brilhar. Na análise foucaultiana
destas formas iluminadas de controle, vemos despontar sua crítica à idéia fundante da sociedade
moderna e da filosofia iluminista, segundo a qual o mundo deveria ser explicado e controlado pela
razão humana, conforme a qual o medo deveria ser eliminado a partir do calculo racional de todas
as coisas. Do interior da descrição das novas formas de controle humano, do seio das instituições
modernas voltadas para disciplinar os corpos brilha a crítica foucaultiana à luz, àquela que explica,
que manipula, que observa, que registra, que avalia, que normatiza, enfim, à luz da razão, à luz do
poder que não mais age sobre, mas atravessa os corpos. Conforme Foucault, variações do Panóptico
se estruturaram e se difundiram pelas instituições modernas, assim como estas instituições
panópticas se proliferaram na totalidade social, alcançando espaços ao redor dela até, enfim se
diluírem como mecanismos disciplinares em toda a sociedade capitalista. O pensador francês

438
destaca uma variação desta estrutura de vigilância no interior da escola, que ficou conhecida
historicamente como Escola Mútua. Caracterizada pela união de um grande contingente de alunos
colocados sob a tutela de um só professor, a Escola Mútua, na França, recorda alguns trechos de
uma das mais importantes obras pedagógicas da modernidade, a Didática Magna, de Amós
Comênio, especialmente devido à configuração hierárquica da sala de aula associada às constantes
situações, a exames que tornavam um aluno visível e completamente exposto ao olhar do professor,
da norma, e de todos os outros alunos; exposto, portanto, à luz da razão e do poder. Diante deles a
incapacidade, o não saber, a insuficiência, a inadequação à norma é iluminada, identificada e
condenada.
Mas, e hoje, esta estrutura que organizava o espaço de modo a manter os alunos, sob o
olhar constante do poder e que podia ser encontrada nos primórdios da escola de massas, continua
presente na escola atual? Foucault leva a pensar que sim, à medida que explicita como tal estrutura
tende a se difundir no corpo social, ou seja, como o anel dividido em várias celas por onde a luz
atravessa e dá visibilidade do condenado à torre de vigilância, tende a assumir uma função
generalizada no todo social, sendo capaz de “[...] tornar mais fortes as forças sociais – aumentar a
produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução elevar o nível da moral pública; fazer
crescer e multiplicar”. (Foucault, 1987, p. 183) Uma maquinaria ao mesmo tempo gigantesca e
minúscula, pois ao passo que faz crescer as forças sociais se multiplica no interior do que Foucault
chamou de indivíduo. Como condenado e vigia ao mesmo tempo, o indivíduo é aquele que se olha,
que se cheira, que se toca, por meio da norma, por meio da luz e, por isso mesmo a sua relação com
o outro, seja no olhar, no cheirar, no sentir e no tocar está danificada. A única maneira de se
relacionar com os outros condenados passa pela torre, passa pelo poder, passa pela norma, passa
pelo saber. O contato direto, não mediado pelo poder/saber, encontra-se barrado ao indivíduo; pois
apenas o poder o atravessa; assim como a luz no Panóptico, originalmente, atravessava a cela do
condenado, que não tinha nenhuma abertura que permitia a comunicação lateral, ou seja, que não
admitia a comunicação entre sujeitados, controlados, condenados, observados e registrados. O
desenvolvimento tecnológico, apesar de conter um potencial para provocar a implosão do
Panóptico, parece operar cada vez mais no sentido de maximizar as capacidades desta estrutura de
vigilância. A celularização do poder se realiza e se fortalece com a ampliação dos meios
tecnológicos capazes de tornar o mundo visto e transmitido a todos, a cada instante. Para Foucault,
o efeito mais importante do Panóptico é “[...] induzir no detento um estado consciente e permanente
de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.”(Foucault, 1987, p.177)
Noutras palavras, não interessa se a vigilância sobre o detento é contínua, mas que a sensação de

439
estar sendo observado seja permanente. Sem contato com outros, cada indivíduo está em sua cela
sob o exclusivo olhar do vigia, leia-se aqui da tecnologia. Nas palavras de Foucault “É visto, mas
não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação” (Foucault, 1987, p.177)
A descrição do Panóptico, assim como dos dois modos como a cidade se organizou, no
limiar do capitalismo contra a lepra e contra a peste – considerados por Foucault as organizações de
onde derivam os mecanismos do poder - levam a uma sensação de familiaridade, pois retratam seres
humanos isolados, cujos movimentos são observados, registrados, comparados, limitados, que
reproduzem uns sobre os outros olhares examinadores, e se realizam como objetos a partir dos quais
o poder se reproduz.
Adorno e Hokheimer, de modo diferente também falam de novas formas de controle e de
dominação da vida. No capítulo em que cunham o conceito Indústria Cultural, os autores já no
título, indicam, como continuação dos capítulos anteriores, o esclarecimento como forma de
mistificar as massas. Iniciam o texto fazendo uma observação em relação ao processo de
individualização presente no projeto da modernidade. Dizem “[...] os projetos de urbanização que,
em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse
independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do
capital” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 113)
Ao se deterem sobre as habitações modernas, os autores parecem ver nelas o mesmo
objetivo visado pelo sistema que eles chamam de Indústria cultural: conservar o indivíduo o mais
submetido possível ao poder do capital a partir da idéia de independência, de soberania do
indivíduo, e, ao mesmo tempo da idéia de autoconservação.
Tanto Adorno, Horkheimer quanto Foucault vêem o projeto de explicação racional do
mundo, empreendido pelo esclarecimento como uma nova forma de controle e de dominação da
vida. A análise foucaultiana do panóptico, especialmente, ganha força quando relacionada com o
sistema da Indústria Cultural. Um sistema que dirige e absorve todo e qualquer traço de
espontaneidade do público e recorda a torre de vigilância do panóptico, que capta e registra as
reações daqueles que tem de controlar, que mantém nestes a consciência permanente de que estão
sendo observados, e fundamentalmente, vão para além de veículos de informação e assumem a
força de forjadores de subjetividades, de individualidades cada vez menos capazes de se comunicar
uns com os outros. Aliás, esta força de isolamento, seja trancafiando um louco numa cela ou
formando o sujeito da autoconservação, compreende uma das grandes forças deste sistema. Vemos,
ao longo do texto dos frankfurtianos a descrição de um desenvolvimento tecnológico que expropria
os seres humanos de momentos de comunicação social e os reduzem à condição de meros

440
receptores de uma cultura produzida para ser consumida, assim como para consumir o resíduo
individual produzido pela falsa identificação do particular com o universal. Quando por exemplo
na passagem do telefone ao rádio. Contudo, este sistema capaz de dar visibilidade, este filtro com o
qual os indivíduos recebem o mundo, se torna também o filtro com os qual os indivíduos passam a
perceber a si mesmos. Como dizem os filósofos “O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da
indústria cultural”(Adorno e Horkheimer, 1985, p.118) Nela, o rigor da reprodução do mundo da
percepção tornou-se uma norma, que deve ser realizada a todo custo. A exatidão desta reprodução
pela obra fílmica reprime a fantasia e o pensamento do expectador, não admite que este passeie e
divague na obra sem perder os fatos que se desenrolam na sua frente. É desacostumando os
indivíduos de acrescentar algo àquilo que lhes é apresentado, que a indústria cultural os “adestra”
para se identificarem imediatamente à realidade. Uma falsa identificação entre o particular e o
universal é produzida pela mediação dos produtos desta indústria. Espantando o vagar, o tatear, o
ensaiar, o catálogo de seus produtos inibe o pensar e estende-se, segundo os frankfurtianos, “[...] a
tal ponto que ele não apenas circunscreve a margem de liberdade, mas também domina-a
completamente.”(Adorno e Horkheimer, 1985, p.120) O cardápio, contudo, é previamente
revistado, examinado, calculado minuciosamente pelas equipes de produtores culturais,
preocupadas em garantir que todos os seus produtos contenham o “imprimatur” do existente, que o
consumidor adquira algo que lhe soe familiar, que não provoque estranhamento. Conforme os
frankfurtianos, para que tais produtos promovam prazer naquele que os consome eles não devem
exigir esforço intelectual, mas se basearem “[...] nos trilhos gastos das associações habituais. [...] Os
desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não
da Idéia do todo. (Adorno e Horkheimer, 1985, p.128) Nesses termos a atração da obra pauta-se na
sua capacidade de distrair o expectador. Além de habituar os sentidos ao ritmo cada vez mais
acelerado da produção, promove a aceitação do sofrimento, a partir da sova calculada dos
protagonistas das obras. Com ela se aprende “[...] que a condição da vida nesta sociedade é o
desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. (Adorno e Horkheimer, 1985,
p.130) Adorno suspeita que a pequenez da figura transmitida a domicílio – como acontece com a
televisão - logra o espectador a medida que proporciona uma sensação de superioridade. Em suas
palavras

Os homenzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicilio tornam-se


joguetes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear o
espectador: ele os sente como propriedade, da qual pode dispor e em
relação à qual se sente superior.(Adorno, 1987, p. 347)

441
Nesse aspecto, ela infla o espírito para que este não se oponha a si mesmo e ao existente,
mas o reafirme na própria consciência. Ela reproduz a consciência reificada.
O prazer que indefinidamente seus produtos promete é automaticamente reprimido pela
produção em série do objeto do desejo. Reprimindo constantemente os desejos, a indústria cultural,
debilita os seres humanos da capacidade de sublimação. Menos capazes de laborar sobre seus
próprios impulsos e transformá-los por meio da criação, os seres humanos projetam o desejo que
não foi satisfeito para o novo produto ofertado pela Indústria Cultural e que promete, mais uma vez
realizá-lo. Nesse processo de repressão constante, a indústria cultural opera como um mecanismo
poderoso capaz de manter a consciência individual livre dos resíduos psíquicos inconscientes
reprimidos e ansiosos em se manifestar. Todos os seus produtos tendem a afirmação mútua de si
mesmos e à confirmação do existente. Como assevera Adorno, “O que fosse diferente seria
insuportável, porque recordaria aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como se lhe pertencesse,
porque ele próprio não se pertence.” (Adorno, 1978, p. 348). A maquinaria denominada pelos
frankfurtianos, além de veicular informações, produzir gostos, educar os sentidos, ajudar no
controle da economia psíquica individual, parece assumir cada vez mais a função de janela, a partir
da qual o indivíduo percebe o mundo e a si mesmo como o sempre igual.
Como afirma Adorno

O consumidor é tratado como aquilo para o que tende por si próprio, ou


seja, não a experimentar a imagem como algo em si, ao qual deve
atenção, concentração, esforço e compreensão, mas sim como um favor
que lhe é concedido e que lhe é dado avaliar em termos de que lhe
agrade o suficiente(Adorno, 1978, p. 348).

Tal papel é maximizado com o aparecimento da rede Internet e das webcams, que permitem
ao mesmo tempo o acesso dos indivíduos ao universo virtual e o acesso dos provedores à vida do
indivíduo; que agudizam a sensação de ser visto, que aumentam os filtros a partir dos quais a vida é
acompanhada, que diminuem o espaço e o tempo, que tornam a vida um cenário, que recorda a
angústia da existência, produzida pelo medo de não ser percebido. As imagens na tela adquirem
hoje, mais do que nunca a velocidade que traduz o cotidiano e reproduzem a percepção habituada à
velocidade, à intensidade, exigida por uma sociedade acelerada, assim como medeiam a relação do
indivíduo consigo mesmo e com as outras pessoas, interrompendo relações imediatas entre elas.
A visibilidade que se configura como uma armadilha, segundo Foucault, assume graus
ainda mais intensos, se tomarmos observações como as de C. Turcke, que em seu texto “Sociedade

442
da Sensação” fala-nos sobre a confusão do comum com o extraordinário, operada pela sociedade
moderna de produção de mercadorias. Este filósofo contemporâneo chama de sociedade da
sensação uma totalidade social onde o indivíduo, para se autoconservar precisa surpreender. A
sobrevivência encontra-se ancorada na necessidade de impressionar e por isso tal necessidade não é
considerada ruim. Nesta sociedade que seria a nossa sociedade, o mercado define o sentido e o valor
da vida; as pessoas, os acontecimentos e os produtos lutam para assumir o brilho do extraordinário
para serem percebidos, pois apenas assim, podem alcançar o status da existência e, portanto, a
condição para que sejam vendáveis e possam sobreviver. Como afirma Türcke

[...]aquilo que não se destaca na massa de ofertas não vende, pois não é
verdadeiramente percebido. O que não é percebido é um nada; quem
não é percebido é um ninguém. Na necessidade, no desejo da sensação,
encontra-se a angústia da existência de uma sociedade inteira.(Türcke,
2004, p. 31)

A marginalidade, nesta sociedade, não se reduz à esfera econômica, mas afeta toda a
existência. “As câmeras se detém, cada vez mais sem qualquer tipo de escrúpulo, diante da morte,
do sofrimento, do horror, do desespero, do sexo e do orgasmo” (Türcke, 2004, p.31) Ou seja, elas se
detém sobre aquilo que historicamente viveu protegido na escuridão, mas que agora, em respeito ao
mercado e a necessidade de impressionar, devem cada vez mais se saber à luz, devem cada vez mais
serem adjudicados ao controle racional capaz de tornar tais momentos extraordinários. A
inquietude, a velocidade, a aceleração que caracterizam as imagens na tela expressam, segundo
Türcke a angústia da existência, o horror evocado pela possibilidade de não ser percebido. Parece
que a aceleração da vida tem como motivação evitar a percepção da angústia de uma existência
condenada pela necessidade de impressionar. Aquele que não impressiona, sente perder o direito a
vida. A aceleração dos corpos, da pulsação da vida parece acontecer para evitar que os corpos
sintam um ritmo e uma existência própria.
Türcke identifica uma tendência na sociedade da sensação: a do desaparecimento do
sensorium (o sensível) na documentação das coisas. É como se o ser humano estivesse perdendo a
capacidade de perceber aquilo que não alcança os extremos, o extraordinário; como se o único
sentido atribuível, nesta sociedade, à palavra sensação fosse o do choque, como se seus sentidos
aguardassem desesperadamente o arrepio seguinte. É como se, nesta sociedade da sensação, a
existência estivesse condenada à máxima e intensa visibilidade. Aquela consciência de estar sendo
vigiado, produzida como o efeito mais importante do panóptico sobre aquele que se queria controlar

443
é mantida desperta pelas câmeras ou avisos como “sorria, você está sendo filmado”. Elas se
espalham nos prédios, nos pátios, nas casas, nos mais variados espaços sociais e ampliam aquela
estrutura de auto-vigilância, em que não se sabe se há de fato um olhar atrás da câmera ou até uma
câmera atrás do lembrete. O que importa é não esquecer que se pode ser, e nesse sentido, aproveitar
a chance de aparecer, de ser percebido, de existir. Por outro lado, a extensão desta estrutura
vigilante talvez seja um indicativo do enfraquecimento da consciência auto-vigilante.
Se retomarmos a arquitetura do panóptico de Benthan, analisada como inspiração para
constituição de um mecanismo de controle que rompe os muros das instituições para se diluir
naquilo que Foucault chama de Sociedade Disciplinar, podemos pensar que o sistema denominado
por Adorno e Horkheimer constitui a janela pela qual o olhar do poder alcança aquele que deve ser
mantido sob controle. Completamente individualizado, trancafiado e “iluminado”, o condenado no
panóptico parece metaforizar a forma de existência do sujeito contemporâneo.
O comportamento dos alunos, dos professores, o modo de lidar com conteúdos e
metodologias não seguiriam esta mesma tendência? Não deveríamos pensar os comportamentos
indisciplinares, neste contexto em que a existência depende cada vez mais do ser percebido? Hoje,
não poucas vezes, as salas de aula são vistas como espaços que devem evitar qualquer momento de
pausa, nelas é preciso excitar o corpo e os sentidos dos alunos com algo a fazer. As discussões sobre
novos projetos pedagógicos, especificamente sobre o currículo levam cada vez mais a um aumento
significativo de disciplinas semestrais, com curtíssimo tempo de duração. Os planos de disciplina
demonstram o empenho de trabalhar o máximo de informações durante um curso. Os eventos cada
vez mais variados levam professores e alunos a participar de olimpíadas e avaliações capazes de dar
visibilidade a escola seja no âmbito local, estadual ou nacional. O cotidiano da aula, precisa ser
tratado a fim de evitar um espaço, um tempo, pequeno que seja para o pensar. Tais indícios parecem
apontar para uma das faces de uma sociedade cada vez mais agitada para que não sinta a angústia da
existência. A indisciplina, a incapacidade de se deter, não seria apenas mais uma expressão de uma
rigorosa disciplina que impõem aos indivíduos desde muito cedo, a necessidade de impressionar, de
ser visto? Não seria ela uma expressão do auto-disciplinamento do indivíduo aprisionado ao
princípio da autoconservação de si e da sociedade capitalista, uma expressão do esforço pela
sobrevivência cada vez mais afastada do exercício da auto-reflexão crítica e da comunicação com o
diferente?

444
Referências

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TÜRCKE, C. Sociedade da sensação:a estetização da luta pela existência In: PUCCI, B.; ZUIN,
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(p. 30-38)

445
Uma Nova Economia Psíquica ou Mutações Tópicas?
Elementos para uma reflexão acerca da subjetividade contemporânea.

LASTÓRIA, L. A. C. N.
Prof. Dr. da F.C.H. – Psicologia – Unimep.
Pesquisador do Núcleo de Estudos e pesquisa em
Teoria Crítica e Educação – P.P.G.E. – Unimep.

Numa série de entrevistas concedidas ao também psicanalista Jean-Pierre Lebrun, ocorridas


entre 2.001 e 2.002, logo após o quarto encontro parisiense de psiquiatria em torno do tema “O
homem à prova da sociedade contemporânea”, o lacaniano Charles Melman buscou caracterizar
o que chamou de “nova economia psíquica”. Segundo ele esse fenômeno indicaria uma
“mutação inédita”, e que ainda está produzindo seus efeitos em termos antropológicos, de modo
a englobar tanto os indivíduos quanto a totalidade da vida social.

Pode-se dizer, em linhas gerais, que a “N.E.P.” identificada por Melman apresenta-se como
correlato subjetivo que, enfim, realizou o ideal tão propalado pela economia liberal de mercado,
qual seja: o de favorecer o enriquecimento recíproco, liberando as trocas de toda e qualquer
referência reguladora. Assim, uma auto-regulação econômica sustentada pelo constante
incremento da racionalidade tecnológica traduzido nas formas mais recentes assumidas pelas
tecnociências, e cuja regulamentação jurídica viabiliza-se pelo regime do Direito enquanto uma
espécie de atualização hodierna da filosofia sensualista inglesa do século XVIII, encontraria sua
inscrição num tipo de organização psíquica não mais baseado no recalque, como outrora, mas
sim que obedece a um contínuo apagamento dos próprios limites que a constitui. Fenômeno que
se deve à rapidez objetiva com que esses limites são constantemente ultrapassados pela
dinâmica social. Nesses termos, o preço a ser pago nos dias de hoje pelo “mal estar” de que nos
falou Freud assumiria agora a forma de uma “perversão generalizada”.

A fim de ilustrar essa nova configuração, psicológica e cultural a um só tempo, Melman faz
referência a uma curiosa e emblemática exposição de arte anatômica exibida pela primeira vez
em Mannheim no ano de 19971, e cujo sucesso em termos de visitação teria sido algo
surpreendente. Trata-se de uma exposição que exibiu uma “estatuaria” de cadáveres humanos
embalsamados, ou melhor, plastificados mediante uma técnica que, servindo-se de um banho de

446
acetona, substitui a água dos tecidos por resina epóxi tornando possível impor-lhes posturas
semelhantes as da vida.

O psicanalista descreve esse evento com as seguintes palavras: Os cadáveres prometidos à


eternidade são, mas nem sempre, escorchados. Apresentam sua musculatura, desnuda,
soberba. Com freqüência uma trepanação permite deixar a descoberto uma parte do cérebro.
A bochecha, parcialmente dissecada, desvela as inserções musculares. O sexo, flácido mas
em perfeita forma, é exibido. (...) Há também um belíssimo corpo de mulher, nesse caso sem
escorcho, com um busto absolutamente soberbo. De seu ventre aberto sai negligentemente
um pedacinho de útero fecundado. Uma luz suave, propícia à contemplação, ilumina essa
exposição. É filtrada por painéis cujas lâminas contém finas secções do corpo humano
fragmentado e colorido, o que dá o aspecto original de vitral. (2.003, p. 18)

O que essa exposição nos releva na perspectiva de Melman? A exibição de cadáveres tornados
peças “artísticas” denota, em primeiro lugar, que estaríamos ultrapassando o limite do respeito à
sepultura enquanto lugar que abriga a memória. Hoje, a demanda social por transparência nos
transformou em onivoyers cuja satisfação estética se realiza mediante um gozo pan-escópico.
No caso da referida exposição, tratar-se-ia de um gozo escópico da morte, fato esse que noutros
tempos jazia protegido da visão.

Em segundo lugar, toda uma cultura fundada na “representação” transmuta-se numa outra
fundada na “presentação”. Isso significa que estamos passando de um regime cultural alicerçado
na evocação do lugar onde se mantinha a instância sexual suscetível de autorizar trocas
(2.002, p. 20), para outro no qual se busca – sem rodeios – o objeto mesmo. Em termos
lacanianos, estaríamos regredindo de um ordenamento cultural estruturado a partir do falo
enquanto instância simbólica representante do pênis, em direção ao pênis propriamente dito,
exibido agora sem nenhum tipo de escrúpulo por uma linguagem predominantemente icônica.
Melman sublinha ainda que o fim de uma cultura fundada na representação implicaria,
igualmente, na impossibilidade de relações transferenciais, o que por sua vez coloca em xeque o
próprio setting do tratamento psicanalítico.

Mas dado que para os seres humanos, diferentemente dos demais animais, o “objeto mesmo” é
sempre o objeto perdido (o “objeto a” lacaniano), cuja falta entretém nossas buscas motivadas

1
Após essa data a exposição foi exibida também com enorme sucesso em diversos outros países
europeus, e no Japão onde atingiu um público de cerca de dez milhões e meio de visitantes. Em Bruxelas

447
pelo desejo, o que se acha abalado em última instância nessa transmutação cultural seria o
próprio sujeito animado por essas buscas, isto é, o sujeito do inconsciente. Sua divisão estrutural
entre o desejar e o falar – afânise – tende ao cancelamento. Quanto mais o padrão de realidade
se virtualiza, menos se percebe aquela falta originária como uma forma específica de decepção
que organiza nossa realidade. Tal qual a realidade cada vez mais compactada pela tecnologia,
uma vez que a ciência não faz outra coisa a não ser virtualizar o que julga naquela
“insatisfatório”, o sujeito se torna – também ele – cada vez mais compacto, e, simultaneamente,
flexível2. A esse respeito comenta Melman: Falar de um sujeito dividido é já dizer que ele se
interroga sobre sua própria existência, que ele introduz em sua vida, em sua maneira de
pensar uma dialética, uma oposição, uma reflexão, uma maneira de dizer “Não!”. Hoje em
dia, quase não vemos a expressão do que seria a divisão subjetiva. (2.002, p. 27)

Outro índice dessa profunda mutação psíquica e cultural exposta por Melman refere-se à
destituição da supremacia do gozo sexual enquanto padrão de referência para as demais formas
de gozo orificiais parciais. Promover gozos auditivos e visuais, cada vez mais intensos, constitui
a meta da sociedade multimídia contemporânea de modo que o gozo sexual fica relativizado em
relação aos demais, contraindo assim um caráter marcadamente instrumental. Daí a troca
incessante de parceiros, e daí também o interesse pelo gozo necrofílico, dentre outros.

As considerações feitas por Melman tocam ainda num outro problema de crucial importância
para compreensão do que ele chamou de N.E.P. Trata-se da dessacralização do poder efetuada
pelo mercado sob a égide do liberalismo. Se durante séculos o sagrado constituiu a fonte da
autoridade de um poder estruturado em termos teológico-político, as repúblicas laicas apenas
escamotearam esse problema sem que houvesse uma superação efetiva. Mas, devido à dinâmica
de ultrapassagem contínua dos limites imposta pela autoridade emanada do mercado, ruiu
também aquela sua contra-face subjetiva: a autoridade personificada pelo pai no interior da
família burguesa. Nos termos da psicanálise, sabe-se que a função do pai é a de privar a criança
da mãe e, assim, inseri-la nas leis da troca (“permuta simbólica”). Tendo em vista o já tão
discutido declínio da figura paterna nas sociedades atuais, verifica-se hoje que o apagamento
contínuo dos limites sócio-culturais levou à ausência de interditos e a decorrente
impossibilidade dos objetos acederem ao nível do simbólico.

ocorreu em abatedouros da cidade no ano de 2.001 sob o título Körper-welten, o fascínio do autêntico.
2
Quantos as mutações em nível do sujeito do inconsciente assim pronuncia-se o autor: Na medida em
que, justamente, não dispõem mais desse lugar, são capazes de se prestar a toda uma série de moradas.
Tornam-se estranhos locatários capazes de habitar posições a priori perfeitamente contraditórias e
heterogêneas entre si, tanto nos modos de pensamento quanto nas escolhas de parceiros – inclusive
tratando-se de sexo do parceiro ou de sua própria identidade. (2.002, p. 39)

448
Quanto às conseqüências dessa nova situação, o autor é bastante explícito ao dizer: Esse tipo de
situação sempre conduziu ao retorno do cajado, um retorno da autoridade, na maioria das
vezes sob uma forma despótica. (...) E se pode temer, como uma evolução natural, a
emergência do que eu chamaria um fascismo voluntário, não um fascismo imposto por um
líder e uma doutrina, mas uma aspiração coletiva ao estabelecimento de uma autoridade que
aliviaria da angústia, que viria enfim dizer novamente o que se deve fazer e o que não se deve
fazer (...) Aliás, o pensamento cada vez mais toma a forma desse fascismo voluntário.3 (2.002,
p. 38)

Em termos clínicos, o diagnóstico proferido por Melman, como já antecipado, aponta para um
estado de perversão generalizada4; a perversão figuraria agora como “norma social”. Antes de
passar a uma explanação desse diagnóstico, creio ser relevante abordar o destino do eu nessa
nova economia. Melman nos esclarece que na falta de um referente estável, todo e qualquer
reconhecimento fica prejudicado, e, dessa sorte, o eu vê-se obrigado a aderir não mais à
referência “ideal”, restando-lhe apenas a referência “objetal”. Tal deslocamento inscreveria o
sujeito numa dinâmica de satisfação compulsiva – “o mais gozar” já expresso por Lacan – uma
vez que o objeto exige que não se pare de satisfazê-lo. Daí as múltiplas formas de adicção,
dentre as quais o próprio consumo, e daí a depressão ser um dos sintomas mais em voga
atualmente quando a satisfação vem a faltar.

Voltemos ao tema da perversão a partir de uma breve incursão sobre esse conceito nos marcos
da teoria freudiana servindo-nos do trajeto indicado por Flávio C. Ferraz (2.000). Em que pese a
polêmica quanto à questão da normatividade embutida na teoria do desenvolvimento
psicossexual da libido, com Freud chegamos a identificação do caráter essencialmente
polimórfico da sexualidade humana. Conforme essa teoria, particularmente tratada nos Três
Ensaios de 1905, as perversões aparecem inicialmente sobre a rubrica das “aberrações” e das
“inversões” sexuais que resultam de uma fixação infantil num estágio pré-genital da
organização libidinal. A esse respeito comenta Freud: Na criança, ser perverso-polimorfo por
excelência, as diversas correntes da sexualidade pré-genital coexistem sem um eixo
ordenador que as aglutine e subordine em torno de si. Na sexualidade “normal”, essa

3
Não é casual o interessa do autor pelo fenômeno das seitas emergentes. A esse respeito, ver seu artigo:
Como reconhecer uma seita? Publicado na Revista Tempo Freudiano, número 5, sob o título A clínica
psicanalítica e as novas formas de gozo. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano/Associação Psicanalítica,
2.004.
4
Vale acrescentar que se trata de uma estrutura, ou antes, de um modo de operação psíquico particular,
acrescido de traços psicóticos ancorados objetivamente na realidade sócio-cultural contemporânea.

449
operação seria feita na puberdade, pela corrente genital da libido. Aí, então, todas as formas
pré-genitais da sexualidade seriam dominadas pela corrente principal, e os atos dela
decorrentes tornar-se-iam acessórios ou preparatórios para o coito normal, isto é, genital.
Assim, o beijo, por exemplo, seria uma manifestação remanescente do erotismo oral. (Freud
apud. Ferraz, 2.000)

Em caso de uma fixação pré-genital durante a infância, a perversão decorreria da


impossibilidade de a corrente genital da sexualidade impor-se perante as demais como eixo
organizador da vida sexual “normal”. Devemos ter presente que fantasias de caráter pré-genital
são comuns tanto ao neurótico como ao perverso. Mas, enquanto no primeiro caso os apelos
pulsionais sobrevém ao recalcamento (dando origem ao sintoma), no segundo caso põem-se em
prática tais fantasias (passagem ao ato), não como acessório ao ato sexual genital, mas antes
como seu substituto. Assim o perverso realiza tudo aquilo que o neurótico deseja realizar, mas
não o faz em nome da censura. De sorte que “a neurose é o negativo da perversão”, tal como
asseverado por Freud nos Três Ensaios de 1905.

Mas o que venha a ser a sexualidade normal propriamente dita? Nos escritos de 1905 aos quais
nos referimos, a sexualidade normal coincide com o coito genital entre indivíduos de sexo
oposto. Mas essa questão revela-se polêmica no conjunto da obra de Freud. No caso Dora, por
exemplo, Freud afirmou que não conhecemos os limites da sexualidade normal e que, portanto,
não deveríamos nos referir com indignação às perversões sexuais. E, no artigo “Moral sexual
civilizada e doença nervosa moderna”, Freud chegou a defender o direito dos homossexuais à
felicidade sexual.

Em 1917, Freud publicou o artigo As transformações da pulsão exemplificadas no erotismo


anal. Diferentemente de seu modo de pensar em As pulsões e suas vicissitudes, artigo em que
Freud postulou quatro saídas para as pulsões pré-genitais quando do encaminhamento do sujeito
para a organização genital (reversão no oposto, retorno em direção a si mesmo, recalcamento e
sublimação), ele substitui a idéia de “destino das pulsões” pela idéia de “transformação das
pulsões” ao introduzir a noção de “equações simbólicas”. Conforme a explicação fornecida por
Ferraz a esse respeito: “As pulsões deixam de ser pensadas como meras tensões corporais que
exigem satisfação para se inscreverem em um sistema conceitual no qual se considera que a
função primordial da mente é a manipulação de significações.” (2.000, p. 24)

450
Doravante a noção de “equações simbólicas” assumirá capital importância para a elaboração de
sua teoria sobre o desfecho edipiano a partir da dinâmica das identificações, sobretudo no caso
da menina (pênis, falo, filho). Nesse sentido, uma episteme baseada no modelo energético
econômico cederá espaço à outra de caráter fundamentalmente hermenêutico.

Já no artigo Uma criança é espancada (1919), Freud descreveu uma fantasia sadomasoquista de
caráter supostamente impessoal relatada por um paciente. E, segundo Ferraz: Ainda que não
tenha o complexo de Édipo em evidência no artigo de 1919, Freud procurou tomá-lo como
fundamento para a gênese das perversões, tal como para as neuroses. Afinal, o jogo
masoquista põe em cena o papel que as diferenças sexuais têm para o mundo psíquico, bem
como para a importância da complexidade estonteante das identificações parentais que se
produzem. É no jogo sadomasoquista que elas mostram seu alto grau de complexidade,
quando se pode gozar o gozo do outro por identificação. A perversão herda a carga libidinal
que pertencia ao complexo de Édipo, podendo ainda, como ocorre no caso do masoquismo,
onerar-se pela culpa a que está ligada, o que explica o gozo a partir de fustigações e
sofrimento. No caso do Homem dos Lobos (Freud, 1918), encontramos exatamente o terror
de sucumbir aos desejos passivos e femininos, decorrentes de uma identificação com a mãe
na cena primária. É interessante salientar que, nesse momento intermediário sobre a
perversão na obra de Freud, vai se tornando visível a estranha lógica existente entre o erótico
e o terrorífico nas perversões, tema consagrado, em 1924, no artigo O problema econômico
do masoquismo. Se ligarmos, então, a fantasia masoquista do Homem dos Lobos à fantasia
de uma criança sendo espancada, esta última pode ser lida como: ‘eu sou aquela criança e
meu pai está me copulando desta maneira em que me espanca tão dolorosamente porque ele
me ama’. (2.000, P. 26)

Nos escritos dos anos 20 sobre o complexo de Édipo encontram-se algumas indicações sobre os
mecanismos que dão origem às perversões. No artigo de 1923 intitulado A organização genital
infantil, Freud apresenta o mecanismo de recusa à castração (“Verleugung”). E, no artigo de
1924 sobre A dissolução do complexo de Édipo, Freud mostrou como o menino reluta em
aceitar a ameaça da castração. Mas, se quando da dissolução edipiana persistir o mecanismo de
recusa ao invés do mecanismo de recalque, a perversão se instala enquanto estrutura. A
percepção da ausência do pênis materno (para o menino e para a menina) leva a fantasia de
terror quanto à possibilidade da castração, fantasia que pressupõe a universalidade do pênis
como tentativa de resposta ao enigma da sexualidade. O predomínio do mecanismo de recusa
dificulta o trabalho de separação (o que leva, por sua vez, a uma confusão de identidade sexual),

451
e provoca uma dificuldade de simbolização, o que explicaria o predomínio do ato sobre o
pensamento no caso da perversão.

Finalmente, em 1927, Freud publicou o seu artigo sobre o Fetichismo. Esse seria um substituto
para o pênis da mulher (no caso, a mãe). A percepção da ausência do pênis na mulher remete à
fantasia da possibilidade de castração contrapondo-se à onipotência infantil, e, dessa sorte, pode
ser denegada por uma parte do eu. Nesse caso o eu se divide a partir do mecanismo da recusa
em aceitar o percebido, e, a idéia fixa da existência do pênis feminino se desloca para um outro
objeto qualquer que assumirá doravante o caráter de fetiche. O fetiche funcionará na vida sexual
do adulto como condição pré-genital indispensável ao gozo e como proteção a ameaça da
castração. O fetiche é uma presença que substitui uma ausência. E, a passagem ao ato
(diferentemente do caso da neurose) é que impedirá as alucinações próprias à psicose.

Mas somente no artigo inacabado de 1940, A divisão do ego no processo de defesa, é que Freud
pôs em xeque sua idéia anterior do eu enquanto “unidade sintética”, contrapondo a idéia de um
eu clivado ou cindido – condição geral para a saída neurótica do conflito ediapiano – quando o
menino termina por aceitar a evidência da castração ao mesmo tempo em que a proibição dela o
livra. Nesse sentido, o perverso deverá compor um cenário para sua vida sexual em que a
castração seja constantemente negada. No entanto essa nova idéia implicará, tal como sublinhou
F.C. Ferraz (2.002), na necessidade de diferenciação entre o neurótico e o psicótico quanto ao
mecanismo de clivagem do ego. Embora Freud não tenha se detido nesse ponto, ao que tudo
indica tratar-se-ia de uma diferença de grau: no caso da psicose, é a maior parte do ego que se
desliga da realidade. Já no caso da perversão, as duas atitudes opostas com relação à castração
constituem a característica básica.

Após essa incursão na teoria psicanalítica, voltemos ao emprego feito por Melman desse termo,
enfocado agora como “norma social”. Para tanto, devemos ter presente que será apenas no plano
da linguagem – registro do simbólico – que o falo representará a lei que nos impõe enunciar o
nosso desejo sobre um fundo de ausência devido ao fato da castração. No caso da perversão o
acento será colocado exclusivamente na captura daquele objeto que frequentemente escapa ao
neurótico, agora simbolizado pelo fetiche. Nesse sentido, os perversos se encontram tomados
num mecanismo no qual o que organiza o gozo é a captura do que normalmente escapa. Por
isso se engajam numa economia singular, entram numa dialética, muito monótona, de
presença do objeto como total – (...) – e, depois, de sua falta, de sua ausência. (2.002, p. 52)

452
Assim, toda relação de alteridade compromete-se com a busca de um gozo cuja manipulação
instrumental é provocada pela quebra do interdito e a conseqüente exibição fálica do objeto.
Esse objeto, por sua vez, é destituído do seu caráter reprentacional simbólico, tornando-se o
suporte de projeções fantasmáticas de caráter fetichista. Pode-se dizer, então, que na perversão a
fantasia é realizada na medida em que (...) o objeto faz uma báscula, está presente no campo
da realidade. (2.002, p. 53) E, na atual sociedade de consumo, essa é a dinâmica que vem
alimentar a economia de mercado erigindo-se em norma social. Nas palavras de Melman: Ela
está hoje no princípio das relações sociais, através da forma de se servir do parceiro como um
objeto que se descarta quando se avalia que é insuficiente. (2.002, p. 54) Por essa via o
mercado cria populações inteiras ávidas de um “gozo perfeito”, em total sintonia com a
sociedade de consumo numa escala sem precedentes.

O caráter regressivo dessa mutação cultural de que nos fala o psicanalista, em última instância,
depreende-se da passagem de uma economia psíquica baseada no significante para uma outra
baseada no signo. Enquanto o significante remete sempre a outro significante, e, portanto, à
linguagem, o signo remeteria diretamente à coisa designada pela palavra. Tratar-se-ia, então, de
uma cultura em meio a qual os indivíduos acham-se confinados à dimensão do imaginário; e
seria exatamente essa inacessibilidade à dimensão do simbólico o que melhor expressaria o
caráter regressivo na contemporaneidade. Em termos individuais, Melman chega a diagnosticar
esse aspecto como uma carência da dimensão subjetiva. (2.002, p. 63)

O termo “regressivo” assume aqui um duplo sentido. De um lado, denota essa incapacidade do
sujeito alçar-se à dimensão do simbólico, e, de outro, denota um mergulho efetuado pela própria
cultura num estado de barbárie. Ouçamos o autor nesse ponto: A barbárie consiste numa
relação social organizada por um poder não mais simbólico, mas real. A partir do momento
em que o poder que é estabelecido se apóia – em sua própria força e só busca defender e
proteger sua existência como poder, seu estatuto de poder, pois bem, estamos na barbárie.
(2.002, p. 64)

Presenciamos um estado de violência em que, cada vez menos, a linguagem verbal parece poder
cumprir eficazmente a sua função. Um estado caracterizado fundamentalmente pela ausência de
reconhecimento entre os interlocutores. Um estado cuja “foraclusão” do terceiro, a já referida
mediação da lei simbólica, faz com que a resolução dos conflitos sociais de todo tipo fique
entregue à forma contratual (sempre dual) do direito no interior do neoliberalismo. Em sintonia
fina com o desenvolvimento tecnológico, o direito exercido sob o manto da igualdade deixa-se

453
conduzir por uma lógica hedonista orientando-se, cada vez mais, para a correção de supostas
insatisfações em vista de um conforto decodificado como “justo” numa cultura que enaltece o
“bem estar”. O apagamento da diferença entre os sexos, promovido pela medicina e legitimado
juridicamente pelo direito alcança, assim, na figura paradigmática do transexual uma de suas
expressões melhor acabadas.

Do exposto até aqui se pode perceber, em termos genéricos, o grau de similaridade entre
aspectos relevantes contidos nesse diagnóstico e naquele proferido por T.W. Adorno
aproximadamente meio século atrás. De um ângulo distinto de análise, Adorno insistiu
tenazmente na tese da regressão cultural e o conseqüente enfraquecimento do sujeito. Crítico à
noção idealista de um sujeito epistemológico transcendental, ele recorreu à psicanálise freudiana
num duplo movimento: conferir materialidade a esse sujeito, por um lado, e revelar a face
repressiva do idealismo filosófico, por outro. De modo bastante sintético e esquemático, pode-se
dizer que a referida tese respalda-se na debilidade da estruturação egóica quando da passagem à
forma contemporânea assumida pelo capitalismo, sobretudo no que diz respeito à obsolescência
da família enquanto instituição da vida privada ou reserva de intimidade. Ao enfraquecimento
do sujeito corresponderia a incapacidade do eu de avaliar situações concretas distinguindo-se
delas de modo a proceder reflexivamente.

Mas é preciso ter presente que para Adorno (e também para Horkheimer) o sujeito em questão
não é o “sujeito do inconsciente” lacaniano, e a tese relativa ao enfraquecimento desse sujeito
atrela-se à noção freudiana do eu enquanto uma unidade sintética auto-referente, e cuja função
cognitiva acha-se comprometida quando da passagem à “sociedade sem pai”. Decorre daí duas
conseqüências que incidirão diretamente no debate acerca da configuração psíquica
predominante na atualidade. Primeiro: a idéia do eu compreendido enquanto unidade sintética
impede a que se chegue a uma conclusão diagnóstica pautada na perversão como norma social.
Isso porque, como visto, o mecanismo da denegação é o responsável pela instalação da estrutura
perversa a partir da clivagem da instância egóica.

Segundo: as formas de socialização impostas pelo capitalismo tardio conduziriam, na


perspectiva de Adorno, à mutações tópicas em nível do eu e do super-eu. O primeiro se debilita
enquanto o segundo passaria às mãos da indústria cultural, pois: Na época das grandes
corporações e das guerras mundiais, a mediação do processo social através de inúmeras
mônadas mostra-se retrógrada. A decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não
precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna de consciência moral, da

454
autopreservação e das pulsões. (...) As associações e as celebridades assumem as funções do
ego e do superego, e as massas, despojadas até mesmo da aparência da personalidade,
deixam-se modelar muito mais docilmente segundo os modelos e palavras de ordem dadas, do
que os instintos pelo censura interna. (1994, p.189/90)

De outra parte Adorno, e colaboradores, desenvolveram uma tipologia psicológica para expor a
“síndrome fascista” enquanto um conjunto de predisposições de caráter autoritário5, auferíveis
em nível das personalidades individuais. A esse respeito comentou Adorno: Uno de los
descobrimientos más notables de la investigación es que el carácter “alto” es essencialmente
un síndrome único al que se contrapone uma variedad de síndromes “bajos”. Existe algo así
como “el” carácter fascista en potencia, el cual es en sí mismo uma “unidade estructural”.
(1965, p. 701) O que se pode extrair como base comum dos tipos prefigurados por um “caráter
autoritário” é a predominância de uma psicodinâmica, engendrada por um “clima cultural
geral”, que motiva tais indivíduos à seleção de determinados aspectos ideológicos que compõem
a realidade social.

Segundo Adorno, essa psicodinâmica resultaria de uma identificação sempre problemática com
a autoridade paterna já corroída, de modo a comprometer as instâncias do eu e do supereu. Isso
explicaria, por exemplo, o contraste frequentemente presente na síndrome fascista entre uma
suposta adesão aos valores sociais vigentes, e tendências destrutivas inconscientes desses
mesmos valores. Aceitação e negação da lei paterna, concomitantemente. Ademais, as
experiências possíveis sob a égide da cultura processada em moldes industriais encontrar-se-iam
já pré-formatadas a tal ponto com base em esteriótipos e clichês, que restaria aos indivíduos
apenas sucumbirem àquela fachada discriminada pelo eu como sendo o “princípio de realidade”
atual. É nesse ponto que o diagnóstico adorniano se encaminhará no sentido da paranóia.

Não obstante as similaridades detectáveis entre ambas as diagnoses aqui expostas, a via
lacaniana adotada por Melman apreende o fenômeno psicológico em tempos neoliberais sob a
ótica de uma nova economia psíquica em total consonância com o ordenamento social vigente,
enquanto Adorno mobiliza a psicanálise freudiana no sentido de escancarar exatamente aquele
aspecto utópico contido na ideologia liberal – a autonomia – como algo não realizado sob
condições históricas e econômico-sociais cada vez mais repressivas. Nesses termos, sua
diagnose se encaminhará no sentido de detectar mutações tópicas em nível do “aparelho

455
psíquico”, tal como o concebera Freud, de modo a conferir inteligibilidade ao gigantesco
processo de massificação em curso.

Resta saber em que medida a estratégia teórica adotada por Adorno nos é suficiente para uma
compreensão melhor matizada dos sintomas com os quais nos deparamos hoje nas mais
diversificadas cenas da vida quotidiana. Noutras palavras: em que medida o desenvolvimento da
teoria crítica pode prescindir da atividade clínica para acertar o passo com o novo mal estar que
se inscreve nas psicodinâmicas individuais? Por outro lado, poderíamos indagar como o faz
Melman, em que medida o setting clínico baseado no manejo da relação transferencial
permanece ainda operante no estado cultural que presenciamos? E, para além dessas questões
específicas circunscritas aos âmbitos da clínica e da crítica, situa-se um problema de natureza
epistemológica: uma teoria clínica concebida em termos pós-estruturalistas estaria em condições
de subsidiar a atividade de um pensamento crítico materialista que se auto-compreende nos
termos da “dialética negativa”6?

Penso que somente a partir de uma teoria crítica da linguagem o debate acerca dessas questões
aqui apenas esboçadas poderá seguir de modo profícuo. Para tanto, resumirei a seguir algumas
das contribuições de C. Türcke que julgo de extrema relevância para o enfrentamento desse
núcleo de problemas envolvendo tanto a questão da linguagem, quanto dos novos sintomas aos
quais fizemos alusão, a partir de algumas concepções psicanalíticas revisadas de um ponto de
vista materialista. No entanto, devemos ter presente que tais revisões efetuadas por esse autor
não implicam num novo posicionamento acerca de questões tópicas ou dinâmicas relativas ao
arcabouço psicanalítico.

Os dizeres de Horkheimer e Adorno no capítulo que abre a Dialética do Esclarecimento,


segundo os quais, todo processo do esclarecimento em marcha na história do Ocidente nada
mais representaria que a simples radicalização da angústia mítica, processo esse em que os
selvagens, uma vez atemorazidos diante do poderes naturais quando da diferenciação ocorrida
no seio da natureza com o advento da consciência humana, procederam mediante o recurso à
divindade fazendo com que uma espécie de proto-linguagem já estabelecida comunitariamente,

5
O conjunto de características identificadas como associadas à síndrome fascista são: convencionalismo,
submissão autoritária, agressividade autoritária, anti-introspecção, superstição e esteriotipia, obsessão
com o poder, destrutividade e cinismo, projetividade e atitude obsessiva com relação ao sexo.
6
Para uma discussão de fundo acerca desse problema remeto o leitor à tese de doutoramento de V.
Safatle, publicada sob o título Paixão do Negativo: Lacan e a dialética, em que o autor interroga-se sobre
os destinos do pensamento dialético na atualidade a partir de uma discussão renovada entre o pós-
estruturalismo francês de J. Lacan e o pensamento dialético de T.W. Adorno.

456
passasse da mera tautologia à linguagem articulada propriamente dita, ressurgem, acrescidos de
novos desenvolvimentos teóricos, a partir das investigações de C. Türcke acerca do fenômeno
da “sensação” na sociedade atual. Na esteira dos filósofos inauguradores da “teoria crítica da
sociedade”, e também de Nietzsche, Türcke focaliza o medo enquanto aquele sentimento
antropológico primordial que dá passagem à cultura.

De acordo com a clave interpretativa estabelecida por Türcke baseando-se em estudos


antropológicos, arqueológicos e neurofisiológicos mais recentes, a renúncia pulsional orientada
para o apaziguamento sexual no interior da horda primitiva – como havia sugerido Freud em sua
interpretação acerca do parricídio contida em Totem e Tabu – já seria proveniente de um longo
aprendizado cultural anterior: o da conversão do medo em prazer mediante o emprego de
técnicas primitivas de produção do êxtase utilizadas nos rituais de oferendas. Os mecanismos
envolvidos no controle daquele medo originário sentido pelo homem primitivo face aos poderes
enigmáticos e hostis da natureza, tal como essa fora apreendida já no alvorecer de sua atividade
consciente, portanto, é que conteriam a chave para uma interpretação materialista do desenrolar
cultural, e, por conseguinte, da própria linguagem até os dias atuais.

A fim de expor o seu ponto de vista sobre o surgimento da linguagem articulando-a às práticas
ritualísticas exercidas em função do controle do medo, o autor atenta-se para o subtexto contido
no “tode-ti” aristotélico, expressão grega cuja tradução ipsis litteris significa “isso aí”, ato de
designação de um determinado ser aí, ou expressão genérica na qual toda e qualquer nomeação
pode ser abreviada. Sem esse expediente, adverte Türcke, a linguagem enquanto ato de
nomeação não se fixaria em nada. Mas, em princípio, ressalta o autor, o “tode-ti” deveria fazer
referência apenas ao medo, ou melhor, à vivência do medo como o “isso aí” por excelência, e,
portanto, ainda não se aplicaria como expressão abreviada aos objetos distinguíveis mediante o
paulatino desenvolvimento histórico do processo de atenção. O subtexto do “tode-ti” nos
revelaria, então, algo sobre a gênese da linguagem: que no início, essa expressão abreviada não
se aplicou a nenhum objeto determinado, e, portanto, a nenhum nome próprio, mas antes serviu
para designar o próprio ato de nomear expressando apenas o caráter formal que contém o
segredo de formação dos nomes.

O que é designado em princípio é exatamente aquilo que aterroriza, e é isso que faz da
linguagem em sua gênese uma “prevenção acústica do medo”. Os deuses não podem livrar os
homens do medo, nos lembraram Horkheimer e Adorno, pois são as vozes petrificadas do
medo que eles trazem como nome. (p. 29) Ainda assim teria sido preciso nomeá-los para

457
converter a proscrição do não-ser em abrigo através do nome, apenas balbuciado, para designar
àquele quem possui o poder arrebatador. Trata-lo repetidas vezes por seu nome terminaria por
engendrar o respeito pelo jugo da identidade, caso contrário, o medo em via de apaziguamento
pelo ato de nomeação poderia retomar seus plenos poderes. Türcke observa que a linguagem em
seus primórdios não deveria ter sido nada além de interjeições – altura da excitação e da afecção
– que se desenvolveu sob o impulso da repetição. É isso que, como alude o autor, ainda faz do
tom de voz o mensageiro do prazer ou do desprazer para as crianças, muito antes dos sons virem
a significar ou designar coisas estáveis para elas. Nomes, portanto, nada mais seriam que
interjeições articuladas, e que se torceram “como uma bandagem” em redor do medo; da mesma
forma que todo o sistema de linguagem o fez em redor dos nomes.

Como se sabe, o transcurso do esclarecimento pressupôs que explicações míticas cedessem


lugar às metafísicas, e essas últimas às científicas. Hoje, graças a um inaudito desenvolvimento
tecnológico observa-se uma espantosa mutação cultural em que os textos matemático-científicos
convertem-se em imagens cada vez mais refinadas. Noutras palavras: quanto maior a abstração
textual capaz de decompor a natureza em termos de forma, cor e movimento, tanto maior a
concretude imagética cuja sensualidade depende agora apenas do grau de resolução alcançado
pela reunião de inúmeros pontos infinitamente minúsculos. No entanto, observa Türcke,
“abstração” e “concretude” tornam-se elas mesmas categorias abstraídas de um contexto de
referência alterando a relação entre significado e significante, pois ambos já não significam e
representam um ao outro. No texto articulado por esse novo processo de linguagem, um é o
outro na ausência de relação ou mediação simbólica.

A esse respeito esclarece o autor em concordância com V. Flusser: Quem desconsidera esse
fato, toma as imagens como o real, pois o “caráter aparentemente não simbólico e objetivo
das imagens técnicas conduz o espectador para observá-las não como imagens, mas sim como
janelas. Ele confia nas imagens como confia nos seus olhos”. Porém, “elas não são como
todas as imagens simbólicas, mas sim representam complexos simbólicos ainda mais
abstratos do que as imagens tradicionais. Elas são metacódigos dos textos”, “as quais não
significam o mundo exterior, mas sim são textos”, sendo que, desta forma, enganam e
produzem conclusões equivocadas. (V. Flusser, Für eine Philosophie der Fotografie,
Göttingen, 1994, S.14) Como se os meios de representação fossem, também e
necessariamente, os objetos da representação, ou seja como se as imagens, transformadas por
meio de um aparelho abstrato, concebido conceitual e textualmente, por sua vez, também

458
nada representassem e significassem à revelia deste aparelho. Isto seria como se os pintores
tradicionais tivessem representado sempre, e apenas, seu pincel.7

Com a proliferação galopante desses novos textos higt tech, altera-se substancialmente a relação
entre a percepção do sujeito e a coisa por ele percebida. Isto é, o processo orgânico de abstração
que somente pode ocorrer mediante um “fundo imagético” subjetivo daquilo que fora percebido
pelo próprio sujeito, é-lhe subtraído fazendo com que ele adira de modo cada vez mais
implacável, àquelas imagens externas, e cuja resolução tecnológica as impõe como um
verdadeiro imperativo condicionador da formação dos novos hábitos. Pouco a pouco, toda
educação calcada no solo da sensibilidade humana vai passando pelo filtro das aparelhagens
multimídias de tal forma que os sentidos, tal como alerta-nos Türcke, retrocedam aos reflexos
condicionados desaprendendo a reunir sensações. Obviamente isto trás conseqüências diretas
em nível do prazer.

Quanto a essa questão, Türcke a desenvolve com base na noção freudiana de pré-prazer contida
nos Três Ensaios de 1905; isto é, aquele “alentador estado de tensão” que deve conduzir o
indivíduo em sua busca pelo prazer final maximizado. Türcke vê nessa noção a forma original
do “prazer virtual” engendrado pela sociedade multimídia; aquele estágio inicial em que o
prazer se fixa, obstando seu próprio desenvolvimento em direção ao prazer final. Quando toda
uma gigantesca parafernália tecnológica captura os indivíduos de modo a aprisioná-los em nível
do pré-prazer8, ela apenas os incitam ao prazer para, concomitantemente, frustra-los. A esse
estado perpétuo de excitação/privação, Türcke denominou como sendo a “forma clássica do
estado de abstinência”, e cuja contraface é o “vício”9. Quando os choques audiovisuais chegam
a tomar a feição de uma “necessidade” para os indivíduos, esses choques atuam – na qualidade
de fetiche – de modo semelhante a qualquer outra substância viciadora. Assim, a “picada ótica”
passaria a gerar satisfação apenas na medida em que adia o desprazer maior em virtude de sua

7

RCKE. C. Erregte Gesellschaft. München: C.H. Beck, 2.002.Tradução para a língua portuguesa de
A.A.S. Zuin, F. Durão, e F. Fontanella, ainda em fase de revisão.
8
A esse respeito assim se pronunciaram Horkheimer e Adorno (1994) no célebre texto sobre a Indústria
cultural: A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está
continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é
prorrogada indefinitivamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa
que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio.
(p. 130/1)
9
O autor chama atenção para o fato de que “abstinência” e “vício” se referenciam mutuamente à medida
que o próprio vício já denota um sintoma de abstinência em relação àquela necessidade que,
supostamente, ele vem suprir.

459
ausência. E, uma vez refém dessa dinâmica, o gozo incitado pelos recursos tecnológicos termina
por sucumbir à dimensão do pré-prazer.

Essa perspectiva de análise também conduz ao diagnóstico da perversão enquanto sintoma ou


índex do desenvolvimento cultural contemporâneo. Mas, com uma diferença: o objeto fetiche
será, dessa vez, compreendido como “objeto trans-erótico” que nos reenvia a uma interpretação
materialista da cultura. Nesse sentido, o choque audiovisual enquanto expressão melhor acabada
do fetichismo contemporâneo revelaria – mediante o mecanismo de “formação substitutiva” –
exatamente aquilo que se perdeu quando da passagem à sociedade de mercado: aquele conjunto
de coordenadas sócio-culturais mediante as quais os homens referenciavam suas identidades no
Antigo Regime. E, se tomado de um ponto de vista histórico bem mais longínquo, o fetichismo
audiovisual contemporâneo condensaria algo daquele choque primitivo frente à natureza
amedrontadora e dos mecanismos arcaicos utilizados para conversão do pavor em formas
rudimentares de prazer. O fetichismo audiovisual contemporâneo nos revelaria, portanto, o
liame que interliga a reprodução da imagem ao vício.

460
Bibliografia:

ADORNO, T.W. La Personalidad Autoritária. Buenos Aires: Editorial Proyección, 1965.


FREUD, S. Tres Ensayos para uma Teoria Sexual IN Obras Completas de Sigmund Freud.
Tomo III. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. El problema económico del masoquismo. IN Obras Completas de Sigmund Freud.
Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. Sobre las transmotaciones de los instintos y especialmente del erotismo anal. IN
Obras Completas de Sigmund Freud. Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. Los instintos y sus destinos. IN Obras Completas de Sigmund Freud. Tomo II.
Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. História de uma neurosis infantil (Caso del “Hombre de los lobos”) IN Obras
Completas de Sigmund Freud. Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. Fetichismo. IN Obras Completas de Sigmund Freud. Tomo III. Madrid: Editorial
Biblioteca Nueva, 1981.
_. La moral sexual “cultural” y la nervosidad moderna. IN Obras Completas de
Sigmund Freud. Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. Pegan a um nino. IN Obras Completas de Sigmund Freud. Tomo III. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_________. Escision del “yo” em lo proceso de defensa. IN Obras Completas de Sigmund
Freud. Tomo III. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. La dissolución del complejo de Édipo. IN Obras Completas de Sigmund Freud.
Tomo III. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
_. La organización genital infantil. IN Obras Completas de Sigmund Freud. Tomo
III. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
FERRAZ, F. C. Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2.000.
HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
MELMAN, C. O Homem sem Gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 2.003.
_. Como reconhecer uma seita? IN Revista Tempo Freudiano: A clínica e as
novas formas de gozo, número 5. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano Associação Psicanalítica,
2.004.
SAFATLE, V. A Paixão do Negativo. São Paulo: Unesp, 2.005.
RCKE. C. Erregte Gesellschaft. München: C.H. Beck, 2.002.

461
INDÚSTRIA CULTURAL HOJE: LITERATICE E SEDUÇÃO AUTORITÁRIA

Luiz Hermenegildo Fabiano


Universidade Estadual de Maringá

Considera-se na abordagem desse tema, o fato de que não se pode desvincular o conceito de indústria
cultural do contexto totalitário que o determina e o qual reforça. Linguagens facilitadoras do
entendimento e de longo alcance e abrangência social ocultam da intenção popular o seu próprio
massacre. A constatação de que o folhetim televisivo desviou o olhar e a percepção da página para a
tela e que a tela desviou o olhar e a percepção para o conteúdo que a define, demonstra um viés
importante para analisar-se a indústria cultural como expressão simbólica do imaginário social
contemporâneo. Discursos diferenciadores que demarcam ultrapassagem das banalizações culturais
standardizadas a elas se misturam e se diluem quando buscam visibilidade ou são condenados a guetos
culturais de loquacidade redundante. Processos de semiformação dificultam a distinção crítica do que
se apresenta como dimensão cultural e se impõem como sucedâneos culturais que abastecem a sede
imediatista da inocência útil (ou do oportunismo utilitário). A redução da cultura em diversão e lazer
conseqüente do modelo de organização da sociedade industrial oculta no autoritarismo da distração o
conservadorismo do modelo social totalitário que, para além da ruína da cultura, danifica a própria
possibilidade de constituição do indivíduo em sociedade. Diante de tais considerações concebe-se a
importância das obras de arte literárias vistas como narrativas que carregam em si as antinomias
daquilo que é ideologicamente afirmativo no social e, portanto, processo de conhecimento mais
autêntico da realidade Os sentidos mais atentos e dinamizados pela intencionalidade estética
possibilitam ao indivíduo transcender a mera razão instrumental com que atua na transformação da
natureza. Sua visão se alarga pelos desafios mentais a que se obriga no processo da fruição estética que
remete a dimensão perceptiva numa reavaliação da realidade social. Pelo fato de a dimensão estética
possuir intrinsecamente essa condição que a constitui é que sua força é subsumida, e o acesso às
autênticas obras de arte é pervertido e desviado. A proposição desse estudo reflete sobre a negligência
para com as obras de arte literárias nos meios educacionais e na formação da sociedade em geral.
Discute-se, portanto, o comprometimento da dimensão expressiva no difícil exercício de humanização
do indivíduo, processo pelo qual ele vivencia a experiência ética da vida comunitária.

462
A efervescência dos grandes debates que dominavam as preocupações estéticas
e a relação entre arte e sociedade até meados dos anos 60 e final dos anos 70 demarcam a
importância desse tema como processo formativo no contexto social mais amplo. Ensaios sobre
crítica literária e crítica da arte no que trata do engajamento social e político, as inovações
formais e temáticas das expressões artísticas, verdadeiros tratados filosóficos polemizavam a
função social da arte e a sua dimensão política enquanto procedimento estético e sociedade.
Abordagens sociológicas em busca do entendimento ideológico ou do engajamento político dos
diferentes discursos estéticos ditavam a relação de forças entre arte e movimentos sociais.
Definições sobre obras de vanguarda, arte engajada, arte reacionária, alienada, desde os
manifestos das duas primeiras décadas do século passado, como o Surrealismo, Futurismo,
Dadaísmo, debatiam a profusão de incursões estéticas e movimentos artísticos daí decorrentes.

A riqueza de tais proposições permite entender a seriedade com a qual assuntos


de ordem estética se entremeavam ao conjunto das análises e interpretação da realidade social.
O clima polêmico e ao mesmo tempo profícuo reverberava em estudos que atingiam o
ambiente escolar sustentando uma formação social mais crítica e receptiva aos conteúdos
estéticos de maior consistência e autenticidade. Tagarelices literárias, chorumelas de pretensões
estéticas, sem dúvida, se impunham pela intencionalidade mercadológica que as constituíam.
No entanto, no ambiente escolar os conteúdos formativos favoreciam uma capacidade de
julgamento e distinção no reconhecimento de futilidades voltadas ao mero entretenimento e
obras de maior densidade cultural.

Com o advento da industrialização e a massiva padronização cultural


que resulta desse modelo econômico, processo tão bem estudado pelos pensadores
frankfurtianos, especialmente Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, a vitalidade cultural se
fragmenta e se torna fragilizada no seu conteúdo formativo. O conceito de indústria cultural
formulado pelos dois pensadores alemães na obra Dialética do esclarecimento, em 1947
demonstra com aguda percepção os princípios fundamentais desse conteúdo cultural
ideologicamente comprometido. As apropriações mercantis que a partir da compreensão desse
conceito se impõem sobre os conteúdos culturais reduzindo-os à condição de produtos
consumíveis, a eles conferem o pragmatismo da racionalidade tecnológica que redirecionou os
rumos da pretensão emancipatória dos primórdios da razão iluminista. Fruto de uma razão

463
instrumental a indústria cultural, como bem observam Adorno e Horkheimer, “impede a
formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir
conscientemente."1 A promessa da razão iluminista de instaurar através da razão o poder do
homem sobre a ciência e a técnica livrando-o do obscurantismo mágico ou do universo mítico,
converte-se ela própria em mito quando oculta da racionalidade técnica conteúdos do progresso
tecnológico como forma de dominação social. A constatação dos dois autores é a de que:

O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder
sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem
sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da
própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si
mesma 2.

O comprometimento ideológico da indústria cultural com a economia


capitalista deve ser entendido, portanto, pelo caráter fetichista ao qual reduziu a produção
cultural, disponibilizando-a na mesma lógica da produção de mercadorias resultante do
progresso tecnológico. Ainda na avaliação dos dois pensadores: “isso, porém, não deve ser
atribuído a nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia
atual”3. Assim, atrelada ao modelo de organização industrial a cultura assume um caráter de
diversão e entretenimento, utilizada no descanso quando fora do sistema produtivo para melhor
desempenho nas suas exigências cotidianas. A constatação de Adorno e Horkheimer demonstra
que, por essa forma de diversão é mediado o controle sobre os consumidores. E não é por mero
decreto, afirmam, que esta diversão acaba por se destruir, mas por tudo aquilo que a ela se
agrega como lógica e sobrevivência do mercado. “O logro, pois”, reconhecem ambos, “não
está em que a indústria cultural proponha diversões, mas no fato de que ela estraga o prazer
com o envolvimento de seu tino comercial nos clichês ideológicos da cultura em vias de se
liquidar a si mesma”4.

A arte de maneira geral e especialmente a grande literatura tomada como


elementos de sublimação pulsional e dimensão civilizatória, cooptadas pelas imposições

1
Cf. Textos escolhidos. Max Horkheimer e Theodor Adorno. Trad. Zeljko Loparic et. al. 5ªed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (O s
pensadores; 16)
2
HORKHEIMER, Max. e ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985. p.114.
3
Idem, ibidem. p. 114.
4
Idem, ibidem. p. 133.

464
mercadológicas tornam-se despotencializadas na sua dimensão estética enquanto possibilidade
formativa. Diante da supremacia do diletantismo e do entretenimento reinantes nesse modelo
social consumista que a tudo facilita o entendimento para a mercantilização das emoções em
larga escala, a vida cultural assim banalizada resultou em aridez de espírito. Obras que
provocavam esfuziantes querelas em virtude das implicações humanas e sociais abordadas,
além do conhecimento da Língua e o seu manejo estilístico, ampliavam e amadureciam o
horizonte perceptivo do sujeito. Esse exercício tornou-se demodée e anacrônico e o império das
especialidades do mundo moderno justifica, a bem dizer, de forma marota e equivocada, que
essa ou aquela leitura não é de interesse da área. Que a vida corrida, o estresse, e tantos
queixumes modernamente desculpáveis inviabilizam o tempo disponível para tal dedicação ou
empenho.
A onda de imbecilidades que invadiu a mídia nesses últimos tempos, sob a
falácia de utilizar a linguagem do povo, apenas legitima a cumplicidade dessa cultura com os
mecanismos de manipulação ideológica que a permeiam. Há nesse sentido, a justificativa de
sempre, do uso de uma linguagem mais popular voltada ao grande público. Esse popular que
busca atingir o povo não se trata da expressão popular para simbolizar seus afetos e desafetos,
seus dramas humanos, suas alegrias e suas experiências existenciais como identidade própria.
Ao contrário, o que se assiste é uma saturação ad nauseam de signos estereotipados das mais
diferentes formas da expressão humana. E tal estereotipia martela tão insistentemente os
sentidos do indivíduo até que, mesmo sem consentimento explícito, o que lhe é imposto como
gosto passa a ser o que almeja. Esse tipo de discurso popular presta-se, no entanto, para manter
o povo na condição em que se encontra, pouco ou quase nada oferecendo de desafio mental
para a conquista de novos horizontes perceptivos. A tendência desse nexo informativo é
alimentar um estado de conformismo e de resignação social que impõe aos indivíduos uma
taxa de exigência cultural cada vez mais baixa e limitada. Essa conversão da cultura reduzida
ao entretenimento bem se define na assertiva de Adorno de que, nessas circunstâncias, “a
diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer5”. A sociedade não deixa de ser,
todavia, educada por um processo de aculturação ideologicamente comprometido que ao suprir
medianamente o indivíduo, desativa o seu interesse por outros níveis de conhecimento. A
indústria cultural e o sistema fechado de informações, segundo o recorte ideológico que desse
sistema cultural deriva, reforça muito mais os níveis de dependência que os de emancipação

5
Idem, ibidem. p:133

465
social. Não é de se estranhar essa constatação ao se levar em conta as formas do
desenvolvimento da sociedade industrial que, ao instrumentalizar o conhecimento, não fez
outra coisa senão adaptar a cultura do espírito aos seus interesses mercantis.

A dimensão formativa subsumida por esse caráter cultural consumista, ao


contrário de alimentar o indivíduo na consonância de sua singularidade com a totalidade social
alimenta em primeira instância, a estrutura social de mercado que, em princípio, nega a sua
própria constituição. Aquilo que sob suspeita poderia considerar-se como democratização
massiva da formação cultural é, no entanto, desnudado pelo caráter fetichista que assume
quando o próprio conteúdo cultural que se pretende é sabotado.

No ensaio Teoria da Semicultura (Halbbildung), Theodor W. Adorno define o


termo como formação despotencializada em virtude da unilateralidade ideológica que perpassa
os conteúdos culturais que veicula. Demonstra o autor que: “o que é entendido pela metade
não é um passo em direção a formação, mas seu inimigo mortal”. Considera apropriadamente
que:

por inúmeros canais, se fornecem às massas, bens de


formação cultural (...) que ajudam a manter no devido lugar àqueles para os quais nada existe
de muito elevado ou caro. Isso se consegue ao ajustar o conteúdo da formação, pelos
mecanismos de mercado, à consciência dos que foram excluídos do privilégio da cultura – e
que tinham mesmo que ser os primeiros a serem modificados.6

Observa Adorno que tais elementos culturais estereotipados, ao se sobreporem


ou serem absolutizados enquanto formação cultural, “penetram na consciência sem fundir-se
em sua continuidade, transformando-se em substâncias tóxicas e, tendencialmente, em
superstições, (...) acabam por se tornar em elementos formativos inassimilados que fortalecem
a reificação da consciência que deveria ser extirpada pela formação”.7

A semicultura é assim expressão esvaziada do conteúdo civilizatório atribuído


aos bens espirituais socialmente produzidos, muito além dos clichês e do imediatamente

6
Id, ibid. p. 394

466
consumível. Nesse universo cultural massificante, processos formativos mais conseqüentes são
assimilados por avaliações subjetivas e fatalmente reducionistas. Daí resultam atitudes
conformistas de adequação dos valores sociais e comunitários mais amplos circunscritos a
interesses eminentemente individualistas, desvinculados da alteridade necessária a constituição
de uma vida social autêntica.

A surpreendente empatia que a televisão atingiu nas últimas cinco décadas,


cada vez mais vem educando as massas a um processo de assimilação perceptiva no recorte
imagético que veicula. Simplificações da expressividade estética valorizam o imediatismo
narrativo ou induzem por recursos imagéticos uma compreensão apressada pela qual o nível de
reflexão se perde. Conseqüentemente, o espetáculo se sobrepõe compensando na gratificação
imediata a ausência da mediação do indivíduo com a apreensão do conteúdo da mensagem. Tal
conteúdo, no entanto, passa a definir a extensão do olhar e os níveis de percepção pelos quais o
imaginário social é amoldado, quando não outros desafios perceptivos mais consistentes se
efetivam. Milhões de telespectadores distanciados de uma dimensão crítica e reflexiva em
temos formativos mais conseqüentes se rendem a esse universo limitante em termos culturais
mais exigentes ou mais autênticos. Essa rendição, todavia, determina também a busca por
linguagens facilitadoras ou superficialidades discursivas que nada acrescentam ao
fortalecimento da interioridade humana para uma identidade autônoma.

As obras de arte com densidade estética vão se tornando cada vez mais
distantes do horizonte do grande público, desinteressado ou pouco habituado a um desafio
mental mais contundente. O ambiente cultural circundante voltado ao entretenimento preenche
mais intensamente o tempo livre que é pouco utilizado para investimentos num processo
cultural mais conseqüente. As obras clássicas da literatura, por exemplo, são relegadas, pouco
exploradas ou não exploradas nas escolas e mesmo nas universidades. Uma “literatice”, se é
possível considerar o neologismo para definir uma literatura vulgar e trivial que raia a vigarice
e se propaga na mesma proporção em que diminuem efetivamente os investimentos formativos
na sociedade.

7
Id, ibid. p. 402-403.

467
Narrativas literárias de alta potencialidade estética como as que se encontram
nas obras de autores como Frans Kafka são praticamente desconhecidas da massa estudantil.
Conteúdos estéticos pelos quais a materialidade histórica se manifesta enquanto consciência do
sujeito como reflexão sobre a sua ação no mundo, ficam, nesse sentido, relegados ao
ostracismo. Recursos formais de expressividade fundamental que a grande literatura ou a
grande arte propiciam para enriquecer a constituição de subjetividades mais fortalecidas, tanto
em nível existencial quanto em termos sociais mais amplos, quando atingem o grande público
são apresentadas de forma reducionista desmantelando a cadeia sígnica que sustenta a força
estética que a constitui. Justamente o enigmático, o de difícil apreensão ou ainda a negação da
lógica que satisfaz, –— contraposições aos princípios dos imediatismos assimilativos típicos da
indústria cultural –— são tais recursos estruturais da singularidade de uma obra que desarmam
a percepção viciada.

Nos desafios e nos embates, no desconforto e no desencontro dos meandros


hesitantes, no marasmo e no fastio de uma situação que se define de forma ordinária e comum,
quando tudo indicava o inesperado, ou que não se define e nem se responsabiliza por tal
indefinição, recursos estilísticos em narrativas como as de Franz Kafka favorecem ao leitor
lacunas de desamparo pelas quais a mediação reflexiva se instaura. Trata-se do momento em
que os conteúdos da grande alegoria da obra se ausentam e a relação entre leitor e realidade se
impõe.

Aquilo que se apresenta como imediaticidade na indústria cultural é lentidão,


marasmo, hesitação, impasse em Kafka. O sentido não se dá como satisfação imediata, mas
como experiência que não se efetiva diante das vivências no plano ideológico. Portanto, em
termos formativos trata-se de conhecimento sobre o objeto e não apenas a sua apreensão
consumada. A não-linearidade característica desse tipo de narrativa desautomatiza a obtenção
da segurança pelas ofertas facilitadas que conduzem ao enquadramento, à integração e a
concessão íntima às seduções autoritárias. O estranhamento, a resistência do leitor ocorre
justamente em função do que a verdade da obra traduz como linguagem consciente, pois
aponta a renúncia do indivíduo aos mecanismos sutis de tais formas de sedução e a
racionalidade que as determina. Não há espaços para a mediocridade em Kafka, senão
reconhecer sentimentos medíocres com os quais a racionalidade da dominação social se
naturaliza. Em Anotações sobre Kafka, um ensaio escrito por Theodor Adorno entre 1942 e

468
1953, publicado em Die Neue Rundschau em 1953, o autor menciona que, “A força de Kafka é
a da demolição. Diante do sofrimento incomensurável, ele derruba a fachada acolhedora,
cada vez mais submetida ao controle racional” 8.

Na estruturação interna da obra, os recursos estéticos utilizados como o


obsoleto, o sem sentido, o enigmático e a desesperança, por exemplo, indiciam na sua
literalidade tortuosa as entranhas de uma historicidade ocultada. A monstruosidade do Estado
moderno, autoritário e prepotente, ao burocratizar a vida humana submetida à lógica da
mercadoria transparece num indivíduo reduzido a insignificante e asqueroso inseto. A sua
desfiguração é experienciada nas sensações provocadas pelo eixo narrativo que irrita o leitor
propenso a evitar reconhecer-se nas situações absurdamente apresentadas. Mais uma vez, é
oportuna a constatação de Adorno ao afirmar que, “ Um dos pressupostos mais importantes de
Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada” 9.

É também pela negação da apreensão imediata que a construção narrativa de


Ulisses, de James Joyce, cria a sensação caótica do desprendimento da consciência e
indiferença do indivíduo no mundo moderno. Assim, pois, a modernidade da sua linguagem
nega e põe em estado de suspensão os anacronismos com os quais o indivíduo lê o mundo de
forma inadequada e não se contemporiza. A sua linguagem, por assim dizer, desnaturaliza a
natureza antiga das concepções e julgamentos desgastados, para inserir o indivíduo na
modernidade da sua natureza e assim situá-lo no processo histórico em que se encontra. Afirma
Jung sobre a obra:

. . . tudo aquilo de negativo, de s‘ angue


frio’ bizarro, banal, grotesco e infernal, são virtudes positivas da obra
joyceana, [..]. a linguagem indescritivelmente rica, de mil e uma facetas,
com parágrafos se arrastando como lombrigas se arrastando num tédio
terrível e numa pavorosa monotonia, é, do ponto de vista épico, grandiosa,
um verdadeiro Mahabharata de inadequações de um mundo humano com

8
ADORNO, Theodor W. Prismas. Crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito
de Almeida.São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 247.
9
Idem, ibidem. p. 241.

469
seus inúmeros meandros e com suas profundidades diabolicamente doidas.
10

Aquilo que em Ulisses é negação da existência reduzida ao sentimentalismo


como superestrutura erigida sobre a brutalidade, da nossa pretensa humanidade força, pela
sua lógica interna, a percepção a viver o cinismo do sentimento e indiferença de nossa época.

Van Gogh, Monet e os impressionistas em geral, quando negam a apreensão


imediata da realidade para torná-la mais expressiva, por esse processo de distanciamento
estético, não estariam educando a percepção contemporânea submetida a uma visão do mundo
unidimensional e reificada? Não está na negação da forma, exatamente a inquietação
perceptiva da narrativa histórica que se apresenta como aparência e identificação do idêntico
enquanto conteúdo ideológico?

No entanto, abordagens desse nível tornaram-se limitadas, quando não ausentes


como princípio formativo, quer pelas mais diversas e absurdas deficiências escolares como se
apresentam na atualidade ou frente aos apelos da indústria cultural com o aligeiramento típico
das obras de arte literárias mais consistentes em termos estéticos. A obsessão pelo enredo de
fácil apreensão, atendendo aos princípios mais gerais de alienação social no capitalismo tardio,
encontrou nesse tipo de desmantelamento estético, a arma fatal para a debilitação da
subjetividade contemporânea. Identidades enfraquecidas, fragmentárias, ideologicamente
comprometidas num contexto social administrado e sutilmente vivenciado por uma formação
nazi-fascista, no que se refere aos usos mercantis da cultura, tornam-se a trama das narrativas
mencionadas. Em função desses traços autoritários da massificação da cultura atual é que tais
narrativas se tornam imprescindíveis como processos formativos emancipatórios. Elas
constituem linguagens de reflexão crítica através das quais o indivíduo pode emergir mais
fortalecido e resistente em relação ao sistema social que o desumaniza e o liquida.

Refletir sobre as interferências da indústria cultural como processo


semiformativo (Halbbildung) no social implica compreender a cumplicidade desse tipo de
cultura com o estado de regressão social que esse nível de cultura reforça. Os mass media na
sua subserviência ideológica têm suplantado a sua condição informativa, impondo na formação

10
JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. 3ªed. Tradução: Maria de Mor aes Barros. Petrópolis: 1991. p. 112.

470
do imaginário social um analfabetismo induzido pelo qual o indivíduo faz uma leitura obtusa
das contradições subjacentes a sua realidade circundante.

Compreender, todavia, as possibilidades emancipatórias que a formação


cultural viabiliza exige reconhecer a assertiva de Adorno de que: “A única possibilidade de
sobrevivência que resta a cultura é a auto-reflexão crítica sobre a semiformação, em que
necessariamente se converteu”.11 Ou seja, reflexão crítica do caráter regressivo e alienante da
forma como o conhecimento objetivo é paralizado diante da facilidade com que o clichê
substituiu a complexidade e a experiência advindos do conceito estabelecido pela própria
reflexão.

11
Id, ibid. p. 410

471
Bibliografia:

ADORNO, Theodor W. Prismas. Crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge
Mattos Brito de Almeida.São Paulo: Editora Ática, 1998.

_. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e


Terra. 1995.
_. Teoria estética. Trad. Artur Mourão. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1988.
_. Teoria da semicultura. In: Educação &Sociedade: revista quadrimestral de
ciência da educação, ano XVII, n. 56, Campinas: ed. Papirus , 1996. Trad. Newton Ramos de
Olioveira et al
_. Mínima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luiz Eduardo
Bicca. Ver. trad. Guido de Almeida. São Paulo: Ed. Ática, 1982.
COHN, Gabriel. (org.) Theodor Adorno. (Sociologia). São Paulo: Ática, 1994.

GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

HORKHEIMER, Max. e ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento.


Trad. Guido A. de Almeida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
_. Horkheimer Adorno. Textos escolhidos . Trad. Zeljko Loparic et.
al. 5ªed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores; 16).

JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. 3ªed. Tradução: Maria de Moraes Barros. Petrópolis:
1991.

KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Calvin Carruthers. São Paulo: Editora Nova Cultural,
2002.

_. O castelo. Tradução D. P. Skroski. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002.

_. O processo. Tradução: Modesto Carone.Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo:


Folha de S. Paulo, 2003.

LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada-Editora de Brasília, 1969.

SODRÉ, Muniz. Best seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988.

472
A INDÚSTRIA CULTURAL HOJE: O AGIR COMUNICATIVO COMO
POSSIBILIDADE DE UMA TEORIA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

Luiz Roberto Gomes


UNITRI/MG

Introdução
A afirmação de Adorno de que “nenhuma teoria está livre do mercado”1 corrobora a
atualidade da crítica do conceito de Indústria Cultural elaborado por Adorno e Horkheimer e
publicado na Dialética do Esclarecimento em 1947. Tal conceito, além de ser atual, mantém a
sua relevância no tocante a crítica das condições sociais que tem fundamentado os prejuízos do
processo de formação de nossa sociedade e, em particular, dos processos de comunicação. É
nesse contexto que procuraremos trazer a contribuição das reflexões de Jürgen Habermas,
enquanto crítica ao processo de colonização do mundo da vida pelo sistema, à luz do processo
de modernização, racionalização e tecnificação dos elementos que compõe a formação cultural.
A teoria crítica, enquanto possibilidade de resistência às formas de dominação vigente,
se mantém viva entre nós sempre que vislumbramos o exercício crítico e reflexivo da razão. É
essa preocupação que orientou os estudos teóricos de Marx, Adorno, Horkheimer, e que ainda
marca sensivelmente os trabalhos de Habermas, na busca de uma Teoria Crítica da sociedade
que produza um diagnóstico do tempo presente, baseado em tendências estruturais do modelo de
organização social vigente bem como em situações históricas concretas, a fim de demonstrar
tanto as oportunidades e potencialidades para a emancipação quanto os obstáculos reais que se
fazem a ela.
No contexto de uma sociedade amplamente administrada por uma racionalidade
instrumental, tal como nos lembra Adorno e Horkheimer, a estratificação devastadora da
sociedade mundial parece destruir inclusive, a possibilidade de emancipação que se ofusca
diante das formas perversas de dominação da contemporaneidade. Para Habermas, entretanto,
esse é um projeto inacabado e que precisa ser reconstruído no âmbito de um novo paradigma
teórico em que a emancipação é inerente à comunicação, de modo que seja necessário
desenvolver projetos educativos que privilegiem, consensualmente, o fortalecimento da
competência comunicativa dos educandos, a fim de torná-los competentes para o enfrentamento
dos desafios do nosso tempo.
Com as idéias de Habermas nos sentimos absolutamente desafiados a pensar a
possibilidade de uma teoria crítica da educação que reflita o caráter conflituoso e contingente da
educação, a qual necessita, pela sua própria natureza, de um processo de reconstrução

473
permanente das condições de formação de um sujeito emancipado. Na efervescência das
questões que nutrem a educação contemporânea, este trabalho busca discutir, no âmbito da
indústria cultural hoje, a possibilidade de uma teoria crítica da educação fundamentada na
Teoria do Agir Comunicativo de Habermas. Para tanto, abordaremos primeiramente o potencial
crítico-emancipatório da racionalidade comunicativa, posteriormente a idéia de consenso na
Teoria da Ação Comunicativa e por fim a possibilidade de uma teoria crítica da educação à luz
da competência comunicativa.

1. O potencial crítico-emancipatório da racionalidade comunicativa

Dentre as possibilidades de acesso à problemática da racionalidade, Habermas assume o


caminho da reconstrução racional das interações lingüísticas, com o objetivo de interpretar a
razão enquanto agir comunicativo. O propósito é restabelecer a unidade entre a razão teórica e
prática, instaurando desta forma, uma nova mediação entre teoria e práxis. Na sua concepção, a
linguagem apresenta um telos de entendimento que possibilita uma integração entre o mundo
social, objetivo e subjetivo. Com tais idéias desenvolve o conceito de Racionalidade
Comunicativa, a partir das pretensões de validez das interações lingüísticas, que nos permitem
pressupor a formação de consensos, livres de qualquer tipo de coerção. É com base na
compreensão do conceito de Racionalidade Comunicativa, que teremos a oportunidade de
explicitar com maior clareza o sentido crítico-emancipatório do Agir Comunicativo.
Para além da crítica da racionalidade instrumental, amplamente fundamentada pelos
teóricos frankfurtianos, em especial os estudos desenvolvidos por Adorno e Horkheimer na
Dialética do Esclarecimento2, Habermas entende que o sentido de emancipação da sociedade tal
como originalmente formulado por Marx e também por Adorno e Horkheimer necessita ser
repensado a partir de um novo paradigma explicativo. Assim, para enfrentarmos aquelas
mesmas tarefas clássicas da teoria crítica da sociedade, precisamos hoje ampliar os seus temas e
encontrar um novo paradigma explicativo3. Dessa forma, Habermas identifica o reducionismo a
que foi submetida a razão moderna, na sua acepção cognitivo-instrumental, e propõe uma
concepção de racionalidade mais ampla, com o objetivo de superar a característica
manipuladora e objetivante das ações humanas, promovendo a crítica, e apontando possíveis
saídas para as aporias da modernidade.

1
Cf. ADORNO, Theodor W. Actualidad de la filosofia. Trad. José Luis Arantegui Tamayo. Barcelona:
Paidós, 1991. pág. 9
2
Cf. ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar,
1995.
3
Cf. NOBRE, Marcos. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno: A Ontologia do Estado Falso. São
Paulo: Iluminuras, 1998.

474
A proposta de Habermas pressupõe a formulação de um novo conceito de racionalidade
em que a dimensão instrumental convive com um outro tipo de racionalidade que ele denomina
“comunicativa”. Esta é formulada em termos de uma teoria da ação, apresentada de maneira
mais detalhada na Teoria da Ação Comunicativa. Nessa obra, Habermas pretende mostrar que a
evolução histórico-social das formas de racionalidade leva a uma progressiva diferenciação da
razão humana em dois tipos de racionalidade, a instrumental e a comunicativa4, e isso se
contrapõe às teses de Horkheimer e Adorno, que apresentam uma teoria do desenvolvimento da
racionalidade humana que culmina em um prevalecimento da razão instrumental como forma
única da racionalidade.
Assim, Habermas propõe a recuperação do potencial emancipatório da razão5, que
coincide com os objetivos e reflexões da Teoria Crítica, ao restabelecer o poder crítico-
libertador da razão humana, a partir da crítica da dimensão instrumental da racionalidade
moderna, o que não significa abandonar a razão. Para Habermas, o grande desafio consiste em
encontrar elementos que possam permitir a reconstrução da razão, recuperando pela crítica as
outras dimensões que foram diminuídas e eclipsadas pelo poder estratégico da racionalidade
científica. Neste sentido, ele sustenta a tese de que é possível instituir aos poucos um
contradiscurso capaz de conferir novos rumos à razão e de gerar um novo equilíbrio entre
sistema e mundo da vida6. Desta forma, ele aponta o agir comunicativo como o paradigma
legitimador do discurso e da ação.
A abordagem reducionista da Razão e, especialmente, o caráter ideológico assumido
pela técnica e pela ciência, quando estas se colocam aos diversos setores da sociedade como a
única forma de racionalidade possível, fizeram com que Habermas se visse desafiado a
reconstruir teoricamente a razão a partir de outras bases, tal como ele mesmo explicita: A
"
teoria da ação comunicativa se propõe afinal como tarefa investigar a ‘razão’ inscrita na própria
prática comunicativa cotidiana e reconstruir a partir da base de validez da fala um conceito não
reduzido de razão” (HABERMAS, 2001, p. 506)7.

4
Nos limites de espaço desse artigo optamos por desenvolver apenas o conceito de racionalidade
comunicativa. O leitor poderá compreender o conceito de racionalidade instrumental em ADORNO e
HORKEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, ou em HABERMAS, Jürgen.
Teoría de la acción comunicativa. Taurus: Madrid, 1999.
5
Em Habermas a emancipação pressupõe uma ação voltada para o entendimento, o que faz com esta só
seja possível quando ocorrer a “expansão dos processos de ação comunicativa”, que se fundamentam
necessariamente na capacidade da humanidade de alcançar consensos racionais através do processo de
argumentação. Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I. Taurus: Madrid, 1999a, p.
500.
6
Sobre os conceitos de sistema e mundo da vida, conferir HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción
comunicativa II. Madrid: Taurus, 1999b, pág. 161 ss.
7
A tradução da Teoria da Ação Comunicativa, nas citações utilizada nesse artigo, é de minha inteira
responsabilidade.

475
Habermas segue as trilhas do discurso filosófico da modernidade, com o objetivo de
identificar nas diversas teorias as bases de compreensão dos paradigmas filosóficos8. Neste
sentido, ele propõe uma mudança de paradigma filosófico ao entender que “A racionalidade tem
menos a ver com o conhecimento, ou com a aquisição de conhecimento, e mais com a forma em
que os sujeitos capazes de linguagem e de ação fazem uso do conhecimento” (HABERMAS,
1999a, pág. 24). Com esta proposta temos dois paradigmas de pensamento filosófico distintos
na sua forma de conceber a realidade: O paradigma da filosofia da consciência ou do sujeito,
que corresponde ao modelo da racionalidade cognitivo-instrumental, e o paradigma da filosofia
da linguagem ou da intersubjetividade que corresponde ao modelo da racionalidade
comunicativa.
Na racionalidade comunicativa podemos perceber com maior clareza que ocorre uma
mudança estrutural de paradigma quando se desloca o entendimento que estava centrado no
sujeito para um acordo intersubjetivo que, é fruto de uma racionalidade comunicativa. O que
ocorre é uma ação orientada ao entendimento que:
Desde a perspectiva dos participantes, e‘ ntendimento’ não significa
um processo empírico que dá lugar a um consenso fático, senão um
processo recíproco de convencimento que coordena as ações dos
distintos participantes à base de uma motivação por razões.
Entendimento significa a comunicação orientada por um acordo
válido. (HABERMAS, 1999a, p. 500)
Habermas desenvolve ainda, através da pragmática universal, o conceito de
competência comunicativa, para explicitar as regras inerentes à linguagem que tornam os
sujeitos universalmente competentes para interagirem comunicativamente e, assim, chegarem a
um entendimento racional. Trata-se de um processo de reconstrução das regras pragmático-
formais que tornam o sujeito competente para usar sentenças e expressões com o objetivo de
alcançar um entendimento9. Habermas propõe, a partir dos mecanismos de coordenação da ação
social, a reconstrução do projeto emancipatório da modernidade, considerando como critério de
emancipação os consensos motivados racionalmente no entendimento intersubjetivo do agir
comunicativo. A racionalidade comunicativa fundada no paradigma da intersubjetividade
permite, na visão de Habermas, o estabelecimento de uma crítica capaz de enfrentar as
patologias do mundo atual, de modo que sejam controlados, em última instância, os processos
sistêmicos.
A racionalidade imanente à prática comunicativa cotidiana remete, pois, à prática da
argumentação como instância de apelação que permite prosseguir a ação comunicativa com

8 Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
9
Cf. Qué significa pragmática universal? in: HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa:
complementos y estudios previos. Madrid: Catedra, 2001, pág. 299ss.

476
outros meios quando se produz um desacordo que já não pode ser absorvido no cotidiano e tão
pouco pode ser decidido pelo emprego direto, ou pelo uso estratégico do poder. Neste sentido,
Habermas insiste no conceito de racionalidade comunicativa que faz referência a uma conexão
sistemática de pretensões universais de validez que devem ser adequadamente desenvolvidas
por meio de uma teoria da argumentação, de modo que o critério de medida da racionalidade
seja estabelecido pela capacidade e disposição dos sujeitos de expor-se à crítica e participar de
processos de argumentação. Assim, fica estabelecido o caráter de suscetibilidade dos
argumentos à crítica, através de uma íntima relação entre os processos de fundamentação e
aprendizagem, que confere às emissões e manifestações racionais a possibilidade de correção
das pretensões de validade anteriormente defendidas. Habermas entende, portanto, que existem
dois ambientes distintos em que o processo de argumentação e fundamentação ocorrem: o
discurso teórico, que corresponde à tematização das pretensões de verdade e o discurso prático,
que procura tematizar a validade das normas que se tornaram problemáticas, garantindo, por
conseqüência, nos dois ambientes, a possibilidade de formação de consensos que se
fundamentam racionalmente10.
Tal concepção estabelece, como vimos acima, uma mudança de paradigma que tem
implicações diretas para as outras áreas da filosofia, como a ética, a epistemologia e a filosofia
da linguagem; principalmente porque o que passa a prevalecer não é mais a verdade
proposicional e sim a busca cooperativa da verdade11, sempre com o objetivo da obtenção de
convicções intersubjetivas baseadas no critério dos melhores argumentos. Essa busca consiste
no processo discursivo que se estabelece entre os participantes da interação lingüística no
momento em que encontram uma motivação racional para o estabelecimento de um
entendimento intersubjetivo a partir da tematização das pretensões de validade que se tornaram
problemáticas. Como já mencionamos anteriormente, trata-se de uma ação que mantém a sua
racionalidade fundamentada no contexto do mundo da vida, quando ocorre um reconhecimento
intersubjetivo das pretensões de validade suscetíveis de crítica.
É diante de tais abordagens conceituais, e da mudança de paradigma ocorrida por
ocasião da fundamentação de uma concepção de racionalidade mais ampla, que podemos
compreender o potencial crítico e emancipatório da ação comunicativa, estabelecida na noção
de consenso como critério de validação e legitimação das ações humanas. Acreditamos que a
noção de consenso poderá nos fornecer os elementos necessários para o exercício de uma teoria
crítica que nos ajude a manter viva a possibilidade da emancipação. Para tanto, iremos recorrer

10
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Madrid:
Catedra, 2001, pág. 38.
11
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I. Madrid: Taurus, 1999a, pág. 60.

477
ao conceito de consenso presente na Teoria da Ação Comunicativa, como fundamentação dos
pressupostos da teoria crítica na perspectiva de Habermas.

2 O consenso na Teoria da Ação Comunicativa

Na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas desenvolve a tese de que qualquer agente


comunicativo, na execução de qualquer ação lingüística, levanta, necessariamente pretensões
universais de validade que sustentam o processo de legitimação da comunicação. Assim, ele
abre uma nova perspectiva de análise sobretudo para as questões epistemológicas e éticas que
passam a ser legitimadas por uma base de validade universal da fala, com as seguintes
pressuposições: expressar-se compreensivamente, dar a entender algo, fazer-se compreensível e
compreender-se mutuamente. Explicando melhor, o falante deve escolher uma forma de
expressão inteligível, de forma que tanto ele como o ouvinte possam compreender-se um ao
outro. O falante deverá ter a intenção de comunicar uma proposição verdadeira, ou seja, um
conteúdo proposicional, cujas pressuposições existenciais estejam satisfeitas, de forma que o
ouvinte possa partilhar o conhecimento do falante. Este último deverá assim pretender exprimir
as suas intenções de uma forma verdadeira, de modo que o ouvinte possa considerar o seu
discurso digno de confiança. Por fim, o falante deverá escolher um discurso que esteja correto
em relação às normas e valores permanentes, de forma que o ouvinte possa aceitá-lo e que
ambos possam nesse discurso, concordar mutuamente segundo uma base normativa,
intersubjetivamente reconhecida. Além disso, a ação comunicativa só poderá permanecer intacta
enquanto todos os participantes supuserem que as pretensões de validade que reciprocamente
efetuam são apresentadas justificadamente12. Nestes termos, como a meta do entendimento é
chegar a um consenso que se fundamenta na base do reconhecimento mútuo das quatro
pretensões de validade correspondentes: compreensibilidade, verdade, sinceridade e justeza; é
importante esclarecer que o consenso precisa encontrar a sua sustentação em dois planos
fundamentais, no âmbito das próprias expressões lingüísticas e no contexto do mundo da vida.
Mas como compreender o significado das pretensões de validade que motivam
racionalmente a formação de consensos emancipatórios?13 Para Habermas, quando o falante
aceita uma pretensão de validade, o ouvinte reconhece a validade das estruturas simbólicas, ou
seja, ele reconhece que uma frase é gramatical, que uma afirmação é verdadeira, que uma
expressão intencional é sincera ou que um ato de fala é correto. A validade destas estruturas
simbólicas é justificada segundo a satisfação de certas condições de adequação. Já o significado

12
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos.
Madrid: Catedra, 2001, pág. 300.

478
das pretensões de validade reside no seu valor em termos de reconhecimento, ou seja, na
garantia de que o consenso possa ser atingido se as condições forem adequadas no sentido de
um reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade.14 Nessa linha de argumentação é
interessante notar, a amplitude dessa abordagem, na medida em que ela possibilita uma análise
das condições de adequação, pois os atos de fala cumprem dois sentidos fundamentais: o sentido
lingüístico (como parte integrante da fala) e o sentido institucional (que permite situar as
expressões lingüísticas num determinado contexto social)15. Recorrer aos atos de fala significa
entre outras coisas, que estamos admitindo uma estrutura duplo-dimensional, ou seja, uma
dimensão performativa e uma outra proposicional, que nos fornece, pela sua estrutura, a
possibilidade para que o falante comunicativamente competente possa construir proferimentos a
partir de sentenças.
No agir comunicativo, o falante tem sempre em mente um entendimento intersubjetivo,
ou seja, os proferimentos contem um caráter performativo, deslocando o componente
estritamente proposicional para situá-lo novamente no ato de fala ilocucionário. A linguagem
utilizada performativamente não se atém somente às relações de caráter exclusivamente
epistemológico (relação entre linguagem e realidade), mas também aos seus aspectos
hermenêuticos (relação entre um proferimento dado e o conjunto de todos os proferimentos
feitos na mesma língua)16. Utilizar a linguagem na sua dupla-dimensão: epistemológica e
hermenêutica, significa utilizá-la numa perspectiva comunicativa, ou seja, procurando ser
expressão de alguma coisa e compartilhar alguma coisa com alguém. Portanto, quem participa
de processos de comunicação ao dizer algo e ao compreender o que é dito - quer se trate de uma
opinião que é relatada, uma constatação que é feita, de uma promessa ou ordem que é dada, quer
se trate de intenções, desejos, sentimentos ou estados de ânimo que são expressos - tem sempre
que assumir uma atitude performativa. Essa atitude admite a mudança entre a atitude
objetivante, a atitude conforme as regras e a atitude expressiva. A atitude performativa permite
uma orientação mútua por pretensões de validade (verdade, correção normativa e sinceridade)
que o falante pressupõe na expectativa de uma tomada de posição com um sim ou um não da
parte do ouvinte. Essas pretensões desafiam a uma avaliação crítica, a fim de que o
reconhecimento intersubjetivo de cada pretensão particular possa servir de fundamento a um

13
Cf. GOMES, Luiz Roberto. O Consenso na Teoria do Agir Comunicativo de Habermas e suas
Implicações para a Educação. Campinas: FE – UNICAMP (tese de doutorado), 2005.
14
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos.
Madrid: Catedra, 2001, pág. 302.
15
Ibid. p. 82.
16
Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1989, pág 40 - 42.

479
consenso racionalmente motivado. Ao se entenderem mutuamente na atitude performativa, o
falante e o ouvinte estão envolvidos, ao mesmo tempo, naquelas funções que as ações
comunicativas realizam para a reprodução do mundo da vida, que é comum a todos.
O consenso, no sentido de Habermas, só pode ser obtido mediante um discurso que se
expõe permanentemente à competência crítica dos participantes da interação lingüística, pois o
resultado do discurso depende, por sua vez, da obtenção de um acordo que possa ser
considerado argumentativamente sólido. Desta forma, Habermas, ao considerar a teoria
consensual da verdade, defende a seguinte tese: a" antecipação de uma situação ideal de fala é a
garantia para podermos associar a um consenso alcançado faticamente a pretensão de ser um
consenso racional"(HABERMAS, 2001, pág. 105) . Esta tese é fundamental, pois ela sempre
nos obriga a supormos reciprocamente uma situação ideal de fala, pois só assim estaríamos
diante de um entendimento real, que é fruto de um reconhecimento intersubjetivo das pretensões
de validade, explicitadas através do discurso.
Esta suposição, a que se refere Habermas, se converte num critério essencial que
permite examinar qualquer consenso obtido empiricamente, quando submetido e confrontado a
um consenso fundado racionalmente. O importante é que a situação ideal de fala seja tomada
como critério da argumentação discursiva, porque ela implica uma distribuição simétrica do
direito de escolher e utilizar os atos de fala. Desta idéia decorrem quatro postulados principais: o
postulado da igualdade comunicativa, garantindo a todos os participantes do discurso
argumentativo a igualdade de chance de usar atos de fala comunicativos; o postulado da
igualdade de fala, garantindo a todos os participantes do discurso a mesma chance de proceder a
interpretações e fazer asserções, recomendações, explicações e justificações, bem como de
problematizar pretensões de validade; o postulado da veracidade e sinceridade, condicionando
aos falantes aceitos no discurso a mesma chance de utilizar os atos de fala representativos, isto
é, devem ser capazes de expressar idéias, sentimentos e intenções pessoais; e por fim, o
postulado da correção normativa, condicionando aos agentes dos discursos a mesma chance de
empregar atos de fala regulativos, isto é, de mandar, de opor-se, de permitir e de proibir, de
fazer promessas e de retirar promessas17. Estes postulados sintetizam a idéia de que todos os
participantes da comunicação podem chegar a um entendimento através da suposição de que o
discurso poderá resolver, através de um processo de argumentação, as distorções que por
ventura surgirem. Desta forma, os consensos que anteriormente foram gerados
argumentativamente tornam-se o critério de desempenho da pretensão de validez de cada
situação discursiva em particular.

17
Cf. HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos.
Madrid: Catedra, 2001, pág. 153-54.

480
Em termos de lógica do discurso, podemos dizer que a força geradora de consenso de
um argumento está relacionada à adequação da linguagem e do correspondente sistema
conceitual empregado com fins argumentativos. Isto significa que só estaremos diante de um
argumento satisfatório quando todas as partes de um argumento pertencerem a uma mesma
linguagem. Desta forma, um consenso alcançado argumentativamente só pode considerar-se
critério de verdade quando estiver incondicionalmente exposto à crítica dos participantes de um
contexto de interação lingüística que sempre deve estar referendado pelo desempenho
discursivo das pretensões de validez.
Portanto, na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, o consenso é entendido como
um acordo que ocorre à luz do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade de um
discurso, ou seja, um consenso que se estabelece, por intermédio de um exercício racional de
argumentação não coercitivo, que sempre pressupõe no processo comunicativo: a compreensão,
a verdade, a sinceridade e a justiça. Este fornece, no nosso entender, um potencial crítico capaz
de fortalecer, através dos mecanismos pedagógicos da aprendizagem, os processos de
argumentação dos agentes que participam diretamente da formação cultural. Esta idéia nos
conduzirá na seqüência desta exposição, a possibilidade da teoria crítica da educação pelo viés
da formação da competência comunicativa.

3 Competência Comunicativa, Teoria Crítica e Educação

A educação, nas suas mais variadas formas de manifestação, pode ser entendida, no
sentido de Habermas, como um contexto em que confluem tanto as estruturas sistêmicas do
dinheiro e do poder, quanto os elementos que compõem o mundo da vida. Não se trata
simplesmente de propor, diante predominância da racionalidade sistêmica, a substituição desta
por uma orientação baseada nos princípios da racionalidade comunicativa, embora seja possível
supor que, por meio da teoria do agir comunicativo, poderemos instituir uma ação educativa
capaz de mediar a racionalidade sistêmica e a racionalidade comunicativa como uma
possibilidade de reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade que compõem o
processo comunicativo do mundo da vida.
Em linhas gerais, para os teóricos da Teoria Crítica, a principal tarefa da educação é o
fortalecimento das formas de resistência aos processos de “absorção do banalizado”18,
decorrentes da indústria cultural e que se manifesta através das interações sociais determinadas
pela racionalidade sistêmica. Habermas diria que a escola deveria ser efetivamente um espaço
público de acesso ao saber, capaz de interagir comunicativamente com os diversos setores que

18
Cf. ADORNO, Theodor. Teoria da Semicultura. Campinas: Papirus, 1996.

481
compõem a estrutura de uma sociedade. Para tanto, é necessário que a cultura originária do
mundo da vida de cada indivíduo seja argumentativamente exposta à crítica, para que se
consolide uma ação orientada ao entendimento.
O alerta de Adorno de que a educação não é necessariamente um fator de
emancipação19, nos provoca e nos estimula a analisar a tendência educacional contemporânea, a
partir da reconstrução dos fundamentos culturais que norteiam a práxis educativa, em meio a um
universo conceitual que nos permite problematizar os processos norteadores que integram as
relações sociais do nosso tempo.
Acreditamos, em concordância com o sentido da educação atribuído por Adorno e
ancorado nas teses fundamentais da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, que enquanto a
modernidade não esgotar o seu potencial crítico e emancipatório, a educação continuará
exercendo um papel significativo na formação de indivíduos comunicativamente e socialmente
responsáveis. Para tanto, é importante que a modernidade seja reconstruída de tal modo que,
possamos reconhecer uma racionalidade que se manifesta através de atos de fala, os quais por
sua vez, se expressam por meio de pretensões de validez, que demonstram uma relação
intrínseca entre razão e linguagem, pois, como participante de discursos, o indivíduo, com seus
sim e não insubstituíveis, somente é completamente autônomo sob a condição de permanecer
integrado a uma comunidade universal mediante a busca cooperativa da verdade20.
Ao admitirmos a competência comunicativa dos sujeitos em interação, no sentido de
Habermas, podemos afirmar que a humanidade pode continuar seu caminho de libertação
através do aperfeiçoamento de suas ações em um processo cooperativo de aprendizagem que
almeja a emancipação. Daí a tarefa da educação que deve orientar-se pela contenção e reversão
do processo deformação do mundo da vida, através da ampliação das condições que permitem o
uso comunicativo da linguagem fundamentado na possibilidade do consenso a ser alcançado
argumentativamente.
As idéias de Habermas nos ajudam e nos desafiam a buscar os fundamentos para a
explicitação das possibilidades de uma ação emancipatória que repouse na reconstrução
permanente dos valores e princípios da tradição, e reconhecidos por intermédio dos consensos
produzidos pelos próprios participantes através dos processos públicos de argumentação.
Ao admitirmos o consenso como critério de validação do pensar e do agir, estaremos
reunindo, hipoteticamente, as condições de possibilidade de uma teoria crítica da educação. Para
tanto, é necessário pensar, a partir dos argumentos de Habermas, a educação como um agir

19
Cf. ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
20
Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
pág. 480.

482
orientado para o entendimento, de modo a estabelecer formas coletivas de aprendizagem de um
processo de formação que assegure a competência comunicativa dos sujeitos em interação, a fim
de que estes se tornem inclusive, responsáveis pelos seus atos.
Para Habermas, o caminho mais indicado para o enfrentamento dos desafios
educacionais da contemporaneidade é o fortalecimento da comunicação não distorcida dos
indivíduos, que deve sempre pressupor a busca permanente do consenso. A saída está na
consolidação de um projeto educativo voltado ao entendimento racional e que procure combater
as posições irracionais que se fundam em outras bases. Aqui incide no nosso entender, a
fecundidade teórica da noção de consenso de Habermas que visa superar as divergências e os
conflitos que surgem, sobretudo nas relações sociais, e que pode ser realizada através de um
acordo racional ancorado nos pressupostos pragmáticos formais, sem ignorar obviamente que o
ponto de partida de qualquer relação social surge sempre das exigências de validade, ligadas ao
contexto de cada indivíduo.
A educação do nosso tempo deve basear-se, na competência comunicativa, de tal modo
que esta nos permita participar mais ativamente e de forma mais crítica e reflexiva na sociedade.
Se pretendemos superar as formas manipulativas da indústria cultural, assim como, a
desigualdade que gera a exclusão das pessoas que não têm acesso ao universo cultural global,
devemos pensar sobre que tipo de habilidades estão sendo potencializadas nos contextos
formativos e se com isso é facilitada a interpretação da realidade a partir de uma perspectiva
crítico-emancipatória que busca coordenar às ações por meio do consenso.

Considerações finais

O ensaio que apresentamos procurou resgatar as premissas que compõem a teoria de


Habermas, como base conceitual e como identificação das suas possíveis contribuições para a
fundamentação de uma teoria crítica da educação. Com Habermas buscamos interpretar o
projeto da modernidade como mediado por um conceito de racionalidade que se projeta em duas
direções distintas: a racionalidade cognitivo-instrumental e a racionalidade comunicativa, sendo
a primeira de natureza sistêmica e estratégica e a segunda caracterizada por uma relação
intersubjetiva voltada ao entendimento.
Para Habermas, a nossa vida cotidiana contempla espaços, nos quais devem prevalecer
o agir comunicativo orientado pelo entendimento e outros em que sobressaem as formas de
racionalidade cognitivo-instrumental voltada ao êxito. O problema é quando ocorre um processo
de invasão ou colonização da racionalidade cognitiva instrumental, própria da indústria cultural,
sobre a racionalidade comunicativa presente no mundo da vida.

483
A racionalidade dos atos humanos e o poder emancipatório são determinados pelas
pretensões de validade inerentes ao agir comunicativo e isso significa dizer que o engajamento
dos indivíduos na argumentação é condição necessária para que haja a emancipação. É baseado
nesse argumento que, a educação assume um papel relevante na formação do educando
comunicativamente competente, que consiste em eliminar, pelo processo formativo, as formas
distorcidas de comunicação e formação, tendo em vista a sua realização através de processos de
aprendizagem que permitam pela comunicação a emancipação.
Para Habermas, portanto, esta emancipação vai depender fundamentalmente da
crescente reflexibilidade das tradições e das visões de mundo existentes, pois somente a
reconstrução permanente dos valores e princípios da tradição através de processos públicos de
argumentação fará emergir valores e normas cada vez mais universalizáveis, ao mesmo tempo
em que promoverá o avanço dos processos de coordenação das diferentes instâncias da
sociedade mediante os consensos produzidos racionalmente pelos próprios participantes através
de argumentos. Isso se torna possível quando passamos a adotar uma racionalidade que enfatiza
o processo coletivo da busca da verdade e dos valores, baseado na possibilidade de um consenso
provisório e sujeito a novas reconstruções.

Referências Bibliográficas

x ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido


Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: JZE, 1985;
x ADORNO, Theodor W. Teoria da Semicultura. In: Educação e Sociedade. Campinas: UNICAMP,
XVII (56): dez, 1996;
x ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995;
x _. Actualidad de la filosofia. Trad. José Luis Arantegui Tamayo. Barcelona:
Paidós, 1991;
x GOMES, Luiz Roberto. O Consenso na Teoria do Agir Comunicativo de Habermas e suas
Implicações para a Educação. Campinas: FE – UNICAMP (tese de doutorado), 2005.
x HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989;
x _. Pensamento Pós-metafísico. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1990;
x _. Passado como futuro. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
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x _. Teoría de la acción comunicativa I: Racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999a;
x _. Teoría de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. Madrid:
Taurus, 1999b;

484
x _. O Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000;
x _. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Trad.
Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Catedra, 2001;
x NOBRE, Marcos. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno: A Ontologia do Estado
Falso. São Paulo: Iluminuras, 1998.

485
O PREÇO DO BELO NA MASSIFICAÇÃO DA CULTURA

Manoel DIONIZIO NETO*


(Unidade Acadêmica de Ciências Sociais/Centro de Formação de Professores da UFCG
(Universidade Federal de Campina Grande)

No nosso cotidiano, somos capazes de saber o que são coisas belas. Parece que não temos
nenhuma dúvida a respeito do que seja a beleza, tornando-se fácil distinguir o belo do feio. E
por assim ser, “é muito comum dizermos que determinada coisa ou pessoa é bela ou não. Isso
prova a nossa capacidade de reconhecer o que é belo, pelo menos em se tratando daquilo que
nos é externo”.1 Mas, apesar disto, “quase ninguém pára um momento para indagar o que seja
de fato o Belo”.2 Trata-se aqui de uma preocupação a respeito do que se possa ter como belo em
si mesmo. Isto nos remete a uma distinção a fazer entre o que identificamos como belo e o que
se pode tomar como belo propriamente dito.
A preocupação aqui referida tem o caráter do ontológico. As pessoas, em seu cotidiano,
não têm esta preocupação, não estão interessadas em definir o que seja o belo, pois não são
atraídas por uma discussão ontológica a respeito do que se pode pensar sobre o belo em seu
próprio ser. Encantam-se com a beleza que podem ver nas coisas (ou nas pessoas) e se dão por
satisfeitas em se saberem envolvidas pelo que é belo. E nem entraria aqui uma discussão a
respeito de uma possível relação entre o que seja a beleza e o belo. A beleza é o que vêem no
que elegem como belo. E não se trata de teorizar sobre isto, mas apenas encantar-se com algo
que lhes parece belo, parecendo-lhes desnecessário perguntar por que as coisas assim lhes
parecem.
Saindo da questão ontológica, mesmo sabendo que não podemos negar a necessidade dela
ao tomarmos o belo como objeto de nossa reflexão, somos remetidos ao que encanta as pessoas
com a sua beleza, despertando nelas um sentimento prazeroso. Uma das coisas que muito
atraem a atenção no nosso dia-a-dia é o recurso visual com que expõem as imagens que nos
cercam. Deste modo, aquilo que, em um primeiro momento, parece existir para agradar à visão,
pode ser convertido ao que deve agradar outros sentidos: o paladar, o tato ou mais
especificamente a libido. Assim sendo, um belo prato pode significar o despertar da fome, da
mesma forma que uma bela mulher pode despertar o desejo sexual. O que se faz para que o
prato possa desperta o desejo de comer ou o que se faz para que uma certa mulher possa ser
deseja cada vez mais, muitas vezes se ignora, mas, quem lida com a culinária sabe do que pode

*
MANOEL DIONIZIO NETO – Graduação e Mestrado em Filosofia, Doutorado em Educação,
Professor Adjunto da UACS/CFP/UFCG.
1
DIONIZIO NETO, Manoel. O belo. Novidade. Maceió, p. 18, out-nov. 1988.
2
Id. Ibid p. 18.

486
fazer para agradar o paladar das pessoas, assim como quem lida com a beleza feminina sabe o
que fazer para que a mulher possa ser cada vez mais interessante aos olhos do homem ou de
quem se deleite com a apreciação de uma bela figura feminina. Eis aqui um poderoso recurso
para que a beleza seja cada vez mais encantadora: a imagem do que deve aparecer como belo.
Os exemplos acima valem para uma primeira reflexão a respeito do que se pode pensar
sobre o belo, quando deixamos de lado o ontológico. Falamos a partir do cotidiano com que
convivemos e perguntamos pelo que se pode eleger como belo. É a partir deste cotidiano que
podemos perguntar pelo que agrada mais as mulheres ou aos homens em termos de beleza. A
mulher, querendo conquistar a atenção masculina, preocupa-se com o que deve fazer para
agradar os seus possíveis pretendentes. Mas não consta na sua preocupação o custo a que deva
submeter a sua beleza.
Não entramos aqui numa discussão axiológica a respeito do belo ao perguntarmos
pelo que ele vale em nosso cotidiano. Mas perguntamos pelo valor do que se tem por
belo. Saímos assim da esfera axiológica e entramos na da economia de mercado, onde
encontramos produtos que podem ser adquiridos a um determinado valor. Um desses produtos é
o que agrada os sentidos, e até de uma forma desinteressada à maneira de Kant. A elegância
feminina pode ser exemplo disto que está posto no mercado a um determinado valor.
Tomando-se a elegância feminina como exemplo, o que nos diz Albert Ellis a seu respeito
é bastante ilustrativo para a nossa reflexão sobre o preço do belo em nossa cultura massificada.
Inegavelmente, identificamos o belo no que se tem como elegante e nem sempre perguntamos
pelo custo do que nos parece belo ao identificá-lo. Mas é mais comum perguntar pelo que pode
ou não expressar esse belo, quando se quer agradar o outro, quando se quer a conquista da
pessoa que se possa amar. A mulher, por exemplo, preocupa-se em saber sobre o que pode
chamar mais a atenção dos homens. Por isso o exemplo de Ellis nos coloca diante, não só desta
preocupação feminina, mas também diante das possíveis reflexões que podemos fazer a respeito
do belo com que se quer conquistar o outro.
“O que as mulheres pensam que o homem deseja em mulheres?” Esta é a pergunta feita
por Albert Ellis. Como resposta a esta questão, ele nos diz que o homem de pensamento acima
da média, aquele que não se confunde com o “playboy” que, desejando exaltar seus pretensos
egos, quer ter nos seus braços uma Mis vestida na última moda, ao notar

que sua companheira de fim de semana tem armários cheios de roupas caras, gavetas repletas de
produtos de maquiagem e fileiras de sapatos esplendorosos, ele começa a fazer a si próprio
algumas perguntas interessantes. Por exemplo: Quanto me vai custar esse negócio todo, se nós nos
juntarmos? Quanto tempo vou ter de esperar, toda vez que sairmos, que ela vista sua armadura e
aplique sua pintura de guerra? Que tem ela a esconder embaixo de todas essa fantasiosa

487
camuflagem? Terá ela em sua linda cabecinha outro pensamento, além de roupas, roupas e
roupas?”3

Mas o autor também nos diz que há uma diferença entre o que as mulheres pensam que o
homem deseja e aquilo que ele deseja, de fato, numa mulher: “o que a maioria dos homens
inteligentes e mentalmente são deseja são coisas tão diferentes  bem, tão diferentes quanto
masculinidade e feminilidade”.4 Em outras palavras, quando a mulher se pergunta pelo que
poderá o homem desejar nela, vem à tona a questão da elegância que está associada à beleza.
Passa pela cabeça dela a necessidade de ser bela para o homem, sendo para isto necessário um
conjunto de coisas que lhe parecem imprescindíveis à sua beleza.
Para encontrar a resposta que procura, segundo Ellis, a mulher recorre ao gosto daquelas
que lhe são mais próximas: sua mãe, irmãs, primas, tias, etc., considerando o que essas mulheres
desejariam ver numa pessoa. Fica subentendido que aquilo que ela procura é, na verdade, algo
que deve agradar as outras mulheres. Daí confunde o gosto dessas mulheres com o gosto dos
homens, confundindo o que a mulher deseja em mulheres com o que o homem deseja nelas.
Com base nisto, vale a afirmação: “a mulher não se veste para homens, mas para outras
mulheres”.5
Em que podemos concordar com Albert Ellis? Não estamos desviando a nossa atenção
para algo sem muita importância, quando queremos perguntar pelo belo em nossa sociedade,
considerando o seu significado em uma cultura promotora do consumo? Mas não estamos
perguntando com este exemplo pelo preço do belo que se encontra na elegância? E a
identificação do belo com esta elegância procurada pelas mulheres não confunde o belo com as
coisas belas, quando é ele que procuramos nestas coisas? Se falamos de coisas belas, não
estamos identificando nelas a beleza, mas identificando as coisas com o próprio belo.
A elegância é uma dessas coisas que podem ser confundidas com o belo. Do mesmo
modo, o corpo passa a ser identificado como belo, quando se encontra com a elegância. Mas não
são as roupas, os calçados, o penteado, a maquiagem e as jóias que fazem a elegância,
complementando o visual de um corpo ornamentado? Pensando agora na relação que fazemos
entre a elegância e o que chamamos belo, bem com nos artifícios que fazem a elegância,
deparamo-nos com a questão de Ellis referida há pouco.
Ninguém pode negar a satisfação que nos invade quando somos tomados por algo que
identificamos como belo. Assim somos tocados pela elegância. E por esta somos remetidos a
um corpo, que acreditamos belo, porque se encontra revestido de algo que traduz aquilo que nos

3
ELLIS, Albert. O caminho para a libertação feminina: a mulher pode e deve escolher. Tradução por
Aydano Arruda. São Paulo : IBRASA, 1981, p. 34.
4
Id. Ibid., p. 27.

488
encanta. Não se evidencia neste encontro com a elegância a separação entre a ornamentação e o
corpo humano ornamentado. Por esta razão, o homem, indivíduo heterossexual masculino, pode
ser levado para uma mulher elegante, não necessariamente por querer a elegância dela, mas
porque a elegância dela o atrai. Isso não é indicativo de que ele esteja procurando uma mulher
elegante para namorar, para amar, para passar uma noite, e muito menos para um casamento. Se
ele busca o belo que se coloca em alguma coisa, certamente vai à procura deste belo que deve
ser próprio da mulher e não de suas vestes e dos diferentes penduricalhos que ela está usando. A
elegância da mulher não deixa de ser notada, mas figura muito mais como peça de vitrine,
assemelhando-se àquilo que está ali para ser contemplado, mas não para ser inserido no
convívio social e humano, como parte deste humano, seja como corpo ou como sujeito histórico
e social. Deste modo, temos que concordar muito com o que nos diz Albert Ellis. Até
reafirmamos com ele que os homens estão mais interessados em saber como a mulher se despe
do que como ela se veste. Mas, por que as mulheres desejam na mulher a elegância que nós, do
sexo masculino, não estamos desejando nela?
Para Ellis, o gosto pelo modo de vestir da mulher é repetido pelas próprias mulheres em
diferentes gerações. Acredita-se, então, a partir disto, que são as próprias mulheres que definem
o que deve ou não ser o melhor para elas em termos de vestimenta; assim, todos nós, do sexo
masculino ou feminino, determinamos o que nos agrada ou não. O nosso juízo de gosto nos
diria necessariamente do que é próprio da nossa índole humana determinar como belo, mesmo
em relação à moda. Mas, se recorremos ao pensamento de Kant, refletimos sobre o significado
da arte que expõe o belo em sua aproximação com a natureza. Não é o que ocorre com a moda.
Deste modo, asseguramo-nos de que a elegância, mesmo quando sendo uma expressão de arte,
está imposta no mercado como um produto a ser consumido e não como uma imitação da
natureza ou uma criação do espírito.
Para Kant, o belo é “objeto de uma satisfação que serve de meio para julgar um objeto de
gosto”.6 É objeto de gosto, porque o identificamos numa satisfação desinteressada e livre, a
única que se confunde com o modo de satisfação que tem o gosto no próprio belo. Por assim ser,
“é representado sem conceitos como objeto de uma complacência universal”.7 Esta
complacência, que determina o juízo de gosto, é independente de todo o interesse, estando ela
ligada à representação da existência de um objeto. Mas, segundo Kant, quando se trata de
perguntar se algo é belo, “então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou se quer

5
Idem, p. p. 34.
6
DIONIZIO NETO, Manoel. O conceito de arte em Kant. Livre pensar: Revista de Ciências Sociais do
Campus V da UFPB, Cajazeiras-PB, n. 01, p. 33.
7
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Tradução Valério Rohden e António Marques. 2. ed.
Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995, p. 56.

489
possa importar algo da existência da coisa, e sim como a ajuizamos na simples contemplação
(intuição ou reflexão)”.8 Assim, Kant “pretendeu deslocar o centro de existência da Beleza do
objeto para o sujeito”, conforme expressão de Ariano Suassuna.9
Para que se possa pensar a concepção de belo com o ajuizamento que fazemos da coisa na
simples contemplação dela, não nos interessa as propriedades do objeto para o qual nos
voltamos ao formularmos um juízo sobre o mesmo, mas a complacência com que somos
tocados ao contemplá-lo, seja pela intuição ou reflexão. É isso que permite falar desse
deslocamento referido por Suassuna. Fala-se assim de uma inegável diferença entre os juízos de
conhecimento e os juízos de gosto, que são, na verdade, os juízos estéticos, com os quais
julgamos o que é belo a partir daquilo que nos apraz de uma forma desinteressada. Deste modo,
os juízos estéticos “decorrem de uma simples reação pessoal do contemplador diante do objeto,
e não de propriedades deste”.10 Isto nos remete a diferença que o próprio Kant faz entre o juízo
de gosto e a nossa faculdade de conhecer em sua Crítica da faculdade do juízo:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto
em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao
sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de
conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo
fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. Toda referência das representações,
mesmo a das sensações, pode, porém, ser objetiva (e ela significa então o real de uma
representação empírica); mas no qual o sujeito sente-se a si próprio o modo como ele é afetado
pela sensação.11

No parágrafo seguinte, Kant continua com a sua reflexão, fazendo a distinção deste juízo
de gosto com o juízo de conhecimento:

Apreender pela sua faculdade de conhecimento (quer em um modo de representação claro ou


confuso) um edifício regular e conforme a fins é algo totalmente diverso do que ser consciente
desta representação com a sensação de complacência. Aqui a representação é referida inteiramente
ao sujeito e na verdade ao seu sentimento de vida, sob o nome de sentimentos de prazer ou
desprazer, o qual funda uma faculdade de distinção e ajuizamento inteiramente peculiar, que em
nada contribui para o conhecimento, mas somente para mantém a representação dada no sujeito em
relação com a inteira faculdade de representações, da qual o ânimo torna-se consciente no
sentimento de seu estado.12

É preciso, no entanto, não confundir o juízo de gosto com o juízo sobre o agradável. Para
este último, assim como para o primeiro, a representação é referida inteiramente ao sujeito. No
entanto, não se trata de pensar no sujeito em seu sentido universal, mas singularizado naquele

8
Id.., Ibid., p. 49.
9
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. 2. ed. Recife : Ed. Universitária/UFPE, 1979, p. 67.
10
Id., Ibid., p. 67.
11
KANT, Immanuel. Op. cit., p. 47-48.

490
que sente o prazer ou o desprazer. Pelo juízo de gosto temos aquilo que, sem conceito, satisfaz
de uma forma universal. Trata-se aqui de pensar na universalidade sem conceito, diferente
daquela proposta pela faculdade do conhecimento. Assim, o que funda a satisfação no belo, para
que se possa falar de um universal sem conceito, é a pressuposição de um prazer ou desprazer
que transcende o indivíduo, estando igualmente nos outros. Nisto está a diferença entre o juízo
de gosto e o juízo sobre o agradável.
Para que se tenha o juízo sobre o agradável, basta que algo agrade a mim mesmo,
independente de agradar a outra pessoa. No momento que afirmo que um determinado alimento
me agrada, não quero com isso que este mesmo alimento possa agradar igualmente a outro. O
mesmo posso dizer quando afirmo que uma determinada flor me agrada. Faço esta afirmação
pensando somente no que sinto em relação a esta flor. Ao afirmar que uma certa flor me agrada,
não estou querendo que ela seja agradável igualmente para as outras pessoas. Mas outro é o meu
comportamento, se afirmo que a flor agrada. Neste caso, estou afirmando que a flor deve
agradar de uma forma universal, havendo assim a exigência de que agrade assim
universalmente; falo da beleza da flor como algo que está posto de uma forma objetiva, valendo
para mim e para os demais seres humanos.
Assim podemos falar do que agrada como sendo bom ou belo, tomando-se aqui o bom
como sendo aquilo que nos é agradável, que se diferencia do que é bom apreciado por si
mesmo, ao mesmo tempo em que se identifica com o que chamamos deleite. O que é belo é o
que nos apraz, que nos dá uma satisfação desinteressada, concebida por nós mesmos como algo
que assim deva ser para todos os seres humanos. Quando digo: “Esta rosa é bela”, estou dizendo
que ela é bela para todos, ficando assim posta a sensação humana diante dela e não somente a
minha sensação, como ocorre quando digo: “Este alimento é bom”. Neste último caso, trata-se
de uma reação minha; é a minha sensação que é determinante para dizer se é ou não bom o
alimento. Isto não terá que ter validade universal.
Podemos, a partir desse entendimento de Kant sobre o que se pode ter como belo, pensar
sobre o significado da elegância referida por Ellis como sendo algo requerido pelo gosto das
mulheres. Não se trata, em princípio, de algo que deva agradar de uma forma universal, mas que
é do interesse de determinados seres humanos: as mulheres. Para que fosse compreendida como
belo, no sentido kantiano, teria que ser algo considerado belo universalmente, havendo assim
uma exigência por parte de todos os seres humanos que fosse identificado com o que apraz a
todos. Mas o entendimento do autor referido nos leva a acreditar que não seja assim o que está
posto para os seres humanos em geral. Até se pode compreender ainda a possibilidade de
controvérsias entre as próprias mulheres, quando pensamos em culturas diferenciadas. Mas,

12
Id. Ibid., p. 4849.

491
independentemente de ser exigência de um grupo humano ou não, a elegância nos é posta para
ser de validade universal, tornando-se uma exigência do gosto feminino e masculino, mas com
ênfase às razões que parecem ser de ordem masculina em relação ao belo que se quer na mulher.
A elegância nos leva a pensar a moda como arte, mas convém pensar a arte como produto
do espírito. Deste modo, ao invés de ser considerada como uma imitação da natureza, como
queria Kant, Hegel pensa que o espírito pode nos proporcionar algo mais autêntico que uma
imitação daquilo que é uma outra produção do espírito. Trata-se, pois, de pensar no que se pode
entender por beleza, identificando-se o belo com o que é verdadeiro e que é expresso no espírito
como idéia absoluta. Assim a beleza é “um certo modo de exteriorização e representação da
verdade”. O pensamento conceitual forma conceitos, e a beleza se oferece a este pensamento
através de tudo aquilo que lhe diz respeito. Então a beleza, segundo Hegel, “não constitui uma
abstração do intelecto mas sim o conceito em si, concreto e absoluto, a idéia absoluta”.13
Vemos, deste modo, o contraposto do que é afirmando por Kant, quando pensa a beleza como o
universal que apraz de uma forma desinteressada e sem conceito.
Há, como vemos, uma polarização entre Kant e Hegel. Este último chama a atenção para
um equívoco da “opinião corrente”: tomar a beleza criada pela arte como inferior a que é
própria da natureza, sendo mérito da arte aproximar a beleza artística da natural. “Se, na
verdade, assim acontecesse”  nos diz Hegel , “ficaria excluída da estética, compreendida
como a ciência unicamente do belo artístico, uma grande parte do domínio da arte”.14 Ao
contrário  continua ele , “o belo artístico é superior à natureza”, comunicando “esta
superioridade aos seus produtos e, por conseguinte, à arte; por isso é o belo artístico superior ao
belo natural”.15 Há esta superioridade do belo artístico, porque tudo que é do espírito é superior
ao que é da natureza: “A pior das ideias que perpasse pelo espírito de um homem, é melhor e
mais elevada do que uma grandiosa produção da natureza  justamente porque essa ideia
participa do espírito, porque o espiritual é superior ao natural”.16
Sendo a arte um produto do espírito, conforme o exposto pelo pensamento hegeliano, o
fim último da arte é despertar a alma. Portanto, para Hegel, “o fim dela consiste em revelar à
alma tudo o que a alma contém de essencial, de grande, de sublime, de respeitável e de
verdadeiro”.17 Assim a arte, oferecendo-nos a experiência da vida real em um dos seus aspectos,
nos transporta para

13
HEGEL, G. W. Friedrich. Estética. Tradução Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa : Guimarães
Editores, 1993, p. 60.
14
Id. Ibid., p. 2.
15
Id. Ibid., p. 2.
16
Id. Ibid., p. 2.

492
situações que a nossa pessoal experiência nos não proporciona nem proporcionará jamais,
situações de pessoas que ela representa, e assim, graças à nossa participação no que acontece a
essas pessoas, ficamos mais aptos a sentir em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do
homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito, o que revolve o peito e agita o espírito
humano.18

Assim, segundo Hegel, compete à arte representar através da aparência, importando


apenas o despertar do sentimento e da consciência de algo mais elevado. Trata-se, pois, do seu
poder para despertar o humano no homem, despertando sentimentos adormecidos “em presença
dos verdadeiros interesses do espírito”. Assim, segundo ele, “a arte actua revolvendo, em toda a
sua profundidade, riqueza e variedade, os sentimentos que se agitam na alma humana, e
integrando no campo da nossa experiência o que decorre nas regiões mais íntimas desta alma”.19
A partir do que pensam Kant e Hegel a respeito do belo e da arte, perguntamos pelo que
se tem como arte hoje. Se nos voltamos para a música, deparamo-nos com um barulho que é
posto no mercado como belo. Mas não é nossa intenção aqui falar deste produto, mas
simplesmente do belo que é posto no mercado para o consumo, o que tem sido feito em larga
escala através da moda que é veiculada pela mídia. Daí trazermos a questão da elegância para a
nossa reflexão, quando tratamos do belo que se consume a partir de um preço.
“Terá ela em sua linda cabecinha outro pensamento, além de roupas, roupas e roupas?”
Esta pergunta feita pelo homem ao se deparar com a elegância da mulher, conforme vimos nas
palavras de Albert Ellis, já nos diz desse preço do belo que está posto para o consumo. Assim,
pensar neste belo é pensar naquele belo vestido, naquela bela blusa ou naquela bela saia, por
exemplo, com que se veste a moça para brilhar na passarela e encantar os corações. Mas trata-se
também de vestes que são acompanhadas de belos sapatos (ou sandálias), bem como de um belo
penteado e de uma bela maquiagem, ou seja, de tudo aquilo que é necessário à elegância. Para
esta, voltam-se as mulheres que não só olham, mas também se olham e comparam-se, pensando
no que é preciso fazer para aperfeiçoar sua beleza. Recorrem, então, a coisas belas que lhes
embelezarão ainda mais, o que lhes custará um preço.
O aparecimento de uma pessoa em toda sua elegância não terá que ser, necessariamente, a
expressão do que agrada de uma forma desinteressada, no modo de entender kantiano, nem terá
que ser uma pura manifestação do espírito, no modo considerado por Hegel. Este, segundo
Theodor W. Adorno, foi o primeiro a se opor a uma estética de resultados que incluía o próprio
Kant, não sendo a arte “um mecanismo para instruir ou para ser, à Horácio, um deleite”.20

17
Id. Ibid., p. 16.
18
Id. Ibid., p. 16-17.
19
Id.,Ibid., p. 17.
20
ADORNO, Theodor W. A Ate é Alegre? In: RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN, Antônio
Álvaro Soares; PUCCI, Bruno. Teoria Crítica, Estética e Educação. Campinas-SP : Autores Associados;
Piracicaba-SP : UNIMEP, 2001, p. 12.

493
Apesar da inclusão de Kant em sua crítica, Adorno vê na fórmula kantiana de “finalidade
sem fim” a alusão à inserção da arte numa existência que contradiz, bem como na que se opõe.
Estando a arte entre o que contradiz e o que se opõe, “incorpora algo como liberdade no seio da
não liberdade. O fato de, por sua própria existência, desviar-se do caminho da dominação a
coloca como parceira de uma promessa de felicidade, que ela, de certa maneira, expressa em
meio ao desespero”.21 Há, pois, uma tensão que constitui a arte, que é a sua vibração entre a
seriedade e a alegria, no momento em que escapa da realidade em que está imersa.22
Não é essa “tensão” que constitui a elegância. Trata-se da moda que dita o que deve ou
não ser tomado como belo em um determinado momento. Não se trata de uma fórmula do belo
que se encontra no sujeito, segundo o entendimento kantiano, mas de uma fórmula que é
imposta pela indústria que quer vê no mercado novos produtos ao consumo. Trata-se, sim, da
difusão dos arquétipos de beleza que, num primeiro momento, são identificados em tudo que é
necessário à elegância, mas que, em última instância, é necessário a um belo corpo que logo é
confundido com o corpo da mulher, não excluindo-se desta elegância os corpos masculinos.
O belo, então, tem um preço. E é em função deste preço que se põe no mercado diferentes
artifícios que embelezam os corpos, sobretudo das mulheres, que disputam entre si o lugar da
mais elegante. Esquecem, inclusive, que a mais elegante nem sempre é a mais desejada,
conforme a afirmação de Albert Ellis, uma vez que não é para as vestes que o homem se volta,
mas para o corpo que ele quer nu. A lembrança disto pode significar, hoje, uma corrida para as
academias ou para as cirurgias plásticas, às vezes pensando-se nos milagres que possam operar
os exercícios físicos ou as cirurgias que se tornam também produtos para o consumo em função
do belo que se coloca à venda no mercado.
Difundem-se, através da mídia, um acúmulo de imagens como expressão do belo. E a
moda consiste na seleção dessas imagens que constituem a elegância. Naomi Wolf, vê nisto
uma frenética acumulação de imagens que se transforma numa “alucinação coletiva reacionária
originada pela vontade de homens e mulheres desnorteados e atordoados com a rapidez com a
qual se transformam as relações entre os sexos: um baluarte de segurança contra a enchente das
transformações”.23 Essa alucinação vai cada vez mais adquirindo uma maior influência, bem
como uma maior abrangência, em conseqüência da manipulação do mercado em que é posta a
beleza por poderosas indústrias, sendo o custo desta beleza expressos em dólares:

 a das dietas, que gera 33 milhões de dólares por ano, a dos cosméticos, 20 bilhões de dólares, a
da cirurgia plástica estética, 300 milhões de dólares e a da pornografia com seus sete bilhões de

21
Id. Ibdi., p. 12.
22
Id. Ibid., p. 13.
23
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução
Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro : 1992, p. 20.

494
dólares  surgiram a partir do capital gerado por ansiedades inconscientes e conseguem por sua
vez, através da influência sobre a cultura de massa, usar, estimular e reforçar a alucinação numa
espiral econômica ascendente”.24

Com isso, diz-nos Wolf, a beleza passou a definir-se como beleza virtuosa, substituindo a
domesticidade virtuosa a que estava destinada a mulher. Esta nova definição de beleza surge
como imperativo do consumo, substituindo outros. Confirma-se assim o vínculo do belo a um
preço estabelecido como valor mercadológico, conformem as palavras da autora acima:

Como os homens usaram a “beleza” das mulheres como uma forma de moeda entre eles, idéias
acerca da “beleza” evoluíram a partir da Revolução Industrial lado a lado com idéias relacionadas
ao dinheiro, de tal forma que as duas atitudes são praticamente paralelas em nossa economia de
consumo. Uma mulher linda como um milhão de dólares, uma beleza de primeira classe, o seu
rosto é a sua fortuna. No mercado dos casamentos burgueses do século passado [séc. XIX], as
mulheres aprenderam a considerar sua própria beleza como parte desse sistema econômico.25

Põe-se (ou impõe-se) um padrão de beleza definido como arquétipo a todos os seres
humanos de uma forma indiscriminada. Isto confirma o entendimento de Adorno e Horkheimer:
existe um ar de semelhança que é conferido a tudo pela cultura contemporânea, firmando-se por
isso a massificação cultural. Isto ocorre à media em que se evidencia “a falsa identidade do
universal e do particular” demonstrada pela evidente unidade do macro e do microcosmo.26
Como produto posto no mercado, o belo é produzido em série. E não podemos esquecer a
produção em série a que o belo é submetido agora. Graças a isto, tem-se a massificação do que
se impõe como belo, convertido numa necessidade universal de consumo, parecendo ser oriunda
dos próprios consumidores. Ficam os consumidores crentes de que são senhores de suas
necessidades, ao passo que são reduzidos apenas a um material estatístico, sendo eles
distribuídos “em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis”, em
diferentes mapas de institutos de pesquisa.27
Diante do que se padroniza como belo fica a demanda. A oferta e a procura vão
conferindo o caráter de mercadoria para o belo identificado nas coisas e nos corpos que seguem
a um padrão de beleza. Para que esta se consolide, faz-se necessário recorrer a recursos
importantes: à mídia, como instrumento, e aos jovens, matéria a ser moldada pela fórmula
proposta. A respeito desta fórmula, Rosa Maria Bueno Fischer nos diz o seguinte:

Uma das regras fundamentais da mídia é de expor os corpos e insistentemente falar deles. O corpo
é o grande alvo. Os médicos e especialistas que respondem nos jornais e revistas, sobre o corpo de

24
Id. Ibid., p. 21.
25
Id. Ibid., p. 25.
26
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Tradução por Guodo Antonio de Almeida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985, p. 113-114.
27
Id. Ibid., p. 116.

495
meninos e meninas, tratam em suas respostas das dúvidas mais íntimas  o seio pequeno ou
grande demais, os temíveis pêlos no rosto da menina, o reduzido ou avantajado tamanho do pênis
do rapaz. Inevitáveis, lá estão as perguntas de sempre sobre normalidade (“Eu, afinal, sou
normal?”) e sobre a possibilidade de transformar o corpo, para que ele tenha a forma e a aparência
exigidas pelo nosso tempo.28

A isto, ela acrescenta o seguinte:

A mídia fala ininterruptamente dos corpos, e o discurso publicitário sabe apanhar bem essa
concretude, colocando o corpo, sempre belo, nos espaços cotidianos ou mesmo nos espaços
virtuais, associando-o ao que há de mais prosaico em nossa intimidade diária, como vemos nas
belas imagens da quase menina do cigarro Free, defendendo seus sonhos, ou na terna seqüência do
comercial em que a pré-adolescente se reconhece em tantos outros eus também míopes e de
óculos, lanchando no McDonald’s. As revistas femininas, como a Capricho, ensinam os erros do
corpo, com graça, bom humor e com uma sofisticada agressividade  “se você tiver uma
barrigudinha daquelas tipo gelatina, adeus para essa mini-blussa”, “com essas pernas curtinhas, ela
jamais poderia usar uma sai larga e curta como esta aí”  embora com a segura promessa da
possibilidade de mudança (“Antes ela era assim. Agora, veja a transformação”).29

Graças, pois, a essa investida da mídia, torna-se compreensível o exemplo apresentado


por Albert Ellis. Associado à elegância está um conjunto de artifícios utilizados pela indústria
cultural para que se consolide um padrão no modo de vestir das mulheres como sendo a fórmula
para toda beleza e não um puro e simples gosto das mulheres que orientam o seu modo de vestir
para agradar os homens. Gera-se com isto uma necessidade para as mulheres com se fosse
exigência de sua própria natureza, parecendo ser necessidade sua. Nisto está o “triunfo da
publicidade na indústria cultural” que, para Adorno e Horkheimer, é “a mimese compulsiva dos
consumidores, pela qual se identificam as mercadorias culturais que eles, ao mesmo tempo,
decifram muito bem”.30 Portanto, concordamos com Fischer, quando afirma ser a principal
“lição de vida” a que somos convidados a aprender hoje pela mídia, bem como pela publicidade
e os discursos médicos, “é a de que devemos ser e ter, obrigatoriamente, um corpo jovem. Belo
e digno de exemplo é aquele adulto que se conserva fisicamente jovem, embora se continue
afirmando que importa mesmo é a “beleza interior””.31
Somos, pois, remetidos a um belo que tem um preço. E este preço é expresso em moedas-
correntes, conforme vimos nas palavras de Naomi Wolf. Todavia, no cotidiano, busca-se este
belo sem que se dê conta de que se paga caro por um produto, cuja necessidade é oriunda da
indústria cultual que determina a fórmula do que deve ser consumido como belo. Esta fórmula é
expressa pela moda que dita os estilos que são normalmente expostos em diferentes revistas e

28
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e produção de sentidos: a adolescência em discurso. SILVA, Luiz
Heron da (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis : Vozes, 1998, p. 431.
29
Id. Ibid., p. 432.
30
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, p. 156.

496
outdoors, mas sobretudo nas revistas femininas que trazem obrigatoriamente em suas páginas as
“devidas” recomendações de como deve ser ou não as vestimentas mais apropriadas a cada
momento e para as ocasiões mais específicas, todas elas tendo por fim a manifestação de um
belo que fica posto ao consumo.
Se tomarmos a moda como arte, somos até levados a pensar numa certa possibilidade de
se ver a reconciliação entre o princípio de prazer e o princípio de realidade nessa promoção do
belo, conforme a proposição de Herbert Marcuse em Eros e Civilização. Tratar-se-ia de
reconciliar, a partir da moda, o impulso sensual com o impulso formal que são antagônicos entre
si.32 Faz-se, sim, necessário se pensar a arte nesta perspectiva de Marcuse, mas não tratamos
disto quando pensamos o belo embalado em diferentes formas, sendo reduzido a um objeto
descartável que tem um preço na hora de se pôr à venda, para, logo depois, ser descartado,
dando lugar ao similar. Não passa da condição de uma mercadoria qualquer que é posta para um
rápido consumo, dando lugar à procura a que lhe substitui. Assim, perguntamos se ainda faz
sentido a seguinte afirmação:

Para que seja produzido o capital é preciso que haja exploradores, explorados e consumidores. Só
haverá exploradores e explorados quando os empregadores deixarem de pagar aos empregados
uma certa quantia de tempo do seu trabalho. É esse trabalho não-pago que será transformado em
mais-valia. Porém isso não seria possível sem aqueles que consomem. Então é preciso que haja um
estímulo para o consumo.33

A esta afirmação, feita por mim na década de 1980, acrescento o seguinte: para que se
possa estimular cada vez mais o consumo nada melhor do que associar ao que se quer
consumido à imagem que possa traduzir o belo ou que pelo menos assim pareça ser. Recorre-se,
pois, à moda que, por sua vez, padroniza o vestuário e dos demais acessórios que constituem a
elegância, bem como a beleza do próprio corpo, o mais visado ao se buscar o belo a um
determinado preço.

31
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Op. cit., p. 428.
32
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
Tradução por Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro : Zahar, 1981, p. 171.
33
DIONIZIO NETO, Manoel. A presença do hedonismo e do pragmatismo na visão ética
contemporânea. Maceió : Ediculte, 1988, p. 125.

497
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. A ate é alegre? In: RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN, Antônio


Álvaro Soares; PUCCI, Bruno. Teoria crítica, estética e educação. Campinas-SP : Autores
Associados; Piracicaba-SP : UNIMEP, 2001. p. 11-18. (Teoria crítica; 3).
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução por Guodo Antonio de Almeida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985. 356
p. Tradução de: Dialektik der aufklärung – Philosophische Fragmente.
DIONIZIO NETO, Manoel. A presença do hedonismo e do pragmatismo na visão ética
contemporânea. Maceió : Ediculte, 1988. 142 p.
. O belo. Novidade. Maceió, p. 18, out-nov. 1988.
. O conceito de arte em Kant. Livre pensar: Revista de Ciências Sociais do Campus
V da UFPB, Cajazeiras-PB, n. 01, p. 31-38.
ELLIS, Albert. O caminho para a libertação feminina: a mulher pode e deve escolher. Tradução
por Aydano Arruda. São Paulo : IBRASA, 1981. 208 p. Tradução de: The intelligen woman’s to
dating and mating.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e produção de sentidos: a adolescência em discurso.
SILVA, Luiz Heron da (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis : Vozes,
1998, p.424-439.
HEGEL, G. W. Friedrich. Estética. Tradução Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa :
Guimarães Editores, 1993. p. 680. (Coleção Filosofia e Ensaios). Tradução de: Vorlesungen
über die ästhetik.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Tradução Valério Rohden e António
Marques. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995. p. 34. (Biblioteca de Filosofia).
Tradução de: Critik der urteilskraft und schriften.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
Tradução por Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro : Zahar, 1981. p. 232. (Filosofia). Tradução
de: Eros and civilization – A philosophical inquiry into Freud.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. 2. ed. Recife : Universitária/UFPE, 1979. p. 344.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Tradução Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro Rocco : 1992, p. 440. Tradução de: The beauty
myth: how images of beauty are used against women.

498
Exibicionismo, voyeurismo e padrões estéticos contemporâneos

Marcio Roberto Santim da Silva


PUC/SP

O presente trabalho faz parte da tese que estou desenvolvendo sobre a relação entre os
impulsos voyeur/exibicionista e os padrões estéticos difundidos na sociedade contemporânea. A
indústria cultural - mediante diversas produções como telenovelas, revistas e filmes – tem
difundido amplamente as academias como meio para se alcançar os padrões estéticos e salutares
considerados, respectivamente, ideais para a constituição da beleza corporal e do bem-estar físico e
psíquico dos indivíduos.
Com a constante presença da indústria cultural no cotidiano das pessoas, principalmente a
TV que atinge praticamente toda a população brasileira, os padrões de beleza têm se tornado muito
homogêneos.
Mas, apesar de desejar, a maior parte dos indivíduos não consegue se aproximar
efetivamente desses padrões, quer por não gostar de exercícios físicos quer devido a suas próprias
limitações físicas, como por exemplo, a estatura. Outras dificuldades poderiam ser citadas tais
como o fato de serem poucas as pessoas que dispõem de tempo livre e condições financeiras para
passar algumas horas malhando o corpo nas academias.
O que acaba restando a esses indivíduos é o prazer de ver o desfile de corpos esculpidos
nos diversos meios de comunicação ou nas próprias academias. Dessa forma, a prática do
voyeurismo torna-se mais acessível se comparada ao exibicionismo.
Voyeurismo é um termo de origem francesa (voyeurisme) cujo significado etimológico do
radical voyeur é: “{fr. Lit. ‘o que vê’)...etim fr. Voyeur (1740) ‘pessoa que assiste a algo por
curiosidade’, (1883) ‘pessoal que se excita ao ver a nudez ou o ato sexual de outrem’, der. De voir
‘ver’ (Houaiss & Villar, 2001, p. 2883)
Como podemos observar, temos uma importante diferença do significado atribuído à
palavra voyeur se compararmos os séculos XVIII e XIX. Neste último século houve uma maior
especificação do termo ao restringi-lo à dimensão sexual. Este último significado também foi
sedimentado pelos estudos realizados posteriormente pela Psicanálise freudiana a respeito do
fenômeno e perdura atualmente, conforme veremos a seguir na classificação psiquiátrica.

499
Porém, Houaiss & Villar no item 2 referente à palavra voyeurismo ampliam o seu
significado, contemplando um pouco, a meu ver, o sentido atribuído em 1740, ou seja, não
restringindo-se à dimensão sexual.

Voyeurismo
1 – Psicop. desordem sexual que consiste na observação de uma pessoa no ato de
se despir, nua, ou realizando atos sexuais e que não se sabe observada; mixoscopia.
2- p. ext. forma de curiosidade mórbida com relação ao que é privativo, privado ou
íntimo [o v. invasor de alguns internautas]. (Houaiss & Villar, 2001, p. 2883).

Esta última definição somada ao item 1 da definição abaixo de exibicionismo mostra que
ambas palavras bem como suas variantes, já estão sendo utilizadas no cotidiano com sentidos que
extrapolam o âmbito sexual / científico e esbarram no linguajar pertencente ao senso comum.
Os termos exibicionismo e exibicionista segundo o dicionário etimológico Houaiss
significam respectivamente:

Exibicionismo
1 - Mania de ostentação ou de exibição [muita gente se veste bem por puro
exibicionismo] 2 – Psicop.: forma de perversão sexual que consiste em exibir a
própria nudez, especialmente as partes sexuais. Etim: exibição sob a f. rad.
exibicion + ismo, talvez por influência do fr. exhibitionisme (1866) “id”, ver –ib-.
1913 exibicionismo, 1913 exhibicionismo. (Houaiss & Villar, 2001, p. 1284)

Exibicionista
1 – que ou aquele que exerce o exibicionismo. 2- Psicop. relativo a ou pessoa dada
à prática do exibicionismo. Etim.: exibição retomado na f. exibicion + ista, talvez
por infl. do fr. exhibitioniste (1877) “id” ou do ingl. exhibitionist (1821) “id” ver –
ib-; f. hist. 1912 exibicionista, 1913 exhibicionista. (Houaiss & Villar, 2001, p.
1284).

Apesar de o termo exibicionismo não apresentar diferenças de sentido etimológico em


épocas específicas, como as encontradas na definição de voyeurismo, no campo das ciências da

500
psique o exibicionismo também tem sido tratado predominantemente como uma forma de desvio
sexual, isto é, como perversão.

A maior parte dos referenciais bibliográficos, que não são muitos, a respeito do
exibicionismo e voyeurismo provêm da Psiquiatria e da Psicanálise. Do lado da Psiquiatria,
encontramos uma maior preocupação em estabelecer critérios diagnósticos a fim de saber se
indivíduos com comportamentos relacionados ao prazer de ver ou exibir podem ou não ser
enquadrados nas referidas psicopatologias.

O exibicionismo e o voyeurismo são classificados no Compêndio de Psiquiatria de Kaplan


& Sadock como parafilias que significam segundo o Diagnostic and stastical manual of mental
disorders (DSM-IV): “fantasias e anseios sexuais recorrentes, intensos e sexualmente excitantes que
envolvem objetos não humanos, crianças ou pessoas sem consentimento, ou o sofrimento ou
humilhação reais, próprios ou do parceiro” (apud Kaplan & Sadock, 1999, p. 1446).
Neste mesmo Compêndio também encontramos os critérios diagnósticos para voyeurismo e
exibicionismo, extraídos do DSM-IV, respectivamente, a seguir descritos:

Voyeurismo
A. Durante um período mínimo de 6 meses, fantasias sexualmente excitantes
recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou comportamentos envolvendo o ato de
observar uma pessoa que está nua, a se despir ou em atividade sexual, sem suspeitar
que está sendo observada.
B. As fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou
em outras áreas importantes da vida do indivíduo. (Kaplan & Sadock, 1999, p.
1454)

Exibicionismo
A. Ao longo de um período mínimo de 6 meses, fantasias, anseios sexuais e
comportamentos sexualmente excitantes recorrentes e intensos, envolvendo a
exposição dos próprios genitais a um estranho insuspeito.
B. As fantasias, anseios ou comportamentos sexuais causam sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou

501
em outras áreas importantes da vida do indivíduo. (Kaplan & Sadock, 1999, p.
1454).

O elemento essencial que podemos observar na classificação destas psicopatologias


é a dimensão sexual. Os atos de olhar e exibir devem conter necessariamente o sexo genital
como objeto de desejo.
Na obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud também destacou os elementos
sexuais como determinantes para a elaboração dos conceitos de voyeurismo e exibicionismo
enquanto tipos específicos de perversão sexual. Considerava normal a presença desses impulsos1 na
sexualidade humana. O problema surgia em três hipóteses: quando esses impulsos se fixavam à
região genital; ligavam-se a objetos repugnantes e deixavam de ser parte do conjunto de atos
preliminares característicos de uma relação amorosa normal, isto é, tornavam-se mais importantes
que o prazer sexual genital chegando até mesmo a substituí-lo.

...o prazer de ver [escopofilia] transforma-se em perversão (a) quando se restringe


exclusivamente à genitália, (b) quando se liga à superação do asco (o voyeur --
espectador das funções excretórias), ou (c) quando suplanta o alvo sexual normal,
em vez de ser preparatório a ele. Este último é marcantemente o caso dos
exibicionistas que, se posso deduzi-lo após diversas análises, exibem seus genitais
para conseguir ver, em contrapartida, a genitália do outro. (Freud, 2002, p. 35)

Importante observar que no final desta citação, Freud sugeriu a existência de uma
significativa aproximação entre os impulsos exibicionista e escopofílico, comparando-os
posteriormente com outro par de impulsos que via de regra sempre aparecem juntos, conhecidos
como sado-masoquismo.
O que chamou sua atenção para fazer esta comparação foi a presença, tanto em um par
quanto noutro, das dimensões ativa e passiva que formavam um complexo indissociável. Em suas
palavras:

1
Utilizarei ao longo do trabalho os termos impulso e pulsão como sinônimos. Segundo Freud: Por “pulsão”
podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação
que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de
fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. (Freud, 2002, p. 46).

502
Na perversão que aspira a olhar e ser olhado distingue-se um traço curiosíssimo, do
qual nos ocuparemos ainda mais intensamente na aberração a ser examinada a
seguir2, ou seja: nela, o alvo sexual apresenta-se numa configuração dupla, nas
formas ativa e passiva. (Freud, 2002, p. 36).

As formas ativas e passivas referem-se aos comportamentos manifestos que caracterizam


uma ou outra patologia, ou seja, a forma ativa qualificando o exibicionismo – sadismo e a passiva o
voyeurismo – masoquismo.
Porém, segundo Freud, no âmbito do inconsciente o caráter mais evidente dos traços
característicos de uma dessas perversões não exclui aquelas referentes ao de seu par oposto.

Sempre que se descobre no inconsciente uma pulsão desse tipo, passível de ser
pareada com um oposto, em geral pode-se demonstrar que este último também é
eficaz. Toda perversão “ativa”, portanto é acompanhada por sua contrapartida
passiva: quem é exibicionista no inconsciente é também, ao mesmo tempo, voyeur;
quem sofre as conseqüências das moções sádicas recalcadas encontra outro reforço
para seu sintoma nas fontes da tendência masoquista” (Freud, 2002, p. 45).

Outra comparação feita por Freud entre o sadomasoquismo e voyeurismo/exibicionismo diz


respeito à natureza dessas pulsões. Os dois pares são descritos como pulsões parciais, em razão de
se originarem de fontes somáticas específicas – zonas erógenas - e se dirigirem a alvos distintos.

Não obstante, na escopofilia e no exibicionismo o olho corresponde a uma zona


erógena; no caso da dor e da crueldade como componentes da pulsão sexual, é a
pele que assume esse mesmo papel – a pele, que em determinadas partes do corpo
diferenciou-se nos órgãos sensoriais e se transmudou em mucosa, sendo assim a
zona erógena [por excelência] (Freud, 2002, p. 47).

As pulsões parciais podem ser consideradas secundárias visto que são derivadas dos
impulsos primários, Eros e Tanatos3.

2
Freud refere-se ao sadismo-masoquismo. Nota do autor desta pesquisa.
3
Termos gregos utilizados pela psicanálise para designar respectivamente as pulsões de vida e morte na
última teoria freudiana das pulsões que substituiu a teoria das pulsões sexuais e de autoconservação.

503
Devemos ponderar também que para Freud perversão – entendida basicamente como um
desvio da libido frente à meta genital - não significa necessariamente a manifestação de uma
psicopatologia. É comum no gênero humano a presença de impulsos pervertidos, ainda mais, na
minha opinião, se pensarmos em sua atuação fora do terreno sexual.
O masoquismo é importante, por exemplo, quando uma criança está doente e precisa aceitar
tomar um medicamento amargo para se curar. Os impulsos sádicos por sua vez também se
apresentam nos mais variados momentos atuando para a manutenção da vida, entre eles poderíamos
citar o sacrifício de seres vivos – vegetais ou animais – para saciar a fome.
Quanto aos impulsos pervertidos nas relações amorosas, Freud afirma:

Nenhuma pessoa sadia, ao que parece, pode deixar de adicionar alguma coisa capaz
de ser chamada de perversa ao objetivo sexual normal, e a universalidade desta
conclusão é em si suficiente para mostrar quão inadequado é usar a palavra
perversão como um termo de censura (Freud, 1972, p. 163).

Desta forma, foi difícil para a psicanálise freudiana estabelecer a fronteira entre o normal e
o patológico nas perversões. No entanto, Freud (2002, p. 39) menciona que determinados
indivíduos têm alvos sexuais tão distantes da sexualidade normal que não poderiam deixar de ser
considerados comportamentos patológicos, como: lamber excrementos, abusar de cadáveres e
outras atividades envolvendo a superação da dor, vergonha e asco.

No caso do voyeurismo e exibicionismo, certamente essa fronteira não era tão nítida para
Freud apesar do seu esforço em delineá-la. As principais dificuldades que envolviam a distinção
entre o normal e o patológico na atuação desses impulsos estavam além da presença do olhar e
exibir como fatores excitantes nas relações sexuais. A sublimação representada pela apreciação
estética das criações artísticas também poderia ser considerada fundamentada por tais impulsos. Em
suas palavras:

A progressiva ocultação do corpo advinda com a civilização mantém desperta a


curiosidade sexual, que ambiciona completar o objeto sexual através da revelação
das partes ocultas, mas que pode ser desviada (“sublimada”) para a arte, caso se
consiga afastar o interesse dos genitais e voltá-lo para a forma do corpo como um
todo. (Freud, 2002, p. 35).

504
No rodapé desta mesma página, em nota de 1915, Freud acrescenta:

Parece-me indubitável que o conceito de “belo” enraíza-se na excitação sexual e,


em sua origem, significava aquilo que estimula sexualmente. [Há no original uma
alusão ao fato de que a palavra alemã “Reiz” é comumente usada no linguajar
técnico como “estímulo” e, na linguagem cotidiana, como “encanto” ou “atrativo”.]
Relaciona-se a isso o fato de jamais podermos achar realmente “belos” os próprios
genitais, cuja visão provoca a mais intensa excitação sexual. (Freud, 2002, p. 35)

Freud considerava que os impulsos sexuais inibidos em sua finalidade imediata estariam na
base das criações e contemplações estéticas. O responsável pela transformação destes impulsos é o
mecanismo psíquico da sublimação.
A sublimação, de maneira semelhante a outros mecanismos de defesa - projeção, formação
reativa e outros - decorre em um primeiro momento da repressão imposta aos impulsos pela cultura.
Sem a sublimação não teríamos cultura e conseqüentemente não nos constituiríamos indivíduos, no
sentido de um ser relativamente diferenciado dos demais e da própria natureza.
Os impulsos voyeur e exibicionista presentes tanto na apreciação quanto na criação estética
transformados pela sublimação – entendida como um mecanismo psicológico específico em que a
repressão social age a nível individual para transformar os impulsos cuja finalidade original era o
prazer imediato e individual em algo a ser estendido no tempo e compartilhado socialmente – são
essenciais para a formação humana.
No entanto, penso ser problemática a parte final dessa citação de Freud quando ele diz que
jamais poderemos achar realmente belos os próprios genitais. Para mim essa concepção é própria da
cisão entre razão e desejo operada no psiquismo pela cultura. Não resta dúvidas que em épocas
pretéritas esta cisão foi necessária para o desenvolvimento humano, mas não significa que deveria
continuar assim ad infinitum.
Diante do desenvolvimento material alcançado e do acúmulo de riqueza no mundo atual,
todos os indivíduos já poderiam, pelo menos em termos objetivos, levar uma vida mais voltada ao
prazer, isto é, um modo de vida em que Eros pudesse ter mais espaço para se desenvolver e se
expressar.
A concepção de feiura dos órgãos genitais decorre dos tabus sexuais que a cultura precisou
levantar para conter os prazeres primários a que eles poderiam levar. Isso causou uma ambivalência

505
em que podemos constatar na própria afirmação de Freud. Ora, a pergunta que faço é como
poderíamos nos excitar por algo que achamos feio.
Podemos argumentar que a cultura não foi suficientemente forte para apagar a atração
sexual porque necessitava de pelo menos um mínimo de excitação para que o sexo alcançasse sua
finalidade reprodutiva. Mas para conter a outra função do sexo que é o prazer em si mesmo livre do
compromisso de perpetuação da espécie, precisou criar-se uma imagem negativa dos órgãos
responsáveis por esse prazer.
Não é por acaso ou naturalmente que os órgãos sexuais são considerados feios do ponto de
vista estético, mas sim em razão de toda uma história de repressão a que eles estiveram submetidos.
Apesar de serem fenômenos distintos, de maneira semelhante à Freud penso que esses dois
impulsos fazem parte de um mesmo complexo psíquico e assim como dois pólos ora se aproximam
e ora se distanciam.
Um dos fatores que me levou a escolher os freqüentadores de academias para compor parte
da amostra desta pesquisa é o de que neles provavelmente esses dois fenômenos não aparecem
dissociados; os indivíduos que apresentam uma maior tendência para se exibir também podem
obter prazer mediante a observação de outros – seja para auto-afirmar sua suposta superioridade
física seja para admirar os atributos físicos alheios - e aqueles cujo prazer se encontra mais fixado
no olhar não abdicam do desejo de serem semelhantes ao seu objeto de investimento libidinal, isto
é, exibirem-se assim que se sentirem dentro dos padrões de beleza apresentados.
Outro ponto importante a ser destacado quanto à escolha dessa população é que o objetivo
desta pesquisa não é criar novos critérios para o diagnóstico do exibicionismo e voyeurismo,
contribuindo conseqüentemente para a manutenção dos enquadramentos psicopatológicos
individuais, mas sim examinar como esses impulsos psíquicos se desenvolvem e se manifestam
dentro de um determinado contexto social, por meio de práticas cotidianas exercidas pelos
indivíduos em seus momentos de lazer.
Como o voyeurismo e o exibicionismo são pulsões parciais comuns que se manifestam
precocemente na infância e se estendem ao longo da vida assumindo as mais variadas formas,
achamos importante a inclusão de um outro grupo nesta pesquisa para compararmos com os
praticantes de academias. Esse grupo é o de indivíduos sedentários que não praticam tipo algum de
atividade física com freqüência.
Considerando que os impulsos voyeur e exibicionista podem assumir as mais variadas
formas e o objetivo deste estudo é analisar especificamente uma de suas formas de manifestação,
isto é, sua relação com padrões estéticos contemporâneos, um dos objetivos será analisar dois

506
grupos distintos quanto à pratica de atividades esportivas para tentarmos observar se existem ou
não diferenças entre eles na apropriação dos ideais de beleza difundidos atualmente. Em outras
palavras, a pergunta é de como o chamado fenômeno do culto ao corpo é apropriado pelos
freqüentadores de academias e por indivíduos sedentários.
É importante também lembrar que nas academias o estudo dos comportamentos incitados
por esses impulsos é mais acessível por não se apresentarem em sua forma diretamente sexual.
Dados que, principalmente no caso dos voyeurs, poderiam ser mais difíceis de obter se a pesquisa
fosse realizada em um local cujas práticas estivessem relacionadas a atividades diretamente
sexuais, em razão do possível interesse desses indivíduos em garantir ao máximo sua privacidade e
anonimato.
As estimativas que mostram o número de academias e o seu potencial de crescimento são
significativas. Segundo a ACAD (Associação Brasileira de Academias) ainda não existem dados
estatísticos precisos sobre o número de academias e praticantes no Brasil.
Em nível nacional, há pouco tempo esse ramo do mercado começou a se organizar. As
estimativas iniciais são de que existam cerca de 7.000 academias espalhadas em todo o país,
empregando 120.000 pessoas. Admitindo-se uma média de 400 clientes por unidade, obtêm-se um
total de 2,8 milhões de pessoas que freqüentam academias (1,6 % da população brasileira), com um
faturamento anual de R$ 1,5 bilhões (mensalidade média estimada em R$ 45,00 – variando de
R$30,00 a R$220,00).
Para essa associação, trata-se de um mercado altamente pulverizado, constituído
essencialmente por operadores individuais de micro e pequenas empresas, com mínima estrutura
gerencial. Apenas atualmente começaram a despontar as primeiras redes de academias no mercado
brasileiro, com gestão profissionalizada.
Os dados mostrados pela Fitness Brasil4 conferem com alguns números acima expostos, ou
seja, segundo ela temos atualmente no Brasil cerca de 7.000 academias, com 2,8 milhões de
freqüentadores equivalente a 1,6% da população. Essa empresa afirma que o Brasil é o 4º mercado
mundial de academias de ginástica, mas não esclarece quais critérios embasam essa classificação,
tais como: proporção de freqüentadores/população, número de freqüentadores, valores
movimentados etc.
Dessa forma, não podemos negar o aumento da freqüência de pessoas em academias,
principalmente da classe média, que têm como um dos principais objetivos aproximar efetivamente

4
Empresa do ramos esportivo criada em 1990 pelo empresário Waldyr Soares com o objetivo de realizar

507
dos padrões estéticos difundidos. Boa parte do tempo livre dos indivíduos tem sido ocupado por
atividades físicas realizadas em academias.
A tirania dos padrões estéticos contemporâneos se reflete diretamente na formação dos
indivíduos e determina significativamente o desejo de adquirirem aquilo que lhes é imposto como
belo. O menosprezo pelo diferente, ou sua cooptação para torná-lo igual, podem ser consideradas
fortes tendências da sociedade contemporânea.
No entanto, essa violência exercida sobre o indivíduo não é imediata, mas se constitui por
meio de formas sutis e mediatas de controle social. Não temos a atuação direta de um Estado que
intenta eliminar o diferente, mandando-o para a câmara de gás, como por exemplo no nazismo. A
violência é internalizada para ser empregada pelos próprios indivíduos contra si e contra os outros.
O sarcasmo frente aos “gordinhos”, o preconceito contra os negros e deficientes são algumas das
atitudes que poderiam ser mencionadas para exemplificar o totalitarismo atual.
A concepção de beleza tem se constituído predominantemente de forma heteronômica, com
poucas possibilidades do belo se concretizar no particular; a parte é subjugada pelo todo. Dificulta-
se com isso a formação de indivíduos autônomos em que eles fossem o fim, ou seja, que lhes
dessem as condições necessárias para o desenvolvimento de sua subjetividade. Aquilo que a
sociedade coloca como belo é aceito, na maioria das vezes, como se fosse uma apreciação
autônoma do sujeito quando, na realidade, é a ele imposta.
O conceito de beleza que é constituído historicamente e produzido por determinadas
condições materiais, converte-se em algo inteiramente natural na sociedade administrada. É
fundamental a reflexão sobre até que ponto os exercícios físicos realizados nas academias são
experimentados autonomamente pelos indivíduos.
Penso que tais atividades apresentam condições em que a experimentação ocorre de forma
alienada e com pouca espontaneidade, pois o prazer envolvido na prática da atividade esportiva é
secundário. A integração - não no sentido positivo de convivência com o outro, mas no sentido
negativo de sacrificar sua subjetividade em nome do todo – passa a ser o fim e o prazer se restringe
muito mais a se tornar aquilo que se espera dele, isto é, na exibição de atributos conforme os
padrões estéticos vigentes. Essa é uma das características presente no exibicionismo cujo prazer se
vincula ao olhar do outro com a finalidade de impressioná-lo e conseqüentemente despertar a
admiração desejada. Fortemente relacionado com o narcisismo, no exibicionismo o objeto funciona

congressos, cursos e eventos destinados a capacitar e aprimorar profissionais da área da educação física.

508
apenas como espelho para refletir a suposta imagem de beleza projetada pelo sujeito, mas sem o
estabelecimento de relações efetivas entre sujeito e objeto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

x ADORNO, T. W. 1971. “A indústria cultural”. In: Comunicação e Indústria Cultural. Org.


Gabriel Cohn. S. Paulo: Companhia editora nacional.
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Rio de Janeiro: Imago.
x HORKHEIMER, M., ADORNO, T. W., 1985. Dialética do esclarecimento. Trad.
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Artmed.

509
Religião e cultura no pensamento de Erich Fromm

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo


Marcos Ayres Barboza

Erich Fromm (1900-1980), psicanalista e sociólogo, membro da primeira geração da


Escola de Frankfurt, em seus trabalhos, influenciado pelo enorme fascínio que possuía em
compreender a natureza humana, desenvolveu estudos que o levaram ao entendimento da
irracionalidade do comportamento humano, em especial devido às Guerras do século XX, como
a Primeira Guerra Mundial; as Revoluções Russa e Alemã; a Guerra Civil Espanhola, a Segunda
Guerra Mundial, a Corrida Armamentista, entre outras (BARBOZA, 2005).
O pensamento de Erich Fromm representa um grande avanço para a Psicologia,
sobretudo para o desenvolvimento da psicologia social, porém os livros escritos por ele foram
praticamente esquecidos pelo meio acadêmico. Na visão de muitos profissionais da área de
Psicologia, Erich Fromm escreveu apenas livros de auto-ajuda, obras que não devem ser
estudadas, nem mesmo pesquisadas, visto que suas idéias são vinculadas a uma concepção de
psicologia de senso comum e simplista, o que, de forma alguma, condiz com a relevância de
suas idéias ao desenvolvimento da psicologia de forma geral.
Pode-se afirmar, todavia, que Fromm desenvolveu uma concepção de psicologia de
cunho social (social) em uma época com forte predomínio da teoria comportamental. Seu
pensamento tem muito a contribuir para a história da Psicologia, especialmente para a história
da psicologia social, por causa do diálogo que estabelece com o pensamento de Karl Marx
(1818-1883) e Sigmund Freud (1856-1939). Fromm, nesse sentido, é um legítimo representante
do humanismo no campo da Psicologia.
Foi com a descoberta da psicanálise por Freud que surgiu o movimento de orientação
humanista na área da psicologia, em particular com a publicação, na Alemanha, das obras
Totem e Tabu, em 1912-1913 (1974a); O futuro de uma ilusão, em 1927 (1974b) e Mal-estar na
civilização, em 1930 (1974c). A psicanálise, a partir dessas obras, não apenas direcionou os
rumos da Psicologia como ciência, mas seus efeitos foram sentidos em quase todos os campos
do conhecimento científico. Passou a ser mais que um método de investigação psicológica de
uso restrito ao setting analítico. Ganhou proporções maiores, notadamente no campo da cultura,
o que lhe trouxe, em conseqüência, uma nova forma para o fazer psicológico. O método
freudiano de investigação deixou de ser uma psicologia individual para se tornar uma psicologia
de caráter social. Os escritos de Freud avançaram da interpretação das neuroses e dos sonhos
para uma leitura dos mais variados elementos culturais. As análises da personalidade humana

510
ultrapassaram os limites do modelo de ciências naturais, ocasionando grandes repercussões no
campo das ciências sociais. O modo de pensar a cultura desenvolvido por Freud fez que outros
campos do conhecimento repensassem a sua forma de produção de conhecimento; dentre eles,
pode-se citar a pedagogia, a psiquiatria, as artes e outros. Para essas áreas do conhecimento
humano, a teoria freudiana ofereceu novo significado e importância aos elementos subjetivos,
que para a psicologia comportamental não tinham sentido. Noutros campos da ciência, como a
filosofia, por exemplo, as contribuições de Freud fizeram os filósofos repensar o próprio
pensamento filosófico.
As idéias de Fromm não podem ser analisadas sem que se faça menção ao período em
que era membro da chamada Escola de Frankfurt, já que muito do que elaborou posteriormente
foi resultado de seus estudos preliminares lá realizados. A tarefa de Fromm era explicar os elos
entre a dinâmica psíquica, as bases econômicas e a expressão da superestrutura da ideologia na
sociedade contemporânea.
Ele percebeu que, para atingir seus objetivos, seria necessário estudar os fenômenos
individuais e sociais e, desse modo, compreendeu que o estudo das obras de Freud e Marx
seriam fundamentais em suas investigações sobre o comportamento humano. Ele “[...] queria
compreender as leis que governavam a vida do homem individual e as leis da sociedade - ou
seja, do homem em sua existência social” (FROMM, 1965a, p. 14). Seus estudos sobre a
psicanálise iniciaram-se na década de 1920, e foram concluídos por volta de 1927. A obra Der
Sabbat, publicada naquele ano, foi um de seus primeiros estudos sobre psicologia profunda.
Nela já demonstrava o seu profundo conhecimento dos conceitos de interpretação analítica
desenvolvidos por Sigmund Freud (BARBOZA, 2005).
Erich Fromm, na década de 1930, foi para os Estados Unidos juntamente com os demais
membros da Escola de Frankfurt por temerem as conseqüências de uma possível Guerra
Mundial que se avizinhava. Nessa mesma época, em razão de uma crise financeira que abateu
os fundos do Instituto, foi obrigado a se afastar de sua função de pesquisador. Nos anos
posteriores desenvolveu suas obras mais importantes, dentre elas O Medo à Liberdade, 1941
(1967); Meu Encontro com Marx e Freud, 1962 (1965a); Análise do Homem, 1947 (1966a);
Psicanálise e Religião 1950 (1966b); Psicanálise da Sociedade Contemporânea, 1955 (1965b) e
Conceito Marxista do Homem 1961 (1983).
Nessas obras, Erich Fromm compôs uma visão sobre a alma humana que marcou a
Psicologia e a Psicanálise de modo que seu nome passou a figurar entre os grandes clássicos das
duas áreas. Em todas elas, pode-se notar um profundo e instigante humanismo e uma tentativa
de construir uma visão autônoma de homem e de mundo, tomando por base as grandes correntes

511
de pensamento acerca do homem e da sociedade de seu tempo, especialmente o marxismo e a
psicanálise.
Em sua obra Conceito Marxista do Homem, publicada nos Estados Unidos em 1961,
Erich Fromm desenvolveu uma análise da obra Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de Marx
e Engels, publicada em Berlim em 1932. Segundo Fromm, o texto de Marx e Engels representa
um protesto contra a alienação humana pela divisão do trabalho, a alienação humana em relação
a si mesmo e a transformação do homem em mercadoria. A alienação é a doença do homem
moderno. A cultura, no processo de alienação, tem um papel fundamental. Esta, a serviço da
ordem e da manutenção da estrutura de organização social capitalista, estimula a prática entre os
indivíduos do consumismo desenfreado, como um passo à felicidade. Para ele, a mídia também
tem um papel de destaque, já que contribui para o processo de alienação e de adaptação do
homem às condições de vida de sua época. A função do caráter social é moldar o
comportamento dos indivíduos de acordo com os valores morais burgueses (FROMM, 1983).
As análises de Fromm sobre a cultura apontam que à escola, como um espaço de
formação cultural, cabe o treinamento necessário de adaptação do homem à sociedade. Para ele,
na sociedade burguesa, a formação cultural deixa de significar o desenvolvimento integral dos
indivíduos, de compreensão de si mesmo, do mundo e do conhecimento produzido em todas as
áreas da ação humana. A cultura, afirma Fromm, não se limita apenas ao processo de adaptação
do homem à sociedade; aliás, tem um caráter mais ativo, visto que representa a responsabilidade
consciente do agir humano sobre o seu trabalho, da compreensão de si próprio e da natureza. O
processo de industrialização vinculado ao processo de urbanização da vida humana contribui
para a formação de trabalhadores em áreas específicas de curta duração para uma rápida
inserção do trabalhador na indústria. O que não depende de uma formação cultural que
desenvolva integralmente o ser humano. O processo de industrialização dos meios de produção
trouxe e traz grandes problemas ao processo de formação cultural, em particular à educação.
Isso porque a necessidade de habilidades técnicas e manuais foi muito valorizada pelo modo de
produção capitalista, o que exigiu formas mais flexíveis de educação humana. O pensamento
desenvolvido por Marx, especialmente o seu conceito de homem, afirma Fromm, significa a
necessidade de um repensar a formação intelectual dos indivíduos. Significa também a
emancipação humana por meio do discernimento e da esperança.
Nesse texto, Fromm evidencia alguns equívocos de interpretação das obras escritas por
Marx. Segundo ele, as obras de Marx são referências em vários campos do conhecimento
científico; contudo, muitos daqueles que fizeram menção às suas idéias jamais leram sequer
uma linha de suas obras e os equívocos foram vários.

512
O conceito de materialismo empregado por Marx e Engels foi um dos que sofreu
deformações. Para muitos, materialismo e idealismo significavam a mesma coisa. Fromm
(1965a) argumenta que o conceito de “materialismo” e de “idealismo” apresentam distinções no
campo da filosofia. Os significados não coincidem; aliás, são opostos. Na filosofia, o conceito
de idealismo significa que os pensamentos humanos têm sua origem nas idéias e não são um
produto da atividade material, conforme argumentos de Marx e Engels. Nas análises desses
autores, o conceito de materialismo quer dizer que:

[...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam nem
daquilo que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na
representação de outrem para chegar aos homens em carne e osso; parte-se
dos homens, da sua actividade real. É a partir do seu processo de vida real
que se representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões
ideológicas deste processo vital (MARX; ENGELS, s/d, p. 26).

Marx (1982), em seu texto O Capital: crítica da economia política publicado em 1867,
estudou o modo de produção do sistema capitalista e as relações de produção e circulação de
mercadorias tomando por base a análise da produção industrial já estabelecida na Inglaterra. Seu
objetivo era investigar a produção material dos indivíduos ao produzir, em sociedade, a sua
existência. Os indivíduos, para ele, não eram livres e iguais como defendiam as teses liberais
elaboradas por Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), identificadas por Marx
como “robinsonadas”.
Marx (1985), em A Miséria da Filosofia, publicada em 1846-1847, observou como os
economistas compreendiam as relações burguesas. Para Proudhon (1809-1865), as categorias
econômicas eram fixas e imutáveis, não explicava como essas relações eram produzidas.
Segundo Marx, faltava a explicação sobre o modo como as relações de produção determinavam
a maneira de organização da sociedade e suas relações sociais.
Marx (1985) não entendia o ser humano como um ser a-histórico, vivendo à margem da
sociedade. Para ele, a essência humana não está pré-determinada. São os homens reais que, na
busca pela sua sobrevivência, produzem-se e produzem a sua própria história. No entanto, não a
desenvolvem como querem, uma vez que são obrigados a dispor de sua força de trabalho de
acordo com os valores existentes e, nesse sentido, estabelecem relações de trabalho contrárias a
seus interesses. Marx mostrou em seus trabalhos que o modo de organização da produção
determina as relações de trabalho como também as relações sociais e culturais.
Marx e Engels (1985) desenvolveram suas análises a partir dos resultados do processo
de desenvolvimento realizado pela humanidade, evidenciando que o modo de organização social
burguesa era a forma mais desenvolvida de sociedade existente. Eles evidenciaram que os
trabalhadores, ao disporem de sua força de trabalho para satisfazer as suas necessidades de

513
sobrevivência, estabeleciam relações contratuais em que se obrigavam a condições de trabalho
alienantes e de exploração.
Orientando-se por tais pressupostos, Fromm (1983) afirma que os mais controvertidos
intérpretes tendiam à convicção de que, para Marx, o desejo econômico era a maior das
motivações humanas; falavam, ainda, em negligência do valor do ser humano como pessoa e da
falta de respeito para com as necessidades espirituais dos indivíduos. Segundo esse autor, ainda
se afirmava que Marx tinha como ideal a satisfação das necessidades básicas sem se preocupar,
contudo, com a formação intelectual; que suas críticas à religião tendiam à negação de todos os
valores espirituais. Para ele, tais idéias sobre o materialismo de Marx eram todas inteiramente
falsas, pois, “a meta de Marx era a emancipação espiritual do homem, sua libertação dos
grilhões do determinismo econômico, sua reintegração como ser humano [...]” (FROMM, 1983,
p. 15).
Para ele, um indivíduo doente é um indivíduo alienado. Marx e Engels, em 1844, com a
publicação de sua obra Manuscritos Econômicos e Filosóficos transformaram o conceito de
alienação religiosa, desenvolvido por Ludwig Feuerbach (1804-1872) em alienação do trabalho.
Nessa obra, afirmaram que o trabalhador, quanto mais trabalhava, mais se tornava dependente e
alienado. Com a divisão do trabalho, o trabalhador deixou de se reconhecer como produtor e,
como conseqüência, transformou-se também em mercadoria. O que contribuiu para que o
trabalhador deixasse de ser considerado como uma parte fundamental do processo de produção;
mais que isto, tornou-se apenas mais um produto ou mercadoria que poderia ser substituído a
qualquer instante. Marx e Engels, nessa obra, trataram o processo de alienação como ocorrendo
não só no trabalho, o trabalhador se tornava alienado em relação a si mesmo, a seus
companheiros e à natureza. De acordo com Fromm (1965a, p. 49),

Uma conseqüência direta da alienação do homem com relação ao produto do


seu trabalho, à sua atividade vital e à sua vida como membro da espécie é o
homem ficar alienado dos outros homens. Quando o homem se defronta
consigo mesmo, também se está defrontando com outros homens. O que é
verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o produto
desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com outros
homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho.

Fica evidente porque Erich Fromm considera a alienação uma doença da qual todos
sofrem, especialmente os trabalhadores. Ele aproxima o problema da alienação da moral e da
psicologia na medida em que ela corrompe e destrói todos os valores humanos. Com a
supervalorização das atividades econômicas, valores como ganho, trabalho, parcimônia e
sobriedade passam a preponderar sobre os demais valores humanos. As necessidades humanas

514
também são deformadas. Tornam-se fraquezas, visto que grande parte dos indivíduos procura
sobrepor suas vontades individuais aos outros.
A idéia de consumo é vinculada à idéia de felicidade, o que contribui para o
aparecimento dos apetites desumanos e, além disso, o homem deixa de aprimorar as virtudes de
sua existência para se submeter aos caprichos da luxúria e do prazer. Segundo Fromm (1983,
p.60), o homem mercadoria “[...] só conhece um meio de relacionar-se com o mundo exterior: o
de tê-lo e consumi-lo (usá-lo). Quanto mais alienado estiver, tanto mais a sensação de ter e usar
constituirá sua relação com o mundo”.
Fromm (1965a), analisando o fenômeno da alienação, aproxima-o do fenômeno da
transferência, um dos conceitos mais importantes elaborados por Freud. O conceito de
transferência está relacionado à idéia da transferência de sentimentos de amor, de medo e de
ódio para as figuras paterna e materna, para a pessoa do analista. Freud (1974a), em sua obra
Totem e Tabu, publicada entre 1912-1913, na Alemanha, analisou as culturas das sociedades
primitivas. Nela, afirmou que o fenômeno da transferência não se limitava apenas ao setting
analítico manifestava-se em todas as formas de idolatria de figuras de autoridade, sejam elas
políticas, religiosas ou sociais. Para Fromm, a alienação do pensamento não difere da alienação
do trabalhador.

É como alguém acreditar que pensou alguma coisa, e que sua idéia é
resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu
cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo ou um líder
político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade
ele aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem,
porque as escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento.
Precisamente por essa razão, depende dos ídolos, sendo incapaz de sustar sua
idolatria. É escravo deles porque lhes confiou seu cérebro (FROMM, 1965a,
p. 57).

Segundo os argumentos de Fromm (1965a), até mesmo o futuro é transformado em


ídolo. A idolatria da história conduz a uma forma de compreensão pela qual o movimento da
história é quem transforma o homem. Marx e Engels (s/d), em A ideologia alemã, escrita entre
1845-1846, manifestaram-se contrários a esse conceito alienado da história, ao afirmarem que a
história consistia na exposição do processo de produção da vida material.
Fromm considera a alienação um fenômeno necessário, que faz parte do processo de
desenvolvimento humano. “O homem tem de tornar-se alienado para poder superar essa divisão
na atividade da sua razão” (FROMM, 1965a, p. 59). Para ele, o indivíduo só se reconhece como
parte do mundo à medida que é capaz de distinguir o mundo externo de seu próprio eu. O
mundo externo precisa ser reconhecido como um objeto para que o indivíduo seja capaz de
compreendê-lo e, assim, poder fazer parte dele.

515
Com a modernidade, afirma Fromm (1965a), o homem ressignifica os conceitos de
alienação e de cultura, fazendo deles aliados das forças econômicas, com o firme propósito de
manter as classes trabalhadoras, bem como as demais classes, à mercê da ordem social
burguesa. As crises diplomáticas entre os países asiáticos, europeus e americanos também têm
como resultado a busca pela hegemonia do poder econômico e financeiro mundial. A disputa
pelo poder econômico e financeiro, segundo ele, é conseqüência das necessidades dos países
envolvidos, que têm como objetivo a ampliação de seus mercados de consumo de modo a ter em
mãos um vasto mercado para que possam comercializar os seus produtos.
A alienação era compreendida por Marx de maneira diferente de Freud. Enquanto Freud
pressupunha que a neurose social era formada pela experiência do indivíduo em seu meio
familiar; para Marx, a patologia humana era um produto do meio social. Freud, com base em
sua teoria da libido, postulava que o homem sadio era aquele que havia atingido o “nível
genital” em sua plenitude. Fromm (1965a), contudo, entende que o processo de
desenvolvimento da libido, que explica a teoria do desenvolvimento em Freud, responde
parcialmente a questão.
O pensamento de Marx sobre o desenvolvimento humano, avalia Fromm (1965a), é
mais completo, porque suas elaborações teóricas se baseavam nos ideais humanistas do homem
independente, ativo e produtivo. A compreensão de Freud sobre a liberdade humana era
limitada, visto que a independência em Marx estava baseada no ato de autocriação. De acordo
com Fromm, o homem independente, para Freud, é aquele que havia se libertado de sua
dependência em relação à figura paterna; para Marx, ser independente, significa possuir o
controle sobre a dependência da natureza. O homem, argumenta Fromm, em Freud, era um ser
auto-suficiente, dependia apenas do outro para a satisfação de suas necessidades; para Marx
(1985), o indivíduo era um ser social.
Fromm (1965a), analisando a influência da base econômica sobre as instituições
políticas e jurídicas, assevera que Marx e Engels (s/d), por exemplo, na obra A ideologia alemã,
não conseguiram demonstrar de que forma a base econômica exercia influência na
superestrutura ideológica. Então busca em Freud os instrumentos analíticos para demonstrar de
que maneira a estrutura econômica está vinculada à superestrutura.
A partir do seu conceito de “caráter social”, Fromm estabelece o laço que faltava para
explicar a ligação entre a estrutura econômica e a superestrutura. Para isso, desenvolve o
conceito com base nas idéias freudianas sobre o caráter dinâmico da personalidade. O traço de
caráter representa a forma de pensar, agir e sentir dos indivíduos, mas ele não pode ser
observado nas reações comportamentais. Ele só pode ser identificado com base nas análises das
motivações internas de cada um, isto é, na maneira como as pessoas direcionam a sua energia

516
libidinal para determinados fins que, muitas vezes, são inconscientes para elas próprias. De
acordo com ele, “o homem é motivado a agir e pensar de determinadas formas pelo seu caráter e
ao mesmo tempo encontra satisfação no simples fato de agir assim” (FROMM, 1965a, p. 76).
Segundo ele, é impossível as pessoas apresentarem o mesmo caráter pessoal. Nem
mesmo é possível existirem duas pessoas com o mesmo caráter. Ele identifica alguns tipos de
caráter: o receptivo, o explorador, o entesourador, o negociante e o produtor. Porém observa que
esses traços de caráter existem em quase todas as culturas; o que é determinante na maneira de
ser do indivíduo não são os seus traços de caráter individuais, mas, sim, o modelo de
organização de caráter social coletivamente valorizado pela sociedade a que pertence. O caráter
social é “[...] um elemento essencial no funcionamento de uma sociedade, e ao mesmo tempo
age como uma correia de transmissão entre a estrutura econômica da sociedade e as idéias
predominantes” (FROMM, 1965a, p. 79). 1
O caráter social, de acordo com ele, tem uma função fundamental dentro de uma
determinada sociedade. Seu papel é dar forma ao comportamento dos indivíduos de maneira que
eles possam agir conforme o modelo exigido pela estrutura e pelo funcionamento da cultura. Foi
o que a grande indústria fez com os trabalhadores ao longo da história ao canalizar a energia
libidinal dos indivíduos para o trabalho. Para isso, foi preciso que as pessoas desenvolvessem
qualidades como disciplina, ordem e pontualidade. “A necessidade social do trabalho, da
pontualidade, da ordem tinha de ser transformada num impulso interior” (FROMM, 1965a, p.
81).
Da mesma forma, pode-se afirmar que o consumo transformado em virtude é valorizado
socialmente pelo modo de produção capitalista. As formas de controle social que, no século
XVIII e XIX, eram determinadas pelo controle autoritário, a partir do século XX, passaram a ser
determinadas mais pelo consentimento do que pela obediência; o que, sem dúvida alguma,
demonstra o papel fundamental da função do caráter social na sociedade em um determinado
contexto histórico.
O caráter social não tem apenas a função de modelar o comportamento social dos
indivíduos; sua função também é servir de base para o surgimento de idéias, ou seja, “[...] ele
também é a base onde certas idéias retiram sua força e atração” (FROMM, 1965a, p. 84). Na
sociedade capitalista, por exemplo, uma das idéias fundamentais é o conceito de propriedade
privada. Ele é a base de sustentação dos argumentos ideológicos da burguesia. A propriedade
privada é um bem inalienável e, mesmo aquele que não a possui, por princípio, a defende como
se fizesse parte da classe dominante.

517
De acordo com Fromm (1965a), o caráter social é um dos elos de ligação entre a ordem
social e as idéias; o outro é o conceito denominado inconsciente social. Esse conceito trata das
áreas de repressão que são comuns a todos os indivíduos de uma mesma sociedade. Sua
finalidade é reprimir aqueles conteúdos que a sociedade deveria omitir para que ela funcione,
mesmo com suas contradições, de maneira satisfatória.
O inconsciente social é similar ao conceito de inconsciente individual elaborado por
Freud, mas, com uma diferença, o conceito freudiano se refere à repressão dos impulsos
ambivalentes para com a figura paterna e a materna. O conceito freudiano tem um caráter
individual, enquanto que o conceito elaborado por Fromm, está relacionado ao modo de
produção da vida social. O que se reprime são as contradições do sistema burguês de produção.
Nas elaborações teóricas de Fromm (1965a, p. 97), além das motivações internas, “[...]
reprimimos também a consciência de fatos, desde que contrariem certas idéias e interesses que
não desejamos ver ameaçados”.
No pensamento de Freud, o indivíduo seria capaz de romper a repressão e trazer à
consciência os conteúdos inconscientes para poder ser o dono do seu próprio destino. Marx e
Engels (s/d, p. 25), também, em A ideologia alemã, postulam que o papel da consciência é
romper com a percepção imediata das coisas, visto que “a produção de idéias, de representações
e da consciência está em primeiro lugar directa e intimamente ligada à actividade material e ao
comércio material dos homens; é a linguagem da vida real”. Para esses autores, a consciência
seria a consciência de homens vivendo em sociedade, produzindo sua vida material; segundo
eles, as circunstâncias determinam a maneira como os indivíduos dão sentido à sua existência.
Marx e Engels estabeleceram, ainda, uma relação entre a consciência e a linguagem
para destacar o valor social da consciência, ao enfatizarem que

A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática,


que existe também para outros homens e que portanto existe igualmente só
para mim e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, as
exigências dos contactos com os outros homens. [...] A consciência é pois um
produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens (MARX;
ENGELS, s/d, p. 36).

Segundo Fromm (1965a), o conceito de inconsciente ainda que em Marx e Freud sejam
distintos, apresentam muita coisa em comum. A consciência é, para ambos, uma consciência
falsa. Segundo seus argumentos “o homem acredita que seus pensamentos são autênticos,

1
Segundo Fromm (1965a, p. 79), o conceito de caráter social pode ser compreendido como sendo “[...] o
núcleo da estrutura de caráter partilhada pela maioria dos membros da mesma cultura, em contraposição
ao caráter individual no qual as pessoas pertencentes à mesma cultura diferem entre si”.

518
produtos de seu raciocínio, quando são na realidade determinados pelas forças objetivas que
funcionam à sua revelia” (FROMM, 1965a, p. 104).
Apesar das teorias de Marx e Freud apresentarem pontos em comum, há questões entre
eles, divergentes. Marx (1985) afirmou, por exemplo, que o homem e a sua existência eram
determinadas pelo modo de produção de sua vida material; Freud (1974b) argumentou que a
sociedade apenas influenciava parte do aparelho psicológico pela repressão. Nesse sentido, no
pensamento de Freud, o indivíduo poderia superar os mecanismos de repressão da consciência,
mas sem que houvesse modificações em sua estrutura social. Marx (1985) pensava diferente.
Para ele, a única forma de liberdade possível seria a auto-realização humana, a partir de
transformações no modo de organização econômica e social. No pensamento de Fromm (1965a,
p. 125), ter consciência dos “[...] meios inconscientes significa entrar em contacto com a plena
humanidade e eliminar as barreiras que a sociedade ergue dentro de cada homem e,
conseqüentemente, entre cada homem e seu companheiro”.
Desse modo, como é possível libertar o homem de suas ilusões? As críticas que Marx e
Freud fizeram à religião eram para chamar a atenção ao fato de que a religião, também, estava
ou está, como a cultura, a serviço da ideologia burguesa, do mesmo modo que o caráter social
com sua função de modelar o comportamento e a consciência humana, tornando certos
elementos contraditórios da sociedade burguesa alheios à realidade do indivíduo.
Segundo Fromm (1965a), a dúvida é um dos pontos em comum entre Marx e Freud;
para eles, a arte do questionamento de todas as coisas era um dos fundamentos de suas
elaborações teóricas. O “espírito crítico” está presente na obra de Marx quando fala a respeito
do pensamento que, segundo ele, é fruto do modo como as idéias são determinadas pela
sociedade, a partir de sua estrutura e modo de funcionamento. Freud, da mesma forma,
descobriu, com base em sua teoria psicanalítica, que grande parte das idéias humanas não
corresponde aos fatos reais. Para ambos, a maioria dos pensamentos humanos representa idéias
ilusórias, e tem como única finalidade a amenização da opressão social. “A dúvida e o poder da
verdade e humanismo são os princípios orientadores e motores da obra de Marx e Freud”
(FROMM, 1965a, p. 22).
Freud partiu em defesa da satisfação das motivações humanas desde que fossem
orientadas pela razão. Ela, na compreensão de Fromm (1965a), era um dos princípios da
tradição humanista presente no pensamento de Freud. Marx, também, como um legítimo
representante da tradição humanista, defendeu a causa humana por discordar da manipulação e
da opressão exercida pelas relações materiais de produção que, em suas análises, limitavam as
possibilidades individuais, não permitindo a total realização humana.

519
As críticas feitas à religião por Marx e Freud tinham como objetivo combater a forma
como ela contribuía para o processo de alienação; pois ela não atendia à efetivação da totalidade
criadora do ser humano. Aliás, tanto a religião como a cultura apenas contribuíam para o
fortalecimento da estrutura social burguesa de manipulação e opressão dos trabalhadores, pela
fragmentação de suas idéias, por meio de uma educação aligeirada e pela valorização social do
ideal de consumo. Marx e Freud

Juntamente com Einstein [...] foram os arquitetos da era moderna. Todos os


três estavam imbuídos da convicção de uma ordem fundamental da realidade,
atitude básica que vê na natureza - de que o homem é parte - não apenas
segredos a serem descobertos, mas um padrão e um sentido a serem
explorados. Portanto, a obra deles, cada qual de sua forma singular, encerra
elementos da mais alta arte, bem como da ciência, a mais alta expressão do
anseio humano de entendimento, sua necessidade de saber (FROMM, 1965a,
p. 16).

Embora existam diferenças entre eles, entende-se que Marx e Freud, são representantes
da tradição humanista; tinham em comum o desejo incondicional de libertação do indivíduo de
suas ilusões e ideologias; visto que elas tendem a fragmentar o pensamento crítico do ser
humano e a impor uma condição existencial limitada.
Freud (1974b), na obra O Futuro de uma ilusão, publicada na Alemanha, em 1927,
afirmou que somente poder-se-ia chamar uma religião de alienante quando os desejos humanos
assumissem o controle da espiritualidade humana pelo desprezo da realidade. Nesse sentido,
compreende-se que a religião, entendida como um refúgio para os problemas humanos, pode
atender aos apelos de uma estrutura mental conflitante, que é incapaz de suportar a realidade.
Na obra escrita por Marx e Engels (s/d), a ilusão está vinculada ao conceito de
alienação. A religião seria ilusão ao se apresentar como um instrumento a serviço da
manutenção da forma de estrutura e de organização da sociedade burguesa. Marx e Engels (s/d)
se preocuparam com a libertação do homem de seu trabalho alienado para que ele fosse capaz
de desenvolver a sua individualidade e sua autocriação.
O tema central no pensamento de Marx era a transformação do trabalho alienado em
trabalho produtivo. A crítica feita ao capital não se justifica pela má distribuição de renda, mas,
pela perversão do trabalho. O trabalho é alienante e, sob certas circunstâncias, o trabalhador está
alienado em relação a si próprio, aos seus semelhantes e à natureza. Segundo Fromm (1965a, p.
17), Marx conseguiu “[...] associar o legado espiritual do humanismo iluminista e do idealismo
alemão à realidade dos fatos econômicos e sociais, lançando assim as bases de uma nova ciência
do homem e da sociedade [...]”.

520
O foco de análise teórica de Fromm sobre religião e cultura não é a presença ou
ausência de religião ou de cultura, sua preocupação se volta para a espécie de religião e de
cultura existente. Assim, percebe-se que ele busca entender se a religião e a cultura dos
indivíduos contribuem ou não para o desenvolvimento das potencialidades humanas; para isso,
será preciso que o ser humano tenha condições para adquirir uma formação cultural sólida que o
leve a uma compreensão de si mesmo, de suas relações com outros homens e com a natureza.
Nesse sentido, “a tarefa da crítica não é denunciar os ideais, mas mostrar sua transformação em
ideologia, e desafiar a ideologia em nome do ideal traído” (FROMM, 1965a, p. 130).
Foi por essa razão que ele combate a religião e a cultura de sua época como Marx e
Freud; já que elas não atendem às necessidades humanas de liberdade e de autocriação. Assim, a
solução para o conflito está no desenvolvimento integral do ser humano, a partir da união entre
formação cultural e trabalho produtivo. Este parece ser o grande desafio atual dos cientistas
sociais ligados ao campo da pedagogia, visto que se faz necessário criar condições reais e
efetivas para que a classe trabalhadora tenha acesso a uma formação cultural plena.
Desse modo, acredita-se que a ligação entre formação cultural e trabalho produtivo seja
um caminho possível no processo de melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras,
contudo, entende-se que é preciso lutar contra o aligeiramento da formação em um contexto
escolar pobre para pobres. Com efeito, posto que as políticas públicas neoliberais fragmentam o
trabalho educativo por meio de medidas voltadas à privatização, desregulamentação e
descentralização do sistema educacional brasileiro, o aligeiramento torna-se uma cultura da
miséria.

521
Referências Bibliográfica

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f. Monografia (Especialização em Pesquisa Educacional). Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, 2005.

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completas de Sigmund Freud. v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1974a. p. 13-194.

______. O futuro de uma ilusão. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 13-71.

______. O mal-estar na civilização. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 75-279.

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______. Meu encontro com Marx e Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1965a.

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______. Psicanálise e religião. 3. ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1966b.

______. Psicanálise da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1965b.

______. Conceito marxista do homem. 8. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 8. ed. São Paulo: DIFEL, 1982. v.
1.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes, s/d.
v. 1.

______. Manuscritos econômico-filosóficos. In: ______. Manuscritos econômico-filosóficos e


outros textos escolhidos. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p. 3-48.

522
O ethos da formação (Bildung) burguesa na atualidade: desencontros.

Marcos Leite
Doutorado em Educação- Unesp/ Marília

Podemos observar, sem grandes dificuldades, como as palavras não são inocentes. Por

trás de uma sonoridade tranqüila e aparentemente singela esconde-se um emaranhado de tensões

e intenções de grupos. A hipóstase1 de significante e significado revela a cristalização de um

ethos dominante; projetando-se enquanto sentido inevitável, o conceito, revela historicamente a

força de uma certa compreensão do mundo, uma cosmovisão operante disfarçada sob a

objetividade do sentido dos conceitos. Assim, nos dias atuais, quando usamos expressões como

“formação de professores, processo formativo, projeto de formação”, podemos estar falando

algo oculto em um conceito já rotineiro. Tentamos, aqui, desvelar este ocultamento conceitual,

tentando realizar uma percepção dialética de inspiração adorniana.

Por civilização poderíamos entender uma vasta e abrangente gama de significados.

Podemos pensá-la referindo-se à dimensão religiosa, aos costumes, aos conhecimentos de um

grupo humano. Aponta-se, para uma compreensão ímpar do termo, seu antônimo como ponto

arquimediano de compreensão. Teríamos então no conceito de “incivilizado” uma clara menção

àquilo que as sociedades desejam abandonar: o primitivo e animalesco que ela projeta em

grupos distintos de si mesma. Assim,

(...) este conceito expressa a consciência que o Ociedente tem de si mesmo.


Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a
sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a
sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”.
(ELIAS, 1994, p. 23)

Parece, ao Ocidente, um exercício de valorização de si mesmo, de seu orgulho, chamar-

se de civilizado, referindo-se ao que produz, a seus modos e maneiras, à sua cultura e visão de

1
União de duas naturezas (physis) numa mesma pessoa (ousia).

523
mundo, como civilizado, povo que atingira o telos definitivo da organização e produção cultural

humanas.

Para franceses o termo quer significar a importância que estes atribuem às

características do Ociedente, graças a aportes de seu povo e cultura. Ao passo que para os

alemães,

(...) Zivilization, significa algo de fato útil, mas apesar disso, apenas um valor
de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa de seres
humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os alemães
se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em
suas próprias realizações e no próprio ser, é kultur. (ELIAS, 1994, p. 24)

Internamente à sociedade, o uso de um ou outro conceito é claro. Enquanto para

franceses civilization alude a fatos políticos, econômicos, religiosos ou técnicos na mesma

proporção, a realizações e atitudes, no termo alemão kultur o em si do sujeito, sem

desdobramentos e realizações, tem importância secundária, evidenciamos isto no adjetivo

kulturell “(...) que descreve o caráter e o valor de determinados produtos humanos, e não o

valor intrínseco da pessoa.” (ELIAS, 1994, p. 24).

Enquanto por civilização encontramos a tentativa de expressar o que é comum,

minimizando os contrastes de um povo, por kultur temos o contrário. Aqui o fundamental é

diferenciar identidades nacionais e de grupos. Enquanto o primeiro quer expressar o movimento

de afirmação de um modus vivendi num movimento expansionista, o segundo, revela o ontos2 de

um povo que procura a consciência de si mesmo, no sentido de afirmação de uma identidade.

O conceito de civilização atua no sentido de gerar uma igualdade entre pessoas e povos;

ao passo que o conceito de cultura valoriza a diferenciação. No primeiro há uma identidade

consolidada, no segundo, o elemento de propagação cede à apropriação individual. Portanto,

muito se aproximam os conceitos Kultur e Bildung, pois não poderá haver formação cultural

sem os elementos objetivos advindos da cultura. Porém, a formação cultural não se esgota na

cultura.

2
Literalmente, o ser de um povo.

524
Elias vê na Segunda Grande Guerra o momento ímpar em que a sociedade alemã

experimenta a antítese entre os conceitos, mesmo que já no pensamento kantiano

encontraríamos expressa a mesma antítese: nela, faz-se necessário cultivar o intelecto por meio

da arte e ciência a fim de que o espírito singular se eleve ao nível de um sujeito universal,

dotado pela experiência da cultura de aptidão moral. Parece que a medida aqui é a de um

cidadão do mundo, pretensão da intelligentsia alemã de classe média que toma de Kant a

antítese formulada. “E é na polêmica entre o estrato da intelligentsia alemã de classe média e a

etiqueta da classe cortesã, superior e governante, que se origina o contraste entre kultur e

zivilization na Alemanha”. (ELIAS, 1994, P. 28)

O interior, a consciência, revelaria o autenticamente humano, capaz de ativa postura no

interior da sociedade. Esta postura empreendedora revelaria o ethos burguês, para quem kultur

torna-se o leitmotiv de suas realizações intelectuais, científicas e artísticas. A oposição que se

observa aqui é com a cosmovisão de Corte, onde não é necessário realizar ou empreender para

se diferenciar e conquistar riquezas; basta assumir uma postura de cortesia externa e

enganadora para se conseguir a confiança e os favores do príncipe, e a esta postura se refere a

zivilization. Assim, vemos

(...) que a antítese alemã entre Zivilization e kultur não se sustenta sozinha: é
parte de um contexto mais amplo. É, em suma, a expressão da auto-imagem
alemã. E aponta para as diferenças em autolegitimação, em caráter e
comportamento total que, no início, existiram preponderantemente, embora
não exclusivamente, entre determinadas classes e, em seguida, entre a nação
alemã e outras nações. (ELIAS, 1994, P. 50)

Parece-nos, como hipótese a este trabalho, que a este contexto é remetida a idéia de

formação na modernidade. Em traços gerais podemos imaginar que um seria o caminho

adotado para a constituição da kultur, movimento de apropriação do mundo pela exterioridade

ativa; outro, para a consubstanciação de uma sociedade que cultiva as virtudes interiores como

forma de civilidade. Ambas exigem mecanismos de produção e reprodução de si mesmas

hipostasiadas no ideal formativo da modernidade.

525
(...) No topo, por quase toda a Alemanha, situavam-se indivíduos ou grupos
que falavam francês e decidiam a política. No outro lado, havia uma
intelligentsia de fala alemã que de modo geral nenhuma influência exercia
sobre os fatos políticos. De suas fileiras saíram basicamente os homens por
conta dos quais a Alemanha foi chamada de terra de poetas e pensadores. E
deles, conceitos como Bildung e kultur receberam seu cunho e substância
especificamente alemãs. (ELIAS, 1994, p. 34)

W. Bolle, estudando o conceito de formação na modernidade recorre a W. Benjamin e a

Nietzsche para estabelecer uma ponte entre a idéia inicial de bildung e os programas de

modernização do século X
. A interface entre os autores subjaz na kulturkritik, denúncia da

aliança entre inteligência e posse, “ou seja, entre a bildung e os valores burgueses de

acumulação de dinheiro e de propriedades” (BOLLE, 1997, p. 12). Nietzsche quer pôr às claras

o papel da formação, entendida aqui do ponto de vista formal – a escola, como capaz de

subordinar as intenções individuais às pretensões do Estado.

Realizando aproximações aos autores supra citados, Bolle, é incisivo ao demonstrar que

o capitalismo moderno quer transformar a bildung num mecanismo salvacionista nas lutas dos

seres humanos por sua existência, assim, o conteúdo de ordem espiritual da formação medieval,

cede à positividade da Kultur burguesa. Citando o texto de Nietzsche Sobre o futuro de nossas

instituições de formação afirma, colocando palavras na boca de seu jovem porta-voz:

Tal despreocupação feliz a nossa associação tinha alimentado em nós (...)


Como fomos inúteis!E como éramos orgulhosos de ser tão inúteis!(...) Não
queríamos significar nada, representar nada, intencionar nada, queríamos
estar sem futuro, não ser nada mais que uns inúteis deitados confortavelmente
no limiar do presente – e nós o fomos, Salve! (NIETSCHE apud BOLLE,
1997, p. 13)

Interessa-nos discutir este conceito por ser, como afirma BOLLE (1997),

(...) um conceito de alta complexidade, com extensa aplicação nos campos da


pedagogia, da educação e da cultura, além de indispensável nas reflexões
sobre o homem e a humanidade, sobre a sociedade e o Estado. É até hoje um
dos conceitos centrais da língua alemã, que foi revestido de uma carga
filosófica, estética, pedagógica e ideológica sem igual, o que só é possível
entender a partir do contexto a evolução político-social da Alemanha. (p. 15)

526
Tradutores, sobretudo aqueles sem a preocupação com o aspecto filosófico da palavra,

realizam aproximações ente o conceito bildung ao francês formation e ao inglês formation,

aproximações meramente mecânica, o mesmo dir-se-ia do português formação. Também

acontece de se traduzir bildung por éducation e education, francês e inglês, respectivamente, o

que não é de todo correto, pois o termo adequado no alemão seria erziehung, educação enquanto

momento positivo de transmissão sistemática dos conteúdos da cultura. Em português há certa

tendência a utilizar como termo próximo formação, como no título da obra de Caio Prado Júnior

Formação do Brasil Contemporâneo; tal aproximação não é de toda correta, pois propõe a idéia

de uma intrínseca relação entre o passado e o presente, um devir histórico, contudo é uma boa

tradução.

VIII, bildung era empregada


Originalmente, até as primeiras décadas do século X

conforme o sentido de seu radical latino. Assim, bild corresponderia em alemão o que imago

significava em latim. Seria uma reprodução por imagem, por imatação, como na Imitatio

Christi3, prevalece aqui um sentido plástico, conformidade exterior com o modelo. Este aspecto

pode ser percebido no emprego do termo para referir-se à atividade reprodutiva do artista.

O arquétipo desse fazer artístico, na tradição cristã, é o Criador, que formou o


homem á sua imagem e semelhança. Na Alemanha, esse potencial cristão
resistiu às tentativas de secularização e, por via do pietismo, entrou no ideário
da aufklärung, onde se deu a migração semântica de bildung, do sentido da
produção de uma forma exterior para a construção interior: mental, psíquica,
espiritual. (BOLLE, 1997, p. 16)

Goeth sintetiza na literatura4, as condições a quem aspira uma formação burguesa.

Não sei como é nos países estrangeiros, mas na Alemanha só a um nobre é


possível uma certa formação geral, e pessoal, se me permites dizer. Um
burguês pode adquirir méritos e quando muito formar seu espírito, mas sua
personalidade se perde, faça ele o que quiser. (GOETH apud BOLLE, 1997,
p. 23)

3
Termo utilizado pelos medievais para designar o esforço pessoal de cada cristão em identificar-se com a
figura de Cristo. Literalmente: Imitação de Cristo.
4
Tenha em conta os textos Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1795 – 1796), Os anos de
andanças de Wilhelm Meister

527
Parece, ao autor, do Fausto, que não há formação superior possível aos burgueses, por

isso encontra no von Goeth, a certa altura de sua vida, um certificado de pertença ao estamento

superior formado; permanece a figura do nobre como referência de formação. Gestos perfeitos,

voz sonora, atos comedidos... revelam o que há de mais perfeito no ser, segundo o Wilhelm de

Goeth. A bildunsbürgertum, centrada na cultura como posse, contrasta com a proposta do herói

goethiano; o nobre oferece exteriormente tudo de si, enquanto o burguês precisa premeditar a

utilidade de seus atos, que se pretendem produtivos e criativos.

O meio possível de conciliação do perfil burguês com a sofisticação da corte seria o

teatro. Aqui, agrado e fino trato, somados ao gosto requintado de espírito e visibilidade pública

dão tamanho brilho à persona, apenas compatível às classes superiores. A proposta goethiana

não revela uma síntese burgo – cortês da bildung, mas predomínio de elementos românticos.

Temporariamente atores irrequietos que viajam e contestam, assim como os ciganos,

anárquicos, são o novo modelo de bildung; que em pouco tempo será assimilada pela ética

burguesa do ganho.

Nesse ponto, a parte do romance de formação dedicada ao teatro acaba.


Pouco depois, Wilhelm o abandona. Doravante seu caminho será orientado
por uma sociedade educacional oculta, semi-aristocrática e semiburguesa, a
Sociedade da Torre. Na continuação dos Anos de aprendizado, no romance
Anos de andanças de Wilhelm Meister, presenciamos a reintegração de
Wilhelm na sociedade burguesa, através da decisão por uma profissão
‘socialmente útil’: a do médico. Vingança da ‘educação’ realista contra os
altos vôos da bildung, ou ironia do velho Goeth, mostrando como é limitado o
projeto histórico, político e cultural de sua classe de origem? (BOLLE, 1997,
p. 32)

A barreira da língua é transposta pelo exercício atento do filosofar. A ação

compreensiva do Logos (/RJR]) busca pegadas de sentido nos caminhos que produzem a

própria linguagem, como observa Rubens Rodrigues Torres Filho em seu Ensaio de Filosofia

Ilustrada:

528
Mas o próprio simbolismo da linguagem já traz consigo, para quem souber ler
com esses olhos, uma pista para isso: - ‘Em sua notável exatidão, a palavra
alemã Einbildungskraft’– observa Schelling – ‘significa propriamente a força
(Kraft) da formação – em – um (Ineneinsbildung; ou esemplasia, para usar o
neologismo forjado por Coleridge para traduzir esta palavra), sobre o qual
repousa de fato toda criação. Ela é a força pela qual um ideal é também, ao
mesmo tempo, um real, pela qual a alma é o corpo, a força da individuação,
que é propriamente criadora. (TORRES FILHO, 1987, p. 158)

Parece-nos ser este um caminho possível de ser trilhado por aquele que deseja pensar

seu mundo de maneira filosófica.

O nome de filósofo, então, em vez de denunciar a identidade desse caçador


caçado, parece conservar, como única função precisa, a de lembrar seu
portador esse duplo exílio: exilado das ciências existentes, em que não
encontra seu lugar, exilado da inatingível Sophia, essa ciência inexistente, ele
precisa a cada instante renovar seu primeiro passo, inventar o chão em que
pisa. E quem pisa chão mais firme pode decerto persegui-lo, esquadrinhando
os territórios constituídos: sua própria condição de exilado o acoita nessa
caçada. (TORRES FILHO, 1987, p.13)

Não postulamos que apenas o objeto é pensado pela ciência. Supomos um pathos que

não se contenta com a obviedade do real, às vezes, ditada pela inevitabilidade do objeto, é o

pathos que embriaga Nietzsche, que atrai a Marx, que sensibiliza artistas. Neste ínterim o

filósofo pode apresentar-se como antifilósofo. Mobilizado por seu ser no mundo, deseja rever

aquela intentio recta, sintetizada no mito platônico da caverna, que revela e esconde segundo a

condição intelectiva de cada um. Parece desconfiar da ponte estabelecida entre sujeitos e

objetos, pessoas e mundo, com se houvesse uma reconciliação ideal entre as partes. Quanto

maior a inevitabilidade, maior a necessidade de reformar a maneira de pensar, contornando a

heteronomia.

Assim, aproximamo-nos também ao conceito de esclarecimento – aufklärung5. A

formação no ideário burguês versus a experiência mediada do cotidiano. “O esclarecimento tem

5
O conceito aqui será utilizado como em Adorno e Horkheimer, designando “o processo de
‘desencantamento do mundo’, pelo qual as pessoas se libertam de uma natureza desconhecida, à qual
atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985,

529
perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de

senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). Seu programa se esboça no

desencantamento do mundo baconiano, que afirma a ciência opondo-se à tradição.

Ainda assim, sua superioridade está no saber que domina a natureza; olvida o pretenso

sábio, que como elo da natureza, ao submetê-la, submete-se a si mesmo. O desejo de alcançar a

verdade, a alethéia a ser recuperada, transmuta-se no gosto pela própria operação, a natureza

reduz-se à sua dimensão material, nada de animismo. Enquanto isso, a bildung burguesa

pavoneia-se de sua grandeza, o novo ídolo não discutido por Bacon, esnoba sua ação totalitária.

A sedução da nobreza, requintada pela tradição, dá lugar á dominação da natureza,

consubstanciada pela ciência, domínio do sujeito sobre o mundo, e ao fim, sobre si mesmo.

A contradição não é nova, sua forma sim o é, sua renovada sofisticação. Já nos mitos

manifestara-se o cálculo do esclarecimento. “O mito queria relatar, denominar, dizer a origem,

mas também expor, fixar, explicar” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23). Natureza e sua

dominação refletem as relações do homem consigo mesmo, a cultura em sua aparência não

desvela essa contradição.

A abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus


objetos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele eliminado, ou
seja, ela se comporta como um processo de liquidação. Sob o domínio
nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em algo de
reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o
reproduzível, os próprios liberados acabaram por se transformar naquele
‘destacamento’ que Hegel designou como o resultado do esclarecimento.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 27).

A aproximação aparente à natureza esconde a distância real entre sujeito e objeto. A

formação, lato senso – bildung, neutraliza as contradições do aufklãrung, um projeto de

formação, nada romântico, de determinação de um sujeito adequado à cosmovisão burguesa. O

positivismo é, para os autores, a determinação do possível, conversão dócil à v‘ erdade’

inevitável, a cópia da cópia convertida em quadro original. Uma nova fé se instaura, “sua

p. 08). Não utilizamos o conceito para significar um movimento filosófico ou período da história da
filosofia.

530
irracionalidade degenera na cerimônia organizada racionalmente sob o controle dos

integralmente esclarecidos e que, no entanto, dirigem a sociedade em direção à barbárie”

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 33). A síntese do projeto burguês pode ser desvelada em

Kant.

Kant combinou a doutrina da incessante e laboriosa progressão do


pensamento ao infinito com a insistência em sua insuficiência e eterna
limitação. Sua lição é um oráculo. Não há nenhum ser no mundo que a
ciência não possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência não é o
ser. É o novo, segundo Kant, que o juízo filosófico visa e, no entanto, ele não
conhece nada de novo, porque repete tão-somente o que a razão já colocou no
objeto. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 38).

O horror ao mito converteu-se em novo mito, já ensaiado em Ulisses. Ènecessário tapar

os ouvidos para não ceder às tentações; amarrado ao mastro, não há riscos sedutores. A

felicidade não deve, nesta tradição, ligar-se à natureza. Se o mito ensaia esta postura, a

sociedade industrial se aparelha para converter as singularidades em generalidades, as emoções

afloram na medida de sua permissão, o deleite em sua possibilidade, nunca contrárias às

condições do aufklärung.

Aproximando-se a Freud, Adorno vê a Civilização dialetizada com a irracionalidade. A

parte reprimida pela Razão separa-se da natureza e evidencia a Civilização. Bom é o uno,

inalterável e idêntico. O que se opõe a isso é herança do estado de natureza, pré-lógico,

automaticamente mal e desnecessário. Civilização e barbárie estão intimamente unidas. Os

comportamentos arcaicos estão continuamente questionando a civilização, como o demonstra a

Juliette de Sade, entendido como a relação entre esclarecimento e moral.

Os Frankfurtianos, especialmente Adorno, querem rever a racionalidade do modo de

ser ocidental; a construção de um modelo de formação (Bildung) alheio às contradições

inerentes ao seu devir não pode ser aceitável. Por isso a necessidade de se recuperar não só a

origem da crítica ao conhecimento, em Kant, como também a noção de dialética de Marx e

Hegel. Para reconciliar sujeito e objeto nada melhor do que o caminho dos românticos:

identidade entre Logos e Eros, natureza e homem, corpo e alma.

531
As contradições já foram gestadas na afirmação positiva da cultura (Kultur); ao negar a

possibilidade do diferente pela grandeza do igual, a formação elimina seus elementos de

autoformação e formação da subjetividade. A civilização (Zivilization) se outorga a

responsabilidade de manter patente a não diferença, a igualdade do mesmo, aponta o outro como

incivilizado, não ser, e a si mesmo como referencia umbilical; a lógica formal toma para si a

determinação da verdade. O iluminismo anula o fato pela sua compreensão.

Os homens foram presenteados com um si-mesmo próprio a cada um e


distinto de todos os outros. Mas, como ele nunca se desfez totalmente, o
iluminismo, mesmo durante o período liberal, sempre simpatizou com a
coação social. A unidade do coletivo manipulado consiste na negação de
qualquer indivíduo, zomba-se de toda espécie de sociedade que pudesse
querer fazer do indivíduo um indivíduo. (...) Sob a dominação nivelante do
abstrato, que faz com que tudo na natureza se possa repetir, e sob a indústria
cultural6, para a qual isto é aprontado, os próprios liberados convertem-se
finalmente naquela ‘tropa’ que Hegel assinalou como o resultado do
iluminismo. (ADORNO, 1999, p. 28 -29 – grifo meu)

A formação nos tempos que sucedem a Revolução Industrial, de recorte burguês, tem

sido preenchida com a positividade que nega a contradição aos espíritos pacificados pelo Lógos.

Por isso, encontramos espaço para pensar a Bildung, a formação e auto-formação subjetivas,

no presente.

O que resta à razão legisladora, portanto, é a pura forma da universalidade,


ou, de fato, a tautologia da consciência que se opõe ao conteúdo, e que não é
um saber do conteúdo essente ao autêntico, mas um saber da essência – ou da
igualdade-consigo-mesmo do conteúdo.
A essência ética portanto não é um conteúdo – ela mesma e imediatamente –
mas apenas um padrão de medida para estabelecer se um conteúdo é capaz
de ser lei ou não, na medida em que não se contradiz a si mesmo. A razão
legisladora é rebaixada à razão examinadora. (HEGEL, 2001, p. 263)

Sem a certeza do que é, mas com convicção do que não deve ser, eis o caminho a ser

seguido para uma postura adorniana de se pensar o devir da formação.

6
Conceito utilizado por Adorno e Horkheimer (ADORNO; HORKHEIMER, 1986) para designar a
apropriação que o capitalismo tardio faz dos bens culturais e seu movimento de massificação desses bens
por meio dos progressos técnicos no rádio, televisão, imprensa... a cultura converte-se em produto de
mercado.

532
A tranformação da formação – bildung – e sua manutenção no presente, opera com a

conversão do seu próprio ideal em mito. Já não temos o ideal romântico de formação ligado à

descoberta gotheana; formar passa a ser sinônimo de pôr o sujeito e concordância com um

determinado molde, a forma. Assim como o mito grego de Ulisses, apresenta elementos que

gestão o ideal de esclarecimento, como apropriação organizada do evento, a super-valorização

da formação transformou os meios formativos em fins; o movimento de descoberta, no

aprisionamento do modelo.

Ao massificar o ideal de formação, o nivelamento dos conteúdos e a apropriação dos

meios pelo aparelho de Estado burguês, geram o contrário do que inicialmento se propunha: a

semiformação. Uma aparência de cultura esclarecida encoberta pelo véu da homogeneização

dos espíritos.

Resta-nos resistir à técnica que se apropria do espírito e à ciência que legaliza a

semiformação; por isso a atualidade do pensamento adorniano: postura crítica em relação ao

presente, no nosso tema, em relação à formação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TORRES FILHO, R. R. Ensaio de filosofia ilustrada. São Paulo: Brasiliense, 1987.

533
INDÚSTRIA CULTURAL: LÓGICA DA PRODUÇÃO OU SISTEMA DE PRODUÇÃO?

Maria Clara Cescato


Unesp, Araraquara - SP

Resumo: Na Dialética do Esclarecimento, escrita juntamente com Horkheimer, Adorno


formula o conceito de “indústria cultural” como ferramenta para examinar a cultura de massas e
o papel decisivo que ela assume nas sociedades industriais avançadas, sobretudo sua função
ideológica de reproduzir as relações sociais e manter a ordem econômica e política estabelecida.

O conceito tem sido algumas vezes interpretado como um instrumento de análise que
homogeneiza e desqualifica a cultura popular, descreve o público como mero receptor passivo e
ignorante e reduz as formas de expressão popular a um amontoado de lixo descartável.

É verdade que alguns textos da Escola de Frankfurt – sobretudo algumas passagens de


Adorno – sugerem uma leitura desse tipo. Este trabalho pretende mostrar que o uso do conceito
com base numa distinção clara entre “lógica da produção” e “sistema de produção” elimina a
possibilidade dessa leitura redutora, mesmo nas passagens em que Adorno parece identificar a
indústria cultural à mera produção de conteúdos destinados ao lucro, à manipulação ideológica e
à destruição de todo elemento cultural das formas de expressão popular.

No texto dedicado à análise da indústria cultural na Dialética do Esclarecimento1, “A


Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas”, Adorno procura
explicitar os mecanismos por meio dos quais a indústria cultural forma um sistema no
qual a produção dos artefatos culturais cria objetos homogêneos, submetidos a padrões e
falsamente diversificados que, além de esvaziar a obra de conteúdo e sentido cultural e
artístico, transformam o receptor em mero consumidor de mercadorias e bloqueiam
toda sua capacidade de avaliação crítica e experiência estética autêntica.

Adorno procura restringir a abordagem aos limites da análise materialista


dialética, que considera toda produção técnica como trabalho humano materializado

1
Adorno, T. e Horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Trad. Guido A. de
Almeida. Rio, Zahar, 1991, pp. 113-156. As referências a esse trabalho serão indicadas de acordo com a
paginação dessa edição, precedida das letras DE. Ocasionalmente foram feitas modificações no
texto traduzido, em vista de maior clareza.

534
que, assim, incorpora um “valor de uso” e um “valor de troca” (DE, 148). Na produção
cultural e na arte, o valor de uso é o conteúdo ou o significado que o artefato incorpora
enquanto objeto cultural. O valor de troca, por outro lado, depende não só do
significado cultural do objeto mas também dos monopólios culturais que controlam seu
valor no mercado. As galerias de arte ou os direitos autorais e de propriedade
intelectual, por exemplo, servem a essa função mercadológica.

Com o surgimento da indústria cultural, esses monopólios passam a ser


submetidos aos grandes interesses econômicos, por exemplo, da indústria química, do
petróleo ou os bancos, citados por Adorno – “os verdadeiros donos do poder” (DE, 115).
Hoje evidentemente os grandes interesses estão entrelaçados à produção cultural de uma
forma muito mais complexa do que na época de Adorno, mas para os propósitos de
nossa análise essa diferença não é relevante.

Submetidos a esses interesses, os monopólios da indústria cultural operam de


acordo com os critérios da produção industrial e, assim, se orientam pela classificação,
organização e etiquetação dos consumidores, em vista de uma oferta adequada à
diversidade do mercado. Dessa forma, enquanto nos antigos monopólios culturais o
caráter de mercadoria podia funcionar como “última proteção” da obra contra a
degradação dos produtos culturais em “mercadorias culturais” (DE, 150), na medida em
que o valor de troca desenvolvia o valor de uso do artefato como “pressuposto de sua
própria existência” (DE, 150) e, assim, devia preservar seu significado cultural e
estético, agora, com os monopólios da indústria cultural, essa proteção desaparece e o
valor de uso é substituído pelo valor de troca. Isso acontece porque, em vez da
apreciação estética, tudo que o artefato deve agora gerar é o prestígio: “o que se poderia
chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca;
em vez do prazer, o que se busca é estar informado, o que se quer é conquistar prestígio
e não se tornar um conhecedor” (DE, 148).

Isso significa que o valor de uso deixa de ser o conteúdo ou o significado do


artefato e passa a ser encontrado na avaliação social que o consumidor identifica na
hierarquia dos produtos. Em vez de ser julgado por suas qualidades próprias, seu valor
de uso, ou “seu ser” (DE, 148), o artefato cultural é julgado por sua classificação como
produto do mercado: o preço ou valor de troca que ele assume de acordo com a

535
avaliação social. O artefato é submetido então a um processo de inversão em que seu
valor de uso passa a valer como fetiche e o fetiche, a avaliação social, se torna seu único
valor de uso e, assim, seu conteúdo e significado como produto cultural. Disponível no
rádio ou na televisão, o artefato não é oferecido por um preço e aparece como
invendível, ou então como vendível, mas a preço irrisório, como uma entrada de
cinema. Ele se torna invendível porque, “considerado como um fetiche” (DE, 148) perde
o valor como mercadoria. Mas esse caráter de não ser oferecido para venda esconde o
verdadeiro fetiche da mercadoria cultural: ele só aparece como invendível porque o
patrocínio e a publicidade que financiam sua transmissão geram lucro aos
patrocinadores: “a ilusão realiza-se indiretamente por meio do lucro de todos os
fabricantes de automóveis e sabão reunidos, que financiam as estações, e naturalmente
pelo aumento das vendas da indústria elétrica que produz os aparelhos de recepção” (DE,
148-49).

Para chegar a esse resultado, a indústria cultural incorpora todos os meios


técnicos – cinema, rádio, televisão, música popular – numa síntese que padroniza,
homogeneiza e integra seus produtos num sistema que os reduz a diversas categorias de
produtos, determinadas de acordo com os diferentes grupos de consumidores
classificados estatisticamente:

A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito


que no Tristão, porque os elementos sensíveis – que registram sem protestos, todos eles,
a superfície da realidade social – são em princípio produzidos pelo mesmo processo
técnico e exprimem sua unidade como verdadeiro conteúdo. Esse processo de
elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance
(que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo
do capital investido (DE, 116-17, grifos acrescentados).

Integrados num sistema de produção e orientados pela padronização em vista do


consumo, os produtos dos diferentes meios técnicos da indústria cultural parecem servir
apenas ao lucro e a reiteração do sistema de poder, já que “a racionalidade técnica hoje
é a racionalidade da própria dominação” (DE, 114). A indústria cultural formaria então
um sistema integrado no qual a cultura seria produzida em série e orientada pelos
imperativos do lucro e do comércio e, assim, com as características da produção em
massa: a padronização, homogeneização e adaptação ao mercado. Como objetos
culturais, eles também teriam a função ideológica de legitimar as sociedades capitalistas

536
e integrar os indivíduos à estrutura de funcionamento e ao sistema de necessidades,
idéias e comportamentos engendrados nessas sociedades.

A análise de Adorno tende, em conseqüência, a apresentar a indústria cultural de


forma monolítica e homogênea, como totalmente orientada para a manipulação de uma
massa de consumidores passivos e com a função ideológica de reprodução e adaptação
dos indivíduos ao sistema estabelecido. Não faltam passagens em que os meios técnicos
da indústria cultural são descritos como fatalmente produzindo, em vez de apreciadores
do belo, consumidores passivos e incapazes de atitude crítica. Assim, o caráter
essencialmente ideológico e manipulador do cinema provém de sua natureza essencial
ser a de duplicar e reforçar a realidade (DE, 118) e ao jazz é atribuída uma “pseudo-
individualidade”, porque ele articularia suas interpretações pela reprodução mecânica
estereotipada (DE, 120) que suprime a liberdade que é própria da improvisação e a
transforma em “improvisação padronizada” (DE, 144). Cito aqui em especial a
passagem em que Adorno compara o rádio ao telefone:

A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone


permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o
rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente
aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu
nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle (DE,
114-15).

No entanto, apesar do tom pessimista, a existência de textos como a homenagem de


Adorno a Chaplin2, reconhecendo momentos utópicos e de autocrítica em sua obra, ou o
reconhecimento do potencial artístico da vanguarda no cinema nos indicam que esse é
talvez apenas um lado da análise. Uma passagem desse mesmo texto da Dialética do
Esclarecimento permite uma outra conclusão.

Ao examinar como a integração dos diferentes meios técnicos da indústria


cultural faz parte da racionalidade da dominação, Adorno diagnostica que a
padronização e a produção em série teriam eliminado a “diferença entre a lógica da obra
e a lógica do sistema social” (DE, 114). Ele quer dizer com isso que, ao identificar a
lógica da produção da obra à lógica do sistema de produção, a indústria cultural
suprimiu todo significado e conteúdo da obra enquanto expressão estética e reduziu a
produção ao conjunto de procedimentos padronizados que a submetem aos imperativos

537
do mercado. Por esse mecanismo, a lógica da obra nos diferentes meios técnicos da
indústria cultural é substituída pela lógica do sistema social que “hoje é a racionalidade
da própria dominação” (DE, 114) e seu valor de uso passa a ser identificado ao valor de
troca que reduz o produto a uma mercadoria vazia de conteúdo cultural. Mas isso não é
tudo. Adorno completa essa análise comentando: “isso, porém, não deve ser atribuído a
nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas a sua função na economia atual”
(DE, 114). Isto é, os diferentes meios técnicos da indústria cultural estão na origem de
uma produção de artefatos vazios de conteúdo e significado cultural porque na verdade
estão submetidos à lógica de um sistema social que, orientado pela racionalidade da
dominação, submete a lógica da obra à lógica do sistema de produção.

Isso significa que na análise dos produtos culturais, podemos distinguir a lógica
da produção da obra da lógica do sistema de produção submetido à racionalidade da
dominação. Um artefato cultural será tanto mais padronizado e manipulador quanto
mais ele estiver submetido à lógica desse sistema. Mas, inversamente, na medida em
que conseguir escapar a essa lógica, ele pode desdobrar ou criar sua própria lógica como
artefato cultural, preservar seu valor de uso, “seu ser”, seu significado e conteúdo
cultural e estético.

Isso dá à análise de Adorno uma flexibilidade que seu estilo, preocupado em


enfatizar a relação entre a integração dos sistemas técnicos da indústria cultural e o
sistema econômico em que eles estão integrados, tende a ocultar. Uma tal abertura
permite reduzir a homogeneidade que a análise Adorno parece atribuir às produções da
indústria cultural, ver nelas a possibilidade de servir como meio para a expressão
artística e cultural autêntica e até mesmo carregar consigo momentos utópicos e de
contestação como o riso de Chaplin.

2
Adorno, T. “Chaplin Times Two”. URL: http://popcultures.com/Theorists/9/theodor-adorno.

538
Formação e autonomia do professor universitário: um estudo na Universidade Federal de
Goiás

Maria do Rosário Silva Resende


UFG & PUC/SP

Compreender como se constitui e se desenvolve a conduta moral, desvendar as causas


subjetivas e objetivas que levam o sujeito a agir consciente ou inconscientemente, de uma ou de
outra forma, instiga-me e inquieta-me há muito tempo. Nas discussões teóricas, nas relações
cotidianas, seja em nossa profissão, seja em nossa vida familiar, a todo o momento nos
deparamos com situações que nos impõem uma tomada de decisão, ou seja, somos levados a
fazer uma ou outra opção. E são inerentes à ação de optar o certo e o errado, o bem e o mal. Há,
assim, uma exigência de que nossas ações sejam submetidas a reflexão, a julgamento e a
decisão. Do mesmo modo, somos muitas vezes obrigados a julgar e a rever nossas ações e as
dos outros com base em um comportamento, uma conduta, uma atitude moral. Essa discussão
sobre a moralidade humana é complexa. Apenas uma ciência, isoladamente, não consegue
abarcar as principais facetas dessa temática.

Ante a complexidade do assunto, venho discutindo-o das perspectivas da Psicologia, por


ser minha área de formação, e da educação, por ser o espaço profissional de minha atuação. No
mestrado em Educação Escolar Brasileira (FE/UFG), foi tema de minha dissertação Educação
Moral e Práticas Escolares Construtivistas (Resende, 1997). Nesse trabalho, foram
desenvolvidos: a) um estudo das concepções de educação moral, conseqüentemente do
desenvolvimento moral nas teorias pedagógicas que influenciaram a educação brasileira
(Herbart, Pestallozzi, Dewey, a abordagem tecnicista e a pedagogia Católica); b) uma análise da
educação moral na perspectiva construtivista, baseada em Piaget, Kohlberg e Vygotsky e c) um
levantamento dos estudos realizados no meio educacional brasileiro relacionados com a questão
moral (teses, dissertações, livros e artigos). Foi realizada também uma pesquisa empírica em
quatro escolas de Goiânia vinculadas a uma prática denominada construtivista. As investigações
confirmaram a hipótese levantada de que a educação moral, na prática educacional de
fundamentação construtivista, é tomada como um processo importante, mas não assumida
como tarefa do processo de escolarização, ocorrendo, no máximo, como um subproduto da
prática educativa.

No desenvolvimento da pesquisa e na elaboração de minha dissertação, começou a


se delinear a perspectiva de que a formação moral vai além do indivíduo isolado ou de uma

539
instituição escolar. A elaboração de conceitos morais, de forma isolada da sociedade e da
cultura, implica tratar o homem de maneira abstrata. As condições materiais de vida devem ser
vistas pela Psicologia como constitutivas do psiquismo e da subjetividade. Só poderemos
compreender os fenômenos psicológicos constitutivos da subjetividade, entre eles a formação
dos valores, se concebermos seu desenvolvimento por meio de um processo histórico-social.

A conclusão de minha dissertação de mestrado apontava para a relevância da teoria


de Habermas para a reflexão sobre a moralidade. Segundo Apel (1994) e Freitag (1992), a
Teoria da Ação Comunicativa fornece elementos para a Ética Discursiva, uma teoria da moral
que recorre à razão para a sua fundamentação e que nos permite pensar a questão da moralidade,
concomitantemente, de três pontos de vista: o filosófico, o sociológico e o psicológico.

Os fundamentos da Ética Discursiva repousam sobre a razão comunicativa e esta,


segundo Apel (1994), nos conduz à filosofia de Kant e à tradição da filosofia moral cognitiva e
iluminista. A via da Sociologia também se faz presente e se sustenta na teoria social enunciada
por Parsons, Weber, Durkheim e Marx. A Ética Discursiva se fundamenta na ação discursiva. Já
o caminho da Psicologia é o que nos leva à constituição da consciência moral e, tendo como
base a competência comunicativa de um indivíduo, vai ao encontro do caráter intersubjetivo ou
dialógico da ética discursiva. A linguagem serve de apoio para essas três vias e a Ética
Discursiva a pressupõe. Segundo Freitag (1992, p.238), esta fornece a Habermas “[...] o
denominador comum que permite integrar as perspectivas filosóficas, sociológicas e
psicológicas, possibilitando a unidade na inter e multidisciplinariedade”. Logo, Habermas se
interessa pela linguagem “[...] como um meio no qual se realizam interações [...]” (Freitag,
1992, p.238), ou seja, seu interesse é pelas “interações lingüísticas mediadas”.

Habermas (1983 e 1989) distingue duas formas de ação: a instrumental e a


comunicativa. Estabelece uma hierarquia entre elas e privilegia a segunda em relação à
primeira; não nega a validade e a necessidade da ação instrumental para assegurar a reprodução
material e institucional da vida humana. Para ele, a ação comunicativa é mais fecunda,
complexa e ampla, pois permite que nos situemos no mundo no qual estamos inseridos por meio
de interações diversas. O autor considera o entendimento como um mecanismo de coordenação
de ações, mediante o qual a pessoa procura, por meio de uma argumentação racional, convencer
a outra da verdade de suas afirmações, da validade de uma norma ou da fidelidade de suas
declarações.

Tomando-se como ponto de partida essa concepção, coloca-se em pauta a seguinte


questão: como os indivíduos podem desenvolver sua capacidade argumentativa e chegar ao

540
entendimento da ética discursiva que os leve a uma teoria moral, com novos princípios morais, e
que oriente suas ações em contextos sociais estruturados? Este questionamento se faz necessário
porque, em grande parte dos estudos realizados (Herbart, Pestalozzi, Piaget, Kolberg etc), a
moral, para se concretizar, reivindica um ser autônomo. Como pensar, portanto, esse tema a
partir da sociedade capitalista que impede o desenvolvimento do indivíduo verdadeiramente
autônomo? Creio que não seria privilegiando somente um dos tipos de ação, a ação
comunicativa, apesar de reconhecer sua importância e seu valor.

Pensar o desenvolvimento moral dando ênfase à ação comunicativa parece-nos


insuficiente, pois a ordem burguesa instrumentalizou a razão. Portanto, mesmo que os
indivíduos desenvolvam suas capacidades argumentativas no intuito de atingirem uma ética
discursiva, dificilmente conseguirão alcançar princípios morais orientadores de suas ações em
direção à dignidade e à liberdade humanas. A sociedade atual é regida por relações de
dominação cada vez mais indutoras da irracionalidade e do desrespeito à natureza do homem
que o levam à degradação. Conseqüentemente, desenvolve-se uma concepção de moral
condizente com essa ordem capitalista de produção, segundo a qual os sentidos humanos são
moldados sob a forma de mercadoria, o que impossibilita o surgimento do ser autônomo, como
analisa Matos:

Para a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, a formalização do


indivíduo e da natureza pela racionalidade abstrata e quantificadora é
a tradução contemporânea da transformação do individuo em “mero
agente da lei do valor”. No capitalismo, bem como em todas as
sociedades produtivistas, há redução de todos os valores a valores de
troca – contrariando os ideais do Iluminismo filosófico e político, pelo
menos em sua expressão kantiana, segundo "quando uma coisa tem
preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas
quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto não permite
equivalente, então ela tem dignidade". (Matos, 1997, p.148).

Dessa forma, na sociedade capitalista a autonomia do indivíduo está impedida de se


expressar, ou seja, sua expressão formal é reduzida, pois o “[...] capitalismo esclerosa e
dicotomiza a individualidade até o mais profundo do que era seu foro íntimo” (Palangana, 1998,
p.188). Loureiro (1999) afirma que, nesse sistema social, a reificação se estende da consciência
à sensibilidade, impedindo a formação de seres autônomos. Assim, as abordagens teóricas
(Pestalozzi, Herbart, Dewey, Piaget, Vygotsky, Kohlberg, a abordagem tecnicista e a pedagogia
católica) anteriormente estudadas em minha dissertação de mestrado, tratam o indivíduo, de

541
certa forma, como algo abstrato, isolado do contexto social e cultural, mesmo que algumas
apontem para interações e mediações sociais.

A moral da pessoa se faz presente no decorrer de sua formação. Compreender os


obstáculos que impedem a constituição dessa pessoa como um ser autônomo é essencial para o
desvelamento de sua conduta moral. A compreensão das relações constitutivas da sociedade, da
cultura e de todas as formas de dominação existentes é o que realmente se pode chamar de
formação no seu sentido mais amplo. Compreender isso é compreender a própria conduta moral
do indivíduo, pois este reflete o processo constitutivo da sociedade, da cultura e dele próprio.
Seu desenvolvimento moral ocorre no transcorrer de sua formação cultural. É importante
reconhecer que são indissociáveis os processos de constituição da sociedade e de formação do
indivíduo. Dessa forma, refletir sobre sua formação e sua autonomia é pré-requisito para a
compreensão da moral presente na sociedade.

As análises da teoria crítica da sociedade proporcionam elementos para essa reflexão,


especialmente por meio das obras de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse.
Esses autores contribuíram significativamente para desvelar a dominação presente na sociedade
burguesa, discutindo as possibilidades de autonomia e de emancipação da pessoa sobre as bases
da formação cultural vigente nessa sociedade.
O indivíduo se constitui no seio da sociedade por meio das mediações sociais que o
levam a introjetar a cultura. E é justamente esse movimento que nos ajuda a entender seus
comportamentos, atitudes e condutas. Assim, o interesse pelo tema da moralidade humana se
redirecionou para a questão da formação e da autonomia e a busca pela compreensão da moral
não foi abandonada, antes foi ampliada.
Dessa forma, a investigação que vinha ocorrendo desde o mestrado sobre o tema da
moralidade, ainda que de um ponto de vista parcial, continua na minha tese de doutorado a
partir das mesmas perspectivas: da Psicologia e da Educação. O campo de pesquisa é a
universidade e a amostra é composta por seus professores. A investigação agora está focalizada
no processo de formação destes professores como indivíduos na função de docência.
Horkheimer (1976), ao analisar a universidade alemã, afirma que “[...] o modo de
pensar dos acadêmicos esteve marcado decisivamente na e pela Universidade [...]” (p. 148). O
autor insiste que se deve prestar atenção aos problemas da instituição, porque os elementos
democráticos que ainda existem neste espaço educacional são importantes para muitos
professores e estudantes no sentido de lhes abrir os olhos em relação a atitudes que são, ao
mesmo tempo, perniciosas ao indivíduo e geradoras de barbárie no contexto social. Deve-se

542
também, segundo ele, pensar a universidade como um espaço de formação reconhecido
socialmente.
Sem dúvida, também no Brasil a universidade é uma instituição importante; em que
pese todas as suas contradições, ela tem marcado a sociedade e a formação de seus cidadãos.
Não se pode esquecer que ela participa da formação de grande parte das pessoas que estão no
mercado de trabalho, na administração política do país e, em especial, dos professores dos
ensinos fundamental e médio do sistema escolar, assim como dos professores da própria
universidade. Interfere de maneira substancial, direta ou indiretamente, nos vários rumos da
sociedade, por meio dos alunos que forma e pela maneira como ela atua no ensino, na pesquisa
e na extensão. A universidade, portanto, é também uma instituição reconhecida socialmente
como espaço de formação, na sociedade brasileira.
A opção pela Universidade Federal de Goiás como campo da pesquisa empírica
objetivou investigar a formação de seus professores e as possibilidades de autonomia em suas
relações profissionais na instituição. Buscou-se compreender os modos de constituição da
sociedade desenvolvidos no interior da instituição e como estes afetam aqueles que assumem a
função de professor.
Em razão de minha experiência como professora da UFG, venho observando as
mudanças impostas às universidades, especialmente as que dizem respeito à estruturação e à
organização. Desse fato decorreu a opção por avaliar a influência que essas transformações, em
parte motivadas pelas políticas educacionais, estão exercendo no contexto das universidades
públicas, no que se refere às condições objetivas de trabalho e às possibilidades de formação
presentes ali, especialmente, com relação a seus próprios professores. Observa-se, cada vez
mais, a cobrança de um tipo de produtividade que, por estar vinculada à burocratização
excessiva das atividades docentes, em alguns momentos, parece estar dissociada das atividades
próprias da educação. Isso representa um obstáculo para o que é fundamental nessa função:
pensar, refletir, analisar. O tema da moral neste trabalho é visto como crítica ao processo de
formação que se sustenta na razão instrumental, pois, como salienta Matos:

[...] a filosofia moral de Adorno, a exemplo de sua dialética, é


negativa. Se a ética é má consciência estilizada, a moral é autocrítica
da razão, indenização da “vida mutilada” [...] mundo de mínimas
morais, a atualidade testemunha a crise espiritual das sociedades
contemporâneas e a racionalidade fundada no valor de troca. O
mercado é o agente subordinador de todos os planos da vida ao fator
econômico. E a indústria cultural é a expressão mais patente da
insolvência da educação formadora, sob o impacto de valores
empresariais do sucesso e do lucro. (1999, p.143, grifos nossos).

543
Assim, quando a pesquisa se direciona para o desvelamento das relações entre
autonomia e repressão na formação do professor universitário, a reflexão moral se faz presente.
Buscou-se, nesse momento, compreender os mecanismos que entram em ação e anulam, ou
neutralizam, o caminho da emancipação desse indivíduo que assume a função de professor e
afetam sua educação formadora, acarretando possíveis conseqüências para seus alunos. Como
afirma Matos (1999), com base na teoria adorniana, a moral é a autocrítica da razão, pois, de
outra forma, ela seria inútil.
A crítica da razão torna-se, desse modo, uma exigência para a formação do ser
verdadeiramente autônomo e de uma sociedade que lhe seja condizente. Nesse sentido passei a
repensar os conceitos que vinha estudando, principalmente o conceito de moral, ao qual me
dediquei, com afinco, durante o mestrado. Este estudo teve continuidade na elaboração do
projeto de pesquisa apresentado para a seleção no doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da PUC/SP. O primeiro momento do trabalho, dedicado à crítica do
conhecimento construído sobre o assunto, foi de perplexidade; posteriormente, houve, de certa
forma, uma mudança de rumo em minha proposta de investigação: passei a conceber a moral
como autocrítica da razão. Assim, formação e moral se encontram na crítica da razão como
condição do indivíduo autônomo.
Assim, partiu-se para discutir, por meio da teoria crítica da sociedade, a crítica
da razão como exigência para a formação do indivíduo autônomo, ou seja a formação e
sua relação com as possibilidades de constituição do indivíduo autônomo1. Iniciou-se
por uma reflexão sobre o tema da moral para explicar a passagem de um entendimento
abstrato e parcial da questão da moralidade, principalmente no contexto educacional,
para uma visão concreta sobre o tema, o que requer compreender a constituição
sociocultural. Portanto, entender a progressiva dominação do indivíduo pela sociedade é
fundamental para a compreensão de sua formação e, por conseguinte, da moral
constituída e constitutiva neste contexto. Nesses termos, são discutidas as possibilidades
de sua autonomia e emancipação com base na formação cultural. Dessa forma, buscou-
se estabelecer uma relação entre a formação do indivíduo e a educação e, ainda, refletir
sobre o papel do professor neste contexto.
Destacou-se, neste trabalho, a necessidade de investigação sobre a universidade,
considerada como lócus privilegiado de formação, na busca da relação entre a universidade e a
formação do indivíduo. Iniciou-se com um breve histórico do ensino superior no estado de

544
Goiás, objetivando situar a Universidade Federal de Goiás no contexto do ensino superior do
país e no sistema de instituições de ensino superior da rede federal. Fez-se, também, uma
reflexão sobre o debate que ocorre no contexto universitário atualmente: Universidade: Crítica
ou Produtivista?2. Procurou-se evidenciar que a proposta de privatização das universidades
públicas, embora exista de forma camuflada, promove o desmonte do compromisso social,
político e crítico destas instituições e a adaptação de seus professores a um processo
produtivista.
O trabalho docente encontra-se em situação precária e as análises indicam que as
condições de trabalho dos professores universitários deixam marcas em sua formação, afetam
suas possibilidades de plena autonomia e, em especial, afetam sua função de ensinar. Isso
representa um obstáculo para que esses professores desenvolvam experiências verdadeiramente
formativas e realizem reflexões críticas, o que compromete sua autonomia no exercício da
função. Dessa forma, eles não poderão participar efetivamente no desenvolvimento da
autonomia de seus alunos, pois terão dificuldade de direcionar o processo rumo a uma educação
emancipatória.
Tendo como base uma pesquisa empírica realizada com os professores da UFG
analisou-se as possibilidades de autonomia dos professores por meio de um estudo das
relações cotidianas estabelecidas na Universidade de Goiás,. A população alvo da pesquisa foi
constituída pelos professores do quadro efetivo, com o título de doutor e contratados com
dedicação exclusiva, que não estivessem lotados nas pró-reitorias nem no Centro de Ensino e
Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE), ou seja, participaram somente os professores em cujas
unidades fossem desenvolvidos cursos de graduação. A amostra representativa foi constituída
por sorteio, totalizando 56 professores. Todas as áreas do conhecimento nas quais estão
divididos os cursos da UFG, que é a mesma estabelecida pelo CNPQ, foram representadas.
O principal objetivo da pesquisa apresentada neste trabalho de tese, de pesquisa, é
contribuir para a reflexão sobre a formação do professor universitário, analisar e discutir as suas
possibilidades de autonomia e adaptação, bem como as possibilidades de continuidade de
formação no cotidiano. A hipótese formulada é a de que as condições objetivas de trabalho do
professor das universidades públicas federais afetam sua atuação como docente, sua autonomia,
sua conscientização e sua autocrítica no trabalho cotidiano.
Para levantar as informações imprescindíveis à realização dos objetivos e à verificação
das hipóteses da pesquisa, utilizou-se como instrumento um questionário. Os dados empíricos

1
A partir desse momento, sempre que se referir ao desenvolvimento, à formação do indivíduo é sobre o
indivíduo autônomo que se estará falando, pois indivíduo supõe autonomia, sendo esse um aspecto da
própria lógica e reivindicação do pensamento liberal e burguês.
2
Tema do IV Congresso da USP, realizado em setembro de 2001.

545
obtidos com este instrumento tiveram um tratamento estatístico. O levantamento estatístico, a
análise de conteúdo e os fundamentos da teoria crítica da sociedade nortearam as reflexões,
análises, discussões e as conclusões da pesquisa.
Ao final da pesquisa, após a análise dos dados, podemos afirmar que a idéia de
universidade crítica, autônoma, está diretamente ligada, pelo menos, a uma
gestão/administração democrática no seu interior, que não seja crítica apenas da sociedade, mas
também de si própria. O caráter público da universidade deve permitir que ela seja aberta à
reflexão, às controvérsias teóricas, metodológicas, técnicas, existenciais, sociais e políticas, de
forma a favorecer a fermentação de verdadeira formação cultural. Este entendimento orientou,
neste trabalho, a reflexão sobre a formação dos professores universitários.
Eles necessitam desenvolver, constantemente, experiências formativas, ou seja, aquelas
que permitem o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo, da autonomia da razão, da
criatividade, da visualização do potencial libertador da ciência e técnica. Enfim, experiências de
resistência à dominação que promovam uma consciência política. Sabe-se que a constituição do
indivíduo autônomo decorre de suas relações e experiências com a realidade social.
A formação do professor deve ser direcionada para a resistência à adaptação do
pensamento. A crítica e a reflexão desvelam aquilo que aprisiona o pensamento. Revelam as
contradições e sinalizam para as possibilidades de superação. Portanto, o processo de formação
do professor não se limita à sua formação acadêmica em seus vários níveis, embora este seja um
componente importante, ele se desenvolve continuamente em suas relações cotidianas no
interior da universidade, pois o indivíduo (o professor) também se forma e se transforma no
trabalho, ou seja, nas relações sociais de trabalho. Pode se dizer que o processo formativo do
docente é um continuum, pois inclui a formação pretérita, a formação acadêmica (produto da
própria universidade) e as relações cotidianas no interior da instituição universitária.
Neste movimento se faz presente a formação cultural, que não é outra coisa senão a
cultura pelo lado de sua apropriação subjetiva. A profissão de ensinar, as atividades docentes e
em que condições elas são desenvolvidas, as políticas e legislações que regem a universidade, as
formas de relações sociais presentes na instituição universitária afetam a formação dos
professores.
Há muitas pesquisas relacionadas com a formação do professor que, em grande parte,
buscam compreender como ele deve se formar, outras procuram determinar as características,
habilidades e competências que estes profissionais devem possuir para exercer sua função. Mas,
como cobrar do professor determinadas competências em uma sociedade que é regida por
relações de dominação que enfraquecem o indivíduo, se elas afetam seus desejos, sua
espontaneidade, sua vontade e sua criatividade por meio de valores extremamente

546
individualistas e consumistas que levam a uma pseudoformação?
A resposta para esta questão, é certo, encontra-se na compreensão da relação entre o
processo de formação cultural do professor e suas possibilidades de constituição como um
indivíduo autônomo e emancipado, tendo como ponto de partida as relações promovidas pelo
modo de produção capitalista presente nesta sociedade. Nesta pesquisa, o estudo dessa relação
se focaliza no contexto de uma universidade pública federal. Não se pode entender o professor
isolado de suas determinações sociais, de outro modo, estaríamos tratando-o como um ser
abstrato, lidaríamos apenas com a aparência. O indivíduo não é independente do todo social. As
mediações das leis do mercado, ou seja, das relações de produção presentes na formação da
sociedade encontram-se também na formação do indivíduo. Dessa forma, pode se dizer que
quanto mais o indivíduo é reforçado, mais forte também se torna a sociedade. Quando o
indivíduo se enfraquece, o individualismo cresce e, conseqüentemente, a sociedade se torna
mais frágil no sentido da resistência à barbárie social e do seu enfrentamento.
Tendo em vista que na vida institucional estão presentes as relações constitutivas da
sociedade, pode se dizer que quanto mais à universidade contar com a autonomia dos
professores, mais forte ela se tornará perante o todo social. Quanto mais frágeis forem os
professores, mais frágil à universidade se apresentará ante as pressões das leis de mercado, pois
vai se perdendo a noção do coletivo, do “bem comum” e, conseqüentemente, seu maior
compromisso, que é o de não se atrelar a doutrinas. E esta é uma condição necessária à
manutenção da liberdade para exercer a sua função: a formação direcionada para a liberdade e
para a dignidade humana. A real autonomia da universidade só se concretizará em conjunção
com a autonomia de seus professores, sem a qual a autonomia institucional será apenas
aparente.
Um ponto fundamental na consecução da autonomia do docente é a sua identificação
com o conhecimento e com a crítica deste mesmo conhecimento, só assim ocorrerá o verdadeiro
esclarecimento. E, desse modo, ele conseguirá superar a instrumentalização da razão, resistirá a
tornar-se um “sujeito cativo” (nos parâmetros apontados pela teoria crítica da sociedade) e
desenvolverá a capacidade de realizar experiências formativas necessárias para a constituição de
indivíduos autônomos. Este docente manterá a capacidade de se abrir aos elementos da
verdadeira consciência, apropriando-se dela de forma construtiva e produtiva para a formação
do homem emancipado.
Se a consciência é dominada pela racionalidade presente dos meios de produção, ela não
dará crédito a nenhuma racionalidade diferente, logo sua capacidade de resistência ficará
afetada. Por isso, o indivíduo deve, conscientemente, internalizar a objetividade, pois só tendo
uma consciência da realidade poderá desenvolver algum tipo de resistência e não apenas seguir

547
o curso do rio, seguir a massa. A diferenciação dos indivíduos é que possibilita a constituição do
sujeito.
A busca pelo entendimento da formação do indivíduo traz consigo uma antiga
inquietação, ou seja, a compreensão da moralidade humana. Ela tem como ponto de partida a
percepção de que a verdadeira formação se dá por meio de valores historicamente
desenvolvidos e direcionados para a dignidade humana. Partindo-se dessa visão, é admissível
tratar a moral como crítica da razão.
Na sociedade contemporânea, no “mundo administrado”, a razão reconhecida,
valorizada é aquela que confunde o verdadeiro com o exato e exclui outras formas de
racionalidade que não sejam as que se constituem pela razão instrumental. Assim, a crítica da
razão é crítica da formação do indivíduo e da sociedade. A razão se torna instrumento para
dominar e subordinar todos os aspectos da vida humana ao fator econômico, o que torna
essencial a sua crítica. Ela acaba por conformar a objetividade e a subjetividade do homem. A
crítica é necessária para visualizar possibilidades de escape dessa situação.
Buscou-se verificar, nesta pesquisa, como o professor universitário vem resistindo ao
“mundo administrado”, à instrumentalização da razão e da ciência com todas as implicações que
isso possa ter em suas relações cotidianas. Assim, procurou-se refletir acerca do papel do
professor, de sua formação e de suas condições de trabalho, com a finalidade de verificar as
possibilidades, os obstáculos e os impedimentos para a continuidade de sua formação.
O caminho percorrido no processo investigativo aponta indícios da confirmação das
hipóteses: as condições objetivas de trabalho dos professores das universidades públicas
federais (UFG) afetam as possibilidades diárias de sua formação, servindo como obstáculo para
sua autonomia. As condições existentes nestas instituições não favorecem, nas relações
cotidianas, a auto-reflexão, dificultando, assim, a formação de uma consciência crítica. Ocorre,
no interior da instituição universitária, uma progressiva adesão às leis de mercado que tem
modificado as relações na própria universidade e dela com a sociedade e gerado a
burocratização das atividades acadêmicas (inclusive nas áreas de ensino, pesquisa e extensão),
criando, em virtude disso, obstáculos para a liberdade e para a emancipação dos professores.
Grande parte da burocratização está ligada à implantação das políticas educacionais, em
especial as relacionadas com os sistemas de avaliação e com a cobrança de produtividade do
professor ou da instituição. Há, da parte dos professores, um questionamento em relação aos
mecanismos de comprovação de sua produtividade e de avaliação do trabalho acadêmico. A
grande maioria deles aprova a existência de um sistema avaliativo de seu trabalho, mas destaca
que o problema não está em produzir, em ser produtivo e, sim, no tipo de produção e na forma
como é cobrada pelos órgãos que têm essa competência no sistema educacional.

548
Os processos avaliativos existentes, até o momento, não se organizam como uma
estrutura de conhecimento da realidade, mas, principalmente, como uma estrutura burocrática de
controle direcionada para a dominação. E essa burocratização da vida acadêmica reduz o
professor a um funcionário estatal, à condição de técnico. Perde-se, assim, a dimensão
intelectual de sua função que é exercer a crítica, pois o espaço e o tempo para isso nas relações
cotidianas, no interior da instituição universitária, diminuem cada vez mais. Há, portanto, um
bloqueio do exercício de sua autonomia, não só no nível da reflexão, mas também da ação e das
escolhas.
Os professores que compuseram a amostra apontam que, apesar de toda penúria em que
vive a universidade pública, ainda gozam de uma autonomia relativa, especialmente, em relação
às atividades de ensino, pesquisa e extensão. Também conseguem ainda realizar trabalhos, no
âmbito de suas atividades acadêmicas, que consideram gratificantes.
Os dados revelam, em uma significativa parcela dos professores da amostra desta
pesquisa, comportamentos de adaptação, conformismo e apatia. Isso decorre do sentimento que,
com a sua participação política, ele pouco pode mudar a realidade presente. Mas, ao mesmo
tempo, alguns professores afirmam que somente com a vontade política poderão promover
mudanças, transformações na sociedade. A conscientização da objetividade presente na
sociedade e na universidade é o que fará o professor vislumbrar que sua vontade política tem
força e que pode acarretar modificações na sociedade e, conseqüentemente, em sua própria
existência. Assim, a apatia irá desaparecendo, mas, para isso, é necessária a realização constante
da auto-reflexão, da autocrítica.
No meio universitário, deveríamos aproveitar os espaços onde ainda é possível ser livre
e promover experiências formativas que mantivessem uma posição de indignação, de rebeldia e
de não-conformismo ante as situações que cegam a consciência e oprimem os indivíduos
(professores, alunos e funcionários). Isso já seria um princípio de resistência, pois não é possível
uma formação cultural em uma sociedade ou instituição que desumaniza o homem. Temos que
encontrar brechas nessa estrutura social que nos levem a desenvolver a consciência política.
Então, poderemos visualizar as possibilidades de saída na ordem constituída e ampliá-las em
direção a uma sociedade que viabilize verdadeira formação para seus integrantes.
Nos meios governamentais e acadêmicos atuais, está sendo proposta uma reforma no
sistema universitário brasileiro. Muito se tem debatido, porém, que qualquer reforma da
universidade não poderá cercear a liberdade do professor e nem retirar a sua autoridade, pois, se
isso ocorrer, terá fim a autonomia do professor ainda existente e, em conseqüência, a autonomia
da universidade será fictícia. Sem professores autônomos não existe universidade autônoma.
A pesquisa empírica realizada apresentada proporcionou a coleta de um material rico.

549
Alguns dados foram analisados neste trabalho e tantos outros merecem ser aprofundados em
análises posteriores, em decorrência da direção apontada pelo próprio dado, por exemplo: a
relação dos professores com o movimento sindical, a participação e atuação dos funcionários
nas atividades acadêmicas, a questão das fundações que estão sendo criadas no interior das
universidades públicas, a prestação de serviços remunerados e suas interferências nas atividades
acadêmicas da instituição, a relação dos docentes entre si e outros temas.
Para finalizar, espero que os professores resistam diante das dificuldades encontradas na
sociedade. Só por meio da resistência surgirão oportunidades de experiências formativas que
possibilitem uma formação cultural para eles próprios e, conseqüentemente, para os seus alunos.
Assim, eles se constituirão em indivíduos diferenciados, evitando se tornarem mais uma
etiqueta, como afirma Drummond no poema intitulado “Etiqueta”:
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem,
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

Para não perder a nossa humanidade e nos tornar simplesmente coisa, simplesmente
uma etiqueta – sou professor universitário – é necessário sempre refletir sobre a nossa formação
e sobre as possibilidades constitutivas de uma verdadeira autonomia no ambiente universitário,
sem esquecer que trabalhamos em uma instituição pública com todas as suas contradições.
Não podemos deixar morrer a crítica, pois só com o seu exercício é que se pode
perceber que a teia do todo é tecida, cada vez mais, pelos meios de produção e pelas relações de
produção presentes na sociedade. Esta, por sua vez, está assentada em uma racionalidade
instrumental e, dia a dia, reduz-se o espaço da individualidade, da diferenciação, portanto do
indivíduo.
A aparência de liberdade que se observa na sociedade e que, de certa forma, parece mais
visível ou sentida no ambiente universitário, dificulta a visualização da liberdade e reforça, cada
vez mais, as formas de dependência e de indiferenciação. Portanto, serve de obstáculo para se
detectar e aproveitar as possibilidades de formação verdadeira, ou seja, de constituição de
professores autônomos em nossas universidades. Acomodação e apatia não podem fazer parte
do dia-a-dia do professor, cabe a ele lutar contra esses sentimentos.
Nós professores podemos ser pessimistas teóricos, mas, com a prática constante da
crítica, o otimismo aparece, pois este exercício leva à busca constante e não nos deixa acreditar
em soluções fáceis, portanto dificulta a catatonia. O sentimento de indignação se fará sempre
presente e nos levará a buscar lacunas na estrutura social que nos dêem acesso à promoção de

550
uma vida na qual a dignidade humana seja a meta.
As conclusões possibilitadas por este trabalho estão de acordo com o pensamento de
Adorno, Horkheimer e Marcuse em suas críticas à sociedade contemporânea. No “mundo
administrado”, onde a burocratização tende a avançar sempre, a individualidade estará cada vez
mais reduzida, como também estarão as possibilidades de autonomia e de uma verdadeira
formação do indivíduo. Horkheimer (1976, p.121) afirma que “[...] os homens neste mundo
burocratizado não podem desenvolver livremente suas forças, mas adaptar-se às regras
racionalistas, que obedeceram de forma instintiva [...] A individualidade terá cada vez um papel
mais reduzido [...]” nesta sociedade. O professor universitário não é poupado desse processo,
por isso é tão importante que ele tenha consciência da realidade para tentar resistir, pois, como
afirma Adorno (1995, p.154), “[...] o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da
resistência”.
Portanto, a crítica da razão é fundamental para continuarmos resistindo, no sentido de
sermos sujeitos de nossa própria vida, no sentido que o processo formativo, presente na
sociedade e especialmente na universidade, dê condições do desenvolvimento do indivíduo
realmente autônomo.

551
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554
A FACE ACABADA DA BILDUNG (FORMAÇÃO) NA FIGURA DO ÚLTIMO-HOMEM
DE NIETZSCHE

Maria dos Remédios de Brito


Universidade Federal do Pará

No prólogo de “Assim Falou Zaratustra”, o personagem central Zaratustra vai para a


montanha, onde fez seu recolhimento, sua escuta, sua intensificação pessoal, sem esquecer a
produção, a cultura, a civilização dita racional. Lá ocorreu um eco de um sublime espírito, que,
pelo esforço e força de desfazer o “desligamento” com tudo que é rebaixado, pôde conduzir e
produzir a si mesmo. O “si mesmo” não é postulado como uma propriedade que se dispõe e se toma
como controle, ou mesmo uma estabilidade para uma identidade, não é algo enclausurado pelos
seus valores, sem que isto queira demandar um itinerário fixado. Como um trabalho de
reconstituição, ele aflora outros sentidos. Foi pela dor, pelo horror, que Zaratustra fez o
afastamento, mas é também pelo seu conhecimento que ele pretende retornar à vida. Então, é pela
retomada de si mesmo, pela manifestação da retirada do lugar familiar, pela busca da estranheza
por um certo tempo, pela caracterização da extrapolação ao ver o que está vulgarizado pela palavra,
pelo costume, que ele efetiva para si mesmo um outro olhar: não mais ver de lado ou de baixo. Mas
é de cima da montanha que Zaratustra percebe o que é “vulgarizado” pelas crenças e verdades que
podem ser postas em outros eixos, inclusive a sua própria vida. Ele foi para a montanha já com um
processo de reflexão e, após todo seu amadurecimento, sentiu necessidade de descer, quer
mergulhar nas profundezas, quer sentir a vida em sua profundidade, quer doar, quer oferecer um
brinde ao homem. Depois de todo seu processo de transmutação, sem completude, pois não deseja
a conservação, ele dirige-se ao povo, reunido na praça do mercado1, mostrando-se como um
presenteador, alguém que leva um brinde, expondo, assim, a sua abertura perante o outro. Ele quer
ensinar o que seja o além-do-homem.
Segundo Scarlett Marton2, Zaratustra procura introduzir uma estratégia de comunicação:
diz que o além-do-homem está por vir: eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve

1
Este é um lugar significativo para Zaratustra, podendo ser visto como um espaço público de encontro, ou como a
própria feira, aquilo que se vende e compra, o lugar do comércio, do negócio, da troca. Em Zaratustra este lugar mostra
especialmente o lugar de penúria e depreciação do homem, aquilo que foi degenerado pela compra e a venda. O lugar
onde a palavra é esquecida, a linguagem não é entendida, e os gestos rudes são expostos. O homem foi se perdendo e
cada vez mais tornou-se empobrecido e vulgar. É no mercado que Zaratustra entende que a pobreza é comercializada e
vendida. Sobre essa questão, Christoph Türcke, no seu livro Nietzsche: O louco: Nietzsche e a mania da razão, faz uma
interpretação bastante interessante.
2
MARTON, Scarlett A procura do discípulo tão amado. Revista Impulso, p. 26.

555
ser superado. O que fizestes para superá-lo? 3. Ele é o sentido da terra, não seria então o ser que
Zaratustra coloca acima, já demarcando que sua comunicação vislumbra a criação, a avaliação
humana, demasiadamente humana. Por isso: Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e
não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! São envenenadores, que os saibam
ou não. São desprezadores da vida, são moribundos e eles estão, também, envenenados, a terra
está cansada deles: que desapareçam!4. Tudo isso foi recebido com desprezo e zombaria.
Zaratustra tenta mostrar para o povo quais condições de embuste ele está submetido, como a
negatividade se impôs e debilita todo o poder criador do indivíduo. De forma quase insistente, pede
o sentido da terra, ao mesmo tempo em que procura denunciar os envenenadores, os moribundos, os
desprezadores da vida. Logo mais, tenta mostrar para o povo que: O homem é uma corda estendida
entre o animal e o além-do-homem, uma corda sobre o abismo5. (...) O que é grande, no homem, é
ser ponte e não uma meta: o que pode amar-se no homem, é ser uma transição e um ocaso.6

3
Za/ZA, prólogo § 3.
4
Ibid .
5
Nietzsche fala que o "homem é uma corda estendida entre o animal e o além- do-homem" para demarcar o sentido
histórico da evolução do homem. Contudo, não é este o percurso de Zaratustra. Roberto Machado, no seu livro.
Zaratustra: tragédia nietzscheana, p. 50-51 diz que: " (...) Zaratustra, no início do seu aprendizado, mostra que o super-
homem é posto a partir de uma perspectiva linear de tempo, numa perspectiva teleológica, uma espécie de movimento de
realização do homem para um projeto de redenção do homem dos horrores e terrores da existência". Contudo, o autor
justifica que esta não é a última palavra de Zaratustra sobre o além-do-homem, e muito menos sob a perspectiva do tempo,
que se pode ver sendo desdobrado e visto de outra maneira no transcorrer da obra. O que parece é que Nietzsche quer
valorizar o aspecto dramático do aprendizado de seu personagem central e mostrar a possibilidade da superação, da
mudança de pensar, compreender e aprender diante do seu próprio viver, diante de suas próprias experiências. Sabe-se
que Nietzsche não é nenhum defensor do progresso. Roberto Machado salienta ainda, na página 51, que em sua
autobiografia, intitulada Ecce Homo, pode-se verificar que Nietzsche afirma, no prólogo deste livro, que não tem nenhuma
intenção de melhorar a humanidade. Do mesmo modo, no "Anticristo" § 4 " a humanidade não representa um
desenvolvimento para o melhor (...) O progresso é uma idéia moderna. No Crepúsculo dos ídolos, diz que o homem
moderno não apresenta nenhum progresso com relação ao homem renascentista. Essa caracterização, pode-se dizer, quase
messiânica que Nietzsche apresenta no início de seu livro "Assim Falou Zaratustra" é o que Nietzsche sempre combateu
em seus escritos, do mesmo modo que aqueles que viam na história um movimento para a perfeição. No "Humano
Demasiado Humano § 150", embora Nietzsche reconheça que, apesar de a civilização antiga ter sua grandeza no passado,
um sábio antigo também tem razão de não acreditar no progresso, sabe reconhecer que os homens na plenitude de sua
consciência podem orientar sua vida em relação a uma nova civilização, mas mesmo assim não se pode dizer que o
progresso necessariamente possa se efetivar. Na terceira parte de "Assim falou Zaratustra" a visão de que o presente é
justificado pelo futuro se torna ultrapassada. Na página 52 do Livro de Roberto Machado " Zaratustra: tragédia
nietzscheana" ele expõe tal questão e conclui que "a idéia de progresso não deve, portanto, ser interpretada
nietzscheanamente como um valor positivo, mesmo se o ensino de Zaratustra, no início de seu aprendizado, aponta nessa
direção". Pierre Héber-Suffrin faz a seguinte leitura: " o anúncio do super-homem é imediatamente seguido de uma
alusão às teorias evolucionistas de Darwin: 'até então, todos os seres imaginaram algo superior, acima de si mesmos (...) O
que é símio para o homem? (...) E é justamente isso que o homem deve ser para o super-homem.' Mas não se deveria
tomar essa passagem ao pé da letra, e esse exemplo é particularmente do uso que Nietzsche faz da ciência: não utiliza o
evolucionismo como argumento, mas como comparação pedagógica, imagem. Assim, o super-homem não é uma nova
espécie engendrada pela seleção natural, que substituiria o homem atual (...) o super-homem não pertence a uma nova
raça. Mas existe nisso um imperativo (...) " O homem é algo que deve ser superado" ( Cf: Héber Sufrin. O Zaratustra de
Nietzsche, p.54).
6
Za/ZA. prólogo § 4.

556
Ele quer demarcar que o além-do-homem é uma disposição para oposição ao homem
moderno, para os homens bons, cristãos e outros niilistas7, uma disposição para um novo pensar, ou
seja, para a necessidade de se perguntar sobre o próprio homem: quem é ele? Qual o seu sentido?
Ele não é como uma essência autêntica do homem. Retirando desde já qualquer noção
metafísica e religiosa sobre a compreensão de homem, ele vem confrontar a grande náusea com a
necessidade de afirmar novos valores, ou seja, ele se mostra como uma analogia que vem destacar a
grande miséria, a sujeira de toda cultura e aqueles que a produzem, mas, por outro lado, ele é o
rosto da grandeza humana. Sua grandeza está em ser uma corda estendida, ele é a ponte entre a
besta humana e o além-do-homem. O que é rico e digno de amor é exatamente não se colocar como
um fim, uma fixidade, mas uma travessia, uma transição. Por isso, longe da conservação, ele é um
abismo, uma vida em construção, em disposição, não um progresso a ser alcançado.
O além-do-homem seria o tipo homem liberto das crenças, dos conceitos fixados, das
verdades, dos dogmas, dos valores absolutos, capaz de compreender que a moral e a ciência não
passam de questões envolvidas por interesses e não podem ser vistas apartadas destes. O além-do-
homem não pode ser compreendido como natureza humana. Ele é só um sentido, o sentido do ser
do homem, do ser da terra, ou seja, é visto como uma exigência e não como uma realidade.8 Ele é
tão somente um homem livre, que não vê mais valores absolutos e crenças determinadas. A
sociedade e a cultura são desmascaradas, pois dentro delas há organizações que giram em torno de
normas, de leis, de deveres, de direitos, que emanam uma diversidade de interesses de poder. O
além-do-homem não deixa de ser uma viabilidade de crítica e de denúncia que Nietzsche utiliza
para fazer a sua crítica, mostrando a insuficiência da cultura do seu tempo.
Ele apresenta o homem como alguém que está caminhando, não como um fim em si
mesmo. Seu grande valor está em saber atravessar seu próprio abismo. Portanto, o que deve ser
superado é o homem sobre o homem, o obstáculo não é outro, mas ele mesmo. Neste contexto, do
ponto de vista formativo, Zaratustra nos proporciona uma imagem educativa, oferecida pela figura
do além-do-homem, que é de fundamental importância para a educação, no sentido de que pode
levá-la a repensar a própria noção de homem que a educação tanto fala. Zaratustra vê o homem não
como uma essência, como algo imutável, como quer a educação tradicional humanista cristã, que
parece criar uma imagem fixa do homem, pela qual a educação tem que expor para fora, tem que
conduzir. Do mesmo modo, a educação pragmática, pela necessidade de ser útil ao sistema, quer

7
EH/EH. Por que escrevo livros tão bons § 1.
8
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzscheana, p. 49.

557
moldar, enquadrar, dar forma, instrumentalizar o indivíduo, o que a leva a negligenciar todas as
possibilidades de criação e de superação.
Há na vida moderna um discurso em favor da criatividade, mas por trás de tudo isso se tem
um indivíduo rude, menor, emaranhado pela engrenagem do sistema, onde tudo parece igual e,
neste sentido, até a intelectualidade é atrofiada. Em favor disto, o homem torna-se coisificado.
O sentido humano da imagem do além-do-homem coloca é de um tipo que está em
formação constante, que não tem um fim em si mesmo, que não está acabado. O valor do homem
está exatamente em ter essa capacidade de superação e de travessia. O homem não é uma criatura
semelhante a Deus e, por outro lado, não tem um "eu" acabado, esperando por alguém que o
desperte. O humano é muito mais do que tudo isso que o classifica. Essas visões devem ser
derrubadas, questionadas, já que são efetivamente nocivas para se perceber os homens enraizados
como criadores. Pensar o homem a partir do olhar nietzscheano é percebê-lo como inventor,
avaliador e produtor. Aqui, pode-se dizer que Zaratustra sugere uma Bildung9 que esteja além da

9
Na origem do termo "Bildung" pode-se identificar formação, cultura, constituição. O radical Bild significa: 1- imagem,
figura; 2- aspecto; bilden: formar, conformar, moldar, constituir; compor, produzir. (Cf: Dicionário Alemão-Português.
São Paulo: Globo, 2001), conferir também: das Bilden: a) educar ou formar; b) criar; c) o formar-se; d) a forma, a figura.
(Cf: Duden -Deutsches universal Wörterbuch). De acordo com o dicionário é possível perceber que o radical "bilden" nos
remete para duas noções, a primeira diz respeito à atividade de produzir, moldar, dar forma em algo concreto. "Bild" nos
permite conjeturar as noções de imagem, figura, imitação, semelhança. Dessa maneira, a semântica nos esclarece os
sentidos de forma, formatio e imago/ imitatio. Estes dois significados de “Bildung” nos colocam a noção de criação como
algo que pode ser produzido, constituído, do mesmo modo que imprime a idéia de que criação, produção, deve ser
semelhante à idéia de criador. A "Bildung" é vista como expressão de uma imagem ou imitação. Neste sentido, leva à
idéia de perfeição, conduzindo para uma perspectiva religiosa. Segundo Willi Bolle, o termo "constitui o legado das
gerações de Winckelmann e Herder, de Schiller e Goethe, de Hegel e dos irmãos Humboldt (...) O conceito moderno de
Bildung surgiu na Alemanha a partir dos fins do século XVIII. É um conceito de alta complexidade, com extensa
aplicação nos campos da pedagogia, da educação e da cultura, além de ser indispensável nas reflexões sobre o homem e a
humanidade, sobre a sociedade e o Estado. É até hoje um dos conceitos centrais da língua alemã, que foi revestido de
uma carga filosófica, estética, pedagógica e ideológica sem igual, o que só é possível compreender a partir do contexto da
evolução político-social da Alemanha", e ainda diz: " No contexto do Classicismo, do Romantismo e do Idealismo
alemão, o conceito de Bildung sofreu uma valoração e ampliação enormes. Ultrapassou as noções de "educação",
"progresso" e mesmo "Aufklärung", tomando seu lugar ao lado dos conceitos de "espírito", "cultura" e "humanidade".
Com a modernidade, chegaram 'os tempos da formação' (Cf: BOLLE, Willi. A idéia de formação na modernidade. In:
Infância, escola e modernidade. (Org) Paulo Ghiraldelli Junior. São Paulo: Cortez; Curitiba: Editora da Universidade
Federal do Paraná, 1997, p. 14-18). Do mesmo modo, nos esclarece o texto "Paideia as Bildung in germany in the age of
enlightenment" de Paola Giacomoni, a história da idéia de Bildung se caracteriza por muitas fases e momentos, sendo que
o termo é apresentado com grande força e vitalidade na época do esclarecimento na Alemanha. O termo não tomou apenas
expressão, definiu atitude, uma concepção nova de vida. A sua convergência neste momento peculiar introduz uma
variedade de interpretações. O iluminismo o ergueu e o intensificou, deixando assim o seu aspecto religioso para
introduzi-lo na idéia antropológica. Neste momento da Alemanha o termo é envolvido diante do gênero literário que se
chama Bildungsroman. Contudo, se a tradição da Bildung levou aos estudos clássicos, que lhe permitiu a saída da esfera
religiosa, por outro lado, levou à esfera do amoldar de um indivíduo, provocando o florescimento da necessidade de uma
redireção para um modelo de perfeição universal, sendo definido a partir da idéia de regras precisas. A Alemanha se
tornou, no final do século XVIII, protagonista dessa preocupação, era a moda do Bildungsroman, enfatizado por Novalis,
Hölderlin, Goethe, entre outros, que constituíram a discussão dos modelos antropológicos. (Cf:
www.bw,edv/wcp/papers/mode/modegiac. Htm - Paideia as Bildung in Germany in the age of enlightenment).
Contudo, a partir da passagem para a sociedade burguesa, a formação passou a ser vista como um legado de todos,
levando a perspectivas de universalização da Bildung, que foi tomando um outro sentido, fazendo parte do

558
viabilidade da linearidade, da noção de saída da menoridade para maioridade, mas uma formação
que esteja além da mera conservação e aponte para um tipo que saiba conviver com o devir.
A defesa formativa que inspira essa imagem é de uma educação para a superação, que
exprime uma corporeidade rigorosa em imaginação, que esteja para além dos limites, que não seja
condicionada e se deixe levar pela facilidade, pela felicidade imediata, mas um tipo que saiba
exercitar o esquecimento como força plástica curativa, regeneradora10. Ele é esse tipo que desafia o
peso. Por isso, sua imagem representa um estado de leveza, mas seu trabalho não é fácil diante de
uma vida que perdeu a poesia, a paixão e a experiência de si mesmo. Essa é uma das perspectivas
mais difíceis de se realizar e talvez não se realize.
O homem, apresenta Zaratustra, deve superar o que está debilitado em si, o embuste cultural
pelo qual lhe foram impostos tanto os valores da tradição como o ritmo da produção e do consumo.
É essa a grande insistência de Zaratustra. Esse é seu labor.
Nietzsche insiste em falar de um homem que deve ser superado. É bom lembrar que o
sentido da superação não pode ser visto como processo evolutivo, não é uma meta, uma finalidade,
também não tem o sentido de superar uma raça superior. Mas há aqui um impasse por parte do
além-do-homem de Nietzsche, pois ele não apresenta no texto de Zaratustra desenvolvimento
satisfatório de explicitação. Vale ressaltar também que a superação do homem não pode ser

desenvolvimento histórico cultural, pois, como afirma Adorno, "a formação era tida como condição implícita a uma
sociedade autônoma (...) Sem dúvida, na idéia de formação cultural necessariamente se postula a situação de uma
humanidade sem status e sem exploração (...) (Cf: ADORNO, Theodor. W. teoria da semiformação. Educação e
sociedade, ano XVII, n. 56, dezembro, 1996, p. 391-392) . Nietzsche compreendia perfeitamente que na Alemanha do
século XIX a Bildung,– que outrora tinha sido um conceito–chave e importante para a vida e para o pensamento que
penetrou no campo da filosofia e da literatura, e que de alguma forma permitiu o exercício reflexivo e inovador–, na sua
época estava desgastada, enfraquecida esfacelada, inclusive devido às mudanças sócias e históricas . Se Bildung significa
modelar, formar, dar forma, conformar, configurar, também pode ser entendido como elevação espiritual,
aperfeiçoamento, cultivo, boa formação no sentido de ser bem informado em gosto, em sentimento, em juízo de valor,
bem cultivado em sua intelectualidade; neste último sentido a Bildung contribui para a elevação, mas é justamente neste
último sentido que Nietzsche compreende que a cultura Alemã de sua época não pode favorecer isso para o indivíduo,
portanto, põe a denunciar. A sociedade industrial burguesa não era capaz de entender a sua profundidade, pois a sua
maior preocupação era com o homem utilizável. Em Za/ZA, por exemplo, Nietzsche não se esquiva dessa crítica, por isso
provoca a se pensar um outro tipo de Bildung, aquela que versa sobre o chamado para a superação, para o tornar-se o que
se é, enfatizando o experimento, o exercício da individualidade, da criação, desse percurso que busca a si mesmo, a
determinação numa cultura que perdeu de vista a seriedade formativa, a nobreza, porque perdeu o alto valor da cultura.
Ele se põe a denunciar os conceitos mais básicos da sociedade moderna, e, coloca, como provocação e para o desafio, o
homem, assim como é um desafio, uma provocação para nós leitores de Nietzsche. Denuncia, ironiza a formação do seu
tempo, do mesmo modo que procura favorecer um contraponto a partir de sua própria formação.

559
compreendida sob o olhar da metafísica dualista, como a substituição do corpo pela alma, por
exemplo, pois não é um espírito e não pode ser compreendido como uma espécie humana superior.
Ele é entendido como aquele que recusa o extraterreno e afirma a terra e a vida como elas
são. Ele é essa vontade de afirmar, de construir, de transvalorar, procurando um outro tipo de razão.
Por isso é que se entende que o além-do-homem define o "sentido a terra" como uma crítica
corrosiva às compressões metafísicas e religiosas do homem, pois Zaratustra destaca a terra como a
casa da criação. Sendo, então, o sentido da própria existência humana, ele é a busca de superar o
nada querer, o niilismo deixado pela morte de Deus, pois o homem que sentiu as profundezas da
decadência só tem sentido se souber inventar. Zaratustra mostra uma tensão: o sentido da existência
se dá somente com a criação do além-do-homem? Ele é o único caminho? É bom notar que
Zaratustra não fala do além-do-homem como alguém que possa escravizar e dominar os últimos-
homens. Antes estes são vistos como tipos. De toda forma, o discurso de Zaratustra ao povo tem
um teor extremamente provocativo, ele quer tocar na própria vontade para despertá-la e movimenta-
la para além do niilismo ou mesmo quer tocar profundamente na cultura do sono, ou seja, quer
despertar o homem da sua sonolência, daquilo que o deixa sem força e sem comando. Contudo, essa
imagem manifestada por Nietzsche não deixa de ser uma ironia, uma provocação à cultura menor,
esta que já não tem capacidade de formar, de legislar, de criar, mas só tem mostrado exageros,
caricaturas e existências precárias.
Zaratustra deseja evocar ilustrativamente uma espécie de educação da vontade de criação
com essa figura que expõe na praça do mercado, que seja capaz de despertar o homem da
banalidade, da irresponsabilidade e da diversão, buscando uma profunda responsabilidade formativa
através de um esforço que leve a humanidade a pensar para além do imediato, pois requer a
intensificação do próprio existir, da sua própria direção. E para isso seu movimento deve ser
viabilizado pela criação.
A alegoria dessa figura pode ser entendida como um pensamento que seja suficientemente
forte, capaz de fazer a leitura de um mundo empoeirado, envernizado pela superficialidade. Ele é
essa manifestação. Essa força que sugere ao homem a possibilidade de reverter a desordem que a
racionalidade e a tecnificação moderna levam ao indivíduo. Dele emana acima de tudo a coragem
do homem dispor da sua própria lei, submeter-se ao seu próprio comando, o que logicamente é
muito difícil diante de um mundo que é vigorado pela lei da mesmice. O homem parece estar
diluído. Há nele sobretudo o espírito pacificador de um indivíduo resignado aos ditames do
capitalismo e da lógica burguesa de modo que a perspectiva formativa posta por essa imagem vai de
encontro à homogeneização do humano, ao seu aplanamento.

560
Longe dos esquemas, das articulações menores, essa figura pretende romper com os valores
massificados para que a vida possa fazer sua superação. O exercício educativo que permite essa
imagem articula-se a partir de uma "transmutação" de todos os valores vigentes.
O homem nivelado, agora, deve tornar-se apenas uma pré-condição para que o tipo maior e
inventor possa aparecer. É na insistência de evidenciar essa vida barata que o justificador pode
emergir. Esse talvez seja um dos grandes desafios para a filosofia da educação pensar e refletir
sobre que tipo de filosofia pode ser apropriada diante de um mundo que tornou tudo menor, no qual
o homem e a vida parecem bem mais adaptados e convertidos à cultura do rebanho.
Quando Zaratustra destaca o tipo além-do-homem é para ampliar a crítica daquilo que ele já
percebia, “a barbárie”. É necessário denunciar o contentamento visto na praça do mercado. Essa é a
tarefa que Zaratustra procura mostrar para aqueles homens que ainda podem ouvir. Esse é um dos
ensinamentos que ele expõe. Por isso, quer tocar no orgulho, na virtude e no próprio desprezo, pois
talvez o temor de se ver diluído, enfraquecido, possa promover a vontade de afirmação de outras
tábuas. Mas Zaratustra fôra tratado com escárnio pelo povo. Suas palavras não tiveram importância.
Assim, disse para seu coração: não me compreenderam, não sou a boca para esses ouvidos11 . Ele
só estava convidando-os para tornarem-se criadores. Então diz: Vou, portanto, falar-lhes do que há
de mais desprezível: ou seja, do último-homem12, do amor do último-homem e do perigo deste e
anuncia o que Adorno exacerba na contemporaneidade pela força destrutiva da indústria cultural:
Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é estrela? Assim pergunta o
último-homem, e pisca os olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita
o último-homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a
pulga; o último-homem é o que mais tempo vive. "Nós inventamos a felicidade",
dizem os últimos-homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro
viver, pois a gente precisa de calor. A gente, inclusive, ama o vizinho e se esfrega
nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, consideram-no perigoso: a
gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras! E
com homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, produz sonhos agradáveis.
E muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A gente continua
trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Evitamos, porém, que o
entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas
são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer?
Ambas as coisas são demasiado molestas. Nenhum pastor e um só rebanho! Todos
querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira segue
voluntariamente para o manicômio (...).13

11
Za/ZA. Prólogo § 5.
12
Ibid § 5.
13
Tradução de Oswaldo Giacoia Junior. In: Entre o caos e as estrelas. Revista Impulso. v. 12. n. 28, 2001.

561
A figura do último-homem mostra uma humanidade que não tem grandeza, não há caos
dentro de si, tudo se encaminha para a tranqüilidade e harmonia. Ele não sabe o que é criação, o que
é amor. Condenado à mediocridade, torna-se igual e uniforme, esse é o homem da praça do
mercado, Zaratustra constata. Esse homem faz parte de uma cultura minguante, que põe o homem
como massa de manobra em todos os sentidos da vida, portanto, tal figura é pobre, obediente,
contentando-se com pequenas coisas e é esse tipo que vigora na época de Nietzsche. Tal figura
pode ser vista como ameaça à cultura e à educação cultivadas. E essa ameaça não passa do resultado
representado pela noção do esclarecimento, do racionalismo, da tecnificação da vida e do indivíduo,
da mecanização e até mesmo do atrofiamento da sensibilidade, o que leva a um paradoxo: ao
mesmo tempo em que a modernidade nos conduz para o avanço da técnica, da ciência e do
esclarecimento, ela desemboca num sutil reverso do próprio homem, levando-o ao seu declínio e
empobrecimento. Por isso, a noção de progresso, dada pelo trabalho da razão, do cultivo da ciência,
se volta, por outro lado, contra o homem, com todo seu teor de perversidade e aniquilamento de
todas as suas possibilidades criativas.
Como nos faz pensar Adorno e Hokheimer na “Dialética do Esclarecimento” (1985), o
horror, a dor, o medo do cotidiano gerado pela razão dita esclarecida, promovem o abandono, a
desensibilização e o esmagamento do indivíduo. Refletir sobre esse paradoxo é visualizar uma
relação processual de razão e desrazão. O esclarecimento, que tinha como objetivo maior promover
o desencatamento, livrar os homens do medo, é “radicalização da angústia mística” (1985, p.29),
assim tal esclarecimento parece se colocar como um ditador frente aos sujeitos.
O homem pagou um preço muito alto por aquilo que ele chama de progresso, pois tudo que
foi prometido pela sociedade, pelo conhecimento e pela cultura não deixou de ser um mero
malogro, em que a instrumentalização é o fio condutor da dominação.
Como se pode notar, em épocas diferentes, Adorno e Nietzsche não deixaram de pensar
sobre essa pobreza da vida e do homem, como dizem: a vida e o mundo foram também
obscurecidos pelo esclarecimento, aos poucos se foi reduzindo a criatividade, a atividade reflexiva,
e, ao mesmo tempo, ao indivíduo, paulatinamente inibido, restou apenas a possibilidade de viver de
forma medíocre. Este, por outro lado, foi perdendo seu potencial de crescimento, de
desenvolvimento, produzindo um corpo dócil, para usar um termo de Michel Foucault14, um corpo
debilitado. Porém, o último-homem tem o máximo orgulho do seu saber, da sua cultura, exatamente
o que lhe ofusca os olhos, que lhe faz morder a língua e embotar seus ouvidos. Mas é esse

14
Michel Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis. Rio de janeiro. Ed. vozes, 1987.

562
conhecimento que acha que o faz distinguir de pastores e cabras. Por isso, o último-homem: é
caricatura satírica do ideal que animava a crença da modernidade Aufklärung: a convicção de que
nas vicissitudes da história é preciso reconhecer a laboriosa e heróica peregrinação do gênero
humano, na curva de um progresso infinito, em busca do fim último de sua existência: a
consecução da felicidade e da bem aventurança sobre a terra, o advento glorioso do primado
universal da razão e da justiça. Encontramos aqui, em versão resumida o tema comum do fim da
história passada como realização da essência verdadeira da humanidade.15
De forma extemporânea, o último-homem de Nietzsche, é um alerta para o tipo menor que
o mundo moderno oferece para si mesmo, agora, muito mais intensificado pela indústria cultural. A
superação dessa deformação pode ser vista pela crítica de Nietzsche à formação e à cultura.
O último-homem é um malogro uniformizado pela massa sem cor e brilho, sendo levado a
servir à lucratividade e à rentabilidade da sociedade administrada. Ele é a face acabada da
danificação da formação. Como senhor do espetáculo, perdeu toda sua capacidade de ser sujeito
para tornar-se mero objeto, sendo, portanto, o maior representante da racionalidade fria e mórbida,
estando imerso no interior de um mundo banalizado pela comercialização, não deixa marcas e
experiências criativas, pois que seus sentidos foram consumidos pela superficialidade.
O último-homem é aquele tipo que não se mostra, não pergunta, não se insinua, não
provoca, que parece contente com sua degeneração, que fica extasiado pela felicidade imediata e
não sente nenhuma vertigem diante dessa “barbárie civilizada”. Ele é o tipo de homem atual.
Portanto, o risco do último-homem é a possibilidade de se atingir a fase mais terrível, que seria a
vontade de nada, a ausência de todo amor e anseio que o homem possa ter. Esse foi o grande receio
de Nietzsche, que Adorno destaca com a sua percepção na era da indústria cultural. Pode-se dizer
que tanto Nietsche e Adorno, observaram o aplastamento da vida e diagnosticaram a automatização
do mundo industrializado, que não deixou de empobrecer a formação.
A instrumentalização do sistema afetou de forma cruel a própria constituição formativa do
homem, assim os sintomas do colapso cultura e formativo que fazem observar em todas as partes
são imanente ao sistema, como pontua Adorno no seu texto “A teoria da semiformação” (1996). O
horror formativo parece estar generalizado. A formação se torna mera mercadoria a ser vendida a
qualquer preço, o cliente pode propor a sua oferta. Então, o que fazer com essa formação que
parece esfacelar e dinamitar o indivíduo? O que fazer com essa probreza generalizada que vigora e

15
Conferir o texto de Oswaldo Giacoia Junior. Entre o caos e as estrelas. Revista Impulso, vol. 12. n. 28, p. 15.

563
cria raízes profundas pela indústria cultural? A crítica já é um grande começo numa época que nega
a capacidade de refletir e pensar.
Assim, o último - homem de Nietzsche pode ser visto na intensificação caricatural desse
homem atual, acomodado e feliz pelo consolo da mercadoria, aquele que caminha na multidão e,
por isso, deixou de efetivar sua singularidade para ser diluído pelo conforto e pelo prazer. Esse tipo,
exibe a imagem da consciência reificada, sendo incapaz de produzir e experimentar. Ele é o
representante da felicidade e da justiça, indivíduo fascinado e deslumbrado pelo glamuor da venda e
da compra. Consumidor compulsivo, que perdeu de vista o componente mais importante de sua
vida: a conscientização. Portanto, pode-se inferir que o último-homem não deixa de ser o efeito
mais perverso da (de)formação da cultura gerada pela sociedade esclarecida, pois como afirma
Adorno: “Por inúmeros canais, se fornecem às massas, bens de formação cultural. Neutralizados e
petrificados; no entanto, ajudam a manter no devido lugar aqueles para os quais nada existe de
muito elevado ou caro. Isso se consegue ao ajustar o conteúdo da formação, pelos mecanismos de
mercado”. (Adorno, 1996, p. 394) Portanto, a (de)formação generalizada aponta para a constituição
de consciências niveladas, incapazes de pensar sobre elas mesmas. Sem dúvida a face acabada da
semiformação gerada pelos ditames da automatização, sem cultivo espiritual, sem sensibilidade,
mostra sem máscaras o grande perigo da cristalização da consciência e da vida em uma
funcionalidade reificante. Dessa maneira, uma consciência reificada é o ponto chave para a
promoção exagerada da barbárie.
Pode-se dizer que as preocupações de Nietzsche e Adorno sobre a cultura e a formação atualizam a
fundamental necessidade de se perceber o declínio que vem se constituindo no aspecto cultural e
formativo do indivíduo na sociedade atual, portanto, mostra extrema urgência de se repensar a
educação para formação.
Nietzsche tornou-se denunciador da imagem bizarra daquele que se transformou porta-voz
do contentamento e de tudo aquilo que se chama progresso e tecnologia. Ele expõe tudo isso para
que o homem tome consciência das coisas a sua volta, para que possa anunciar um projeto de vida
fora do esgotamento, da objetivação e da padronização. Não é à toa que ele procurou colocar em
xeque aquilo que é mais perverso, ou tudo aquilo que se mais preza - a cultura - pois esta, em última
instância, leva ao perecimento, ao aplanamento e desertificação da vida.
O último-homem de Nietzsche não deixa de ser o exemplo mais típico da mais aberrante
figura que a sociedade massificada e irracional de hoje tende a formar, Zaratustra que visualizou
sua presença na praça do mercado e que Adorno radicaliza sua face na era da indústria cultural.
Isso é evidente, pois parece que o indivíduo está dissolvido diante dos mecanismos socioculturais.

564
Pode-se dizer que a formação atual serve para intensificar a forma do último-homem, dando
ao homem a resignação, a fala contida, o corpo curvado. Aos poucos o indivíduo vai sendo podado
em todas as suas possibilidades de criação, transformando-se em um mero repetidor de experiências
alheias, negando-se a possibilidade de tornar-se mais nobre. Assim, o desejo de emancipação pela
formação torna-se apenas uma promessa que a sociedade não parece cumprir. O homem é alinhado
a métodos e a regras que o impossibilitam de pensar por si mesmo. É contra esse mau gosto
estabelecido, essa alimentação pesada, essa vida endurecida, esse desfavorecimento da vida, que
Nietzsche e Adorno procuram pensar.
Conclui-se que o texto do prólogo de Assim Falou Zaratustra nos mostra duas perspectivas
formativas das quais podemos tirar proveito como leitores através de duas imagens: a do além-do-
homem e a do último-homem. A primeira imagem é um projeto que não se fez realizável e nem
sabemos como fazê-lo. A sua relevância está em destacar sua necessidade, a sua promessa. A
segunda imagem nos alerta para aquilo que ele via no seu tempo, o homem massificado, autômato,
incapaz de refletir sobre si mesmo, portanto, deformado. Tal imagem, Adorno destaca na análise
crítica e imanente da sociedade, quando fala do homem danificado pela produção da indústria
cultural. O que se pode dizer que o alerta de Nietzsche sobre o tipo formativo desenhado pela figura
do último-homem é uma realidade posta na figura atual do homem sujeitado, vista por Adorno, e
que sua face já vem sendo gestada pela instrumentalização da razão há algum tempo. Com isso,
Nietsche e Adorno observaram o aniquilamento da vida e diagnosticaram a automatização do
mundo industrializado, que não deixou de empobrecer a formação, ambos, sem dúvida, em
momentos históricos diferentes, perceberam a “naturalização barbárie”.

Referências Bibliográficas

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Tradução. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
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dezembro, 1996.
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(Org) Paulo Ghiraldelli Junior. São Paulo: Cortez; Curitiba: Editora da Universidade Federal do
Paraná, 1997.

565
x FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
x NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: Como se llega a ser lo que se es. Introducción,
traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2003.
x ____________________. Crepúsculo de los ídolos: O cómo se filosofa con el martillo.
Introducción, traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1998.
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traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2001.

x ____________________. Así habló Zaratustra: Un libro para todos y para nadie.


Introducción, traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2002.
x ____________________. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
x GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Entre o Caos e as Estrelas. In: Revista: Impulso.
Piracicaba/SP. vol. 12. n. 28, 2001.
x MARTON, Scarlett. Em busca do discípulo tão amado: Uma análise conceitual do prólogo
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x MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
1997.
x SUFFRIN-HÈBER, Pierre. O "Zaratustra" de Nietzsche. Tradução. Lucy Magalhães. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994.
x TÜRCKE. Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. São Paulo: Vozes, 1993.

Diccionario

DUDEN -DEUTSCHES UNIVERSAL WÖRTERBUCH


DICIONÁRIO ALEMÃO-PORTUGUÊS. São Paulo: Globo, 2001.

Referências eletrônicos
www.bw.edv/wcp/papers/mode/modegiac. Htm - Paideia as Bildung in Germany in the age of
enlightenment (acesso em: 10/06/2005)

566
Acerca das relações entre Desenvolvimento Psíquico, Educação Escolar E Cultura Mercantil

Izabeth Aparecida Perin da Silveira (FAFIJAN)


Isilda Campaner Palangana (UNIFAMMA)
Maria Terezinha Bellanda Galuch (UEM/

Do processo de formação do psiquismo humano

Estudos efetuados com base na Teoria Histórico-Cultural mostram que o psiquismo humano
só pode ser entendido como produto da atividade prática, das relações que os homens mantêm entre
si e com a natureza na luta pela sobrevivência. É no ambiente social e historicamente organizado
que o homem se constitui como tal. Ao interagir com seus semelhantes, na e por meio da atividade
prática, ele participa, ao mesmo tempo, da construção/transformação do meio em que vive e de si
mesmo. Nesses termos, as capacidades psíquicas se desenvolvem ao serem requeridas e exercitadas
no trabalho, devido ao conteúdo elaborado nessa atividade e dela abstraído, bem como em razão das
interações sócio-culturais que ali se estabelecem.

A natureza humana é, pois, desde o princípio, essencialmente social, na medida em que se


origina e se desenvolve no âmbito das relações sociais de produção. Nesse ambiente relacional, a
linguagem ocupa um lugar de destaque no processo de desenvolvimento. Ao apropriar-se do
conteúdo e das formas de pensamento presentes nos signos, o sujeito apreende o conhecimento e
com ele o modo de ser disponíveis em sua cultura, desenvolvendo-se. Nesse processo, o
pensamento vai se delineando, ao mesmo tempo em que vão sendo formadas as características
físicas do homem. Daí que todas as funções psíquicas vêm a ser, a um só tempo, sócio-individuais.
Para tornar-se um indivíduo em particular, o sujeito tem de se apropriar da cultura, do legado das
gerações precedentes, fazendo-os seus.

Capacidades psíquicas como a memória, a atenção, o raciocínio, a imaginação, entre outras,


antes de serem propriedades particulares de cada um, são propriedades dos homens de um dado
tempo e lugar, formadas e modificadas nas relações de trabalho. “[...] As ações do homem têm
nestas condições uma dupla função: uma função imediatamente produtiva e uma função de ação
sobre os outros homens, uma função de comunicação” (Leontiev, 1978, p.86). Os homens só
puderam desenvolver a linguagem e o pensamento porque ambos estiveram, desde o início,
diretamente vinculados ao trabalho e à necessidade de comunicação que surge em função dele. Os
conhecimentos e as habilidades, elaborados na atividade prática, são objetivados e transmitidos às

567
novas gerações por meio da linguagem. Tais aquisições não são determinadas pela herança
genética, mas pelas interações sociais. É na convivência, nas trocas efetuadas entre os indivíduos e
entre esses e os objetos que as funções psíquicas são partilhadas, passando a existir tanto no plano
interpsíquico como no intrapsíquico. A internalização das capacidades psicológicas é, por
excelência, um processo social. Se, ao nascer, o indivíduo for privado do convívio com seus pares,
tais capacidades não se desenvolvem.

Percebe-se, então, que o desenvolvimento do intelecto humano não pode ser entendido com
base em concepções que naturalizam esse processo, que explicam as características e funções
psicológicas como sendo inerentes a todos os indivíduos, independentemente do modo de produção,
da cultura e do momento histórico a que esses indivíduos pertencem. Da perspectiva tomada aqui
como referência, postula-se que o desenvolvimento humano não é desencadeado e mantido por
fatores internos, biológicos, nem acontece espontaneamente. As particularidades do organismo,
dadas desde o nascimento, em especial as neuronais, servem apenas de base para a constituição das
faculdades intelectivas, as quais se formam e se modificam sob a influência das condições de vida,
da ação e transformação mútua entre o sujeito e o meio.

Ao contrário dos animais, que são guiados por necessidades basicamente biológicas, o
homem, devido ao processo produtivo, passa a refletir sobre suas ações, estabelecendo com a
natureza uma relação intencional. Desse modo, vai organizando-se de forma a atender às
necessidades socialmente criadas e internalizadas como necessidades individuais.

Assim, a atividade complexa dos animais superiores, submetida a relações


naturais entre coisas, transforma-se, no homem, numa atividade submetida
a relações sociais desde a sua origem. Esta é a causa imediata que dá
origem à forma especificamente humana do reflexo da realidade, a
consciência humana (Leontiev, 1978, p.78-79).

Por intermédio da apropriação de uma linguagem representacional, o comportamento, antes


guiado por instinto, internamente, devido às interações entre pessoas, passa a ser orientado por
motivos sociais, externos. Essa mudança, que evidencia a gênese da subjetividade, causa uma
significativa transformação nas relações mantidas entre os homens, afetando a realidade concreta e,
conseqüentemente, o modo como estes percebem e atuam sobre ela.

Primeiramente o trabalho e, nele, a linguagem constituem-se nos dois fatores que


concorrem para a hominização. É nesse processo, essencialmente social, que a subjetividade
humana, ou seja, todas as funções psíquicas se originam e se re/elaboram. Conforme Leontiev, “[...]

568
a consciência adquire particularidades diversas segundo as condições sociais de vida dos homens e
transforma-se na seqüência do desenvolvimento das suas relações econômicas” (1978, p. 88). Tal
transformação mantém-se num movimento ininterrupto, atravessando modos de organização de
diferentes povos. Como afirma Engels, “[...] o homem se fez a si próprio. [...] mas ao que parece,
até agora não deu por encerrado o seu ousado projeto, pois ainda não descansou” (1986, p.15).

A passagem à consciência humana representou um grande salto evolutivo na história do


homem, tanto que a consciência é considerada a própria essência da psique humana. Seu
desenvolvimento só foi possível graças ao trabalho. A convivência em grupo, o uso e fabrico de
instrumentos, a divisão dos afazeres entre os membros da coletividade propiciam a constituição e a
contínua reconstituição psicofísica do homem. Junto com as características físicas vão sendo
formadas as funções complexas superiores, como as denomina Vygotsky (1988). A identidade
natural é modificada, subsumida por uma outra constituída em sociedade. A unidade existente entre
a atividade de trabalho e os processos psíquicos e desses entre si permitiu e continua permitindo ao
homem controlar seus impulsos, pensamentos, sentimentos e ações.

Desenvolvimento psíquico e indústria cultural

Se os processos mentais são resultados da interação entre o sujeito e o meio social, como
ocorre tal formação em uma sociedade que valoriza a aparência, o descartável, o supérfluo, o
consumismo? Que exacerba o individualismo e transfere para o indivíduo toda a responsabilidade
pelo seu sucesso ou fracasso? Que isola, que vende imagens e sonhos por intermédio dos meios de
comunicação de massa? Que desenvolve hábitos, atitudes, gostos e sentimentos conforme convém
ao mercado? Como se configura, nessa sociedade, a formação de capacidades cognitivas se elas
estão intimamente ligadas à apropriação do sistema lingüístico e dos objetos físicos?

Na sociedade industrial desenvolvida, não apenas a produção material, mas também a


formação do psiquismo segue a racionalidade, cujo conteúdo é determinado pela irracionalidade das
condições objetivas. Nesse processo, os sujeitos aderem a esse modo de ser, sem pensarem que ele
pode vir a ser diferente do que é; não refletem sobre as possibilidades de continuidade e ruptura,
avanços e retrocessos da sociedade, e, por isso, a atividade reflexiva sofre restrições.

A separação entre concepção e produção, as mudanças no instrumental de trabalho e nos


bens produzidos desencadeiam profundas transformações no comportamento humano,
padronizando-o. Torna-se evidente a expropriação do saber operário e, por conseguinte, dos homens
como um meio de subjugar. A produção industrial, a um só tempo, corrói a formação mais

569
abrangente e educa conforme o que dá vantagem imediata, ou seja, educa para o consumo de massa.
Nessa conjuntura, não há mais lugar para o desenvolvimento de capacidades individuais, que não as
requeridas pelo trabalho capitalista, pela sociedade de mercado. Ao se submeterem à nova forma de
produzir, os homens incorporam novos hábitos, valores e habilidades. Suas atitudes confundem-se,
muitas vezes, com a máquina que, de tanto ser endeusada, personifica-se.

A perda de autonomia do sujeito e o triunfo universal do consumo de massa resultam das


modificações que se processam no conteúdo e na forma do trabalho. Sob a lógica da positivização,
os anos 60 anunciam mudanças significativas na forma de produzir e, por decorrência, no modo de
ser. Começa a ocorrer, paulatinamente, um agrupamento de ocupações que haviam sido
parcializadas ao extremo nas décadas antecedentes, ocasionando a diminuição relativa de sujeitos
superespecializados. Contudo, o fato de operar com um conjunto de partes não propicia o
desenvolvimento de capacidades e habilidades num outro sentido, senão naquele que é imposto ao
homem pelo trabalho heterônomo. A informatização do processo produtivo, que reduz o trabalho à
operação de sistemas e vigilância mediante painéis de controle, restringe ainda mais as condições
necessárias ao desenvolvimento multilateral do ser humano. É certo que a automação flexível
requer capacidades diferenciadas das precedentes. Mas, é igualmente verdadeiro que todas elas se
formam nos limites demarcados pela lógica do mercado (Harvey, 1992).

A flexibilização da economia traz conseqüências irreversíveis ao trabalhador e à sociedade,


modificando a forma de produzir e, por conseguinte, a forma de ser e de pensar dos homens.
Concordando e aprendendo com Marcuse (1967), em razão da base tecnológica sobre a qual está
apoiada, a sociedade industrial tende a se tornar totalitária, impondo um modo único de ser, de
sentir, de agir, em resumo, impondo uma cultura única, a cultura do mercado. Valendo-se dos meios
de comunicação de massa, que atingem a quase totalidade dos homens, a cultura mercantilista
exerce um poder muito mais deformativo do que formativo sobre os homens. Direciona a
capacidade de reflexão do indivíduo, ou seja, o que e como ele deve pensar.

Nesta sociedade há uma “coordenação técnico-econômica” que age sobre os indivíduos,


manipulando seus desejos, necessidades, enfim, seu pensamento. As necessidades são também
criações históricas, não apenas biológicas, sociais ou intelectuais. Cada época ou cada contexto
social conduz os homens a aspirarem e necessitarem algo que está ligado ao grau de
desenvolvimento econômico, técnico, político e cultural. Portanto, a liberdade dos homens é
relativa em relação a determinados padrões, regulamentos e exigências sociais; por isso, os

570
homens têm mais dificuldade para perceberem a falta de liberdade a que estão submetidos do
que quando a liberdade era explicitamente anunciada, esclarece Adorno (1986).

Isso quer dizer que na sociedade industrial desenvolvida a dimensão privada da mente,
aquele espaço em que o sujeito não teria sofrido influências externas, podendo, inclusive, opor-se
ao status quo, foi tomado pela racionalidade tecnológica. Esta, por sua vez, tem uma dimensão
política, porque cria um universo totalitário, em que “sociedade e natureza, corpo e mente” se
transformam em veículo na luta pela manutenção do universo estabelecido (Marcuse, 1967, p. 57).
Como conclui Adorno: “Se a estrutura dominante da sociedade reside na forma da troca, então a
racionalidade desta constitui os homens; o que estes são para si mesmos, o que pretendem ser, é
secundário” (1995, p. 186).

Embora cada indivíduo se considere autônomo em pensamento e ação, a autoria de suas


opiniões, idéias e preferências pessoais não lhe pertence por inteiro; as opiniões e preferências são
cuidadosamente transmitidas, dentre outros, pelas inserções das propagandas dos mais variados
produtos, pelos programas de rádio e televisão, pelas canções tocadas um sem-número de vezes. O
modo tecnicamente administrado como as propagandas, os programas e as canções são produzidos
os torna previsíveis, porque repetitivos. Ou seja, a Indústria Cultural, nos termos a que se referem
Horkheimer e Adorno (1985), participa direta e intensamente da formação de características que os
sujeitos consideram particularidades deles. A aparição de uma figura famosa usando determinado
produto é suficiente para despertar naqueles que a vêem o desejo de consumirem o item
“anunciado”. Quanto mais a cultura, transformada em produto mercantilizado, como outro
qualquer, cujos interesses são eminentemente comerciais, invade o campo das necessidades
pessoais, mais comanda a consciência, submetendo-a às condições materiais existentes.

Educação escolar e desenvolvimento psíquico


Na linha de argumentação de Vygotsky (1988), Luria e Yudovich (1985), graças à
orientação e à regulação de pessoas, a criança apropria-se da linguagem, dos signos e significados
lingüísticos com os quais convive. Ao assimilar o conteúdo presente na linguagem, assimila
também formas de pensar, perceber e de interpretar, contidas nesse conteúdo. Portanto, uma
educação que não organiza seu trabalho com vistas a ultrapassar os conceitos espontâneos, a ensinar
o conhecimento científico devidamente contextualizado, reduz, significativamente, as
possibilidades de a criança aprender a estabelecer relações, a deduzir, a generalizar e a inferir; reduz
a possibilidade de desenvolver, nela, o pensamento reflexivo. A depender da espécie de ensino e de

571
aprendizagem, não apenas a forma de pensar do sujeito é alterada, mas todo o conjunto de
faculdades mentais implicado nessa atividade.

A educação escolar, como um processo que faculta a formação de hábitos, habilidades,


conceitos e valores culturais, continua sendo um dos fatores determinantes no desenvolvimento
cognitivo. Contudo, a prática escolar intramuros, isto é, desvinculada do contexto social, acaba por
reduzir-se a uma dimensão técnica, a um trabalho de decodificação de conteúdos naturalizados,
desprovidos de história, de transformação. Nessa circunstância, o entendimento do aluno sobre o
assunto tende a não ir além daquilo que está presente no texto. A despeito de uma certa organização
conceitual, pode-se afirmar que o pensamento preso às percepções imediatas, ao concreto aparente,
que se orienta pela soma de partes muitas vezes sem sentido, reduz-se às formas mais elementares,
ficando à mercê do particular, como se ele existisse e se explicasse independentemente das relações
sociais, da cultura hegemônica.

Por outro lado, um pensamento formado em uma dimensão mais ampla, que estabelece
relações, questiona e apreende contradições, permite ao sujeito entender a realidade social e, nela,
orientar-se de maneira a ser menos subjugado e controlado pela cultura mercantil, por forças que
lhes são alheias. De acordo com Luria (1985), Vygotsky (1988), Oliveira (1992) e outros, a
escolarização exerce uma influência deveras significativa na formação e funcionamento cognitivo
do sujeito. As capacidades que decorrem da escolarização vão depender não só do contexto cultural
 se mais ou menos letrado   mas, sobretudo, da espécie de saber e da forma como ele é
passado à criança.

Como se pode perceber, dependendo da qualidade das interações mantidas entre o


professor, o conhecimento e o aluno, ter-se-á como resultado capacidades mais ou menos plásticas.
Isto sem esquecer que as relações de trabalho e a cultura mercantilizada promovem conteúdos e
formas de pensamento contrários ao conhecimento-como-emancipação, de que falam Adorno
(1995) e Santos (1996).

Desse modo, a linguagem, entendida como um sistema de símbolos e significados, exerce


um papel fundamental na mediação entre sujeito e objeto a ser conhecido. Além de servir como
meio de comunicação, ela objetiva o pensamento e as experiências, tornando-os acessíveis aos que
participam da coletividade. É com base nesse sistema simbólico que, na escola, se pode ordenar a
compreensão da realidade social e os conceitos, de modo a contra-argumentar o pensamento
dominante, as pseudoverdades da cultura afirmativa.

572
As situações de aprendizagem proporcionadas pela escola permitem à criança entrar em
contato com o conhecimento científico sistematizado pelo grupo a que pertence. É justamente por
esta razão que o trabalho ali desenvolvido precisa ser analisado com critério. Para Vygotsky (1988),
se bem organizado e conduzido, o ensino ativa todo um conjunto de funções mentais. Uma ativação
que não poderia acontecer sem a aprendizagem, sem a elaboração interna do conteúdo
experienciado no plano interativo. Assim sendo, torna-se imprescindível refletir sobre a maneira
como vem sendo conduzido o trabalho em sala de aula. Até que ponto a educação escolar tem
contribuído para a formação de um pensamento capaz de entender os fundamentos da cultura
mercantilizada, que orienta a vida dos homens na atualidade? Como o professor trabalha com os
conceitos científicos, tão importantes para o desenvolvimento das capacidades intelectivas?
Discutindo-os no movimento das relações sociais que produzem e modificam esses conceitos ou
trabalhando-os mecanicamente, como se tivessem sentido e significado em si mesmos?

Na perspectiva vygotskyana, os conceitos, assim como os demais saberes escolares,


reconstituem-se no plano individual graças à mediação exercida, dominantemente, pelo professor,
entre a criança e esses saberes. Nesses termos, o ensino se coloca como um campo de extrema
relevância na promoção de novos níveis de desenvolvimento e na forma como o indivíduo
compreende e atua na realidade da qual faz parte.

[...] a aprendizagem não é desenvolvimento mas, corretamente


organizada, conduz o desenvolvimento mental da criança, suscita para a
vida uma série de processos que, fora da aprendizagem, se tornariam
inteiramente inviáveis (Vygotsky, 2001, p.484).

Fica evidente a necessidade de proporcionar ao aluno um ambiente de estudos rico em


articulações entre o conteúdo aprendido na escola e o que se vive fora dela. Um ambiente onde o
significado e o sentido do que se estuda advenham da história de vida social dos homens e não
sejam petrificados — como adverte Vygotsky (1998a) — pela repetição desconexa. Um espaço de
aprendizagem assim objetivado permite ao aluno expressar seu pensamento, porque, antes,
disponibiliza os elementos e a interação imprescindíveis para que este se constitua. A maneira como
o professor conduz seu trabalho e o domínio que ele tem dos conteúdos possibilitam ou não que os
educandos participem ativamente da reconstrução individual do conhecimento produzido em
sociedade. Esta reconstrução não pode ocorrer apenas nos marcos impostos pela cultura mercantil,
pelas demandas do mercado, quer dizer, nos marcos da adaptação. O ensino há que ter como

573
finalidade maior as necessidades humanas fundamentais; há que dar a entender a realidade social,
suas contradições e, por conseguinte, a necessidade de transformá-la.

Os teóricos da concepção Histórico-Cultural aqui referenciados destacam a importância do


ensino no aprendizado de quaisquer conteúdos, em especial dos conceitos científicos. Segundo
Vygotsky (1988), o aprendizado escolar acaba por induzir um tipo de percepção generalizante, a
qual desempenhará um papel decisivo na conscientização da criança em relação aos seus próprios
processos mentais. Nas situações de sala de aula, pode-se perceber, por meio de observações
realizadas pelos alunos, que o fato de eles estarem inseridos num ambiente escolar, em contato
direto com o saber científico, não lhes garante a elaboração de um pensamento contextualizado. Em
função de o ensino ser, não raro, de conteúdos naturalizados, a percepção, o raciocínio e as
interpretações prendem-se, na maioria das vezes, ao imediato, reproduzindo fielmente a fala do
professor. Esse comportamento deixa transparecer as razões de boa parte das dificuldades que os
alunos passam a apresentar para inferir, deduzir, comparar, perceber e realizar generalizações. Essas
habilidades são desenvolvidas no espaço de sala de aula, quando o educador exercita-as com seus
alunos; quando ao educando são proporcionadas situações em que ele possa ouvir, falar, questionar,
enfim, entender que os conceitos não são estáticos, mas se modificam no decorrer do processo
histórico. É em momentos como esse que a interação social se apresenta como fator por meio do
qual as capacidades intelectivas se elaboram e se organizam (Vygotsky, 1988).

A mediação pedagógica, como se está a demonstrar, é o fator de maior relevância na


formação dos conceitos científicos e, mais que isso, no desenvolvimento dos sentimentos e das
capacidades intelectivas, como o raciocínio, a percepção, a memória, dentre outras. Sendo a
aprendizagem um instrumento que impulsiona o desenvolvimento, o trabalho realizado pelo professor
é decisivo para que o educando possa adquirir os conceitos e o conhecimento necessários não apenas
à sua sobrevivência nessa sociedade, como também ao entendimento dos limites e possibilidades
dessa realidade objetivo/subjetiva. Desse modo, pode-se dizer que toda a ação do professor deve estar
direcionada para a organização de conteúdos que exercitem os processos mentais, no sentido de
alcançarem novos níveis de desenvolvimento. Os conhecimentos são melhor fixados quando o aluno,
além de apreendê-los, emprega-os em sua vida diária. Ao se apropriar de informações que lhe são
transmitidas pela via da linguagem, ampliando o domínio sobre conteúdos cada vez mais complexos,
a criança adquire, ao mesmo tempo, o domínio de operações mentais, como a capacidade de
generalizar, sintetizar e analisar, dentre outras, o que contribui decisivamente para o desenvolvimento
dos processos psíquicos.

574
Por meio do conteúdo que ensina, da sua postura em sala de aula, das atividades que propõe, o
professor atinge, educa, forma, num sentido ou noutro, não só as capacidades intelectivas, mas
também os sentimentos, as emoções das crianças. Sobre isso, Vygotsky assim se posiciona:
[...] Nenhuma forma de comportamento é tão forte quanto aquela ligada à
emoção. Por isso, se quisermos suscitar no aluno as formas de
comportamento de que necessitamos teremos sempre de nos preocupar
com que essas reações deixem um vestígio emocional nesse aluno
(Vigotsky, 2001, p.143).

O adulto ocupa um papel central na constituição do afeto, das emoções, dos sentimentos,
assim como do pensamento infantil. A apropriação desses caracteres psíquicos, bem como a
qualidade que terão dependem, impreterivelmente, da qualidade das interações, do que é passado à
criança nas relações com pessoas e objetos.

Os conteúdos escolares precisam ser tomados como elementos com base nos quais pode-se
desenvolver um pensamento e uma percepção que, denunciando os vieses ideológicos,
comprometam-se com o entendimento da realidade social. Para tanto, é de suma importância que os
educadores tenham claro, o próprio conteúdo a ser ensinado, bem como o processo de
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, que elementos participam dessa construção, e
como ocorre a reorganização dos processos mentais sob a influência da linguagem – elemento
básico que fornece a sustentação para todas as funções psíquicas. O saber interiorizado pela criança
depende, antes de qualquer coisa, do saber que lhe é transmitido. Por meio dele, altera-se não só a
forma, como também o conteúdo da atividade mental da criança. “A intercomunicação com os
adultos tem esse significado decisivo, porque a aquisição de um sistema lingüístico supõe a
reorganização de todos os processos mentais da criança [...]” (Luria e Yudovich, 1985, p. 11).

Na pauta das discussões realizadas pela educação, há que figurar, em bom lugar, que tipo
de conteúdo é necessário ao desenvolvimento do pensamento abstrato, lógico-dialético, uma vez
que a importância desse raciocínio não está na sua formação em si, mas na possibilidade que ele
oferece de reflexões que ultrapassam o imediatamente dado. O que deve causar inquietações aos
professores não são aquelas atividades que os alunos conseguem realizar sozinhos, mas aquelas nas
quais, para desempenhar-se com segurança, o aluno depende da mediação, do ensino. De posse do
conhecimento científico, ele tem condições de enfrentar os recursos utilizados pela cultura
mercantil — em particular pelos meios de comunicação, pela sociedade do consumo —, os quais,
não raro, chamam mais a atenção do que os conteúdos ministrados pelo professor. Acreditando que
o educador interfere decisivamente no processo de desenvolvimento dos interesses da criança,

575
Vygotsky sistematiza a seguinte orientação: “[...] Antes de explicar, interessar; antes de obrigar a
agir, preparar para a ação; antes de apelar para reações, preparar a atitude; antes de comunicar
alguma coisa nova, suscitar a expectativa do novo” (2001, p.163).

Claro está que o desenvolvimento do intelecto acontece, prioritariamente, por causa da


ação mediada e pela aquisição da linguagem, uma vez que a linguagem está presente em todos os
campos da atividade consciente da criança. A relação estabelecida entre a ação e a percepção, é
fator imprescindível ao desenvolvimento de ambas. Fora da esfera relacional, isto é, sem a
mediação, o pensamento, o raciocínio e a imaginação, dentre outros caracteres psíquicos, não se
desenvolvem. Segundo Rubinstein (1973), a possibilidade de manipular objetos é tanto premissa
como resultado do desenvolvimento do raciocínio verbal. “[...] A aprendizagem desperta processos
internos de desenvolvimento que só podem ocorrer quando o indivíduo interage com outras
pessoas” (Oliveira, 1992, p. 33).

Somente uma educação crítica, reflexiva, em que a criança participa ativamente do


processo ensino-aprendizagem, contribui para o desenvolvimento das capacidades psíquicas que
têm no horizonte a emancipação humana. Isto porque, “[...] o conhecimento da realidade objetiva
começa com as sensações e as percepções. Começa com elas mas não termina, no entanto, aí [...]”
(Rubinstein, 1973, p. 127). Mais uma vez, está-se destacando a mediação como instrumento
essencial do desenvolvimento psíquico. Sem ela, nenhuma capacidade intelectiva pode se
desenvolver em toda a sua plenitude.

Para que a educação não fique sujeita às necessidades econômicas, o professor necessita de
um método que lhe dê condições de analisar a sociedade de forma crítica; de modo a pautar sua
prática não na reprodução da ideologia da Indústria Cultural, nas verdades prontas e acabadas da
razão instrumental, como escreve Marcuse (1997), mas sim no conhecimento científico situado no
tempo e nas relações sociais que o produzem. Ao instaurar o questionamento e o debate entre
pontos de vista fundamentados, o professor estará fornecendo elementos para que os alunos se
percebam como agentes do processo histórico. Não é tarefa fácil o que ora se propõe, pois isso
requer uma revisão de conceitos já enraizados, uma percepção da escola não como um espaço de
reprodução de idéias, e sim, principalmente, como meio de produção e apreensão de conhecimentos
devidamente situados. “[...] o homem não existe dissociado da cultura. A mediação simbólica, a
linguagem e o papel fundamental do outro social na constituição do ser psicológico são fatores
universais” (Oliveira, 1992, p. 104-105).

576
Concluindo: dos estudos e discussões aqui efetuados, tem-se que diferentes modos de
organizar e de produzir a vida engendram distintos modos de pensar, sentir e agir. Logo, as
capacidades psíquicas, os interesses, as emoções, os valores não se repetem inalteradamente a cada
geração. As formas e o conteúdo do pensamento se modificam em função de novas necessidades e
desafios que os homens se colocam, melhor dizendo, que o poder econômico coloca e todos
assumem como sendo seus. Diante dessa constatação, a escola deve estar atenta para a qualidade da
formação que propicia, do saber intermediado. Para que este saber não caia na pura abstração; para
que não se reduza a um conjunto de signos e significados sem sentido, é necessário que suas
articulações com a história da vida em sociedade estejam devidamente claras e explicitadas na
relação professor/aluno.

O saber escolar só tem chance de contrapor-se àquele veiculado pelos meios de


comunicação de massa, pela cultura mercantilizada e revelar seus fundamentos, suas incoerências,
se discutido e ensinado no movimento da história social que o origina e que em parte o sustém e em
parte o modifica. O ensino que não leva em conta as transformações ocasionadas na forma de
produzir e de ser, que opera com um conhecimento naturalizado, concorre para o estabelecimento
de capacidades psíquicas limitadas, porque não dizer alienadas. É preciso que a interação
empreendida na sala de aula propicie aos alunos a formação de funções superiores de pensamento.
Superiores no sentido de que são capazes de atentar, perceber, raciocinar para além dos esquemas
impostos pelas relações de produção vigentes. O conteúdo ensinado há que dar a conhecer a
sociedade na qual se vive, como ela se organiza e se reproduz, quais são suas prioridades. É
indiscutível a necessidade de formar o sujeito para atuar nessa sociedade, assim como é
imprescindível facultar-lhe a formação de capacidades que lhe permitam entender os limites do
modo como nela se atua e se vive. No texto Educação e Emancipação, Adorno insiste:
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de
adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo.
Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo
nada além de pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a
situação existente se impõe precisamente no que tem de pior
(Adorno, 1995, p.141-142).

A investigação efetuada bem demonstra o papel de extrema relevância que compete ao


professor no processo formativo. Na sala de aula, é ele o principal mediador do conhecimento,
valores, sentimentos e comportamentos. Daí a importância de os educadores terem domínio sobre o
processo de formação das capacidades psíquicas, para nele poderem atuar com propriedade. Isto

577
porque, como destaca Vygotsky (1988), o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento,
promovendo-o. A teoria Histórico-Cultural sinaliza para a necessidade de se repensar a prática
educativa quando explicita a importância da mediação exercida pelo professor no curso do
desenvolvimento do aluno.

Se o sujeito que se pretende formar é aquele capaz de raciocinar, apreender a realidade,


fazer inferências e estabelecer relações entre situações; que saiba expor e defender com argumentos
coerentes suas idéias, então, o trabalho pedagógico deve perseguir a formação que prima pela
análise e a síntese, e não se deixar encantar pelas facilidades da informação superficial e efêmera
produzida e veiculada pela cultura mercantil. Na perspectiva de Vygotsky, a educação é, antes de
tudo, fator de constituição do sujeito. Pactuando deste mesmo entendimento, Santos (1996)
pondera: é preciso uma educação que parta da conflitualidade dos conhecimentos, visando conduzir
a discussão entre saberes práticos que aceitam sem questionamento o sofrimento humano e saberes
que se inconformam com ele; entre saberes que aceitam o que existe, pelo simples fato de existir, e
saberes que só aceitam o que existe, na medida em que merece existir. Ainda segundo Santos, a
capacidade de se indignar e a vontade de mudar serão fundamentais para vislumbrar um modelo de
educação que busque uma nova forma de relacionamento, mais igualitária, mais justa; que permita
ao homem desenvolver-se em outros sentidos que não aqueles estabelecidos pelo capital. “[....] Será
este o critério último da boa e da má aprendizagem” (Santos, 1996, p.33).

A análise das profundas implicações entre a educação e o desenvolvimento das


capacidades psíquicas não se esgota aqui. Nesse debate, há muito ainda por apreender e discutir.
Sem dúvida, um passo importante nessa luta é entender que tais capacidades não se constituem
espontaneamente, tampouco por determinação hereditária ou pela ação do próprio sujeito. Antes
sim, dependem, fundamentalmente, da mediação social, da qualidade da linguagem e do
conhecimento que perpassa essa mediação. Logo, para que a formação das funções psicológicas
superiores não fique simplesmente à mercê da cultura mercantilista, do conteúdo ideológico
veiculado, sobretudo, pelos meios de comunicação de massa, a educação escolar não pode abrir
mão de ocupar, com rigor teórico-metodológico, o tempo e o espaço a ela destinados.

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579
Indústria cultural, estereótipos e introjeção de preconceito : análise de peça
publicitária televisiva.

Marian A. L. D. Ferrari
Universidade Presbiteriana Mackenzie - Faculdade de Educação
Laboratório de Estudos do Preconceito – Instituto de Psicologia USP

No século passado desde a década de 60 Marcuse (1968) já apontava que o uso da


tecnologia ao invés de tornar a vida mais benigna transformou-se também numa máquina
de uso agressivo e supérfluo que, revestida de uma aparente racionalidade e para além do
conforto, produz prejuízos aos sujeitos por seu modo controlado e repressivo. Também
naquela época, McLuhan (1974) ao refletir sobre a natureza dos mass media, questiona a
neutralidade da técnica que, além de ser indissociável daquilo que produz - a mensagem em
si - estrutura as relações humanas de acordo com as suas peculiaridades (a tecnologia fabril
operária, por exemplo, produziu um tipo de humanidade totalmente diversa daquela
produzida pelas tecnologias da comunicação eletrônica). A tecnologia nos faz lidar
cotidianamente com situações cuja prova ou modo de funcionamento não é conhecido,
restando-nos apenas crer. O avanço tecnológico da forma como vem sendo utilizado a
partir do século XX amplia cada vez mais o valor dado ao trabalho mecânico aí envolvido
auxiliando tornar a relação do sujeito com o mundo mais e mais mediada pela tecnologia,
afastando dos sujeitos a reflexão sobre a experiência. Se, graças ao avanço da tecnologia, o
mundo contemporâneo torna-se cada vez mais povoado por objetos, a relação do sujeito
com a abundância de objetos acaba por tornar o conhecimento das coisas do mundo mais
impenetrável, apontando para a ideologia da racionalidade tecnológica (Adorno e
Horkheimer, 1985) como modo de lidar com tal excesso. Nesta ideologia, o valor de troca
das mercadorias é enfatizado em detrimento à finalidade do uso destas mercadorias. Desta
forma, tudo é quantificável e passível de comparação numérica sendo valorizado aquilo que
vale mais. Fazendo uma breve articulação entre Marcuse (op. cit.) e McLuhan (op. cit.)
com as questões de suscitadas a partir da teoria crítica (Adorno, op. cit.; Croc hik, 1999),
percebe-se a convergência para o fato de que a racionalidade tecnológica está apoiada sobre
a crença na suposta neutralidade da técnica. Assim, a sua mistificação fica reforçada,
mascarando o fato que o uso da técnica a serviço do capitalismo a transforma em um fim
em si mesma, pois se agrega à técnica um valor que ultrapassa aquilo que ela é capaz de

580
produzir. Dessa forma, a técnica também se torna mercadoria, cujo valor de troca sobrepuja
o valor de uso.
As diversas tecnologias são agentes fundamentais na engrenagem da indústria cultural
e na difusão dos seus produtos. A indústria cultural tem como uma de suas características a
interdependência entre seus procedimentos (tais procedimentos seriam principalmente o
rádio, o jornal, o cinema, as revistas e a televisão), de forma que seus fatores isolados – no
caso deste estudo, a televisão – devem ser percebidos na totalidade do sistema, uma vez que
recebem sua força desta articulação. Dentro da história o advento dessa indústria está
intimamente ligado à proliferação e ao excesso de produtos, uma vez que a comunicação, a
informação e o entretenimento se tornam produtos da indústria cultural.
A televisão ocupa lugar de destaque no rol de produtos da indústria cultural por seu
alcance e consolidação de modo veloz em quase todos os países do mundo incluindo o
Brasil. O veículo televisivo é de tal alcance que faz parte do cotidiano de quase todas as
pessoas do planeta. Tendo se tornado um referencial na vida dos sujeitos, a televisão em
sua forma e conteúdo é mensageira de padrões que auxiliam a constituição dos modos de
viver e pensar atualmente (Sodré, 2000). Se a imagem é capaz de operar modificações
profundas nos modos de percepção e, portanto, no psiquismo humano, a televisão constitui-
se numa estrutura bem mais complexa e articulada com as instâncias sociais da economia
de mercado bem como com os demais meios de comunicação, distante do simples meio de
transmissão de informações com o qual ela é muitas vezes identificada. Assim, é
importante ressaltar que a televisão e o uso que se faz dela são indissociáveis; conteúdo e
meio atuam conjuntamente sendo objetificados, tendo como conseqüência a alienação e o
falseamento da realidade. Sodré (op. cit.) refere-se à televisão como uma “visão-tele” que, à
distância é uma forma “de governar na sociedade contemporânea” (p.9) com uma
característica importante: a divisão radical entre falante e ouvinte, de vez que a resposta
daquilo que foi falado não retorna ao emissor. Desta forma, o modo de percepção proposto
pela televisão vem alterando a forma de representação da realidade, contribuindo para a
alteração no modo de organização dos sujeitos e de seu processo de individuação. Só é
possível termos chegado a tal estado de alienação, de “modelagem conjunta da consciência
e do inconsciente” (Adorno, 1995, p.88) por todo um conjunto proposto pela indústria
cultural em que pese a totalidade dos procedimentos que a compõem. O autor também
afirma que um conhecimento pleno dos efeitos da televisão nos indivíduos só seria possível

581
através de estudos em profundidade sob a perspectiva psicanalítica, uma vez que aspectos
inconscientes estariam também em jogo (Adorno, 1971).
A presente pesquisa concorda que, de fato, o poder das imagens e discursos veiculados
constantemente pela indústria cultural atua também de forma inconsciente e pretendeu
contribuir em pequena escala para o desvelamento de uma parte específica dentro desta
complexa relação televisão / indivíduo preconizada por Adorno: o modo como a
representação de minorias ocorre na televisão, em especial nas peças publicitárias ali
veiculadas verificando como esta representação ocorre, como estão ali representadas estas
pessoas e como ocorre nesta situação a veiculação de estereótipos capazes de propiciar a
introjeção do preconceito.

PUBLICIDADE E PROPAGANDA
A palavra ‘p ropaganda’ c ostumeiramente é tida como um termo mais abrangente
relacionado ao universo ideológico na esfera dos valores éticos e sociais, cuja utilização
seria mais adequada para as mensagens políticas e institucionais. Nesta perspectiva, a
‘publicidade ’ estaria relacionada a mensagens comerciais explorando o âmbito dos desejos,
fazendo para tanto mais explicitamente o uso do convencimento (Carvalho, 1996). Dentro
da definição dos termos Barbosa (1995) trouxe um refinamento capaz de delimitar mais
claramente o conceito eleito. Através do resgate da raiz etimológica latina do termo
‘propaganda ’ ( propagare que, por sua vez, deriva de pangere, significando plantar,
enterrar) é possível perceber a questão da transmissão de uma ideologia como um 'dever ' da
propaganda. Já a palavra ‘publicidade ’ deriva do latim publicus (Bueno, 1974, p. 3256).
Originalmente seu sentido era relacionado àquilo que é manifesto, conhecido, uma vez que
é comum a todo o povo. Sua raiz (populus) se associa tanto ao que pertence ao povo quanto
a uma oposição ao que é reservado e oculto na esfera privada. Até chegarmos ao sentido
atual da palavra ‘publicid ade’, mais ligada ao estímulo do desejo para que se desenvolva
uma atitude capaz de gerar uma transação comercial, é importante registrar que a clareza
daquilo que outrora designava o que estava posto em público e para o público
paulatinamente veio dando lugar à persuasão e ao convencimento em que os recursos
lingüísticos como a metáfora, a metonímia e a verossimilhança são utilizadas
freqüentemente na omissão de informações (como por exemplo, a publicidade de cigarros
que até recentemente ocultava seus danos à saúde) subvertendo a idéia original de que
aquilo que está exposto ao público está totalmente explícito. A inversão aponta também

582
para a ênfase na esfera privada em detrimento à pública, uma vez que é nesta esfera que as
ocultações ocorrem. Assim, a ocorrência de inverdades ou de verdades parciais naquilo que
está posto em público – a publicidade – denuncia também a ocupação da esfera pública por
valores e modos de vida característicos da esfera privada. Atualmente a publicidade tenta se
colocar exatamente num trânsito entre a esfera pública e a privada anunciando os produtos
que na verdade apenas estão disponíveis para aqueles que têm acesso e capacidade
financeira para comprá-los com a promessa de que são capazes de satisfazer
individualmente os desejos dos consumidores.
Seguindo a tendência atual de repensar as fronteiras e os papéis da vida pública e da
vida privada (Sennett, 1988), a publicidade deslocou seu eixo, ao longo da história, da
praça pública para aspectos mais narcísicos e internos do receptor de sua mensagem. Nesta
transição foi perdendo a acepção original de algo posto em público sem ocultações
passando a se constituir em algo produzido para convencer o público com a finalidade de
atingir individualmente os consumidores. Embora a persuasão comercial com fins de
consumo realmente defina a publicidade atualmente, não é possível pensar nesta sem seu
caráter propagandístico, ou seja, sem a intenção de 'plantar uma idéia' a fim de transmitir
ideologia como um elemento presente nas peças publicitárias. Juntamente com os produtos
anunciados, estão veiculados modos de vida, atitudes, estilos e tendências do
comportamento social valorados positivamente. Por exemplo, a persuasão e a sedução,
elementos frequentemente associados à produção publicitária, constituem peças
fundamentais de toda a indústria cultural, não se restringindo apenas à publicidade. Desta
forma, é preciso levar em conta na análise das peças publicitárias a propaganda que elas
contêm.

ESTEREÓ
TIPO E PENSAMENTO ES TEREOTIPADO
A presença de estereótipos na publicidade pode ser inicialmente pensada como
uma simplificação necessária (Vala, 2000) uma vez que para podermos apreender
rapidamente os objetos do mundo – e uma peça publicitária na televisão é muito rápida
durando em torno de 30 segundos - a estereotipia parece ser uma boa oferta aos olhos (e aos
demais sentidos) nem sempre dispostos a coletar e refletir sobre o que se apresenta. Krech
et. al., (1975) afirma que as atitudes humanas se orientam para as ações tanto movidas pelo
afeto e pela cognição e que os estereótipos seriam tentativas cognitivas de justificar uma
percepção distorcida dos objetos do mundo. Amaral (1995) propõe que, sejam hostis ou

583
favoráveis, os afetos frente ao objeto estereotipado não se amparam na experiência e que as
emoções provocadas pelo encontro com o significativamente diferente são tão intensas que
se sobrepõem aos processos cognitivos.

Assim, diante do alvo, além do estabelecimento de uma barreira racional vinda através
de estereótipos consagrados socialmente, teríamos também uma forte carga emocional
impedindo-nos de aproximar da pessoa real e contextualizada. (Ferrari, 2006). Não
podemos nos esquecer que a origem dos estereótipos está na cultura, são simplificações
oferecidas aos sujeitos a fim de eliminar a dúvida presente no processo de apropriar-se dos
objetos do mundo. Ao restringirmos a explicação da estereotipia como um engano
perceptual do indivíduo, excluímos o papel da cultura na formação dos indivíduos.

Os estereótipos são proporcionados pela cultura e se mostram propícios


à estereotipia do pensamento do indivíduo preconceituoso,
fortalecendo o preconceito e servindo para a sua justificativa. (Crochík,
1997, p.8)

O convite a perceber o mundo através da estereotipia é constante, uma vez que vivendo
sob o domínio da ideologia da racionalidade tecnológica valorizamos atualmente a produção
em detrimento da reflexão. Neste cenário, a indústria cultural fornece os clichês
estereotipados e permite ter as respostas para tudo o que é produzido e apresentado na
realidade e os slogans publicitários revelam o congelamento dentro de uma padronização
inalterável. Trata-se, portanto, mais do que apenas a visão fixa e não correspondente à
realidade de algum de seus objetos (este seria apenas o conteúdo do estereótipo) da promoção
através dos produtos da indústria cultural de uma estereotipia do pensamento, ou seja, de
uma forma de pensar fixa e repetitiva.
O preconceituoso realiza uma falsa generalização, considerando semelhantes todos os
membros de um grupo, impedindo o conhecimento mais pormenorizado de cada um dos seus
indivíduos (Adorno e Horkheimer, 1985). Este desconhecimento resiste a argumentos vindos
da experiência real, considerando como naturais e imutáveis certas características que
evidenciariam os valores negativos atribuídos a certo grupo alvo. A partir destas
características se associam outros atributos - geralmente negativos - não necessariamente
presentes nos indivíduos deste grupo.

584
MÉTODO E COLETA DE DADOS

Encontrei-me ao longo de 2002 com seis adolescentes entre 12 e 17 anos de ambos os


sexos. A escolha das faixas etárias deu-se em função de tentar abranger diversas idades
consideradas a‘ dolescent es’ seja pelos parâmetros psicológicos, seja pelos parâmetros
utilizados nas pesquisas realizadas pelas agências de publicidade voltadas ao mercado de
consumo. Os adolescentes também foram escolhidos como representantes de certa cultura
hegemônica: a classe média. A escolha deu-se em função de que o estrato social de que esses
jovens são representantes veicula modelos e referências de modo de vida, valores e atitudes
passíveis de reprodução nas demais classes sociais. A referência dá-se, novamente, tanto no
plano do mercado de consumo, no qual eles são chamados de ‘formadores de opinião’,
quanto no plano das relações sociais e de poder, no qual eles representam o modelo ideal do
adolescente ‘comum’: branco, estudante, com seu próprio quarto e seus equipamentos
eletroeletrônicos. Está claro que esta classe social também não é a única produtora de valores
e estilos de vida; além disso, ela também se comporta como consumidora que, como as
demais classes imersas na ideologia da racionalidade tecnológica, tem a tendência em tratar
tudo como produto misticamente fabricado pela tecnologia. A transversalidade na veiculação
de produtos é uma das características da indústria cultural, não se restringindo a este ou
aquele estrato da sociedade; porém , também é claro que esta classe social encontra-se em
condições mais privilegiadas de acesso aos bens culturais e de consumo (Certeau, 1996) do
que as classes mais pobres. Bosi (1992) também afirma que o consumo dos produtos da
indústria cultural cresce principalmente na classe média brasileira. Se esta facilidade de
acesso pode ou não se transformar em crítica e criatividade diante do consumo de
estereótipos geradores de preconceito, já é outra questão.
Os adolescentes gravaram as publicidades dos intervalos da programação televisiva. Não
foi imposto limite ao número de peças escolhidas, nem se delimitaram critérios de escolha
destas peças. A intenção era que a gravação em vídeo retratasse o tipo de publicidade a que os
participantes da pesquisa estão expostos. Parte do material resultante das gravações realizadas
pelos adolescentes foi utilizada para produzir a análise a seguir.

585
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Em todos os comerciais gravados há uma ausência que não pode passar
despercebida. Esquecendo momentaneamente qual adolescente escolheu e gravou esta
ou aquela peça publicitária, dos 72 comerciais escolhidos por todos os seis
colaboradores, apenas dez apresentam atores negros, dentre os quais um conta também
com uma atriz oriental. Nenhum apresentou atores com algum tipo de deficiência (seja
física, sensorial ou intelectual), nem mesmo uma variação na faixa etária ou no tipo
físico (atores altos, baixos ou gordos, por exemplo). Isto sem contar os diversos grupos
étnicos presentes no Brasil sem voz nem imagem nos comerciais selecionados pelos
participantes da pesquisa. Além de o aspecto quantitativo chamar a atenção, a situação
em que os atores foram colocados e o contexto no qual eles aparecem, também é digna
de nota. As personagens negras eram secundárias, na situação de coadjuvante dos
atores principais, e em alguns destes comerciais, pareciam compor o cenário como
mera exigência do emergente mercado voltado ao multiculturalismo. Essa visão,
combatida por Amaral (1995) aparece também aqui, estendida à presença dos atores
negros. A idéia que a sustenta é a de incapacidade: estes grupos minoritários não teriam
a capacidade de dizer como e de que forma devem ser apresentados nos meios de
comunicação, logo, necessitariam que alguém decidisse por eles o que fazer. A
aparição realizada deste modo, porém, além de reforçar a falta de lugar, não garante a
isenção da veiculação de estereótipos ou o reconhecimento das diferenças, mas apenas
registra a existência de uma nova ‘fatia’ de mercado também vinculada à cadeia de
produção e consumo que, como as demais, necessita ser conquistada e mantida.
Relembrando as contribuições dos trabalhos sobre deficiência e racismo na mídia é
preciso ressaltar o fato que a simples presença dos grupos minoritários nas publicidades
não é garantia de menor preconceito. Exatamente como Naujorks (1997), Araújo
(2000) e D’Antino (2001) haviam apontado em seus trabalhos, a situação de integração
(não apenas da pessoa com deficiência ou do negro, mas de qualquer um que apresente
uma diferença significativa) não significa a existência de uma relação direta em que
estereótipos e preconceitos são desconstruídos. A visibilidade pode muito bem servir –
como muito freqüentemente ocorre na televisão – para reforçar estereótipos que, por
sua vez, podem contribuir com a introjeção do preconceito. Decompondo um pouco
mais uma dessas peças publicitárias, examinaremos um comercial em que os atores
negros estão representados de forma estereotipada. Inicialmente é necessário investigar

586
o contexto proposto. Trata-se de um cenário ao ar livre que sugere uma praça em um
centro urbano. Na praça, as pessoas passeiam com seus cães e deparam com os
vendedores ambulantes de guaraná e cachorro quente. O cenário é animado por música
e dança e todos terminam por cantar ou dançar, inclusive os cachorros. Toda cantada, a
peça publicitária do refrigerante diz o seguinte:
Com guaraná Antarctica o bicho fica bom. No cachorro quente de pedigree,
só com guaraná Antarctica ele vai latir. No hot dog é o que há, mas só sai pra
passear com guaraná Antarctica. Hot dog radical, só com guaraná Antarctica
ele faz ‘au au’. Hot dog radical, só com guaraná Antarctica ele faz ‘au au’ .
Tudo pede guaraná Antarctica. Auuuuu.

“Tudo pede guaraná Antarctica”. Em menos de 30 segundos, o nome do refrigerante


foi repetido seis vezes. As palavras ‘ca chorro quente’ e h‘ ot dog’ foram repetidas uma e
três vezes respectivamente. As palavras associadas ao universo canino tais como l‘atir’ e
‘pedigree’ , somam seis. A repetição é tida por autores da área da comunicação (Moran,
1984; Carvalho, 1996) como uma estratégia de fixação – seja do produto ou da marca –
capaz de atuar fortemente no convencimento da atitude de compra. Porém, podemos
também pensar nesta repetição como um empobrecimento das idéias a serem comunicadas,
resultando numa infantilidade já descrita por Adorno (2000) tanto no que diz respeito à
música popular como representante dos produtos da indústria cultural quanto ao padrão de
propaganda utilizado na difusão do fascismo. A repetição aponta para o empobrecimento
nas fórmulas e na criação de um estilo cuja ênfase se dá na técnica empregada pelo produto
da indústria cultural em detrimento da idéia. A repetição do produto é seguida pela
repetição do comportamento do consumidor, que também espera consumir repetidamente
produtos muito semelhantes, confundindo a apreciação de algo com a sua familiaridade
através da difusão repetitiva.
Do ponto de vista psicanalítico (Freud, 1996), a repetição seria uma forma mais
primitiva, menos elaborada, tratando-se muito mais de uma atuação (acting-out) que
prescinde de reflexão. Na psicanálise, esta repetição é fruto das dinâmicas psíquicas
inconscientes dos sujeitos. Sua origem é bem distinta da produção publicitária que,
conscientemente se utiliza de fórmulas consagradas para sua realização, dentre as quais a
de que a fixação de uma mensagem ou de uma marca de produto pode ser garantida através
da repetição verbal ritmada.
Porém, como em uma produção onírica, poderíamos pensar que o elemento do sonho
que se destaca e se repete, geralmente é resultado de um deslocamento, ou seja: os

587
elementos coadjuvantes na verdade conteriam muito mais significação do que o elemento
central, mero disfarce. Transpondo esta lógica para a peça publicitária em questão, a
mensagem repetitiva e central, produto de deslocamento, seria a de que tudo pede por
guaraná Antarctica. Porém, os elementos coadjuvantes – a música, os jovens, a alegria, a
dança, as roupas – também teriam uma mensagem a ser veiculada, talvez mais central do
que o guaraná em si, a mensagem de que devemos ter neste modo de vida e de consumo
veiculados um parâmetro para a constituição de nossa subjetividade.
Articulando as afirmações de Adorno com a teoria dos sonhos psicanalítica, uma
diferenciação deve ser feita: os deslocamentos realizados na publicidade não são
resultantes de uma intencionalidade de seus realizadores, tampouco refletem desejos
pessoais inconscientes da equipe de criação publicitária. Há todo um desejo vindo da
engrenagem social que ultrapassa qualquer individualidade e que é expresso nestes
deslocamentos. Desejo de permanência do mesmo, de repetição de fórmulas e produtos, de
manutenção da dupla e antagônica promessa. De um lado, a ilusão que o consumo pode vir
a satisfazer os sujeitos e de outro, o distanciamento através da idolatria transmitida na
beleza das imagens, levando o sujeito a resignar-se com a constatação que, por mais que se
esforce, nunca será o tipo de pessoa representada na peça publicitária.
Retomo o bordão: “Tudo pede guaraná Antarctica”. O sujeito da frase é indefinido, o
que torna a ordem impessoal, disfarçando-a. Não há um agente específico impelindo a
beber guaraná. O sujeito da frase, bem como sua autoria se dilui (Barbosa, 1995) abrindo
campo ao mesmo tempo para a transmissão de ideais e valores do sistema social e para o
predomínio da esfera emocional neste discurso. Não há um argumento lógico apelando
para a razão; é a sedução através dos sentidos, com a qual vão se orquestrar muito bem os
recursos de imagem que analisaremos mais adiante. Esta estrutura verbal reforça a tese de
Carvalho (1996) que hoje em dia a estratégia verbal mais usada na publicidade é a sedução
sem razão, sem imperativo categórico, remetendo ao bom e ao prazer; é o chamado
‘argumento em ocional’.
A presença dos recursos de paralelismo e da comparação fica explícita nesta peça, em
que há uma associação com o universo canino, criando um duplo sentido com o cachorro
quente. O cachorro só vai latir, ou seja, aprovar, ou passear na presença do guaraná. É
interessante pensar na inversão de valores proposta: os consumidores humanos deveriam se
espelhar nos cães e gostar daquilo que estes aprovam. Esta inversão de valores também foi
observada por D’Antino (2001) na análise de uma peça publicitária que, na ocasião,

588
parodiava um acontecimento verídico em que o cão era alvo de uma festa de aniversário. A
autora relata que tal inversão não é recente, remetendo-se a uma tela do século XVII
retratando o lugar ocupado pela pessoa com deficiência em que o cão também é
representado como aquele que está no comando.
Ainda com relação ao aspecto verbal, neste paralelo entre o cachorro quente e os cães
destaca-se o uso de palavras em inglês (hot dog e pedigree) já adotadas em nossa língua.
Estas palavras se apresentam para reforçar a idéia de que a presença do refrigerante é capaz
de transformar um cachorro quente em “hot dog radical”, por tratar-se de uma bebida com
“pedigree”, portanto, de linhagem pura e reconhecida. A idéia de contágio está presente
neste discurso, pois o raciocínio é que o contato com algo de boa procedência torna tudo à
sua volta também bom. Também está presente a idéia que deve ser valorizado
positivamente aquilo que tem origem pura e certificada com um pedigree. Uma hipótese a
ser levantada é a de que as personagens representando os consumidores por terem tido
contato com a bebida passam a ter pedigree, ou pelo menos ficaram melhores (“radicais”)
com o refrigerante por perto. Dentro desta lógica, qual papel resta às personagens que
servem o refrigerante?
Com relação ao aspecto visual do comercial, são aproximadamente 15 atores jovens e
três cães. Quatro atores são negros, representam vendedores de cachorro quente e
refrigerante, usam jalecos verdes sobre as roupas, cantando e dançando em todas as cenas
em que aparecem. Das 23 cenas que compõem esta peça publicitária, nove contém negros
como mostra a Tabela 1.
Tabela 1: Cenas com atores negros, brancos e cães.
Cenas com Cenas com Cenas com cães e (ou) Total de cenas
atores negros atores brancos logotipo da marca
9 9 13 23

Note-se que a soma das cenas ultrapassa seu total uma vez que temos aqui incluídas a
presença de atores brancos e negros numa mesma cena, bem como cenas em que há a
presença de cães, logotipos e atores. A presença de atores negros nas cenas é mais
detidamente apresentada na Tabela 2.

589
Tabela 2: Presença de atores negros nas cenas.
Cenas somente Cenas com Cenas com atores Total de cenas com
com atores atores negros e negros e cães atores negros
negros brancos
3 3 3 9

Apenas em uma cena aparece um ator negro em destaque cantando em plano de meio
corpo, enquanto que o plano da câmera das oito cenas restantes é de corpo inteiro ou
aberto. Em três dessas cenas os atores negros interagem com atores brancos dando latas de
refrigerante ou cachorro quente em plano de corpo inteiro.
Em três das cinco cenas restantes, o plano é aberto, os cães estão em primeiro plano e
os atores negros ao fundo. Os atores e os cães dançam de modo parecido (os cães estão
apenas sobre as patas traseiras). Nas duas cenas restantes o plano é de corpo inteiro e os
atores negros estão jogando cachorro quente, ou refrigerante para alguém que não é visto
na cena. A presença dos atores brancos é descrita na Tabela 3.

Tabela 3: Presença de atores brancos nas cenas.


Cenas somente Cenas com Cenas com Total de cenas com
com atores atores brancos e atores brancos e atores brancos
brancos negros cães
5 3 1 9

Há seis cenas com atores brancos (atuando em todas elas como consumidores de
cachorro quente e refrigerante) em que não há participação dos atores negros. Destas, três
são em plano fechado (close), duas em plano de meio corpo (em uma delas com a presença
de um cão) e uma em plano aberto. Esta última cena é a parte final do comercial em que
todos estão deitados ou sentados na grama com refrigerante nas mãos. Somando-se estas
cenas com as três em que atores brancos interagem com os atores negros (estes últimos
sempre servindo algo), temos no total, nove cenas com atores brancos. Retomando as
somas, das 23 cenas, cinco contém apenas atores brancos, uma contém atores brancos com
um cão, três contém atores brancos em interação com atores negros, três contam com
atores negros em interação com cães, três cenas apenas com atores negros e nove cenas
somente com cães e\ou cachorro quente e\ou refrigerante co m logotipo da marca. De longe,
a maioria das cenas privilegiou apenas os cães, a bebida e o sanduíche, sem a presença

590
humana. Os cães, na única cena em que interagem com atores brancos, fazem papel de cão:
pulam sobre as pessoas deitadas na grama, divertindo seus supostos donos. Já em dois dos
três momentos em que contracenam com atores negros, estão realizando a cópia de uma
atividade humana, a dança, utilizando-se apenas das patas traseiras. Em todas estas cenas é
também marcante, além da imitação, o fato de que os cães estão em primeiro plano e os
atores negros são os coadjuvantes do desempenho canino. Quando analisamos as cenas em
que ocorre a presença humana, há uma marcante diferença na quantidade de cenas apenas
com atores brancos (cinco) em comparação com as cenas com atores negros (três). A
diferença na abordagem também aparece no plano de câmera que enfoca os atores negros
predominantemente de corpo inteiro e mais distante. Em contrapartida, a câmera dá ênfase
(três das cinco cenas) ao rosto e às mãos dos atores brancos. Provavelmente, os corpos dos
atores brancos, focados bem de perto de modo a termos uma visão parcial em que há o
predomínio de mãos e rostos remetem à fetichização em que passamos a associar a
sensualidade com o desejo por partes do corpo. Um belo rosto ou barriga é alvo de desejo,
sem interesse no sujeito completo (Silva, 2004). Está evidente que os pedaços de corpos
utilizados para a fetichização neste comercial são os corpos de pessoas jovens e brancas.
Além dos fragmentos de corpos enquadrados para o telespectador ‘comer co m os olhos’,
também temos (além da presença de muitas cenas apenas com a bebida e o sanduíche como
já assinalado) cenas em que há o convite ao comer e ao beber. Uma das cenas mais
explícitas é a da jovem que oferece à câmera e ao telespectador um sanduíche de cachorro
quente.
Adorno (1991) afirma que estamos cada vez mais canalizando pulsão de vida apenas
para auto-conservação, deixando muito pouco para o sexual e conseqüentemente para a
busca da liberdade. Assim, o prazer evocado na peça publicitária estaria muito mais
voltado às necessidades de auto-conservação. De fato, uma análise mais detida nos faz
refletir sobre o desejo e a sensualidade aqui propostos. Ainda pensando nos deslocamentos
possíveis, trata-se de uma propaganda sobre o comer e o beber. Mais do que aquele
refrigerante a ser comercializado é a importância do constante consumo de refrigerante que
está sendo veiculada. Aqui, os corpos parcialmente expostos estão muito mais a serviço do
comer e do beber. Há claro, um apelo ao prazer envolvido na incorporação da bebida e do
alimento. Porém, a finalidade mais vinculada a impulsos de auto-conservação presente
nesta peça pode ser pensada como a tônica de nosso tempo: o terror de se ver fora do ciclo
produtivo econômico, inviabilizando a satisfação das necessidades mínimas de existência,

591
entre as quais o comer e o beber, somado à idéia corrente de consumir sempre e mais
produtos, coloca a auto-conservação como um impulso a ser satisfeito mais
acentuadamente, transformando-se num fim em si mesma. Desta forma, o desejo que fica
em último plano é o sexual. Canalizamos a libido para a auto-conservação que hoje em dia
se traduz em consumo. Se há a busca por satisfação impulsionada pela auto-conservação,
há também uma situação masoquista na qual o prazer vem da suspensão da satisfação: o
refrigerante, os sanduíches, o dia ensolarado no parque, são elementos que podem ser
vistos, mas não podem ser tocados. Em um nível mais profundo, nós, telespectadores,
sabemos que não somos aquelas pessoas felizes que comem e bebem no parque. A
apresentação de estilos de vida e modelos físicos e psicológicos nas peças publicitárias
aproxima-se da função de ego externo aos sujeitos e ao grupo tal qual na situação da
propaganda fascista descrita por Adorno (1986). Em ambos os casos, os supostos
argumentos racionais e de preservação pertencem à publicidade e não aos sujeitos,
identificados e fundidos com uma instância externa a eles numa posição infantil de
simbiose narcísica em que o elemento externo é vivido como um prolongamento daquilo
que não se é, mas anseia tornar-se.
Os argumentos presentes na peça publicitária veiculada são supostamente racionais
apenas porque o discurso possui certa lógica de encadeamento das palavras e das ações;
porém, analisando-o mais detidamente, é flagrante a irracionalidade que ele contém diante
da vida concreta da maioria dos habitantes urbanos: um parque ensolarado em que as
pessoas cantam, comem e bebem em companhia de cães. Daí a necessidade em ser um
discurso cujo apelo seja emocional em busca de identificações com os espectadores.
Concluindo, a reflexão sobre os elementos verbais, visuais e contextuais nesta peça do
guaraná Antarctica revela a situação de desvantagem em que foram colocados os atores
negros reforçando estereótipos. Dentro de um mundo aterrorizado com a ameaça de
desemprego é esperado que o jovem negro – como estes aqui representados – encontre na
ocupação informal de vendedor ambulante, a alegria dançante de ter um subemprego como
dita o estereótipo. Coube a uma atriz oferecer mais explicitamente aquilo que está negado
aos atores negros neste comercial: o beber, o comer e a diversão no parque. Juntamente
com os cães, estes atores são os únicos do anúncio de refrigerante que não consomem a
bebida. Mesmo os cães reinam absolutos, dizendo o que “é bom prá cachorro” e que deve
ser consumido, dançando sobre duas patas numa imitação humana, reafirmando a inversão
de valores presente não apenas nesta peça publicitária, mas em outras produções com cães

592
como as já apontadas por D’Antino ( op. cit.). Em destaque, sobrepondo suas figuras à dos
atores negros nas cenas em que estão interagindo, sua dança é seguida por eles. Se a dança
canina imita a humana, qual papel é atribuído àqueles que imitam esta imitação? Talvez
não apenas estes cães estejam mais valorizados que os atores negros deste comercial, mas
até mais valorizados que muitas pessoas na vida para além da tela de televisão.
Diante deste panorama, a apreensão da realidade de forma rápida através da
generalização propiciada pelos estereótipos bem como a estereotipia do pensamento
proposta pela organização e desenvolvimento das peças publicitárias aqui pesquisadas,
ativamente contribui para a veiculação do preconceito. Como modo capaz de eliminar
dúvidas e contradições inerentes à sociedade, a publicidade televisiva pode fornecer
elementos capazes de validar preconceitos, através do contexto e do discurso tecido através
das imagens e do texto, toda vez que apresentar estereótipos e formas estereotipadas de
pensamento para apresentar seus produtos. Nunca é demais lembrar que o preconceito se
apóia na estereotipia do pensamento bem como nos estereótipos, utilizando-se deles como
justificativa para a discriminação, naturalizando situações que, através dos estereótipos se
vêem como práticas socialmente sancionadas.

Referências Bibliográficas

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595
A “máquina” como instrumento de controle na sociedade tecnológica – Herbert Marcuse
crítico da tecnologia

Marilia M. Pisani
Universidade Federal de São Carlos

Introdução
No mesmo ano em que conclui o seu primeiro livro em inglês, “Razão e Revolução”,
Marcuse também publica o texto “Algumas Implicação Sociais da Tecnologia Moderna”1 (AISTM).
O texto trata de seu primeiro estudo sobre o tema da técnica e da crítica da tecnologia. Marcuse, que
vivia neste período em exílio nos Estados Unidos, absorveu completamente as pesquisas americanas
em seu texto, fazendo uso de um material extremamente rico de pesquisas e relatórios, documentos
do governo e monografias sobre o tema da tecnologia. No texto ele analisa como o desenvolvimento
das forças produtivas e a introdução da maquinaria modificou o processo de trabalho, criando um
novo indivíduo e uma nova sociedade. Marcuse procura mostrar que “a tecnologia está criando
novas formas de sociedade e cultura com novas formas de controle social” (Keller, 1999: 18)2.
O texto descreve o processo de constituição da “sociedade tecnológica” nos seguintes
termos: “o princípio da eficiência competitiva favorece as empresas com o equipamento industrial
mais altamente mecanizado e racionalizado” – “o poder tecnológico tende à concentração do poder
econômico”. Grandes conglomerados de empresas e impérios industriais são formados produzindo
enormes quantidades de mercadorias, controlando todas as fases da produção da mercadoria, da
matéria-prima à distribuição. Nesse contexto a “técnica” coloca seu poder à disposição das grandes
empresas, “criando novas ferramentas, novos processos e produtos” – ocorre uma “coordenação
radical” para “a eliminação de todo desperdício e aumento da eficiência” (Marcuse, 1999: 76-7,
grifo meu).
Marcuse procura mostrar como essas mudanças na composição técnica do capital,
mudanças possibilitadas pelo avanço tecnológico direcionado pelos monopólios industriais, acabam
por produzir simultaneamente uma nova atitude e um novo comportamento por parte dos indivíduos
que vivem sob seu domínio – ou seja, ele procura mostrar como que a “técnica” transforma-se, no
capitalismo monopolista, em “tecnologia”, em um processo social que abrange todas as esferas da

1
Marcuse. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna, In Tecnologia, Guerra e Fascismo. São
Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 71-104.

596
vida e da sociedade. Segundo Marcuse, “quando a técnica se torna a forma universal da produção
material, ela circunscreve uma cultura inteira – um ‘mundo’” (1969: 150).

“Sob estas circunstâncias, a utilização lucrativa do aparato dita em larga escala a quantidade, a
forma e o tipo de mercadorias a serem produzidas e, através deste modo de produção e distribuição, o poder
tecnológico do aparato afeta toda a racionalidade daqueles a quem serve” (Marcuse, 1999: 77).

Esta perspectiva de apresentação de como as inovações tecnológicas na esfera produtiva


afetam toda uma sociedade também é característica de “O Homem Unidimensional: estudos sobre a
ideologia da sociedade industrial avançada”, de 1964 (título do original em inglês). A racionalidade
do processo produtivo que se dá no interior da fábrica se expande para todo o resto – a sociedade
torna-se uma imensa fábrica, com uma organização e coordenação eficaz e produtiva. Marcuse
pensa na racionalidade como “racionalidade tecnológica” e esta explica a contenção da
transformação social assim como seu caráter totalitário.
Para esta exposição utilizaremos estes dois textos sobre a tecnologia, o de 1941 (AISTM) e
o de 1964 (HU), buscando neles elementos para compreender a critica da técnica e da tecnologia em
Marcuse, que se dá por meio da focalização do processo produtivo e a conseqüente formação uma
nova sociedade. Ao dirigirmos nossa atenção ao modo como ele compreende a “máquina”
poderemos abranger estas duas perspectivas.
No texto “Ideologia, Tecnologia e Grande Recusa: a atualidade de Marcuse”, Maar se refere
a este caráter peculiar da critica da tecnologia de Marcuse. Segundo ele, em Marcuse, assim como
em Marx, Adorno e Horkheimer, a “critica da alienação e da reificação ideológica depende da
focalização do processo de produção material da sociedade”. Desta forma, Marcuse estaria se
baseando na descrição do movimento da sociedade capitalista tal como fora retratado por Marx no
“Capítulo VI – inédito – de ‘O Capital’”, onde ele assinala que “os economistas haviam elucidado
os modos pelos quais se produz “na” sociedade, mas não haviam apreendido como se produz “a”
sociedade”. É justamente essa “produção da sociedade” que seria responsável pela “contenção da
transformação”, pela produção da “sociedade sem oposição”, a que se refere Marcuse em “O
Homem Unidimensional”.
Para o autor é significativo que o livro de Marcuse “O Homem Unidimensional” se divide
precisamente em duas partes: a “Sociedade unidimensional” e o “Pensamento unidimensional”,
“mostrando a gênese da cultura, [a gênese] do pensamento, no âmbito do processo de produção
material (...)”. Justamente por esse motivo, o primeiro capítulo do livro, “As novas formas de

2
Kellner, D. O Marcuse desconhecido: novas descobertas nos arquivos. In Marcuse, Tecnologia, Guerra e

597
controle”, trata da “automação tecnológica do processo produtivo”, “das modificações tecnológicas
introduzidas no meio de trabalho e nos instrumentos de trabalho”. Neste sentido, ele afirma que “A
Ideologia da sociedade industrial avançada” (título da tradução brasileira) tem como referencial a
argumentação desenvolvida na “Ideologia alemã”. A seguinte citação da obra de Marx deve
elucidar esta característica:

“A produção de idéias, de representações, da consciência, está ..., diretamente entrelaçada com a


atividade material e com o intercâmbio material dos homens. O representar, o pensar, o intercâmbio
espiritual, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. (...) parte-se dos homens
realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se o desenvolvimento dos reflexos ideológicos
e dos ecos desse processo. (...) os homens, ao desenvolverem sua produção material, transformam também,
juntamente com a realidade, seu próprio pensar... Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência”. (Marx, 1996: 35-7)

O indivíduo que vive na “era da máquina”, termo emprestado do historiador da tecnologia


Lewis Mumdford (1898-1990), subordina sua vida às determinações do aparato industrial. O
“processo da máquina” modifica a atitude intelectual e espiritual do trabalhador e a nova atitude
“diferencia-se do resto pela submissão altamente racional que caracteriza”;“os fatos que dirigem o
pensamento e ação dos homens ... são os fatos do processo da máquina” (1999: 79) – “a mecânica
da submissão propaga-se da ordem tecnológica para a ordem social”, governando “o desempenho
não apenas nas fábricas e lojas mas também nos escritórios, escolas, juntas legislativas e,
finalmente, na esfera do descanso e do lazer” (1999: 82, grifo meu). Neste contexto “o
comportamento humano se reveste do processo da máquina” – “tudo contribui para transformar os
instintos, desejos e pensamentos humanos em canais que alimentam o aparato” (1999: 81, grifo
meu). A “máquina” aparece como o instrumento privilegiado de coordenação política na sociedade
tecnológica.
A concepção da “máquina” como instrumento de uma nova forma de controle e coesão
social – ou, nos termos do ensaio sobre Weber, “Industrialização e capitalismo na obra de Max
Weber” (de 1964), a “máquina” como “espírito coagulado”, dominação dos homens sobre os
homens – é um elemento fundamental do argumento de Marcuse, que já aparece desenvolvido no
texto de 1941 e seria retomado em “O Homem Unidimensional”. Essa análise possibilita a Marcuse
desvendar a “dimensão subjetiva da dominação objetiva”. A tese de que a mudança nos
instrumentos básicos de produção “modifica a atitude e a condição do explorado” toca na dimensão
psicológica e biológica do capitalismo – neste contexto Marcuse utiliza, entre outros, algumas
idéias do filósofo da tecnologia Gilbert Simondon (1924-1989), desenvolvidas em “Du mode

Fascismo. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 15-18.

598
d’existence des objets techniques” (de 1958)3. Uma abordagem do processo de trabalho sob o
capitalismo avançado é o ponto central que permite compreender como que a dominação objetiva se
transforma em manipulação subjetiva. Vejamos como isso ocorre.
A “máquina” como um eficaz instrumento de controle na sociedade industrial
avançada:
Dissemos no início do capítulo que Marcuse foi influenciado por uma série de pesquisas,
relatórios e documentos sobre o tema da técnica e da tecnologia. Apresentaremos agora algumas das
idéias incorporadas por Marcuse no que se refere ao modo como a “máquina” afeta e modifica a
pessoa e toda uma sociedade. Extrairemos desses autores apenas os elementos que auxiliem em uma
melhor compreensão do nosso tema.
Em AISTM, Marcuse afirma que um dos primeiros teóricos a perceber que a nova atitude e
comportamento provinha do processo da máquina e se estendia para toda a sociedade foi Thorstein
Veblen. Em sua obra “The Instinct of Workmanship” (“habilidade do operário”), de 1922, Veblen
caracteriza o novo indivíduo trabalhador da seguinte maneira:

“A contribuição do operário que opera a indústria mecanizada é (tipicamente) a de um serviçal, de


um assistente, cuja obrigação é manter seu ritmo afinado ao do processo da máquina e auxiliar,
manipulando corretamente, os pontos onde o processo da máquina seja incorreto. Seu trabalho suplementa o
processo da máquina ao invés de fazer uso dela. Ao contrário, o processo da máquina é que se utiliza do
operário. O aparelho mecânico ideal neste sistema tecnológico é a máquina automática” (apud. Marcuse,
1999: 78-9)

A centralidade do questionamento sobre a natureza da “máquina” no seio da sociedade


também está presente em Lewis Mumdford, que inicia o primeiro capítulo de seu livro “Técnica e
Civilização”4, de 1934, com a questão “o que é uma máquina?”, diferenciando-a de uma
“ferramenta” ou instrumento técnico – “a máquina” implica “todo um complexo tecnológico”
(2002: 26-29).
Segundo este autor, o desenvolvimento das máquinas “modificou profundamente a base
material e as formas culturais da civilização ocidental” (Mumdford, 2002: 21). Àdiferença das
épocas anteriores em que já existiam máquinas, na civilização moderna ela adquire um papel
predominante – “o novo é o fato de que as suas funções tenham sido projetadas e incorporadas em
formas organizadas que dominam cada aspecto de nossa existência” (idem: ibdem). Em sua leitura
critica da técnica moderna, ele afirma que a máquina possibilitou o solo propício para o crescimento

3
Não foi possível preparar uma exposição do pensamento de Simondon para esta ocasião (tal como havíamos
proposto no resumo). Iremos fazê-lo para a comunicação a ser apresentada no dia 1 de setembro de 2006 no
Congresso Internacional “Industria Cultural Hoje”.

599
do controle social estrito: “o processo social caminhou de mãos dadas com a nova ideologia e a
nova técnica” (2002: 56):

“Qualquer coisa que limite as ações e os movimentos dos seres humanos a seus elementos
puramente mecânicos pertence à fisiologia, se não à mecânica, da idade da máquina” (Mumdford, 2002: 56)
“A mecânica se converteu na nova religião, e deu ao mundo um novo messias: a máquina” (idem, ibdem: 60,
grifo meu)

O indivíduo na “era da máquina” foi caracterizado por Mumdford como uma


“personalidade objetiva”, alguém que subordina sua vida “a um mundo em que a máquina é o fator
e ele o instrumento” – o termo é apropriado por Marcuse (Mumdford apud. Marcuse, 1999: 78). Ele
chega a essa conclusão ao se colocar a seguinte questão: “Que tipo de homem surge de nossa
técnica moderna?” (Mumdford, 2002: 381).
O “novo” indivíduo é conseqüência da introdução da maquinaria no processo de produção,
isto é, de uma alteração no modo de trabalho. Este “novo” tipo de personalidade caracteriza-se por
estar diretamente influenciada pelas situações objetivas e não mais pelas crenças (idem: 382): o
autor diferencia a “personalidade objetiva”, característica dos tempos modernos, da “personalidade
medieval”. As duas possuem normas externas de referências mas, enquanto o “homem medieval
determina a realidade” de acordo com um “complexo tecido de crenças”, o “homem moderno” é “o
árbitro final [de um] juízo [que] é sempre um conjunto de fatos” (idem: 382). Ele chama de
objetivas aquelas “disposições e atitudes que estão de acordo com as ciências e a técnica” e ela só
foi incrementada porque “representa uma indispensável adaptação ao funcionamento da máquina”
(idem: 383-4, grifos meus). A nova objetividade traz consigo passividade e submissão. Para
Mumdford ...

“Na verdade, desde o princípio as conquistas mais duradouras da máquina residiram, não nos
instrumentos mesmo, que de rapidamente ficaram antiquados, nem nos bens produzidos, que de imediato
foram consumidos, mas nos modos de vida tornados possíveis graças à máquina e na máquina: o
extravagante escravo mecânico [a máquina] era também um pedagogo”. (Mumdford, 2002: 343)

Um dos elementos principais desta nova objetividade é o fato de que a “neutralidade” da


ciência e da técnica se converteu em instrumento de adaptação e, portanto, de controle: para
Mumdford a “grande contribuição da ciência analítica moderna” foi “a técnica de criação de um
mundo neutro” – “o conceito de um mundo neutro ... é um dos grande triunfos da imaginação do
homem” (idem: 383). (Esta critica da neutralidade da ciência e da técnica aparece em Marcuse com
mais ênfase a partir dos anos 60, uma vez que nos anos 40 ele mantinha a distinção entre técnica

4
Mumdford, Lewis. Técnica y Civilización. Madrid: Alianza Editorial, 2002.

600
(neutra) e tecnologia (modo de produção que utiliza a técnica como meio de transformação): ao
longo dos anos sua critica da técnica e da tecnologia vai ficando cada vez mais “negativa”, a ponto
de ele considerar insustentável a defesa da neutralidade. A recusa da neutralidade da técnica deve
ser entendida no contexto, herança da “Dialética do Esclarecimento”, de uma crítica à própria
ciência, uma vez que esta pressupõe uma relação de dominação e subjugação da natureza externa
que possibilita o instrumental para a dominação do homem pelo homem. Assim como Mumdford,
em 64 Marcuse vincula o estabelecimento da neutralidade da técnica a um sujeito histórico
específico – é precisamente o caráter neutro que relaciona a objetividade a um sujeito histórico
específico. Neste contexto a neutralidade assume um caráter “positivo”: a racionalidade científica,
“neutra”, favorece uma organização social específica).

Os trabalhos de Veblen e Mumdford caracterizam o período de desenvolvimento das


técnicas relativo aos 20/40 do século passado. Nos anos 60 Marcuse continua a incorporar uma série
de novos estudos, trabalhos e pesquisas sobre a tecnologia e seu impacto na esfera da produção e do
trabalho, isto é, as mudanças que a introdução da novas técnicas no processo de produção material
da sociedade geraram no próprio indivíduo, na cultura e no pensamento: “Marcuse apresenta a
sociedade tecnológica como um todo e não apenas uma reestruturação na esfera produtiva” (Maar,
2006)5. O livro “O Homem Unidimensional” é a síntese de suas reflexões desse período.
Em “O Homem Unidimensional” Marcuse se refere ao sociólogo americano Daniel Bell
(1919- ). Este autor desenvolveu uma análise crítica das mudanças ocasionadas pela introdução da
tecnologia na esfera do trabalho no livro “O Fim da Ideologia”, em especial no capítulo “O trabalho
e seus problemas: o cálculo da eficiência”6. Ele mostra como que a nova racionalidade “provocou
uma quebra abrupta com o ritmo do trabalho passado” (1980: 184). O seu texto é uma fonte
detalhada e rica de dados relativos às mudanças realizadas na sociedade americana nos anos 60,
contribuindo assim para formar uma imagem concreta do contexto em que Marcuse escreve sua
crítica da tecnologia. Para ele os Estados Unidos “representam hoje [anos 1960], mais do que
qualquer outro país, a civilização da máquina” (Bell, 1980, grifo meu).
Ao analisar a relação entre trabalho e tempo e as propostas de sua racionalização
progressiva, Daniel Bell fornece um quadro interessante sobre a evolução das pesquisas de
maximização das linhas de produção nas fábricas: ele mostra como, nos anos 20, o engenheiro
Frank Gilbreth (1868-1924) avançou um “passo a mais” nas pesquisas iniciadas por Taylor. De

5
Maar, Wolfgang Leo. Ideologia, Tecnologia e “Grande Recusa”: a atualidade de Marcuse. (s/ref.)

601
acordo com suas idéias “não só o processo de trabalho com máquinas podia ser decomposto em
elementos, mas o próprio movimento do homem podia ser funcionalizado, ordenando-se os
movimentos naturais dos braços e pernas, de modo a maximizar sua eficácia” (1980: 188). Gilbreth
“isolou dezoito modalidades básicas de unidades cinéticas – os movimentos de alcançar, mover,
segurar, etc.” e, analisando suas combinações, criou os princípios da “economia de movimento”:
“as duas mãos não devem permanecer ociosas ao mesmo tempo, exceto em períodos de descanso;
os movimentos dos braços devem ter direções opostas e simétricas”, e assim por diante. Dessa
forma, foi dado “um passo adicional na lógica inexorável da racionalização” (idem, ibdem). Ao
longo dos anos 40 as pesquisas continuaram: “quase compulsivamente ... o engenheiro,
ultrapassando a simples decomposição do trabalho em componentes minuciosos, procura agora um
sistema simples que abranja todo o relacionamento do tempo e da movimentação no trabalho
humano – desde as vassouradas do servente que varre o chão até o ritmo da datilógrafa dedilhando
o teclado da máquina elétrica” (1980: 191).
Ao analisar as conseqüências da automação da produção, onde as máquinas passariam a
criar valor (isto é, o “trabalho morto” contido na máquina passaria a determinar o “trabalho vivo”),
Marcuse se refere à concepção de “industrialização moderna” desenvolvida por Bell no relatório
“Automation and Major Technological Change”, que é caracterizada por meio do vínculo entre a
máquina e o trabalho, entre “modificação tecnológica” e “sistema histórico de industrialização”.
Bell afirma que o significado da “industrialização não surgiu com a criação das fábricas, ‘surgiu da
medição do trabalho. É quando o trabalho pode ser medido, quando se pode prender o homem ao
trabalho, quando se lhe pode atrelar e medir o seu rendimento ... se tem a industrialização moderna”
(Bell apud. Marcuse, 1969: 46). Sobre o vínculo entre “modificação tecnológica” (máquina) e
esfera do trabalho (indivíduo trabalhador) Marcuse afirma:

“No capitalismo avançado, a racionalidade técnica está personificada ... no aparato produtivo. Isso
não se aplica apenas às fábricas mecanizadas ... mas também à maneira de trabalhar como adaptação ao
processo mecânico e manuseio do mesmo, conforme programado pela ‘gerência científica’.” (Marcuse, 1969:
41)

As modificações introduzidas pelas inovações tecnológicas no modo de produção afetam


não apenas o aparato produtivo mas no próprio trabalhador que se torna, assim, um mero apêndice,
um “órgão”, um “autômato” da maquinaria. Esta conseqüência extrema e desvalorização total do
indivíduo já havia sido assinalada por Marx. Nos “Grundrisse” (“Lineamentos fundamentais”, vol
2) Marx se refere ao modo como a introdução das máquinas modifica o processo produtivo,

6
Bell, Daniel. O Fim da Ideologia. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

602
submetendo o processo produtivo ao capital. A última metamorfose do meio de trabalho quando
assumido pelo processo produtivo da capital é a “máquina”, um “sistema de máquinas” que é
movimentado por um “autômato”, uma “força motriz que se move se si mesma” (Marx apud.
Napoleoni, 1981: 86)7. O operário aparece não mais como aquele que utiliza os meios de produção
e os orienta para determinados fins, mas ele se torna o órgão de uma coisa que se move fora dele, de
um sistema automático: “o meio de produção tornou-se um sistema de máquinas, que não é movido
pela força humana” (idem, ibdem: 87). Segundo Marx:

“A máquina não se apresenta, sob nenhum aspecto, como meio de trabalho para o operário
individual. Sua diferença específica não é absolutamente, como no meio de trabalho, a de mediatizar a
atividade do operário diante do objeto; mas, ao contrário, essa atividade agora é posta de modo que ela
mediatiza apenas o trabalho da máquina, a ação da máquina sobre a matéria-prima – que ela vigia essa
ação e evita suas interrupções.” (Marx apud. Napoleoni, 1981: 87-8)

Este trecho é fundamental na concepção de Marx sobre a “máquina”. A questão colocada


por Marx é a seguinte: em todas as tecnologia que precederam o capitalismo, em todas as
tecnologias nas quais o capital ainda não interviera como elemento determinante, a relação entre o
trabalho e o instrumento de trabalho se apresentava da seguinte forma: o instrumento de trabalho
era o termo de mediação entre o trabalho e a natureza, ou seja, o trabalho agia sobre a natureza por
meio instrumento de trabalho. O termo inicial ativo é o “trabalho”; o termo final passivo é a
“natureza”; e o termo intermediário é o “instrumento”. Essa é a característica geral de todo o
processo produtivo considerado pelo ângulo do processo de trabalho (Napoleoni, 1981: 88).
Com as “máquinas” essa relação é invertida – o instrumento não está mais em posição
intermediária e, portanto, não desempenha mais a função de mediação. Essa função de mediação “é
despejada sobre o operário” (a posição intermediária é assumida pelo “trabalhador”). Ou seja: a
“máquina”, ou sistema automático de máquinas, é o ponto de partida inicial e ativo do processo e da
relação. Esse sistema de máquinas atua sobre o objeto, sobre a natureza, e a relação das máquinas
com a natureza é mediatizada pelo operário. Assim, o operário, que estava na posição inicial ou
ativa, se encontra agora em posição intermediária, instrumental – a denominação de instrumento de
trabalho aplicada à máquina é imprópria, porque ocorre o inverso: foi o trabalho do operário que se
transformou em instrumento desse “instrumento” [que é a máquina] (idem: ibdem).

7
Napoleoni, Cláudio. As Máquinas, In Lições sobre o capítulo sexto (inédito) de Marx. São Paulo: Livraria
Editora Ciências Humanas, 1981, p. 86-95. Os trechos comentados e discutidos por Napoleoni no que se
refere à “máquina” foram tirados dos “Lineamentos Fundamentais” (Grundrisse), vol. 2, escritos 8 a 9 anos
antes ao Capítulo VI Inédito.

603
Em outras palavras: a própria essência da tecnologia capitalista reside no fato de que é
invertida a relação entre o trabalho e o instrumento: enquanto inicialmente o instrumento é
precisamente o instrumento em sentido próprio, agora o trabalho que se torna o instrumento e o
termo da mediação com o qual o sistema de máquinas (que não está mais na posição de
instrumento) entra em contato com a coisa, com o objeto de trabalho, com o processo, com a
natureza (Napoleoni, idem: 88-9) – “a reificação torna-se efetiva e realizada na própria tecnologia
produtiva” (idem: 89). Isso significa uma “revolução total no modo de produção” (idem: 82), uma
“profunda transformação do processo produtivo” (Marx apud. idem: 88-9).

Herbert Marcuse critico da técnica e da ciência: a “ideologia” da sociedade industrial


Para Marcuse a sociedade capitalista contemporânea tende ao “totalitarismo” não pelo uso
da força bruta ou de uma política terrorista mas em virtude do modo pelo qual ela organizou a sua
base tecnológica – “totalitarismo” significa aqui um “sistema específico de produção e
distribuição”. A poder político se afirma pelo domínio sobre o processo mecânico e sobre a
organização técnica do aparato. Nessa sociedade a “máquina” torna-se “o mais eficiente
instrumento político de qualquer sociedade cuja organização básica seja o processo mecânico”
(Marcuse, 1969: 25).
A máquina se torna o “mais eficiente instrumento político” em virtude do caráter “racional”
subjacente a essa organização social, pois ela é mais produtiva e eficaz – a nova produtividade
possibilitada pela mecanização dos meios de produção entrega mercadorias e satisfaz efetivamente
necessidades. É justamente por isso, pelo elevado padrão de vida, que a sociedade consegue impedir
a transformação – há uma perda da necessidade da transformação: “um padrão de vida crescente é o
produto inevitável da sociedade industrial politicamente manipulada” (1969: 63). Entretanto, o
“caráter irracional de sua racionalidade” mostra-se na combinação das características de “Estado de
bem-estar” e “Estado beligerante”: essa sociedade só se mantém pela produção do desperdício, do
obsoletismo planejado, pela manipulação dos desejos e necessidades (produção de “falsas
necessidades”) e pela manutenção de uma sociedade de defesa permanente.
Nessa sociedade duas concepções centrais da teoria marxista parecem postas em questão:
“alienação” e “ideologia”. Marcuse sugere que o conceito de alienação, segundo o qual os
indivíduos não se reconhecem no produto de seu trabalho e onde a sociedade lhe aparece como
estranha e exterior, parece se tornar problemático na sociedade industrial avançada na medida em
que os indivíduos se identificam com a existência que lhes é imposta e que tem nela seu
desenvolvimento e satisfação – e “essa identificação não é uma ilusão, mas uma realidade (...) O

604
sujeito alienado é engolfado por sua existência alienada” (1969: 31). Os indivíduos se reconhecem e
se satisfazem, encontram sua felicidade, em suas mercadorias (por exemplo, em seus automóveis).
Ocorre aqui, segundo Marcuse, uma “absorção da ideologia pela realidade”, a realidade se torna
auto legitimadora.
Entretanto, isto não significa que não haja mais “ideologia” – muito pelo contrário: a
cultura industrial avançada é mais ideológica do que sua predecessora, pois a ideologia encontra-se
no próprio processo produtivo. Nesta passagem Marcuse faz alusão ao texto de Adorno “Crítica
cultural e sociedade”, onde ele desenvolve a idéia de que a ideologia se tornou a própria realidade.
Seguindo esta linha de argumentação, para Marcuse a “ideologia está no próprio processo
produtivo” e “esta proposição revela, de forma provocadora, os aspectos políticos da racionalidade
tecnológica” (idem, 32). Marcuse revela a dominação objetiva subjacente ao processo de produção,
a “base material da dominação ideológica” – mas ele vai além, ao apresentar também a dimensão
subjetiva desta dominação objetiva. É nisto que constitui a novidade de sua critica da tecnologia.

“O aparato produtivo e as mercadorias e serviços que ele produz ‘vendem’ ou impõe o sistema
social como um todo. (...) trazem consigo atitudes a hábitos prescritos, certas atitudes intelectuais e
emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes,
ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam (...). Surge assim um padrão de pensamento e comportamento
unidimensionais no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo
estabelecido da palavra e da ação são repelidos e reduzidos a termos deste universo.” (Marcuse, 1969: 32)

Nos capítulos 2, 3 e 4 da primeira parte de “O Homem Unidimensional”, a “Sociedade


unidimensional”, Marcuse segue argumentando como esse universo unidimensional, que repele toda
transcendência e alternativa histórica, se estabelece nas esferas da política, da cultura e da
linguagem. O “fechamento do universo político”, ou “integração política”, se dá por uma meio de
uma intervenção no âmbito do trabalho que altera o caráter de oposição das classes trabalhadoras
que deixam de constituir a negação do capitalismo e são assimiladas “confortavelmente” à ordem
estabelecida. No âmbito da cultura a integração se estabelece por meio de uma incorporação dos
“valores culturais” transcendentes e antagônicos: ocorre uma “assimilação do ideal com a
realidade”. Esse fenômeno de “absorção cultural” é justificado pelo progresso técnico: em virtude
de uma satisfação material progressiva são efetuadas a conquista e a unificação dos opostos. E no
curso desse processo ocorre uma crescente “dessublimação”, ou seja, uma satisfação sem mediação
(e, portanto, diferente da “sublimação” que implica um adiamento da satisfação), pois essa
sociedade satisfaz efetivamente e imediatamente as necessidades e esta satisfação obscurece a
consciência dos antagonismos e conflitos, enfraquecendo a revolta e a rebelião por uma nova ordem
social. Antes do advento dessa “reconciliação cultural” predominava uma “consciência infeliz” –

605
“consciência infeliz do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as esperanças não
concretizadas e as promessas traídas”. A racionalidade tecnológica destrói essa consciência e ocorre
o predomínio de uma consciência conformista (a “consciência feliz”). No quarto capítulo Marcuse
apresenta o “fechamento do universo de locução” por meio do predomínio de uma linguagem
“operacional”, ou um “pensamento positivo”, que absorve todo elemento transcendente e negativo,
em oposição ao “pensamento crítico e negativo”, e que será desenvolvido na segunda parte da obra.
Na segunda parte da obra, chamada de “Pensamento Unidimensional”, Marcuse dedica-se a
mostrar “com mais clareza a extensão da conquista do pensamento pela sociedade”. No primeiro
capítulo, o capítulo 5, ele apresenta sua definição de “pensamento negativo”; no capítulo 6 ele
mostra como o pensamento negativo tornou-se positivo e como ocorreu o predomínio da
racionalidade tecnológica como dominação; já no sétimo capítulo, ele apresenta o predomínio do
pensamento positivo na filosofia da linguagem contemporânea (que para ele realizou uma “chacina
empírica radical”).
O capítulo sexto nos parece ser o centro do argumento critico de Marcuse e o ponto em que
ele foi mais criticado. Este capítulo pode ser considerado a “Dialética do Esclarecimento” de
Marcuse. A tese de que a ideologia está no próprio processo produtivo conduz à idéia de que a
técnica e a ciência se tornaram elas próprias ideológicas. Elas justificam e legitimam a realidade da
dominação no capitalismo avançado. Marcuse identifica na origem do pensamento científico,
remontando à Grécia antiga, o próprio conteúdo da dominação – dominação da natureza que
possibilitou os instrumentos para a dominação dos homens– a lógica formal é o primeiro passo na
longa viajem até pensamento científico. A explicação da natureza em termos de quantidade – a
quantificação da natureza – que levou a sua explicação em termos puramente matemáticos, separou
a realidade de todos os “fins inerentes”, separou verdade e bem, ciência e ética. Paradoxalmente, se
só se conhece o mundo objetivo em termos de quantidades, ele se torna, quanto à sua objetividade,
completamente dependente do sujeito que o apreende. E esse processo atinge sua “forma extrema”
na filosofia da ciência contemporânea (a própria noção de uma substância objetiva que se opõe ao
sujeito parece desaparecer). Para ele, a física quântica é o último estágio de desenvolvimento dessa
forma de pensamento que se nega a questionar a existência mesma do mundo exterior e da natureza.
Essa física chega a uma “concepção idealista de natureza”, ela se torna kantiana na medida em que
só conhece os fenômenos e não as coisas em si. (É significativo o fato de Marcuse utilizar o
exemplo da “física”, uma vez que a bomba atômica surgiu de um problema de física teórica.
Marcuse afirma que não há separação entre ciência pura e ciência aplicada: Uma relação mais

606
estreita parece existir entre o pensamento científico e sua aplicação – uma relação na qual ambas
se movem sob a mesma lógica e racionalidade de dominação).
Em Marcuse toda transformação no sentido da emancipação deve pressupor uma
transformação da base técnica em que se assenta a produção na sociedade assim como uma
transformação da própria ciência (este teria sido o erro do socialismo soviético, que manteve a base
técnica do capitalismo e seu caráter opressivo). Esse é o argumento controverso de Marcuse. Para
ele, se houvesse uma mudança no sentido do progresso que partisse os laços entre a racionalidade
da técnica e a racionalidade da dominação (exploração), haveria uma mudança na estrutura mesma
da ciência – no projeto científico: “Sem perder o caráter racional, as hipótese da ciência se
desenvolveriam num contexto experimental diferente e, portanto, a ciência chegaria a conceitos de
natureza essencialmente diferentes”. Marcuse chega a falar de uma “ física qualitativa” e de uma
“nova” ciência”8.
Em “Técnica e Ciência como Ideologia” Habermas afirma que a conseqüência “extrema”
dessa tese de Marcuse é que toda modificação “qualitativa” da sociedade torna-se dependente de
uma prévia revolução nas ciências e nas técnicas, ou seja, de uma “nova racionalidade” – “Marcuse
tem diante dos olhos uma outra formação de teorias, mas também uma metodologia da ciência
diferente em seus princípios” (1997: 51). Esta “atitude alternativa” em relação à natureza é
considerada por Habermas como hipotética, já que implicaria a modificação da própria natureza
humana. Habermas escapa ao impasse da fusão entre técnica/ciência e dominação posto por
Marcuse, e também por Adorno e Horkheimer, separando “trabalho”, que corresponde a ação
racional teleológica, e “interação”, ação comunicativa, simbolicamente mediada. A mudança
qualitativa da sociedade não dependeria de uma intervenção no âmbito da racionalidade
instrumental, no âmbito das ciência e das técnicas que pairam transcendentalmente sobre a
sociedade, mas antes de uma interação, uma comunicação, livre de dominação e de uma formação
da vontade coletiva livre do dominação.
Não entraremos a fundo nesta discussão. Queremos apenas apontar para a especificidade do
modo como Marcuse aborda o tema da técnica e da tecnologia confrontando-o a posição de

8
A citação seguinte explicita a posição de Marcuse: “O que eu quero realçar é que a ciência, em virtude de
seu próprio método e dos seus conceitos, projetou e fomentou um universo no qual a dominação da natureza
se vinculou com a dominação dos homens – vínculo que tende a afetar este universo como um todo. (...)
Assim, a hierarquia racional funde-se com a social e, nesta situação, uma mudança na direção do progresso
... influenciaria também a própria estrutura da ciência – o projeto da ciência. Sem perder o seu caráter
racional, as suas hipóteses desenvolver-se-iam num contexto experimental essencialmente diverso (no de um
mundo libertado), a ciência chegaria, por conseguinte, a conceitos sobre a natureza essencialmente distintos
e estabeleceria fatos essencialmente diferentes.” (Marcuse apud. Habermas,1997: 51)

607
Habermas. Habermas descola a idéia da ciência e da técnica da base social – descola a
racionalização do desenvolvimento do capitalismo; a ciência e a técn ica aparecem como
transcendentais. Desse forma, uma transformação social seria possível de forma gradual e
reformista, em oposição a Marcuse que pensa numa ruptura e uma transformação “radical”.
Em uma entrevista a Habermas de 1977, quando questionado por este por que ele recorre
sempre a pressupostos psicanalítico e antropológicos para apresentar a transformação da sociedade,
Marcuse responde: “Para que precisamos de uma revolução se não conseguimos um homem novo?
Isto é algo que nunca entendi. Para que? Para um homem novo, naturalmente. Este é o sentido da
revolução tal como Marx a viu” (Marcuse apud. Habermas: 1975: 252)9. Marcuse tem em vista uma
“transformação radical do sistema de necessidades”.
A crítica da “máquina” como instrumento de controle também deve ser entendida neste
contexto. Marcuse pensa na possibilidade de “nova” máquina: “o poder da máquina é apenas o
poder do homem armazenado e projetado” (1969: 25) – e, enquanto “espírito coagulado”, a
máquina não é neutra, ela é resultado de um projeto histórico específico que fez dela instrumento de
dominação. A “razão técnica” é “razão política” e enquanto tal ela é “histórica”: pode ser
transformada em sua estrutura – “enquanto razão técnica ela poderia ser convertida em técnica para
a libertação” (Marcuse, 1998: 133-4).

Referências Bibliográficas

x BELL, Daniel. O Fim da Ideologia. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1980.
x HABERMAS, Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: biblioteca de filosofia
contemporânea, 1997.
x KELLNER, D. O Marcuse desconhecido: novas descobertas nos arquivos. In Marcuse,
Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 15-18.
x MAAR, Wolfgang Leo. Ideologia, Tecnologia e “Grande Recusa”: a atualidade de Marcuse,
s/ref. (texto inédito).
x NAPOLEONI, Cláudio. As Máquinas, In Lições sobre o capítulo sexto (inédito) de Marx. São
Paulo:
x MARCUSE. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

9
Habermas, Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: biblioteca de filosofia contemporânea, 1997.

608
x MARCUSE. Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber, In Cultura e Sociedade, vol.
2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
x MARCUSE. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna, In Tecnologia, Guerra e
Fascismo. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 71-104.
x MUMDFORD, Lewis. Técnica y Civilización. Madrid: Alianza Editorial, 2002.
x Livraria Editora Ciências Humanas, 1981, p. 86-95.

609
Em Defesa de Adorno: A propósito das críticas dirigidas por Giorgio Agamben à
dialética adorniana

Maurício Chiarello
IFCH/Unicamp

Adorno foi dos primeiros a acusar a significação excepcional que possui Auschwitz para a
história da civilização ocidental, significação que aponta para sua atualidade mais flagrante.
Com uma lucidez e uma clarividência impressionantes compreendeu ele que Auschwitz emerge
como paradigma por excelência de nossa modernidade esclarecida, o do campo de segregação.
Ora, é precisamente este tema, segundo o qual Auschwitz vem a evidenciar de maneira
insofismável o nómos oculto da civilização ocidental, que Agamben explicita e desenvolve na
terceira parte (“O campo como paradigma biopolítico do moderno”) de seu livro Homo sacer: O
poder soberano e a vida nua I. Em vez de se deter sobre os campos (quer de concentração, quer
de extermínio) como um acontecimento histórico e determinado restrito ao passado, local onde
se realizou a condição inumana mais absoluta que teve lugar na face da terra, Agamben antes os
concebe como o paradigma de tantos outros campos que pontuaram e continuam pontuando a
história ocidental, campos em cuja circunscrição, atualmente cada vez mais imprecisa e
deslocante, uma vida nua se põe à completa mercê de um poder biopolítico soberano. O mesmo
vale para a figura do Muzelmann. Estes habitantes espectrais dos campos de concentração
alemães da Segunda Guerra Mundial, estas figuras apagadas no corpo e na alma a flutuar entre a
vida e a morte, que tão pequena atenção receberam até hoje por parte da historiografia dos
campos, constituem, para Agamben, bem mais que uma categoria de personagens determinados
de nossa lúgubre história recente. Pois eles constituem o paradigma por excelência desta vida
nua a habitar os campos, de ontem e de hoje, em que um poder biopolítico se exerce. Não por
outra razão, Agamben se empenha por retirá-los do lugar marginal e obscuro que ocupam em
nossa história e colocá-los no centro da cena, à luz da ribalta. Afinal, a figura do muçulmano
evidencia com toda crueza a ambição suprema e inconfessa de uma biopolítica: a completa e
consumada dissociação ser fisiológico/ser dotado de logos (ou ainda animal/homem, zoè/bios).
Dissociação que também se patenteia em outras figuras a ele assemelhadas (tais como pacientes
em coma terminal ou cobaias humanas de experimentos científicos), as quais se mostram
exemplares no intuito de evidenciar o princípio reinante na esfera biopolítica de captura de uma
vida nua, esta vida matável e insacrificável, isto é, cuja morte não configura homicídio nem
tampouco celebração de sacrifício. Princípio amiúde escamoteado, mas que se encontra atuante,
em maior ou menor grau, nos inúmeros “campos” erigidos pelo ocidente em nossa história mais
recente, em que se confinam favelados, refugiados, populações inteiras de excluídos, vegetando

610
à margem do sistema de capitalismo global, quando não submetidas a uma intervenção militar
“humanitária”.
A disjunção supracitada entre ser fisiológico e ser dotado de linguagem tão reiterada por
Agamben como desígnio último de uma biopolítica, seria preciso contemplá-la à luz da história
da metafísica ocidental tal como concebida por Heidegger, uma história orientada pela abstração
idealista de toda materialidade viva e corpórea, cuja ambição última teria sido, desde o
princípio, a consumação do espírito como substância separada, abstraída de todas as formas
concretas de vida. Disjunção que faria figurar, de um lado, a loquacidade sobranceira e doadora
de sentido de todo espiritual; de outro, a materialidade corpórea surda e inexpressiva, ou
relegada à insignificância e à passividade. Disjunção que ainda podemos reconhecer desdobrada
na figuração, de um lado, de um corpo político instituído ou constituído pelo ser de relação (ou
dotado do poder de relação); de outro, do indivíduo isolado como corpo fisiológico pura e
simplesmente, segregado do corpo político e destituído de voz ativa ou expressão.
A este respeito, a consonância com as formulações que encontramos na Dialética do
Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, notadamente as relativas à denegação de nossa
natureza animal, é de fato extraordinária. Tenho mesmo por vezes a impressão de estar lendo
Adorno, mais precisamente o Adorno materialista dialético afeito a Benjamin, numa nova
terminologia.
Pensemos, por exemplo, na idéia de uma “máquina antropológica ocidental”, que é como
Agamben designa esta sistemática (e fatídica) operação do logos racional de que se encontra
cativa toda metafísica ocidental, operação lógica de distinção promovida pelo conceito na
apreensão da identidade que implica, ao mesmo tempo, segregação do não-idêntico, criando
cesuras e disjunções - homem/animal, natureza/cultura, vivente/falante, logos/voz. Operação
que, assim fazendo, produz e reproduz inevitavelmente zonas de exceção, as quais, ao fim e ao
cabo, acabam por se tornar a regra. Em duas palavras, a máquina antropológica ocidental, ao
mesmo tempo em que promove a identificação do humano, produz a segregação do animal-
inumano, num processo sistemático e reiterado que termina recaindo na absoluta indistinção
animal-humano, patente como nunca dantes no cenário de Auschwitz1. Ora, tal formulação não
lembra deveras o Umschlag dialético do esclarecimento que recai no mítico, a humanidade na
animalidade, a cultura na barbárie? De fato, reencontramos desenvolvida em Agamben, certo
que com outra terminologia, mais poética e menos dialética, a emblemática sentença da
Dialética do Esclarecimento, “o mito já é esclarecimento e a modernidade esclarecida recai no

1
Cf. AGAMBEN, G. L’Ouvert: De l’homme et de l’animal, notadamente o §9 (“ Machine Anthropologique”, pp. 52-
61), muito embora todo o livro trate do tema.

611
mítico”. Assim, quando lemos que “toda Lichtung é desde o princípio uma Nichtung”2, são os
ecos daquela sentença que reverberam nas palavras de Agamben.
Pois tal como enunciado na Dialética do Esclarecimento, a afirmação da identidade humana
funda-se no princípio de simultânea apreensão (da essência humana) e exclusão (da natureza
animal). Na exata medida em que opera mediante um processo sistemático de segregações que
como tais não se tomam (posto que se põem como apreensão da essência, esclarecimento da
identidade mais própria), tal “máquina antropológica” termina por não reconhecer que toda
identificação por ela promovida configura uma simultânea aniquilação do que se viu excluído
em nome da identidade imposta. Conseqüentemente, a clara distinção por ela definida está
sempre a abrir zonas de exceção, as quais, ao fim e ao cabo, acabam recaindo na total
indistinção homem-animal.
Imagem e dialética
Ora, bem me parece que podemos ler uma boa parte dos ensaios de Agamben como um
exercício de construção de imagens dialéticas, de inspiração evidentemente benjaminiana, que
busca acompanhar, ao longo da história de nossa civilização, tal fatídico proceder da “máquina
antropológica ocidental”, a qual, obcecada pela clareza do logos, mergulha a humanidade nas
trevas da rematada falta de distinção. Pois o que as imagens dialéticas assim configuradas
intentam captar é algo que não é nem humano nem animal, algo que figura numa zona de
indistinção a cada nova distinção do humano promovida, em diferentes momentos da história da
cultura, pela “máquina antropológica”. Tais imagens buscam, pois, dar a ver este algo para o
qual não temos nome e que não somos capazes de definir claramente, posto que se põe entre
homem e animal, numa zona de indistinção. Claro está que este algo encontra sua imagem
paradigmática e exemplar na figura do muçulmano. Isto é, nesta figura que se apresenta, com
efeito, como morto-vivo, como um ser cuja vida não é verdadeiramente vida, ou como um ser
cuja morte não pode ser declarada morte. Nesta figura, enfim, em que se consuma a inscrição na
vida de uma zona morta e, na morte, de uma zona viva3.
As imagens dialéticas configurar-se-iam a partir de um procedimento não lógico (isto é, não
na forma de distinções dicotômicas próprias de identificações classificatórias), mas sim
analógico, bem expresso através de figuras bipolares e tensionais da forma nem A, nem B
(entendamos, nem homem, nem animal) em que os termos opostos, compreendidos como dois
pólos de uma mesma tensão dialética, perdem sua identidade própria. Sirvo-me aqui da
exposição que faz Agamben das imagens dialéticas benjaminianas presente na sexta parte do

2
Como lemos em L’Ouvert: “É precisamente porque o mundo só se desvela ao homem pela suspensão e pela captura
da vida animal, que o ser se encontra desde o princípio trespassado pelo nada, que toda Lichtung é desde o
princípio Nichtung” (p. 120).
3
Cf. AGAMBEN, G. Ce qui reste d’Auschwitz, p. 88.

612
ensaio “Nymphae”4. Consumada nessa oscilação insolúvel entre termos opostos, a imagem
dialética desenharia, necessariamente, uma figura de ambigüidade, correlata a uma suspensão de
sentido, suspensão esta posta no horizonte de uma futura doação de sentido. Tais imagens
dialéticas são ainda descritas por Agamben, neste ensaio, como “imagens móveis de um ser de
passagem”, destarte capazes de captar a ambivalência latente entre os dois pólos do humano,
quais sejam, ser vivente e ser dotado de linguagem.
Encontra-se latente aqui um momento utópico-messiânico, notemos, prefigurado por este
gesto de tornar inoperante a máquina antropológica, deixando sem efeito as categorias
dicotômicas por ela sistematicamente rearticuladas como resultado de uma dinâmica de poder.
No momento em que suas categorias viessem a perder sua razão de ser, a relação homem-
natureza deixaria de ser marcada pela dominação do natural pelo humano – ou melhor, deixaria
de ser marcada pela dominação pura e simplesmente, uma vez que as categorias do humano e do
animal mergulham hodiernamente na mais absoluta indistinção. Então, homem e animal viriam
a figurar numa relação ociosa, cujo paradigma seria o do deleite conseqüente à consumação do
prazer5.
Isso tendo sido dito, gostaria de, neste ponto, reportar-me a uma das recriminações que
Agamben endereça à dialética adorniana (mais adiante tratarei de uma segunda recriminação
com esta relacionada). Segundo tal recriminação, a filosofia adorniana não teria admitido aquela
ambigüidade essencial às imagens dialéticas benjaminianas, ou não teria suportado a
ambigüidade perturbadora de tais imagens dialéticas, em função de um pendor idealista que ela
não pôde deixar de acalentar. No fundo, ela teria sido incapaz de se libertar da noção hegeliana
de dialética. Escreve Agamben: “O que Adorno parece não compreender, ao tentar em última
análise remeter a dialética a sua matriz hegeliana, é que o essencial, para Benjamin, não é o
movimento que conduz a Aufhebung da contradição através da mediação, mas o momento de
suspensão, no qual o próprio termo de mediação vem a ser exposto como zona de indiferença
entre dois termos opostos, zona como tal necessariamente ambígua”6.
Para uma boa compreensão deste posicionamento de Agamben francamente favorável às
imagens dialéticas benjaminianas, tal como ele as entende, ao mesmo tempo em que contrário à
dialética adorniana, não podemos deixar de recorrer sobremaneira a um ensaio de sua autoria
justamente consagrado ao problema do método em Adorno e Benjamin. Trata-se do ensaio “Le
prince et le crapaud: Le problème de la méthode chez Adorno et Benjamin”, que integra a
coletânea Enfance et histoire7. A partir de um trabalho de leitura e interpretação da já célebre
troca de correspondências ocorrida entre os amigos na segunda metade da década de 30, na qual

4
Cf. AGAMBEN, G. Image et mémoire, pp. 50-2.
5
Cf. AGAMBEN, G. L’Ouvert: De l’homme et de l’animal, pp. 127-138 (§19 e §20).
6
AGAMBEN, G. Image et mémoire, p. 52.
7
Cf. AGAMBEN, G. Enfance et histoire: Destruction de l’expérience et origine de l’histoire, pp. 187-215.

613
aflora a referida desavença metodológica, Agamben acusa a impostura teórica, como se lhe
afigura, em que incorre Adorno na defesa das categorias hegeliano-marxistas de mediação e
totalidade.
Retomando a recriminação que Adorno dirige então contra Benjamin, segundo a qual sua
“dialética”, carente da devida “mediação pelo processo global”, situar-se-ia na encruzilhada
enfeitiçada de magia e positivismo, Agamben observa, com boa dose de perspicácia, que o
espectro que tanto atormenta Adorno nestas formulações – a admissão tácita de uma relação de
fato causal por falta de mediação dialética – ronda antes sua própria concepção de dialética, daí
a necessidade encarniçada que demonstra de exorcizá-lo. Assim é que a alardeada “mediação
dialética pelo processo global” tão reclamada por Adorno talvez não faça mais que salvar as
aparências de um determinismo (no fundo causal) pressuposto, mas não assumido, na sua
própria concepção dialética da relação entre a superestrutura (domínio da produção espiritual) e
a estrutura econômica (domínio da reprodução material).
Com efeito, a acusação de um determinismo implícito só faria sentido para uma dialética
que, à semelhança da hegeliana, continuasse a operar com as distinções metafísicas correlatas à
distinção material/espiritual, tal como a disjunção entre estrutura econômica e superestrutura
cultural. Ora, para Agamben, este seria o caso da dialética adorniana, incapaz de se libertar do
pendor idealista da dialética hegeliana, mas não seria seguramente o caso das imagens dialéticas
benjaminianas que, à semelhança do que ocorre na reflexão de Marx, almejam apreender a
interpenetração do material e do espiritual tal qual consumada na práxis: “O farisaísmo que
implica a separação entre estrutura econômica e superestrutura cultural permanece intacto se se
faz do processo econômico a causa determinante que a mediação se encarrega depois de recobrir
pudicamente [e pacienciosamente, poderíamos acrescentar, lembrando a paciência hegeliana do
conceito] mediante seu véu dialético. O único materialismo verdadeiro é aquele que suprime
radicalmente esta separação, sem jamais considerar a realidade histórica como a soma de uma
estrutura e de uma superestrutura, mas como unicidade imediata dos dois termos na práxis”8.
É esta indistinção consumada na práxis entre os domínios espiritual e material que, segundo
Agamben, as imagens dialéticas benjaminianas almejariam contemplar na configuração de suas
constelações, à diferença das concepções dialéticas de matriz hegeliana, cujo idealismo
enrustido ainda carregaria o ônus das distinções metafísicas da ordem do material/espiritual
(homem/animal, ser vivo/ser dotado de linguagem, vida biológica (zoè)/“forma de vida” (bios),
estrutura econômica/superestrutura, etc.).
Ora, tal recriminação dirigida à filosofia adorniana porta, a meu ver, uma tremenda dose de
injustiça, posto que desabona, duma só penada, toda crítica acerba e pertinaz que o próprio

8
AGAMBEN, G. Enfance et histoire, p. 209.

614
Adorno endereça a Hegel no esforço de elaboração de sua dialética negativa9. Seja como for, se
é certo que Adorno e Agamben compartilham, em linhas gerais, a caracterização da fatídica
reviravolta dialética do esclarecimento como consumação dos desígnios últimos da metafísica
ocidental, o mesmo talvez não se possa dizer da reflexão filosófica (ainda dialética?) elaborada
por cada um deles com o expresso propósito de se libertar daquela fatídica dialética, ou ao
menos de não compactuar com ela, rompendo o feitiço de que se encontra cativa.
Agamben, quanto a ele, concede ao momento imagético da linguagem um privilégio ímpar
na expressão do horror inconcebível estampado na face da civilização ocidental por Auschwitz,
tomado como paradigma exemplar de tantos outros campos a ele assemelhados persistentes em
nossa história. Privilégio baseado na virtude outorgada à expressão artístico-poética de dar voz à
surda mutilação que sustenta a abstrata uniformidade do mundo tecnocrático hodierno. No
limite, à imagem artística cuja figuração seria capaz de fazer ressaltar, nos traços de
normalidade do existente, a caricatura grotesca de Auschwitz, do mesmo modo que a literatura
de Kafka, para citar um exemplo, foi capaz de prefigurar de forma assombrosa a realidade dos
campos de concentração. Privilégio este correlato, evidentemente, a uma desconfiança bem
nietzschiana perante todo silogismo da razão, toda cabriola dialética, sobretudo em vista da
realidade do campo, que volta a emergir com violência assustadora em nossos dias aqui e ali.
Compreendemos, nesses termos, o procedimento de que amiúde se serve Agamben e que
consiste em recorrer a um caso extremo, ou limite, como imagem exemplar de um processo
sistematicamente escamoteado na normalidade da existência. A imagem do caso singular e
excepcional busca iluminar o que via de regra se oculta na normalidade da existência, sobretudo
quando, como ocorre em nossos dias, o caso excepcional tende a tornar-se a regra, confundindo-
se com ela num permanente estado de exceção10.
De maneira notável, assim, a escritura de Agamben leva a termo a confluência do momento
conceitual com o momento imagético-expressivo. Seus ensaios florescem, com efeito, naquela
região de limiar em que o texto filosófico não mais se sabe distinguir da obra artístico-literária;
é nesta região intervalar que medram e desabrocham. Ora, não recriminaria Adorno, na filosofia
de Agamben, esta dissolução, que nela se leva a termo, das fronteiras que delimitam os âmbitos
de competência do conhecimento racional e da expressão artística? Não argumentaria ele que
seus ensaios “filosóficos” teriam se rendido ao momento retórico da linguagem, em detrimento
do momento de elaboração conceitual?

9
Ver, a respeito, o primeiro estudo de minha tese A Filosofia, a Arte e o Inominável, especialmente sua segunda
parte, “A dialética levada a termo”.
10
Notemos, de passagem, que não está ausente também na filosofia adorniana uma vertente hiperbólica
correspondente a um exagero deliberado na exposição. Tal momento retórico do exagero nela se afigura necessário
para lograr expressar a enormidade, tornada sempre razoável, da realidade em questão. Ou melhor, digamos que
sua exposição se ressente por vezes de uma iluminação desmedida no intuito de esclarecer uma existência
obcecada pelo ferrenho senso de media de sua razão.

615
Sim, porque, para Adorno, o domínio da filosofia não se equipara ao âmbito estético, nem
tampouco com ele se confunde. Com efeito, muito embora em seus primeiros escritos, que
denotam forte influência de Benjamin, Adorno tenha advogado uma imbricação de elementos
artístico-filosóficos (assim, por exemplo, na noção de imagem dialética formulada em sua tese
sobre Kierkegaard), sua obra posterior termina decididamente por recusar tal ambigüidade
mantida por Benjamin, delimitando dois âmbitos distintos de competência: de um lado, o da
dialética conceitual, de outro, o da imagem estética í sem que a afirmação de tal disjunção, é
bom que se diga, tenha revogado a mútua e fecunda participação do conceitual no mimético,
que continua sendo sumamente apreciada por Adorno. Desse modo, a reapreciação do elemento
retórico e sensual do conceito, de um lado, bem como do distanciamento reflexivo atuante na
mimese artística, de outro, são exigências que não devem redundar, para Adorno, na dissolução
dos limites próprios de cada esfera de competência11.
Compreendemos destarte que, se a atenção micrológica advogada pela dialética adorniana se
faz, é certo, em favor do momento mimético, ela não se faz, em contrapartida, em detrimento da
elaboração conceitual. A teoria capaz de fazer justiça ao mais ínfimo e desprezível não é, com
certeza, uma teoria propensa a abrir mão de si mesma, ante a matéria sensível, em nome da
apreensão mimética ou imagética pura e simples; muito menos uma teoria feita de declamar
boas intenções e sentimentos para com o desprezado pelo conceito. Não se perfaz sem trabalho
do conceito, sem esforço conceitual, uma teoria capaz de corresponder ao apelo exercido pela
matéria sensível e corpórea, e, assim, reconhecer como significativo o que foi desprezado como
insignificante pelo próprio conceito. Pois é somente uma conversão do olhar teórico í não sua
renúncia í que pode tornar relevante o que até então aparentava ser desprezível e insignificante.
Eis a crítica adorniana que, segundo creio, acerta em cheio a postura de Agamben. Condena-se à
impotência uma teoria que renuncia a si mesma em prol da imagem mimética, almejando, na
melhor das intenções, acolher o momento de prazer e dor tornado inexpressivo pela apropriação
conceitual. Somente no seio de uma nova configuração ou constelação teórica, aquilo que era
relegado como inexpressivo e irrelevante pode vir a ganhar uma significação até então
insuspeita, tornando-se então digno de atenção e interpretação12.
Não obstante o que, seria preciso ainda se perguntar se tal reorientação do olhar teórico não
deve seu impulso germinal precisamente à reapreciação da relevância da componente mimética
– e isto em favor de uma leitura da Dialética Negativa atenta à primazia que ela não deixa

11
O impedimento da pseudomorfose entre os domínios da mimese e do conceito é, para Adorno, o que assegura a
persistência do fecundo campo de tensão preexistente entre o âmbito da arte e o da filosofia, traduzido nos termos
da verdade que busca pela expressão e da expressão que anseia pela verdade. No primeiro estudo da tese A
Filosofia, a Arte e o Inominável desenvolvo mais extensamente este tema. Ver especialmente a segunda parte, “A
dialética levada a termo”, do primeiro estudo.
12
Cf. notadamente GAGNEBIN, J. M. “Divergências e Convergências Metodológicas sobre o Método Dialético entre
Adorno e Benjamin”.

616
efetivamente de conceder à componente mimética e que corresponde exemplarmente à
invocação de Agamben por uma dialética “liberada de toda abstração”. Não será que o apelo
exercido pelo micrológico, a atenção concedida ao momento somático de prazer e dor, se
encontre na raiz da exigência por uma nova e redentora constelação conceitual capaz de lhe
fazer justiça? Tal indagação, que reverte a questão para a tese oposta, deixando-a em suspenso,
não deixa de fazer justiça à dialética negativa adorniana.
A esse respeito, a ambigüidade é de fato notável, e não procura ser dirimida em momento
algum – o que parece escapar inteiramente a Agamben. Uma leitura atenta do último aforismo
de Minima Moralia seria para tanto proveitosa. A filosofia só faz jus a um ponto de vista
redentor, lemos ali, na medida em que se abre à perspectiva das próprias coisas em sua
indigência imanente (e não quando apela para o transcendente); na medida em que logra
“produzir perspectivas nas quais o mundo venha a se mostrar em suas alienações, em suas
feridas e em suas fraturas, tal como um dia, indigente e deformado, aparecerá à luz
messiânica”13. Destarte, tais perspectivas efetivamente redentoras não derivam da reelaboração
teórica pura e simples executada como que a partir de si mesma, mas sim do contato mais vivo
com os objetos. Do contato resultante í porque não dizer? í de um abandono mimético, de
uma entrega sensível aos objetos, subtraído da violência exercida pelo conceito. Não é
exclusivamente de si mesma que a dialética extrai sua força secreta de esclarecer (donde vemos
desde já que Agamben se equivoca redondamente quando critica a dialética adorniana por recair
em mera contemplação teórico-estética da redenção), mas do contato com as próprias coisas:
sua luz promana concomitantemente dos objetos, cujo anseio pela redenção ela contempla.
Numa formulação algo retórica, que procurasse dar conta desta ambigüidade insolúvel,
poderíamos dizer que uma tal constelação teórica esclarece por amor das próprias coisas
mortificadas, cujo brilho não de todo extinto ela logra captar.
Penso que seja o bastante para fazer ver a extrema e crucial relevância que possui o
momento materialista para a dialética negativa adorniana, e, por conseguinte, o quão injusta se
afigura a recriminação de Agamben que nela acusa um renitente e comprometedor pendor
idealista. Passemos então para a segunda recriminação que Agamben dirige a Adorno.
Esteticismo e messianismo
A certa altura de seu comentário sobre a Epístola de S. Paulo aos Romanos, Le temps qui
reste, Agamben endereça à filosofia de Adorno uma crítica de outra ordem – muito embora,
como veremos, relacionada com a anterior. Segundo essa crítica, a dialética adorniana teria
recaído numa estetização do messianismo. Retomemo-la em rápidas pinceladas no intuito de

13
ADORNO, T. W. Gesammelte Schriften, vol. 4, p. 281;trad. brasileira Mínima Moralia, pp. 215-6;§153 í “Para
terminar”.

617
evidenciar seu fulcro, qual seja, a perda de identidade a que se inclina o sujeito verdadeiramente
messiânico.
Escreve ali Agamben: “Apesar das aparências, a dialética negativa é um pensamento que não
é de forma alguma messiânico, e que se encontra mais próximo da tonalidade afetiva de um
Jean Améry que de Benjamin”14. A tonalidade afetiva a que se refere Agamben nesta passagem
não é outra senão a do ressentimento, aquela para a qual tudo o que aconteceu, muito embora
contingente, assume o caráter de algo irreparável. Claro está que este “tudo o que aconteceu”
alude muito particularmente aqui à eclosão da Segunda Grande Guerra (carregando em suas
entranhas o horror inominável da Shoah) em lugar da acalentada emancipação da humanidade
para a qual a filosofia adorniana, assim como toda filosofia materialista de filiação marxista,
acreditava contribuir decidida e ativamente com sua reflexão sobre a práxis revolucionária.
A filosofia teria estado então prestes a se realizar, mas o momento de sua realização se
perdeu, e de forma irrevogável. Agamben corrobora tal apreciação lembrando a famosa sentença
do início da Dialética Negativa: “A filosofia sobrevive porque falhou o momento de sua
realização”. Contingente e irreparável ao mesmo tempo, o acontecimento histórico fatídico teria
marcado de forma indelével a filosofia adorniana, colocando-a sob o signo da impotência. A
emancipação da humanidade, antes considerada uma realidade, possibilidade concreta inscrita
na história, passa a ser vista como aparência nunca realizável. Nesse sentido, seria sintomática a
frase final do último aforismo de Minima Moralia, de que se serve Agamben para corroborar
sua tese, segundo a qual: “a própria questão sobre a realidade ou a irrealidade da redenção se
torna praticamente indiferente”15. Desde então, Adorno teria procedido a uma estetização do
messianismo sob a forma do comme si. O que quer dizer que à sua filosofia (ou à filosofia em
geral) teria restado apenas contemplar eternamente as coisas tais como elas se apresentariam do
ponto de vista da redenção. “É o fato de ter perdido o momento de sua própria realização que
obriga a filosofia a contemplar ad infinitum a aparência de redenção. A beleza estética é, por
assim dizer, o castigo que a filosofia deve sofrer por ter faltado com sua realização”16.
Para que fizesse justiça a um autêntico messianismo, teria faltado à filosofia adorniana um
gesto capaz de quebrar o sortilégio que a condena a tão-só contemplar, impotente, o mundo sob
a luz de uma redenção sempre aparente. Mas que gesto de potência seria este? Nenhum outro
senão aquele evocado pela famosa sentença pauliniana que Agamben toma por divisa: o gesto
de potência que se consuma na impotência, ou no assentimento da impotência. E aqui sim nos

14
AGAMBEN, G. Le temps qui reste, p. 69.
15
Retomaremos logo mais esta frase em favor de Adorno. Desde já, porém, gostaria de assinalar que tal
caracterização de uma obra fraturada de forma irreparável pela eclosão da Guerra em lugar da revolução poderia se
aplicar, ainda que com certas ressalvas, à obra de Horkheimer, mas dificilmente se sustentaria no caso de Adorno.
Ver, a propósito, o artigo de HABERMAS, J. “Bemerkungen zur Entwicklungsgeschicht des Horkheimerschen
Werkes”.
16
AGAMBEN, G. Le temps qui reste, p. 68.

618
acercamos do ponto nevrálgico desta crítica dirigida a Adorno por Agamben. Afinal, a renúncia
à realidade da redenção não se deve propriamente à estetização do messianismo, visto que a
estetização, ela própria, se deve a uma falta anterior, característica de um temperamento
propenso ao ressentimento, que Agamben acusa com todas as letras quando afirma que Adorno
não abre mão das pretensões identitárias e das prerrogativas do sujeito. É com este sujeito
aferrado a si mesmo e a suas representações que o messianismo pauliniano intenta acertar contas
por meio de seu comme non. A vocação messiânica, enfatiza Agamben, solapa e anula antes de
tudo o sujeito: “A vinda do messias significa que todas as coisas – e, com elas, o sujeito que as
contempla – são capturadas no comme non, evocadas e revogadas no mesmo movimento”17.
O sujeito autenticamente messiânico não pode pretender contemplar o mundo à luz da
redenção apegado a suas representações, entre as quais se incluem, certamente, aquelas
produzidas por uma dialética idealista como a de Hegel, de que Adorno, segundo Agamben, não
teria conseguido se libertar completamente. Não, o sujeito autenticamente messiânico só
contempla o mundo redimido na medida em que ele próprio se perde no que pode ser redimido:
“o sujeito que pretende salvaguardar-se e manter-se infinitamente a salvo na aparência da
redenção, perde a partida quando contempla a própria ruína”18. O gesto genuinamente
messiânico deve assim atender a um impulso de dessubjetivação, de perda de si mesmo em
nome do outro, ou de tantos outros, oprimidos e sacrificados pela marcha da história. Tal gesto
só se perfaz, portanto, mediante a derrocada da subjetividade pretensamente autárquica e
soberana, derrocada solidária a toda massa de criaturas injustiçadas na história, e não (como
alfineta Agamben) por meio da construção de um discurso engenhoso e bem pensado (como o
da dialética adorniana!) capaz de estimar e registrar a perda 19.
A dialética adorniana, em suma, não faria jus a uma vocação verdadeiramente redentora,
segundo Agamben, por não consentir com este movimento de dessubjetivação, movimento que
deve presidir não só o gesto verdadeiramente messiânico, mas também, seja dito de passagem, a
cessão de voz ao outro, própria do autêntico testemunho, como noção inaugural de uma nova
ética.
Em vista deste breve apanhado da crítica agambeniana à estetização do messianismo, caberia
desde logo indagar até que ponto a desavença aqui existente entre Adorno e Agamben-Benjamin
não se prenderia a esta confiança, que Adorno julgaria certamente demasiada, depositada na
perda de identidade e de autonomia do sujeito hodierno – a qual, aliás, o próprio processo
histórico leva a termo, em conformidade com aquela dialética referida há pouco. Caso em que a
crítica seria recíproca. De sua parte, Adorno recriminaria o gesto agambeniano afeito à
dessubjetivação, ou à derrocada das pretensões identitárias do sujeito, como um gesto de

17
Idem, p. 74.
18
Idem, p. 76.

619
abandono às potências míticas, uma vez que no seu cumprimento o sujeito abriria mão de vez
do distanciamento crítico-reflexivo (tão prezado por Adorno) somente graças ao qual lograria
ele cobrar consciência da falsa identidade, assumida na totalidade social, no sentido da
realização de uma autêntica figura de identidade que superaria a alienação vigente.
A isso nos levaria a crer, com efeito, uma leitura simplista da obra de Adorno, porque uma
leitura mais atenta, especialmente de sua obra tardia, revela que esta questão é respondia de uma
forma bem mais profunda e complexa, a qual, se não avaliza inteiramente a posição defendida
por Agamben, mostra-se surpreendentemente avizinhada a ela. Senão vejamos.
O sujeito crítico reclamado por Adorno não deixa de ser o indivíduo, é certo, mas não o
indivíduo no sentido tradicional, isto é, o indivíduo burguês nascido como garante das práticas
de mercado, cuja “autonomia” tão-só reproduz os requisitos do liberalismo econômico í e cuja
capacidade de livre autodeterminação já não passa, em nossos dias, de ficção extrema e
desesperada. É nesse sentido que o sujeito crítico adorniano cumpre um papel distinto daquele
desempenhado pelo sujeito transcendental kantiano, e também pelo empírico. Pois a doutrina de
Kant (e também, num certo sentido, a de Freud), sustentaram o pressuposto teórico de
identidade e autonomia do indivíduo comprometido com a práxis social capitalista. Para
Adorno, em contrapartida, o sujeito efetivamente crítico é aquele í e só aquele í que se mostra
capaz de renunciar a esta autonomia de cunho marcadamente liberal. Ele é, fundamentalmente,
indivíduo capaz de se abrir à experiência que se encontra interditada na totalidade social
dominada pela frialdade burguesa. Seu diferencial seria, portanto, a capacidade de padecer
perante a exterioridade empírica da sociedade, de fazer a experiência doída de sua
insignificância: esta é “a pedra de toque, o motor da mediação necessária para romper o feitiço
da identidade”20.
Paradoxalmente, assim, é só através da renúncia ao imperativo concorrencial e à exigência
de identidade e autonomia que o existente lhe impinge, ou da renúncia ao ferrenho imperativo
de autoconservação (mediante o acolhimento de sua própria morte, num gesto de antecipação da
morte que o mercado lhe destina)21, que, em Adorno, o indivíduo, enquanto sujeito de reflexão
crítica, lograria deixar de ser mero reflexo das práticas de mercado, retomando a consciência do
processo histórico de modo a intervir na práxis í e reconquistando destarte uma verdadeira
autonomia, poderíamos acrescentar.
Mas por onde apanhar esta existência individual tornada espectral, fantasmagoria abstrata
aferrada em si mesma, como algo de mítico? Questão cuja resposta poderia talvez formular
sumariamente nos seguintes termos: tal experiência só se mostra acessível, para Adorno, no

19
Cf. AGAMBEN, G. Le temps qui reste, p. 75.
20
RIUS, M. Del Sufrimiento a la Verdad, p. 55. Valho-me aqui deste belo estudo de MercèRius sobre a obra de
Adorno, cuja exposição corrobora exemplarmente as análises presentes em minha tese de doutoramento A
Filosofia, a Arte e o Inominável.

620
único vestígio de individualidade ainda remanescente, vale dizer, na experiência do sofrimento
e da finitude, que abre caminho para a expressão. Ao contrário de sustentar uma pretensa
identidade e aferrar-se a uma ilusória autonomia, o sujeito crítico reclamado por Adorno é o que
logra acolher sua diferença e heteronomia, o que significa, ser capaz de ser afetado pelos objetos
fazendo a experiência de sua morte22.
Em conclusão
Esta brevíssima reapreciação do pensamento adorniano concernente às pretensões
identitárias do sujeito hodierno faz soar em falso, segundo penso, a acusação de “estetização do
messianismo” a ela endereçada por Agamben. Mais ainda, a mim me parece que, num certo
sentido, a filosofia adorniana leva mais a sério o anseio pela redenção e mostra-se mesmo mais
prenhe de esperanças que o messianismo advogado por Agamben. E isto porque o pensamento
de Adorno continua fiando-se no poder esclarecedor do logos ocidental, ou melhor, no poder do
conceito de, apesar do conceito, voltar-se sobre si mesmo no intuito de reconhecer o elemento
não conceitual a ele subjacente, acolhendo o momento corpóreo ou somático por ele mesmo
renegado em vista da reconciliação. Assim como continua confiando, apesar de tudo, na
capacidade de reflexão e distanciamento crítico do sujeito que, como escreve ele, empreende a
penosa passagem pela porta de sua morte, isto é, do sujeito que se abre para a dolorosa
experiência da cabal heteronomia a que se vê submetido na totalidade administrada.
Quanto a Agamben, não apostaria ele no processo em curso de liquidação do indivíduo
autônomo, assim como da racionalidade subjetiva que lhe é solidária, imbuído da cega
convicção de que tal derrocada prenuncie necessariamente sua redenção? Não estaria ele, com
efeito, imbuído da crença messiânica no advento de uma outra humanidade, a se cumprir no dia
em que tiver lugar uma espécie de depuração do logos racional ou discursivo, que seria
igualmente sua consumação, com a qual a humanidade se veria enfim libertada de um logos
centrado no sujeito e da inarredável ilusão de verdade que ele encerra?
O fato de Agamben, no que designa por “logos ocidental”, confundir as figuras da razão e da
linguagem contribui decisivamente, a meu ver, para esta recaída num messianismo negativo.
Pois em virtude desta falta de distinção, ele se encontra impossibilitado de pensar uma outra
figura de razão capaz de voltar-se sobre si mesma de uma outra forma que não a da negação
redentora. Como é o caso da proposta adorniana de reapreciação e incorporação do elemento
retórico-discursivo, em atenção ao apelo do momento mimético-corpóreo (de prazer e de dor)
por parte do logos conceitual, tal qual elaborada na Dialética Negativa.
Em sua Dialética Negativa, com efeito, Adorno advoga uma noção de dialética atenta à
negatividade da sensibilidade segregada no entendimento, vale dizer, atenta à renitência do

21
Ver, a respeito, o terceiro estudo já mencionado da tese A Filosofia, a Arte e o Inominável.
22
Ver, a propósito, RIUS, M. Del Sufrimiento a la Verdad, p. 56.

621
desejo encadeado no pensamento, assim como à ânsia imorredoura de redenção que habita o que
já não tem esperança. A Dialética Negativa se avizinha, assim, de uma teoria estética
justamente porque se encontra imbuída da esperança, latente no mundo, de que a frialdade
reinante possa ceder, despertando a simpatia pelo que sofre.
Como já observamos, o mais relevante para a emancipação do cerrado contexto de ofuscação
seria, segundo esta dialética, conseguir captar os vestígios mais desprezíveis deixados no
existente, vestígios cada vez mais relegados ao esquecimento pelo progresso do pensamento
identificador. Pois não é senão a partir da matéria e das categorias da própria imanência que se
poderia vir a expressar o que a transcende. Se ainda se pode falar que a metafísica sobrevive é
no instante de sua queda, e não no salto para o absolutamente outro. Assim, o autêntico anseio
de transcendência da situação atual é algo que se consuma no contato mais íntimo com o objeto
í por isso mesmo incompatível com o apelo de uma transcendência sacrossanta í, quando se
deixa guiar pelo impulso expressivo do sujeito. Daí afirmar Adorno que a condição de verdade
do pensar filosófico reside na atenção concedida ao momento somático de prazer e dor, ou
melhor, na sua capacidade de abandonar-se à eloqüência da dor.
Por-se-iam os ensaios de Agamben à altura de uma concepção tão visceral do pensar
filosófico? Não será que, neles, o pensamento, definido pelo próprio Agamben como impulso de
apreensão do sofrimento da voz na linguagem, se encontre cativo do encanto da linguagem, ou
do momento imagético da linguagem? Não escapa a Agamben que a dialética adorniana se
avizinha de uma teoria estética não porque, teoria distanciada do mundo, só lhe reste a eterna
contemplação de uma imagem transcendente de redenção, mas sim porque, teoria entranhada no
mundo, intente, ao contrário, contemplar o anseio imorredouro pela redenção que habita o
imanente?
Se, conforme lemos no último aforismo de Minima Moralia mencionado por Agamben, a
questão da existência ou não da redenção se apresenta como questão secundária para a dialética
adorniana, é porque a questão primeira e fundamental diz respeito à filosofia, e não à teologia,
isto é, diz respeito à exigência extrema e mesmo dilacerante imposta à razão para superar a si
mesma através de si mesma, entendamos, sem apelar para uma dimensão teológica redentora,
asseguradora da redenção. Com outras palavras, a realidade ou não da redenção torna-se
irrelevante não em si mesma, mas em face do caráter desesperado que assume o esforço da
razão para transcender a si mesma sem recorrer ao tranqüilizante e consolador transcendente
teológico. Em vista disso, a questão se inverte completamente: é Agamben que deveria então ser
recriminado por recair numa estetização do messianismo. Afinal, é a redenção de cuja realidade
uma crença cega não ousa duvidar que Adorno ajuíza ser uma aparência tão ilusória quanto
reconfortante.

622
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623
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624
A MODA EM THEODOR ADORNO: “RECONCILIAÇÃO FORÇADA”
E DECLÍNIO DO SUJEITO

MICHETTI, M.1

Pensar a moda a partir de reflexões de Theodor Adorno é uma tentativa inquietante. O tema aparece
em sua obra de maneira tímida, mas incisiva. Poder-se-ia considerar a moda como um dos pontos das
constelações de pensamento que Adorno estabelece, ou seja, embora ela não seja um elemento central em suas
reflexões, ela pode aparecer como foco privilegiado de análise, devido a sua ligação com outros pontos da
constelação. Depõe a favor da empreitada o fato de que o próprio Adorno insta-nos a pensar filosoficamente
objetos e problemas históricos, a unir filosofia e teoria social para analisar o presente, preservando assim a
“atualidade da filosofia”. Além disso, diferentemente da tradição marxista ortodoxa, o autor não privilegia
meramente a dimensão econômica em sua tentativa de conceituar o real. Afirma, ao contrário, a necessidade de
atribuir o mesmo peso dessa esfera aos fatores psicológicos, culturais e sociais. Adorno destaca, por exemplo, a
importância da análise da indústria cultural e da esfera do consumo para o entendimento da realidade social no
capitalismo tardio. Embora tenha sido acusado de considerar em suas reflexões apenas o âmbito da produção,
ele o ultrapassa ao relacioná-lo dialeticamente ao consumo. Para Adorno, bem como para Marcuse, este último
é um elemento central na sociedade contemporânea na medida em que concilia lucratividade e administração
social e, desse modo, pode possuir tendências conservadoras e totalitárias.
A moda pode ser pensada no contexto dessas análises adornianas, sobretudo no que toca o “consumo
cultural”, discutido por Adorno em seus estudos acerca da chamada indústria cultural. A cultura é transformada
em bem de consumo e alguns bens de consumo, como os artigos de moda, são passíveis de ser tornados
mercadorias culturais, simbólicas. No capitalismo contemporâneo verificar-se-ia o fim da autonomia relativa
entre cultura e economia. Essas esferas encontrar-se-iam cada vez mais fundidas e o desenvolvimento de
ambas seria marcado pela lógica da mercadoria, que é, em linhas gerais, a lógica da moda. Esta pode ser
concebida, então, como expressão do abrandamento da distinção entre as esferas econômica e cultural que
ocorre no capitalismo tardio.

Moda e indústria cultural


O conceito de indústria cultural é cunhado por Adorno e Horkheimer nos interstícios de sua
investigação acerca dos meios pelos quais a dominação social se mantém e se reproduz na atualidade. Trata-se
de um diagnóstico sobre a situação da cultura e do indivíduo na contemporaneidade, em face da subsunção da
cultura pela economia e da entronização do consumo e da lógica da mercadoria - e, portanto, da lógica da
moda - como balizadores da (semi)formação (Halbbildung) cultural e individual.

625
A indústria cultural é caracterizada por Adorno como o planejamento de produtos adaptados ao
consumo de massas que tende a determinar o próprio consumo. Seus diversos ramos formariam um sistema
que integraria, deliberadamente e “a partir do alto”, seus consumidores. Com essa definição o autor explicita
claramente sua posição: as massas são parte desse sistema, mas o integram como objeto e não como sujeito, a
despeito do discurso apregoado pela ideologia da indústria cultural, que apresenta seus produtos como
resultado das necessidades dos consumidores. Ele quer demonstrar a reiteração da mentalidade das massas
promovida por tal indústria e a decorrente formação de um “círculo de manipulação e necessidade retroativa,
no qual a unidade do sistema se torna cada vê mais coesa”. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.114). Essa
unidade seria garantida ainda pelo fato de que a indústria cultural tem a veleidade de ser o “guia dos perplexos”,
isto é, dar orientação aos indivíduos, dotar seu mundo de algum sentido, difundir padrões de comportamento e
valores, em uma palavra: formar a consciência das massas.
Diante disso, o teórico frankfurtiano argumenta que a indústria cultural vende um consentimento total
e não crítico, faz propaganda de si e do mundo ao incutir modelos conformistas de comportamento. Ela se
apresenta como um “fator de ordem” e, nessa medida, é conservadora do status quo no quanto visa harmonizar
o mundo, esconder as contradições sociais por meio do enaltecimento de uma certa individualidade,
efetivamente impossibilitada de existir. Em uma sociedade massificada – na qual as diferenças de classe não
são superadas, mas tão somente dissimuladas –, ela invocaria a individualização e supostamente a
contemplaria, de modo a realizar uma reconciliação forçada entre indivíduo e sociedade, a falsa identidade
entre universal e particular.
De que maneira a indústria cultural alcançaria essa proeza? Quais os meios usados para combinar
lucratividade econômica e coesão social em um único sistema? Em linhas muito gerais, poder-se-ia atribuir
essa façanha à criação artificial de necessidades de consumo, possibilitada pela validação do novo enquanto
valor social de consumo. Outra condição sine qua non é a exaltação da individualidade, da diferenciação
individual, que, impossibilitada, será procurada na mercadoria. Ressalte-se ainda o papel da internalização das
necessidades e desses valores pelos consumidores, ou seja, do deslocamento do controle social para dentro dos
homens.
Nesse ínterim, torna-se perceptível que a indústria cultural opera com os mesmos mecanismos
característicos a lógica da moda. A sobrevivência de ambas seria comprometida sem a estimulação dos desejos
e a criação de necessidades, aos quais elas mesmas se propõem a saciar e satisfazer. Como tais necessidades só
podem ser reproduzidas a partir da insatisfação permanente, realiza-se apenas uma forma de satisfação
substitutiva, nunca satisfeita efetivamente. Na indústria cultural e na moda as necessidades só podem ser
criadas, isto é, só conseguem convencer os consumidores se houver nelas algo pretensamente novo para se
desejar, para se consumir. O novo é um imperativo para ambas e o caráter do novo é nelas bastante particular.

1
Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP de Araraquara. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Teoria Crítica: Tecnologia,

626
É imprescindível que haja ainda a presença do desejo e da busca pela individualidade, a qual será o móbil de
um consumo desenfreado de bens supostamente responsáveis pela atribuição de tal individualidade aos
sujeitos.

O indivíduo na moda e na indústria cultural


A partir das reflexões de Adorno torna-se patente uma ambigüidade entre o enaltecimento da idéia de
individualidade por parte da moda e os desdobramentos efetivos sofridos pelo indivíduo em face dela.
Enquanto o autor percebe a indústria cultural e a moda como condições do declínio do sujeito na sociedade
contemporânea, elas mesmas glorificam a individualidade com vistas à sua valorização como bem de
consumo à venda em suas vitrines. Adorno constata que, à medida que a sociedade industrial tolhe as
condições de existência da individualização2, esta é tornada mercadoria e passa a ser cada vez mais apregoada.
Tanto a indústria cultural quanto a moda oferecem seus produtos como únicos, singulares,
diferenciados. Em O fetichismo da música e a regressão da audição, de 1938, o autor afirma que a produção
padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão, mas, por outro
lado, as leis de mercado produzem a necessidade de ocultar esse fato, induzindo à manipulação do gosto e à
aparência individual da cultura oficial, bem como das mercadorias que a caracterizam. A igualdade dos
produtos oferecidos no mercado seria mascarada pela criação de um suposto “estilo universal obrigatório”.
Como atividade vinculada à indústria cultural, a moda também cria tendências que lança no mercado como
mundiais. Tais tendências são imbuídas do que Adorno denomina “nuanças pseudo-individuais”. Embora
esteja teorizando sobre o contexto de produção fordista, o autor já destaca o papel da acentuação e difusão das
diferenças e da individualidade como valores de consumo, papel cumprido cada vez mais à risca pela indústria
da moda. É provável que o próprio processo de massificação característico do capitalismo apresente como
fenômeno correlato a transformação da individualidade em valor de consumo. A sociedade capitalista impele
simultaneamente ao individualismo e ao comportamento de massa e, diante disso, seria possível interpretar o
consumo de moda como uma solução fictícia dessa aparente contradição: à medida que a individualidade não
pode se realizar livre e efetivamente em tal sociedade, a diferenciação individual passa a ser buscada nos bens
de consumo. Contudo, nas análises adornianas sobre o caráter fetichista da música e, depois, sobre a

Cultura e Formação desde 2001.


2
No aforismo 97 de Mínima Moralia, intitulado “Mônada”, Adorno discute o indivíduo como algo social
e histórico, tanto em seu surgimento como em seu ocaso. Nesse aspecto, ele se opõe à “crítica reacionária
da cultura”, que imputaria a responsabilidade pelo declínio da individualidade e pela crise da sociedade
ao indivíduo em si, “enquanto algo solto e voltado para si”. Para Adorno, ao contrário, “o indivíduo deve
sua cristalização às formas da economia política, em particular ao mercado urbano. Mesmo como
oponente das pressões da socialização, ele permanece sendo seu produto mais característico e a ela
semelhante. [...] O indivíduo reflete, precisamente em sua individuação, a lei social preestabelecida da
exploração, por mais que esta seja mediatizada. Isso significa também que sua decadência na presente
fase não é algo a ser derivado de um ponto de vista individual, mas sim a partir da tendência da
sociedade, tal como ela se impõe por meio da individuação e não como mero adversário
desta”.(ADORNO, 1993, p.130/1).

627
indústria cultural como um todo, o autor sugere que os produtos mecanicamente diferenciados se
revelam sempre como a mesma coisa, como o “sempre-igual”.
Malgrado a “ilusão de concorrência” e a pretensa possibilidade de escolha supostamente oferecida
pela moda, Adorno sustenta que, na indústria cultural, a individualidade é uma ideologia. Por meio de
estratégias do chamado “sistema de vedetes”, da “propaganda de personalidades”, “da arte individualista e da
sua exploração comercial” (ADORNO, 1971, p.290), seria garantida a oblação de individualidade e
personalidade aos produtos de moda e aos seus consumidores. Moda e indústria cultural seriam ao mesmo
tempo industriais e individuais, visto que conservariam ainda formas de produção individual, isto é,
conciliariam produção industrial com “resíduos individualistas”. Quando a moda, como parte da indústria
cultural, apela para os resquícios da arte individualista, ou seja, para seu caráter de unicidade e singularidade,
ela se serve da “aura em estado de decomposição” (ADORNO, 1971, p.290), expressão cunhada por Adorno
em referência crítica ao texto de Walter Benjamin sobre as técnicas de reprodução da arte.
Essa aparente “recomposição” da aura teria por escopo conferir a aparência de individualidade tanto
aos produtos como aos consumidores da indústria cultural. Tal individualidade seria propalada pela moda e por
aquela indústria como uma das benesses por elas proporcionadas. Porém, para Adorno, trata-se de formas do
que chama de “pseudo-individualidade”, por meio das quais a indústria cultural promoveria a reconciliação
forçada entre o individual e o universal: ela substitui o esforço de individuação pelo de imitação de modelos
pré-fabricados de pessoas e mercadorias, redutos de pseudo-individualidade. Acerca da liberdade de escolha
conferida pela indústria cultural, Adorno assevera se tratar da “liberdade de escolher o que é sempre a mesma
coisa”, entre determinados modelos apresentados por tal indústria.
Nesse ínterim, torna-se evidente a relação existente entre a indústria cultural, a propaganda e a moda.
Todas essas esferas se relacionam com a mimese, mas utilizam as idéias de individualidade e de liberdade com
vistas aos seus interesses. Um dos apelos publicitários mais importantes no mundo da moda é justamente a
unicidade, a distinção individual. Além disso, ambas têm implicações na formação dos indivíduos
contemporâneos, uma vez que as esferas psíquica, cultural, econômica e social estão cada vez mais imbricadas
na realidade hodierna.
A correspondência estabelecida por Adorno entre a fetichização da música e a regressão da audição
possui esse sentido e dá vazão a tal imbricação. Ao processo de fetichização corresponderia um retrocesso no
nível coletivo geral, condicionado antes pelo caráter de mercadoria da produção cultural contemporânea do que
pela estrutura psicológica dos indivíduos. Esta seria grandemente influenciada pela formatação mercadológica
da cultura, a qual, por sua vez, dependeria de uma determinada (semi)formação psíquica e perceptiva para
consolidar-se. É notável que o autor procura pensar o fetichismo da mercadoria em sua relação com o
indivíduo fetichista. Valendo-se, portanto, de Marx e Freud, ele toma a formação econômico-social do
capitalismo tardio em suas relações com a (semi)formação dos sujeitos, visto que, para ele, tal como para
outros teóricos da chamada Escola de Frankfurt, a percepção e a formação subjetivas são históricas e sociais.

628
Em Marx, o fetichismo da mercadoria é caracterizado como “uma relação social determinada entre os
próprios homens que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. (MARX,
1983). Trata-se do apagamento das relações sociais contidas nos artigos produzidos para o mercado. Tal
esquecimento do caráter humano embutido nas mercadorias traz consigo a fetichização e a sacralização delas,
ou seja, a “veneração do autofabricado”. Esse processo de apagamento das marcas humanas é corroborado
pelo fato de que o valor de troca das mercadorias se sobrepõe ao valor de uso e assume a função deste.
Desenvolvendo a noção de fetichismo a partir de Marx, Freud e da idéia lukacsiana de reificação,
Adorno analisa o fetichismo da música e o sucesso musical a partir dessa teorização, a qual permite também a
interpretação da moda. Para ele, ocorreria uma “transferência de afetos” do valor de uso para o de troca, ou
seja, os valores pretensamente inclusos nas mercadorias culturais atrairiam afetos sobre si, sem que as
qualidades específicas das produções sejam levadas em conta. O valor de troca se autonomiza e se torna objeto
de desejo. Adorno sugere, nesse contexto, que “a mulher que possui dinheiro para fazer compras se delicia no
ato mesmo de fazer compras” (1991, p.181), independentemente das características do artigo comprado.
O sucesso adviria de um “círculo vicioso fatal”, no qual a música ou a mercadoria mais conhecida
seria a mais famosa e, por isso, mais produzida, difundida e comercializada, tornando-se assim ainda mais
conhecida. Desse modo, Adorno indica que, embora sejam os homens os criadores do sucesso, eles o
coisificam e o aceitam como critério objetivo, porém, sem se reconhecer nele. O valor de troca assumiria,
então, função de coesão social. Tal função somente pode ser assumida pelo valor de troca mediante a sua
apresentação como objeto de desejo e prazer. Contudo, trata-se de um prazer simultaneamente estimulado e
reprimido, mutilado. De acordo com Adorno, “[...] para muitas mulheres, as situações de intimidade, em que
tratam os cabelos e fazem maquilagem, são mais agradáveis do que as situações de intimidade conjugal para as
quais se destinam o penteado e a maquilagem”. (1991, p.182).
No estudo sobre a indústria cultural ele aprofunda a análise ao afirmar que ela não proporciona prazer,
mas pré-prazer. Este conceito retomado da psicanálise torna evidente que, para grande parte dos indivíduos
do mundo atual, a maneira como se está vestido subjuga a relevância da situação para a qual se vestiu. A moda
se beneficiaria desse mecanismo: afinal, o pré-prazer mais íntimo das pessoas passa a ser caracterizado pela
posse das mercadorias necessárias para se estar na moda. Como parte da indústria cultural, ela apresentaria seus
bens como promessa de prazer, o qual seria prorrogado indefinidamente. Para Adorno, este mecanismo
revelaria
[...] o segredo da sublimação estética: apresentar a satisfação como uma promessa
rompida. A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto
de desejo [...] ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia
há muito mutilou e reduziu ao masoquismo. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985,
p.131).

O pré-prazer passaria de prelúdio a substituto do prazer, caracterizando uma forma de satisfação substitutiva,
aparente e repressiva. Assim, ele se institui como meio de estimular a demanda e como um “engodo para as
massas”, mantendo-as coesas.

629
Como foi observado acima, outro fator de coesão social e de estímulo do consumo que possui
implicações para a formação do sujeito seria a criação do star system, ou “princípio do estrelato” ou ainda
“ideologia da personalização”. Trata-se da atribuição de “importância desmedida a pessoas individuais e a
relações privadas contra o social efetivamente determinante”.(ADORNO, 2002b, p.125). A essa produção
artificial de “estrelas” e de nomes célebres são vinculadas mercadorias, as quais são transformadas, por isso, em
objetos de desejo e de consumo. Para Adorno, tal princípio se torna totalitário e as estrelas não seriam somente
o nome das pessoas famosas, mas as próprias produções, como filmes, músicas e tendências de moda. Nesse
aspecto, é possível afirmar que as grifes e marcas de moda se tornam célebres mediante aquele círculo vicioso
do sucesso. Além disso, a criação de tendências sazonais no mundo da moda pode ser caracterizada como um
fetichismo nos termos de Adorno, pois nela vigora o esquecimento de que a tendência, produção humana,
passa a se impor aos homens, se objetiva sobre eles. O mesmo processo parece ocorrer com a eleição arbitrária
de um padrão corporal a ser seguido em todas as partes do globo, independentemente das idiossincrasias
culturais e individuais. A imposição desse padrão pela moda parece levar os indivíduos ao masoquismo, à
coisificação do próprio corpo, o qual, potencialmente usuário da moda, torna-se seu objeto.
Na moda, o corpo é equiparado à mercadoria e assume também seu caráter fetichista. A magreza, a
juventude, o bronzeado se tornam fins em si mesmos. Esse padrão corporal deixa de ser percebido como ideal
criado humana e socialmente e passa a impor-se objetivamente aos indivíduos, que a ele se sujeitam. Não raras
vezes, a busca desses ideais criados pela indústria da moda e incentivados pela indústria cultural - a ela
vinculada - acaba se tornando o sentido da vida de alguns indivíduos, sentido este expropriado pelas
características da própria sociedade que ampara tais indústrias. Trata-se, portanto, da incorporação da tendência
social heterônoma pelos indivíduos.
Diante de tal processo, ocorreria a renúncia à individualidade: ao “obedecer cegamente à moda”, ela
se amoldaria a padrões gerais, ao sucesso construído. Em Educação após Auschwitz, o autor indica a
dominação de entidades coletivas sobre as individuais, a “cega identificação com o coletivo”, enquanto o
fundamento mesmo da barbárie. Para ele, “a pressão do geral sobre todo o particular, sobre os indivíduos e as
instituições individuais, tende a desintegrar o particular e o individual, assim como sua capacidade de
resistência”.(1995, p.107). Nesse sentido, ele pensa a não-autonomia individual a partir da crítica à noção de
vínculo, pois esta significaria “heteronomia, uma dependência de preceitos, de normas que não se justificam
ante a racionalidade do indivíduo”.(1995, p.109). Estando vinculadas, as pessoas passariam a apresentar uma
espécie de “permanente necessidade de receber ordens”. Assim, para Adorno, a única força verdadeira contra o
princípio de Auschwitz seria a autonomia em sentido kantiano.
Na referida conferência radiofônica de 1965, o autor analisa ainda a coisificação do corpo e assevera:
“sempre que a consciência estiver mutilada, isto se reverte para o corpo”.(1995, p.112). Desse modo, a
coisificação da consciência implicaria em coisificação do corpo, porquanto “pessoas que se enquadram
cegamente em coletividades transformam-se em algo quase material, desaparecendo como seres

630
autodeterminados. Isso condiz com a disposição de tratar os demais como massas amorfas”.(1995, p.115). As
pessoas com a “consciência coisificada” se identificariam a si mesmas e aos outros com coisas.
A consciência em tal estado “permanece cega frente a tudo o que veio-a-ser”. Tanto no caso do
fascismo como na produção do sucesso, ela se esquece do caráter humano e histórico dessas produções,
absolutizadas em virtude disso. Essa idéia parece bastante adequada para se pensar a moda como elemento de
coisificação, pois suas tendências são tomadas como algo dado e não como algo que veio-a-ser. Por
conseguinte, a coisificação da consciência e do corpo implica a fetichização das criações humanas, as quais
ganham vida própria e se impõem aos indivíduos – como ocorre na moda. De acordo com Adorno – referindo-
se ao fascismo – as pessoas que acatam passivamente as ordens de uma instância exterior a si mesmas atuam
em contradição com seus próprios interesses, são “assassinas de si mesmas”.
Em face dessa teorização sobre a dominação exercida pelo fascismo por meio da mutilação da
consciência podemos pensar - guardadas as devidas proporções, mesmo porque equiparar a moda ao fascismo
de forma não mediada seria atenuar a barbárie deste último e engessar qualquer perspectiva dialética de análise
- o fenômeno da moda como um dos elementos que, atualmente, tenderia a impedir a autonomia individual. A
despeito de se apresentar como esfera que não só permite, mas também estimula a individualidade, ela
configura uma instância heterônoma a dar ordens e orientação aos indivíduos. Não se trata aqui de tornar moda
e fascismo elementos totalmente equiparáveis, mas de destacar que - diferentemente das alegações da maioria
das análises antropológicas e pós-modernas sobre moda -, embora ela se sirva do discurso da individualidade e
da escolha individual, ela pretende ser, como a indústria cultural, o “guia dos perplexos”, ou seja, tem a
veleidade de conferir sentido aos sujeitos. No entanto, esse sentido lhes foi confiscado pela própria cultura da
qual a moda faz parte.
Poder-se-ia inseri-la no processo classificado por Adorno como regressão do indivíduo. Tal processo
estaria inserido nos interstícios da sociedade capitalista, relacionando-se à produção, à difusão e à propaganda
de mercadorias, com as quais os indivíduos identificar-se-iam. Segundo o autor, essa identificação -
nitidamente presente na esfera da moda - seria o passaporte para a submissão individual. E, se os consumidores
se identificam e se adaptam ao que lhes é oferecido, surge neles a tendência à rejeição de tudo o que é diferente.
Isso levaria, segundo Adorno, à regressão e à infantilização dos indivíduos: como crianças, “exigem sempre de
novo, com malícia e pertinácia, o mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido”(1991, p.192). Tal
incapacidade de aceitação do destoante em relação ao padrão se refletiria na psicologia das “vítimas” dos
produtos de massa, pois contribuiria para tornar impossível o abandono de uma situação infantil geral. Diante
disso, desvela-se o significado conservador do processo.
Com cautela, seria possível atribuir esse significado à esfera da moda, pois nela também pode ser
percebido o mecanismo neurótico de rejeição do diferente. É importante ressaltar, no entanto, que a existência
da moda parece estar relacionada justamente à criação da diferença, mas, conforme se argumentou acima,
trata-se da criação da diferença como estímulo ao consumo e do diferente sempre-igual do novo da moda. É

631
mister lembrar ainda que Adorno estabelece a análise da música - retomada no presente trabalho para pensar a
moda - no final da década de trinta do século XX. Hoje, há quem advogue a superação do período de
dirigibilidade e imposição da moda. Ele teria sido substituído por uma fase “pluralista”, na qual os indivíduos
poderiam ser livres na escolha das roupas e da aparência e na construção de “seu estilo próprio”. É evidente,
para qualquer trabalho sobre história da moda, que ela sofreu transformações nesse período - mesmo porque se
trata de um fenômeno histórico -, mas parece ter se mantido a mesma em seu sistema e no tocante ao seu poder
de “sugestão”, como preferem seus advogados. Aliás, em face da produção da identificação e de tal poder de
“sugestão” da moda, Adorno coloca em questão o caráter assumido pelas manifestações de preferência
supostamente individual no consumo de mercadorias.
Sobre isso, talvez seja pertinente observar que, para o autor, subsistiria ainda uma espécie de revolta
dos indivíduos diante da regressão. As pessoas não coisificadas completamente expressariam uma
ambivalência no desejo por escapar à coisificação, porém, cada uma de suas revoltas contra o fetichismo
acabaria por escravizá-las ainda mais a ele. Em Adorno, toda tentativa de libertar-se do estado passivo de
consumidores sob coação os levaria a formas de “pseudo-atividade”, nas quais presumir-se-ia “uma
necessidade represada de mudanças nas relações fossilizadas”. Tal como ocorre na indústria cultural, o mundo
da moda também é marcado por satisfações compensatórias e pela apologia da espontaneidade e de uma
postura ativa. Contudo, os “criativos”, os produtores de “modas alternativas” ou “antimodas” parecem
expressar formas de pseudo-atividade, uma vez que, segundo Benjamin em O Autor como Produtor, o sistema
capitalista teria uma imensa capacidade de aceitar e incorporar movimentos de contestação, transformando-os
em valor de consumo. Tais movimentos seriam mais uma forma de abastecer o atual sistema da moda e não de
romper com ele.
Haveria, então, um masoquismo definido pela renúncia a si mesmo e pela capitulação diante do
mundo. Em face de instâncias como a indústria cultural e a moda, as pessoas sentiriam prazer em uma situação
social desagradável, ou seja, elas adaptar-se-iam confortavelmente à situação objetivamente desconfortável.
Mas, ao fazê-lo, elas se perceberiam traidoras de uma possibilidade melhor e, simultaneamente, se sentiriam
traídas pela situação reinante, tacitamente reprovável. Em virtude disso, segundo Adorno, a regressão estaria
pronta a se degenerar em “furor contra tudo o que o modernismo da moda poderia desaprovar e mostrar quanto
foi reduzida a mudança que houve na realidade”. (ADORNO, 1991, p.196). De acordo com o autor, a partir
dessa perspectiva é possível formular a crítica às “novas possibilidades” na audição regressiva. Poder-se-ia
tentar redimi-la alegando a substituição da aura pelo lúdico implementado por ela. Todavia, para Adorno, a
audição nesse estado corresponderia a um jogo de repetição de modelos pré-fabricados. Isentando-se de
responsabilidade, tal jogo a descarregaria sobre os padrões que supostamente se obriga a seguir.
Em face de tal subjugação do gosto ao jogo da moda, o próprio conceito de gosto estaria ultrapassado,
pois já não haveria campo para a escolha. Se o gosto é definido a partir de decisões valorativas e autônomas, ele
é impraticável por indivíduos tutelados, subjugados à moda. Para o autor, “a existência do próprio indivíduo,

632
que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no pólo oposto, o direito à liberdade de
uma escolha que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente”. (1991, p.173). O critério
para o julgamento não seria mais o valor da própria coisa, mas o fato de ser conhecida por todos, de estar na
moda. Sendo assim, o indivíduo não conseguiria livrar-se do jugo da opinião publica nem decidir com
liberdade e autonomia quanto ao que lhe é apresentado. Todos os bens a serem consumidos seriam
semelhantes e, em face disso, os critérios de classificação e escolha seriam conferidos pelo “esquematismo da
produção”, o qual apresentar-se-ia em tudo diferente do esquematismo kantiano, ainda concernente ao sujeito.
Para Adorno, gostar de um artigo de sucesso na atual fase da equiparação entre cultura e economia significaria
o mesmo que simplesmente reconhecê-lo. Diante disso, o recurso à retórica do gosto individual e dos desejos
espontâneos do público pode ser apreendido enquanto “desculpa esfarrapada”. Como na moda, o critério de
avaliação é o fato da grife ser conhecida e reconhecida por todos. Assim, a moda transformaria o gosto e o belo
em categorias conjunturais, relacionadas à posição que ocupam ou não ocupam em seu sistema.
Aparentemente tão fundamental na moda, a categoria gosto parece ter sido abolida pela ordem sócio-
cultural ratificada pela própria moda. Se qualquer coisa pode ser considerada bela se estiver na moda, ocorre
uma destruição dos critérios para o julgamento do belo e do não belo. Essas categorias são transformadas em
termos posicionais e relativos, deixando de ser oposições. Na atualidade, artigos in fashion são considerados
belos pelo mero fato de estar in fashion, entretanto, o belo não pode existir efetivamente nesses moldes,
conforme indicara Adorno em Mínima Moralia. Ademais, a análise da dinâmica da moda revela a
arbitrariedade do gosto instituído por ela como absoluto: os produtos outrora execrados como obsoletos podem
se tornar objetos de desejo da tendência atual e, da mesma maneira, a mercadoria amada hoje será certamente
ridicularizada em pouco tempo.
Eis, então, um paradoxo: à primeira vista, a moda parece impossível sem a existência de indivíduos
que escolham entre suas diversas e fascinantes mercadorias, sem a presença do belo como categoria a orientar
essas escolhas e sem que a noção de gosto seja exercitada à exaustão. Contudo, a partir da ótica adorniana, que
ensina a aprofundar o olhar, é possível pensar a moda enquanto contrária à realização dessas categorias, as
quais são subtraídas aos indivíduos.
Talvez seja necessário relativizar a posição do filósofo alemão que considera os consumidores como
“escravos dóceis”. No entanto, é relevante destacar que, para Adorno, tal condição não é um estatuto
ontológico inerente ao consumidor, mas sim uma situação criada historicamente, advinda de um contexto em
que o econômico e o cultural teriam se unido de forma a administrar a sociedade. Não se trata, portanto, de
uma relação de causa e efeito entre a indústria cultural e a passividade dos consumidores. Embora algumas
passagens de textos de Adorno permitam essa interpretação, é importante destacar que tal passividade seria
algo construído de maneira mediada e possuiria caráter bastante particular: a passividade requerida pela
indústria cultural seria singular por ser “avidamente vivenciada” por seus consumidores. Ela caracteriza menos

633
um estado espontâneo de letargia do que o resultado de uma mobilização de energias que tem como
decorrência e pressuposto a identificação dos consumidores com os produtos daquela indústria.
Nesse contexto, a moda, a indústria cultural e a semiformação seriam peças-chave para promover a
migração do controle social para o interior dos indivíduos e, assim, para a composição dos mecanismos pelos
quais a acumulação e a sociedade capitalistas se reproduzem. Para Adorno, a administração social na
contemporaneidade só pode ocorrer de maneira eficaz se for incorporada pelos indivíduos, ou seja, mediante o
controle da consciência e dos desejos individuais e de sua funcionalização como parte do sistema. A
massificação da cultura – contrária à sua democratização – levaria àquela passividade e à perda da capacidade
crítica dos indivíduos.
Para Maria Isabel Batista (2002), a desfiguração da consciência dos indivíduos impõe-lhes uma única
saída: uma subjetivação que, na realidade, é uma dessubjetivação, uma objetificação. Decorrente de tal
“esvaziamento espiritual” seria a imobilização da capacidade autônoma de se expressar e estabelecer
necessidades, donde adviria uma identificação com forças heterônomas, como a moda. Baseando-se em Freud,
Adorno sustenta que essa identificação tem bases arcaicas e é um dos princípios do fascismo. A idealização
mobilizadora do processo identificatório permitiria que grande parte da libido narcisista fosse retirada do ego
dos indivíduos e transferida para o objeto idealizado, o qual poderia ser constituído tanto pelo Führer quanto
por uma grife. Tal descarga para fora do ego produziria um empobrecimento egóico, conduzindo os indivíduos
à regressão psíquica. Os sujeitos seriam destituídos daquilo que os diferencia dos demais e da sociedade e,
então, ocorreria uma reconciliação aparente, que priva os indivíduos de sua autonomia - embora na moda
pareça se dar justamente o oposto.
Segundo Batista, o líder narcísico era representado, em Freud, pelo pai primitivo, e, em Adorno, pelo
líder nazista. Desenvolvendo as proposições adornianas, ela indica que esse objeto de identificação
transfigurar-se-ia em um novo espectro na atualidade: os modelos de identificação fornecidos pela indústria
cultural e pela moda. Para essa autora, são esses padrões estandardizados, apresentados como ideais, que
constituem as mais potentes forças heterônomas contemporâneas de (des)subjetivação das massas, cujo afã
seria o de uma reconciliação entre interesses individuais e ideológicos. Os modernos mecanismos ideológicos,
como a indústria cultural e a moda, propagariam padrões de comportamento conformistas e, por isso, agiriam
no sentido de impedir a autonomia em faces de tais forças heterônomas.
De acordo com Adorno, a indústria cultural seria uma dessas forças e seu imperativo categórico seria
diferente do de Kant, pois não remeteria à liberdade e sim à submissão. Ela induziria à incorporação da
opressão. Em Dialética do Esclarecimento o autor afirma que “sob o monopólio privado da cultura a tirania
deixa o corpo livre e vai direto à alma” e que a produção capitalista mantém os consumidores “tão bem presos
em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido.”(ADORNO e HORKHEIMER,
1985, p.125). Esses consumidores sancionariam a própria ideologia que os escraviza. Em virtude disso, Jay
afirma que, para Adorno, “a cultura de massa é a psicanálise às avessas” (1988, p.111), pois em vez de curar

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personalidades autoritárias e regressivas, contribuiria para criá-las. Por meio da indústria cultural - e isso pode
ser referido também à moda -, economia, cultura e formação do indivíduo passam a integrar um mesmo
sistema que gira sem sair do lugar e, por isso, tem tendências totalitárias.
Adorno indica que a propaganda teria esse sentido, tanto na “democracia” americana quanto no
nacional-socialismo alemão. Em ambos os contextos, ela colocaria a recomendação como comando e “a
palavra humana como algo de absoluto, como um falso imperativo”. Para o autor, “a propaganda de marcas
específicas, isto é, o decreto da produção escondido na aparência da possibilidade de escolha, pode acabar se
transformando no comando aberto do Führer” (ADORNO, 1985, p.149). Da mesma maneira, na construção
comercial de grifes pela moda, a linguagem é desvinculada da experiência humana sedimentada. A partir de
Adorno - e guardadas as devidas proporções - é possível afirmar que, ao transformar palavras em absolutos, o
fascismo e a moda convergem para o ocaso da experiência e da subjetividade.
É notória, em tudo isso, a inclinação adorniana em interpretar tal indústria como o lado doce de uma
nova forma do fascismo, “que deixa livre o corpo e vai direto à alma”. (1985, p.125). O autor foi severamente
criticado por ver na “cultura de massas” americana uma sucursal branda do fascismo. Acontece que, para ele,
por intermédio dos meios de comunicação de massa, como o rádio, “o Führer ordena de maneira mais
moderna e sem maior cerimônia tanto o holocausto quanto a compra de bugigangas” (1985, p.150). Sociedade
nazista e sociedade de consumo seriam relacionadas. Este é um dos motivos pelos quais o autor critica tão
acirradamente a cultura consumista americana. No que toca a integração do indivíduo nas malhas da
socialização, ela estabeleceria relações com o nazi-fascismo. Totalitarismo político e consumismo seriam
formas diferentes de atingir o mesmo objetivo, qual seja, administrar a sociedade.
A partir de Adorno, evidencia-se que a indústria cultural, a moda e a cultura de consumo produzem o
efeito de uma “anti-emancipação”, de um “anti-esclarecimento” e de “anti-desmistificação”. Dessa maneira,
elas impediriam a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir
conscientemente. Nesse sentido, seriam elementos de contenção da transformação social, na medida em que
tais indivíduos são a condição prévia e essencial para uma sociedade democrática e livre de dominação, na qual
vigoraria a paz, que, nos termos de Adorno é “um estado de diferenciação sem dominação, no qual o diferente
é compartido”. (ADORNO, apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p.37). Para ele, o nazismo é inimigo da
diferença e a indiferenciação (entre sujeito e objeto) corresponde ao mundo do mito. Embora a moda seja
panegirista da diferença, ela a transforma em bem de consumo e, assim, também tende a suprimí-la.
Diferentemente de Walter Benjamin, que atribuía à moda o mítico e o utópico, Adorno parece vislumbrar nela
só o mito, ou seja, um obstáculo para a criação do efetivamente novo e diferente, um meio de reprodução do
sempre-igual.
Não obstante adotar essa posição extremamente crítica, é relevante destacar que, em textos tardios,
como Tempo Livre, de 1969, ele se coloca em dúvida sobre a completude da equação entre a indústria cultural
e a consciência dos consumidores. Por meio de uma investigação social empírica ele se depara com “sintomas

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de uma consciência duplicada” nas pessoas, as quais aceitariam e consumiriam os produtos de tal indústria,
mas com um tipo de reserva, não acreditando inteiramente neles. Conclui então que
É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo
livre. Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de
certos limites, resistir à apreensão (Erfassung) total. Isto coincidiria com o prognóstico
social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições fundamentais permanecem
inalteradas, também não pode ser totalmente integrada pela consciência. (ADORNO,
2002b, p.126/7).

De acordo com Francisco Rüdiger (2002), ele teria percebido que a sociedade totalmente administrada
pressupõe uma superação das contradições econômicas e sociais que não podem acontecer sob a égide do
capitalismo. Já para Martin Jay (1988), essa reflexão a respeito das limitações do poder de manipulação da
consciência das massas não significa tanto um abrandamento da hostilidade adorniana à indústria cultural
quanto o abandono do postulado da existência de uma identidade tácita entre a cultura popular americana e sua
contrapartida fascista.
Apesar dessa reconsideração da posição adorniana, parece ser correto afirmar que, para o autor, a
sobreposição das “forças heterônomas” sobre os indivíduos é uma das condições da perpetuação da barbárie.
Contra ela, Adorno aposta na autonomia individual. Contudo, esta seria prejudicada quando de sua
identificação com tais forças, as quais promoveriam uma ligação aparentemente imediata entre as instâncias
individuais e as sociais. Anulada a tensão entre indivíduo e sociedade, o todo tornar-se-ia falso, na medida em
que o indivíduo incorporaria o todo antagônico e, assim, perderia a capacidade de criticá-lo. Criar-se-ia a
aparência de que “o mundo está em ordem”.
Como afirmado acima, para Adorno, a identidade entre indivíduo e sociedade - que implica na
contenção das perspectivas de libertação da humanidade - só pode ocorrer se os indivíduos a internalizarem, ou
seja, se a dominação for internalizada. Tal movimento poderia ser levado a cabo tanto pelo totalitarismo
político quanto por formas mais brandas, porém igualmente efetivas, como a moda. Não se pode, portanto,
concebê-la como algo inócuo. A partir de Adorno, tornou-se possível observar que ela tem conseqüências
econômicas, sociais, culturais e individuais. Como algo que possui em sua própria existência sua ideologia, a
moda permite conjugar a realização do capital com o exercício da dominação, da administração social. Ao
transformar o consumo no mote da cultura, ela o transfigura em elemento de reprodução social. Mediante a
veleidade de oferecer o novo, a individualidade e o sentido subjetivo da existência, ela desenvolve novas
necessidades artificialmente e desloca o controle social para dentro do indivíduo. A moda parece manifestar a
lógica subjetiva e a lógica objetiva de funcionamento do sistema social no qual se insere.
Ao que tudo indica, Adorno não atribui à moda o mesmo potencial utópico que Benjamin. De acordo
com a argumentação adorniana, ela representa somente a mistificação, algo que prende os homens ao sempre-
igual do mito e que impede a formação do efetivamente novo, pois transforma o novo em algo venal. Ela
promove uma “satisfação substitutiva” que, no entanto, nunca pode se satisfazer, sob pena de extinção de seu
sistema. Ao se apresentar como a esfera mais dinâmica e efêmera da modernidade, a moda se impõe como se

636
fosse inexaurível e imutável. Na medida em que, para Adorno, “até hoje as utopias só se realizam para
escorraçar o utópico dos homens e para comprometê-los ainda mais com o existente e com a fatalidade”
(1971b, p.354), a moda pode ser vislumbrada como expressão da usurpação contemporânea da individualidade
e da utopia. Ainda que a moda seja um refúgio para a idéia do novo, ela tem sido também seu mais suntuoso
jazigo.

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638
Novas Tecnologias em tempos de capitalismo global: da atualidade da crítica de T. W.
Adorno à técnica

Naê Prada Rodrigues Desuó


UNIMEP

Este trabalho intenta tanto compreender o que Theodor W. Adorno, pensador alemão da Teoria
Crítica da Sociedade, da Escola de Frankfurt, entende por técnica e qual o seu posicionamento
frente à mesma, como averiguar, por meio da caracterização da tecnologia nos dias de hoje e da
investigação do grau de enredamento desta com a ciência e com o capital, o nível de pertinência
da crítica desse filósofo à tecnologia, bem como a atualidade das categorias com as quais ele
trabalha para a realização de sua diagnose sobre a técnica — exercício este que figura como
uma tentativa de imprimir ainda mais vigor a um referencial teórico que já se tem mostrado rico
para analisar a sociedade e suas condições concretas.
Como os aparatos tecnológicos se fazem cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas —
influenciando seus modos de trabalhar, de conhecer e de viver — e carregam consigo uma
racionalidade técnica, cuja lógica funcional medeia as relações sociais como um todo, inclusive
as educacionais, pensamos que investigar a concepção de Theodor W. Adorno a respeito da
técnica seja pertinente. Mais do que isso, por entendermos que as considerações de qualquer
pensador sobre uma determinada questão são sempre datadas, cabíveis, portanto, no tempo e no
contexto em que foram elaboradas por ele, julgamos ser imprescindível que se questione em que
medida suas idéias sobre um certo tema sejam apropriadas nos dias em que vivemos.
De fato, a hipótese levantada é a de que os apontamentos adornianos sobre a técnica ainda se
revelam proveitosos para o empreendimento de uma crítica à tecnologia. No entanto, buscamos
inquirir até que ponto o diagnóstico de Adorno em relação à técnica se mostra adequado no
questionamento das novas tecnologias: será que estas diferem, em sua essência, da tecnologia da
época do autor, ou elas possuem o mesmo cerne desta, mas surgem sob uma nova roupagem que
nos dá a impressão de serem distintas?
A partir da leitura de diversos textos do referido filósofo, concebemos que sua crítica à técnica
se alicerça nas seguintes categorias teóricas: técnica, tecnologia, esclarecimento, ratio,
sociedade administrada e capitalismo tardio. Desse modo, a fim de compreender a análise
adorniana sobre a técnica, foram utilizadas, como fontes, as seguintes obras que tratam, em
alguma medida, dessas categorias: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos,
Dialética Negativa, Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada, Palavras e
sinais: modelos críticos 2, Prismas: crítica cultural e sociedade, escritas por Adorno, e
Theodor W. Adorno – Sociologia, organizada por Gabriel Cohn.

639
Já para a investigação do nível de atualidade dessa crítica, as fontes principais foram as obras
arroladas a seguir, que tematizam as manifestações hodiernas da tecnologia: Politizar as novas
tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética, Intervenção,
descoberta e dignidade humana, Perspectivas que a revolução microeletrônica e a internet
abrem à luta pelo socialismo, Predação high tech, biodiversidade e erosão cultural: o caso
do Brasil e Outro homem, outro mundo, todas de Laymert Garcia dos Santos, As
Tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na era da informática, O que é o
virtual? e Cibercultura, de Pierre Lévy, e O ciberespaço e as manifestações da razão
instrumental na Idade Mídia, de Alain Melendez. Além disso, fizemos uso também das
discussões realizadas por Robert Kurz nos livros O colapso da modernização: da derrocada
do socialismo de caserna à crise da economia mundial e Com todo vapor ao colapso e por
Christoph Türcke no texto “Informal” segundo Adorno, por tratarem do modelo vigente de
capitalismo e por problematizarem o impacto deste sobre os âmbitos sócio-político e
econômico, bem como sobre as relações dos homens uns com os outros e consigo mesmos.
Pois bem, já no final dos anos 40, Adorno denunciou as bases nefastas do instrumental
tecnocientífico de sua época. Com efeito, ele via a técnica como a essência do saber científico
moderno que visa o método, o uso do trabalho alheio e o capital. Sendo assim, a tecnologia, que
à época do autor existia ainda predominantemente enquanto tecnologia mecânica, já traria, em
seu bojo, o gérmen da dominação e da violência: o controle devastador da physis pelo homem e
o conseqüente domínio da própria natureza interna humana, uma vez que o homem também é
natureza.
Para Adorno, o problema da técnica reside no fato de ela se constituir como a objetivação da
razão — que foi se instrumentalizando, desde a sua gênese nos mitos até chegar à ciência,
atingindo o grau máximo de irracionalidade na época atual —, sob a forma de sistemas e de
aparatos tecnológicos, que, a seu ver, sempre estiveram atrelados ao controle social e à
expansão do capitalismo, servindo, portanto, a este, e não aos sujeitos. Nesse contexto, sob a
ótica adorniana, a tecnologia esteve atrelada, desde sempre, à ciência e ao capital, promovendo,
juntamente com eles, a (des)subjetivação dos homens, por meio da criação da indústria cultural
e da sociedade administrada.
Com efeito, os textos, aos quais nos referimos para tecer as considerações de Adorno frente à
técnica, apresentam, a partir de enfoques distintos, uma problematização acerca do percurso da
racionalidade ocidental, desde os mitos até a ciência, em meio ao qual essa racionalidade,
embora tenha garantido a sobrevivência e o desenvolvimento da espécie humana, se tornou
irracional, colocando-se paradoxalmente contra o próprio homem. Nesse sentido, nas referidas
obras, o autor procurou escancarar o fato de que foi justamente essa racionalidade irracional

640
que, na era moderna, se materializou nos aparatos tecnológicos, sempre estando atrelada ao
controle social e à expansão do capitalismo.
Assim sendo, tais aparatos constituem a expressão dessa racionalidade corrosiva e carregam, em
seu cerne, a lógica do controle e da subjugação, cabendo, portanto, ao homem dar-se conta disso
quando for se relacionar com eles. Julgamos que, ainda que de modo geral, Adorno não tenha
feito proposições de uma atitude mais combativa por parte do homem no sentido de frear o
desenvolvimento da técnica, isso não significa necessariamente que não haja práxis em sua
teoria. A nosso ver, o exercício constante de hermenêutica e de questionamento da realidade,
sem maiores proposições, perceptível em todos os ensaios de Adorno utilizados nesta pesquisa,
constitui, ele mesmo, uma forma de práxis, simplesmente pelo fato de se delinear como
tentativa de colocar o pensamento contra si próprio. Indo além, tal exercício chega a ser ético,
uma vez que leva o homem ao auto-aperfeiçoamento por meio da reflexão.
Acreditamos, por isso, que talvez as colocações de Adorno devam ser compreendidas mais
como uma tentativa radical de experimentar se, através de atitudes contrárias ao
desenvolvimento tecnológico — seja evitando fazer o uso dos aparatos quando estes são
dispensáveis para a tarefa a ser realizada, seja questionando profundamente, e até as últimas
conseqüências, seu atrelamento ao capital e sua parcela de responsabilidade no processo de
(des)subjetivação dos indivíduos, como o próprio autor sempre o fez — se poderia vislumbrar
alguma modificação nesse panorama.
Talvez a opção radical pela não-utilização dos recursos tecnológicos ainda fosse possível na
época em que viveu Adorno, quando era vigente a tecnologia mecânica, os aparelhos
tecnológicos ainda não faziam parte do cotidiano de modo tão incisivo e a lógica da produção
não havia atingido por completo todas as esferas da vida. Em tempos de capitalismo global e de
novas tecnologias, tais como a digital, a biotecnologia e a nanotecnologia, que invadiram, com
sua lógica, todas as esferas da vida, inclusive aquelas consideradas mínimas, imperceptíveis, tal
empreitada é simplesmente impossível. Some-se a isso o fato de que, tendo em vista o ritmo
acelerado de vida a que estamos submetidos, justamente pela necessidade desenfreada do capital
de expandir cada vez mais suas fronteiras com o auxílio da tecnologia, certos produtos
tecnológicos se tornaram indispensáveis para o desenvolvimento de determinadas tarefas. Mais
do que isso, em determinados setores, aqueles que não fazem uso da tecnologia para o
desenvolvimento de suas atividades acabam sendo excluídos do processo produtivo e, desse
modo, deixam de existir para a sociedade.
Embora acreditemos que as assertivas a respeito tanto da degeneração da ratio numa
racionalidade corrosiva, quanto de sua sedimentação em máquinas e das conseqüências de todo
esse processo para a subjetividade humana ainda conservem elementos ricos e muito válidos

641
para a realização de um diagnóstico crítico sobre a sociedade de nosso tempo, tivemos a
intenção de examinar mais detalhadamente como isso se dá nos dias em que vivemos.
De fato, os apontamentos adornianos foram feitos em obras que datam desde o final da década
de 40 até fins da década de 60 do século passado, quando Adorno faleceu. Por isso, suas
considerações sobre a tecnologia dizem respeito à época em que esta se configurava
predominantemente como tecnologia mecânica (embora as bases da microeletrônica já tivessem
sido lançadas, ela ainda não era hegemônica), vinculando-se ao capitalismo tardio e ao modelo
de ciência da big science. Contudo, averiguamos que, desde lá, muito já aconteceu com o
capitalismo, com a ciência e também com a própria técnica.
De fato, o capitalismo, que àquele tempo pendulava mais para o pólo estatista, sob a figura do
capitalismo tardio — com a presença de um Estado altamente intervencionista e de grandes
monopólios —, agora se voltou totalmente para o pólo monetarista, transmutando-se em
capitalismo neoliberal global. Nessa perspectiva, constatamos que o Estado minimizou,
consideravelmente, o espectro de sua intervenção, se limitando a governar para o mercado
mundial e deixando, desse modo, os demais âmbitos da sociedade à sua própria sorte, o que
levou a informalidade a se constituir como o modo de produção e de reprodução social
privilegiado da época em que vivemos.
Mais do que isso, verificamos que, impulsionado pelos avanços estrondosos da tecnologia, tal
sistema — que, atualmente, vive uma crise estrutural, inerente à sua lógica de rentabilidade a
todo custo, causada, justamente, pela aliança irracional estabelecida com a ciência e com a
técnica — se virtualizou, ao se transferir para o ciberespaço, elegendo a informação como a
mercadoria par excellence de nosso tempo, o que lhe possibilitou colonizar a dimensão virtual
da realidade, fazendo-o voltar-se para o futuro, via exploração do que ainda está por vir.
E se é assim, podemos concluir que o processo semiformativo, diagnosticado por Adorno no
texto Teoria da Semiformação, se potencializou tremendamente nos dias atuais. Isso porque,
se, já nos tempos em que viveu Adorno, não tínhamos mais condições de experienciar nada de
fato, imagine tal situação numa época em que a informação é tida como fonte de conhecimento,
sendo, por isso, com ele confundida, e, mais do que isso, numa era em que a palavra de ordem é
se apropriar do que ainda não aconteceu? E mais, como podemos deixar de dizer que a
semiformação se reforçou absurdamente se, nos tempos em que vivemos, a educação tornou-se
mais uma das milhares de mercadorias do sistema capitalista, que foi subjugada ao seu poderio
e que, dessa maneira, acabou se transmutando em área de aplicação de uma miscelânea de
metodologias, epistemologicamente incompatíveis, com vistas a resultados pragmáticos
imediatistas, deixando de lado, portanto, o aspecto da teoria?

642
Quanto à ciência, percebemos que também ela sofreu modificações desde a sua gênese no
século XVII, sobretudo, a partir da Segunda Revolução Industrial, no período entre as duas
Grandes Guerras, bem como no pós-Segunda Guerra Mundial. Pudemos visualizar que, embora
o seu desenvolvimento tenha se entrelaçado, desde sempre, à tecnologia e ao capital (basta
recordarmos o exemplo da Escola de Sagres, em Portugal), foi somente a partir do primeiro
grande conflito mundial e, principalmente, do segundo, que ela se voltou radicalmente para a
criação de artefatos e de experiências que atendessem, direta e formalmente, aos interesses dos
donos do poder.
Notamos também que ela tem passado da condição de big science à de ciência pós-acadêmica
ou de “modalidade 2”. Nesses moldes, se, na primeira condição, ela já começou a vislumbrar
um novo modelo de organização da produção dos conhecimentos científicos — em grandes
programas de pesquisa "orientados por missão" — que, para ser viabilizado, necessitava da
participação de mais de um grupo e instituição de pesquisa, assim como da coordenação efetiva
entre o governo federal, a universidade e o setor privado, contando, portanto, com uma grande
pluralidade de parcerias e de filiações institucionais dos atores e das comunidades participantes,
na segunda condição, isso se potencializou muito, pois, agora, as novas disciplinas científicas
não nascem mais como filhas das velhas, mas sim como o resultado da fusão de várias
disciplinas que, antes, existiam separadamente, o que aumenta, e muito, o espectro de atuação e
de penetração da ciência em todos os ramos da sociedade.
No que se refere à tecnologia, averiguamos que, nos dias de hoje, ela se desdobrou em muitas
outras formas, para além da mecânica, tais como a nanotecnologia, a biotecnologia e a
tecnologia digital, que se baseiam na microeletrônica e em sua capacidade de atuação no plano
micro da realidade e em seu potencial de digitalização de tudo o que existe. Nessa direção,
podemos dizer que a administração da sociedade, operada pelo capitalismo com a ajuda da
tecnologia e da indústria cultural, tornou-se muito mais intensa: agora, o capital e a ciência, via
nanotecnologia, biotecnologia e tecnologia digital, interferem e colonizam até mesmo a
dimensão mais ínfima da existência.
Como se vê, percebemos que, agora, mais do que nunca, a tecnologia se desenvolve de modo a
atender exclusivamente aos ditames do capital. A partir disso, inferimos que, apesar de não
haver como negar que existam tentativas bem intencionadas de emprego da tecnologia com o
intuito de reduzir o sofrimento humano, ou mesmo de melhorar a vida dos homens, as quais, de
fato, alcancem tais objetivos, elas tendem a ser engolfadas, uma vez que seguem na contramão
do ritmo acelerado e vertiginoso de crescimento do capital. Aliás, não constitui exagero
afirmarmos que tais experiências só chegam efetivamente a perdurar se trazem alguma
vantagem concreta que concorra para o desenvolvimento da maquinaria do dinheiro.

643
Nesse sentido, talvez seja correto dizermos que, em tempos de novas tecnologias e de
capitalismo neoliberal global, a nova “qualidade” da técnica seja a de beneficiar estrita e
exclusivamente o sistema capitalista, que, tendo se autonomizado frente às arcaicas instituições
que costumavam controlá-lo e arrastado consigo os rumos do desenvolvimento dos aparatos
técnicos, se apresenta agora sob a roupagem do mercado financeiro global, uma verdadeira
entidade, como aquelas da época da metafísica, que tudo enxerga e tudo controla, mas cujo rosto
e cuja identidade não se conhecem e, portanto, não pode ser cobrado pelos danos que causa aos
sujeitos e às relações entre eles.
Finalmente, ao tensionarmos as considerações de Adorno a respeito da técnica com as
manifestações desta nos dias de hoje, notamos que, embora o capitalismo não seja mais tardio e
a tecnologia tenha assumido formas outras que não só a mecânica, o cerne da crítica adorniana à
técnica mantém-se intacto: as revoluções tecnológicas, vinculadas ao capital global, atuam
quase que exclusivamente para a criação do valor econômico, prejudicando em demasia o
homem, seja em termos individuais, seja coletivamente. Entre os desdobramentos disso para a
espécie humana, encontram-se a coisificação do homem e sua sujeição à lógica da ratio alienada
de si mesma, o acirramento de uma maneira de ser pré-reflexiva e não-racional, o
hiperdesenvolvimento do processo produtivo, a concentração absurda de renda, o desemprego
estrutural e o surgimento de pessoas, de regiões e de nações inteiramente descartáveis, o que
denota que o atrelamento entre tecnologia, ciência e capital se fortaleceu ad infinitum,
potencializando radicalmente o processo de degradação da humanidade diagnosticado, já na
década de 40, por T. W. Adorno.
Ainda que não tenhamos abordado o processo educativo de maneira explícita, julgamos que a
pesquisa ora desenvolvida contribui, e muito, para fundamentar uma diagnose crítica sobre a
educação. Com efeito, entendemos que a discussão realizada oferece elementos essenciais para
se pensar tanto os contornos que a semiformação vem adquirindo com a penetração, cada vez
mais intensa, da tecnologia e do capitalismo neoliberal global em todas as esferas sociais,
inclusive na educacional, quanto o que caberia a um projeto educativo que visa à realização de
experiências formativas, as quais contribuam para a emergência de indivíduos autônomos,
capazes de empreenderem diagnósticos críticos a respeito da realidade que os circunda.

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649
INDÚSTRIA CULTURAL, EDUCAÇÃO E NOVAS TECNOLOGIAS

Nelson Palanca
Professor do Departamento de Ciências da Educação da “Faculdades Integradas de Jaú”. Doutor em
Educação, na área de História, Filosofia e Educação pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP,
SP.

O conceito de indústria cultural delineado por Adorno e Horkheimer há mais de meio


século suscita ainda hoje grandes divergências. Com enorme freqüência martelam em nossos
ouvidos argumentos, os mais diferenciados, que justificam plenamente o epíteto “apocalípticos e
integrados” a que recorreu Umberto Eco para caracterizar cada um dos lados que alimentam a
polêmica relativa ao papel que este segmento da cadeia de produção desempenha no contexto da
sociedade. As inúmeras e divergentes abordagens que continuam sendo desenvolvidas sobre a
temática, são testemunhas incontestes da atualidade das reflexões implementadas por aqueles
teóricos.
Coerentemente com esta perspectiva e em consonância com o propósito deste colóquio, este
artigo contempla uma reflexão centrada na seguinte questão: existe uma imbricação1 da indústria
cultural com a educação e com o que se convencionou denominar novas tecnologias?
Ao meu ver esta questão merece uma resposta afirmativa, perspectiva esta que orienta a
seguinte tese que tentarei desenvolver: a tríplice imbricação que a questão suscitada levanta, ao
contrário da perspectiva de progresso que ela sugere, constitui um elemento de grande relevância no
processo de massificação e degradação do homem no âmbito da sociedade contemporânea.
Isto posto, parece-me evidente que o desenvolvimento da tese em questão demanda um
delineamento claro das principais categorias a que ela remete: 1) a indústria cultural; 2) o que
chamei de discurso pedagógico hegemônico nos dias atuais; 3) o papel das novas tecnologias.
1 – A indústria cultural.
Como sabemos o conceito de indústria cultural veio a público com a publicação do livro
Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer e diz respeito ao conjunto das organizações
voltadas para a produção industrial de bens culturais através de moderno aparato tecnológico; seu
principal objetivo é a produção de cultura de forma racional e padronizada com a finalidade
específica de ser convertida em mercadoria para atender à demanda de um mercado consumidor
ávido por produtos dessa natureza.

650
Adorno e Horkheimer dizem, entre outros aspectos, que sob a égide da indústria cultural a
civilização moderna “confere a tudo um ar de semelhança”2, observação que a meu ver explicita
dois aspectos preocupantes derivados dos produtos dessa indústria: um deles por promoverem a
estandardização, a supressão das diferenças e o atrelamento da humanidade a uma única maneira de
ser definida a priori pela racionalidade técnica; o outro por induzirem uma nova forma de ideologia,
distinta da que se apresenta na sua forma tradicional (marxista) que pressupõe a existência de uma
ou mais doutrinas separadas da realidade social a que se propõem explicar.
Ao contrário do que ocorre com a ideologia tradicional, a ideologia inaugurada pela
indústria cultural é parte integrante da realidade social, dado que se apresenta impregnada nos
próprios bens culturais industrialmente produzidos; é imanente a eles e, no exato momento em que
os mesmos são consumidos tem lugar a reprodução do status quo social. Eliminada a separação
entre ideologia e realidade a contradição entre ambas também é eliminada, sem, entretanto, ser
superada historicamente. Num tal contexto resta evidente que os produtos da indústria cultural
transcendem a sua finalidade específica, na medida em que a ela se soma uma função ideológica
que resulta mais eficaz que as ideologias anteriores, uma vez que mascara a inversão de sentido do
progresso da humanidade e a quebra da promessa iluminista de autonomia; em troca, induz um
processo de regressão da humanidade mediado pela técnica, que se consubstancia, nas palavras de
Adorno, mediante o “engodo das massas”3.
Hoje, a difusão desta ideologia pode ser aferida através da uniformização social
(massificação) conduzida pela indústria cultural no âmbito do mundo capitalista globalizado,
mediante a qual povos diferentes são homogeneizados com os mesmos valores do sistema global,
com as mesmas tendências culturais e com as mesmas opções de consumo; o que resulta num
processo de despolitização da sociedade, uma vez que a política pressupõe a diferença, a alteridade.
Essa ausência de confronto ideológico transmite a convicção da inexistência de um modelo
alternativo e, via de conseqüências, induz à morte do homem enquanto animal político, para
aparecer em seu lugar o personagem requerido mercado, o consumidor. Nesse contexto, não há
mais lugar para o exercício da cidadania. No mundo do consumo está decretada a morte do cidadão
e, com ela, a da democracia.

1
No caso, considero que a existência de imbricação se caracteriza, sempre que valores de uma determinada
área se superporem aos de outra.
2
- HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. . Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zaar,
1986, p. 113.
3
- ADORNO, Theodor W.. “A Indústria Cultural”. In Theodor W. Adorno ( Gabriel Cohn, Org.). São Paulo,
Ed. Ática, 1986, p. 99.

651
A crítica de Adorno à indústria cultural comporta ainda considerações relativas ao fato dela
subverter a formação cultural dos indivíduos convertendo-a em semicultura, correspondente ao que
no Brasil a, grosso modo, se convencionou denominar de forma pejorativa, “cultura de almanaque”
(um pouco mais elaborada). É a cultura tomada emprestada de segunda mão, superficial e carente
de reflexões significativas. A semicultura que no entender do frankfurtiano “passou a ser a forma
dominante da consciência atual”4, é mais prejudicial ao indivíduo do que a não-cultura pois
enquanto esta última (um mero não-saber) viabiliza a aproximação imediata da realidade e permite,
em função de um potencial de questionamento preexistente, o desenvolvimento de uma consciência
crítica e não conformista; a semicultura dificulta o acesso à realidade em si, ao envolvê-la num véu
ideológico que impede o indivíduo de se relacionar diretamente com ela. “No ‘não-saber’ há uma
predisposição do homem para a busca do ‘saber’. Sócrates colocava no auto-reconhecimento da
ignorância o princípio do filosofar. No ‘semi-saber’ a pessoa se julga ‘sabedora’ e se fecha às
possibilidades da ‘sabedoria’”5.
Sob a égide da racionalidade instrumental a indústria cultural degrada a humanidade na
exata medida em que “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de
julgar e de decidir conscientemente”6.
2 – O atual discurso pedagógico.
Como já tive a oportunidade de observar, entendo que a mesma lógica que move a indústria
cultural estende-se também à educação formal contemporânea, objetivada no discurso pedagógico
hegemônico em nossos sistemas educacionais. Por discurso pedagógico hegemônico, entenda-se o
conjunto de teorias pedagógicas e metodologias da moda (eivadas de psicologismo) acriticamente
importadas dos grandes centros e apresentadas em solo tupiniquim como verdadeiras redentoras da
prática docente e do atraso educacional das instituições educacionais. Decorridas algumas décadas
desde a implementação deste discurso no âmbito do sistema educacional nacional, o resultado que
se nos oferece (dados oficiais) dá testemunho inconteste da verdadeira calamidade e barbárie
educacional que ele promove.

4
ADORNO, Theodor W. “Teoria da Semicultura”. In: Educação & Sociedade: Revista quadrimestral de
ciência da educação, ano XVII, nº 56. Campinas: Ed. Papirus, dez./1996, 388-411.
5
- PUCCI, Bruno. “A Teoria da Semicultura e suas Contribuições para a Teoria Crítica da Educação”. In:
PUCCI, Bruno; RAMOS DE OLIVEIRA, Newton e ZUIN, Antonio A. Soares (Orgs.) A Educação
Danificada: contribuições à teoria crítica da educação. Petrópolis, RJ: Vozes; São Carlos, SP: Ed. da
UFSCar, 1998, p.96.
6
ADORNO, Theodor W. “A indústria cultural”. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. Tradução de
Flávio R. Kothe, Aldo Onesti e Amélia Cohn. São Paulo: Ática, 1986, p. 99.

652
Em pesquisa realizada em 2000, no âmbito do Programa internacional de
Avaliação de Alunos (Pisa) – desenvolvido e coordenado pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – os alunos brasileiros de 15
anos de idade obtiveram, na prova de leitura, a 37ª posição entre os representantes
dos 41 países participantes. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (Inep), do Ministério da Educação, nas provas de ciências e
matemática o desempenho foi ainda pior, com o Brasil ficando em penúltimo
lugar. Os resultados dos alunos brasileiros no Pisa em 2003 mostraram poucas
diferenças em relação aos que foram obtidos em 2000.7

Jean-François Mattéi no livro “A Barbárie Interior: ensaios sobre o i-mundo moderno”8


focaliza a questão da barbárie e a manifestação desta no curso da história em diferentes partes do
mundo. Num dos capítulos desta obra o autor contextualiza barbárie e educação. Neste contexto,
reportando-se ao processo de degradação da educação que atinge os países mais desenvolvidos do
mundo ocidental, em especial os Estados Unidos9, Mattéi aponta os pressupostos teóricos relativos
ao processo educacional formulados por Dewey e as derivações posteriores destes pressupostos,
como a matriz da crise da educação contemporânea.
O ponto de partida de Mattei são os estudos de Hannah Arendt relativos à crise da educação
americana, desenvolvidos para buscar uma resposta à questão: “por que o pequeno John não sabe
ler?”, nos quais a autora aponta para o que ela considera a “falência dos métodos modernos de
educação”10. Entende Mattéi que este quadro, derivou das transformações do universo escolar
implementadas com base nas premissas pedagógicas estabelecidas a partir do pensamento de
Dewey que se tornaram conhecidas sob a denominação “Escola Nova”, formulações estas que
contemplam a escola como uma miniatura da sociedade, em relação à qual, deve manter-se aberta.
Ora, ao abrir-se para a vida e para a sociedade, observa o autor, a escola traz para o seu interior os
diferentes problemas vivenciados pela sociedade, entre estes, o da violência.
Para Mattei, a escola pressupõe uma perspectiva radicalmente distinta da apontada por
Dewey; entende que, antes de abrir-se para a vida e para a sociedade, ela deve abrir-se para o
mundo (cultura) e, nesta condição, preservar-se enquanto um lugar de estudo à parte da dinâmica
social.

7
Disponível em: www.planalto.gov.br/secom/nae/Artigo_site_Sturari.pdf
8
MATTÉI, Jean-François. A Barbárie Interior: ensaios sobre o i-mundo moderno. Tradução de Isabel Maria
Loureiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
9
Entre outros aspectos Mattéi comenta a violência que ameaça as escolas americanas. Violência cujas
estatísticas registraram, em 1977, 190 mil ocorrências que atingiram 47% das escolas (quase uma em duas) e
que, muitas vezes, chega ao nível de assassinato de alunos e professores por educandos do próprio
estabelecimento escolar.
10
ARENDT, apud MATTÉI, 2002, p. 183

653
A escola não tem que se abrir ‘à vida’; muito pelo contrário, ela tem que se abrir
ao ‘mundo’; e para se abrir ao mundo permanente das obras que a história nos
lega e ao mundo comum dos homens que o espaço público nos oferece é preciso
que a escola permaneça um lugar ‘à parte’. Como haviam compreendido todos os
fundadores de escola e todos os teóricos, de Pitágoras a Platão, e de Rabelais a
Comenius ou Rousseau, a escola deve fechar-se à vida biológica (ela não é a
família) e à vida social (ela não é a cidade). (...) A vida da escola não é de forma
alguma a escola da vida.11

Embora o diagnóstico e o prognóstico esboçados na citação sejam representativos da crise


que paira sobre educação contemporânea, parece-me oportuno observar que a transição para o atual
discurso pedagógico serviu para compatibilizar o universo escolar (pós Segunda Guerra Mundial) às
demandas do capitalismo tardio. À guisa de reflexão sobre este processo observe-se que do ponto de
vista histórico, a perspectiva de emancipação do homem pela via da razão sempre esteve assentada
na determinação racional de fins últimos, isto é, ela derivava de ponderações a respeito de valores
que remetiam a determinados fins. Ora, é exatamente esta perspectiva que se perde com a
concepção de educação encampada pelo discurso pedagógico atual que enfatiza a necessidade de
desvincular a educação de “fins últimos”. Como destaca Brubacher, para Dewey o fim da educação
nada tinha a ver com algum modelo ideal previamente delineado, mas objetivava, tão somente
ajudar a criança “a resolver os problemas suscitados pelos contatos correntes, com o meio físico e
com o meio social.”12.
Assim concebido, o caráter imediatista cominado à educação adaptou-se como uma luva às
demandas do capitalismo tardio, na exata medida em que passou a fazer uso da mesma
racionalidade que lhe é específica: a racionalidade instrumental, voltada, fundamentalmente, para
adequação de meios a fins próximos. Num tal contexto, não é de estranhar que o discurso
pedagógico contemporâneo priorize o componente técnico do processo educativo, a metodologia,
ao mesmo tempo em que desloca o eixo epistemológico, da filosofia para o âmbito da ciência
experimental; com especial ênfase para a psicologia.
Para compreendermos o que significa transformar a pedagogia em ciência, o
educador em cientista prático (técnico) e o aprendizado em criação de força de
trabalho, precisamos avaliar o significado da cultura contemporânea como
poderoso agente de exclusão e de intimidação social e política. Sem isto, não
compreenderemos porque ensinar/aprender deixou de ser arte e rememoração, e
porque hoje, mais do que nunca, a cultura popular está no fim.13

11
MATTÉI, 2002, p. 187-8
12
BRUBACHER, J. S. “John Dewey”. In: CHÂTEAU, Jean (org.). Os Grandes Pedagogistas. Tradução de
Luis D Tradução de amasco Penna e J. B. Damasco Penna . São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1978, p. 286.
13
CHAUI, Marilena. “O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador”. In: BRANDÃO,
Carlos R. (Org.). O Educador: vida e morte. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983, ps. 57/8.

654
Apesar deste processo evidenciar-se de forma objetiva a partir de meados do século passado
(sob os auspícios da Escola Nova), ele evoluiu, gradativamente, no curso da história, desde os
primórdios da modernidade. Reportando-se a Descartes, Morandi observa que apesar deste filósofo
não ter tomado a educação como objeto privilegiado de sua filosofia, as implicações do “Discurso
do Método”, além de promover uma ruptura com o pensamento tradicional da época, implicou, da
mesma forma, numa ruptura com a escolástica e, conseqüentemente, numa alteração radical nos
rumos da educação da época. A nova ordem educacional que então se explicitou passou a
contemplar uma lógica distinta da anterior: “a educação se torna racional e o estudo se torna
razão”14; perspectiva esta que não escapou ao olhar arguto de Weber.
Escolas superiores, de todas as espécies, inclusive algumas superficialmente
semelhantes às nossas Universidades ou, pelo menos às nossas Academias,
existiram alhures (China, Islão). Mas, um tratamento racional (grifo nosso),
sistemático e especializado da ciência por especialistas treinados em um sentido
que se aproximasse de seu atual papel de dominância na cultura contemporânea,
não existiu senão no Ocidente.15
A modernidade educacional que assim se inicia consolida-se no final do século XVII e
início do século XVIII, quando, segundo Philippe Ariés16, em sua História social da família e da
criança, se aperfeiçoaram as transformações no espaço doméstico e na organização familiar,
diferenciando o primeiro (espaço doméstico) do espaço da educação. É neste contexto que se
evidencia a nova lógica educacional, centrada numa racionalidade de caráter instrumental, já
presente na Didática Magna de Comenius (Séc. XVII) conforme se depreende dos destaques que
Buffa explicita a respeito desta obra.
Apresenta um método para ensinar de modo fácil, sólido e rápido (p. 305), sem
perda de tempo (p.431), com economia de tempo e fadiga (p.293), com ordem e
medida (p. 182), de tal forma que, em cada ano, mês, semana, dia, hora, haja uma
tarefa a realizar (p.292). A Arte de ensinar nada mais exige que uma repartição do
tempo, das matérias, das escolas. O aluno deve aprender a fazer fazendo (p.320).
O professor deve ensinar a muitos alunos de uma só vez, dividindo-os em classes,
tendo a ajuda de chefes de turma, de monitores e, principalmente do livro
didático. (p.279-81)17

A racionalidade que subsidia o discurso pedagógico contemporâneo encontra um


equivalente na indústria cultural (empresas que cuidam da produção industrial de bens culturais), na
medida em que esta é vista por Adorno e Horkheimer como um componente intrínseco do processo

14
MORANDI, Frank. Filosofia da educação. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru, SP: EDUSC,
2002, p. 72.
15
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992, p. 3.
16
ARIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981.
17
BUFFA, Ester. “Educação e Cidadania Burguesas”. In: BUFFA, Ester et al. Educação e cidadania: quem
educa o cidadão. São Paulo: Cortez, 1987, p. 22.

655
de racionalização e coisificação inerentes às modernas sociedades. Em outras palavras, a educação
contemporânea racionalmente projetada, tanto quanto a indústria cultural, imprime à sociedade um
caráter degenerescente que degrada os espaços nos quais a verdadeira cultura poderia
espontaneamente se manifestar dando azo ao desenvolvimento da falsa consciência de que se
alimenta a cultura de massa.
Como a indústria cultural, o atual discurso pedagógico, sob a égide da racionalidade
instrumental, degrada a humanidade na exata medida em que “impede a formação de indivíduos
autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”18.
3 – As novas tecnologias.
A Organização das Nações Unidas viveu um momento insólito quando da visita do então
Ministro do Governo dos Estados Unidos Collin Powell à sede daquela instituição para convocar as
demais nações a intervirem no Iraque. Nesta ocasião o quadro de Pablo Picasso, “Guernica”,
colocado à entrada do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi encoberto com um pano. Tudo
se passou como se a denúncia contra a destruição daquela cidade da região basca e a consequente
morte de centenas de pessoas indefesas que a obra do pintor espanhol representa, fosse
absolutamente incompatível com o discurso de Powell de invasão e derrubada do poder do
governante iraquiano pois mais do que um apelo contra a barbárie, “Guernica” é também uma
denúncia do uso da técnica enquanto meio de destruição e morte. Isto pode ser claramente
percebido na figura disposta à direita na obra de Picasso, com os braços erguidos e o olhar dirigido
para o alto como se quisesse deter os aviões e as bombas por eles lançadas sobre a população
indefesa. Entretanto, a crítica mais significativa à natureza do desenvolvimento tecnológico parece-
me a dupla referência à luz que paira no alto, acima da cabeça do cavalo, representada pela lâmpada
elétrica na forma de um olho: a primeira, enquanto símbolo da força de destruição da tecnologia e a
segunda, como expressão do poder que emana das luzes da razão (Iluminismo).
É interessante notar que a condição que flui do uso da racionalidade técnica, de caráter
instrumental e se objetiva na tecnologia, enquanto viabilizadora da destruição e degradação do ser
humano se faz presente de forma recorrente na consciência dos homens em eventos que, de uma
certa forma repetem o quadro de dor que Picasso expressou em “Guernica”: quem não se
constrange com Auschwitz, com as bombas atiradas contra Hiroshima e Nagasáki, com o napalm e
armas químicas despejadas sobre o Vietnã, com o efeito das bombas teleguiadas das guerras do
Golfo? Nestes casos a percepção e a consciência da barbárie perpetrada são evidentes, daí o

18
Idem, nota nº 06.

656
constrangimento que causa; entretanto, a presença da violência derivada do uso da tecnologia nas
pequenas ações descuidadamente praticadas no dia a dia da existência humana, não é tão óbvia;
como as observadas pelo olhar atento de Adorno e descritas em diversos aforismos de Mínima
Moralia.
A tecnificação torna, entrementes, precisos e rudes os gestos e com isso os
homens. Ela expulsa das maneiras toda hesitação, toda ponderação, toda
civilidade, subordinando-as às exigências intransigentes e como que a-históricas
das coisas. Desse modo desaprende-se a fechar uma porta de maneira silenciosa,
cuidadosa e, no entanto, firme. As portas dos carros e das geladeiras são para
serem batidas, outras têm a tendência a fechar-se sobre si mesmas, incentivando
naqueles que entram o mau costume de não olhar para trás, de ignorar o interior
da casa que os acolhe. Não se faz justiça ao novo tipo de homem, se não se tem
consciência daquilo a que está incessantemente exposto pelas coisas do mundo a
seu redor, até em suas mais secretas inervações. (...) E qual o motorista que não
foi tentado pela potência do motor de seu veículo a atropelar a piolhada da rua,
pedestres, crianças e ciclistas? Nos movimentos que as máquinas exigem
daqueles que delas se servem localizam-se já a violência, os espancamentos, a
incessante progressão aos solavancos das brutalidades fascistas.19

Pode-se ponderar que argumentações como esta de Adorno, escritas na segunda metade da
década de 40 – portanto há mais meio século -, estão defasadas no tempo e, consequentemente, não
são as mais adequadas para a compreensão do que se passa na atualidade. Ledo engano; ao que
parece, a verdade contida nas observações do filósofo frankfurtiano, adquiriu maior relevância
ainda na atualidade, quando a problemática por ele aventada ganhou contornos mais objetivos,
tornando-se mais perceptível hoje, do que na época em que foi formulada. Disso, por exemplo, dá
conta a observação de Laymert Garcia dos Santos no prefácio do livro Politizar as novas
tecnologias em que aponta a necessidade de ir além da crítica à natureza da produção tecnológica o
que, a seu ver, suscita a “necessidade de se politizar completamente o debate sobre a tecnologia e as
suas relações com a ciência e com o capital.20
Ora na medida em que, as perspectivas relativas ao desenvolvimento e uso das novas
tecnologias pela sociedade humana devam ser politizadas, como sugere Garcia dos Santos, parece-
me óbvio que um procedimento desta natureza deva ser igualmente implementado na esfera da
educação dado que, muitos são os ângulos que se abrem a tal processo; aqui, procurarei, de forma

19
ADORNO, Theodor W. Mínima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luis Eduardo
Bicca. São Paulo: Ática, 1992, p. 33.
20
SANTOS, Laymert Garcia dos. . Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação
digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003,p. 11.

657
breve, abordar alguns aspectos do uso das novas tecnologias computadorizadas com finalidades
educativas.
Preliminarmente, com o intuito de encaminhar tal discussão, faço a citação de um pequeno
tópico do ensaio, “Educar é ensinar o encanto da possibilidade”, do jornalista Gilberto Dimenstein,
no qual ele registra experiências que vivenciou durante sua estada na cidade de Nova York nos
Estados Unidos, algumas delas focando as relações que permeiam a escola e as novas tecnologias
de informação.
Um dos mais ambiciosos ítens da agenda americana é que, até o final do século,
eles querem ter todas as salas de aulas dos Estados Unidos conectadas à Internet;
são feitos mutirões de jovens e adultos para instalar a fiação necessária aos
computadores. (...) A partir de então, começou a ser moldada a escola como a
conhecemos hoje, e a possibilidade de acesso à informação não pára de ganhar
novas dimensões através de engenhocas como telégrafo, telefone, rádio,
televisão, telefone sem fio, computador, TV a cabo; invenções que redefinem
noções de tempo e espaço. Antes da Internet - a rede mundial de computadores -
nunca a humanidade teria a chance de acesso a tanto conhecimento - o que, até
pouco tempo, estava restrito aos privilegiados capazes de viajar e comprar livros
importados. (...) ‘Nós não somos técnicos, somos educadores. A tecnologia tem
de estar a serviço da educação e não ao contrário’, afirma Robbie McClintock.
‘Nosso projeto é que cada indivíduo possa estudar a qualquer hora, em qualquer
lugar, obter qualquer informação’.21

Reportando-se à mesma temática, em outro artigo, que tem por título, “O fim da escola”, o
referido jornalista espreita a sua “bola de cristal” e deita falação sobre as perspectivas que se abrem
para a instituição “escola” e seus professores:
O fim da escola que aí está implicará professores treinados para atuarem
como facilitadores, transitando em várias esferas do conhecimento. As matérias
não estarão presas ao currículo definido no ano anterior, mas ao calor do
cotidiano.
Os conteúdos estarão ainda mais disponíveis em meios eletrônicos,
permitindo, graças à interatividade, que se aprenda em qualquer lugar e a
qualquer hora; receber ajuda pelo computador será tão comum quanto estar numa
sala de aula de real (sic!). (...) O mestre terá uma função que vai lembrar o
orientador de uma tese.22

Dimenstein, nestes textos, evidencia de forma objetiva o discurso de glorificação e de


marketing dos produtos e das benesses do progresso tecnológico. A tecnologia computadorizada, no
caso, assume a mesma perspectiva que se atribui ingenuamente à indústria cultural: a de ser tomada
como um fator de equalização social, como fator de democratização e acesso amplo à informação.

21
DIMENSTEIN, Gilberto. Educar é ensinar o encanto da possibilidade. Disponível em:
www.geocities.com/agbrum/newtech-papers/ensaio.rtf
22
DIMENSTEIN, Gilberto. “Folha Online – Sinapse - Gilberto Dimenstein: o fim da escola – 29/07/2003”.
Disponível em: www1.folha.uol.com.Br/folha/sinapse/ult1063u501.shtml

658
A ingenuidade está em considerar que na sociedade capitalista as pessoas caminham com seus
próprios pés, como sujeitos livres e autônomos e sem cogitar que a sociedade de consumo coisifica
os homens.
Educar é mais do que facilitar o acesso à informação; o jornalista confunde informação com
conhecimento: a informação reporta-se tão somente à comunicação de algo, portanto, exterior ao
sujeito cognoscente; ao contrário, o conhecimento é interior, de conotação subjetiva e de uma certa
forma, constituinte daquele sujeito. A parafernália tecnológica da escola americana que Dimenstein
descreve sugere muito mais uma preocupação com o ensino, entendido como um processo de
transmissão de informações, do que com a educação propriamente dita, considerada como um
processo de desenvolvimento interior, socialização e construção da subjetividade.
A opção por textos de caráter jornalístico para subsidiar esta análise não foi casual; ela se
deve ao fato de que os mesmos se apresentam como produtos típicos da indústria cultural e
enquanto tal, cumprem o desígnio inerente a todos os produtos que dela derivam: adaptar-se às
expectativas de consumo das massas e integrar aqueles que irão consumi-los. Não por acaso,
Larrosa vê na figura do jornalista um dos mais dignos representantes da semicultura, pois a seu ver,
este, no desempenho de suas funções, “se subordina às leis da moda, às demandas do mercado, ao
gosto da opinião comum. E produz afetação, auto-satisfação e opinionites, e a ilusão vaidosa de ter
uma personalidade livre e um pensamento próprio original”23
Não se trata de assumir, à priori, uma posição contrária ao uso de novas tecnologias; tudo o
que pode contribuir para o aprimoramento da humanidade é bem vindo. Entretanto, há que se ater,
primeiro, a uma questão de outra ordem: devemos proceder desta forma? Questão, cuja resposta,
exige um juízo de valor, que não se esgota unicamente no exercício da crítica mas também ao
saudável jogo político.
A cultura moderna é uma cultura letrada o que a distingue radicalmente de todas aquelas
que a precederam, de conotação oral. Nestas, a transmissão do conhecimento, fundava-se,
principalmente, na atividade de narradores que através de seus relatos perpetuavam nas novas
gerações as tradições de seu povo, os seus valores, os seus costumes e, juntamente com estes, a
concepção de mundo que lhes era própria. Num tal contexto, o saber contemplava um caráter
subjetivo, comunitário e, de um modo geral, privilegiava os órgãos da audição e da fala,

23
LARROSA, Jorge. Nietzsche & Educação. Traduzido por Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica,
2002, p. 38.

659
complementando-os através dos demais sentidos. Em nossa sociedade letrada, a formação dos
indivíduos assume uma conotação totalmente diferente, dado que a natureza do conhecimento que
ela difunde já não é mais a mesma que tinha lugar na cultura oral. A técnica da escrita, observa
Ong24, demanda o desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas específicas, cuja
explicitação gera uma nova representação do mundo: ao contrário do que se passa na cultura oral,
em que o produto da fala deve ser consumido (ouvido) simultaneamente à sua produção, com a
escrita o produto separa-se do produtor na medida em que se transforma em objeto passível de ser
consumido (lido) em diferentes lugares e tempos; esta circunstância obriga as pessoas a terem que
refinar e aperfeiçoar os processos de leitura o que exige o desenvolvimento de formas apropriadas
de conhecimento teórico e pensamento lógico, perspectiva que dá margem ao desenvolvimento de
uma subjetividade centrada numa concepção de verdade de caráter universal; o homem da
sociedade letrada, não é o mesmo homem das sociedades de tradição oral.
Ora, em nossos dias, o computador (internet, realidade virtual, hipertextos) acaba por gerar
um outro mundo cuja apropriação contempla a necessidade de uma abordagem distinta da atual e tal
como se deu na transição da cultura oral para a escrita, suscita novas concepções de mundo, de
realidade e de homem. Uma transformação de tal monta exige mais do que uma mera reflexão sobre
a viabilidade das novas tecnologias; exige que se pergunte, pelo vir a ser do mundo, da realidade e
do próprio homem. Como será este novo mundo, esta nova realidade, o novo homem? Em que eles
se converterão?
Sob a égide da racionalidade instrumental, a imbricação das novas tecnologias com a
estrutura de poder, assim como a industria cultural e o atual discurso pedagógico, degrada a
humanidade na exata medida em que “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes,
capazes de julgar e de decidir conscientemente”25.
Conclusão.
À rigor, o que chamamos “discurso pedagógico hegemônico” contempla uma séria
impropriedade dado que a pedagogia propriamente dita, não mais existe; foi substituída pelas
ciências da educação. Não se trata mais de um saber, mas de saberes - no plural -, que emanam de
diferentes áreas do conhecimento. Parafraseando Adorno, pode-se dizer que as tristes “ciências da
educação” referem-se a um domínio – pedagogia - que em outras épocas era tido como inerente à

24
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.
25
Idem, nota nº 06.

660
Filosofia, mas que desde seu apego à racionalidade técnica, o mesmo foi colocado em descrédito.
Aquilo que em outras épocas tinha a conotação de uma formação ampla do homem – Paidéia,
Bildung -, foi esvasiado; sob a égide desse discurso a educação formal se resume num mero
processo de adequação à realidade imediata e às esferas de produção e consumo, desprovido de
qualquer autonomia. Quem quiser se aproximar da verdade acerca da substituição da pedagogia
pelas “ciências da educação” tem de se ater à sua conformação alienada e investigar os interesses
que subsidiaram e continuam a subsidiar este processo.
Do ponto de vista histórico, pode parecer que o rumo do conhecimento pedagógico seguiu
um curso natural, desembocando nas “ciências da educação” como as águas de um rio percorrem
seu curso e desembocam no mar. O mar, destino das águas, as “ciências da educação”, destino da
pedagogia. Assim seria não fossem as teorias educativas resultantes de transformações sociais, se
elas fossem isentas de qualquer componente de caráter ideológico. O caráter da educação
contemporânea foi impresso a ferro e fogo pelos mesmos fatores que determinaram o caráter das
modernas sociedades contemporâneas, conformadas segundo a ótica das instâncias ideológicas que,
no jogo do poder, tornaram-se hegemônicas.
A chamada Guerra Fria, na segunda metade do século XX, foi o palco destas disputas. Mais
que um conflito entre o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos e o bloco socialista liderado
pela União Soviética, a Guerra Fria remete a um conflito entre concepções de mundo diferentes e
dicotômicas: capitalismo e socialismo; democracia e totalitarismo; liberalismo e planificação
econômica; verdadeiro e falso; bem e mal. Nenhuma nação poderia ser simultaneamente capitalista
e socialista, assim como nada pode ser simultaneamente, verdadeiro e falso, bom e ruim.
A pedagogia não se manteve à margem deste processo e de suas derivações ideológicas. No
bloco socialista, vinculou-se à ordem estatal e a pressupostos teóricos de conotação marxista. No
bloco capitalista, pautou o seu discurso em consonância com os cânones ditados pelos interesses do
capital internacional largamente difundidos no mundo todo, via organismos internacionais, que
advogam a necessidade de promover a tecnificação do processo pedagógico alicerçada em
fundamentos de ordem científica que mirando a funcionalidade assegurem a produtividade e à
racionalidade inerentes à ordem sistêmica.
O caráter funcional que hoje se atribui à educação, objetivado no discurso pedagógico
hegemônico, tem sua matriz na crença na racionalidade cogitada pela filosofia iluminista que
ensejou a concepção hegeliana de um sistema social global, racionalmente organizado. Nascido e
gestado (do ponto de vista teórico) segundo os pressupostos da razão iluminista, o modelo sistêmico
ganhou enorme relevância na organização das sociedades do mundo contemporâneo. Se Aristóteles,

661
em sua época, pode caracterizar o homem como um animal político, nas sociedades modernas do
Mundo Ocidental pode-se dizer que ele é um animal sistêmico. Com isso queremos dizer que o
modelo sistêmico contempla a realidade social do homem contemporâneo, ou seja, que a vida do
mesmo transcorre predominantemente mediada por sistemas (basta olhar em volta: supermercados,
shoppings, escolas, igrejas, hospitais, indústria, meios de comunicação, trânsito, governo etc.). O
sistema converteu-se em princípio e o mundo converteu-se em sistema.
Realmente, salta aos olhos que a imperiosidade do sistema conseguiu
invadir - sem esquecer a sua soberania em ciências puramente formais – largos
setores do mundo contemporâneo, a ponto de se poder dizer que, mais do que
nunca no passado, o homem atual vive dentro do sistema; o sistema tornou-se
como coextensivo à própria realidade social: já nem se alcança imaginar o
mundo sem essa incoercível tendência a tudo sistematizar.26

Neste contexto cabe observar que a sistematização resulta de um ato intencional voltado
para a consecução de determinados fins; há que se buscar uma integração direcionada dos
elementos que comporão o sistema, de tal forma que, em conjunto, resultem num todo orgânico; em
outras palavras, a sistematização demanda um ato intencional que outorga uma unidade ao que é
múltiplo. Esta perspectiva, a meu ver, suscita uma grande contradição, pois a sistematização, ao
conferir uma unidade ao múltiplo, transforma o que é múltiplo em uno e isto representa a
eliminação do diferente, do outro, da alteridade, de tudo o que não se integra à ordem sistêmica.
Todo sistema é redutor. A história da nossa filosofia, da nossa arte, por exemplo, são
eurocêntricas e etnocêntricas e isto significa que no curso de seu desenvolvimento cumulativo,
sistêmico e linear, tudo o mais foi deixado de lado. Não se computam as perdas que o sistema
promove; ele não é só adição, afirmação, mas também e, principalmente, subtração e negação. O
que se perde, o que fica de lado, descartado, não é um conjunto vazio – o nada - mas um conjunto
aberto ao infinito de possibilidades que poderiam vir a ser e, que, no entanto, acabam por se perder.
Sob o império da racionalidade instrumentalizada medra a irracionalidade da educação que
ela contempla; o que se vislumbra é uma “educação pequena”, tão pequena quanto a consciência
que ela suscita nos indivíduos aos quais se dirige e conforma. É a esta perspectiva que se presta a
imbricação da indústria cultural com a educação e as novas tecnologias.

26
BORNHEIM, Gerd A. “Racionalidade e Acaso”. In: Novaes, Adauto (Org.).Rede Imaginária: televisão e
democracia. São Paulo: Cia. das Letras, Sec. Mun. de Cultura, 1991, p. 43.

662
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664
POLÍTICA EDUCACIONAL INDÚSTRIA CULTURAL E SEMIFORMAÇÃO: EM
QUESTÃO OS PARAMÊTROS CURRÍCULARES

Nilce A. de Arruda Campos

No Brasil, a expansão da escola, pós anos 50, ocorreu de forma acelerada sem,
entretanto, a garantia de uma distribuição eficiente dos serviços oferecidos pelo Estado. Tal fato
gerou uma crise no sistema educacional brasileiro cujas causas principais seriam a
improdutividade das práticas pedagógicas e a incompetência generalizada. A qualidade do
ensino, dessa maneira, passou a depender de mudanças nas práticas pedagógicas, visando a sua
maior eficiência, e, da promoção de uma reestruturação do sistema para flexibilizar a oferta
educacional.
A educação foi, desse modo, transferida de modo definitivo da esfera política para a
esfera do mercado, perdendo seu caráter de direito social e reduzindo-se a condição de
propriedade, de mercadoria que pode ser vendida e consumida. Assim, democratizar a escola
implicou na realização de reformas administrativas do sistema escolar, que regulassem a
qualidade dos serviços educacionais, colocando-os, de fato, a serviço do mercado.
Após o término do regime militar, no âmbito das políticas educacionais, foram
elaborados vários diagnósticos que redundaram nas propostas políticas que vêem orientado as
reformas educacionais firmadas a partir de 96. Tais diagnósticos partiram do princípio de que os
sistemas educacionais enfrentam uma crise de eficiência e produtividade. Essa crise só poderia
ser superada a partir de uma radical reforma administrativa no sistema escolar, orientada para a
transformação do mesmo em organizações que garantam tal eficiência e qualidade aos serviços
educacionais. Sob esta lógica, promover a qualidade do ensino significaria promover reformas
que redundariam em mudanças nas práticas pedagógicas, tornando-as, supostamente, mais
eficientes, e, promover uma reestruturação do sistema para dar maleabilidade à oferta
educacional.

Desse modo, as reformas econômicas se desenvolveram sob o impacto do


neoliberalismo e concretizaram a dimensão educacional enquanto um dos braços da indústria
cultural, promovendo, de maneira oficial e ainda sob a égide de uma pretensa democratização da
escola, a total desintegração da formação cultural dos indivíduos através da progressiva
massificação do ensino. Tal fenômeno fez com que chegassem à escola, alunos e professores
menos capazes e, às vezes, sem nenhum interesse acadêmico. Com eles, os padrões clássicos de

665
ensino não mais funcionam e o ensino passa a ser substituído pelos métodos ativos que abrem
mão da figura do professor.

Se a democratização da cultura tinha como precondição a idéia de que os bens culturais


eram direito de todos, e não de alguns, com a massificação da cultura através do ensino cria-se a
ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais. O que predomina, a partir de então, é
a fragmentação do conhecimento em informações que impedem a experiência e a autonomia e
levam aos modos irrefletidos de lidar com a realidade.

Assim, com o avanço do capitalismo monopolista nas duas últimas décadas do século
passado, a relação entre os objetivos preconizados para a educação brasileira e o movimento de
concretização da totalidade social veio se tornando cada vez mais imediata, ou seja, a educação,
enquanto finalidade primeira da escola passou a ser subsumida pelos mecanismos da indústria
cultural que, nesse caso, age insidiosamente sobre a padronização dos eventos culturais e sobre
a racionalização da sua distribuição.

Se conforme Adorno (1996) a idéia de formação cultural traz, como condições para se
realizar, a autonomia e a liberdade do espírito, com o advento da indústria cultural tais
condições foram canceladas. A autonomia cedeu lugar à heteronomia do pensamento adestrado,
a partir do contato com o lixo cultural de toda espécie, produzido pela indústria: anúncios
publicitários, novelas, programas de auditórios e, também, a partir do contato com as chamadas
novas tecnologias de ensino, dentre as quais o computador.

Essa constatação significa que a tão almejada democratização da cultura, por meio do
acesso de todos aos bancos escolares, ou mesmo a programas de educação à distância, tornou-se
hoje, mais do que nunca, um slogan político falso que deve ser levado em conta.

Foi exatamente a preocupação com as problemáticas educacionais que me levou a tentar


observar se os atuais parâmetros curriculares, quando inseridos no contexto do cotidiano
escolar, propiciam o contato da escola com os produtos da indústria cultural e de observar o
modo como esse processo se relaciona com a temática do fracasso escolar encontrado nas
instituições de ensino. Foi esse desafio que marcou minha trajetória como supervisora de
estágio, vinculada em regime de tempo integral à Universidade Metodista de Piracicaba.

Durante essa trajetória, a inserção no cotidiano das instituições de ensino, bem como a
constante intervenção realizada na forma de assessoria junto às instâncias hierárquicas, como a

666
Delegacia de Ensino1 e a Secretaria da Educação do Município, indicaram a necessidade de
analisarmos a política educacional que passou a vigorar na década de 90 e, ao mesmo tempo,
permitiram aferirmos como o sistema educacional de Piracicaba se colocava sob essas novas
determinações.

Pudemos observar que as escolas foram inserindo, no cotidiano institucional, as


diretrizes curriculares que proclamavam o “aprendizado pelo fazer”, o “aprender a aprender”,
“o ensino centrado na criança”2. Constatamos que, pouco a pouco, na relação
ensino/aprendizagem a tradicional dimensão do ensino, propriamente dita, desapareceu,
acarretando a transformação das escolas em instituições que ensinam a arte de viver, mas
impedem as possibilidades do saber.

Deparamo-nos com uma realidade na qual as diretrizes políticas, através dos parâmetros
curriculares, ao atingirem o cotidiano escolar, (des)organiza-o, sob a lógica da dissimulação,
segundo a qual reprovações se transformam em falsas aprovações, pedagogia construtivista em
receitas metodológicas e educação em deseducação.

Verificamos como a massificação do ensino, ao se generalizar para todos os estratos


sociais, parece haver surrupiado o esforço criativo de administradores, de professores e de
funcionários nas escolas, aniquilando, pouco a pouco, as chances de a educação possibilitar uma
formação voltada ao desenvolvimento do indivíduo, decompondo ou comprometendo a fruição
de subjetividades criativas e críticas, minimamente desejáveis numa sociedade realmente
democrática.

Verificamos, ainda, que o despreparo dos profissionais da Educação possibilita a adesão,


sem questionamentos, às novas diretrizes curriculares e à política da aparência por elas geradas.
Essas diretrizes, como vimos, visam abalizar a Educação pelas necessidades do mercado e
fazem com que haja um nível cultural próximo entre todos, professores e alunos, tornando os
primeiros facilmente substituíveis, pois nada os distingue de outros modos de informar, como,
por exemplo, os telecursos, desenvolvidos via redes de televisão.
Por outro lado, essa padronização no modo de agir dos profissionais da Educação
exige apenas o básico, para que professores e dirigentes se adaptem às exigências da realidade
escolar. Desse modo, encontramos professores, formados em cursos de 3º grau, imobilizados
diante de crianças de sete anos, ingressantes na 1ª série, por não saberem o que fazer para
motivá-las a prestarem atenção, e professores atônitos perante as mais simples solicitações,

1
Hoje denominada Diretoria de Ensino.
2
São os jargões encontrados nas atuais diretrizes curriculares do MEC.

667
como, por exemplo, a de que façam um plano de aula coerente com o tema escolhido nos
HTPCs, para a semana.
Observamos que o gradual e crescente despreparo desses profissionais torna-os
cada vez mais dispensáveis, o que, em parte, explica a alta rotatividade com que passam pela
escola e a imensa incapacidade crítica, que denotam, perante a realidade institucional. Não é
por acaso que, na rede estadual e na municipal, os professores acabem por aderir ao chamado
método construtivista3, sem o conhecimento dos pressupostos que embasam essa concepção. A
opção pelo construtivismo, como a que constatamos na escola, num momento de
internacionalização do capital e de administração da sociedade, como o que acompanhou as
últimas reformas na Educação, significa a negação da diferença, regida por um discurso
neoliberal.
Pode-se dizer que o surgimento do discurso neoliberal, com a terminologia que o
acompanha – qualidade total, formação polivalente, flexibilidade, participação e autonomia –
expressa a identidade totalizante da sociedade e provoca maior atomização no sistema
educacional, superficializando ainda mais os conhecimentos escolares e exacerbando o
processo de alienação dos indivíduos.
Não é por acaso que, na realidade da escola, encontramos alguns professores que,
incapazes de discernir a melhor opção para os próprios alunos, defendiam com unhas e dentes as
tendências pedagógicas ditadas pelos parâmetros curriculares, como bem exemplifica a
professora que se autodenominava “superconstrutivista” e que utilizava o argumento da
autonomia da criança no acesso ao saber, como resposta natural para o fato de seus alunos, no
final da 2ª série, não estarem ainda alfabetizados.
Os princípios e diretrizes fixados pelos parâmetros curriculares, nas últimas
reformas da política educacional, acentuaram, nas instituições de ensino, a responsabilidade pela
sedimentação, nos diferentes estratos sociais, de um conhecimento superficial e acrítico sobre a
realidade.
Assim, as intervenções realizadas no cotidiano da escola atestaram um quadro
educacional bastante caótico, que se coloca para além da instituição em foco, e se generaliza
para as demais escolas da cidade, o que, infelizmente, representa pistas sobre a decadência do
ensino, público e privado, no país.
Enfrentamos uma crise na educação, característica das sociedades de massa, em
que a promessa de democratização da cultura se traduziu na progressiva deterioração na

3
O construtivismo esta sendo oficialmente propagado no Estado de São Paulo desde 1983 e era comum professores o
denominarem como método. Porém, após os diversos cursos de aperfeiçoamento promovidos pela Secretaria de Educação ficou
generalizada à informação que, por se basear na teoria de Jean Piaget, não poderia ser chamado de método. Entretanto, nas escolas
investigadas a partir de 1997, públicas e particulares, era comum os professores e coordenadores se referiram à prática
educacional,desenvolvida junto às crianças, como uma prática pautada no método construtivista.

668
formação dos indivíduos e no crescente despreparo dos professores que se tornam cada vez mais
baldios.
A partir das análises realizadas pudemos constatar que nas próprias diretrizes
educacionais se encontra o âmago do processo da semiformação socializada. As práticas
pedagógicas que delas derivam colaboram para deturpar o processo ensino-aprendizagem, pois
no que tange ao ensino os parâmetros curriculares –ao descartarem a autoridade do professor –
permitem que os meios de comunicação de massa passem a ser os principais mediadores no
processo de aprendizagem dos alunos e no que se refere à aprendizagem, ao colocarem as
crianças como agente desse processo tendem facilitar a inserção dos produtos semiculturais
trazidos pelos alunos no cotidiano da sala de aula e em conseqüência, banalizam o
conhecimento.
Nessa perspectiva as diretrizes curriculares ao retirarem do professor a possibilidade de
uma atuação profissional responsável, na qual possa ser o mediador da transmissão do
conhecimento acumulado pela humanidade, converte-o em mero informante sobre os mais
variados assuntos. Com relação aos alunos, dificulta-lhes o acesso aos bens culturais que
poderiam contribuir para uma formação mais sólida em que ocorra o desenvolvimento do
raciocínio crítico necessário á percepção das contradições da realidade, e para a ação de
resistência ao avassalador processo de integração a que todos estamos submetidos.
Observamos que a formação de má qualidade, hoje predominante em termos da
formação cultural dos indivíduos, agregada a desorientação pedagógica trazida pelas reformas
educacionais, parece estar gerando ainda mais dificuldades e equívocos na prática pedagógica
dos professores que acabam fazendo uma composição das diversas teorias, ora se dizendo
construtivistas, ora se dizendo sócio-interacionistas
Pode-se dizer que o sistema educacional, sob a lógica da administração neoliberal da
sociedade, refletidas nos parâmetros curriculares, vem corroborar a massificação e a decadência
do processo educacional de todo o país, acentuando o processo de semiformação.
Independentemente das medidas usadas para estabelecer a desigualdade social, característica do
sistema capitalista, as reformas que vêm sendo promovidas atingiram de maneira perversa, em
maior ou menor graus, os diferentes estratos sociais da população escolar, tanto pública como
privada.
A realidade encontrada principalmente nas escolas públicas mostra-nos a
perversidade do processo de massificação do ensino, que generaliza a semiformação e aumenta
a dominação, danificando a possibilidade do desenvolvimento da autonomia, danificando a
possibilidade de existência de subjetividades. Ao apologizar a lógica do mercado, da indústria,

669
da ciência e da técnica, uma Educação assim concebida termina por impossibilitar o
dimensionamento das conseqüências anti-humanas dessa mesma lógica.
Podemos afirmar que a magnitude do fenômeno da massificação das consciências, via
indústria cultural, se tornou um dos principais problemas da Educação brasileira. Sabemos que
justificar a problemática educacional, simplesmente, como uma questão de exclusão social
deixa de fazer sentido numa realidade em que a violência do processo de desindividuação
mostra sua face mais perversa: a de total adaptação de todos ao todo.
Refletindo sobre as afirmações de Adorno, observamos que um caminho possível para a
prática seria o de possibilitar que a Educação se torne uma Educação para a resistência. Assim,
tentar impedir o sistema capitalista de eliminar as diferenças, tornando tudo equivalente,
uniformizado através de modelos de ação que pressupõe técnica e previsibilidade para o
controle social, torna-se a meta dessas ações, mesmo que de antemão fadadas ao reinício
constante.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o espaço da escola é um espaço importante de
intervenção na realidade porque, na escola, prolifera a existência de um processo de
degeneração da formação educativa do ser humano, que necessita ser trabalhado, para que o
esclarecimento possa ter chance de emergir como forma de resistência à aniquilação da
possibilidade de afirmação do indivíduo e da própria cultura.
Enfim, observamos que a formação de má qualidade, hoje predominante em termos da
formação cultural dos indivíduos, agregada a desorientação pedagógica trazida pelas reformas
educacionais, parece estar gerando ainda mais dificuldades e equívocos na prática pedagógica
dos professores que acabam fazendo uma composição das diversas teorias, ora se dizendo
construtivistas, ora se dizendo sócio-interacionistas4.
Podemos afirmar que a dominação através da indústria cultural, por ser um dos mais
perversos mecanismos da sociedade administrada, tem que ser enfrentada de uma maneira ou de
outra, por todo e qualquer esforço educativo. Os psicólogos, assim como os outros profissionais
ligados à Educação, não podem desconhecer essa “superdeseducação”, que se alastra e a tudo
invade. Ignorá-la, sob qualquer pretexto, é dessensibilização, é deixar de lado a possibilidade de
resistir a esse processo.

4
Falar acerca da tendência construtivista e sócio-interacionista adotada pela política educacional
a partir da publicação pelo governo federal dos parâmetros curriculares nacional em 1997.

670
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671
INDÚSTRIA CULTURAL E LITERATURA DOS MUNDOS: REFLEXÕES
PARA ALÉM DE DISCIPLINA

Osmar de Souza (Universidade Regional de Blumenau-FURB- PPGE)


Pablo Varela Branco (Universidade de Jaraguá do Sul- Unerj)

A literatura pode ser vista como disciplina acadêmica e neste sentido justificam-se expressões
como Literatura Brasileira, Portuguesa, Alemã e/ou como um campo de conhecimento muito
diversificado, em que já não cabem delimitações nacionais ou supranacionais e mesmo
temáticas. Neste, a compreensão de arte antecede a qualquer vinculação espacio-temporal. Esta
é uma conclusão e um desdobramento de uma pesquisa desenvolvida com estudantes de Letras
de duas universidades no Sul do Brasil. Conclusão, porque tornou-se recorrente no instrumento
aplicado a referência à literatura como disciplina acadêmica com uma determinada concepção
mais cronológica, classificatória e pouca formulação na direção de literatura enquanto um dos
campos da Arte. O desdobramento se materializa na proposta de comunicação para o evento”
Congresso Internacional “A Indústria Cultural hoje”. Objetiva expandir justamente o
entendimento de literatura para além das fronteiras acadêmicas, tendo como orientação teórica
de um lado a expressão “indústria cultural, empregada pela primeira vez em 1947 por
Horkheimer e Adorno e por outro a formulação “uma história diversa: mapa da literatura
mundial, do italiano Armando Gnisci. É o próprio Adorno que, em 1962, em conferências
radiofônicas, estabelece uma distinção entre “indústria cultural” e “cultura de massa”. Esta
atende aos interesses de quem detém os veículos de comunicação de massa; aquela acaba
determinando o próprio consumo. A arte, em sentido mais amplo, a literatura no sentido
específico, vêem-se atravessadas pelas implicações da “indústria cultural”.

Palavras-chave: Indústria cultural; literatura; história diversa;disciplina;conhecimento.

INTRODUÇÃO

Esta comunicação nasce de uma pesquisa desenvolvida com estudantes de Letras de duas
universidades de Santa Catarina. Focalizou os efeitos de sentidos que o ensino de literatura
permitiu aos estudantes em seu processo de formação. Duas convergências foram aparecendo:
um entendimento de literatura como disciplina e o papel desempenhado pelos professores, como
uma certa sedução.

672
Inicialmente, discute-se esta possível oposição entre literatura como disciplina e como campo de
conhecimento, neste caso, deslocado para uma categoria mais ampla, a arte. O que afinal define
literatura, em sentido strito, para distingui-la de outras produções culturais no mundo ou de uma
sociedade. O segundo movimento vai encontrar o núcleo deste evento, a questão da “Indústria
Cultural”, tal como proposta por Horkheimer e Adorno e a da “Literatura dos mundos”,
explicitada pelo italiano Armando Gnisci, fazendo-se conexões entre as duas expressões. Em
seguida, examinam-se algumas formulações de acadêmicos e suas implicações como disciplina
e como campo de conhecimento.

LITERATURA COMO DISCIPLINA X CAMPO DE CONHECIMENTO

É sempre complexo começar uma discussão pelo que diz um dicionário comum. Entende-se um
dicionário como o Aurélio sistematizador de saberes cotidianos, acadêmicos ou não. É dele que
se extraem predicações da palavra literatura para iniciar este tópico (Ferreira, 2004, p. 1220).
Literatura tem as seguintes possibilidades: 1- arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em
prosa e verso; 2- o conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época; 3- os homens de
letras; 4- a vida literária; 5- a carreira das letras; 6- conjunto de conhecimentos relativos às obras
ou aos autores literários; 7- qualquer dos usos estéticos da linguagem; 8- irrealidade, ficção.

A primeira predicação remete à produção, ao ato de escrever literatura, num sentido sartreano,
como se verá adiante. É interessante observar que das oito formulações, as que mais se
aproximam de disciplina são a segunda e a sexta. As demais lembram construções sócio-
culturais muito mais amplas. Vão além da escola ou da Academia e de limites espácio-
temporais.

Como disciplina, talvez a definição de Jullien, apud Castagnino ( 1969, p. 20-21) possa ser
ilustrativa: “Compreende-se sob o nome de literatura a reunião de um conjunto de obras, em
prosa e verso. Esta palavra significava primitivamente, o alfabeto e a arte de desenhar as letras.
Aplicava-se também à gramática propriamente dita e depois aos conhecimentos literários em
geral. Finalmente, e por excelência, às obras literárias das quais se pode honrar uma nação.” Há
acadêmicos na pesquisa que se referem a este sentido.

Como uma área de conhecimento, o mesmo Castagnino ( p.41) recorre a Goethe que cria o
termo “sinfronismo”, para definir literatura, ou seja, “a coincidência espiritual, de estilo, de

673
módulo vital, entre o homem de uma época e os de todas as épocas, dos próximos aos dispersos
no tempo e no espaço. Este autor vê a literatura ainda como função lúdica e o faz remeter a
Kant, Schiller, entre outros, o que aponta a literatura para fronteiras muito mais amplas que
quaisquer tentativas de enquadramento ou classificação, já procedendo neste trabalho uma
primeira reflexão a partir de Horkheimer e Adorno (1969).

Uma terceira explicação é a literatura como catarse e terapia. Diz Castagnino (1969, p. 105)”o
termo evasão projeta na literatura amplos matizes: cura, catarse, asilo, refúgio, substituto ou
compensação, aturdimento, esquecimento, alienação, transposição de personalidade; fuga,
êxtase; cada um deles particularmente e todos em geral válidos em sua circunstância.” O
conjunto desta formulação pode confundir o leitor porque tanto apontaria para a hoje presente
literatura de auto-ajuda ( cura), como à indignação ( aturdimento).

Outra explicitação é a da literatura como compromisso, o que vem sendo chamado na literatura
e na arte no Brasil de uma maneira geral como “literatura engajada”. A página 141, Castagnino
diz: “entendem a literatura como um apostolado, como uma mensagem para a época, como um
compromisso para com ela, como condução, como responsabilidade”. Nessas duas últimas
afirmações, poder-se-ia questionar: como ficaria o escritor diante da “indústria cultural”? Ou,
como propõe Carreira (2006), referindo-se a Salman Rushdie, como fugir à dicotomia
“centro/periferia”, na tradição literária?

Adiante, na página 162, o autor completa: “o ‘compromisso’existencialista faz da literatura


uma mensagem, mas uma mensagem que busca a imposição, o envolvimento, a militância
ativa”. Não deixa de ser um efeito de sentido próximo ao engajamento.

Finalmente, a literatura pode ser vista, ainda de acordo com o mesmo autor, p. 172, como ânsia
de imortalidade. Vê isso sob cinco aspectos: como imortalidade que atinge a obra e o autor;
como projeção de formas vitais para o futuro; como sobrevivência; como sentido do histórico;
como sonho ou ambição de assemelhar-se a Deus ou de participar do Divino. Conclui que todas
as predicações são satisfatórias de seu ângulo de enfoque, mas nenhuma engloba a totalidade do
problema. Constata que” todas falam a linguagem do fato dinâmico, todas entendem a literatura
como algo inerente ao indivíduo, algo que parte essencialmente dele e requer um inalienável
fundo de vida. Depois, por ser ela mesma vida, sofre as alternativas vitais que vão da euforia à
enfermidade, da pureza ao pecado, da inocência à culpa, da plenitude à morte”.( p. 207)

674
A sumarização acima referida a Castagnino relaciona-se muito mais à constituição humana em
termos de formação simbólica e muito pouco como componente de disciplinas.

Sartre (1989, p. 13) distingue a arte de escrever literatura das demais artes. Lida-se com os
significados. Distingue o império dos signos como a prosa e o império da poesia que se
assemelha à pintura, à escultura e à música. Diz textualmente: “na verdade, a poesia não se
serve de palavras; ela as serve”. Na página seguinte observa: “o falante está em situação na
linguagem, investido pelas palavras; são os prolongamentos de seus sentidos, suas pinças, suas
antenas, seus óculos; ele as manipula a partir de dentro, sente-as como sente seu corpo, está
rodeado por um corpo verbal do qual mal tem consciência e que estende sua ação sobre o
mundo”.

Na segunda parte do livro, o autor se pergunta por que escrever? Ele mesmo vê inicialmente
duas razões: como fuga e como conquista. Como fuga pode-ser a um claustro, à loucura, à
morte; como conquista, pode ser pelas armas. Para Sartre, é em nome da própria opção de
escrever que se deve exigir engajamento dos escritores. À página 34, defende que um dos
principais motivos da criação artística é a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao
mundo. Na página seguinte, diz que “o objeto literário é um pião, que só existe em movimento.
Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto
essa leitura durar”.

Na terceira parte, pergunta-se para quem se escreve? Para Sartre, página 55 e seguintes,
pareceria simples responder: “escreve-se para o leitor universal”. Mas este é ideal. Completa: “o
escritor sabe que fala a liberdades atoladas, mascaradas, indisponíveis; sua própria liberdade não
é assim tão pura, é preciso que ele a limpe; é também para limpá-la que ele escreve[...]( p.55) a
própria liberdade parece um galho seco: tal como o mar, ela sempre recomeça; não é nada mais
do que o movimento pelo qual perpetuamente nos desprendemos e nos libertamos. Não existe
liberdade dada; é preciso conquistar junto consigo e com os outros homens. Mas o que conta,
neste caso, é a figura singular do obstáculo a vencer, da resistência a superar; é ela que dá,
em cada circunstância, sua feição à liberdade. Depende do que o escritor quiser dizer, tolices ou
criar incômodos”.

Adiante, página 65, afirma que “o escritor consome e não produz, mesmo que tenha decidido
servir com os seus escritos aos interesses da comunidade. Suas obras permanecem gratuitas,
portanto inestimáveis; seu valor de mercado é fixado arbitrariamente.” Completa esta terceira

675
parte, utopicamente, dizendo: “numa sociedade sem classes, sem ditadura e sem estabilidade, a
literatura completaria a tomada de consciência de si mesma; compreenderia que forma e fundo,
público e tema são idênticos, que a liberdade formal de dizer e a liberdade material de fazer se
completam, e que se deve utilizar uma para exigir a outra; compreenderia que a literatura
manifesta tanto melhor a subjetividade do indivíduo quanto mais profundamente traduz as
exigências coletivas, e reciprocamente; que a sua função é exprimir o universal concreto para o
universal concreto, e a sua finalidade é apelar à liberdade dos homens para que realizem e
mantenham o reino da liberdade humana.”

Sartre distingue o escritor burguês, por essência o francês, porque nasceu burguês e permaneceu
burguês, em oposição ao de outras regiões,que nasce mecânico, agricultor e torna-se escritor. À
página 178, afirma:’o livro ainda é a infantaria pesada que limpa e ocupa terreno. Mas a
literatura dispõe de aviões, de bombas, que vão longe, inquietam e afligem, sem levar a uma
decisão.” Observa que “o propósito de muitos autores foi destruir as palavras, como o dos
surrealistas foi destruir ao mesmo tempo o sujeito e o objeto: foi o ponto extremo da literatura
de consumo. Mas hoje é preciso construir[...] nosso primeiro dever de escritor é, pois,
restabelecer a linguagem em sua dignidade. Afinal, é com palavras que pensamos”(p.208)

E conclui: “nada nos garante que a literatura seja imortal; hoje a sua chance, a sua única chance,
é a chance da Europa, do socialismo, da democracia, da paz. É preciso tentá-la; se nós, os
escritores, a perdermos, tanto pior para nós. Mas também tanto pior para a sociedade. Através
da literatura, conforme mostrei, a coletividade passa à reflexão e a à mediação, adquire uma
consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente
modificar e aperfeiçoar. Mas, afinal, a arte de escrever não é protegida pelos decretos imutáveis
da Providência; ela é o que os homens dela fazem, elas a escolhem, ao se escolherem. Se a
literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia
no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes.
Certamente, nada disso é importante; o mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas
pode passar ainda melhor sem o homem.”(p. 218)

As provocações de Sartre por si só mereceriam outra comunicação, mas remetem muito mais a
inquietações no processo de humanização, cujas respostas as disciplinas até abrem caminhos,
mas nem são necessárias, tampouco suficientes.

676
Auerbach (1972, p.31) fala que “a História ( da literatura) é uma tentativa de reconstrução dos
fenômenos no seu desenvolvimento, no próprio espírito que os anima, e desejamos que o
historiador da literatura explique como determinado fenômeno literário pôde nascer, seja por
influências antecedentes, seja pela situação social, histórica e política de onde se originou, seja
pelo gênio peculiar de seu autor, e neste último caso, exigimos que nos faça sentir as raízes
biográficas e psicológicas desse gênio peculiar. Mas o autor completa que”a compreensão da
variedade das diferentes civilizações e épocas, o sentido histórico e métodos mais exatos para
estabelecer etapas de desenvolvimento lhes faziam falta”. Do ponto de vista político, diz o
autor, é na Idade Média que os povos europeus adquirem pouco a pouco a sua fisionomia e sua
consciência nacionais.(p.103) Do ponto de vista religioso, a Idade Média foi a do apogeu da
igreja católica na Europa. Mas houve muitas divergências e surgimento de pensamentos
considerados “heréticos”. O que permitiu a conservação da supremacia, segundo o autor, foi a
sua “elasticidade, que lhe permitiu incorporar a si e conciliar os sistemas filosóficos e científicos
mais diversos; restringindo-se a um pequeno número de dogmas, deixou ela muita liberdade à
interpretação, à fantasia popular, às visões místicas e às diferenças regionais do culto”.(p.105)

Talvez a formulação deste autor esteja apontando para a ambigüidade entre uma perspectiva
européia e a “crioulização”da literatura, a ser explicada mais adiante. Por outro lado, embora
possa remeter a espaços históricos marcados, deixa brechas para uma compreensão das
formações do pensamento humano e que, portanto, exigiria pelo menos tratamento
pluridisciplinar.

INDÚSTRIA CULTURAL E LITERATURA DOS MUNDOS

“Indústria Cultural”é uma expressão formulada por Adorno. Segundo a sumarização na coleção
“Os Pensadores”, da Nova Cultural, remonta a 1947, sua gênese, por ocasião da publicação da
Dialética do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Na mesma sumarização, explicita-se que
Adorno, em conferências radiofônicas, em 1962, distinguia “cultura de massa” de “indústria
cultural”. Para ele, esta determina o consumo; aquela apenas satisfaz aos interesses dos
detentores dos veículos de comunicação de massa.

Pucci (2003), fazendo uma síntese crítica do pensamento de Adorno considera que, antes de
filósofo, este foi músico, em termos quantitativos. Mas conseguiu evitar que houvesse
dependência entre filosofia e música. Preferiu explorar o aperfeiçoamento, a exposição e a

677
densidade tanto da música quanto da filosofia. Sempre numa lógica determinada pelas leis do
mercado, procura criticar a submissão da música a tal lógica, orientado por princípios da
filosofia em movimento.

Para esta comunicação, sumarizam-se algumas reflexões do artigo “A indústria cultural: o


iluminismo como mistificação das massas”, publicado em 1969, numa coletânea dedicada à
indústria cultural, escrito por Horkheimer e Adorno. O foco dos autores no artigo é o rádio e o
cinema. Ambos, para eles, autodefinem-se como indústrias, classificam-se e se organizam em
função de consumidores. A literatura, como as demais artes, segue lógica similar?

Se com o Romantismo nasce o prisma do particular, da singularidade, da expressão autônoma,


para os autores, isso acaba com a “indústria cultural”. A vida não mais se distingue dos artefatos
culturais, um filme é continuidade da vida, assim um livro, uma tela. Imitação, tomada num
sentido bem literal, acaba norteando as artes. Uma pista para isso é a negação da “progressiva
descoberta”, que teria marcado as grandes obras de arte.

Ainda parafraseando os autores, as obras de arte de ascéticas e sem pudor, com a “indústria
cultural”, passam a pornográficas e pudicas. Por isso, a “indústria cultural”realiza o homem
como ser genérico. O princípio da individualidade, que sempre foi contraditório, nunca chegou
a uma verdadeira individualização, nomeadamente com a “indústria cultural”.

Ainda de acordo com os autores, o princípio socrático de que o belo é o útil se cumpre, mas por
caminhos contraditórios, justamente porque a arte deveria liberar o homem do princípio da
utilidade. Além disso, o valor de troca se impõe ao do uso; o prazer estético cede lugar ao tomar
parte, estar em dia; a compreensão vem substituída pelo prestígio. “Estar em dia”, num processo
de formação de profissionais que já lidam ou vão lidar com linguagem, corre o risco de reduzir a
literatura a algo de consumo, como os dois filósofos descrevem.

Por ser um produto a ser consumido, a arte se transforma como bem acessível a todos, como os
parques. Ocorre um verdadeiro processo de simplificação, em que o verniz biográfico acaba
predominando, completam. Como conseqüência, desaparece a crítica e o respeito. Prevalece o
culto efêmero da celebridade. A literatura estudada nas escolas e na universidade pode ficar
circunscrita ao que os autores denominam “perfil biográfico”.

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A publicidade torna-se a arte por excelência, compilação de biografias baratas. A técnica se
torna psicotécnica, manejo dos homens, subjugação do cliente. A escola, particularmente a
Academia, tem estratégias para romper a psicotecnia?

À medida que a linguagem se torna comunicação, para eles, torna-se signo privado de
qualidade. A palavra nem designa, nem significa, torna-se fórmula, camisa de força para o
desejo. Usam-se palavras e expressões sem a mínima compreensão. O que dizer de exercício
interpretativos propostos por livros didáticos, para o ensino médio, em que o aluno praticamente
ingressa no universo da literatura, como disciplina, embora possa ter vivido experiências
literárias antes disso.

Especificamente no campo da literatura , sumarizam-se algumas contribuições de Gnisci (2006),


professor de Literatura Comparada da Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo
encontrado na revista Literatura e Cultura. O autor começa problematizando o conceito de
“literatura européia”. Considera-o um mito, que gera outro, entre outros, como o de “literatura
mundial e/ou universal”. Para ele, este mito se relaciona ao processo de “imperialismo
colonial”, que se transforma, após a segunda Guerra Mundial, no “imperialismo da
globalização”, guiado pelos Estado Unidos da América. Textualmente diz: “Antes, existiam as
literaturas européias dos países imperialistas que invadiram e colonizaram os outros mundos
através de suas línguas. Hoje, existe uma ‘literatura global’ que é aquela unificada pelo mercado
global e pela indústria de cultura de massa, e outra chamada de “literatura dos mundos”,
caracterizada pela escolha de palavra e posição comum e traduzível dos diversos mundos, os
quais não querem ser assimilados pelo mercado único de todas as mercadorias nem traduzidos
em uma única língua, na qual todas as outras devem ser perder”.

Adiante o autor explicita o entendimento de literatura dos mundos: “Uma nova literatura dos
mundos forma uma rede planetária de conhecimentos e reconhecimentos, de traduções e de
múltiplas reciprocidades[...]opõe-se à globalização da cultura de massa e do mercado único
euro-norte-americano: ela é alternativa e utópica e pretende transformar-se em uma zona móvel
e incontrolável, imprevisível[...] de diálogo entre os mundos, e em sujeito expressivo e
evolutivo da comunicação dos sentidos e do nivelamento não violento das culturas”. E
completa: “esse novo conceito literário escapa às teorizações essencialistas e paradigmáticas,
típicas da tradição européia[...] opõe-se a um ‘conhecimento historiográfico’, por ser ‘uma
história diversa e apenas no início[...] tem um projeto de aventura, que luta e sustenta que é
possível um outro mundo’”.

679
Ampliando sua argumentação acerca do conceito de “literatura européia”, traz autores como
Curtius, para quem a expressão não passa de mera abstração e nada mais significa do que um
objeto acadêmico, didático. Por outro lado, ao conceber a história diversa, Gnisci sustenta que é
necessário reaproximar a história política à história literária de modo a dar vida a um
verdadeiro”estudo cultural”. “plural e complexo”. Isso levaria à “descolonização européia”.

O autor reconhece a vinculação das literaturas ocidentais na criação em outras. Afirma: “as
literaturas ocidentais deram impulso ao nascimento das literaturas extra-européias em línguas
também ocidentais que, ao interno de suas próprias línguas, interagiram com aquelas
metropolitanas, as invadiram e as transformaram, as converteram e as “crioulizaram”. Por isso,
propõe uma história literária política que poderia mostrar uma corrente diversa do ‘main stream’
imperial e depois global: uma corrente de descolonização ‘espiritual’ e política, do ponto de
vista metodológico e pelo seu valor “anti-imperialista”.

Para o autor, em tempos de Internet, de guerra humanitária, de mercado livre, prefere “sustentar
que precisamente hoje a falta de uma linguagem e de uma praxe de rebelião intelectual e civil
constitui uma das formas mais agudas de sofrimento para quem é oprimido e para aquele que
procurar encontrar uma porta de saída, ou pelo menos um clarão nas paredes escuras da
caverna.”

Conclui” a literatura dos mundos não é mais uma ‘concessão romântica’[...], mas um colóquio
plural e contínuo de quem quer inventar o futuro e o faz a favor dos 100% da humanidade, sem
imposição ideológica, pretensão de recompensas[...] é singular, não porque seja unificada, mas
porque revela a capacidade da literatura traduzir-se e traduzir os mundos, a pluralidade dos
discursos e das culturas que se aliam contra a globalização e que mantêm entre si um diálogo
aberto através das migrações, das hibridações, das mestiçagens[...]

Literatura, sob esta ótica, assume uma perspectiva política que une resistências e utopias.

A MATERIALIDADE DA PESQUISA

Nesta seção, apresentam-se formulações dos acadêmicos, tais como foram selecionadas para o
relatório final de pesquisa, mas aqui reorientadas para o eixo de discussão do evento. Assim,
selecionam-se dizeres relacionados ao conceito de literatura e mantendo-se a distinção entre
disciplina e possibilidades de compreensão muito mais amplas. Joga-se também com a

680
perspectiva da indústria cultural e a literatura dos mundos. Vejamos as duas formulações
abaixo:

(1) É válido dizer que a literatura é uma forma de expressão social de um determinado
momento do mundo, é a expressão dos sentimentos de indignação e criticidade de pessoas que
conseguem expor estes sentimentos das formas mais variadas.

O sujeito sinaliza ter construído uma conceituação de literatura mais ampla, que cabe em uma
disciplina, mas a esta não se limita. Expressão social aponta para algo diferente de porta-voz.
Porta-voz tende a repetir, aproxima-se do “igual”, na crítica adorniana. Expressão social aponta
muito mais para a singularidade do signo, sua atualização, não como mera comunicação, mas
como significação, recuperando-se um dos predicados da literatura no início deste texto, com
Castagnino, inicialmente, depois com Sartre.

(2) Sempre fui uma aluna que gostou de estudar e literatura para mim era mistura de
sentimento e fato. Uma verdadeira mesclagem de ficção e realidade. Fascinada pela leitura,
literatura era sinônimo de fantasia, uma verdadeira arte de emocionar...percebi que literatura
não está só nos livros de romance, mas literatura está na arte, nos belos quadros, na música... é
arte que se renova...

Ainda no campo da conceituação, este dizer remete a uma percepção sartreana de arte e de
literatura. Esta só existiria a partir da constituição de leitores, como atores em oposição a
receptores. Estes interessados na comunicação; aqueles, na significação. ( Horkheimer e
Adorno, 1969)

Examinemos a fala abaixo:

(3) Quando iniciei o curso não conhecia Literatura Brasileira, sem dúvida aprendi com o
professor X; de Literatura Hispânico-americana não me ensinaram muito mais do que já sabia.
Sobre Teoria Literária aprendi bastante com o Professor Y, creio que no curso deveria ter uma
disciplina de crítica ou de história da crítica literária. Falta mais horas no curso de aula de
Filosofia.

Sinaliza um entendimento da literatura como disciplinas. Suas carências anunciam


transcendência às limitações, possivelmente remetendo a uma lacuna que a universidade não

681
estaria dando conta. Aponta para concepções mais próximas de Kant e Schiller, citados por
Castagnino (1969).

(4) Tivemos oportunidade de assistir vários filmes sobre outras épocas. E também através de
muitos trabalhos de pesquisa que fizemos de todas as épocas. Por ex. a Literatura dos Jesuítas,
Barroco, Arcadismo, Romantismo...

Nesta formulação, aparece mais a literatura como cânone, mais um trabalho sobre literatura e
nem tanto de literatura. O enquadramento, a classificação compõem um viés de literatura, mais
atrelado às visões européias, como explicita Gnisci e silenciando aberturas para outras
construções, às vezes marginais, mas que poderiam ser significativas para os embates
individuais e sociais.

(5) Fui fazer um cursinho pré-vestibular e foi aí que vi os períodos e autores. Li os resumos dos
livros que iriam cair e só.

De um lado, a indústria cultural fica visibilizada nesta fala e um silêncio da literatura dos
mundos. A indústria cultura se traduz pelo “verniz biográfico”sinalizado e pelos “processos de
simplificações”, materializados, lingüisticamente ao se referir aos “resumos dos livros que iriam
cair”

(6) Contribuiu para o conhecimento e descobertas de como as pessoas viviam em épocas


passadas, no que acreditavam...

Um dos sentidos possíveis liga-se ao verbo no passado. Literatura é passado. A atemporalidade


e a-espacialidade da literatura ficam silenciadas. Sinaliza uma compreensão de que arte e vida
social se relacionam simetricamente. Possivelmente, torna-se afetado por contribuições do
cinema, da música, que insistem em certas reciprocidades. ( Horkheimer e Adorno, 1969)

(7) Com o tempo pude perceber que analisando o contexto histórico da época em que algumas
obras foram escritas, podemos saber como o país vivia naquele momento, as crises sociais,
econômicas, etc.

682
Assemelha-se à formulação (6) porque aponta para o passado, portanto, presa à temporalidade,
espacialidade. Por outro lado, o ponto de vista de quem escreve, suas representações, suas
idiossincrasias, que levariam a entender que entre o contexto histórico e o contexto literário há
universos distintos fica um pouco distante.

(8) A Literatura sempre esteve presente em minha vida, porém, no decorrer do curso pude
aprofundar conhecimentos, deparei-me com análises e pesquisas mais densas de uma literatura
que se movimenta na rotatoriedade das fases, mentalidades, realidades e fatos. Se antes, ELA
era deleite, agora é vital. É a expressão do mundo segundo meus olhos, meus olhos, meus
desejos, sonhos e moldes.

O dizer aponta para além dos limites da literatura como disciplina. Aponta o papel do leitor, no
sentido de Sartre. Ele é que, afinal, dá existência à obra literária, como o faz com qualquer texto.
O “vital”faz pensar na incorporação como “cultura”. Mas cultura com um componente no “eu”,
que, no sentido de Castagnino (1969), passa pela ambigüidade entre “catarse” e “engajamento”.

(9) A compreensão da Literatura, no meu caso, se deu pelos projetos de pesquisas onde tive a
oportunidade de mergulhar em suas entranhas, dilacerar preconceitos, amadurecer, esmiuçar
suas simbologias e perspectivas diversas até se tornar visceral. ..

O graduando traz o papel da escola na formação de quem tem um objeto específico para
compreender, no caso, o fazer literário. Focaliza a pesquisa como ferramenta para a
compreensão. Este entendimento vai além de qualquer rótulo que os estudos literários possam
ter, ou qualquer classificação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar esta comunicação, é importante situar ainda o lugar de onde falam os autores da
comunicação. A pesquisa foi construída num grupo de pesquisa que elege Discurso e Práticas
educativas como vetor das investigações, num eixo temático em torno da Educação, cultura e
sociedade. Aparentemente, pouco tem a ver com Teorias Críticas, cuja referência aponta à
chamada Escola de Frankfurt. As formulações teóricas brotam de lugares distintos. Mas talvez
haja uma aproximação: o inconformismo com as tentativas de naturalizações e
homogeneizações.

683
Assim, compreender os dizeres desses graduandos se torna relevante não como verdades, como
enquadramentos, mas como territórios tensos, complexos. A indústria cultural dos vestibulares,
por exemplo, “naturaliza” e “homogeiniza”determinado entendimento de literatura, muito mais
como disciplina. E as literaturas de mundos que se constroem em nossas sociedades pouco
espaços têm para pôr em discussões outras estéticas.

Por fim, cabe refletir com Gnisci e Carreira quanto à necessidade de desconstrução de
antinomias eu/outro, subjetividade/alteridade, europeu/não-europeu, literatura como
disciplina/como não disciplina. As dicotomias acabam simplificando os sentidos e os reduzem.
Mas compreender a literatura para além de disciplina já é um ponto de reflexão desafiador. Esta
é a contribuição do trabalho aqui apresentado.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, E. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes. 2ed. São
Paulo: Cultrix, 1972.

BRANCO, PV. A literatura e seus caminhos: os dizeres dos alunos de letras.


Dissertação de Mestrado. Blumenau: PPGEFURB, 2006.

CARREIRA, SSG. A representação do outro em tempos de pós-colonialismo: uma


poética da descolonização literária. Revista eletrônica do Instituto de Humanidades.
revistaihm.unigranrio.edu.br. Acesso: 11 de julho de 2006.

CASTAGNINO, RH. Que é literatura? Trad. Luis Aparecido Caruso. São Paulo: Mestre
Jou, 1969.

FERREIRA, AB. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ed. Curitiba: Positivo,
2004.

GNISCI, A. Uma história diversa: mapa da literatura mundial.


http://www.letras.ufrj.br/litcult/revista_litcult/revistalitcult_vol3.php?ide=6 Acesso 26
de abril de 2006.

HORKHEIMER, M. e ADORNO, TW. A indústria cultural: o iluminismo como


mistificação de massas. In: ADORNO, TW et al. Teoria da cultura de massa. Rio de
Janeiro: Saga, 1969.

JAPIASSU, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ed.rev.amp. Rio de


Janeiro: Zahar, 1996.

NOVA CULTURAL. Adorno- vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

684
PUCCI, B. A filosofia e a música na formação de Adorno. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 24, n.83, p.377-389, ago. 2003. Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br

SARTRE, JP. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1989.

685
FILOSOFIA E ARTE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR DE CRIANÇAS1

OLIVEIRA, Paula Ramos de2

Resumo: Um determinado discurso ronda as escolas. Trata-se de uma orientação quase que
unânime – algumas mais e outras menos explícitas, é verdade - em formar alunos críticos. Percebe-
se, entretanto, uma disparidade entre o discurso e a prática, além da própria fragilidade teórica que
envolve essa defesa de criticidade. Para exemplificar tal disparidade podemos citar a ênfase nas
datas comemorativas que são definidas já no planejamento de início do ano. Essa prática tão comum
nas escolas é reveladora do tom a que ficam submetidos nossos alunos. Estereótipos, preconceitos e
distorções permeiam as experiências escolares e nos mostram como a indústria cultural e a
semiformação estão presentes nesse espaço que deveria primar por uma formação plena e
emancipatória. Assim, algumas questões se apresentam a nós: Por que precisamos formar alunos
críticos? Aliás, precisamos formar alunos críticos? O que é a crítica? O que é ser crítico? Essa
capacidade pode ser desenvolvida? Como? Existe crítica sem criação? Quais os impasses que nos
são colocados nessa empreitada? Qual o papel da literatura na formação das crianças? Quais as
potencialidades da filosofia e da arte na educação das crianças? Pretendemos discutir essas
questões, defendendo dois pontos que se entrecruzam: a importância da presença da filosofia e da
arte na escola e a possibilidade de a literatura mediar esses dois campos na formação das crianças.
Palavras-chave: filosofia; arte; literatura; educação; indústria cultural; formação.

Crítica e formação

A palavra “crítica” vem ocupando um lugar de destaque no discurso dos professores, nas
escolas e nos documentos oficiais de educação. Há no ar uma certa compreensão de que a realidade
precisa ser desvendada e de que somente a crítica permitiria levar a cabo tal tarefa. Pretendemos
formar o aluno crítico. Essa é uma afirmação que pode ser considerada consensual. Entretanto, é
possível evidenciar nitidamente a distância que existe entre essa defesa da criticidade e as práticas
pouco críticas que acabam habitando a escola. É claro que inúmeros fatores concorrem para essa
dissonância entre o discurso e a prática, mas ela nos leva a pensar que uma das faces desse

1
Texto para comunicação no Congresso Internacional Indústria Cultural Hoje (agosto/setembro de 2006, na
UNIMEP/Piracicaba-SP).
2
Professora Assistente Doutora do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação
em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr) / UNESP- Universidade
Estadual Paulista. E-mail: paula-ramos@uol.com.br

686
problema reside justamente na fragilidade do próprio discurso. Parece-nos que acabamos por
defender a criticidade a partir de bases pouco críticas. Talvez a prática apenas seja decorrente desse
estado de coisas.
No conhecido debate “Educação – para quê?”, transmitido em 26 de setembro de 1966 pela
Rádio Hessen, Theodor W. Adorno e Hellmut Becker levantam uma série de pontos importantes a
partir da seguinte indagação: “para onde a educação deve conduzir?” (ADORNO, 2000, p. 139).
Sobre a relação entre teoria e prática, Becker afirma:

Em relação a instituições como as escolas de orientação montessoriana é preciso


tomar cuidado porque é interessante como aqui freqüentemente uma teoria
incorreta resultou numa prática acertada ou então uma teoria correta resultou
numa prática equivocada. Uma das irracionalidades da pedagogia é que
iniciativas pedagógicas decisivas são devidas a teorias totalmente equivocadas.
Isto tem a ver com o fato de que, neste contexto, a tradução da teoria para a
prática não é tão direta como talvez esperássemos em termos estritamente
sistemáticos. (ADORNO, 2000, p. 151-152)

Então, para nós, a questão coloca-se da seguinte forma: há uma certa orientação de que
devemos formar alunos críticos, mas em geral não vemos uma prática efetiva que caminhe nessa
direção. Qual o problema de fundo quanto a essa questão? Conforme indicamos, é possível que ele
seja decorrente de uma fragilidade teórica. É claro que não apontamos esse como o único problema,
pois sabemos bem, como sugere Becker, que a tradução da teoria para a prática não é algo
automático. Mas pensamos que a fragilidade teórica é o início desse novelo, uma vez que em
sociedades administradas talvez não haja nada mais difícil de se encontrar do que o pensamento
crítico. Entretanto, isso não nos deverá impedir de buscá-lo. Por onde começar? Pela educação das
crianças, pois é aí que se encontra o início do processo de formação. Como afirma Theodor W.
Adorno:

[...] na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo


caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira
infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar
na primeira infância. (ADORNO, 2000, 121-122)

Mas há ainda uma frase que antecede essa citação: “A educação tem sentido unicamente
como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica” (ADORNO, 2000, p. 121). Ou seja, há que se

687
cuidar da educação da primeira infância. Porém, enquanto momento decisivo para a formação de
caráter, essa educação precisa primar por experiências formativas de qualidade. Não raro, porém, na
educação escolar das crianças vemos inúmeros exemplos que caminham na direção contrária. Basta
pensar em uma determinada prática que é dominante nas escolas. No início do ano, já no
planejamento, costuma-se dar destaque às datas comemorativas. Dia das mães, dia dos índios, dia
das crianças, dia dos pais, dia dos professores e outros tantos dias são tratados de forma
romantizada, distorcida, preconceituosa e estereotipada. Tal tratamento não costuma ceder espaço
para qualquer reflexão. Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado no que diz respeito à qualidade
dos textos didáticos. É claro que essa é uma questão que nos remete à problemática da formação de
professores, que, por sua vez, também está relacionada às condições de trabalho, embora não
exclusivamente. De qualquer modo, vemos que formação é a palavra chave, uma vez que estamos
falando de pessoas que pretendem educar e pessoas que desejam ser educadas. Há, portanto, dois
enormes desafios: a formação do aluno e a formação do professor.
Haverá uma luz no fim do túnel? Poderemos vislumbrar possibilidades formativas que nos
coloquem na perspectiva de uma educação dirigida a uma auto-reflexão crítica, tal como queria
Adorno? Pensamos que sim. No próximo tópico, então, pretendemos assumir um tom mais
propositivo problematizando o que julgamos ser uma possibilidade educacional fértil: a proposta de
filosofia para crianças.

Filosofia e arte na educação escolar das crianças

Quando se trata da educação escolar, três perguntas parecem centrais: o quê, como e para
quê. Em primeiro lugar queremos saber o quê nossos alunos devem estudar. Essa não é uma
pergunta fácil, pois nela vem embutida uma certa idéia de formação ou um certo ideal de formação.
Aqui surge uma espécie de para quê. O como aparece, pelo menos, de duas formas: sugere um
determinado lugar de um conteúdo no currículo e também o modo como tal conteúdo será
ministrado.
Basta um rápido olhar pela história da educação brasileira para ver que a Filosofia nunca
teve uma presença contínua nos currículos escolares. Em contrapartida, os documentos
educacionais dificilmente conseguiram deixá-la fora de cena.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) lemos:

688
• o art. 36, sobre o currículo do Ensino Médio, dispõe no inciso III do § 1° que
os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal
forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre domínio dos
conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da
cidadania (grifo nosso). Estabelecer o que o aluno deve conhecer e que
competências desenvolver no curso de Filosofia no Ensino Médio configura uma
tarefa a ser enfrentada de maneira diversa daquela que se espera em qualquer
outra disciplina, por causa das características que são próprias ao filosofar. 3

Na Resolução CEB 3/98, que institui as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, em
seu Artigo 10, § 2º, também podemos ler: “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar
tratamento interdisciplinar e contextualizado para: [...] b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania.”4
Há um reconhecimento do potencial dessas disciplinas, mas, ao mesmo tempo, parece
difícil garantir a elas um lugar no currículo; ambas aparecem transversalizadas. Entretanto, esse
cenário modificou-se recentemente. Após grandes mobilizações nacionais, no dia 07 de julho de
2006, o Conselho Nacional de Educação, através de sua Câmara de Educação Básica, aprovou, por
unanimidade, uma resolução modificando o Parecer 3/98 e tornando obrigatórias as disciplinas
Filosofia e Sociologia em todo o Ensino Médio5.
Um argumento que sempre existe em favor dessas disciplinas é o da criticidade que elas
podem promover. Entretanto, gostaríamos agora de focalizar apenas a Filosofia. Quando o filósofo
norte-americano Matthew Lipman elaborou sua proposta de Filosofia para Crianças, no final da
década de sessenta do século passado, objetivava superar a deficiência no raciocínio que percebia
entre seus alunos universitários. Lipman, em seu artigo Filosofia e o Desenvolvimento do
Raciocínio (1995a), cita a realização de um teste de múltipla escolha com 50 itens (New Jersey Test
of Reasoning Skills), baseado numa taxionomia das habilidades primárias de raciocínio, aplicado
para indivíduos de diversas idades. Em seguida, comenta-o:

Certamente em algumas séries o número de estudantes testados foi muito


pequeno para que se pudesse fazer inferências seguras. Mas o resultado final é
sugestivo. Parece haver um progresso gradual entre a 2a e 7a séries e, em
seguida, um declínio. E quando finalmente os calouros universitários são

3
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasHumanas.pdf , p. 38 de “Ciências Humanas e
Tecnologias” (Orientações Educacionais Complementares ao Ensino Médio). Acesso em 11 de julho de 2006.
4
http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/lres3_98.htm , acessado em 11 de julho de 2006.
5
Maiores detalhes podem ser pesquisados no site http://portal.mec.gov.br/cne/. Acesso em 11 de julho de
2006.

689
testados – e esses são apenas uma parte da população jovem, os 60%
academicamente mais bem qualificados na sua faixa etária – a performance não
ultrapassa aquela atingida na 6a série. Tanto os estudantes da 6a série como os
calouros universitários conseguem responde corretamente a 76% dos itens do
teste. (LIPMAN, 1995a, p. 17)

Realmente esse é um dado que precisa ser levado em conta com seriedade. É nesse sentido
que o autor propõe que a filosofia integre o currículo das crianças, pois só assim será possível
cultivar melhor o raciocínio delas, uma vez que “a Filosofia tem sido caracterizada como um pensar
que se dedica ao aprimoramento do pensamento” (1995a, p.18). Assim, a tarefa do desenvolvimento
do raciocínio deve ser confiada à Filosofia e sua proposta é a de que devemos “ensinar a raciocinar
de modo a desenvolver as habilidades cognitivas dos alunos” (1995a, p.18).
Elaborou então um currículo específico para esse fim – as chamadas novelas filosóficas – e
também uma metodologia. A fundamentação teórica de Lipman revela que a proposta dessa
disciplina inscreve-se em um programa filosófico-educacional que procura levar os alunos a
aprenderem a pensar por si mesmos. Esse programa deverá levar os alunos a alcançarem um pensar
excelente, um pensar de ordem superior. O pensamento de ordem superior distingue-se de um
pensamento comum por ser ao mesmo tempo crítico, criativo e cuidadoso.
Mas o que é um pensamento crítico? Lipman afirma: “Diremos que o pensamento crítico é
um pensar responsável e habilidoso que facilita bons juízos porque se apóia em critérios, é auto-
corretivo e é sensível ao contexto.” (LIPMAN, 1995b, p. 35) E, no mesmo artigo, continua:

Pode ser útil considerar o que possa ser o pensamento não crítico. Ele
certamente sugere pensamento frouxo, amorfo, arbitrário, casual, desestruturado.
O fato do pensamento crítico se apoiar em critérios sugere que é um pensamento
bem fundamentado, estruturado e reforçado. O pensamento crítico parece ser
defensável e convincente. (LIPMAN, 1995b, p. 36)

Para mostrar a diferença entre um pensamento comum e o pensamento/raciocínio crítico,


Lipman apresenta o seguinte quadro:

PENSAMENTO COMUM PENSAMENTO/RACIOCÍNIO


CRÍTICO

Adivinhar.........................................Estimar
Preferir.............................................Avaliar
Agrupar............................................Classificar
Acreditar..........................................Assumir
Inferir...............................................Inferir logicamente
Associar conceitos...........................Compreender princípios

690
Notar relações..................................Notar relações entre outras relações
Supor...............................................Colocar hipóteses
Dar opiniões sem razões..................Dar opiniões com razões
Emitir juízos sem critérios.............Emitir juízos com critérios
(LIPMAN, 1995b, p. 36)

Notamos com clareza que o pensamento crítico é um pensamento que escapa das
superfícies. Concordamos também que a filosofia tem muito a contribuir na educação das crianças e
apenas essa idéia já nos faz destacar o mérito de Lipman. Porém, conforme aponta Kohan, a
proposta de Lipman é essencialmente normativa. Diz o autor: “A fundamentação que Lipman
oferece para sua proposta é claramente normativa. Isto significa que, nela, Lipman diz como
deveria ser uma educação filosófica das crianças.” (KOHAN, 2000, p. 17)
Essa constatação tem nos levado a diversas críticas ao programa de Lipman. Entre elas, está
a de que seu programa, apesar de pretender levar o aluno a uma autonomia do pensar, acaba por
submeter o professor a uma relação heteronômica com o material e com a idéia como um todo do
programa. Queremos então abordar mais detidamente esses dois pontos: autonomia e pensamento
crítico.
Há um livro de Lia Luft que se intitula “Pensar é transgredir” (2004). Esse título nos
impressiona e nos faz pensar. Procurar os sentidos das palavras é sempre um exercício estimulante.
Nessa perspectiva, vejamos o que nos dizem as palavras “transgredir” e “transgressão”:

Transgredir, v.t. Passar além de; atravessar; violar (a lei); desobedecer a;


infringir; deixar de cumprir; postergar. (Irreg. Conjuga-se como agredir)
Transgressão, s.f. Ato ou efeito de transgredir; infração; (Geol.) invasão do
mar, que acarreta a formação de depósitos marinhos onde dantes era continente;
- marinha: movimento das águas do mar ao invadir um trecho do continente.
(FERREIRA, 1969, p. 1193)

Para nós, o pensamento crítico sugere uma certa transgressão, uma vez que é capaz de
“passar além”, de superar a superfície do que se apresenta como sendo a realidade e construir um
novo caminho, um novo olhar. A invasão do mar nos traz uma bela imagem da força que o
pensamento crítico pode ter. Através dessa imagem talvez possamos compreender com clareza o
principal motivo pelo qual Filosofia acabou sendo expulsa dos currículos escolares. O pensamento
crítico transgride, desacomoda e, por isso, pode chegar a agredir.
E quando buscamos a etimologia da palavra “crítico” encontramos o seguinte:

691
Crítico. Do gr. kritikós “que serve para julgar, decisivo”, pelo latim criticu, por
via erudita. Tomou sentido pejorativo (principalmente no verbo), porque os
críticos se comprazem em censurar, ver defeitos, imperfeições. (NASCENTES,
1966, p. 219)

Suspeitando que a idéia de crítica relaciona-se com a de crise, vamos novamente ao


dicionário etimológico. E lá está: “Crise. Do gr. krísis “momento decisivo”, pelo lat. crise, por via
erudita.” (NASCENTES, 1966, p. 219).
A idéia de crise como momento decisivo é especialmente interessante para nós, porque
sugere situações de conflitos. E uma situação de conflito traz em si aquilo que é e aquilo que pode
ser. Não estamos sugerindo que a crítica seja um momento de superação do conflito ou que ela traga
em si uma possibilidade de síntese. Destacamos aqui apenas a possibilidade do novo surgir a partir
de uma ruptura com aquilo que está dado, mas nesse movimento o conflito parece ser mais
importante do que tudo o mais.
Nossa argumentação surge, portanto, para defender que a definição de Lipman sobre o
pensamento crítico como “um pensar responsável e habilidoso que facilita bons juízos porque se
apóia em critérios, é auto-corretivo e é sensível ao contexto” (LIPMAN, 1995b, p. 35), certamente é
interessante, mas ao vincular o ensino do raciocínio ao desenvolvimento de habilidades - “ensinar a
raciocinar de modo a desenvolver as habilidades cognitivas dos alunos” (LIPMAN, 1995a, p.18) –
parece-nos que o filósofo acaba por comprometer a autonomia do pensamento. Apesar de ser uma
citação longa, vejamos o que nos dizem Walter Omar Kohan e Vera Waskan sobre essa questão:

[...]¿ podemos estar seguros de que piensa por sí mismo quien es hábil para
pensar? ¿ Qué tipo de autonomía otorgan estas habilidades cognitivas? Sigamos
pensando en la analogía: el atleta que ejercita sus músculos y supera récords de
velocidad es un buen atleta, gana medallas. Pero el bailarín virtuoso en sus
movimientos, de perfecta elongácion y de grandes saltos ¿ es por eso buen
bailarín? Tal vez el pensar, como la danza o cualquier arte, requiere de algo más
que destreza. Surge inmediatamente una cuestión, entonces, que lleva a
preguntarse si el manejo de las habilidades de pensamiento garantizan el pensar
por sí mismo, esto es, la autonomía de pensamiento. Sería difícil admitir que lo
garantizan, porque parece haber una clave del pensar que no es directamente
enseñable, que tiene que ver con una disposición, con una práctica, con una
postura, con un involucrarse en los problemas que escapa al manejo de las
habilidades. Otra vez, ¿ de qué autonomía hablamos? No estamos pensando aquí
en aquella autonomía que se identifica con la apropiación de las normas: es
autónomo aquél que actúa de acuerdo con su propia ley, pero no simplemente
porque ha internalizado la norma, sino porque puede crear una nueva.
(WASKMAN; KOHAN, 2005, p. 79)

692
Concordamos com os referidos autores. Para os frankfurtianos “educação é o mesmo que
emancipação” (PUCCI, RAMOS-DE-OLIVEIRA, ZUIN, 2000, p.117) e sabemos bem que não há
emancipação sem autonomia. É a partir dessa compreensão que o Grupo de Estudos e Pesquisas
“Filosofia para Crianças”(GEPFC)6 tem desenvolvido, desde 1998, seu próprio material7 para o
ensino dessa disciplina. Para nós a idéia de levar a filosofia para as crianças é extremamente fértil e
consideramos que com essa disciplina poderemos oferecer experiências formativas de qualidade
desde a primeira infância. Mas adotar um programa elaborado a partir de uma outra realidade - a
norte-americana – seria o mesmo que usar uma camisa de força. Acreditamos que a experiência de
Lipman nos forneceu elementos suficientes para que possamos reinventar essa prática no Brasil a
partir da nossa realidade. Tal procura abre aos professores a possibilidade de um trabalho mais livre
e, portanto, mais dono de si, mais autônomo.
Quando nos lançamos na escrita de histórias filosóficas e poesia para as aulas de Filosofia
para Crianças, percebemos que uma atividade (aparentemente) simples como essa, exigiria de nós
uma reflexão sobre diversos conceitos, entre os quais destacamos como centrais os conceitos de
criança, infância, filosofia e educação. Também percebemos que não seria possível ignorar as
complexas relações que existem entre filosofia e literatura e muito menos deixar de questionar sobre
a qualidade dos textos que produzíamos.
Começamos a escrever para as primeiras séries do Ensino Fundamental e, mais tarde,
também para a Educação Infantil. Ao longo desse processo percebemos que é bastante interessante
a idéia de Lipman de escrever narrativas em primeira pessoa com personagens das mesmas idades
que a dos alunos, uma vez que essas narrativas promovem uma identificação do leitor com as
personagens e, como decorrência, permitem mais facilmente a apropriação das questões que os
textos estimulam. Todos os textos que escrevemos são analisados pelo GEPFC do ponto de vista da
forma e do conteúdo. A idéia é fugir de estereótipos e de modelos. Quanto mais aberto o texto for,
mais estimulará o pensamento.
Nesse sentido, procuramos, por exemplo, não escrever falas muito afirmativas. Se as
escrevemos, porém, cuidamos para que ao lado delas existam outras que sejam dissonantes. Nesses
textos também as falas dos adultos (professores, pais, etc) não são melhores que as das crianças. Há

6
O GEPFC encontra-se sob minha coordenação, com reuniões semanais desde 1998, na Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara.
7
Material publicado em Filosofia para a Formação da Criança e em Um Mundo de Histórias, ambos de minha
autoria. Vide referências bibliográficas.

693
vários aspectos implicados aqui, mas julgamos que nessa breve reflexão tais digressões não são
exatamente relevantes. Mas há uma questão central: inevitavelmente o tom reflexivo predomina
nessas histórias. Então nos perguntamos se era essa a criança que queríamos formar. Respondemos
que queríamos crianças que soubessem pensar, mas não queríamos que esse pensar solapasse a
emoção. Não é de hoje que sabemos da necessidade de integrar razão e emoção. Atualmente então
buscamos essa integração em nossa escrita.
Entretanto, a questão não termina aí. Sabemos da importância de o professor escrever seus
próprios textos8, mas inegavelmente sempre haverá neles uma certa instrumentalidade. Essa é uma
forte razão para que diversifiquemos os materiais nessas aulas. Nesse sentido, tentamos levar
também aos alunos, músicas, filmes, poesias e literatura. Além disso, é também interessante utilizar
dinâmicas, contação de histórias, fantoches, etc. O lúdico é essencial nessas aulas, especialmente
para as crianças da Educação Infantil.
Percebemos, desse modo, que a arte pode e deve ser uma excelente parceira da filosofia na
formação das crianças. A literatura infantil - feita especialmente para as crianças - pode assim
enriquecer as aulas de filosofia. Mas ainda sobre a questão da literatura infantil, ocorre-nos agora
uma pergunta: ela também não carregaria certa instrumentalidade por ser dirigida a um público
específico? Talvez devamos dizer então dizer das potencialidades da “literatura” de boa qualidade
nessas aulas, em vez de “literatura infantil”. Já utilizamos, por exemplo, um conto de Clarice
Lispector e essa foi uma excelente experiência.
Vivemos subestimando as crianças. Elas costumam gostar do que é mais complexo porque
isso estimula o pensamento. Aliás, quem não foi estimulado ao pensar é que gosta do que é mais
simples e pasteurizado. Se levarmos as crianças a gostarem de pensar, é possível que as
distanciemos desse modo de estar na vida. Mas por que enfatizar essa aliança da filosofia com a
arte? Porque não é qualquer pensar que queremos estimular, mas sim um pensar criativo, porque
queremos integrar o pensar e o sentir, a razão e a emoção e, enfim, porque ambas suspendem nosso
olhar e nos fazem diferentes do que somos. Quanto mais plena a formação de nossas crianças, mais
plenas elas serão.

8
OLIVEIRA, Paula Ramos de. Histórias para pensar. In: KOHAN, Walter Omar (org.). Lugares da
infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 97-108. (Coleção Sócrates)

694
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADORNO, Theodor W. Educação – para quê? Tradução de Wolfang Leo Maar. In: ADORNO,
Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 2a ed.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.


São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 1969. 11a ed.

LUFT, Lia. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004.

KOHAN, Walter Omar. Filosofia para Crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. (Coleção “O que
você precisa saber sobre”).

KOHAN, Walter Omar; WASKMAN, Vera. Filosofía con niños: aportes para el trabajo en clase.
Buenos Aires: Noveduc, 2005.

LIPMAN, Matthew. A filosofia e o desenvolvimento do raciocínio. In: CBFC (coord.). A


comunidade de investigação e o raciocínio crítico. São Paulo: CBFC, 1995a. (Coleção Pensar, v. 1)
p. 17-32.

LIPMAN, Matthew. Raciocínio crítico: o que pode ser isso? In: CBFC (coord.). A comunidade
de investigação e o raciocínio crítico. São Paulo: CBFC, 1995b. (Coleção Pensar, v. 1) p. 33-46.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico resumido. Brasília: Instituto Nacional do


Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1966. (Coleção Dicionários Especializados)

OLIVEIRA, Paula Ramos de. Um mundo de histórias. Petrópolis: Vozes, 2004a. (Coleção
Textos para começar a filosofar)

OLIVEIRA, Paula Ramos de. Filosofia para a formação da criança. São Paulo: Thomson
Learning, 2004b.

PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S. Adorno: o poder do pensamento crítico.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

695
PSEUDOCULTURA E PSEUDOCONCRETICIDADE: APROXIMAÇÕES ENTRE
ADORNO E KOSÍK

Paulo Lucas da Silva (Universidade Federal de Minas Gerais)

Conhecer é buscar e produzir a verdade. A busca da verdade já significa produção e


vida na verdade. Por outro lado, poucas coisas se tornaram tão estranhas ao nosso mundo quanto
a verdade. A pergunta sobre a verdade tempo perdeu até o seu valor retórico, tal como Pilatos
teria indagado de Cristo1. Na era das facilitações, o caminho para a verdade é semelhante ao
pior dos caminhos. A verdade parece assumir uma condição não de utopia, mas de
impossibilidade porque não serve para praticar ou alcançar, neste momento. Todo o peso e
interesse social recaem naquilo que é operacional (working proposition2). Admite-se uma
situação tal que os problemas surgidos em qualquer situação, devem ter uma resposta (solução)
prática imediata3. Se algo resolver, ainda que precariamente, uma situação, isso basta. A
verdade parece ser um exagero. Aquilo que funciona, funciona para e no interior de algo que,
amiúde, obedece a orientações muito pouco interessadas na verdade. Neste sentido, parece
importante pensar a verdade sobre a realidade que vivemos e se existe uma verdade que
poderíamos realizar.
A produção do conhecimento na Teoria Crítica ultrapassa os cânones da mera
constatação do que é positivo, ou seja, da mera da reprodução verbal ou detalhadamente
quantificada da realidade. Uma das primeiras observações necessária é a de que a natureza
inerte e a natureza viva não podem, simplesmente, serem determinadas pelas mesmas regras, em
se supondo que qualquer pessoa que saiba aplicar os métodos estabelecidos, independente do
objeto em foco, poderia compreender qualquer fenômeno (cf. HORKHEIMER, 1991, p. 31). A
dinâmica de cada ser oferece realidades diversas, que precisam ser apreendidas de acordo com a
sua estrutura. O método há que ser orientado pelo objeto, ou seja, não há condições de se ser
justo com o objeto impondo-lhe um método que não o reconheça em suas peculiaridades. Ainda
que o objeto somente se configure como tal na relação com um sujeito, quem quer conhecer o
objeto é o sujeito. Desta intencionalidade há também que se aprender e se deixar “conduzir”
pelo objeto. O método não é um terceiro elemento, ou um elemento superior à relação sujeito-

1
Jo 18, 38.
2
A expressão é utilizada por Adorno (1995a, p. 35) em 1959, ao tratar do modelo de democracia que se
admite nos Estados Unidos e que seria aceito também na Alemanha pós-guerra.
3
Adorno (1995, p. 113) trata da indisposição das pessoas em pensarem o problema, a realidade; chama de
sabotagem a “questão inevitável do ‘que fazer’” e, esta “prisão” à realidade (fisicalismo ou materialismo
vulgar) se torna escandalosa na afirmação: “é um belo discurso, mas a situação se coloca de modo
diferente para quem trabalha em meio à questão”. Pensamentos assumem valor somente se se submetem à
realidade resolvendo os problemas da realidade. Uma análise mais detalhada demonstraria que são

696
objeto. O método na forma mais específica e particular seria, em certo sentido, uma produção
(um a posteriori) da relação sujeito-objeto. A independência do método significa uma
autonomia, deste, em detrimento da experiência concreta entre o sujeito e o objeto, “[...] uma
teoria esboçada ‘de cima para baixo’ por outros, elaborada sem o contato direto com os
problemas de uma ciência empírica particular” (id. ibidem, p. 33). Para a Teoria Tradicional,
herdeira do esclarecimento que abdicou de sua realização e não procedeu ao conhecimento da
realidade em sua totalidade, prejudicialmente coerente com este reducionismo, trata-se a
realidade de forma empobrecida em significado e possibilidades.
A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens,
nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de
outros, o capital. [...] O que os homens querem aprender da natureza é como
empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. [...] O que
importa não é aquela satisfação que, para os homens se chama ‘verdade’, mas
a ‘operation’, o procedimento eficaz. [...] Não deve haver nenhum mistério,
mas tampouco o desejo de sua revelação (HORKHEIMER e ADORNO,
1985, p. 20).

A técnica como essência significa o elemento reificador, para o qual todas as diferenças
das coisas, que compõe a sua riqueza, são eliminadas de forma arbitrária para o uso
administrado destas coisas e pessoas, pois não se quer conhecer as coisas, mas dar-lhes
utilização eficaz para que se alcance o maior lucro e o controle sobre outrem. A satisfação que
adviria do esclarecimento é desprezada frente à pletora de possibilidades de acumulação que se
pode obter com o trabalho de outrem. No final das contas nem se faz a experiência do objeto, do
mundo, mas se lhe impõe uma visão e uso tão pragmáticos e imediatos que se esquece que o
objeto tem outras possibilidades, assim como a vida de cada indivíduo, se rompesse com esta
visão reducionista. A cisão abrupta da realidade foi defendida por Comte (1991, p. 7), para o
qual a apreensão do dado já era não só suficiente como a única apreensão verdadeira:
Quanto a determinar o que são nelas próprias [nas coisas] essa
atração e essa gravidade, quais são suas causas são questões que
consideramos insolúveis, não pertencendo mais ao domínio da filosofia
positiva, e que abandonamos com razão à imaginação dos teólogos ou à
sutileza dos metafísicos.

O dado é a única realidade que importa. O que mais se possa esperar daí, deve ser
relegado a uma espécie de condição infra-científica, um devaneio talvez. As coisas podem ser
conhecidas, pela técnica “eficiente”, nos seus aspectos físicos (forma, matéria, quantidade);
naquilo que extrapola estes limites, para Comte, não é possível a certeza, o conhecimento
seguro.

atacadas as conseqüências, os efeitos de problemas que não são superados, por incompetência ou
corrupção.

697
Uma exigência fundamental, que todo sistema teórico tem que
satisfazer, consiste em estarem todas as partes conectadas ininterruptamente e
livres de contradição. [...]
Na medida em que se manifesta uma tendência nesse conceito
(Begriff) tradicional de teoria, ela visa a um sistema de sinais puramente
matemáticos. [...]
As ciências do homem têm procurado seguir o modelo (Vorbild) das
bem sucedidas ciências naturais. [...]
Opera-se com proposições condicionais, aplicadas a uma tal situação
dada. Pressupondo-se as circunstâncias a, b, c, d, deve-se esperar a ocorrência
q; desaparecendo p, espera-se a ocorrência r, advindo g, então espera-se a
ocorrência s, e assim por diante. Esse calcular pertence ao arcabouço lógico
da história da ciência natural. É o modo de existência da teoria em sentido
tradicional” (HORKHEIMER, op. cit., p. 33, 4, 6).

Para Adorno (1994, p. 172), na teoria tradicional dominante:


Passa-se a exigir do espírito um certificado de competência
administrativa, para que ele, ao ater-se às linhas limítrofes culturalmente
delineadas e sacramentadas, não vá além da própria cultura oficial.
Pressupõe-se nisso que todo conhecimento possa, potencialmente ser
convertido em ciência.

A submissão do pensamento à técnica, repleta de variantes e hipóteses – que descobrem


o que já está dado, de antemão, impedem a produção do conhecimento, precisamente naquilo
que os exatos denominam como “margem de erro”. O que mantêm a margem de erro é aquilo
que a ciência exata (dura) sempre quis banir: o pensamento livre e autônomo, o sujeito
negativo4, para o qual o dado não significa nenhuma segurança é, no máximo, possibilidade.
Para os cânones da ciência positiva hegemônica o sujeito negativo, que se encontra derrotado
(HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 139), portanto negado, é uma ameaça.
A disciplina científica em voga requer que do sujeito que se apague
a si mesmo em prol da primazia da coisa ingenuamente presumida. A isto
opõe-se a filosofia. O pensar não deve reduzir-se ao método, a verdade não é
o resto que permanece após a eliminação do sujeito. Pelo contrário, este deve
levar consigo toda sua inervação e experiência na observação da coisa para,
segundo o ideal, perder-se nela. A desconfiança em relação a isso representa
a atual configuração da hostilidade ao pensamento (ADORNO, 1995, p. 19).

A determinação da técnica, de forma a priori, como elemento infalível, vai consolidado


a reificação do sujeito e do objeto e a vitória do mundo administrado; sucumbem as pessoas que
não têm sequer o direito de fazer a sua experiência do real, senão uma experiência administrada

4
“Sujeito negativo” é a expressão que utilizo para qualificar o sujeito enquanto realidade negada e
naquilo que ele precisa negar para se firmar como sujeito. O sujeito, que só existe verdadeiramente
enquanto ser pensante, se encontra derrotado daí a necessidade de negar o existente para superar a
derrota. O sujeito, em sua realidade de derrota é o sujeito negado e a superação deste estado passa
necessariamente pela sua própria negação. O positivo, que também pode ser igualado ao otimismo
sustentado pela mesma ideologia que sustenta a derrota do sujeito, significa aqui, a manutenção da derrota
do sujeito pensante por todos os meios astutos e destrutivos desenvolvidos pela indústria cultural. “La
ideología anima hoy como nunca al pensamiento que sea positivo; ciertamente su astucia consiste en

698
e mediada pelos cânones de uma ciência, cujo interesse e orientação servem, apenas, ao
socialmente hegemônico e sucumbem os objetos, cuja riqueza é relegada como atrapalho. A
relação sujeito-objeto não pode ser determinada a priori, sem que as condições materiais e
objetivas sejam conhecidas. O objeto tem o seu momento assim como o sujeito: ambos são
dialéticos e estabelecem uma relação, igualmente dialética.
A exortação de praticar com zelo a honestidade intelectual
desemboca na maioria das vezes na sabotagem dos pensamentos. [...] Os
textos que empreendem ansiosamente uma reprodução completa de cada
passo caem inevitavelmente na banalidade e numa monotonia, que afeta não
somente o suspense da leitura, mas também sua própria substância. [...] Ao
contrário, o conhecimento dá-se numa rede onde se entrelaçam prejuízos,
intuições, inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas
palavras, na experiência, que é densa, fundada, mas de modo algum
transparente em todos os seus pontos (ADORNO, 1992, p. 69).

O conhecimento se produz sob as idas e vindas, os erros e correções próprios da


realidade. Não há como enrijecer esta relação produtiva com técnicas que desconhecem a
realidade e desprezam a sua condição dialética. No entanto não se pode cair no outro extremo
do relativismo e da arbitrariedade do sujeito.
Na realidade em que vivemos e que, portanto, fazemos se criou um relativismo tão
vigoroso e abrangente que se sustenta já como método e não mais como uma mera tendência.
Quando as coisas são relativizadas, é sempre importante identificar o ponto de referência, ou
seja, quem é que está falando, de onde se está falando e, com isto, quais são os interesses e onde
se desdobram os relativismos apresentados.
Nas expressões comuns: “cada um tem a sua verdade”; ou: “a minha verdade pode ser
diferente da tua”, manifesta-se este relativismo individualista e subjetivista sub-repticiamente,
malicioso. O princípio do homo mensura, ou seja, “o homem como medida de todas as coisas,
daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”, que
remonta a Protágoras, no séc. IV a.C., sente-se revigorado com o relativismo contemporâneo.
Protágoras ensinava “a tornar mais forte o mais fraco argumento”. Nisso consistia sua
“virtude”, ou seja, a “‘habilidade’ de saber fazer prevalecer qualquer ponto de vista sobre a
opinião oposta”, ensinamento que tinha resultados tão positivos que fortalecia os jovens, a ponto
de possibilitar-lhes a carreira política e na vida pública, em geral;
Para Protágoras, portanto, tudo é relativo: não existe um
‘verdadeiro’ absoluto e também não existem valores morais absolutos (‘bens’
absolutos). Existe, entretanto, algo que é mais útil, mais conveniente e,
portanto, mais oportuno. O sábio é aquele que conhece esse relativo mais útil,
mais conveniente e mais oportuno., sabendo convencer também os outros a
reconhece-lo e pô-lo em prática (REALE e ANTISERI, 1990, p. 77).

constatar que precisamente la positividad es contraria al pensamiento y que necesita la mediación

699
Em primeiro lugar, o ato de relativizar é uma possibilidade exclusiva do sujeito, é obra
da razão. Parece não haver dúvidas quanto à importância desta possibilidade, afinal de contas,
os “pontos de vista” das pessoas podem contribuir muito para a construção da verdade. Mas
quando estes meros pontos de vista se avolumam com a pretensão de verdade, então se pode ter
uma consciência pseudoculta (ADORNO, 1996) e pseudoconcreta (KOSÍK, 1995) para a qual o
principal, isto é, o objeto foi relegado em função da arrogância, preguiça e vaidade de quem
fala.
Quando se fala de algo e se busca a verdade sobre este algo, há que se entender que se
deve buscar as respostas ali, não nos sujeitos que o estudam. O objeto se constitui como a
primeira fonte de verdade. A atribuição da verdade ao “olhar de cada sujeito em sua
individualidade (danificada)” é submeter a realidade e as pessoas às idiossincrasias e
manipulações arbitrárias e desinteressadas da verdade.
Desde Leonard Nelson se viene repitiendo contra Spengler el
argumento de que el Relativismo presupone al menos algo absoluto, a saber,
la validez de sí mismo, y por consiguiente se contradice. El argumento es
miserable. [...] Más fructífero parece el Relativismo como una figura del
individualismo burgués, que hace de la conciencia individual, a su vez
mediada por lo universal, lo fundamental; por eso otorga el mismo derecho a
las opiniones de cada individuo como si no hubiera criterio alguno de su
verdad. A la tesis abstracta de que todo pensamiento está condicionado, debe
serle recordado muy concretamente que también ella lo está, que es ciega
ante la componente supra-individual y que sólo ésta convierte a la conciencia
individual en pensamiento. [...] El Relativismo es materialismo vulgar, pensar
estorba a los negocios. Tal postura es totalmente enemiga del espíritu y le es
imposible salir de la abstracción. El relativismo de todo conocimiento sólo se
puede afirmar desde fuera, mientras no se ha llegado a conocer
concluyentemente (ADORNO, 1975, p. 43-4).

O relativismo não seria inadmissível apenas porque ele próprio se colocaria sob a
condição de relativo; porque não se sustentaria como se fosse a única certeza, em um universo
de relatividades. Sob o olhar particular de cada sujeito, repleto de particularidades,
verdadeiramente tudo é visto sob o ângulo “do agrado” do sujeito. Este olhar submete tudo aos
interesses do sujeito particular, inclusive o Relativismo. Para Adorno este é um argumento
“miserável”. Mais do que isto é importante reconhecer que se trata de uma consciência que se
impõe à realidade sem reconhecer-lhe seu valor e importância. No processo do conhecimento a
consciência individual não é quem apenas determina (atribui) a verdade às coisas (pelo
trabalho); antes de tudo a consciência é aprendiz da realidade. O “argumento concreto”, o
“critério”, como evoca o autor, é ainda melhor esclarecido no ensaio: “Sobre sujeito e objeto”,
no qual Adorno afirma: “A primazia do objeto comprova-se pelo fato de que este altera
qualitativamente as opiniões da consciência coisificada, que cultivam uma relação sem atritos

amistosa de la autoridad social para acostumbrarlo a la positividad” (ADORNO, 1975, p. 27).

700
com o subjetivismo” (ADORNO, 1995, p. 190). O que determina a concreticidade do
pensamento é a sua construção a partir da realidade, a partir do objeto. A realidade se estabelece
como ponto de partida e como critério inicial; isto justifica o fato de que, mesmo a filosofia
mais teórica, tem seu ponto de partida na realidade que é, em si, unidade e contradição dialética.
É desta forma que, tratar de verdade absoluta, somente é possível sob o ditame da fé. As
“verdades” proferidas a partir da realidade, se concludentes, apenas o serão com o
congelamento do tempo e da coisa. Para que não se afirmem equívocos, uma afirmativa correta
hoje pode não ser correta amanhã, apenas se aquela se arrogou como conclusão – definitiva –
sobre algo que, definitivamente, não se poderia falar.
O conhecimento tem um fim: a realização do sujeito e do objeto naquilo em que sejam
verdadeiros. Verdadeiro é aquilo que cumpre seu telos humanizador. A técnica como elemento
independente da relação histórica entre sujeito e objeto perpetua a presentificação da realidade
não real, ou seja, da realidade congelada como objeto estático e dócil ao procedimento
metodológico arbitrário. Quando se produz conhecimento, para a Teoria Crítica deve-se levar
em consideração que o conhecimento não é a mera duplicação da realidade. Se há um momento
de duplicação ele é abstrato, não é concreto. A primeira consciência é a de que a realidade,
como o sujeito, muda. O que está dado, o que se oferece à primeira experiência precisa ser
desvelado como dinamismo, portanto, como um momento do objeto e do sujeito.
[...] a ciência só pode ser algo mais do que simples duplicação da
Realidade no pensamento se estiver impregnada de espírito crítico. Explicar a
realidade significa sempre romper o círculo da duplicação. Crítica não
significa, neste caso, subjetivismo mas confronto da coisa com o seu próprio
conceito. O dado só se oferece a uma visão que o considere sob o aspecto de
um verdadeiro interesse, seja de uma sociedade livre, de um Estado justo ou
do desenvolvimento da humanidade. E quem não compara as coisas humanas
com o que elas querem significar, vê-as não só de uma forma superficial mas
definitivamente falsa (HORKHEIMER e ADORNO, 1973, p. 21).

A ciência não se estanca na reprodução abstrata da realidade, como uma verbalização ou


escrita que se detém na descrição detalhada das coisas. O espírito crítico - cuja característica
“dialética” foi acrescentada por Adorno (1998, p. 7-26), no ensaio “Crítica cultural e sociedade”
– necessita desta reprodução, mas vai além. A estagnação na mera reprodução, duplicação,
também se coloca como um estágio inicial semelhante à mímesis. A finalidade do pensamento
não é a reprodução, este seria um primeiro passo para, daí, se proceder ao “confronto da coisa
com seu conceito”. Para os autores a ciência não tem um fim em si apenas, como conhecer por
conhecer. Seu objetivo é a uma sociedade livre, um Estado justo ou o desenvolvimento da
humanidade. Neste aspecto, se a realidade em que se vive é desumanizadora, a duplicação da
realidade significa a duplicação da desumanização; a perpetuação do que é danificador. O
espírito crítico significa a não-submissão a idiossincrasias e subjetivismos, mas, ao contrário, o

701
reconhecimento da primazia do objeto, seja em sua realidade cindida de seu conceito, seja como
perspectiva da sociedade emancipada, de sujeitos emancipados. O reconhecimento desta
primazia é o que garante a segurança e universalidade do conhecimento (cf. ADORNO, 1995,
188-9).
O dado é ponto de partida para o conhecimento, de tal forma que o sujeito o apreende
como primeira experiência, como a mais inicial e necessária. Mas a experiência do
conhecimento, a teoria, não mora na realidade, nem se encontra em algum plano mais abstrato,
mas está naquilo que a aparência esconde, pela sua própria natureza ou pela obra humana
(ideologia). Para Kosík (1995, p. 18) conhecer é atingir o conceito da “coisa em si5”
decompondo a realidade para descobrir-lhe a sua estrutura, o “modo de ser do existente”.
O conceito da coisa é a compreensão da coisa, e compreender a
coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do
conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o
pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui
uma de suas qualidades; o conhecimento é a decomposição do todo. O
‘conceito’ e a ‘abstração’, em uma concepção dialética, têm o significado de
método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a
estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa (id. ibidem, p. 18).

A coisa em si se oferece e se esconde do sujeito. É contraditório, pois que o seu aspecto


fenomênico, que é a primeira forma de contato do sujeito com o objeto, obstrui o acesso ao que
está na coisa e lhe é estrutural, essencial, verdadeiro. Ainda assim o conceito há que ser
formulado a partir desta ultrapassagem do que é fenomênico, para que se encontre o que o
sustenta. Desta forma o conceito não é nenhuma arbitrariedade contra o objeto, mas o resultado
de uma “dedicação” ao objeto.
La verdad es que todos los conceptos, incluido los filosóficos, tienen
su origen en lo que no es conceptual, ya que son a su vez parte de la realidad,
que les obliga a formarse ante todo con el fin de dominar la naturaleza. La
mediación conceptual se ve desde su interior como la esfera más importante,
sin la que es imposible conocer; pero esa apariencia no debe ser confundida
con su verdad (ADORNO, 1975, p. 20).

A advertência de que a aparência da realidade não deve ser confundida com a sua
verdade estabelece o processo de produção do conhecimento como uma perscrutação do objeto
para além daquilo que aparece, mas não independente daquilo que aparece.
O conhecimento se realiza como separação de fenômeno e essência,
do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se

5
A “coisa em si”, como a verdade da coisa, negada, ou ofuscada intencionalmente pela
pseudoconcreticidade se assemelha à verdade da coisa, ou seja, a concreticidade, caracterizada como
dialética da coisa ou unidade contraditória entre o fenômeno e a essência. O fenômeno é a aparência
(atual) da coisa e a essência é a gama de processos de toda ordem que fazem com que a coisa seja aquilo
que ela é. A essência não é nenhuma abstração, mas a seqüência, ou conjunto, dos mais variados fatores
(social, econômico, ideológico, religioso, pedagógico...), diria, que sustentam a coisa em si. A coisa em si
seria a realidade conciliada com seu conceito (harmonia sem violência, contradição benéfica).

702
pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da
coisa. Nesse processo, o secundário não é deixado de lado como irreal, mas
revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua
verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento
constitutivo do conhecimento filosófico – com efeito, ‘sem decomposição
não há conhecimento’ – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano:
também se baseia na decomposição do todo (KOSÍK, op. cit., p. 18).

O fenomênico tem a sua importância reconhecida na medida em que lhe é correta;


qualquer exagero ou unilateralização significaria uma pseudoconcreticidade e a injustiça contra
a totalidade concreta. Não há como conhecer o objeto apenas na sua forma aparente. A estrutura
da coisa não é um dado da aparência, nem se manifesta imediatamente ao homem. Daí a
necessidade do desvio (“detóur”) como condição inescapável para a penetração na realidade e a
conseqüente produção do conhecimento (ibidem, p. 27). O desvio é o exercício necessário de
distanciamento do dado para compreender o dado. A decomposição é um exercício abstrato, é
real enquanto experiência espiritual e teórica do sujeito. Pela decomposição o pensamento
dialético crítico não abandona o fenômeno, na busca de algo “metafísico”, mas busca o que há
de real por trás da realidade aparente que, ideologicamente – pseudoconcretamente –, quer
parecer a única realidade. O dado – positivo - ofusca o também real, mas não aparente e,
contudo, presente no dado. O pensamento dialético crítico busca pela contemplação desvelar a
estrutura da realidade para encontrar as suas formas de “funcionamento” e geração do objeto.
Este objeto, porém, somente é cognoscível na medida em que o sujeito o torna uma realidade
sua.
O conhecimento não é contemplação. A contemplação do mundo se
baseia nos resultados da ‘praxis’ humana. O homem só conhece a realidade
na medida em que ele ‘cria a realidade’ humana e se comporta antes de tudo
como ser prático.
Para nos aproximarmos da coisa e da sua estrutura e encontrar uma
via de acesso para ela, temos de nos distanciarmos delas. [...]
Não é possível compreender imediatamente a estrutura da coisa ou a
coisa em si mediante a contemplação ou a mera reflexão, mas sim mediante
uma determinada ‘atividade’. [...] Estas atividades são os vários aspectos ou
modos da ‘apropriação’ do mundo pelos homens (ibidem, p. 28).

Kosík (op. cit., p. 27) chega a admitir que a humanidade tem impaciência para conhecer
e, pela pressa, acaba aderindo a formas de misticismos como meios de explicação da realidade.
O “ataque direto ao objeto” pode criar – fatalmente - uma situação de arbitrariedade do sujeito
contra o objeto, gerando um estado de não conhecimento da realidade além da destruição desta,
antes que ela tenha cumprido a sua finalidade, ou seja, o seu conceito. A distância, como
“detóur”, não é uma possibilidade para o conhecimento, mas uma necessidade pois a revelação
da coisa não é imediata, nem fácil – Kosík (1995, p. 28) admite que é “cansativo”. A pressa não

703
destrói a pseudoconcreticidade, mas o concreto em sua totalidade6. O desvio supera a
presentificação. “A distância não é nenhuma zona de segurança, e sim um campo de tensões”
(ADORNO, 1992, p. 111). Esta distância torna-se um locus e um tempo de inervações, dúvidas
e questionamentos diante e no interior do qual o pensamento se move em uma só direção: a
totalidade concreta, a verdade da coisa. A riqueza deste momento-espaço está na reprodução
espiritual da realidade em que o sujeito cria a realidade estudada como realidade humana,
portanto, não-física e, contudo, real porque parte do real.
A dialética da atividade e da passividade do conhecimento humano
manifesta-se sobretudo no fato de que o homem, para conhecer as coisas em
si, deve primeiro transformá-las em coisas para si; para conhecer a s coisas
como são independentemente de si, tem primeiro de submetê-las à própria
‘praxis’: para poder constatar como são elas quando não estão em contacto
consigo, tem de primeiro entrar em contacto com elas (KOSÍK, op. cit., p.
28).

O sujeito abandona o aparente para conhecer-lhe o que oculta. Mas este conhecimento
não é apenas a constatação do existente, a mera reprodução abstrata (imaginária) do objeto. Este
é um dos passos, a passividade, mas é necessária a atividade humana que faz do objeto um
objeto para si, criando-o como uma realidade humana. Não se conhece as coisas apenas “de fora
para dentro” – ou, como afirmou Horkheimer, ut dictum supra, “de cima para baixo”.
Onde o pensar é realmente produtivo, onde é criador, ali ele é
sempre também um reagir. A passividade está no âmago do ativo, é um
constituir-se do Eu a partir do não-Eu. [...] O pensar, enquanto ato subjetivo,
deve primeiro entregar-se verdadeiramente à coisa, onde, como ensinaram
Kant e os idealistas, constitui ou inclusive produz a coisa. Dela depende o
pensamento mesmo ali onde o conceito de uma coisa lhe é problemático e
onde o pensar se propõe primeiro a fundá-la ele mesmo. Mal se pode fornecer
um argumento mais forte em favor da frágil primazia do objeto [Objekt] –
compreensível apenas na mútua mediação entre sujeito e objeto – que o de
que pensar deve acomodar-se a um objeto até mesmo quando ainda não o
possui, até quando meramente pretende produzi-lo. [...] Kant ratifica
involuntariamente a primazia do objeto (ADORNO, 1995, p. 18).

A atividade do sujeito é complementar à sua passividade. Teoria e práxis não são dois
elementos separados, mas simultâneos e necessários para que se produza conhecimento.
Para a produção do conhecimento faz-se necessária esta dialética proximidade-distância.
Assim o pensamento que produz teoria – cuja tradução grega é “contemplação, especulação”
(THZU ȓ D, cf. PEREIRA, 1976) – é o pensamento que reproduz o dado, mas o transcende
naquilo que o objeto apenas aparenta. A submissão do objeto à práxis humana é um momento
da contemplação ativa e, no entanto, não violenta, ou seja, sem impor arbitrariedades ao objeto.

6
Uma metáfora significativa é a história da “galinha dos ovos de ouro”. A impaciência que busca
saciedade na pressa mata a galinha, elimina, definitivamente, a possibilidade de outros ovos e frustra o
sujeito apressado. Não há nenhum ganho, só derrotas. O ditado popular: “a pressa é inimiga da perfeição”

704
“A contemplação não-violenta, de onde vem toda a felicidade da verdade, está vinculada à
condição de que o contemplador não se incorpore o objeto: proximidade à distância”
(ADORNO, 1992, p. 77). O encontro, a relação sujeito-objeto, é o “kairós” – (NDLUó]) -,
“tempo oportuno, lugar conveniente, ponto vital (do corpo)” (PEREIRA, 1976). O tempo de
produção da teoria é o kairós, sinônimo de realização de verdade.
O fato de que de tudo se pode elaborar uma teoria, e que tudo pode
ser submetido a um explícito exame analítico demonstra um certo ‘privilégio’
de que goza a esfera teórica em confronto com as demais. [...] A teoria não é
nem a verdade nem a eficácia de um outro modo não teórico de apropriação
da realidade; ela representa a sua compreensão ‘explicitamente reproduzida’,
a qual, de retorno exerce a sua influência sobre a intensidade, a veracidade e
análogas qualidades do modo de apropriação correspondente. [...]A
consciência humana é ‘reflexo’ e ao mesmo tempo ‘projeção’; registra e
constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa; é ao mesmo tempo receptiva
e ativa. Deixar falar a ‘coisa em si’, não acrescentar nada, mas deixar as
coisas tal qual são; para isso, é necessária uma atividade de gênero particular
(KOSÍK, op. cit., p. 32-3).

A possibilidade de tudo poder vir a ser teorizado há que ser sempre exercida nesta
perspectiva de produção e reprodução da realidade, sem a violência contra o objeto, ou contra o
sujeito. Para Adorno (1992, p. 76): “Querer reduzir o mundo em palavras a partir de um
princípio é o comportamento de quem gostaria de usurpar o poder ao invés de resistir a ele”. Se
o sujeito parece ter “poder” sobre o objeto, há que se reconhecer a primazia do objeto:
Se se quiser, entretanto, alcançar o objeto, suas determinações ou
qualidades subjetivas não devem ser eliminadas: isso contradiria,
precisamente, a primazia do objeto. Se o sujeito tem um núcleo de objeto,
então as qualidades subjetivas do objeto constituem, com ainda maior razão,
um momento do objetivo (ADORNO, 1995, p. 188).

O objeto é o que se busca conhecer por isto é que o objeto “é quem deve falar”. O poder
do sujeito se realiza e se engrandece – porque na aprendizagem o sujeito aumenta a sua
humanidade e sua liberdade - na não usurpação deste poder contra o objeto, na “aprendizagem”
daquilo que o objeto ensina. A atividade do sujeito, no conhecimento, é a experiência: “A
posição-chave do sujeito no conhecimento é experiência, não forma” (id. ibidem, p. 194). A
experiência é a relação frutífera que envolve sujeito e objeto para produzir, sujeito e objeto,
esclarecidos em suas naturezas, constituições e finalidades. “O homem tem de envidar esforços
e sair do ‘estado natural’ para chegar a ser verdadeiramente homem (o homem ‘se forma’
evoluindo-se em homem) e conhecer a realidade como tal” (KOSÍK, op. cit., p. 27). Este
“estado natural” poderia ser interpretado como o estado em que as coisas se dão como “mundo
dos objetos fixados”, ou seja, no seu aspecto fenomênico e estático, prático utilitário, das
representações comuns e de meras relações de tráfico e manipulações quotidianas (cf. ibidem, p.

pode ser ampliada como inimiga das realizações de riqueza humana, inclusive naquilo que riqueza

705
15). Assim a humanidade se forma, como humanidade, conhecendo. O conhecimento é
humanizador. Mas o conhecimento não se reduz ao dado, nem ao usufruto quotidiano das
coisas. O que humaniza é o conhecimento, conhecer e realizar a verdade das coisas.
Notadamente a verdade do sujeito é a que mais compromete a não-realização das outras
verdades, ou seja, o método que se há de adotar para que se produza um conhecimento
humanizante e, assim, humanizado é o método dialético.
Kosík (op. cit., p. 27-39) seguindo o pensamento marxiano propõe o método dialético
de investigação e de exposição. Para ele o método de investigação tem três “momentos”:
1. minuciosa apropriação da matéria, pleno domínio do material,
nele incluídos todos os detalhes históricos aplicáveis, disponíveis;
2. análise de cada forma de desenvolvimento do próprio material;
3. investigação da coerência interna, isto é, determinação da unidade
das várias formas de desenvolvimento.
Sem o pleno domínio de tal método de ‘investigação’, qualquer
dialética não passa de especulação vazia (ibidem, p. 377).

O acúmulo que resulta da apropriação minuciosa da matéria, a seguir, torna-se objeto


para o aprofundamento por meio da “análise de cada forma de desenvolvimento do próprio
material”. O que a realidade oferece, que foi tornado conteúdo para o sujeito, agora é tornado
objeto de análise. Interessa desvelar as formas de desenvolvimento do objeto a partir e no
interior do objeto.
[...] todo conocimiento fructífero tiene que echarse a fondo perdido
en los objetos. [...] La verdad obliga al pensamiento a detenerse ante lo más
mínimo. No hay que filosofar sobre lo concreto, sino a partir de ello. Pero la
entrega al objeto específico pasa por sospechosa de carecer de una posición
definida” (ADORNO, 1975, p. 20; 40; 1).

O sujeito se faz conduzido pelo objeto para esclarecer o objeto a partir dele. O sujeito
não se instala no concreto, não faz sua morada na fisicalidade da coisa: parte da aparência.
“Filosofar sobre o concreto” significa a redução da filosofia – do pensamento – ao factível como
um conjunto de relações que podem ser quantificadas e esmiuçadas pelo olho biológico. Este
equívoco – característica de uma mente que se recusa à teoria – reforça a tese da presentificação
e da mera manipulação dos objetos “para o gasto da vida quotidiana”. Já é uma usurpação dos
sentidos da realidade. Danifica-se a realidade ao tomá-la como mera aparência e fisicalidade.
Não ultrapassar esta rala consciência é sinônimo de tomar a realidade para justapor-lhe,
arbitrariamente, as falas, interesses e juízos a priori (“pré-juízos”) do sujeito sobre o objeto. À
análise do sujeito que, aparentemente lhe garante alguma autonomia e superioridade, firma-se o
objeto e sua pletora de conteúdos e significados. A análise significa em primeiro lugar aprender
com a realidade, ou seja, respeitar a primazia do objeto.

significa endinheiramento.

706
Na análise que busca a compreensão da estrutura da coisa o sujeito se apropria da
realidade como objeto seu; cria uma realidade como realidade sua que lhe permite o movimento
seguinte, ou seja, a “investigação da coerência interna, isto é, determinação da unidade das
várias formas de desenvolvimento”. A coerência interna da coisa significa o cumprimento de
seu conceito.
A investigação busca conhecer aquilo que é novo, o que não aparece e, de alguma
forma, aparece silenciada, cognoscível mas não revelada (não dada), como uma “‘totalidade
misteriosa’ que à primeira vista se apresenta obscura e confusa” (KOSÍK, 1995, p. 35). Esta
realidade não aparente, em meio à vida pragmática e utilitária é o novo, aquilo que ainda não se
manifestou, nem se manifesta no fenômeno. É possível compreender o novo “reduzindo-o ao
velho, isto é, à condições e hipóteses. Nesta concepção o novo se apresenta como algo externo,
que se anexa num segundo tempo, à realidade material” (ibidem, p. 35). Semelhante expressão
se encontra em Adorno (1975, p. 68): “Es un elemento de la dialéctica considerar lo nuevo y
distinto como la repetición de lo antiguo y conocido. Pero por evidente que sea la conexión de
este elemento con la tesis de la identidad, ésta no es su paráfrasis”.
O método dialético não é nenhuma camisa de força, mas um modelo para o pensamento.
“Pensar filosóficamente significa pensar en modelos; la dialéctica negativa es un conjunto de
análisis de modelos (ibidem, p. 36).
Tanto a pseudocultura, quanto a pseudoconcreticidade, são portadoras de uma
característica análoga: em ambos os casos o sujeito se apropria de uma parte da cultura, ou da
realidade, como se esta parte fosse o todo, ou seja, não se reconhece o objeto como tal nem as
suas múltiplas relações e significados. Desta forma pseudocultura e pseudoconcreticidade se
manifestam como formas (manifestações) de uma consciência que não se permite conhecer, mas
submete, de forma administrada, o objeto que lhe produziria como humano. Pseudocultura e
pseudoconcreticidade são manifestações da idolatria do sujeito e desprezo, em parte, pelo
objeto. Alguém que é meio desprezado, já é desprezado. Daí que, tanto em Adorno quanto em
Kosík se pretende a cultura e a concreticidade, respectivamente, e isto se busca e se produz em
um terceiro momento; no momento intermediário entre o “pseudo” e aquilo que é aceito e
negado.

7
Esta citação consta na introdução desta tese.

707
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708
Realização subjetiva e felicidade sob a Indústria Cultural

Pedro Rocha de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)

Embora sejamos cada vez menos capazes de sentir e manifestar um incômodo específico
diante disso, é um traço essencial da sociedade contemporânea que existem desenvolvimentos
técnicos que permitiriam proporcionar para todo o mundo bens suficientes para a subsistência, mas
que essa tecnologia não é empregada para tanto, e nem ao menos existe a instância pública com
poderes para cogitar seriamente fazê-lo. Para compreendermos completamente esta caracterização –
a qual Adorno desenvolve de forma sucinta e clara no texto Capitalismo Tardio ou Sociedade
industrial, discurso de abertura ao 16o Congresso Sociológico Alemão, 1968 – é necessário que
entendamos que aquele “desenvolvimento técnico” não diz respeito apenas à dominação da
natureza, técnicas de produção de alimentos e de outros bens fundamentais, mas também às técnicas
e instituições de controle do mercado, essa “segunda natureza” que, numa primeira fase do
capitalismo, era regida por leis alienadas, leis sobre as quais os próprios homens não tinham nem
podiam ter qualquer poder, visto que participavam do mercado de maneira cega, como produtores
de mercadorias engajados numa competição de todos contra todos. Mas o ponto é que, com o
advento do neoliberalismo, o Estado nas sociedades capitalistas exercita e usufrui o conhecimento
daquelas leis do mercado através de instituições que regulam a economia, escarnecendo ainda mais
da possibilidade objetiva de controlar a sociedade e orientá-la à produção das condições para a
emancipação dos homens. O paradoxo fundamental que essa situação geral encerra, a coexistência
entre a possibilidade de satisfação total das necessidades materiais e a necessidade irracional de
refrear essa satisfação, e até a violência psíquica que resulta de tudo isso no nível pessoal, são
forças explosivas nas quais talvez possamos dizer que o próprio Marx confiava quando encontrava a
revolução como o resultado sintético da contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção. Em nossa sociedade, contudo, essa explosão está contida: ela não encontra vias de
expressão objetiva. Minha intenção é analisar certos aspectos fundamentais dessa contenção e, para
tanto, parece-me muito profícuo o ponto de vista da teoria psicanalítica, a qual fornece meios
interessantes para se pensar o desejo, a satisfação e a insatisfação.
Uma das importantes portas de entrada para uma crítica social de inspiração psicanalítica é o
Mal-Estar na Civilização de Freud. A tese principal, aí, é que a sociedade sempre “deixa a desejar”,
quer dizer: sempre há um déficit entre o que a pessoa busca e aquilo que a sociedade permite que
ele realize. Quando, nos escritos mais voltados para o âmbito subjetivo, Freud discute a formação

709
do Ego, ou seja, a formação da representação de uma unidade pessoal, o reconhecimento desse
déficit, essa insatisfação inescapável, figura como o elemento fundamental no processo conhecido
como “castração”. Poderíamos dizer que esse processo complexo e importante marca a transição
entre o bebê e a criança – entre um ser absolutamente dependente da mãe, cujos desejos são por ela
previstos e adivinhados, e uma “pessoinha”, alguém que está prestes a aprender a caminhar com as
próprias pernas e – o que é importantíssimo – a manifestar seus próprios desejos através da fala.
Uma discussão freudiana sobre a aquisição de autonomia psíquica, sobre a formação da
personalidade, é indissociável de uma discussão sobre a aquisição de linguagem. Pela linguagem, o
desejo – algo, de início, essencialmente subjetivo – torna-se “sociabilizável” através da nomeação
dos objetos de desejo em termos extra-subjetivos, ou seja, públicos. É verdade que, aí, há um
momento que nos parece conceitualmente paradoxal: para obter o que deseja para si, a criança
precisa aprender a designar aquilo que ela deseja da mesma maneira que os outros, o que, no fim
das contas, significa que ela só poderá desejar aquilo que deseja a sociedade dos falantes em meio
aos quais ela nasceu. Mas esse paradoxo é, na verdade, mais antigo que o processo de castração:
objetivamente, o bebê já o experimenta, na medida que, inversamente, sua capacidade de
comunicação é praticamente nula. Ele não pode dizer: tenho frio ou sinto fome, e depende dos
outros para que lhe seja oferecido um casaco ou um seio. De maneira mais ou menos acertada, a
mãe (ou a pessoa que desempenhar o seu papel) adivinha os desejos do bebê e cuida de satisfazê-los
e, no caso de uma adivinhação sem sucesso, a continuação do choro do bebê proporciona sempre
uma nova chance. De qualquer maneira, fato é que o bebê vai aprender a desejar também através
dessa adivinhação ou projeção materna (à qual corresponde o mecanismo de introjeção): como
supor que, ao nascermos, já “sabemos” o que é o leite da nossa mãe, e já prevemos o prazer que ele
proporcionará, em termos da satisfação daquilo que, algum tempo mais tarde, poderemos chamar de
“fome”? No caminho da razoável especulação freudiana, mais certo é supormos que sentimos fome
mas não sabemos de quê, e que é nossa mãe que nos preencherá os dois vazios: tanto o de leite
quanto o de saber o que é o leite; o da coisa e o da representação da coisa. Mais ainda:
objetivamente, este preenchimento só acontecerá na medida em que a mãe tem o desejo de oferecer
o seio ao bebê; sendo assim, quando o bebê se alimenta, ele apazigua sua falta, e ao mesmo tempo,
satisfaz o desejo de um outro, da sua mãe. Há que se observar – e isso é muito relevante para a
discussão da Indústria Cultural, como veremos – que a mãe não inventa a necessidade, ela somente
determina o objeto dessa necessidade, aquilo de que a falta do bebê se trata, pois a necessidade de
alimento existiria mesmo que não existisse a mãe. Nesse sentido, o paradoxo da satisfação de si
mesmo através de uma identificação com o que vem do outro, ainda que de fato realmente já venha

710
do berço, é, então, praticamente desconsiderável, quando comparada ao que ocorrerá quando da
ascensão dos desejos à linguagem. Aí, não é mais a mãe que advinha o que o bebê deseja, é a
criança que, ao nomear, determina o que deseja, mas com uma ressalva: só pode ser desejável o que
for nomeável, e só é nomeável, afinal, aquilo que a sociedade reconhece como mais ou menos
legítimo.
Sob o ponto de vista da formação subjetiva, este é o relato para as razões do mal-estar
necessário à civilização: podemos desejar o que bem entendermos, mas o conjunto dos objetos
desejáveis não é suscetível à escolha. E da mesma forma como os objetos de desejo mudam depois
da aquisição de linguagem, a forma da satisfação também mudará, então. Se, antes da linguagem, o
bebê tinha a impressão de não haver diferença entre aquilo que ele desejava e aquilo que lhe era
oferecido, visto que a mãe adivinhava a natureza dos objetos de seus desejos e o momento em que
eles se manifestavam, sua satisfação aparecia como uma auto-satisfação. É mais ou menos isso que,
tecnicamente, o jargão psicanalítico designa por narcisismo: o momento em que toda satisfação é a
satisfação de si mesmo consigo mesmo. O importante, nesse momento, não é o leite ou o seio, é o
“seio-boca”, para usar a expressão de Piera Aulagnier em seu A Violência da Interpretação. Mas
quando os desejos se tornam lingüísticos, a criança precisa admitir uma certa partezinha de falta
dentro da sua satisfação. A mãe precisa ser reconhecida como algo que está no mundo, que é,
inclusive, objeto de desejo de outras pessoas, e que, de fato, deseja outras coisas além de dar o seio
ao bebê – o que explica, aliás, que esse seio às vezes lhe falte. Mas aquela ascensão à linguagem,
por outro lado, não pode ser somente desvantajosa, ou então, como Aulagnier enfatiza, nós
simplesmente nos recusaríamos a empreendê-la. Por que aceitaríamos a autonomia psíquica e a
participação na sociedade se tudo que ela nos garantisse fosse uma medida de falta dentro de nossa
satisfação?
Ao meu ver, a própria formulação desta pergunta expressa o aspecto da teoria psicanalítica
que a torna, especialmente progressista, no sentido de suas potencialidades para contribuir em uma
teoria crítica da sociedade. O que está em jogo aqui é admitir que a sociedade precisa ser criticada
em termos na satisfação que ela proporciona. Em termos dos problemas envolvidos na formação da
personalidade individual, o que a teoria nos aponta é que a criança, por um lado, não poderá mais
acreditar que sua mãe é uma parte de seu próprio corpo e, assim, não poderá mais desejá-la como
objeto principal; mas, por outro lado, e em compensação, ela poderá desejar todas as outras
mulheres do mundo. A criança não poderá mais encarar seus desejos como o centro de seu próprio
universo; em compensação, o universo aumentou muitíssimo de tamanho, e abrange muito mais do
que apenas o seu próprio corpo, sua própria história individual, e os desejos relativamente simples

711
que podia introjetar sem mediação a partir de sua mãe. A criança perde a imagem narcísica de sua
auto-importância – ou seja, ela “castra” a si mesma –, perde a necessidade de atribuir à sua mãe
uma importância fundamental e um poder irrestrito sobre sua própria existência – quer dizer, ela
“castra” sua mãe, também – e perde o medo mortal daquilo que está além da relação entre ela
própria e sua mãe, ou, em última análise, entre o que ela encarava como uma satisfação perfeita dos
seus desejos – “castrando”, afinal, a própria sociedade.
Essa honestidade freudiana diante da frustração inerente à vida em sociedade foi chocante
para a mentalidade da belle époque, quando a ideologia burguesa estava em seu apogeu – e,
portanto, também à beira do seu declínio. Ainda hoje, a teoria psicanalítica não raramente é
recebida como uma teoria pessimista; e, no entanto, aquela frustração de que Freud nos falava no
Mal Estar na Civilização nem de longe se compara à violência à qual a psique individual é
submetida hoje, menos de um século depois. Hoje, falar de um déficit necessário e fundamental
entre o desejo e a satisfação seria colocar em termos ridiculamente palatáveis uma nefasta situação
de manipulação das necessidades que difere em muito da que era possível na época de Freud. O
nível de satisfação possível que a civilização seria capaz oferecer ao indivíduo aumentou
muitíssimo, e isso faz com que a insatisfação sofra uma mudança qualitativa. No início do século
XX, havia apenas um vislumbre do que a tecnologia proporcionaria à humanidade em termos de
produção e circulação de mercadorias; a indústria, hoje, já chega em todos os lugares. Significa que
o déficit de satisfação para o qual a teoria psicanalítica aponta encaixava com o fato de que as
coisas não podiam ser exatamente da maneira que o indivíduo normal poderia querer: e apesar de
ser raro encontrar, nos escritos de Freud, alusões críticas diretas às condições de vida na sociedade
européia do início do século XX, é verdade que, para além dos efeitos exercidos por uma
sociabilização-em-geral sobre a formação subjetiva, as peculiaridades de cada sociedade incidirão
de maneira particular sobre a estrutura do aparelho psíquico, o que constituía o pressuposto,
compartilhado por Adorno, Horkheimer e Fromm, para a incorporação da psicanálise ao corpo da
teoria crítica. Desistir da satisfação narcísica pode ser mais ou menos difícil, e as condições
oferecidas pelo meio podem até tornar impossível “castrar” a sociedade, deixar de encará-la como
um outro que representa tão-somente a negação, sem nenhuma contrapartida, do prazer que existe
quando da mistura entre os próprios desejos e os da mãe. A ausência de contrapartida – um
elemento que deve infelizmente desempenhar um papel importante na formação psíquica de
indivíduos que crescem em condições socioeconômicas difíceis – favorece a fixação do indivíduo
em esquemas de desejo e satisfação que são mais ou menos incompatíveis com sua sociabilização: é
como se o indivíduo não fosse capaz de aprender a desejar publicamente. As chamadas “fantasias”

712
– as representações de si mesmo, dos outros, do mundo, que estão por trás de tal fixação – são
percebidas, mais tarde, no discurso do neurótico e do psicótico, e expressam a violenta dualidade
implicada pela crença – a qual a mais das vezes não é clara e formulável, existindo apenas
inconscientemente ou em seus efeitos práticos – na possibilidade de uma satisfação perfeita dos
desejos. O ponto, aqui, é que, se existe uma tal crença, instâncias que a contrariem também não hão
de faltar mesmo a quem tem a mãe mais dedicada. Mas se a personalidade narcísica –
pretensamente tão autocentrada – depende, no fundo, como vimos, da introjeção do desejo alheio –
se ela é constituída por aquela adivinhação que vem do outro, mas que o satisfaz como se fora uma
parte do si próprio, então a falta terá o significado fatal do esvaziamento completo da personalidade:
uma vez que não existe linguagem, não existe um desejo, não há o “conceito” de desejo, e nem o
reconhecimento de uma instância desejante permanente. Cada desejo, este desejo, é o desejo e,
portanto, quando a satisfação não se dá, o que se passa não é um adiamento, é uma ausência total e
sem perspectivas. É verdade que a fantasia dessa ausência expressa condições que um dia foram
reais: ela reflete o desespero de um bebê faminto que pode morrer se a ninguém der na telha ir
alimentá-lo. Aos poucos, contudo, o costume com a presença da mãe vai anestesiado esse desespero
– o que, evidentemente, só ocorre se a mãe puder se fazer presente, alimentar o filho, e, ainda por
cima, fazê-lo demonstrando prazer –, mas a castração envolve retirar do outro os últimos resquícios
da impressão de impotência diante daquele irrestrito poder de vida e morte que o outro tem sobre
ele, o que só pode ser feito alterando-se, como vimos, a forma do desejo. Trata-se, aliás, entre
outras coisas, de entender que o alimento não vem da mãe apenas quando ela bem-entende, mas que
existe um pai, uma família, enfim, um meio social, que reconhece a atividade de mãe e até a regula.
Em termos bem mais simples, isso significa, para a criança, entender que ela mesma não está
submetida apenas às inclinações pessoais de sua mãe, por que não é objeto de desejo
exclusivamente dela. E esse, então, é o pressuposto necessário para que, em contrapartida, a criança
possa ter interesse em desejar outras coisas, além da sua mãe. A questão, entretanto, é que a criança,
evidentemente, nada sabe de interesses, narcisismo e libido objetal: aquilo de que ela precisa é uma
“prova de amor” do mundo, uma chance de experimentar claramente o desejo do meio com relação
a si própria. Caso isso não ocorra, ou seja, caso tenha lugar uma ausência ou insuficiência de provas
de amor vindas desse terceiro elemento que existe para além da sua relação com a mãe, a criança
ficará presa ao esquema da satisfação narcísica. Só que existe, ainda, uma diferença entre essa
ausência ou insuficiência e a experiência de que se é efetivamente o objeto do ódio do outro. No
âmbito da formação da personalidade individual, quando essa experiência envolve os entes mais
próximos, ela tende a resultar na formação de uma psicose. A questão que me interessa é pensar no

713
que resultaria essa experiência quando a fonte do ódio não é o pai, nem a mãe, mas a sociedade.
Pois é razoável inferir logicamente a necessidade de tal experiência a partir das condições
econômico-sociais em que vivemos hoje. Como já indiquei, nossa situação hoje é tal que a
sociedade possui os meios para satisfazer as necessidades materiais de todos: se ela não o faz, é
porque “não quer”; e se a sociedade, hoje, simplesmente “não quer” preservar a vida dos indivíduos,
a despeito de suas capacidades, essa situação é diferente da que Freud poderia ter observado no
início do século XX. Nossa sociedade não é impossibilitada de satisfazer os desejos, ela
simplesmente não se organiza para fazê-lo. A pergunta que se deve fazer, então, é a seguinte: por
que não nos recusamos a nos socializarmos? Ou, talvez: o que é necessário para que seja possível
nos socializarmos nestas condições, e que tipo de sociabilização dos desejos é possível numa tal
sociedade?
Vimos como e porque a sociabilização dos desejos jamais é completa, pois sempre há um
déficit de satisfação, quando ela é comparada com a memória da satisfação (virtualmente) perfeita
que existia no narcisismo. A primeira tendência, na história de nossa infância, é que essa memória
apareça ainda como objeto do desejo, o que é expresso por aquelas crianças que já têm a fala,
embora ainda não tenham realmente sociabilizado seus desejos, e que dizem: no futuro, serei grande
e casarei com a minha mãe. Por outro lado, quando a castração se dá de forma completa e eficaz,
segundo o relato freudiano, o que sucede é que essa memória perde a forma de um passado ao qual
se gostaria de retornar, de um objeto particular, de uma determinada situação, mas é conservada
como um futuro mais ou menos incerto e vago: como a própria noção de um futuro possivelmente
agradável, uma realização possível, que é, no fundo, a imagem do próprio Ego adulto desejante, a
imagem de alguém que pode desejar sossegado, sem desesperar-se com a irrealização, e mais ou
menos conformado com o adiamento. Mas Freud identifica mecanismos que permitem socialmente
a manutenção do esquema pré-castração em pessoas adultas: as idéias religiosas, conforme a
discussão promovida em O Futuro de uma Ilusão, são um exemplo de tais mecanismos, mas penso
que a definição de ilusão encontrada aí poderia ser ampliada de tal modo que se pudesse falar de
ilusões laicas da mesma forma que de ilusões transcendentes ou religiosas, assim como o conceito
marxista-engelsiano de ideologia pode ser utilizado para caracterizar os dois tipos de discurso.
Nas palavras de Freud, “podemos chamar uma crença de ilusão quando uma realização de
desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas
relações com a realidade.” E por trás da ilusão religiosa, Freud encontra precisamente aqueles
desejos do período narcisista: o desejo de completude irrestrita, uma satisfação que provém de um
outro que tem o poder de nos salvar ou de nos deixar perecer, mas que escolhe nos salvar, em

714
conformidade com nossas ansiedades mais íntimas. Freud enfatiza, em sua discussão, os aspectos
pessoais envolvidos na questão das ilusões, mas podemos expandir sua discussão para dizer que
aqueles desejos do esquema pré-castração vêm à tona na psique adulta como uma reação às
dificuldades encontradas no mundo real que, de uma certa forma, confirmam as fantasias infantis a
respeito de uma alteridade frente à qual os desejos nada significam. É verdade que Freud, muitas
vezes pintado como pessimista, apresenta, ao contrário, um otimismo exagerado quando retrata as
perspectivas da realização da castração. Só em determinados estratos sociais é que a contrapartida
oferecida pelo meio poderia parecer suficientemente boa para engendrar, na criança, uma auto-
imagem confiante em um futuro promissor e em um ambiente onde seus desejos são realizáveis.
Certamente, devemos admitir que uma imagem cruel do mundo não transparecerá diretamente para
a criança, que só terá uma vaga impressão de tudo que se passa para a além de sua família, mas, por
outro lado, a atitude da família diante do mundo não só lhe será evidente, como será objeto do seu
maior interesse, na medida em que seu aparelho psíquico procura adquirir autonomia e um lugar no
mundo buscando alternativas para o esquema narcisista do outro todo-poderoso. De qualquer
maneira, para o caso da sociabilização dos desejos não ser completamente possível, haveria a opção
de se adotar um discurso que mantivesse no futuro a imagem do passado, mas encoberta: ao invés
de desejar a união total com a mãe, com o ente provedor, tratar-se-á de imaginar um mundo
transcendente onde não existe a falta, e um ente supraterreno que cuide para que tudo vá bem por lá.
Segundo me parece, a força da argumentação freudiana está em que ela mostra aquilo que
consideramos intelectualmente como algo excessivamente ingênuo ou até ridículo sob a ótica do
seu apelo visceral a um aparelho psíquico que, afinal, não é exclusivamente intelectual. As idéias
religiosas – as ilusões, a ideologia, em geral – não apelam ao sujeito apenas de fora, mas também de
dentro: elas são a fala dos seus desejos inconscientes. É verdade que, ao admitir isso, Freud, como
crítico da religião, se coloca numa situação paradoxal (a qual, de fato, é explorada, em O Futuro de
uma Ilusão, por seu contrariado interlocutor imaginário). Se o homem deseja a ilusão, se a ilusão
torna sua vida suportável, por que fazer uma crítica da ilusão? De fato, à primeira vista, a
perspectiva do aparelho psíquico particular parece justificar a ilusão, mas isso porque se trata
exatamente da saída, mais ou menos razoável, encontrada pela psique, para existir dentro das
condições adversas de uma determinada forma social. Toda a questão, contudo, é que essa saída tem
um preço. Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, discutem o quanto a imagem de uma solução
transcendente para os problemas humanos é perfeitamente compatível com uma atitude passiva
diante da realidade. Admite-se como ponto pacífico que a satisfação, a justiça, a liberdade, não são
possíveis nesse mundo – e elas talvez realmente não sejam –, mas só é suportável admitir isso

715
porque se concebe a existência de um outro mundo onde essas coisas são possíveis e se dão. É
verdade inclusive que, na medida em que a realização econômica nesse mundo ia se tornando, pelo
menos para alguns, cada vez mais possível, a religião ocidental foi, com o protestantismo,
assumindo cada vez mais uma mensagem do usufruto imanente do mundo. Assim, talvez possamos
dizer que haja uma perspectiva materialista comum que reúna, até certo ponto, a teoria de Freud e a
postura de Marx, para a qual a defrontação com a ideologia religiosa deveria ter a forma de uma
crítica que mostrasse o quanto a imagem transcendente do mundo correspondia ao encobrimento da
precariedade da realidade concreta, e servia à perpetuação desta precariedade na medida em que
tornava o discurso intelectual compatível com ela, reforçando uma imagem passiva para o indivíduo
– algo que, de fato, Hegel já apontava em certos momentos da Fenomenologia do Espírito.
Vale observar que, conforme me parece, a aproximação entre Freud e Marx, além desse
ponto, seria complicadíssima. É certo, por exemplo, que há inúmeras apreensões a respeito da
potencialidade transformadora da consciência individual dentro do materialismo marxista, e se, por
questões de tempo, não seria possível resolver tais questões de interpretação aqui, felizmente
tampouco seria interessante fazê-lo: muito mais frutífero é tentar, dentro dos limites da coerência
conceitual e de acordo com as premências políticas, incorporar aspectos dessas teorias dentro de um
modelo que nos permita colocá-las em movimento, continuando sua existência enquanto
ferramentas que critiquem um estado de coisas que merece ser criticado. E o fato é que nenhuma
das duas abordagens, nem separadamente, nem em conjunto, nos ofereceriam, diretamente, uma
ferramenta para criticar a situação do problema da ideologia na sociedade contemporânea: coube ao
esforço conjunto da Escola de Frankfurt acrescentar os elementos que apontassem um caminho
contemporâneo para a crítica.
O que torna nossa situação diferente, com relação à das ideologias dos séculos XIX e da
primeira metade do século XX, é que, conforme expressou a supracitada escola na produção
conjunta dos Excursos Sociológicos, o real, hoje, é ideologia de si mesmo. Uma sociedade na qual a
realização das necessidades materiais não é mais impossível precisa de um esquema ideológico
mais intrincado do que a postulação de um vago “outro mundo” que seria o reino da satisfação.
Aquilo que o mundo de antes não podia dar é, hoje, continuamente exibido para o indivíduo, e
negado a ele. A abundância, a superfluidade, a ostentação, o desperdício – termos que, aqui, tenho
que me limitar a utilizar em sua acepção corriqueira, mas que seriam passíveis de caracterização
mais precisa –, são traços da nossa experiência social mais quotidiana, mas também o são a miséria,
a privação, a falta, e sobretudo a exploração. A sociedade cuja estrutura técnica poderia oferecer a
satisfação das necessidades fundamentais e que as nega, propõe, em troca, outras necessidades cuja

716
satisfação não põe em cheque o esquema intrínseco de exploração e acumulação do trabalho sob o
Capital. A satisfação possível na nossa sociedade não é a satisfação que poderíamos aprender a
exigir ou buscar, sociabilizando nossos desejos, tornando-os compatíveis com o discurso, mas
tampouco é uma satisfação que podemos encarar como precária, adiando para um futuro-passado
transcendente a verdadeira satisfação: tal adiamento não serviria como compensação para a
ausência de algo que de fato e obviamente poderíamos ter aqui e agora. Ao invés disso, o que se
torna necessário é dizer que aquilo que se tem é a satisfação das necessidades; o que se torna
necessário é justamente negar a transcendência, e reafirmar a imanência precária como suficiente.
Assim, parece-me impreciso dizer, conforme se faz num jargão quotidiano, que, por exemplo, o
carro do ano é um símbolo de poder: o carro do ano é o próprio poder. É evidente que isso implica
um esvaziamento do conceito de poder, mas o ponto é que todos esses substantivos abstratos, com
seus pesos específicos de transcendência, não podem senão ser esvaziados na nossa sociedade. É
assim, também, que a cosmética oferta maravilhosas cores de cabelo desejáveis específicas, e a
cirurgia plástica vende o seio desejável, a bochecha desejável, e os padrões tornaram-se objetos
particulares alcançáveis, regredindo a consciência para o esquema pré-castração no qual ainda não
existia o geral, o conceitual. A felicidade – a ausência de necessidades materiais, como garantia
razoável de preservação tranqüila da existência – que é possível mas não é proporcionada só pode
ser substituída por algo que é possível e é proporcionado aqui e agora, de tal modo que o aqui e o
agora fica valendo como a felicidade, e a felicidade precisa perder seu significado verdadeiro.
Em termos psíquicos, as conseqüências disso parecem mais graves do que o retorno ao
narcisismo que ocorria através do apelo ao discurso ilusório da religião. Não se trata mais de um
mecanismo que equilibra a insatisfação apelando para a imagem do retorno de um passado
fantasiosamente perfeito e da perpetuação da menoridade, da incapacidade de desejar socialmente,
mas de uma perversão da capacidade de desejar socialmente, que perde, assim, sua posição como
contraponto “sadio” à fantasia. A necessidade de conviver com esse outro que é uma sociedade que,
conquanto não queira a felicidade do indivíduo, quer a sua destruição, engendra, pelo assim-
chamado processo de identificação com o agressor, uma revisão da própria natureza da felicidade.
A Indústria Cultural, como instância social que não apenas produz bens, mas produz, sob a forma
de propaganda, o discurso sobre a necessidade desses bens, é o dispositivo objetivo que torna
possível essa revisão. A lógica do procedimento da Indústria Cultural poderia ser colocada em
termos do seguinte discurso, dirigido ao indivíduo: a sociedade poderia garantir sua subsistência,
mas você não deseja a subsistência garantida, você deseja eletrodomésticos a prazo. Por um lado, a
supostamente confortável situação pré-castração da adivinhação do próprio desejo pelo outro, é

717
repetida aqui; por outro lado, aquilo que vem do outro sob a forma da adivinhação é, na verdade,
uma projeção autoritária que carrega ao mesmo tempo a mensagem da realização imediata e da
frustração. “O real é ideologia de si mesmo” significa que não há distância entre a satisfação e a
frustração: que, para a apresentar o que é bom e socialmente desejável, o meio apresenta a si mesmo
imediatamente, repete sua própria imediatidade, virando as costas para um futuro que, afinal,
poderia ser aqui e agora.
Pretendo, assim, ter sugerido uma resposta para a questão sobre como é possível sociabilizar
o desejo em nossa sociedade. Resta, então, dizer algumas palavras sobre a crítica à ideologia que
torna essa sociabilização possível, e sobre as perspectivas práticas de uma tal crítica, as quais,
infelizmente, até o ponto em que meus estudos chegaram, não parecem muito promissoras. Em
Capitalismo Tardio ou Sociedade Industrial, Adorno faz uma amarga referência à consideração
marxista sobre a transformação da teoria em força histórica na medida em que dela se apropriasse a
consciência proletária, dizendo que a eficácia desta força histórica foi provada pelo seu contrário,
uma vez que a ausência de teoria na consciência proletária é um fator importante para a conservação
e equilíbrio do Capitalismo em seu estado atual. Considerações como esta tangem um complicado
aspecto do marxismo, que é a relação de determinação da assim-chamada superestrutura – a
ideologia, a consciência – pela estrutura – as relações de produção, o estado de coisas material da
sociedade. Em termos talvez um tanto simplistas, e talvez compatíveis demais com a questão
freudiana da castração, significa dizer que as pessoas, para pensarem, precisam sobreviver e, para
sobreviver, precisam aceitar – pelo menos até certo ponto – a maneira como as coisas funcionam e,
então, procuram pensar de tal forma a não desafiar seu próprio compromisso prático com o status
quo. Contudo, conforme Marx procurou exaustivamente mostrar em toda parte, o ponto é que o
status quo – todos os chamados “modos de produção” – tem contradições intrínsecas e, assim, o
compromisso prático com ele acarreta, possivelmente, uma consciência de algo que ele não é, de
sua negação, de seu contrário, de sua superação. Mas o que parece especialmente problemático para
as perspectivas políticas da teoria nos dias de hoje é que o Capital, desde a época de Marx até a
nossa, desenvolveu uma forma popular de ideologia, amparada pelo dispositivo concreto da
Indústria Cultural, que, afinal, não precisa convencer um proletariado miserável, mas uma
população que encontra, sim, seu nicho dentro do sistema. É por isso, também, que o real é
ideologia de si mesmo: o produto ideológico não só não fala do transcendente, mas tampouco é de
natureza discursiva: ele tornou-se material e, ademais, facilmente acessível. Uma teoria que
criticasse as bases da sociedade de consumo não tem mais, a canalizar, o explosivo potencial da
contradição entre a produção da sociedade e a participação nela pois, com o desenvolvimento

718
surpreendente das forças produtivas, essa contradição transformou-se. Ademais, ao contrário do que
ocorria com a religião, a ideologia não aponta para fora de si mesma, não preserva um elemento de
felicidade especulativamente produzida: o fato de que a felicidade tornou-se palpável suprimiu o
momento especulativo da ideologia, que remete sempre à própria realidade. Parece-me que, mais do
que o aburguesamento do proletariado que diversas correntes do marxismo procuram incorporar em
suas problematizações históricas, o que tem lugar, hoje, é um aburguesamento do lúmpen, algo com
o que é bem mais complicado de lidar teoricamente. Nos termos gerais que procurei empregar aqui,
parece que a atomização do indivíduo promovida pela produção de desejos facilmente satisfeitos
leva a uma relação aparentemente imediata entre cada pessoa e a sociedade como um todo,
destruindo, pelo menos em termos da estrutura subjetiva, instâncias de mediação tais como a
família, as classes sociais, etc. Para chegar além do narcisismo, é necessária, como tentei mostrar, a
presença de uma “terceira pessoa” além de si mesmo e da figura que advinha os desejos e é
responsável pela nutrição: este terceiro elemento, quiçá a figura do pai, é alguém que dá dimensão
objetiva à presença da mãe, possibilitando a compreensão de que o desejo é algo que existe fora da
relação entre ela e a criança. Ao mesmo tempo em que a criança sente que o pai ou a terceira pessoa
é alguém a quem sua mãe deseja e, portanto, será objeto de seu ciúme – será culpado pela ausência
da mãe, por exemplo –, ela vai descobrir, também, que se trata de alguém que está dentro da
família, que tem a criança como evidente objeto de desejo e que, portanto, oferece um caminho de
passagem entre a esfera dos desejos particulares e o desejar universal e socializado. Esse caminho,
essa oportunidade de transição, é necessária para que a criança venha a entrar em contato com a
contrapartida para a realização fantasticamente perfeita do desejo introjetado adivinhado por sua
mãe, contrapartida essa que, como vimos, é a possibilidade de vir a desejar qualquer coisa.
Entretanto, uma vez que o âmbito no qual essa possibilidade teria lugar, aparece, hoje, como
produzindo desejos, repetindo a dinâmica da figura com o poder de vida e morte, presente no
imaginário narcísico, a mediação da terceira pessoa torna-se desnecessária. Isso significa que
desaparece justamente aquele momento em que é vivenciada e resolvida a diferença entre a
satisfação pré-castração e a satisfação em sociedade. Penso que, em termos sociológicos, é possível
sugerir que isso explicaria não só a ausência da chamada “consciência de classes”, mas também a
ausência de sua possibilidade, devido ao que parece ser uma incapacidade subjetiva estrutural de ter
interesses de classe, interesses comuns e compartilháveis que não digam respeito a satisfações
imediatas.
É verdade que, em todos os textos frankfurtianos de meu conhecimento em que é feita uma
aproximação entre as posturas teóricas sociológica e psicanalítica, é dada muita ênfase à diferença

719
entre o condicionamento econômico-social do indivíduo e o da estrutura subjetiva. Essa diferença
vem dizer que uma situação geral objetiva pode determinar um modo-de-ser geral da psique; uma
vez que mesmo esta estrutura subjetiva adaptada ao capitalismo tardio e à indústria cultural envolve
mecanismos de compensação, substituição, repressão, é evidentemente possível, mesmo desde um
ponto de vista teórico rigoroso, admitir a possibilidade de um rompimento com tal esquema. Pode
parecer preocupante o fato de que, em face da atomização do indivíduo, as conseqüências políticas
da crítica teórica ou ideológica sejam ridiculamente pequenas; tornou-se difícil pensar nas massas,
mesmo em um futuro distante, como blocos poderosos lutando por uma justiça universal. Somos
apanhados na malha paradoxal de uma formulação que nos diz que, para alterar a situação material
desumanamente injusta, é preciso que os homens adquiram consciência de classe, mas que, para que
isso ocorra, é necessário transcender um estado de individuação impotente que, por sua vez, é
conseqüência daquela situação material desumanamente injusta. Penso, entretanto, que a
consciência teórica dessas dificuldades não pode servir para impedir a elaboração de perspectivas e
caminhos de mudança, e o próprio fato de que as encontramos tão desanimadoras poderia, quiçá, ser
um efeito do despreparo de nosso aparelho psíquico para realizar uma ascensão à linguagem de
desejos que essa realidade reprime com tanta força e violência. A experiência da crítica teórica – e,
segundo Adorno, da obra de arte moderna – testemunham um modo de pensar que se livrou das
ilusões reificadas e imanentizadas deste mundo. É verdade que – conforme consta da Introdução da
Dialética Negativa –, para abrir mão de todas as ilusões, o pensamento teórico precisa, ao fim de
seu próprio processo, abrir mão de si mesmo, condenar a aparente suficiência dos gestos
esclarecidos da consciência. A teoria não é suficiente, ela é, antes, consciência da insuficiência, da
insatisfação; conforme se torna bem claro na discussão adorniana da obra de arte, a teoria crítica,
hoje, é o desespero elevado ao conceito; o desespero racional precisa substituir o consumo
desenfreado e toda forma de esperança fácil; ele é a consciência adequada à sociedade que deseja a
destruição do indivíduo. Essa consciência dará as bases para eventuais teorias sobre a mudança, as
quais, sinceramente, parece-me que ainda não possuímos. No mínimo, será uma maneira de nos
prepararmos para tempos em que a estabilidade aparente do capitalismo fique mal das pernas,
abrindo brechas maiores nas defesas psíquicas do homem atomizado.

720
BIBLIOGRAFIA

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em: www.efn.org/~dredmond/AdornoSozAddr.PDF. Acessado em 09/02/2006.
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S. E. Bronner e D. M. Kellner (orgs.) London: Routledge, 1989

721
TEMPO DA NÃO-LIBERDADE: SOBRE INDÚSTRIA CULTURAL, FUTEBOL

E TELEVISORES

Rafael Cordeiro Silva*

Em 2006 realizou-se mais uma edição da Copa do Mundo de Futebol. A cada

quatro anos as atenções se voltam para essa competição, que atrai a atenção de muitos

países, especialmente aqueles que têm representantes na disputa. Pela primeira vez o

certame foi realizado na Alemanha unificada. Em 1974, houve uma edição na antiga
1
Alemanha Ocidental, que foi vencido pela seleção local. Por isso essa edição gerou

uma expectativa de um novo sucesso germânico, pela importância econômica do país

agora unificado e pela tradição do futebol ali praticado. Fora do plano esportivo, porém,

o acontecimento em questão estimula muitas reflexões.

Os defensores da “boa causa” do esporte arrolam argumentos, para mostrar que

ele é capaz de romper as fronteiras geopolíticas e promover a união dos povos, algo que

o campo das discussões políticas não tem conseguido fazer. Prova disso é o fato de a

FIFA ter mais países associados do que as Nações Unidas. Em competições esportivas,

países historicamente inimigos puderam se defrontar amistosamente e praticar o Fair

Play, isto é, o jogo limpo. Disso os organizadores do evento de 2006 tiraram proveito

com o slogan “um tempo para fazer amigos” (a time to make friends).

A Copa do mundo pode ser vista também por outros ângulos. Pode-se

argumentar que se trata de uma oportunidade para romper a cadeia da produção, ainda

que minimamente, pois o trabalho alienado é suspenso para o acompanhamento dos

jogos pela TV. Seria a vitória do tempo livre como recusa da reprodução do capital, que,

a cada quatro anos, se vinga do escárnio a que os corpos estão sujeitos pela labuta

722
diária. Para tanto, basta aludir ao entusiasmo das pessoas por sua seleção nacional. No

caso específico do Brasil, a Copa do Mundo tem tamanha repercussão sobre a vida das

pessoas que a nação quase pára para ver os jogos da seleção de futebol. Não haveria

melhor exemplo de patriotismo e de sentimento nacional! Ou, para dar outro exemplo,

as comemorações das vitórias da equipe canarinho ou de qualquer agremiação esportiva

que reúna fanáticos torcedores são responsáveis por muitas ausências ao trabalho no dia

seguinte.

Por outro lado, não se pode desconsiderar que o sucesso da Copa do Mundo

cresceu na mesma proporção em que aumentaram os investimentos de marketing

futebolístico. Sob esse aspecto, sua edição na Alemanha em 2006 foi alardeada como o

maior evento desse gênero de todos os tempos. O fenômeno mercadológico em escala

avassaladora aliou-se à prática desportiva e ambos à indústria cultural, de tal modo que

nunca foi tão atual a constatação de Adorno e Horkheimer de que estamos diante de um

sistema. “Os diversos ramos assemelham-se por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se

uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para constituir um sistema”. 2 Pretendo

discutir nem tanto a influência da publicidade no esporte. O fato de os atletas terem se

transformado em garotos propaganda já é suficente. Mais fértil é a discussão sobre a

transformação do esporte em fenômeno da indústria cultural e, portanto, como uma peça

a mais a compor o sistema identificado por Adorno e Horkheimer. Num segundo

momento, gostaria de propor que a indústria cultural, embora exerça um poder

avassalador sobre os consumidores, é um ramo desse sistema que entendo ser mais

amplo, pois molda a sociabilidade contemporânea. Sua melhor tradução poderia ser

dada pela relação complementar de trabalho e tempo livre.

*
Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFU.
1
A Alemanha sediara dois anos antes as Olimpíadas de Munique.
2
T. W. ADORNO. A indústria cultural, p.92. Em outros escritos, a referência ao sistema se faz presente.
Por exemplo, em “A televisão e os padrões da cultura de massa”, ao comparar a indústria cultura e a

723
Em 1937, ao publicar “O fetichismo na música e a regressão da audição”,

Adorno dizia que os ouvintes regressivos se assemelhavam aos entusiastas de

automobilismo e futebol. Nessa época ele ainda não falava de um sistema. Muito tempo

se passou desde que esses três tipos sociais foram comparados. As características da

música de massa não sofreram variações significativas desde o diagnóstico de Adorno e,

por conta disso, ela continua a exercer a mesma influência sobre os ouvintes. Por sua

vez, o do culto aos esportes tornou-se fenômeno midiático e conheceu uma evolução

sem precedentes por conta de sua relação com a imagem. Transmissões esportivas pelo

rádio talvez se destinassem, nos tempos em que Adorno escreveu o texto em questão, ao

“homem que precisa matar o tempo, porque não tem outra coisa com que exercitar o seu
3
instinto de agressão”. Sem a imagem, o ouvinte ainda podia imaginar e sua

imaginação o expunha a situações em que seu instinto de agressão poderia ser ativado.

Agora o aficionado tem a seu alcance uma série de recursos técnicos, possibilitados pelo

desenvolvimento tecnológico. Assim, o entusiasta fanático assiste ao jogo, assiste ao

replay do jogo e aos programas esportivos em que supostos entendedores discutem o

jogo, a atuação dos atletas, dos árbitros e o esquema tático dos treinadores. Tudo isso

indica que “precisa-se dispor de muito tempo livre e de pouca liberdade...” 4.

Os tempos atuais fazem troça da filosofia da história e de sua crença no

progresso. Os pensadores da Aufklärung mantiveram a firme convicção de que a história

do homem seria marcada por um progresso constante que o levaria gradativamente do

reino da necessidade ao reino da liberdade. Depois de sanadas as carências materiais dos

indivíduos, instaurar-se-ia a liberdade plena. Marx chegou a afirmar que os homens se

encontravam na pré-história, porquanto não teriam conseguido ainda instaurar o reino

da liberdade. Talvez sejamos mais livres nos dias de hoje, devido ao progresso técnico,

cultura popular, Adorno afirma que “a cultura popular recente dela difere [da indústria cultural – rcs] na
medida em que se desenvolveu e passou a constituir um sistema”. Cf. p.547.
3
Idem, O fetichismo na música e a regressão da audição, p.187.

724
que dispensou o uso de força física e a substituiu pelo trabalho mental. Corrobora essa

crença o fato de os homens dedicarem menos horas ao trabalho e disporem assim de

mais liberdade.

A técnica, que se tornou a precursora da dominação racional da natureza, se

assenhoreou dos homens. Ela nascera para facilitar a adaptação e a auto-conservação.

Desde a invenção da roda até o surgimento dos televisores com tela de cristal líquido ou

de plasma construiu-se um processo em que, de instrumento, a técnica tornou-se dona

da natureza humana. Esse fato repercute na noção de liberdade. Entende-se aqui

liberdade sob um outro aspecto, diferente daquela noção apontada acima que significa

estar dispensado do trabalho. Esse outro aspecto da liberdade diz respeito diretamente à

esfera privada. No espaço burguês, esta esfera constituiu-se e, ao mesmo tempo,

reforçou-se no interior da família. Era a liberdade do indivíduo de se auto-referenciar e

de se individualizar diante das pressões sociais. Essa noção de liberdade diz respeito à

autonomia do indivíduo. Pode-se falar, então, de dois sentidos do termo: o primeiro é

determinado externamente, pelo desenvolvimento das forças produtivas e o segundo,

determinado internamente, por que a família representava a instância de resistência em

relação ao meio externo.

Ambos os conceitos se vêem comprometidos nos dias de hoje. A liberdade

entendida em sentido exterior acabou por se identificar com a possibilidade de consumir

produtos de toda sorte. Entre outros, isso se deveu à melhoria geral das condições de

vida das pessoas, resultado da produção de riqueza excedente e de conquistas sociais

jamais imaginadas na época do capitalismo liberal. Sob esse aspecto, burguês e

proletariado em luta por divergência de interesses deixaram de ser os tipos sociais

proeminentes. Hoje o empregado e o executivo são característicos do capitalismo

4
Ibidem, p.187.

725
avançado. A ambos é dado o poder de consumir e o consumo erigiu-se como sinônimo

de liberdade. De agora em diante, todos são consumidores.

A liberdade entendida em sentido interno também foi solapada. Ela aludia ao

burguês, modelo constitutivo da sociedade liberal, que se realizava como indivíduo.

Com a redefinição dos tipos sociais do capitalismo avançado e o com declínio da

instituição familiar, o espaço privado de exercício da liberdade também ficou

comprometido. A conseqüência dessa situação revela-se no fato de não haver tantas

diferenças no modo de ser e de agir de famílias de diferentes padrões econômicos. Não

mais o burguês e o proletário com diferentes interesses, porém o homem moderno, para

o qual pouco importa sua posição social. À medida que o progresso técnico permitiu

“dinamizar” a vida das pessoas, cunhou-se uma expressão que parecia traduzir a nova

condição social do homem moderno: o tempo livre. Hoje sobra mais tempo livre para a

vida privada. Uma constatação tão banal como essa não careceria de questionamentos

para o senso comum. Todavia, é justamente essa aparência de normalidade que precisa

ser posta em questão.

A técnica hoje não pode ser pensada separadamente, ela está em estreita relação

tanto com o capital e sua tendência à concentração econômica quanto com a

administração. Tem-se aqui a idéia de algo abrangente. O sistema, que Adorno e

Horkheimer referiram primordialmente à indústria cultural, engloba outros setores.

Entretanto, isso não retira dos teóricos críticos o mérito da constatação de que se trata da

“integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores”. 5 Talvez fosse até mais

correto ampliar a idéia de integração dos consumidores, conferindo-lhe a universalidade

hoje mais peculiar de referir-se ao conjunto de todos os indivíduos, independente de

qualquer prerrogativa que sugira uma relação direta de troca de mercadorias.

5
T. W. ADORNO. A indústria cultural, p.92.

726
A crítica da indústria cultural foi construída a partir de um duplo viés. De um

lado, transparece o argumento de Adorno, especificamente centrado na obra de arte e

sua relação com o mercado e o consumo e, de outro, o argumento de Horkheimer, que

prioriza o engano das massas, por intermédio da “colonização cultural” do imaginário

coletivo, com vistas à ofuscação da consciência. Depois que os argumentos se

entrelaçaram na Dialética do esclarecimento tornou-se difícil separar a autoria

específica de cada um deles. A continuação do argumento de Adorno evidencia que a

cultura foi transformada em mercadoria e, enquanto tal, submete-se à lei da troca

universal. Por sua vez, a idéia de Horkheimer não deixa escapar que as massas tornam-

se reféns da imensidão de produtos culturais e, divertindo-se, não se sentem obrigadas a

questionar a ordem estabelecida. Sob esse aspecto, a indústria cultural opera sobretudo

no inconsciente coletivo das massas, minando a capacidade de resistência e formação da

consciência crítica.

Ambos os argumentos confluem a partir da discussão do tempo livre: tempo

destinado à passividade intelectual, ao prolongamento do expediente de trabalho fora do

trabalho e à perpetuação da vida administrada. Sobre esse tema Horkheimer se

manifestara em 1941, no ensaio “Arte nova e cultura de massas”. Seguindo a mesma

lógica, Adorno mostra que o tempo livre difere substancialmente do ócio que diz

respeito a uma vida folgada que não se encontra premida pelas determinações

econômicas. Essa condição ultrapassa o modo de produção capitalista. Assim, podemos

dizer de uma vida no ócio entre os gregos, os aristocratas, os nobres e os burgueses.

Este seria o tempo da liberdade, em que os indivíduos poderiam exercitar suas

potencialidades e cuidar da própria ilustração. Já a expressão tempo livre é típica do

mundo contemporâneo e só pode ser pensada com o seu oposto, o tempo de trabalho.

Um não existe sem o outro. O tempo livre está associado ao desenvolvimento

727
tecnológico. Quanto mais desenvolvida é a sociedade industrial, mais o direito de gozar

o tempo livre aparece como exigência universal.

Vivemos numa época de integração total e sem precedentes. Todos os homens

são adestrados para desempenhar funções. Isso caracteriza a vida administrada. O

exercício das funções, para as quais as pessoas são preparadas, deve ser

meticulosamente levado a cabo, requerendo extrema concentração. E na medida em que

tais atividades não são prazerosas, necessitam dispêndio excessivo de energia. Deste

modo, o tempo passado longe do trabalho torna-se destinado a algo que não lembre em

nada o trabalho. A concentração é substituída pela distração; a diversão é destinada à

reposição da energia gasta. Assim, o tempo livre acabou por se transformar em tempo

administrado em função do trabalho. Essa tendência reforça a coisificação dos

indivíduos. Inúmeros fatores contribuem para que esse tempo distante da ocupação

laboral deixe de ser tempo de formação: o investimento em atividades de lazer, o cultivo

de hobbies variados e a barbárie da indústria cultural, dentre outros. Por isso Adorno

acentua que “o tempo livre tende em direção contrária a de seu próprio conceito,
6
tornando-se paródia deste”. Como falar em tempo livre em um tipo de ordenamento

sócio-econômico caracterizado pela existência regulada? Isso não teria outra definição a

não ser a de uma situação de não-liberdade, ou seja, de impossibilidade de escolha, já

que as pessoas nascem inseridas numa forma de organização e de relações de produção

da qual não podem escapar, salvo pouquíssimas exceções.

O tempo livre não é necessariamente preenchido pelo consumo de produtos da

indústria cultural. Atividades que se encerram em si mesmas como cortar a grama, fazer

faxina, lavar o carro, andar de bicicleta, realizar consertos domésticos ou aquelas tarefas

que caem sob o rótulo do “Faça você mesmo” não são redutíveis ao que normalmente se

entende pelo processo de bestialização típico da indústria cultural. Paralelo a isso, o

728
cultivo de hobbies também se inscreve nesse tipo de atividades: realizam-se no tempo

livre e, se não promovem a ilustração, pelo menos não imbecilizam. Isso faz supor que

existiria uma situação intermediária entre a estultificação e a ilustração. Porém Adorno

não transige e coloca também essas situações no perfil daqueles afazeres característicos

de uma vida danificada. Adotando como exemplo a sua própria vida, o autor comenta:

Aquilo com que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção
tão sério que me sentiria chocado com a idéia de que se tratasse de ‘hobbies’,
portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se
minha experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie (...) não me tivesse
endurecido. 7

Considerar o argumento de Adorno, que não faz concessões a nada que não

esteja diretamente relacionado à ocupação com a ilustração, permite concluir que

haveria uma disposição consciente nas pessoas que as levaria a aceitar como natural a

possibilidade de matar o tempo com ocupações triviais. Com isso, pode-se ampliar uma

tese expressa nas discussões sobre a indústria cultural, notadamente aquela que a vê

como mecanismo que age inconscientemente impingindo padrões estereotipados de

comportamento a todos os que caem vítimas de seus produtos.

Retomo novamente o exemplo da Copa de Futebol da Alemanha. Pela primeira

vez preparou-se um arsenal tecnológico para transmissão digital de seus jogos. O

aficionado pôde se sentir como se estivesse no estádio. Ainda mais, certamente não foi

por acaso que os fabricantes de televisores adotaram 2006 como o ano para o

lançamento massivo de aparelhos com telas de plasma ou de cristal líquido com

dimensões superiores à dos aparelhos convencionais. Diante de um desses novos

aparelhos, tem-se quase a sensação de estar em um cinema em casa. Assim, o problema

que Adorno levantara em seu escrito “Prólogo à televisão”, de 1953, sobre o tamanho

reduzido das pessoas na tela do televisor foi resolvido pela tecnologia.

Os quadros visuais são muito menores que no cinema. O público norte-americano


não gosta dessa pequenez e, portanto, trata-se de aumentar as imagens, ainda quando

6
Cf. Tempo livre, p.71.
7
Ibidem, p.72.

729
pareça difícil que, nas casas mobiliadas, possa alcançar uma dimensão que dê a
ilusão de um tamanho real. 8

Então, não poderia ser outra a conclusão de que o lançamento dessa nova linha

de aparelhos e a redução do seu valor de comercialização foi uma estratégia de

marketing que usou a Copa do Mundo, visando alavancar as vendas e popularizar o uso

desses aparelhos. Impossível não identificar nessa estratégia a unidade da indústria,

aquela mesma referida pelos escritos da Dialética do esclarecimento.

A dependência em que se encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em face


da indústria elétrica, ou a do cinema relativamente aos bancos, caracteriza a esfera
inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa confusa trama
econômica. Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito
atinge um volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre
as diferentes firmas e setores técnicos. 9

O aficionado, que investiu na compra de um televisor para assistir aos jogos com

a sensação de se sentir no estádio, não poderia ser tratado simplesmente como exemplo

típico daquele círculo vicioso que Adorno identificara na relação do ouvinte

desmemoriado com a música de massas. Ou seja, uma situação de sempre desejar o que

a indústria cultural lhe impinge e se encontrar num estado de infantilidade intelectual,

mantido pelo entrelaçamento de produção e consumo. Esse círculo seria alimentado

inconscientemente. Estamos agora diante de uma situação diferente. Trata-se de uma

dominação consciente. No tempo livre, as pessoas acabam fazendo aquilo que o sistema

espera que elas façam, sem que isso signifique exclusivamente a tendência à

bestialização. Por isso, este é o tempo da não-liberdade. Porém, a satisfação imediata é

conscientemente requerida. Em certos casos, as pessoas saberiam se tratar de uma

situação que se encerra em si mesma, ou seja, que produz a sensação momentânea de

realização que dura pouco mais que o instante de sua realização.

A idéia de que o mundo quer ser enganado tornou-se mais verdadeira do que, sem
dúvida, jamais pretendeu ser. Não somente os homens caem no logro, como se diz,
desde que isso lhes dê uma satisfação por mais fugaz que seja, como também
desejam essa impostura que eles próprios entrevêem; esforçam-se por fecharem os

8
Cf. p.65.
9
T.W. ADORNO; M. HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento, p.115-6.

730
olhos e aprovam, numa espécie de auto-desprezo, aquilo que lhe ocorre e do qual
sabem por que é fabricado. 10

Conscientemente, os indivíduos desejam o entretenimento e a semi-formação. E

o fazem em suas horas livres. Por isso, mais do que nunca, o tempo livre foi

transformado em tempo da não-liberdade. E isso alimenta os setores produtivos e

reforça a frieza e o embrutecimento dos homens.

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(org.) Theodor W. Adorno: sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994, p.92-99.
___________________. Prólogo a la televisión. In: __________________.
Intervenciones: nueve modelos de crítica. Trad. R. J. Vernengo. Caracas: Monte Ávila,
1969, p.63-74.
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ROSENBERG, Bernard; WHITE, David M. (org.) Cultura de massa. Trad. O. M.
Cajado. São Paulo: Cultrix, 1973, p.546-562.
___________________. Tempo Livre. In: __________________. Palavras e sinais.
Trad. M. H. Ruschel. Petrópolis:Vozes, 1995, p.70-82.
ADORNO. Theodor W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Trad. G. A.
de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
SILVA, Rafael Cordeiro. A atualidade da crítica de Adorno à indústria cultural.
Educação & Filosofia, v.13, n.25, jan./jun., 1999, p.27-42.

10
T. W. ADORNO. A indústria cultural, p.96.

731
Narrativa, Experiência, Sabedoria... e Educação.

Raimundo Nonato de Oliveira Falabelo


UNIMEP

Da invenção sem fim, da experimentação sem fim.


Onde está a Vida que perdemos ao viver?
Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento?
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?
ELIOT, T. S., 1988.

A matéria do narrador é a vida humana

Caminha a arte de narrar para o seu inelutável fim? Eis a angustiante pergunta que nos
deixa em sobressalto ao tomarmos conhecimento do texto “O Narrador”, de Benjamin (1983).
Este parece não alimentar mesmo que frágeis dúvidas sobre o provável fim da narrativa. No
mundo moderno, o arcabouço científico e epistemológico, que dá sustentabilidade e organização
a um determinado modo de produção material, técnica e ideológica da vida humana – o modo
de produção capitalista – a narrativa, enquanto relato da experiência humana, vem sendo
solapada pelo efervescente predomínio e difusão de uma informação de cunho cientificista.
Nessa ordem, a transmissão de um experiência humana gestada no intercambiamento de
vivências coletivas, caminha para seu impostergável fim. “A experiência do dia-a-dia nos diz
que a arte de narrar caminha para o seu fim, pois torna-se cada vez mais raro o encontro com
pessoas que sabem narrar alguma coisa direito” (1983, p. 57)
Benjamin, ao constatar esse fato, em seu antológico texto, faz uma emocionante defesa
da narrativa como substrato inseparável da condição humana, parte indissociável de nossa
qualidade humana, através da qual podíamos compartilhar coletivas sabedorias.
A arte de narrar caminha para seu desaparecimento porque aquilo que a constitui – a
troca de experiências entre os indivíduos – vem se tornando uma faculdade desprezada na vida
moderna. Sem meias palavras, Benjamin sentencia: “a experiência caiu de cotação e a
impressão é de que prosseguirá na queda interminável (BENJAMIN, 1983, p. 57).
A narração de que fala é aquela encarnada na experiência compartilhada, que nasce nas
trocas intersubjetivas entre os seres humanos sobre suas vidas, histórias vividas. Os narradores,
por assim dizer, recolhem e relatam “a experiência que anda de boca em boca”. Esta é a fonte
onde beberam os grandes narradores: as experiências humanas que se cristalizaram em
sabedoria e, por isso mesmo, deixaram de ser experiências particulares e individuais e se
constituíram num saber que traz as indissociáveis marcas da experiência coletiva e que,
portanto, compartilha-se pelas narrativas.

732
A experiência – Benjamin, deixa-o bem claro – era forjada na articulação de saberes
relatados e compartilhados. Nessa artesã academia se uniam, em dialética interação, os
conhecimentos vindos de distantes lugares com os conhecimentos vividos do presente. A
“Academia”, o locus de criação e disseminação, era o local de trabalho, no qual o artesão,
enquanto fazia, dizia, escutava. Trabalho e narração mesclavam-se no mundo do trabalho, pois
mestres e aprendizes eram ao mesmos tempo relatores e ouvintes. Aí o dom da escuta era a
faculdade inalienável da condição humana e possibilidade de emergência dos relatos. O
passado, resgatado pela memória, se articulava com o presente, com a novidade e se abriam em
possibilidades outras de compreender a vida. O viajante narrador relatava suas histórias e as
oferecia aos ouvintes sedentários. Mas, o que parece muito singular em Benjamin, é que essas
experiências só podiam ser compartilhadas num ambiente onde a escuta, o dom de ouvir, se
constituísse como parte da condição de viver e relacionar-se.
O mestre sedentário e os aprendizes volantes laboravam juntos nas
mesmas oficinas e todo mestre fora aprendiz volante antes de se haver
estabelecido em sua terra ou fora dela. Se camponeses e homens do
mar tinham sido os velhos mestres da narração, a condição de artífice
sua academia (BENJAMIN, 1983, p. 57)
O texto de Benjamin se apresenta, a mim, por um lado, como um saudoso canto de um
tempo no qual a totalidade da vida humana era fruída coletivamente e se articulava com o
mundo do trabalho e no qual ocorria a transmissão das experiências. Por outro, esse texto nos
traz uma perturbável crítica a um mundo – denominado de “moderno” – que perdeu de vista
aquela totalidade da vida humana, que se dissipou na pressa e na velocidade e nos eventos
fugazes, nos quais medram o individualismo e a especialização.
A fugacidade do mundo moderno impossibilita a emergência de uma experiência
enquanto encarnação de vivências e experiências compartilhadas, que estejam marcadas pela
historicidade, que se fizeram no lastro do processo histórico, no qual passado e presente se
davam a ver em novas sínteses, o que para Benjamin, era sabedoria.
O homem moderno habita um mundo cada vez mais diversificado e múltiplo,
esquadrinhado e dividido, ante às brutais transformações que ocorrem no processo produtivo e
suas conseqüências na definição e ordenamento de novas formas de vida e de relação do homem
com a cultura e com o coletivo, produzindo efeitos perversos nos processos educativos voltados
a formação desse homem. Marx e Engels (1975), em o “Manifesto do Partido Comunista”, já
denunciavam essa voracidade do sistema produtivo em emergência, de tudo subverter, quando
diziam que a
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os
instrumentos da produção, por conseguinte as relações de produção,

733
por conseguinte a totalidade das relações sociais... O constante
revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições
sociais, a incerteza e a mobilidade eternas distinguem a época da
burguesia de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas
com o seu cortejo de vetustas idéias e concepções são dissolvidas,
todas as novas que vão surgindo ficam velhas antes de terem um
esqueleto que as suporte. Tudo o que é sólido e estável se volatiza,
tudo o que é sagrado é profano, e os homens são por fim obrigados a
encarar sem ilusão a sua posição social e as suas relações mútuas(p.
63-64)

Em um mundo assim ordenado, Benjamin vê com angústia e sem ilusão o


desaparecimento da narrativa, pois, narrar, para ele, não se reduziria apenas à mera transmissão
de informação, mas seria a comunicação coletiva da sabedoria que flui nos conselhos dos
narradores. “O conselho, entretecido na matéria da vida vivida, é sabedoria1. A arte de
narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando”
(Benjamin, 1983, p. 59).
Compreende-se, assim, a angústia benjaminiana diante de um sujeito moderno privado
da experiência, porque, o que está em jogo é uma sabedoria que vive seus derradeiros momentos
de agonia. Sabedoria enquanto matéria da vida vivida que vai sendo suplantada pela hegemonia
de uma informação que já nasce velha, como afirmariam Marx e Engels (1975). O que está em
agonia é, por conseguinte, a sobrevivência da experiência humana constituída nas interações
intersubjetivas, forjada no abraço entre passo e presente. Assim, o que parece se revelar
fundante nas preocupações de Benjamin sobre a narrativa na vida moderna é que, com ela,
desaparece aquilo que lhe parece mais caro, que se chama sabedoria. Sobre esta, se lança uma
forma de conhecimento baseado na informação ou semi-informação, na objetividade, que traz
como status subjacente, uma pretensa a-historicidade.
O homem moderno, ávido de conhecimento e informação, torna-se insensível à
faculdade da escuta e, por assim dizer, da aprendizagem mediada pela experiência. “O narrador
é um homem que dá conselhos aos ouvintes. Mas se hoje ‘dar conselhos’ começa a soar nos
ouvidos como algo fora de moda, a culpa é das circunstâncias de estar diminuindo a imediatez
da experiência” (BENJAMIN, 1983, p. 59).
A apropriação da sabedoria – e poderíamos dizer, da aprendizagem – dá-se entre
narrador e ouvinte, o que pressupõe, a categoria da escuta como indispensável nesta relação,
pois “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra
vez em experiência dos que ouvem sua história”, diz Benjamim (1983, p.60).

1
Veja-se outra tradução: “O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria”
(BENJAMIN, 1987)

734
O desaparecimento da narrativa é, por conseguinte, o empobrecimento das experiências,
podemos supor a partir de BENJAMIN, já que a narrativa é a encarnação de experiências
coletivas que foram se constituindo no decorrer do processo histórico, social e cultural. Em seu
lugar, surge a informação, atrelada a seu princípio de verificabilidade, pois, “o que nela
[informação] adquire primazia é o fato de ser ‘inteligível por si mesma’. De modo que, se a arte
de narrar rareou, então, a difusão da informação teve nesse acontecimento uma participação
decisiva (...), pois o que chega até nós são fatos impregnados de explicações”. Em outras
palavras: “quase mais nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em proveito da
informação”. (p. 61). Assim, mergulhados que estamos numa ordem na qual tudo se volatiza –
para usar o termo de Marx e Engels (1975) – a narrativa dá lugar à informação. “O homem de
hoje não trabalha mais naquilo que não pode ser abreviado” (p. 63).
A narrativa, para Benjamin, é uma forma artesanal de comunicação, que não pretende
transmitir o puro ‘em si’ da coisa, como uma informação ou um relatório. Mergulha a coisa na
vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela. “É assim que adere à narrativa a marca
de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro”. (p. 63).
Na voz do narrador, assim, afloram as múltiplas vozes; afloram nela as marcas da coisa
vivenciada por ele ou a ele chegada pelas vozes daqueles que a viveram. Assim, na voz do
narrador flui – se não a vida vivida de quem a viveu – pelo menos de quem a relata, pois a
matéria do narrador é a vida humana e sua tarefa consiste justamente em trabalhar de maneira
sólida, útil e única a matéria das experiências – as suas próprias ou as alheias.

Experiência e conhecimento
Talvez Benjamin (1983) queira nos dizer que a narrativa, ao fazer o compartilhamento
de experiências, tenha como conseqüência, propiciar a modificação de nós mesmos, a
transformação e constituição de nossa subjetividade em um mundo dominado pela magia
técnica e pela absolutização da informação. Ao ouvir ou relatar não apenas nos informamos,
mas nos modificamos, nos transformamos.
Essa imagem da narrativa enquanto afetação e constituição de nossa subjetividade
aparece mais explicitamente em Larrosa (1996) quando este fala da formação como experiência,
uma vez que se trata de pensá-la “como algo que nos forma (ou nos de-forma e nos transforma),
como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos” (p. 134).
Larrosa faz a crítica de uma idéia de experiência enquanto limitada a um conjunto de
informações apreendidas pelos indivíduos, pois, nesse caso, nem tudo que aprendemos nos
afeta, há informações e saberes que se mantêm exteriores a nós mesmos. Deles, apenas
tomamos conhecimento como mais uma informação, e continuamos os mesmos, nada nos

735
modificou. Aqui talvez seja possível pensar a angustiante formação contínua do educador,
sempre submetido a programas que apenas o ilustram, mas que, de fato, não produzem uma
reconfiguração de sua prática. Talvez, aqui esteja o grande problema dos cursos de formação
dos educadores: trabalham a informação descoladas das experiências, das vivências e dos
saberes vividos pelos sujeitos em suas historicidades. E, parafraseando Benjamin, poder-se-ia
dizer que a formação assim não adere à subjetividade do formando a marca de quem forma
como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro.
Larrosa entende que a experiência seria aquilo que nos passa. Não o que passa, senão o
que nos passa. E eu acrescentaria, que a experiência seria aquilo que nos trespassa, que toca
profundamente a nossa subjetividade. Aquilo que não nos afeta não é experiência, porque “não
se resolve na formação ou na transformação daquilo que somos”(p. 137). Um mundo
inflacionado de informações que não nos formam, diria Benjamin.
Vivemos, então, num mundo dominado de um conhecimento exterior, que nos chega em
sua forma utilitária de mercadoria, que consumimos sem deixar marcas em nossas vidas. Para
Larrosa, pensar a formação “supõe cancelar essa fronteira entre o que sabemos e o que somos,
entre o que ‘passa’ (o que podemos conhecer) e o que ‘nos passa’ (como algo que devemos
atribuir um sentido em relação a nós mesmos)” (p. 137).
Essa imagem de experiência proposta por LARROSA faz-me evocar uma personagem
de Admirável mundo novo, de Huxley. Helmut, um professor de literatura, que, nas suas
indagações com um colega se pergunta: Como ensinar literatura na qual os alunos se sintam
como se fossem trespassados? Mas, como ser trespassado por poemas sobre ‘os cânticos
aromáticos’? Helmult vive em um mundo dominado pela tecnologia, pela assepsia técnica; um
mundo depurado de suas manifestações afetivas e emocionais e, principalmente, daquilo que
para Benjamin parecia tão caro: as trocas intersubjetivas pelas quais os sujeitos compartilhavam
sabedorias.
Em Benjamin, a narrativa é o compartilhamento de experiências entre narrador e
ouvinte, mediados pela linguagem, na relação intersubjetiva. Em Larrosa, a formação implica,
necessariamente, a capacidade de escutar (ou de ler), isso que as coisas têm a nos dizer. Uma
pessoa que não é capaz de se pôr à escuta cancelou seu potencial de formação e de
transformação.
Na relação de escuta, isto é, na intersubjetividade, há
alguém disposto a ouvir o que não sabe, o que não quer, o que não
precisa. Alguém está disposto a perder o pé e a deixar-se tombar e
arrastar por aquilo que procura. Está disposto a transformar-se numa
direção desconhecida. O outro, enquanto outro, é algo que não posso
reduzir à minha medida. Mas é algo do qual posso ter uma experiência

736
que me transforma em direção a mim mesmo (LARROSA, 1996, p.
138).

A experiência é a relação entre conhecimento e a vida humana. A categoria da


experiência serviu durante séculos, segundo Larrosa (1996), para pensar essa relação, uma vez
que a mesma era entendida como uma espécie de mediação entre ambos. No entanto, quando
essa idéia de experiência era vigente, os conceitos de ‘conhecimento’ e de ‘vida’ eram
radicalmente diferentes do que significam atualmente. O conhecimento passou a identificar-se
essencialmente com a ciência e a tecnologia; e estribou-se em categorias como infinitude,
universalidade, objetividade e impessoalidade. O conhecimento, assim, é algo que se encontra
fora de nós, do qual podemos lançar mão de forma utilitária a fim de satisfazer nossas
necessidades, sejam de qual espécie for, da sobrevivência orgânica à fruição estética; tudo se
nos apresenta dado e estocado.
O sentido da vida, por seu turno, acabou por se reduzir às dimensões da vida biológica,
diz Larrosa, estando o homem mais preocupado, agora, com a satisfação de crescentes
necessidades, criadas e estimuladas por uma insaciável lógica de consumo.
Esses significados que ‘conhecimento’ e ‘vida’ assumiram atualmente afetaram,
inegavelmente, o significado do conceito de educação, que, por seu lado, reduziu-se a um
pragmatismo utilitário de preparação dos indivíduos para o mercado de trabalho, assumindo
uma deliberada e hegemônica forma técnica. Educação, então, passou a significar a apropriação
de objetivos conhecimentos técnicos para possibilitar o ingresso no mercado de trabalho. Ou,
como diz, muito ironicamente, Larrosa: “Quando dizemos que a educação deve preparar ‘para a
vida’, queremos dizer que deve preparar para ‘ganhar-se a vida’ e para ‘sobreviver’ da melhor
maneira possível em um entorno vital. Nessas condições, é claro que a mediação entre o
conhecimento e a vida não é outra coisa senão a apropriação utilitária” (1996, p. 141).
Essa parece ser a preocupação central de Benjamin: a redução do conhecimento a uma
estrita dimensão pragmática, utilitária, advinda do desaparecimento da narrativa enquanto uma
unicidade que incorporava os atos da vida e os atos de conhecimento dessa vida. No entanto, o
homem moderno, torna-se cada vez mais fragilizado, mais carente de experiências e sabedorias.
Connelly e Clandinin (1995) ao destacarem o papel da narrativa no campo educativo,
argumentam que educação é construção e re-construção de histórias pessoais e sociais, de modo
que tanto os professores como os alunos são contadores de histórias e também personagens não
só das histórias dos outros, mas de suas próprias. O fato é que, dizem eles, “nós – seres
humanos – somos organismos contadores de histórias, organismos que, individual e
socialmente, vivemos vidas relatadas”. A narrativa, portanto, é uma das formas “pelas quais nós,
seres humanos, experimentamos o mundo” (p.13).

737
Narrativa como condição para nos apropriarmos de coletivas sabedorias, em Benjamin;
narrativa, assim, como a inter-relação de pistas e indícios, para conhecer a totalidade, intuída
pelos nossos ancestrais caçadores, na suposição de Ginzburg; narrativa como forma de dar
visibilidade aos múltiplos sentidos e significados que emergem nas relações intersubjetivas,
depreende-se em Fontana; narrativa como necessária à compreensão da vida humana e do outro,
de nós mesmos, conforme Larrosa; a narrativa como uma das formas de experimentarmos o
mundo, na poética de Connelly e Clandini – muitas são as imagens aqui expostas.

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738
INDÚSTRIA CULTURAL E PRODUÇÃO DA SEMIFORMAÇÃO: A EDUCAÇÃO
DANIFICADA

Raimundo Sérgio de Farias Júnior (Universidade Federal do Pará)

I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Quanto menos promessas a industria cultural tem a fazer,


quanto menos ela consegue dar uma explicação da vida como algo
dotado de sentido, mas vazia torna-se necessariamente a ideologia que
ela difunde (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 137).

É impossível que inúmeros trabalhadores, pequenos


empregados e outros grupos graças à sua consciência de classe ainda
viva, embora debilitada, não caiam nas malhas da semiformação
(Adorno, 1996, p. 395).

Os modelos de pensamento e ação que as pessoas aceitam já


preparados e fornecidos pelas agencias de cultura de massas agem por
sua vez no sentido de influenciar essa cultura como se fossem idéias
do próprio povo. A mente objetiva de nossa época cultua a industria, a
tecnologia e a racionalidade sem nenhum princípio que dê um sentido
a essas categorias; espelha a pressão de um sistema econômico que
não admite tréguas nem fugas (Horkheimer, 1976, p. 167).

Os escritos que ora apresento ao Congresso Internacional “A Indústria Cultural hoje”


possuem sua fundamentação teórica nos autores associados à tradição do pensamento
frankfurtiano, especialmente, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter
Benjamin. Tais escritos se desenvolveram no interior do Grupo FHIMCA (Filosofia, História,
Indivíduo, Memória e Cultura na Amazônia) e expressam um conjunto de reflexões tecidas
desde a graduação em pedagogia, quando, na condição de bolsista de iniciação científica, pude
me aproximar desta escola filosófica alemã e, a partir da afinidade teórica engendrada pelas
leituras efetivadas, construí minha forma de ler, entender e interpretar o mundo,
consubstanciados, em parte, no texto que segue. Este texto, tenta aproximar-se, em sua forma,
àquilo que Adorno (1994c) entendia ser a forma ensaio1, eleita pelos pensadores frankfurtianos

1
Adorno (1994c, p. 174-5), ao referir-se à forma ensaio, assim escreve: “O ensaio não compartilha a
regra do jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais, como diz Spinosa, a ordem das coisas
seria a mesma que a das idéias já que a ordem sem lacunas dos conceitos não se identifica com o ente, o
ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta, em primeiro lugar, contra
a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável, o efêmero, não seria digno da Filosofia;
revolta-se contra essa antiga injustiça contra o transitório, pela qual ele é mais uma vez condenado, no
plano do conceito [...]. A objeção contra ele, de que seria fragmentário e acidental, postula a totalidade
como um dado e, em conseqüência de sujeito e objeto; comporta-se como se dispusesse do todo. Mas o
ensaio não quer captar o eterno nem destilá-lo do transitório; prefere perenizar o transitório. A sua
fraqueza testemunha a própria não-identidade que ele deve expressar [...]. naquilo que é enfaticamente
ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade”.

739
como uma das maneiras encontradas para manifestarem seus pensamentos de forma livre, uma
tentativa de escapar ao cerceamento intelectual imposto pelo positivismo, impregnado na
academia, e pelas teorias herdeiras desta que, na modernidade, alcançaram uma hegemonia que
acaba criando uma objeção a outras formas de expor pensamentos, inclui-se a estas formas o
ensaio. Exponho, portanto, considerações transitórias, características de um ensaio, uma vez
que, aqui, não é intenção deste autor captar o eterno, mas sim perenizar o transitório.
O assunto abordado por estes escritos se processam num momento histórico em que a
industrial cultural2, me parece, pretender querer ser, além de hegemônica, absoluta, e, assim,
contribuir para supremacia da semiformação – tal como conceito formulado por Adorno (1996)
– na contemporaneidade. As consciências que, passivamente, absorvem a semiformação
divulgada pela industria cultural, acabam por se estultificar, burrificar, bestializar; um obstáculo
dificilmente sobreposto pelos indivíduos, um caminho contrário ao que Adorno e Horkheimer
(1985) entendiam como esclarecimento. Este estudo foi realizado com o propósito de apontar,
preliminarmente, as dificuldades que hoje, tendencialmente, impedem o processo de
esclarecimento, tal como formulado por Adorno e Horkheimer (1985), processo esse que
encontra dificuldades de se concretizar por conta do avassalador poder conferido à industria
cultural, principal divulgadora da semiformação (Adorno, 1996), hoje, generalizada e
socializada pelos indivíduos – ou o que restou deles – de nosso tempo e pela educação que,
estando danificada, não consegue contribuir para formar sujeitos críticos e emancipados. É um
estudo bibliográfico, cujas exegeses expostas desenvolveram-se a partir das reflexões
empreendidas pelos teóricos frankfurtianos indicados anteriormente ou de outros que, em nossos
tempos, tenham se dedicado a difícil tarefa de não deixar que o pensamento adormeça e enrijeça
completamente, pois “[...] uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da
teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça [...]”
(Adorno e Horkheimer, 1985, p. 51).

II. INDÚSTRIA CULTURAL E A ESTULTIFICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS: OS


PREJUIZOS DA (DE)FORMAÇÃO

Marx (1994), ao referir-se à mercadoria, assim a descreveu:


À primeira vista, a mercadoria perece ser coisa trivial,
imediatamente compreensível. Analisando-a, vê que ela é algo muito
mais estranho, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas.

2
O termo indústria cultural foi empregado pela primeira por Adorno e Horkheimer na Dialética do
esclarecimento. A intenção destes autores ao criar este conceito era estabelecer uma oposição ao termo
cultura de massas, que, no capitalismo tardio, havia tido seu aspecto descaracterizado, ou seja, esta
cultura de massas já não mantinha correspondência com o seu conceito; uma cultura surgida
espontaneamente das massas.

740
[...]. A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir
características sociais do próprio trabalho dos homens
apresentando-as como características materiais e propriedades
sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto,
a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o
trabalho total, ao refleti-la como relação social existente à margem
deles, entre os produtos de seu próprio trabalho. [...] Uma relação
social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile,
temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do
cérebro humanos parecem dotados de vida própria, figuras autônomas
que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre
com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo
a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do
trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da
produção de mercadorias. Esse fetichismo do mundo das
mercadorias decorre conforme demonstra a análise precedente,
do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias (p.
79, 81. Os grifos são meus).

A necessidade de retomar este trecho do Capital é para buscar um melhor entendimento


do porquê de Adorno e Horkheimer (1985) defenderem a assertiva de que a cultura, na
sociedade administrada, havia se convertido em uma mercadoria como outra qualquer.

A cultura é uma mercadoria paradoxal ela está tão


completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada ela se
confunde tão cegamente com uso que não se pode mais usá-la. [...]
Quanto mais destituída de sentido esta parece ser no regime do
monopólio, mais todo-poderosa ela se torna. Os motivos são
marcadamente econômicos (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 151).

Os produtos culturais industrializados, pois, tais quais uma mercadoria, obedecem,


rigidamente leis mercantis inexoráveis e sua padronização, imposta pelo sistema produtivo,
aquiescem à lógica do consumo. Tais produtos não visam, portanto, a satisfação de necessidades
realmente humanas, uma vez que, transformados em mercadorias, não cumprem as promessas
que seduzem seus ávidos consumidores. Uma cultura que, adoecida, não consegue contribuir
para um verdadeiro processo formativo. Cultura essa que, impedida de formar, inviabiliza a
emancipação e a autonomia dos indivíduos, antes colabora, fortemente, para o contrário, para o
que Kant (s/d) entendia por menoridade social; uma condição social em que o indivíduo não
consegue ser capaz de se servir do seu entendimento sem a orientação de outrem. Para Adorno e
Horkheimer (1985, p. 144-5):

Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da


padronização do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em
que sua identidade incondicional com o universal está fora de questão.
Da improvisação padronizada no jazz até os tipos originais do cinema,

741
que têm de deixar a franja cair sobre os olhos para serem reconhecidos
como tais, o que domina é a pseudo-individualidade. O individual
reduz-se à capacidade do universal de marcar tão integralmente o
contingente que ele possa ser conservado como o mesmo.

A cultura, mercantilizada, confunde, sutilmente, seus consumidores ao divulgar uma


propaganda falsa que atenta contra a autêntica formação dos indivíduos. Estes, estultificados,
não conseguem perceber que estão sendo enganados por algo que é imediatamente
incompreensível a um olhar completamente desatento, ou melhor, por um pensamento que já
não consegue perceber os simulacros que os produtos culturais conseguem ocultar com notável
êxito. Este adormecimento das consciências é favorável à dominação social imposta à classe
trabalhadora que, na atualidade, é, cada vez mais, excluída da possibilidade da formação, o que
contribui para que as elites dirigentes consigam dominar e controlar, com mais facilidade, os
grupos sociais com potencial subversivo. Em nosso tempo é perfeitamente fácil perceber que a
burguesia industrial tem expandido profundamente sua dominação – esta, por sua vez, é
facilitada por uma intensa integração econômica, política e cultural, em escala mundial –
favorecida pelo processo de reestruturação produtiva, ou seu sinônimo vulgar: globalização. A
burguesia, por possuir condições objetivas e subjetivas que favorecem a manutenção e
reprodução de sua hegemonia, consegue produzir e divulgar sua (pseudo)cultura ao restante do
todo social. Os grupos sociais, despossuídos dos meios para a produção e divulgação de suas
idéias, acabam incorporando as produzidas pela burguesia. Se a burguesia, no capitalismo
tardio, vem mantendo sua hegemonia isso se deve, entre outros fatores, ao fato de que sua
formação cultural é a que melhor se adapta ao modelo de sociedade existente. A sua formação
possibilita a ampliação e a expansão da dominação do capital, ao expandir e comercializar, ao
mesmo tempo, suas mercadorias. Do contrário, a ausência desta formação, sucumbiria, uma vez
que um dos motivos fundamentais que tem impedido a modificação das atuais formas de
exploração é a própria fraqueza subjetiva que acompanha as classes desfavorecidas
economicamente.

Sem a formação cultural, dificilmente o burguês teria se


desenvolvido como empresário, como gerente ou como funcionário.
Assim que a sociedade burguesa se consolida, as coisas já se
transformam em termos de classes sociais. Quando as teorias
socialistas se preocuparam em despertar nos proletários a consciência
de si mesmo, o proletariado não se encontrava, de maneira alguma,
mais avançado subjetivamente que a burguesia (Adorno, 1996, p.
392).

No capitalismo tardio, as elites dirigentes conseguem negar os pressupostos


fundamentais à formação dos indivíduos que vivem do trabalho. Isto é, recusa aos trabalhadores

742
qualquer possibilidade de elevação da subjetividade adoecida. O espírito adormecido,
facilmente, subordina sua razão ao que existe imediatamente (Adorno e Horkheimer, 1985).
Esta subordinação corresponde a uma singular manifestação da alienação, que coisifica e molda
as consciências que o mundo administrado aspira. Só o fortalecimento do pensamento, cuja
pretensão escapa aos fabricantes de produtos culturais, permite a destruição desta subordinação
a qual a razão está submetida na contemporaneidade. A dura lida imposta aos trabalhadores,
bem como as condições precárias de seu existir, se constitui em um obstáculo de difícil
superação para a construção de pensamentos emancipados, uma vez que até o ócio é
aproveitado, engenhosamente – pelos meios que propagam a ideologia dominante,
particularmente a indústria cultural – para que não reflitam sobre sua condição de explorado e,
muito menos, sobre quem os explora. Assim, as classes dominantes economicamente, para
manter seus privilégios, não têm poupado esforços para que a dominação das consciências
permaneça no estado em que se encontra: a semiformação. Indivíduos que não esbocem
qualquer resistência frente ao autoritarismo da sociedade presente, pessoas passivas,
subservientes, cumpridoras de ordens, ditames, incapazes de qualquer ação que as caracterizaria
como um ser autônomo: é o ideal de homem pretendido pela burguesia. Na verdade, todo esse
processo revela os prejuízos da (de)formação da classe que é subjugada aos preceitos do capital.
Esse prejuízo acarreta uma passividade que subtrai a historicidade das relações sociais
presididas pelo capital, um acomodamento às condições e contradições sociais que mantém
incólume a irracionalidade de uma sociedade que se sonhou, um dia, na época das luzes,
iluminada. Mas vivemos em uma época esclarecida? Assim Kant (s/d, p.112) responde:

Não, vivemos em uma época de esclarecimento [...] somente


temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual
podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente
menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou a saída deles,
homens, de sua menoridade social, da qual são culpados.

Como resolver esta contradição apontada por Kant em um contexto em que a indústria
cultural parece monopolizar a (de)formação das consciências em vias da estultificação
irreversível? Qual a possibilidade para a realização do esclarecimento? São essas as principais
questões, a meu ver, postos àqueles que, na atualidade, se encarregam da complicada tarefa de
educar.

III. SEMIFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO DANIFICADA: A (IM)POSSIBILIDADE DO


ESCLARECIMENTO?!

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o


esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens

743
do medo e investi-los na condição de senhores. Mas a terra totalmente
esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O
programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua
meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber
(Adorno e Horkheimer, 1985, 19).

Para Adorno e Horkheimer, o processo de esclarecimento encontrava-se impedido de se


realizar no mundo administrado por conta de, por um lado, o intenso processo de dominação das
consciências que recebem, por parte dos forjadores de opinião – conforme expressão de Adorno
(1969) –, apenas uma semiformação que nunca se converte em formação autêntica e, por outro,
pelas condições objetivas cada vez mais precárias da maioria da população e não, como
defendia Kant, apenas pela preguiça e a covardia.
Sendo assim, condições objetivas e subjetivas débeis impedem que os grupos sociais
desprivilegiados cultural e economicamente construam consciência crítica e, desse modo,
desvendam os arcanos que os impedem de construírem um pensamento emancipado e
autônomo. O processo de esclarecimento é dificultado, portanto, pela intensa influência que a
ideologia da classe dominante exerce sobre os indivíduos na contemporaneidade, sobretudo,
aqueles que possuem como único meio de (semi)formação os canais e instancias mediadores
controlados pelos divulgadores do pensar dominante que encontra facilidade em semiformar
seus educandos conforme ditames, antecipadamente, estabelecidos, visando o controle e a
dirigibilidade das massas semiformadas. Essas, com as consciências definhadas e deformadas,
não conseguem perceber os arcanos ocultados pelos produtos culturais, que portam, em seu
bojo, a ideologia dos grupos dirigentes, “[...] Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar
de semelhança [...]”. Por ser tão semelhante à vida social, acaba por confundir os indivíduos
semiformados, que, facilmente modulados, absorvem, na íntegra, as características
fundamentais dos preceitos contidos nos produtos culturais.
Importante papel desempenharia a educação caso se comprometesse a combater a
semiformação, ao invés de ser elemento subsidiário desta. Se, tal como escreveu Adorno (1993),
a vida está danificada, a educação, embora constitua uma das principais mediações para a
socialização do indivíduo no mundo, encontra-se, também, na mesma condição, em virtude de
não conseguir formar sujeitos críticos e emancipados e, ainda, colaborar, fortemente, para que
os mesmos permaneçam em uma situação de “escravidão”. Não que a escola seja assim. Na
verdade, está assim, por encontrar-se inserida em uma configuração social, expressão do
modelo político, econômico e cultural capitalista, que não permite à mesma ser mediação para a
autonomia dos indivíduos. Condição essa, embora contestada por muitos, corroborada pelo
impressionante número de alunos fora da escola. O discurso, historicamente entoado, “educação
para todos” não tem passado de uma falsa promessa, pois, por um lado, nem todos os

744
indivíduos, ainda hoje, possuem acesso facilitado à escola e, por outro, os que possuem com,
muita freqüência, “evadem” ou, freqüentemente, “repetem”. Entre os que repetem e evadem a
imensa maioria pertence às camadas sociais desprivilegiadas economicamente. E essa história
vem sendo reiterada, sistematicamente, ao longo dos anos em diversos contextos e situações,
com os mesmos personagens “repetindo” ou “evadindo”. Nas palavras de Patto (1991) é
necessário buscar as raízes históricas do fracasso escolar desses indivíduos.
Convém, neste momento, evocar Adorno (1994b, p. 87) quando analisa que:

[...] Está justificada a suspeita dos antigos críticos culturais,


segundo a qual num mundo em que a educação é um privilégio e o
aprisionamento da consciência impede de qualquer modo o acesso
das massas à autêntica vivência das formações espirituais, não
mais importam tanto os conteúdos ideológicos específicos quanto o
fato de que simplesmente haja algo preenchendo o vácuo da
consciência expropriada e desviando a atenção do manifesto
segredo (Grifos meus).

A educação existente, portanto, tem cumprido, no capitalismo tardio, uma tarefa que é
basilar para a dominação dos indivíduos: “desviar a atenção do manifesto segredo”. Segredo
esse o qual as massas nem desconfiam, mas que é vital para que a dominação permaneça
inalterada. Sendo a educação, ainda hoje, um privilégio, mesmo quando ofertada às massas não
possibilita uma verdadeira vivência formativa, cultural e emancipatória, porém os efeitos são
ainda mais nefastos quando as mesmas são excluídas de acessarem ou permanecerem nas
escolas estatais ou privadas. Ao preencher o vácuo das consciências semiformadas com a
ideologia dominante reforça a dominação imposta aos indivíduos pertencentes à classe
trabalhadora na contemporaneidade. Adorno (1995), atento a esta condição da educação na
contemporaneidade, vislumbrava o momento negativo da formação escolar; a tensão que
poderia permitir à educação contribuir para a emancipação dos indivíduos. Mas para isso ela
teria que ir além do well adjusted people, pois deveria possibilitar condições para o
esclarecimento e para a emancipação. Nas palavras de Adorno (1995):

A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o


objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem
no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto,
produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas,
em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente
no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito
de educação para a consciência a para a racionalidade uma
ambigüidade. Talvez não seja possível superá-la no existente, mas
certamente não podemos nos desviar dela (p. 143-4).

745
Importante contribuição teria a educação para a produção de consciências verdadeiras,
caso não estivesse controlada pelas forças conservadoras do poder constituído. Contudo, há
ainda a possibilidade de, no interior do espaço escolar – haja vista que as contradições
intrínsecas desse sistema perpassam todos os campos sociais –, se desenvolverem consciências
emancipadas. Estando, entretanto, atrelada ao poder dos administradores da sociedade, a
educação, tendencialmente, socializa a ideologia dos grupos dominantes e assim contribui para
manter sob controle qualquer insurreição dos grupos submissos aos ditames do capital. Adorno
(1995), porém, rasgando a impressão pessimista que seus escritos possuem, vislumbra uma
possibilidade utópica para educação, ao esboçar sua concepção inicial de educação:

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar minha


concepção inicial de educação, evidentemente não a assim chamada
modelagem de pessoas, por que não temos o direito de modelar as
pessoas a partir de seu exterior; mas também não a mera transmissão
de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais que
destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto
seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido
dizer assim, é uma exigência política (p. 141. Grifos meus).

A mera transmissão de conhecimento, no entanto, tem imperado, a meu ver, na


sociedade administrada, o que impede a produção de consciências verdadeiras, bem como a
emancipação dos indivíduos. É a educação danificada contribuindo, fortemente, para a
danificação da vida. As condições necessárias para a efetiva emancipação dos indivíduos estão
obliteradas e, cada vez mais, a organização econômica objetiva inviabilizar qualquer situação
histórica que possa propiciar os indivíduos as possibilidades de se libertarem do estado de
heteronomia do qual o capitalismo tardio os tornou vítimas. Sucumbindo aos imperativos do
capital, as pessoas acatam passivamente a sociedade dada, refutando as possibilidades de uma
provável modificação da situação existente – ainda que, cada vez mais, limitadas. Tudo indica,
porém, que o espaço escolar – local em que se poderiam desenvolver consciências antagônicas à
semiformação – ao ser, paulatinamente, mercantilizado por forças políticas que se orientam pela
doutrina neoliberal de regulação econômica vem sendo atacado pelo processo de privatização,
que é experimentado em todos os países que se submeteram às pragmáticas leis mercantis
(Shiroma, 2002). A educação, destarte, enquanto espaço institucional, tem se constituído em
locus privilegiado para a proliferação da semiformação das consciências adormecidas. Nesse
sentido, ao invés de preparar os indivíduos para exercerem um papel de sujeito na sociedade,
reforça sua condição de submisso e obediente objeto serviçal dos agentes encarregados da
reprodução do ethos capitalista.
Os indivíduos semiformados encontram-se incapazes de refletir, de pensar, de se livrar
dos grilhões que inviabilizam um pensar autônomo. Estes tentam de modo imediato apreender

746
os complexos fenômenos sociais que se apresentam. Esta infeliz tentativa dos indivíduos revela,
na verdade, a incapacidade destes em compreenderem fenômenos sociais cada vez mais
complexos, que não se revelam, ao espírito definhado, de forma imediata. No entender de Kosik
(1986), segundo Marx, se os homens conseguissem apreender imediatamente as conexões que a
realidade imediata apresenta, não teriam serventia a Ciência e a Filosofia. Contudo, ainda hoje,
nenhum homem consegue realizar esta árdua tarefa. Acontece que os indivíduos têm que se
contentar com as opiniões, que resultam em demência (Adorno, 1969) forjadas pelos grupos
dirigentes. Neste sentido, a conformação do espírito à opinião engendrada e socializada pela
elite que administra a sociedade demonstra a regressão do esclarecimento à ideologia dos
grupos privilegiados pela organização econômica. O processo dialético que possibilita o
esclarecimento só se confirma por meio do pensamento que investiga minuciosamente a
realidade. A configuração alienada que a vida assume exige do pensamento uma análise
rigorosa acerca do objeto que se quer saber mais. Do contrário, qualquer juízo imediato acerca
da vida imediata nos tornará semelhantes aqueles romancistas que cobrem suas marionetes de
ornamentos baratos. No entender de Adorno (1993, p.7):
Quem quiser saber a verdade acerca da vida imediata tem
de investigar sua configuração alienada, investigar os poderes
objetivos que determinam a existência individual até o mais recôndito
nela. Se falarmos de modo imediato sobe o que é imediato, vamos
nos comportar quase como aqueles romancistas que cobrem suas
marionetes de ornamentos baratos, revestindo-as de imitações dos
sentimentos de antigamente, e fazem agir as pessoas, que nada
mais são do que engrenagens da maquinaria, como se estas ainda
conseguissem agir como sujeitos e como se algo dependesse de sua
ação. O olhar lançado á vida transformou-se em ideologia, que
tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida (Adorno,
1993, p. 7. Grifos meus).

Diante deste eclipse da razão (Horkheimer, 1976) engendrado e socializado pelas


instancias divulgadores da semiformação (Adorno, 1996) que possibilidade há para os
indivíduos desembaraçarem-se das teias que sufocam e aprisionam sua individualidade, sua
autonomia? A educação atual, mesmo estando danificada, mesmo colaborando para a
permanência do estado de menoridade social pode contribuir para a constituição de um espírito
emancipado? Eis o desafio colocado à uma educação e educadores interessados em construir
uma sociedade, verdadeiramente, emancipada. Mesmo diante de uma cultura mórbida, por se
mercantilizar, cujos propósitos não pretendem esclarecer, mas semiformar, ainda é possível não
contribuir para o que ruim na educação (Adorno, 1994b, p. 85), ou seja, para a reprodução
inconsciente dos preceitos que favorecem a dominação social, pois “[...] Por mais insuperável
que seja o feitiço, é apenas feitiço” (Adorno, 1994a, p. 75). Relembro, aqui, para finalizar esta

747
parte, as palavras de Zuin (1995, p. 173) quando entende que:

Não obstante a tendência hegemônica ser a realização do


processo de imbecilização das consciências, existe ainda a
possibilidade do desenvolvimento de consciências críticas. Isso em
virtude do fato de que [...] de uma forma ou de outra as diferenças
sociais são tão alarmantes que acabam por se fazer visíveis.
Principalmente quando os esforços são centralizados para a tentativa
de que estas se tornem explícitas, quando se questiona que produtos
culturais são consumidos, que valores e normas de comportamento
estão veiculadas e a quais interesses servem. Tal trabalho pode e deve
ser realizado pelos educadores, seja nas universidades, seja nas
escolas de primeiro e segundo graus.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a teoria dialética se mostra desinteressada pela cultura


enquanto um mero epifenômeno, então ela contribui para que o
desconcerto cultural continue a se propagar, e colabora na
reprodução do que é ruim. [...] Crítica imanente de formações
culturais significa entender, na análise de sua estrutura e de seu
sentido, a contradição entre a idéia objetiva dessas formações e
aquela pretensão, nomeando aquilo que expressa a consistência e
a inconsistência dessas formações em si, em face da constituição do
estado de coisas existentes (Adorno, 1994b, p. 85. Grifos meus).

Vivemos em uma época de esclarecimento, embora os homens permaneçam em um


estado de menoridade social. Não por sua culpa, mas por um avassalador poder conferido aos
grupos dirigentes; detentores de poderosos meios que divulgação de seus preceitos, suas
ideologias, com destaque para indústria cultural, que, praticamente, ao monopolizar a formação
dos indivíduos, assume notável papel na estultificação das consciências, impedindo que estas
possam, a qualquer momento, desconfiar do manifesto segredo. O processo de esclarecimento,
tal como formulado por Adorno e Horkheimer, naufraga.
Principal divulgadora da semiformação, a indústria cultural – ao fabricar produtos
culturais portadores da ideologia do mundo totalmente administrado – acolita, com sucesso, o
controle das massas, que – incapazes de perceberem os simulacros – consomem, vorazmente, os
produtos culturais que, cada vez mais, as enfeitiçam. As massas, encantadas, são, portanto,
facilmente dirigidas conforme os ditames do capital. Encantar e enfeitiçar; tem sido essa a
incumbência precípua da indústria cultural. Essa indústria, por sobreviver de promessas, nada
mais faz do que patrocinar o encantamento dos indivíduos, que, enfeitiçados, pouco desconfiam
do manifesto segredo. Indivíduos enfeitiçados se convertem em fáceis receptáculos das
semiformações socializadas pela indústria cultural, bem como pelos indivíduos semiformados.
A educação, nesse contexto, mesmo que querendo opor-se a esta imposição social, acaba tendo

748
que, tendencialmente, reproduzir a semiformação, que se generaliza, também, por meio da
escola. Isso reforça a assertiva de que a educação danificada de nossos tempos colabora,
tendencialmente, para a socialização da semiformação, bem como para tornar mais potente o
feitiço e o feiticeiro. A educação, porém, mesmo danificada, ainda é importante meio para que a
possibilidade utópica da emancipação não morra completamente, pois “[...] em tempos da
universalização do espírito pela lógica do equivalente, a possibilidade da existência da formação
abriga-se na auto-reflexão crítica de sua conversão em semiformação” (Adorno, 1996, p. 410).
Não colaborar, na educação, para a reprodução do que é ruim já será um avanço
significativo. Se, na atualidade, as tentativas e possibilidades para que a educação seja favorável
à produção de consciências verdadeiras e para o esclarecimento são estorvadas pelos
interessados na reprodução de uma sociedade que promove incessantemente o que é ruim, cabe
aos educadores críticos e progressistas, em qualquer espaço e campo social, colaborar para que a
ocultação seja percebida, criticamente, pelos educandos. As contradições sociais exacerbadas de
nossos dias oferecem aos indivíduos, mesmo enfeitiçados, possibilidades para que desconfiem
do que não pode ser revelado.

Diante deste contexto, a possibilidade da redenção da


formação pela educação como emancipação numa sociedade, cujas
relações já a negam a priori, pode tanto convergir para a preservação
da ideologia das salvadoras propostas educacionais, quanto para a
postura autocrítica que busca reapropriar o não-idêntico imanente ao
próprio idêntico. A luta pela desbarbarização das relações sociais
também se alicerça no reavivamento da formação pela educação, ou
seja, na recuperação daquelas potencialidades emancipatórias que
foram impedidas de se objetivar porque tiveram a audácia de se
insurgir contra sua própria fetichização (Zuin, 1999, p. 149).

Isso quer dizer que ainda há possibilidades para fugirmos da prisão imposta pelo mundo
administrado?! O esclarecimento obstado pelas condições objetivas e subjetivas da
contemporaneidade ainda pode se realizar?! A responsabilidade para a realização de uma
sociedade esclarecida, impossível a um único ser humano, é tarefa que cabe, especialmente,
àqueles que ainda não sucumbiram às seduções da sociedade mercantilizada, embora o alvo
deva ser o gênero humano. Neste caso, somos, cada um de nós, igualmente, responsáveis para
que a educação não promova apenas a well adjusted people, mas o esclarecimento, a
emancipação...

749
V. REFERÊNCIAS

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W. Adorno. São Paulo: Ática, 1994a (Grandes cientistas sociais, 54).

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ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo


do trabalho. Campinas: Editora Cortez, 1999.

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KANT, I. Resposta à pergunta: que é o iluminismo? (1784). In: ___. A paz perpétua e outros
opúsculos. Lisboa: Edições 70, s. d.

KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Rio de Janeiro: Bertrand Brasil:
1994.

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Paulo: T. A. Queiroz, 1991.

SHIROMA, E., MORAES, M. & EVANGELISTA, O. Política educacional. Rio de Janeiro:


DP&A, 2002, 2° edição. (O que você precisa saber sobre).

ZUIN, A. Seduções e simulacros: considerações sobre a indústria cultural e os paradigmas da


resistência e reprodução em educação. In: PUCCI, B. (org.) Teoria crítica e educação: a
questão da formação cultural na Escola de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1994. (Ciências sociais
da educação).

ZUIN, A. Indústria cultural e educação: o novo canto da sereia. Campinas: Autores


Associados, 1999.

750
A SEMIFORMAÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO BANCO MUNDIAL NO PROINFO

Raquel de Almeida Moraes (UnB - Programa de Pós-Graduação em Educação )

Resumo

O presente trabalho tem o objetivo de comunicar nossa pesquisa sobre a formação de


professores brasileiros com as tecnologias na educação e, especificamente, com a informática na
educação. Neste sentido, sintetizamos o Programa de Informática na Educação dos Ministérios
da Educação dos governos José Sarney e Itamar Franco (PRONINFE), além dos programas de
dois municípios em que participamos ativamente: Campinas (Projeto Eureka) e São Paulo
(Projeto Gênese), culminando com o atual Programa de Informática na Educação, ProInfo,
articulando-o criticamente com as diretrizes do Banco Mundial.

Introdução

A partir do pressuposto de que a tecnologia não é neutra nem determinista, há dez anos
atrás em nossa tese de doutorado, investigamos a história da política brasileira de informática e
educação e as principais experiências conduzidas na rede pública dos então 1º e 2º graus, desde
suas origens nos anos 30 até 1995 (MORAES, 1996, 2000, 2002). Essa investigação nos levou a
desenvolver a tese de que a informática na educação no Brasil apresentava-se como uma história
paralela da política educacional brasileira. Apesar de não ter uma abrangência tão ampla como
as políticas do então primeiro, segundo e terceiro graus, à época continuava ocorrendo à parte
dos trâmites formais (Congresso Nacional) e informais (sociedade civil) de definição e
avaliação das políticas públicas, mesmo após o término da fase nacionalista e estratégica da
informática e educação no país, quando era assunto de segurança nacional, e, obviamente, de
acesso restrito e secreto.
Esse “paralelismo”, numa ótica geral, deve-se às características históricas que deram
origem às novas tecnologias, as quais expressam um modo de organização material e cultural da
existência humana - capitalismo - essencialmente concentrador e centralizador de riqueza, poder
e conhecimento. Aplicado à gestão do processo decisório da informática e educação no Brasil,
essa lógica geral propicia base de sustentação política apenas aos atores que direta ou
indiretamente se beneficiam com os bens que a informática proporciona, afastando do processo
os que dela não são proprietários, material e/ou culturalmente.

751
Numa ótica específica, esse “paralelismo” tem fundamento no caráter restritivo da
dinâmica do jogo político brasileiro, o qual que tem historicamente alijado do processo de
definição e avaliação de políticas públicas, amplas camadas da população. As elites que têm
acesso a esse processo decisório, por sua vez, também compõem alianças de interesses diversos
e heterogêneos, o que imprime um certo grau de “nebulosidade” à percepção dos reais interesses
e compromissos envolvidos. Nossa análise detectou três fatores que, nos anos noventa,
mantinham o paralelismo da política de informática na educação: a negação da participação,
entendida como corporativismo e reduto do socialismo, pela direita neoliberal; a mudança do
discurso da democracia pelo discurso da competitividade, sob a ótica do Estado mínimo e do
mercado global; o governo da intelligentsia, da competência, ao invés do “senso comum e
influenciável do iletrado” povo brasileiro.
Por outro lado, a análise das experiências nos mostrou que até 1995, apesar dos escassos
recursos e ao sabor das "passividades federais" foi possível - embora com dificuldades e
renúncias - a uma pequena parcela de educadores e pesquisadores desenvolver uma postura um
pouco mais crítica e uma metodologia mais criativa não só perante o tecnicismo federal como
também frente às constantes pressões do mercado no sentido de "vender pacotes educativos
computacionais" (softwares) que reproduzem ideologias massificantes e que valorizam mais o
aspecto mercantil do que o educacional. Essa contradição com as diretrizes políticas federal
presente em algumas experiências públicas e a emergência de certos fatos em informática e
educação, nos levou a questionar se talvez não tenhamos, nos bastidores das diversas culturas
que formam a atual cultura global, uma espécie de “guerra cultural” em gestação, diferente das
empreendidas tradicionalmente pelo Estado ou pelos segmentos extremistas do
fundamentalismo religioso, nazi-fascista, etc .
Não só em nosso País, como no exterior, softwares educacionais que procuram
ultrapassar a ideologia tecnicista e massificadora da indústria cultural capitalista têm encontrado
dificuldades em manter um espaço de atuação na esfera escolar. Um exemplo disso ocorreu em
1994, nos EUA, onde um conjunto de historiadores mais críticos, da Universidade de Berkeley,
que produziram um CD-ROM sobre a história do movimento operário norte-americano para o
ensino elementar e secundário, teve sua produção e venda suspensa pela Apple Corporation
após alguns meses de venda por esta empresa.
Algo semelhante aconteceu com Projeto Gênese. Quando da mudança da prefeitura
municipal de São Paulo para o partido liberal de Paulo Maluf em 1992, os rumos da política
pedagógica foram totalmente alterados e a educação e informática se reduziu a um treinamento
para o trabalho. Também o Projeto Eureka começou a sofrer pressão no sentido de limitar a

752
gestão participativa - que se aproximava da participação cogestionária - até ser extinto pela
equipe da Unicamp em 1997.
O presente artigo tem o objetivo de comunicar nossa pesquisa sobre a formação dos
professores brasileiros com as tecnologias na educação e, especificamente, com a informática na
educação. Neste sentido, sintetizamos as principais informações e argumentos acerca da
formação dos professores do Programa de Informática na Educação dos Ministérios da
Educação dos governos José Sarney e Itamar Franco (PRONINFE), além de dois municípios em
que participamos ativamente: Campinas (Projeto Eureka) e São Paulo (Projeto Gênese),
culminando com o atual Programa de Informática na Educação, ProInfo articulando-o
criticamente com as diretrizes do Banco Mundial.

A formação de professores em tecnologias na educação: o caso da informática

O programa FORMAR (Formação de Recursos Humanos) foi criado pelo Ministério da


Educação, MEC em 1987, como um dos componentes do Plano de Ação Imediata, PAIE, mas
só conseguiu realizar 3 cursos de formação de professores: em 1987 e 1989 na Unicamp e em
1991, na UFG, quando já estava em vigência o Programa de Informática na Educação -
PRONINFE.
O conteúdo desses cursos era baseado na filosofia e linguagem Logo e na aprendizagem
de seus comandos básicos. Ao término do curso, os professores voltavam às suas instituições e
se integravam aos projetos de origem.
Já nos projetos municipais GÊNESE (1990-1993) e EUREKA (1990-1997), era
oferecida a formação inicial (similar ao FORMAR), mas a essência era a formação continuada
dos professores mediante o seu acompanhamento por equipes de apoio eleitas pela própria
escola onde o projeto se desenvolvia. Essa era uma das marcas centrais desses projetos no final
da década de oitenta: a sua inserção no projeto político-pedagógico da escola e a eleição dos
seus representantes em todos os níveis: desde o conselho escolar até a equipe de apoio, com o
representante da escola com direito a voz e voto no conselho de Informática na Educação na
Secretaria Municipal de Educação, como no projeto Eureka.
Quanto às concepções pedagógicas, a maioria dos centros-piloto do PRONINFE
utilizou como referencial pedagógico a teoria construtivista desenvolvida por Piaget, cujas
premissas conceituais partem do sujeito como construtor das estruturas mentais que estão na
base do processo de aprendizagem.
Enfatizavam como metodologia a aprendizagem por meio de experiências desafiadoras,
as quais levariam à assimilação e acomodação de conceitos, construindo no processo novos

753
conhecimentos que formavam uma estrutura superior de equilibração cognitiva. Privilegiavam,
portanto, a formação das estruturas cognitivas. O papel do professor, nesse enfoque, seria o de
mediar a relação sujeito-experiência, em vez de dar o “conteúdo pronto”, como no ensino
tradicional.
Nessa perspectiva, o uso da informática na educação passou a ser considerado como
uma experiência enriquecedora, e até revolucionária para alguns, sobretudo nos centros que
adotaram a linguagem LOGO, desenvolvida por Seymour Papert, do MIT, cujas bases
construtivistas entusiasmaram a grande maioria dos experimentadores. Entretanto, o lado dessa
teoria que valoriza o desenvolvimento da moral autônoma, a que busca o equilíbrio entre o “eu”
e o “tu”, esteve ausente dessas premissas metodológicas, desconhecendo o que o próprio Piaget
a esse respeito escreveu. Ademais, os estudos de Vigotsky acerca do desenvolvimento
social e cultural da mente não encontraram moradia no EDUCOM. Foi nos projetos GÊNESE e
EUREKA que a perspectiva histórica de construção dos conhecimentos, e não somente a sua
dimensão psicogenética, foi acolhida.
Por outro lado, um enfoque epistemológico, como a do filósofo e educador Paulo Freire,
que leva em conta que o homem é ao mesmo tempo criador e criatura da cultura, também deve
considerar o domínio que certas culturas e povos exercem uns sobre os outros.
Em 1996, ao assumir a presidência da República, Fernando Henrique Cardoso colocou
como seu ministro de Educação Paulo Renato de Souza, economista e ex-reitor da Unicamp, e
procedeu a um processo de reavaliação da política de informática na educação no País que
culminou com a extinção do modelo do PRONINFE, substituindo-o pelo modelo do PROINFO.
Apesar dos limites, o PRONINFE representou um avanço considerável no sentido de
democratizar as decisões acerca dessa política, pois contou com a participação de docentes-
pesquisadores das universidades envolvidas no projeto EDUCOM. Era a comunidade científica
conquistando mais espaço e voz na burocracia estatal. Cumpre, para isso, destacar o papel
facilitador dessa democratização pelos membros da SEINF/MEC, que se apoiava nesses
experimentos para embasar suas metas políticas (MORAES, 2002).
Em linhas gerais, o modelo sistêmico do PRONINFE era desenhado com os seguintes
atores: representantes da Secretaria da Educação Especial e Superior, Centros de Informática
nas Universidades Federais, Escolas Técnicas Federais e Secretarias de Educação dos estados,
assessorados pelo Comitê Especial de Informática na Educação, com representantes de
especialistas oriundos das Universidades..
Já o modelo que o sucedeu, o PROINFO, tem apenas dois atores: O MEC mediante a
Secretaria de Educação a Distância, SEED e os Núcleos de Tecnologia Educacional, NTE, sob

754
responsabilidade das Secretarias de Educação que também ficou responsável pela capacitação
dos professores que antes estava, como vimos, sob a responsabilidade das universidades.
Analisando a formação a política do ProInfo, Nelson Pretto (apud. BARRETO, 2001, p.
51) argumenta:
A falta das condições de acesso e as dificuldades em preparar professores e
alunos para o trabalho com essas tecnologias não podem ser um estímulo
para a implantação de programas de formação aligeirada, sejam eles
presenciais ou a distância. A formação dos professores é essencialmente um
ato político de formação de cidadania e não um simples fornecimento de
conteúdos para serem assimilados, usando esses poderosos recursos de
informação e comunicação. Mais do que tudo, a formação dos professores no
mundo contemporâneo tem que se dar de forma continuada e permanente e,
para tal, nada melhor do que termos todos - professores, alunos e escolas -
conectados através de modernos recursos tecnológicos de informação e
comunicação.

Confirmando essa análise de Pretto, percebemos que apesar dos computadores terem e
estarem chegando às escolas, nos casos que temos acompanhado1, observamos que: a) uma parte
desses computadores não está sendo utilizada; b) o que estão, a maioria não está integrado ao
projeto político-pedagógico da escola; c) quando ocorre essa formação, ela é feita de forma
aligeirada sem ser incorporada organicamente nas atividades escolares. Frente a isso
questionamos: por quê?

A formação de professores em tecnologias na educação e o Banco Mundial

Superar as contradições e dicotomias de forma a criar uma política mais democrática


para a formação de professores é um dos nossos maiores desafios. O analfabetismo já não se
restringe à leitura e à crítica dos códigos escritos. Segundo Kellner (2000), a alfabetização
inclui, cada vez mais, o domínio dos códigos técnicos, cibernéticos, os quais também são
direitos de cidadania, e os professores precisam ter esses direitos garantidos em sua formação
enquanto educadores.
Alijar os professores dessa formação é aumentar ainda mais o fosso existente entre as
classes, pois as camadas dirigentes certamente a terão em detrimento das demais. O atual
modelo da política de informática educativa – PROINFO, afastou as universidades enquanto
espaço de excelência para a formação e o centralizou no NTE (Núcleo de Tecnologia
Educacional), que é subordinado à Secretaria de Educação e ao MEC que não raramente dialoga

1
Temos acompanhado os NTEs de Brasília, Araraquara (SP) e Barreiros (Bahia) através de aulas,
orientações de pesquisas e participação em bancas de graduação e pós-graduação. Em breve orientaremos
uma dissertação de mestrado que pesquisará o NTE de Goiânia (Go).

755
com a comunidade educacional organizada. Quando muito, professores em caráter individual
dão cursos, workshops, fazem assessorias, mas acabaram os programas institucionais, ainda que
sistêmicos de formação de professores, que ocorriam no modelo político anterior (PRONINFE),
como o projeto FORMAR. Ao nosso ver isso precarizou a formação dos professores, pois é
inconcebível que essa formação se dê sem auxílio/apoio/responsabilidade da universidade como
era no passado. Afinal, como coloca Marx em sua III Tese sobre Feuerbach: “(...) o educador
deve ser educado”. (MARX: 1986, p.12)
Raquel Barreto (2001) alerta sobre a subordinação da informática e das tecnologias da
informação e comunicação às diretrizes do Banco Mundial.
Também datam de 1995 textos-chave do Banco Mundial estabelecendo como
saída para a educação - e exigência para a concessão de empréstimos aos
países do Terceiro Mundo - a utilização de "tecnologias mais eficientes", no
movimento de quebrar o que está posto como "monopólio do professor na
transmissão do conhecimento". "Tecnicamente" falando, a perspectiva é a de
que o desempenho dos alunos depende menos da formação dos professores e
mais dos materiais pedagógicos utilizados: um modelo de substituição
tecnológica, fundado na racionalidade instrumental. Nestes termos, importa o
aumento da produtividade dos sistemas educacionais, por sua vez atribuído
ao uso intensivo das tecnologias. Não seria a educação a ferir a lógica do
mercado (quanto maior a presença da tecnologia, menor a necessidade do
trabalho humano) e a "ética" da acumulação do capital (BARRETO, 2001, p.
17-18).

Um ano depois desses textos a que Barreto se refere, o ministro da Educação do


governo FHC, Paulo Renato de Souza, extinguiu o PRONINFE criando o ProInfo, e alijou a
universidade do processo. Coincidência?
No contexto da política educacional brasileira o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da
Sociedade Civil defendido pelo Fórum em Defesa da Escola Pública, que já tinha sido aprovado
em 1995, foi derrotado pelo projeto neoliberal do senador Darcy Ribeiro, pois este estava em
sintonia com as diretrizes dos Organismos Internacionais, sobretudo o Banco Mundial
(SAVIANI, 1998, MENDES, 2005). E o que é o Banco Mundial? Desde quando e por que esse
organismo internacional tem influência sobre a política educacional brasileira?
Segundo Marília Fonseca (2000), o Banco Mundial foi criado em 1944, juntamente com
o FMI, com a tarefa de reconstruir a Europa, auxiliando os países devastados pela guerra a
recuperarem suas economias. Enquanto ao FMI foi conferida uma tarefa mais política, o BM
funcionava como um emprestador de recursos para projetos específicos. Passado o momento da
reconstrução, as duas entidades passaram a monitorar o desenvolvimento do chamado Terceiro
Mundo.
A princípio, o Banco Mundial era composto apenas por países sócios, mas quando
começou a monitorar o Terceiro Mundo, passou a existir uma desigualdade financeira afetando

756
as relações de poder dentro do Banco, já que o poder de voto é proporcional ao aporte de
recursos de cada país. Assim, segundo Fonseca (apud PRETTO, p. 62), o Brasil, apesar de ser
um país-sócio “não tem um voto poderoso e, muito menos, o poder de modificar as regras do
Banco, visto que os cinco grandes países, EUA, Japão, Alemanha, França e Inglaterra, nessa
ordem, tem direito a 40% dos votos no Banco Mundial”
Ademais, segundo Toussaint (2002, pp.169-170), as decisões correntes do Bureau
Executivo requerem uma maioria simples dos votos, mas toda ação que vise mudar os artigos da
carta constitutiva requer a aprovação de pelo menos três quintos dos membros e de 85% do total
das ações votantes (o que significa que os Estados Unidos, com 17,5% dos votos, têm direito de
veto sobre toda mudança de estatutos).
A influência do Banco Mundial na educação brasileira tem sido nosso objeto de
pesquisa em outro programa governamental, o Programa de Formação de Professores Leigos,
PROFORMAÇÃO (MORAES, 2001; 2003; MORAES, TOGNOLLI, AUGUSTO, 2004;
MORAES, LIMA, 2005.) Desde quando e por que o Banco se interessa pelo uso das tecnologias
na educação? Até o momento nossa investigação detectou que na gestão do presidente
McNamara (1968-1981) (SILVA, 2002), a educação começou a ser vista como uma das poucas
que ainda não sofreram uma mudança tecnológica. Para ele:
É importante sublinhar que a indústria da educação, normalmente entre as
maiores empregadoras de qualquer país, é uma das poucas que não sofreram
uma revolução tecnológica. Precisamos retirá-la do estágio artesanal. Dada a
terrível insuficiência, que tende a agravar-se, de professores qualificados, é
preciso encontrar os meios de aumentar a produtividade dos bons
professores. Isto incluirá investimentos em livros didáticos, em materiais
audiovisuais e, sobretudo, no emprego de técnicas modernas de comunicação
rádio, filmes e televisão no ensino. (SILVA, 2002, p. 110)

Cumpre destacar que há uma lacuna histórica sobre esse aspecto entre os anos 80 e 90, e
que nos anos 90 essa idéia de McNamara foi aperfeiçoada, estando a ênfase nas tecnologias
educacionais ao lado das seguintes diretrizes políticas (SILVA, 2002, p.111): Educação básica
como principal, mas prioridade no ensino fundamental; qualidade na educação como base para
as reformas educacionais; privatização do ensino médio e superior; ênfase no autofinanciamento
e nas formas alternativas de captar recursos; prioridade nos resultados fundados na
produtividade e na competitividade; convocação dos pais e da comunidade para participar dos
assuntos escolares; estímulo ao setor privado: sistema S, empresários e organismos não
governamentais como agentes ativos no âmbito educacional,no nível de decisões e implantação
de reformas; redefinição das atribuições do Estado e retirada gradual da oferta dos serviços
públicos: educação e saúde; enfoque setorial, centrado na educação formal credencialista;

757
institucionalização dos sistemas nacionais de avaliação; fortalecimento dos sistemas de
informação e dados estatísticos.
Em 1994, o Acordo Geral do Comércio e Serviço – OMC, incluiu o ensino na lista dos
serviços que deveriam ser liberados e colocados no mesmo nível que os serviços prestados por
empresas comerciais. Em função disso, algumas empresas educacionais já exibem o certificado
de qualidade – ISO, como reforço de propaganda.
Fonseca (2000) analisa que o Banco financia o setor social e, particularmente o
educacional, com a mesma lógica financeira que utiliza para conceder crédito ao setor
econômico, com a agravante de que a educação não deve ser pensada como mercadoria,
geradora de lucro e, sim, como direito inalienável do cidadão. No entanto, argumenta a
pesquisadora, na representação popular, o Banco é percebido como um doador de recursos e não
como um emprestador, o que é reforçado pela mídia com “a imagem de um organismo que
combate à pobreza no Terceiro Mundo, que contribui para a distribuição de bens econômicos e
sociais com equidade e que garante autonomia e interdependência na sua interação entre os
países membros”. (Ibidem, p. 65)
Nos documentos de política estratégica do Ministério da Educação, em 1995,
a flexibilização já fazia parte de propostas que indicavam a necessidade de
tornar as escolas mais flexíveis, oferecendo mais treinamento aos professores
e menos formação stricto sensu. Identifica-se, assim, uma consonância com
as diretrizes do Banco, no sentido de privilegiar a formação mais ligeira e
mais barata, como a “capacitação em serviço, à distância e em cursos mais
rápidos.” (...) Essa proposição tem por base as pesquisas internas do Banco,
que mostrando que o desempenho dos alunos não depende mais da formação
do professor e sim do que chamam de “pacotes instrumentais”, ou seja, do
livro didático, do material pedagógico etc. (FONSECA apud. PRETTO,
2000, pp. 72-73).

Quanto aos professores, o discurso dos técnicos do Banco Mundial, segundo Scaff
(2000, p. 82) demonstra “uma preocupação com o conhecimento do professor no que se refere
às matérias a serem ensinadas quanto às técnicas de ensino, priorizando as últimas por
considerar os resultados de sua aplicação mais eficazes” . Para o Banco, o professor é mais um
dos seguintes insumos educacionais: 1)as bibliotecas constituem-se no insumo mais relevante
para a aprendizagem (90%); 2) o tempo de instrução (percentual de efetividade pouco abaixo do
primeiro); 3) as tarefas aparecem em pouco mais de 80% dos estudos sobre efetividade na
aprendizagem; 4) os livros didáticos (70%); 5)os conhecimentos dos professores (60%); 6) as
experiências dos professores; 7) os laboratórios (40%); 8) a remuneração dos professores (35%);
9) o tamanho da classe (30%). Nessa classificação fica evidente que o conhecimento do
professor para a aprendizagem dos alunos não é o insumo mais eficaz.
Potashnik e Capper (1998), em documento do Banco Mundial intitulado Distance
education: grow
th and diversity , colocam que a Educação a Distância e as novas tecnologias

758
são forças econômicas que para terem sucesso, precisam ser acompanhadas de alguns cuidados.
No caso dos países em desenvolvimento, onde há um contingente imenso de professores com
pouco ou sub-treinamento, eles avaliam que a educação a distância é para ser usada para treiná-
los de modo mais eficaz, com baixos custos e aumentando a qualidade dos cursos com novos
insumos tecnológicos. Mas nem todas as tecnologias são adequadas para todos os países nem
para todos os níveis de ensino ou treinamento. E concluem o documento afirmando que para o
próprio Banco, a diretriz estratégica é ter a sua própria plataforma, a EducationNet (EdNet),
com o intuito de capacitar tomadores de decisão, especialistas educacionais e investidores.
Nessa perspectiva, desde 1998 o Banco realiza uma série de workshops nos países-
cliente para se formar uma capacitação global em e-learning, mas sua “diretriz estratégica é ter a
sua própria plataforma, a EducationNet (EdNet), com o intuito de capacitar tomadores de
decisão, especialistas educacionais e investidores”. (MORAES, LIMA, p. 77)
Hoje temos informações de que eles já têm a sua plataforma, mas ainda não tivemos
acesso à mesma. Nesse sentido cabe observar que para os programas de formação de professores
leigos em países em desenvolvimento, como o PROFORMAÇÃO no Brasil, é desenhada uma
política que restringe seu acesso às tecnologias de informação e comunicação mais sofisticadas,
como a Internet ou ciberespaço, porque essas são restritas, no momento, a fins de treinamentos
mais refinados, pois segundo seu consultor Michel Moore: “Poderemos incorporar os novos
meios no futuro, mas enquanto não existir uma rede forte e disponível, eles permanecerão pouco
eficazes”. (MORAES, 2001, p. 131)
É diretriz estratégia do Banco, conforme Potashnik e Capper (1998), ter o seu EdNet
com o intuito de “treinar” novos tomadores de decisão, especialistas educacionais e investidores
para manter e expandir o próprio sistema do Banco Mundial, o que na perspectiva de Freire
seria “educação bancária”. Mas isso não implica que os “treinamentos” dos que têm acesso à
rede também não estejam sob a lógica da racionalidade instrumental, pois para o Banco
Mundial, a educação também é concebida como mercadoria e componente da indústria de bens
culturais, pois seu fim é expandir seus próprios negócios no mundo. Assim, quando o Banco
Mundial argumenta que as novas tecnologias são forças econômicas percebemos que esse
discurso pressupõe uma concepção de educação economicista, pois ao não considerar os
aspectos culturais que envolvem as dimensões da consciência e da linguagem na educação, o
Banco reproduz a racionalidade que mantém a sociedade ofuscada pela sedução da ciência e da
tecnologia e dentro delas, as tecnologias da informação e comunicação, auto-alimentando o
sistema de dominação, tal como depreendemos da perspectiva de Adorno e Horkheimer (1994).

759
A esse respeito, julgamos pertinente a seguinte reflexão de Gur-Ze´ev et al (2001, p. 4)
que poderia ser aplicada aos cursos no ciberespaço sob influência das diretrizes do Banco
Mundial:
Algumas supostas tentativas de desenvolver ou realizar a autonomia do
sujeito são, na verdade, determinadas por sua própria negação ou
falsificação. Esta autonomia não se relaciona nem automaticamente nem
facilmente com o projeto de emancipação. Supõe-se que tal autonomia se
realize hoje em vários projetos funcionalistas de educação que se orientam
pela instrumentalidade com slogans como “Desenvolvendo habilidades”,
“Alcançando alvos”, “Excelência” ou “Consumo sofisticado da mídia”. Em
todos eles, o sujeito reduz-se simplesmente a um produtor-consumidor
potencialmente efetivo, a quem se saúda como indivíduo vital, partícula
essencial da ordem capitalista, “o indivíduo”. Esta retórica do “crítico” ou do
“inovador” desorienta muitos e é consumido sob o nome de “reflexão”. É o
que temos chamado de reflexo.

Conclusão

A utilização das tecnologias da informação e comunicação, como a informática, tem


sido reacionária/conservadora para a grande maioria da população, haja vista a precarização das
relações do trabalho, o desemprego tecnológico e o descompromisso dos educadores com a
democracia (entre outros). De acordo com Adorno e Horkheimer (1994), a técnica está inserida
na lógica da racionalidade técnica, da dominação. Para eles, é difícil escapar dessa racionalidade
instrumental, técnica, onde os meios estão acima dos fins. Assim, o cinema e o rádio deixam de
veicular arte e educação tornando-se um negócio, reificando as consciências das pessoas.
As mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reificadas para
elas próprias que a idéia de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema
abstração (...) Eis aí o triunfo da publicidade na indústria cultural, a mimese
compulsiva dos consumidores, pela qual se identificam às mercadorias
culturais que eles, ao mesmo tempo, decifram muito bem. (ADORNO,
HORKHEIMER, 1994, p. 156)

No Brasil das décadas de sessenta e setenta, a presença de órgãos e técnicos estrangeiros


na definição das políticas culturais e a importação de abordagens metodológicas pragmáticas do
exterior para a questão cultural contribuíram para o desenvolvimento do caráter tecnicista.
Segundo Saviani (KAWAMURA, 1990), a tendência tecnicista desdobrou-se em novas
correntes educacionais: enfoque sistêmico, tecnologias de ensino, operacionalização de
objetivos, instrução programada, máquinas de ensinar, teleensino, educação via satélite,
microensino, etc.
Octavio Ianni (2003), remetendo essa discussão para a atualidade, analisa que as
categorias clássicas da ciência política, hegemonia e soberania, foram simbolizadas por
Maquiavel e Gramsci na figura do “príncipe”, e que hoje esse príncipe tornou-se eletrô
nico .

760
Para Ianni, o príncipe eletrônico “é o intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de
poder” (IANNI, 2003, p. 148) que se manifesta nos meios de comunicação de massa, como
jornais, livros, rádios, televisões, Internet expressando visões de mundo que vão “desde o
narcotráfico e o terrorismo transnacionais às guerras e revoluções, dos eventos mundiais da
cultura popular aos movimentos globais do capital especulativo” (ibid. p. 248).
E relacionando essa discussão à informática na educação, percebemos que enquanto no
passado era a IBM que dominava o mercado, atualmente a corporação dominante tem sido a
Microsoft. Bill Gates2, dono dessa multinacional (a maior fortuna do mundo há 12 anos) exerce
grande pressão sobre o governo brasileiro, sobretudo no atual governo de Lula da Silva, porque
em alguns setores sua gestão está deixando de comprar o software da Microsoft optando pelo de
sua concorrente, o Linux, que ao propor a política do software livre, diminui os custos com o
pagamento das patentes que no caso da Microsoft é unitária, um softw
are por máquina, ao
contrário do Linux.
Contudo, mesmo diante desse conflito, nossa tese é que desde as suas origens a política
de informática e a informática na educação é contraditória, dependente e subordinada aos
padrões internacionais, não se ocupando em atender aos direitos e necessidades da maioria
excluída da população, incluindo as demandas educacionais, seja de formação geral, seja de
capacitação tecnológica (MORAES, 1996). Assim, concordamos com Mattelart (1995) ao
afirmar que as novas tecnologias da informação e comunicação têm servido ao capital como
instrumento de guerra física e psicológica, reproduzindo dessa forma a sua estrutura em seus
aspectos material e cultural. E ao servir ao capital, concordamos aqui com Zuin, Pucci e Ramos-
de-Oliveira (2001, p. 121) quando argumentam que: ”nos dias de hoje, a subordinação da
produção simbólica à lógica da mercadoria não prejudica apenas os dominados, mas conduz
também a semiformação cultural dos dominantes”.
O fato é que ainda não temos encontrado a informática na escola pública incorporada ao
projeto político-pedagógico como um crítico e criativo auxiliar do ensino como acontecia nos
extintos Projetos Eureka e Gênese, e nem nas Agências Formadoras do PROFORMAÇÃO,
como em Formosa, Goiás. Diante disso, concluímos este artigo afirmando que se os NTE não
têm feito uma formação inicial e continuada que integre reflexiva, crítica e criativamente a
informática no currículo escolar é porque essa tecnologia tem sido tratada como mais uma
propaganda ou publicidade do governo para as escolas públicas que beneficia

2
Bill Gates, com uma fortuna de US$ 50 bilhões, se mantém como o imbatível número 1,
seguido pelo financeiro Warren Buffet, com US$42 bilhões. Publicado em UOL Notícias, em 09/03/06.
[Doc. Eletrônico: <http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/efe/2006/03/09/ult1767u62422.jhtm> –
Acesso em março de 2006.

761
preferencialmente as grandes corporações . Se durante o regime militar a Educação brasileira
estava sob o domínio do Banco Mundial através dos Acordos MEC- USAID, percebemos que
essa influência retorna no governo FHC, persistindo no governo Lula da Silva. Como um dos
principais representantes da ideologia capitalista na atualidade, esse banco impõe uma
semiformação cultural aos professores treinando-os no uso dessas tecnologias num processo de
crescente reificação de suas consciências, e apesar das resistências dos professores em outros
programas financiados por este banco - como o PROCAP em Minas Gerais (PEDROSA, 2006)
- ainda não foi possível a sua emancipação enquanto categoria. Para a educação com as
tecnologias ser emancipadora, e portanto ética, Adorno sugere que se desperte a
consciência do quanto os homens são enganados de modo permanente. E para isso, ele dá
exemplos do que seriam essas críticas emancipadoras ao sugerir leituras, audições e
assistências conjuntas com os alunos em revistas, rádios, músicas, filmes comerciais, e
acrescentamos videogames, softwares, hipertextos e sites da Internet, mostrando-se lhes as
falsidades ali presentes. Entretanto, esse trabalho de resistência somente é possível naqueles
que são críticos à barbárie, e lutam contra tenazmente contra sua impotência.

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764
Considerações Sobre o Cinema em Adorno

Raul FIKER
UNESP/ FCL - Araraquara

Em “Notas sobre o Filme”, de 1967, Adorno insere o cinema em seu conceito de indústria cultural
destacando algumas de suas características. De maneira geral, os escritos de Adorno sobre o cinema
estão inseridos em digressões mais amplas sobre o tema da indústria cultural. Vou delinear aspectos
da questão do cinema em Adorno a partir de três textos: “Notas sobre o Filme” (na coletânea de
textos de Adorno organizada por Gabriel Cohn para a Editora Ática na coleção G
randes Cientistas
Sociais, 1986, pp.100-107), o capítulo sobre a indústria cultural na Dialética do Esclarecimento
(Zahar, 1986, pp.113-156) e o artigo de Mateus Araújo Silva, “Adorno e o cinema, um início de
conversa” (Novos Estudos Cebrap n.54, julho 1999, pp.114-126).
Há uma constelação de conceitos e delineamentos de processo na caracterização que
Adorno faz do que chama de “indústria cultural”. Vamos examinar a posição do cinema em alguns
deles. Por exemplo, o esquematismo da produção: para o consumidor, não há nada mais a classificar
que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. Desde o começo do filme, diz
Adorno (Dialética do Esclarecimento, p.118) já se sabe como ele termina, quem é recompensado,
etc. Mesmo as gags, efeitos e piadas são calculados, assim como o quadro em que se inserem. O
todo e o detalhe exibem os mesmos traços, na medida em que entre eles não existe nem oposição
nem ligação. O espectador de cinema percebe a rua como um prolongamento do filme que acaba de
ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção cotidiana.
Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna
hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se
descobre no filme.
Aqui, Adorno destaca o filme sonoro – alvo preferencial de suas críticas à indústria
cinematográfica: é com a súbita introdução do filme sonoro que a reprodução mecânica põe-se ao
inteiro serviço do projeto em questão. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir
do filme sonoro. Citando: “ Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à
fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o
fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de
seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se
identificar imediatamente com a realidade.” (Dial. Do Escl., p.119.).

765
Nota-se aqui que a introdução do som é um agravante ao esquematismo de produção, já
presente, é claro, no cinema mudo, mas parece que Adorno vislumbra ainda neste último algo como
um elemento especificamente fílmico no que ainda tem de autenticamente (ou ao menos próximo)
ao artístico, propriamente dito, desvinculado da indústria cultural que se perde com a substituição
da ênfase nas expressões dos atores pelo diálogo, “enxertado” na cena, por assim dizer. O filme
sonoro fecha o cerco, digamos.
Esta abordagem do filme sonoro no âmbito da especificidade de uma arte é semelhante à
discussão em “Notas sobre o Filme”, da transposição do romance para o cinema, no caso de um
romance de Robert Musil. Aqui Adorno salienta a diferença artística entre os meios: “frases que se
justificam em narrativas literárias pelo princípio de estilização, distanciando-se da falsa
cotidianidade da reportagem, soam, no filme, exageradas e inacreditáveis” (p. 101). Nesta mesma
passagem esta diferenciação com a expressão literária põe em foco os elementos técnicos da
expressão cinematográfica enquanto determinantes de uma série de fatores do cinema e de sua
inserção na indústria cultural. Sobretudo, a técnica fotográfica, não permitindo que o cinema,
mesmo onde decompõe e modifica os objetos, que a desmontagem seja completa, faz com que a
sociedade se insira no filme “de modo bem diverso, muito mais imediato (da perspectiva do objeto)
do que na pintura ou na literatura avançadas.” Assim, a estética do filme, “graças à sua posição em
relação ao objeto, ocupa-se de modo imanente com a sociedade.” (p.104).
Estas passagens mostram o cinema em Adorno referido para fornecer exemplos de aspectos
funestos da indústria cultural que Adorno denuncia em muitas passagens de seus escritos. Como
Araújo e Silva, em seu artigo, chama a atenção, “a cada tópico do ataque de Adorno à indústria
cultural, quase a cada página no caso do capítulo da Dialética do Esclarecimento, o cinema
comparece apenas para exemplificar o que Adorno está criticando. “Entre as muitas passagens
citáveis, são destacadas algumas das mais eloqüentes: “O cinema e o rádio não precisam mais se
apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma
ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem (p.114); O filme adestra o
espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia
da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos
psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme
sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva (p.119); O
cinema faz propaganda do truste cultural enquanto totalidade (p.146); Cada filme é um trailer do
filme seguinte, que promete reunir mais uma vez sob o mesmo sol exótico o mesmo par de heróis; o
retardatário não sabe se está assistindo ao trailer ou ao filme mesmo (p.153).”

766
Em “Notas sobre o Filme” (p.106), Adorno chama a atenção para o fato de que “A
tecnologia do filme desenvolveu uma série de meios que são contrários ao seu realismo inseparável
da fotografia. “ Ele deduz uma série de conseqüências disto: um artificialismo comercial, etc.
Haveria aqui “algo dialético a aprender do fenômeno: que a tecnologia, tomada isoladamente, isto é,
fazendo-se abstração do caráter da linguagem do filme, pode vir a cair em contradição com suas leis
imanentes. A produção cinematográfica emancipada não deveria mais [...] confiar irrefletidamente
na tecnologia, no fundamento do métier. Nele á que o conceito da adequação material alcança a sua
crise, antes mesmo de ter sido obedecido. Misturam-se turvamente a exigência de uma relação plena
de sentido entre modos de procedimento, material e estruturação com o fetichismo dos meios”.
(p.106)
O cinema cumpre as metas da indústria cultural: “Os consumidores devem permanecer
aquilo que já são: consumidores; por isso a indústria cultural não é a arte dos consumidores, mas
estende a vontade dos que mandam para o interior das suas vítimas. A automática auto-reprodução
do status quo em suas formas estabelecidas é expressão da dominação.” (“Notas”, p.107)
Adorno nega qualquer aspecto criativo ao cinema, destacando uma mesmice sinistra e
estática que aprisiona o espectador: “Já se deve ter observado que, no primeiro momento, torna-se
difícil distinguir entre o trailer de um filme que será apresentado em breve e o filme principal. Que
se está querendo ver. Isso nos diz alguma coisa sobre os filmes principais. Assim como os trailers e
as músicas da parada de sucessos, eles são a propaganda de si mesmos, trazem o caráter de
mercadoria marcado na testa como o estigma de Caim. Todo filme comercial é, a rigor, apenas o
trailer daquilo que ele promete e em função de que ele simultaneamente engana.” (“Notas”, p.107)
Apesar de abrir uma ou outra brecha em seu diagnóstico negativo – tal como quando fala,
em “Notas sobre o Filme”, do “antifílmico” de La notte de Antonioni, que “empresta-lhe a força
que há em expressar o tempo vazio com olhos vazios” (p.102), o ataque de Adorno é feroz.
Referindo-se, por exemplo ao que chama de “cinema do papai”, fala do “lixo da indústria
cinematográfica que se produz há quase sessenta anos” (“Notas”, p.100). Contudo, como lembra
Araújo e Silva (p.118), Adorno escreveu tudo isso numa fase de sua vida em que esteve muito
exposto ao cinema industrial americano, durante seu exílio nos Estados Unidos (de 38 a 48). Ele
estaria generalizando para o cinema em geral o caso particular do cinema hollywoodiano. Sua
referência principal é o cinema hollywoodiano médio. Mas justamente observamos aí a
“negligência de Adorno em relação a outras propostas de cinema já manifestas naquele momento,
muitas das quais em franca oposição ao modelo hegemônico do cinema industrial americano”.
(Araújo e Silva, p.118). Percebemos a ausência nos escritos adornianos do cinema de vanguarda

767
europeu, do cinema soviético dos anos 20. Curiosa, particularmente, a ausência do expressionismo
alemão.
Há várias passagens, contudo, em “Notas sobre o Filme” (além da mencionada sobre
Antonioni) em que Adorno admite a possibilidade de o cinema vir a ser arte emancipada. Por
exemplo (seguindo Araújo e Silva): “A estética do filme deverá antes recorrer a uma forma de
experiência subjetiva, com a qual se assemelha apesar de sua origem tecnológica, e que perfaz
aquilo que ele tem de artístico [...] O filme seria arte enquanto reposição objetivadora dessa espécie
de experiência (p.102); o filme emancipado teria de retirar o seu caráter a priori coletivo do
contexto de atuação inconsciente e irracional, colocando-o a serviço da intenção iluminista (p.105);
A produção cinematográfica emancipada não deveria mais [...] confiar irrefletidamente na
tecnologia, no fundamento do métier (p.106 – já citado acima); Como seria bonito se, na atual
situação, fosse possível afirmar que os filmes seriam tanto mais obras de arte quanto menos eles
aparecessem como obras de arte (p.107).”
Em suma, não é justa a interpretação das posições de Adorno em relação ao cinema em
termos de pura condenação. Araújo e Silva conclui seu esclarecedor artigo dizendo que “talvez seja
mais adequado pensarmos a relação entre um certo cinema que é arte autônoma e a indústria
cultural não como uma exclusão recíproca, mas como uma tensão constitutiva”. Ou seja, o melhor
cinema é parte da indústria cultural, mas se nos ativermos a uma análise de alguns de seus
elementos constitutivos, podemos, não apenas descontaminá-lo das características funestas da
indústria cultural, como podemos também, num âmbito mais amplo, nuançarmos a própria
concepção geral de indústria cultural a partir de ambigüidades desse tipo.

768
ADORNO E A TELEVISÃO
Renato FRANCO1

I
Adorno dedicou dois ensaios à investigação minuciosa da natureza e alcance da
televisão. Neles, também configurou com precisão o vínculo vital dela com a indústria
cultural, estudada na obra Dialética do esclarecimento, escrita em parceria com M.
Horkheimer. No primeiro ensaio, intitulado “Prólogo à televisão”2, o autor busca sobretudo
esclarecer como o novo meio, “síntese do rádio e do cinema”, resulta da fusão de interesses
materiais originalmente diversos concretizando assim, também nesse setor de atividade, a
tendência geral para a concentração de capital e do poderio técnico. Nessa perspectiva,
destaca a finalidade principal do novo meio, espécie de “cinema doméstico”: preencher o
espaço privado ofertando ao usuário sons e imagens simultaneamente. Adorno realça portanto
a originalidade do engenho. Diferentemente do rádio, ele se destina a capturar a atenção de
dois dos nossos sentidos: a audição e a visão. Dessa forma, lograria o que o rádio está fadado
a não conseguir, ou seja, a atenção – ou submissão – radical do espectador, já que ver e ouvir
dificultam a realização simultânea de qualquer outra atividade. Ao contrário, exige
passividade, repouso físico.
A reflexão adorniana permite esclarecer ainda dois aspectos fundamentais da
televisão: o de que ela não pode ser estudada se isolarmos seus diferentes aspectos, sob pena
de ocultarmos gravemente sua natureza e alcance, e o fato constitutivo de sua linguagem
apresentar uma particularidade original:

Em virtude dessas e de outras derivações [...], a vontade daqueles que


dispõem dos meios dissolve-se nessa linguagem-imagem, à qual apraz
apresentar-se como sendo aquela dos que a recebem. Na medida em que
nesses é despertado e representado em imagens aquilo que neles dormitava
ao nível pré-conceitual, lhes é também demonstrado como eles devem
comportar-se [...] Enquanto figura, a linguagem-imagem é meio de uma
regressão em que o produtor e o consumidor se encontram; enquanto escrita
ela põe as imagens arcaicas à disposição dos modernos. Encantos
desencantados, as imagens não transmitem qualquer segredo, mas são
modelos de um comportamento, que corresponde tanto à gravitação do
sistema total quanto à vontade dos controladores. (ADORNO, 1981, p. 352).

1
Professor Aposentado da FCL/CAr-UNESP. Coordenador do GEP Teoria Crítica: tecnologia, cultura e
formação, UNESP-AR.
2
“Prólogo à televisão” foi publicado no Brasil na coletânea Meios de comunicação de massa e indústria
cultural, organizada por Gabriel Cohn, com o título de “Tv, consciência e indústria cultural”.

769
Essas conclusões são decisivas. Elas servem fundamentalmente tanto para desfazer as finas
teias constitutivas do “véu ideológico” que recobre a televisão, desmanchando assim os
engodos mais comuns que esse meio tecnológico costuma suscitar, quanto fornecer as
diretrizes fundamentais das pesquisas sobre ela. Levadas à sério, elas impediriam qualquer
sorte de formulação teórica disposta a considerar a televisão como mero suporte técnico de
transmissão de mensagens, as quais não seriam de modo algum afetadas por ela. Considerar,
nesse campo, as coisas desse modo implica a crença ingênua de que a televisão transmite a
realidade “verdadeira”, sem qualquer mediação. Em conseqüência, esse aspecto suscita ainda
o questionamento radical de qualquer estudo empírico baseado em questionário que exige
resposta “consciente” do entrevistado, visto que a linguagem-imagem da televisão mobiliza o
elemento “pré-conceitual” do espectador e é, ao mesmo tempo, “modelo de comportamento”.
Cabe, portanto, concluir que somente pesquisas empíricas amparadas em interpretações
psicanalíticas poderiam efetivamente desvendar o alcance da linguagem televisiva. E também
que a investigação da televisão possui um caráter político, já que os modelos de
comportamento ”correspondem à vontade dos controladores”.
No segundo ensaio, intitulado “A televisão como ideologia”, ainda inédito no
Brasil, Adorno retoma a análise efetuada no ensaio anterior com o propósito de aprofundá-la e
de esclarecer a natureza do material que nela é veiculado. Para tanto, examina o roteiro de 34
obras escritas para a televisão, de diversos tipos e níveis, sem perder de vista, contudo, que tal
análise pode não coincidir com a análise do mesmo enquanto imagens, enquanto parte da
programação exibida. Realça, no entanto, a validade e pertinência da análise visto que esses
roteiros explicitamente planejam provocar um conjunto de efeitos no espectador capaz de
mobilizar o material inconsciente. Além disso, essa característica não é encontrável em um ou
outro caso, mas, ao contrário, “se repete inúmeras vezes”, o que comprovaria o caráter
planejado deles. Pode, desse modo, constatar que eles não implicam formas elaboradas, nem
temas ou argumentos complexos ou polêmicos, fato também característico das produções dos
outros segmentos da indústria cultural, especialmente a cinematográfica. Segundo Adorno
(1969, p. 76), “[...] a semelhança com os filmes é prova da unidade da indústria da cultural: é
quase indiferente por onde se a aborde.”
Nessa análise ocupa lugar central o conceito de “múltiplos estratos estéticos”, que
caracterizaria o modo amplo e aberto das obras de arte incidirem em seus fruidores. Isso
significa que toda obra artística possui uma densa camada de significações, o que impede
sempre sua apreensão unívoca. Ao contrário, elas são capazes de revelar níveis de
interpretação e de apreensão variáveis, os quais, em sua maioria, só se revelam com o

770
transcorrer do tempo, compondo assim a história de sua recepção. Tal fato não ocorreria,
porém, com as obras da indústria cultural e esse aspecto se presta adequadamente, segundo
ainda o autor, para distinguir as obras dos dois campos distintos. Para chegar a tal conclusão,
Adorno se vale das pesquisas elaboradas em Viena por Hans Weigel acerca do cinema
comercial: como a televisão, ele resulta de uma planificação comercial e desconhece essa
riqueza significativa.
Alguém mais desinformado a respeito do novo meio poderia supor ser tal
contenção da ambigüidade estética necessária em função da conquista de mais vasta eficácia
informativa. Adorno, porém, imediatamente mostra o caráter ilusório dessa suposição
apontando a serviço do que efetivamente ela está: aumentar a taxa de conformismo do
espectador e, desse modo, obter a reafirmação fortalecida do status quo.A televisão, enquanto
meio tecnológico enredado na indústria cultural, incessantemente lança sobre o espectador
“[...] mensagens abertas e encobertas. Possivelmente, por serem psicologicamente mais
eficazes, estas tenham preminência na planificação.” (ADORNO, 1969, p. 77).
A meta de Adorno, nesse ensaio, é demonstrar em que medida a televisão
comercial “[...] é um produto do antiespírito objetivo [...]” (p. 88) e, ao mesmo tempo, a de
sugerir uma fecunda discussão pública sobre a adoção de um conjunto de normas reguladoras,
as quais, por sua vez, poderiam “[...] funcionar como uma espécie de vacinação do público
contra a ideologia propagada pela televisão e suas formas aparentadas.” (ADORNO, 1969, p.
88). Adorno reconhece o quanto pode parecer inócua ou utópica tal proposta, mas a justifica
argumentando que hoje “[...] a ideologia está tão habilmente integrada ao funcionamento de
seu mecanismo, que qualquer proposta pode ser posta de lado como utópica, tecnicamente
inaceitável e pouco prática.” (ADORNO, 1969, p. 87). Se examinarmos com atenção a
proposta adorniana notaremos que ela não é inócua: muito teríamos a ganhar se fôssemos
capazes, por exemplo, de estabelecermos critérios racionais capazes de proteger social e
psicologicamente as crianças, espectadoras desamparadas, desde cedo treinadas a aderir sem
recuo às exigências do “antiespírito objetivo”, o qual não hesita em utilizar nenhum meio para
conquistar seus objetivos. E, de quebra, veríamos como são infundadas as críticas lançadas
contra Adorno, que o acusam de ser elitista, apolítico e pessimista. O estudo sobre a televisão,
nesse aspecto, articula-se perfeitamente com as preocupações do autor, examinadas em
ensaios como Educação após Avchwitz, para citar um exemplo.
Não pretendo, porém, levar adiante a análise das concepções de Adorno a respeito
da televisão nesse trabalho. Obviamente, não por considerar imprópria ou descabida tal
análise mas, simplesmente, por supor ser mais adequado empreender aqui uma reflexão

771
introdutória sobre o caráter e o alcance da televisão no cenário cultural brasileiro, sem perder
de vista as particularidades, os contrastes e os antagonismos da estrutura social brasileira.
Penso ser essa análise bastante propícia para verificar a atualidade e a eficácia das idéias de
Adorno sobre tal meio tecnológico.

II
Talvez pudéssemos, despidos das exigências do rigor acadêmico, considerar a
história da TV no Brasil como composta – até agora – por dois grandes períodos: o primeiro
seria o de sua implantação; o segundo, o de sua consolidação e expansão. O marco divisório
entre os dois, à falta de data mais precisa, poderia ser fornecida pela história: mais
precisamente, dezembro de 1968, quando foi editado o Ato Institucional V (AI-5) pela
Ditadura Militar. Nessa época, os militares decretaram o estado de exceção e implantaram a
mais truculenta e inapelável forma de censura a todo tipo de produção cultural. Cuidaram,
porém, não apenas de calar a voz da sociedade ou das formas até então vigentes de cultura,
mas, ao mesmo tempo, de também alterar as bases materiais tanto da produção cultural quanto
da circulação das obras mediante a modernização autoritária e conservadora – configurando
um efetivo ato de contra-revolução, se é que posso falar assim – da indústria cultural no país.
Essa política, que almejava superar a produção artesanal da cultura, favoreceu de maneira
desmedida a formação de poderosa(s) rede(s) de televisão.
Para concretizar agora nosso objetivo será melhor concentrar nossa atenção no
período da consolidação da TV, enfocando mais de perto os anos 70, visto que muito do que
ocorreu nas décadas posteriores decorrem da ação da Ditadura Militar na década apontada.
Talvez até pudéssemos iniciar a análise identificando um fato capital: a produção daquilo que
poderíamos chamar de “sociabilidade postiça”. Se, de fato, como observou Adorno, o alcance
e a influência da televisão é inseparável da forma que ela é consumida, então ela exige a
absoluta submissão do espectador: no ambiente doméstico, geralmente na penumbra – que
incentiva o relaxamento físico e psíquico – ele se entrega ao aparelho com docilidade. Esse
fato objetivamente reduz a apreensão crítica, ou antes, a impede, configurando assim aquela
atmosfera imprópria à atividade intelectual, tão destacada por Adorno.
O caráter regressivo da TV é reforçado ainda tanto pelo fato de o espectador
buscar nela escapar do sofrimento diário imposto pelo processo social – “divertir-se é estar de
acordo” – quanto pelo fato de ela oferecer a ele uma linguagem-imagem regulada por
mecanismos e fluxos que “mobilizam o pré-conceitual”, a qual, tanto quanto a busca da
diversão, dispensa ou impede o pensamento e a reflexão.

772
Além disso, a destinação da TV ao uso doméstico objetivamente a transforma em
poderosa máquina de produção do isolamento. Com efeito, ao ligarmos o aparelho nos
retiramos do convívio social: somos inapelavelmente arrancados do contexto vivo das
relações reais. Forçados a recuperar a energia dispendida no processo de trabalho ou, mais
recentemente, a buscar, enquanto espectadores, a inclusão social – objetivamente impedida
pelo processo econômico – somos isolados, atomizados. Quebra-se assim a socialização real e
instaura-se outra bem diversa, postiça, autoritária, planejada.
A constelação formada pela gravitação desses diversos aspectos ao redor da TV
ganha maior nitidez se percebermos, em seu modo de brilhar, imagens que remetem a um
evento novo e decisivo: a destruição do espaço público pela televisão, que o recria como
privado. Nova imagem-relâmpago: o clarão deixa entrever a formação da administração total
no Brasil, forma enviesada do entrarmos no concerto das nações.
Acrescentamos agora novos pólos nessa constelação. Esse procedimento não é
arbitrário. As novas estrelas devem cristalizar forças sociais poderosas e atuantes
decisivamente, de modo a iluminar o céu da história. Só assim podem ser reconhecidas pelo
olho treinado do observador. A expansão avassaladora da televisão comercial no Brasil
durante os anos 70, patrocinada pela Ditadura Militar, por um lado, parece ter ajudado a
erradicar com velocidade sem precedentes a mentalidade agrária então predominante na maior
parte das regiões brasileiras. Ela ajudou assim de modo formidável a produzir uma espécie de
efetiva integração dessas regiões, auxiliando a soterrar ou a desintegrar as várias culturas
regionais. Ela também forçou a uniformização dos espectadores, transformando-os em
consumidores. Simultaneamente, tornou próximo o distante e distante o que é próximo. Ela,
nesse aspecto, ofereceu ao usuário a sensação ilusória de que ele integra ativamente a
comunidade mundial enquanto, de fato, o distancia dos acontecimentos nos quais poderia
interferir. A TV torna desinteressante exatamente aquilo que, socialmente, é do interesse
imediato do cidadão. Por outro lado, vista no conjunto dessa complexa rede de relações, ela
também pode ter sido um dos mais decisivos instrumentos postos a serviço da erradicação das
eventuais conseqüências explosivas de nossa história cultural e política mais recente. Se a
censura, predominante no auge da Ditadura Militar, serviu para suprimir a produção cultural
local e criar uma reserva de mercado destinado à produção cultural originária dos EUA –
poderoso interesse presente na tessitura do período –, foi a televisão que ajudou a estabelecer
as condições propícias a sua supressão, visto que ela objetivamente cria enormes dificuldades
para a sobrevivência da produção cultural autônoma, inclusive por forçar a produção de um
tipo de amnésia histórica. Conseqüentemente, um crítico mais afoito poderia concluir que a

773
televisão no Brasil criou um campo de concentração do espírito e, nessa medida, as condições
materiais necessárias para o estabelecimento de um modelo de organização política a que
chamamos de democracia, já que efetivamente não conseguimos nomeá-lo. Sem o auxílio das
lentes fornecidas por Adorno, não notaríamos isso.

Referências
ADORNO, T. Prólogo à televisão. In: ______. Intervenciones: nuevo modelos de critica.
Caracas: Ed. Monte Ávila, 1969.
______. Televisão, consciência e indústria cultural. In: COHN, G. Comunicação de massa e
indústria cultural. São Paulo: Cultrix, 1981.
______. La television como ideologia. In: ______. Intervenciones. Caracas: Ed. Monte Ávila,
1969.

774
Relatório Técnico de Pesquisa: Teses em Teoria Crítica e Educação, Escola ou Formação no
Brasil

CROCHÍK, José L.; ALVAREZ, Juliana A; BITTENCOURT, Cândida A.C.; CARLOS, Aparecida
G.; CASCO, Ricardo; DEZIDERIO, Herika R.; GIMENES, Luciane A. A.; MARTINEZ,
Domenica; MAZZANTE, Fernanda P.; NEVES, Fernanda M.B.; PEREIRA, José R.; POIT, Davi
R.; SANTOS, Kelly C.; SILVA, Marcio R. S.

1. Objetivos.
Este relatório visa apresentar os resultados da pesquisa intitulada Teoria Crítica e
Educação no Brasil realizada no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, no âmbito da Atividade Programada coordenada pelo Profº Dr.
José Leon Crochík, na área de Ciências Sociais. A pesquisa foi realizada durante o segundo
semestre de 2005 e teve como objetivo realizar um estudo sobre a produção científica nacional,
particularmente das teses de doutoramento produzidas no Brasil cujo aporte teórico se calcasse nas
reflexões formuladas pela primeira geração de autores da chamada “Teoria Crítica da Sociedade”, e
que versassem sobre Educação, Escola ou Formação.
Na primeira fase de investigação, foi realizado um levantamento amplo dos
pesquisadores brasileiros cuja produção teórica fizesse referência à Teoria Crítica. Para cumprir
esse intento, voltamo-nos a três fontes para consulta de dados, quais sejam: o banco de dados do
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), Cd Rom da Associação Nacional de Pesquisa em Pós-
graduação em Educação (Anped) e banco de teses da Coordenadoria de Apoio e Aperfeiçoamento
ao Ensino Superior (CAPES). Essas três fontes foram selecionadas tendo em vista a amplitude de
dados sobre pesquisadores e produção nelas compilados e por serem bastante completas no que diz
respeito a pesquisa e produções acadêmicas no Brasil. A pesquisa iniciou-se com a preocupação de
realizar um levantamento quantitativo para que, posteriormente, este viesse a subsidiar a análise
qualitativa das teses selecionadas dentro dos critérios que o grupo adotou e que estão apresentados
na seqüência.

2. Procedimento de Coleta de dados.


Para levantarmos os pesquisadores brasileiros voltados à Teoria Crítica, foram definidos
alguns critérios, haja vista nosso objetivo principal ser o mapeamento das teses nessa área.
Consultando o site do CNPq, buscamos por pesquisadores brasileiros cujo nível mínimo de
formação fosse doutorado; para isso, lançamos no sistema do CNPq palavras-chaves como “Teoria

775
Crítica”, “Frankfurt”, “Adorno”, “Marcuse”, “Horkheimer” e “Benjamin”, buscando por
pesquisadores que apresentassem alguma produção referente à Teoria Crítica ou seus autores.1 O
segundo passo foi selecionar a área de atuação dos pesquisadores levantados, mantendo-se apenas
aqueles voltados à educação e multidisciplinaridade. Por último, cotejamos as listas de
pesquisadores obtidas em cada palavra-chave e chegamos a um total de 213 currículos que
contemplavam nossos critérios.
A essa primeira listagem foram acrescentados os pesquisadores levantados no banco de
teses da CAPES. Foram lançadas as mesmas palavras-chave na busca e todos os pesquisadores e
teses cujos títulos ou resumos fizessem referência a elas foram mantidos. Alguns pesquisadores já
levantados pelo site do CNPq também foram encontrados no banco de teses da CAPES e por esse
motivo fizemos um novo cotejamento entre listagens, chegando a um total de 234 pesquisadores.
Por fim, as mesmas palavras-chave foram utilizadas na busca do CD Rom da Anped, no qual foram
contemplados títulos e resumos. Foram excluídos os pesquisadores que já se achavam compilados
nas listagens anteriores e chegamos, finalmente, ao total de 236 pesquisadores.
A segunda fase da pesquisa consistiu em verificar especificamente o título da tese de cada
pesquisador; no sistema CNPq – onde encontramos o maior número de pesquisadores – foi
consultado o currículo lattes de cada um deles e selecionadas as teses que apresentavam referência
explícita à Teoria Crítica ou a algum de seus autores, quer no título, quer nas palavras-chave. Em
função do grande número de pesquisadores encontrados, decidimos fazer este trabalho em duplas:
cada dupla se encarregou de verificar as teses de 38 pesquisadores, todos eles verificados por um
membro do grupo e conferidos por seu parceiro. Do total de 236 pesquisadores levantados nas três
fontes de consulta, foram mantidos 622; todos estes apresentaram suas teses em Teoria Crítica e
Educação, Teoria Crítica e Escola ou Teoria Crítica e Formação.
Em seguida, tendo já em mãos os nomes do 62 pesquisadores e suas respectivas teses,
fizemos o compilamento dos resumos dessas teses para uma posterior análise. O acesso à maior
parte dos resumos tivemos por meio do próprio banco de teses da CAPES. Algumas teses, porém,
não foram encontradas nesse banco e foram então buscadas nos sites das próprias universidades em
que foram defendidas ou pelo contato direto com o próprio pesquisador, via endereço eletrônico.
Nessa terceira fase de seleção dos resumos, 13 deles foram descartados, quer porque as teses a que

1
Não selecionamos “Habermas” como uma das palavras-chave porque decidimos considerar as produções
referentes apenas à primeira geração de frankfurtianos.
2
Apenas 49 pesquisadores foram mantidos de um total de 236 em função de que foram desconsideradas
produções como artigos, resumos, livros, apresentações e outras. Foram consideradas à rigor, apenas as teses.

776
se referiam ainda estavam em andamento, quer porque se referiam aos estudos nomeados de
“Teoria Crítica”, porém não necessariamente frankfurtianos. Outros resumos foram excluídos da
amostra porque durante as discussões do grupo ficou decidido que o autor Habermas, embora
nomeado de teórico crítico, não faria parte de nosso objeto de análise por não pertencer a primeira
geração da Escola de Frankfurt; as teses que se referiam exclusivamente a ele e a nenhum outro
teórico frankfurtiano, foram excluídas da amostra. Obtivemos, por fim, um total de 49 títulos
(Anexo 1).

3. Procedimento de análise de dados.


O levantamento quantitativo dos resumos das teses em Teoria Crítica e Educação, Teoria
Crítica e Escola, Teoria Crítica e Formação nos deu suporte para a análise qualitativa das mesmas.
Essas teses nos forneceram indicativos daquilo que tem sido estudado em Teoria Crítica e Educação
e a maneira pelo qual esses estudos têm sido feitos.
Para coletarmos informações contidas nos resumos das 49 teses, foram elaboradas duas
questões norteadoras a fim de que os objetivos da pesquisa pudessem ser contemplados pelo método
de análise:
1) O que tem sido estudado pelos pesquisadores da Teoria Crítica no Brasil?
2) Como tem sido apropriada a primeira geração da Teoria Crítica pelos pesquisadores
brasileiros?
Essas questões norteadoras nos permitiram a elaboração de seis categorias básicas de
análise dos resumos, de modo a partir delas pudéssemos realizar um mapeamento da produção.
Para respondermos a primeira questão (O que tem sido estudado pelos pesquisadores
da Teoria Crítica no Brasil?), foram criadas as seguintes categorias:
3. 1. a) Tipo:
Refere-se à área em que predominantemente se concentra o objeto estudado pela tese, quer
o autor tenha se preocupado com a educação/formação, quer concentre sua pesquisa
especificamente no lócus escolar. Não se exclui a possibilidade de que uma mesma tese seja
abordada a temática educação/formação de modo simultâneo à educação escolar; nesses casos será
considerada a área de análise em que predominantemente se concentra o objeto da pesquisa.
Escola: refere-se às teses cujo objeto de estudo seja predominantemente referente à
educação escolar de forma específica;
Educação: refere-se às teses cujo objeto de estudo seja predominantemente referente à
educação/formação de um modo mais amplo.

777
Entendemos por educação todo o processo formativo que não necessariamente esteja
vinculado às instituições formais de ensino; trata-se de um processo mais amplo de formação
relacionado aos aspectos da vida cultural da sociedade como os meios de comunicação, o mundo do
trabalho, as artes etc. Como escola entendemos os processos formativos ligados às instituições de
ensino, sejam elas referentes à educação básica, ensino médio, superior, ou ainda à educação
desenvolvida nas creches ou instituições de atendimento formal. Mesmo se tratando de um lócus
específico de investigação, não necessariamente a pesquisa deve apresentar dados empíricos para
ser classificada como do tipo escola, mas deve, sim, remeter-se às especificidades do contexto
formal de educação.
3. 1. b) Tema:
Refere-se às temáticas centrais das teses, a partir das quais foram elaboradas as seguintes
categorias de análise:
Cultura e formação: nesta categoria estão compiladas as teses cujas temáticas têm como
preocupação predominante a relação entre a cultura e o processo formativo por ela mediado, de
modo que seja apresentada uma discussão teórica ou empírica que procure as correspondências
entre os determinantes culturais e os processos de formação de um modo mais amplo.
Formação voltada para grupos específicos: nesta categoria estão compiladas as teses
cujas temáticas têm como preocupação discutir o processo formativo de grupos específicos (jovens,
crianças, minorias). Para que fossem consideradas na nossa análise as especificidades dos grupos
estudados, nesta categoria puderam ser apontadas sub-categorias que permitem discriminar as
particularidades desses grupos aos quais se referem a pesquisa da tese.
Formação profissionalizante: nesta categoria estão compiladas as teses cujas temáticas
têm como preocupação a formação voltada ao mundo do trabalho. Do mesmo modo, sub-categorias
permitem discriminar a que área profissional se refere a pesquisa.
Para responder a segunda questão (Como tem sido apropriada a primeira geração da
Teoria Crítica pelos pesquisadores brasileiros?), foram criadas as categorias:
3. 2. a) Autores Referenciais:
Refere-se aos autores citados explicitamente no resumo da tese como referências da
pesquisa. Tendo em vista que nosso objetivo é investigar a apropriação teórica desenvolvida pelos
autores da primeira geração da Teoria Crítica, foram criadas subcategorias que pudessem responder
a nossa pergunta norteadora. São elas:
x Teóricos da primeira geração da Teoria Crítica: refere-se aos autores da primeira geração da
Teoria Crítica que são citados no resumo da tese. Esta sub-categoria pode ainda ser dividida em

778
outras duas: 1) Principais: quando o(s) autor(s) da primeira geração da Teoria Crítica for citado
pelo resumo como referência principal ou quando contribuem centralmente com seus conceitos
para o desenvolvimento teórico da tese; 2) Complementares: quando o (s) autor (s) da primeira
geração da Teoria Crítica for citado pelo resumo como uma das referências, acompanhando a
principal;
x Outros autores: refere-se aos autores citados no resumo da tese que não pertencem à primeira
geração da Teoria Crítica. Esta sub-categoria pode ainda ser dividida em outras duas: 1)
Principais: quando o (s) autor (s) for citado pelo resumo como referência principal ou quando
contribuem centralmente com seus conceitos para o desenvolvimento teórico da tese; 2)
Complementares: quando o(s) autor(s) for citado pelo resumo como uma das referências,
acompanhando a principal;
x Vários: refere-se aos resumos em que o autor não dá indicativos para diferençar a importância
dos autores para o desenvolvimento da pesquisa. Todos são apresentados segundo um mesmo
grau de importância e cada um deles utilizado para desenvolver determinado aspecto ou
conceito da tese; nesse caso, não há distinção entre teorias, já que muitas delas podem ser
usadas para iluminar a interpretação de um mesmo objeto de pesquisa, uma vez que são
representadas por muitos autores. Do mesmo modo, esta sub-categoria pode ainda ser dividida
em outras duas: 1) Teóricos da primeira geração da teoria Crítica: refere-se aos teóricos da
primeira geração da Teoria Crítica que são citados juntamente com outros para subsidiar a
discussão realizada pela tese e apontada pelo resumo; 2) Outros Autores: refere-se aos autores
que não pertencem a primeira geração da Teoria Crítica e que são citados no resumo para
subsidiar a discussão realizada pela tese;
x Nenhum: refere-se ao resumo que não faz referência explícita a nenhum autor;
Para classificarmos os resumos nessas categorias, pensamos em critérios que pudessem
norteá-la, de modo que os autores somente foram considerados por essa pesquisa desde que o
resumo fizesse referência explícita ao nome de cada um deles. Ainda que no corpo do resumo
estivessem apresentados conceitos a partir dos quais pudéssemos identificar o autor a que fazem
referência, o critério adotado, por acharmos mais adequado, foi o de considerar apenas os autores
cujos nomes fossem explicitamente citados.
Consideramos um autor como principal em duas circunstâncias:
1) quando, no resumo, o autor é explicitamente citado como teórico principal da discussão
da tese; 2) quando, embora não citado explicitamente como referência principal da tese, o autor é

779
apresentado no resumo seguido de temas ou conceitos que são claramente de sua autoria e que,
portanto, fundamentam centralmente a discussão teórica da pesquisa. Consideramos um autor como
secundário quando, embora citado pelo resumo, não vem acompanhado de conceitos de sua autoria
ou temas de pesquisa que lhe sejam próprios mobilizados pela discussão realizada na tese.
3. 2. b) Perspectiva de Análise Predominante:
Refere-se a maneira predominante pela qual o autor da tese analisa seu objeto de estudo,
seja sob uma perspectiva histórica, situacional ou histórica-situacional:
x Perspectiva Histórica: refere-se aos resumos que indicam que o objeto de estudo da tese foi
analisado predominantemente a partir de seu movimento histórico.
x Perspectiva Situacional: refere-se aos resumos que indicam que o objeto de estudo da tese foi
analisado predominantemente segundo sua configuração atual;
x Perspectiva Histórica-situacional: refere-se aos resumos que indicam ambas perspectivas, ou
seja, que fazem uso da análise do movimento histórico do objeto para compreendê-lo nos dias
atuais.
3. 2. c) Apropriação da Teoria Crítica:
Refere-se à maneira pela qual a Teoria Crítica foi apropriada pelas teses, quer como
teoria principal, quer como teoria auxiliar. Foram elaboradas nesse item, quatro categorias:
x Única: refere-se aos resumos em que a Teoria Crítica é a única referência explícita da pesquisa;
x Principal: refere-se aos resumos em que a Teoria Crítica, embora não seja a única referência
explícita da pesquisa, é a principal;
x Uma das teorias: refere-se aos resumos em que a Teoria Crítica não é a principal referência
explícita da pesquisa, mas se apresenta concomitantemente a outras teorias utilizadas com igual
ou maior destaque que ela;
x Objeto de Crítica: refere-se aos resumos em que a Teoria Crítica é alvo de crítica da pesquisa.
x Não Explícita: refere-se aos resumos em que a Teoria Crítica não está explicitamente citada.

4. Resultados
Todos os resumos das teses foram cuidadosamente classificados nas categorias de análise
formuladas e os dados compilados a fim de que tivéssemos um panorama do que tem sido
produzido em Teoria Crítica e Educação, Formação ou Escola no Brasil e de como isso tem sido
realizado. Para classificá-los em cada categoria, os resumos foram submetidos no mínimo a 12

780
avaliadores e todos os dados finais conseguidos são resultados de uma concordância mínima entre
os avaliadores equivalente a 75%.
Metade do universo total de produções analisadas concentra-se nas universidades
paulistanas: a USP representa 0,31 deste universo com 15 ocorrências, seguida da PUC-SP,
representando 0,22 com 11 ocorrências. A UNICAMP tem uma representação também significativa,
correspondendo a 0,14 da amostra, com 7 ocorrências. As demais universidades, juntas,
representam o total de 0,33 das produções, destacando-se entre ela a UNIMEP e a PUC-RS, com 4
ocorrências cada uma.
Esses dados confirmam a representação maciça da Região Sudeste como um núcleo de
pesquisas em Teoria Crítica no Brasil. Da amostra analisada, 0,96 do total das teses foram
produzidas na Região Sudeste, especialmente no estado de São Paulo. Os 0,04 restantes
correspondem à Região Sul, unicamente ao estado do Rio Grande do Sul. É interessante observar
que nenhuma outra região brasileira além das Sul e Sudeste aparece na amostra; entretanto, embora
esse dado não signifique necessariamente a inexistência de pesquisadores em Teoria Crítica nas
Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, indica uma concentração extremamente significativa na
distribuição espacial referente às produções em Teoria Crítica no Brasil.
O estado de São Paulo é, sem dúvidas, um pólo importante para essas produções. Das 49
teses da amostra, 41 foram produzidas no estado e destas, 26 na própria capital. A USP e a PUC-SP
representam toda a produção da capital, ou seja, 0,53 do universo total de produções do país. Os
dados mostram que a cidade de São Paulo lidera a produção em Teoria Crítica e educação,
formação ou escola mesmo se comparada a quaisquer regiões do Brasil.
A tabela a seguir nos mostra a área em que predominantemente se concentra o objeto de
estudo das teses.
Tabela 1: Tipo de tese: área predominante em que se concentra o objeto de estudo.
Tipo Freqüência Proporção
Escola 20 0,41
Educação 29 0,59
Total 49 1,00

Os dados da tabela indicam que não há um grande desequilíbrio entre as duas áreas de
concentração da pesquisa. 0,41 das teses tiveram como alvo de estudo temáticas relacionadas
predominantemente à escola; 0,59 apresentaram como temáticas principais questões ligadas à
educação. É importante observar que o tipo “Educação” refere-se aos processos formativos mais

781
amplos, voltados às questões culturais gerais, determinantes sociais e outros elementos envolvidos
na formação; não se refere exclusivamente às instâncias de educação formal. Ao contrário, o tipo
“Escola” refere-se a um campo formativo mais restrito, unicamente institucionalizado. É nesse
sentido que consideramos a representatividade das teses do tipo “Escola” (20 ocorrências) bastante
significativa, tendo em vista a especificidade do processo de formação a que se refere: a escola
como lócus de estudo não tem sido esquecida pelos pesquisadores da Teoria Crítica no Brasil.
A tabela 2 apresenta os dados relativos aos temas das teses da amostra analisada.
Tabela 2: Tema da tese.
Tema Freqüência Proporção
Cultura e Formação 30 0,61
Formação Profissionalizante 9 0,19
Formação de Grupos Específicos 10 0,20
Total 49 1,00

Pode-se observar que o tema mais freqüente nas teses é “Cultura e Formação”, com 30
ocorrências que representam 0,61 do universo total da amostra. O tema “Formação de Grupos
Específicos” foi o alvo da pesquisa de 0,20 das teses, com 10 ocorrências, seguido pelo tema
“Formação Profissionalizante”, representado por 9 ocorrências ou 0,19 do total da amostra. Os
dados indicam que a maior parte dos pesquisadores de Teoria Crítica da amostra preocupa-se
predominantemente com a relação entre a cultura e processo formativo. Essa é também a
preocupação central dos próprios frankfurtianos da primeira geração, cujas produções comumente
procuram contemplar as articulações entre os determinantes sociais e a formação dos indivíduos. O
fato de que uma das preocupações centrais dos frankfurtianos da primeira geração se repete como
preocupação dos estudiosos da Teoria Crítica no Brasil já é um indicativo do que tem sido
pesquisado por eles. A relação entre a cultura e a formação é uma das questões centrais nas
pesquisas brasileiras em Teoria Crítica e educação.
A tabela 3 mostra os dados obtidos.

782
Tabela 3: Forma de apropriação da Teoria Crítica pelas teses.
Apropriação Freqüência Proporção

Como única teoria 22 0,45


Como uma das teorias 21 0,43
Como teoria principal 4 0,08
Como objeto de crítica 1 0,02
Não explícita 1 0,02
Total 49 1,00
Os dados mostram que no universo total de 49 teses, apenas uma refere-se à Teoria
Crítica como objeto de crítica. É um dado interessante e se refere à tese “Mimeses e educação nos
processo de aprendizagem da razão comunicativa”, de Amarildo Luiz Trevisan. O resumo da tese
dá indicativos de que Trevisan desenvolve uma crítica ao conceito de mímese de Adorno, e que
para cumprir este intento, utiliza-se dos escritos de Habermas, teórico da segunda geração da
própria Escola de Frankfurt.
Como teoria principal a Teoria Crítica aparece em 0,08 das teses da amostra, o que aponta
um índice relativamente pequeno de teses em que, como referência principal, a Teoria Crítica é
complementada por outra teoria ou é utilizada para fazer uma crítica às mesmas. Das 4 teses em que
a Teoria Crítica é utilizada como principal referência, 2 delas apresentam-na combinada à
psicanálise freudiana, o que indica a recorrência dos autores a uma teoria complementar aos
próprios escritos frankfurtianos; nos textos de Adorno e Horkheimer, e especialmente nos de
Marcuse, a presença da teoria freudiana é bastante evidente e fundamenta parte importante do
desenvolvimento da Teoria Crítica da Sociedade. Nossa hipótese é a de que, nessas 2 teses da
amostra, a recorrência a essa teoria complementar se dá em função da necessidade de um
aprofundamento em conceitos utilizados pela Escola de Frankfurt que, apesar de importantes para
seus estudiosos, não foram o objeto principal de análise da teoria. Em 1 das teses em que aparece
como referência principal, a Teoria Crítica é utilizada para fazer uma análise da concepção de
subjetividade inserida no trabalho de Codo e Dejours. A última das 4 citadas utiliza as produções de
Giroux como etapa adicional do desenvolvimento da tese.
Como única referência a Teoria Crítica aparece em 45% das teses da amostra, o que está
representado por 22 ocorrências. Uma freqüência muito semelhante ocorre na apropriação da Teoria
Crítica como uma das referências e a análise desses resumos dão indicativos das interlocuções
mais freqüentes entre a Teoria Crítica e outras teorias.

783
Das 22 teses em que a Teoria Crítica aparece como uma das referências, 3 delas
apresentam Habermas como interlocutor. Não é difícil imaginar o por quê, uma vez que grande
parte dos pesquisadores em Teoria Crítica toma Habermas como autor que dá continuidade aos
estudos da Escola de Frankfurt, embora tenha rompido com alguns conceitos formulados pela
primeira geração. Outras 3 teses recorrem à psicanálise para estudar seu objeto, o que é uma
combinação bastante razoável tendo em vista que os escritos da primeira geração de frankfurtianos
utilizam freqüentemente conceitos freudianos para explicar como a esfera subjetiva vincula-se à
objetiva.
É interessante observar nos dados que todas as teses da amostra que se apropriam da
Teoria Crítica por meio dos escritos de Walter Benjamim, recorrem a outros autores e teorias
consideradas tão importantes quanto o próprio Benjamin para o desenvolvimento da tese. Em 10
dos 22 resumos em que a Teoria Crítica aparece como uma das referências, Benjamin é o autor por
meio do qual ela foi apropriada e uma combinação entre a Teoria Crítica e outras nem sempre afins
compõem a discussão a que se propõe a tese. Parece-nos que os estudos de Walter Benjamin
propiciam este tipo de apropriação, talvez em razão de que o autor tenha em seus escritos uma
variação muito grande de temáticas que permite a recorrência a ele para o desenvolvimento de
diferentes e amplas questões de pesquisa. Os dados mostram que, em geral, essa apropriação á
realizada de forma inadequada: autores de diferentes perspectivas são combinados sem a percepção
das nuances próprias de cada um; são forçadamente adicionados uns aos outros, sem que
necessariamente as teorias que representam tenham perspectivas compatíveis na discussão de um
mesmo objeto de pesquisa. Esse modelo de apropriação pode ser considerado próximo daquilo que
Warde (1993), em seu relatório de pesquisa3 categoriza como “miscelânea” de autores e de teorias.
Um bom exemplo desse modelo de apropriação é a tese “Semente Voadora: germinação
epistemestética de uma pedagogia spathodea”4. Em seu resumo são citados explicitamente 27
autores referenciais, das mais distintas áreas do conhecimento: filosofia, literatura, poesia, história
etc; dentre eles, a apropriação da Teoria Crítica é realizada por meio dos escritos de Walter
Benjamim. Perguntamo-nos se é possível uma apropriação teórica que efetivamente apreenda o
referencial adotado quando muitas teorias se misturam em torno de um único objeto de estudo e

3
WARDE, Mirian Jorge. A produção discente dos programas de pós-graduação em educação no Brasil
(1982-1991): avaliação & perspectivas. Porto Alegre: ANPED/CNPq, 1993 (mimeografado).
4
DAMIANO, Gilberto Aparecido. Semente voadora: germinação epistemestética de uma pedagogia
Spathodea. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba: UNIMEP,
2001.

784
fragmenta-se para poder investigá-lo. Pode-se entender que apropriações dessa natureza revelam
uma relação indireta com a teoria, de modo que a apreensão resultante é extremamente superficial.
Quando muitas teorias se apresentam na discussão de um objeto de investigação, nenhuma teoria de
fato fundamenta a discussão.
A freqüência com que os autores da primeira geração da Teoria Crítica aparecem
sozinhos como principais referências para o desenvolvimento da tese. Adorno é o autor que mais
aparece sozinho como principal, em 0,16 do total das teses. É provável que Adorno seja o autor
mais citado sozinho como principal em teses sobre Teoria Crítica e Educação em função de sua
importante obra “Educação e Emancipação”, que se atém centralmente às questões voltadas à
educação e formação sob a perspectiva da Escola de Frankfurt. Em seguida, Benjamin é citado
sozinho como autor principal em 0,14 das teses analisadas, seguido por Horkheimer (0,04) e,
finalmente, Marcuse (0,02). No restante das teses da amostra não há referências aos autores da
Teoria Crítica como únicos principais, mas há ocorrências em que aparecem combinados entre si. É
o que mostra a tabela a seguir.
Tabela 3: Autores da primeira geração da Teoria Crítica que aparecem combinados na tese
como principais.
Autores Freqüência Proporção
Adorno/Benjamin 1 0,02
Adorno/Horkheimer 4 0,08
Adorno/Horkheimer/Benjamin 3 0,06
Adorno/Horkheimer/Marcuse 7 0,14
Adorno/Marcuse 1 0,02
Demais teses 33 0,67
Total 49 1,00
arredondamento de uma casa decimal.
A tabela apresenta os dados referentes à freqüência com que os autores da Teoria Crítica
aparecem como principais combinados entre si. Nota-se que a combinação mais freqüente é
Adorno, Horkheimer e Marcuse, representando 0,14 do total de teses da amostra.
Subseqüentemente, Adorno e Horkheimer são a segunda combinação mais freqüente da amostra,
representando 0,08 das teses.
É interessante notar que Horkheimer sempre é apresentado junto de Adorno, exceto nas 2
teses em que é apontado como único autor principal . Isso talvez possa ser justificado pelo fato de

785
que a obra “Dialética do Esclarecimento”, escrita por Horkheimer e Adorno conjuntamente, seja
uma das mais importantes e mais lidas obras da Teoria Crítica no Brasil; é difícil pensar em uma
apropriação efetiva dos conceitos e fundamentos principais da Teoria Crítica sem que o pesquisador
se debruce sobre os escritos dos autores nesta obra, sobretudo ao que diz respeito às questões
relativa à formação cultural e sua estrutura determinada pelas condições históricas e sociais
objetivas.
Em todas as teses da amostra, Adorno aparece uma única vez como autor complementar.
Ao lado de Benjamin ele é alvo de crítica na tese “Mimese e Educação nos processos de
aprendizagem da razão comunicativa”. Ao lado de Horkheimer, Adorno também aparece uma única
vez na categoria “Vários autores”, na tese “Educação e Ideologia na Escolinha do professor
Raimundo: um estudo do ‘Fait divers’”. Em todas as demais teses em que Adorno é citado como um
dos autores de referência, ele ocupa o lugar de autor principal, quer combinado a outros da Teoria
Crítica ou não.
A tabela a seguir apresenta os dados referentes à perspectiva de análise adotada
pelas teses:
Tabela 4: Perspectiva de análise adotada pelas teses em Teoria Crítica e Educação
Perspectiva de análise Freqüência Proporção
Histórica 5 0,11
Situacional 34 0,77
Histórica-situacional 5 0,11
Total 44 1,00
O número total de teses nesta tabela é 44 e não 49, como nas demais, porque os avaliadores não tiveram
concordância mínima de 75% em 5 teses nesta categoria; foram excluídas da análise, portanto, somente no
quesito “Perspectiva de Análise”.
Arredondamento de 1 casa decimal.

Os dados mostram que 0,77 das teses que foram analisadas nesta categoria realizaram
uma investigação a respeito de seu objeto de estudo tendo em vista sua configuração atual e,
portanto, situacional. Apenas 0,11 abordaram historicamente os objetos de estudo e na mesma
proporção foram realizados estudos que analisam historicamente seus objetos no esforço de
compreendê-los nos dias atuais.
Esses números apontam uma tendência nas pesquisas em Teoria Crítica e Educação no
Brasil: a apropriação dos escritos frankfurtianos, embora não dispensem o movimento histórico
como objeto de reflexão, é realizada especialmente com vistas às discussões de problemáticas

786
contemporâneas. Em metade das teses em que a perspectiva histórica é utilizada, os autores o fazem
interessados nos reflexos deste movimento histórico na atualidade. Das 5 teses em que o objeto de
estudo é investigado por essa perspectiva, 4 delas se voltam à educação e apenas 1 à escola. Já no
caso das teses cuja perspectiva é unicamente histórica, das 5 da amostra, 2 têm como preocupação
analisar objetos de estudo voltados à educação e 3 à escola.
No total das 44 teses da categoria “Perspectiva de Análise”, a escola foi alvo de estudos
históricos em 4 ocorrências; a educação, em 6 ocorrências. Esses dados mostram um equilíbrio
tendo em vista que as teses do tipo “Educação” têm uma possibilidade de objetos de estudo mais
ampla que as do tipo “Escola”.
Todos os dados obtidos durante a realização desta pesquisa têm como objetivo fornecer
um panorama daquilo que tem sido produzido em teses no Brasil por pesquisadores interessados nos
escritos da primeira geração de frankfurtianos. Pode-se, por meio dos dados contidos neste relatório,
observar quais autores mais se destacam, em que área de investigação têm sido mais freqüentes os
estudos, de que modo tem sido realizada a apropriação da primeira geração da Teoria Crítica, entre
outros. A pesquisa foi encaminhada sabendo-se dos limites que existem na proposta de analisar os
resumos das teses, e não elas próprias. Mas, aquilo que de fato poderia representar unicamente um
limite à pesquisa, tornou-se também objeto de reflexão. O resumo é – ou deveria ser – uma breve
apresentação do conteúdo da tese, no qual os pesquisadores devem procurar elementos dispostos
que lhes dêem indicativos do desenvolvimento da pesquisa. Foram encontrados, porém, resumos
bem elaborados ao lado de outros que pouco orientam os leitores a respeito do conteúdo e
desenvolvimento de tese. Embora o resumo seja, via de regra, o meio de contato primeiro entre
outros pesquisadores e a própria tese, nem sempre ele parece ser cuidado segundo a importância que
tem.
É nesse sentido que esta pesquisa dispõe-se a um aprofundamento de ordem qualitativa,
pensando-se quiçá na leitura das próprias teses ou ainda na leitura de uma amostragem que permita
a investigação de questões mais específicas da produção em Teoria Crítica e educação no Brasil.

Teses da amostra examinada.

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Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Universidade de
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787
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Marcuse.Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade) – Pontifícia
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paradoxos da psicologia na educação. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia
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2000.

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cultura: implicações da massificação do ensino para a prática da psicologia da educação.
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba:
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788
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experiências dos trabalhadores deficientes visuais do serviço federal de processamentos de
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793
Theodor Adorno: criticas e possibilidades da educação e da escola na contemporaneidade
VILELA, Rita Amelia Teixeira – PUC Minas / Mestrado em Educação
Categoria: Comunicação
Eixo temático: Teoria Critica, Indústria Cultural e Educação

Introdução
No atual momento histórico, sob o paradigma da pós-modernidade, a reflexão sobre o
tipo de homem que estaria afinado com a nova sociedade apresenta questões cruciais para a
educação, para o papel da escola e para os professores. É inegável que existe consenso de que
a principal tarefa da escola é desenvolver nos alunos a capacidade de pensar e de tomar
decisões, o que significa ir muito além do reprodutor de formas e de conhecimentos
preestabelecidos e de pensamentos lineares, frutos dos currículos escolares fechados que, sob o
domínio do pensamento cartesiano dominante, predominaram nas escolas dos séculos dezenove
e vinte.
Por outro lado, estudos e debates na área da educação tem assinalado os desafios da
escola diante das contradições da sociedade atual, designada como pós-moderna, na qual se
evidenciam avanços cientíticos e tecnológicos numa velocidade nunca antes presente,
coabitando com velhas questões ainda não resolvidas: a miseria social, a fome, conflitos
bélicos justificados por razões variadas e nem sempre com sentido aceitável, o esgotamento dos
recursos naturais e a degradação cada vez maior e sem controle do meio ambiente. A critica
mais pertinente que se pode apontar para os sistemas de ensino na atualidade é que “ não
respondem às contradições e às demandas provocadas pelos processos de globalização
econômica e de mundialização da cultura”( Moreira & Candau, 2003:156).
Assim, o grande empreendimento posto hoje para as escolas e os educadores está em ter
que superarem as dificuldades impostas ao sistema escolar, que além de enfrentar as
dificuldades produzidas na nova ordem mundial é hoje um novo palco de lutas e contradições
decorrentes da democracia de acesso. Esta, ao ter legimado o direito de todos à educação levou
para a escola grupos sociais e culturais antes ausentes desse espaço, dando a ela um caráter
inevitavelmente multicultaural ( Connel, 1992; Moreira, 2001; Moreira & Candau, 2003; Santos
2001). Isso implica em que a escola deve reconhecer o caráter multicultural das sociedades
contemporâneas e, portanto, reconhecer como sua responsabilidade saber enfrentar as
contradições e as demandas provocadas por essa nova configuração.
Como é possível discutir um projeto de educação que forme os cidadãos com
competências e atitudes necessárias a esse contexto e que responda a questões concretas da
sociedade globalizada, neo-liberal e multicultural? Como pode Theodor Adorno estar presente
nesse debate?

794
Mesmo não sendo um teórico da educação, encontramos nas suas reflexões de ordem
filosófico-sociais que, ao apresentarem formulações fundamentais para entendimento do
homem na sociedade, um arcabouço substancial de análise para a educação. Adorno
desenvolveu uma crítica contundente à educação e a escola ao nos demonstrar os processos de
(de)formação do homem na sociedade do seu tempo. Essa discussão, apresentada como análise
e reflexão dialética sobre o desenvolvimento e decadência da cultura e da educação na
sociedade, assume, de forma particular, relevância na sua obra. Em primeiro lugar, alguns de
seus escritos assinalam a coerência epistemológica da Teoria Crítica no desvendamento do
processo histórico de produção da educação como relação social de dominação e, ao mesmo
tempo, aponta a dimensão de uma tarefa de emancipação social a ser viabilizada pela escola (
Adorno, 1979; 1995).
Como podemos dialogar com Theodor Adorno para tentar responder à tensão presente
entre as demandas para a educação e as condições da sociedade nas suas atuais dimensões ? É
possível desenvolver um diálogo entre ele e alguns dos elementos presentes na tensão existente
entre as aspirações e os desafios que se colocam para a escola de hoje ?
Em primeiro lugar, será explorada a análise sociológica dirigida por Adorno à escola e
ao sistema de ensino, destacando-se sua atualidade. Em segundo lugar, será retomada a
discussão de Adorno sobre a educação para a emancipação na tentativa de demonstrar que seu
desafio para que a educação possa ser capaz de criar as bases para a construção de uma
sociedade livre da barbárie continua, também, atual para se criar e manter um mundo no qual se
possa viver com justiça e dignidade. Em terceiro lugar, transportada para os desafios que se
colocam para educação, no atual cenário do neoliberalismo globalizado e suas contradições,
tentarei demonstrar a apropriação do potencial da epistemologia de Adorno no debate acerca de
questões da relação entre a escola e a sociedade no mundo contemporâneo e no enfrentamento
dos desafios e impasses para um projeto de educação que seja formadora do homem: que
abranja a possibilidade de que alunos dominem o conhecimento acumulado e que é patrimônio
da humanidade, mas que abarque a construção de identidades solidárias e comprometidas com a
justiça social e a convivência solidária.
Adorno prenunciou concepções hoje largamente defendidas: a defesa de um outro
conhecimento e que este considere a cultura de todos os grupos sociais; um conhecimento que
seja orientado para criar as possibilidades uma vida decente no planeta, tal como postula
Santos (1989; 2001); o desencadeamento de uma política curricular que vise produzir mais
igualdade no conjunto global das relações sociais às quais o sistema educacional está vinculado,
tal como defendem Connell (1992; 1995); Moreira ( 2001); Moreira & Candau ( 2003).

795
As questões colocadas por Adorno ao sistema escolar nos anos 1950/60 revelam o
pioneirismo do seu pensamento para abordar as relações de poder presentes na escola, na sua
organização e nas suas práticas, que foi uma dimensão central nas teorias curriculares críticas
desenvolvidas posteriormente na Nova Sociologia da Educação1 e que hoje sustentam o debate
no campo do currículo ( Apple 1982; Young, 1971, 1999).

Adorno: análise sociológica dirigida à escola e ao sistema de ensino e sua atualidade


Estudiosos de Adorno tem reforçado a dimensão sociológica de sua obra ( Bolte, 1995;
Negt, 1995; Paetzold,1995; Schiller 1995, Schweppenhauser, 1995; 2003). Segundo Oskar
Negt ( 1995) Adorno próprio se declarava filósofo e sociólogo ao mesmo tempo e suas reflexões
filosóficas deram fundamentação às suas análises sociais e sustentaram os motivos de suas
pesquisas empíricas. Para Gehard Schweppenhaeuser (2003) Adorno era filosofo fazendo
sociologia e era sociólogo fazendo filosofia.
Assim, para Adorno,
Sociologia é, no sentido mais profundo, a ciência da experiência humana
portanto, ela implica uma reflexão teórica dialética profunda e sutil entre a
“gênese” do fenômeno analisado e a sua “validade concreta ou empírica” (
como é reconhecida ). Esta dialética não está separada da forma ( a experiência)
em que as pessoas a apreenderam. A gênese e a validade do fenômeno são uma
coisa só ( Negt 1995:21 ).

De acordo com Negt, o conceito de sociologia formulado por adorno coloca duas
condições para o desvendamento e análise da realidade social: primeiro os conceitos a serem
formulados em decorrência dessa análise abarcam a totalidade da sociedade, pois, é através dela
que os fenômenos particulares estudados são constituídos. A análise do particular permite
reconhecer, sempre, essa totalidade concreta. A outra condição é o reconhecimento “que a
verdade buscada pela investigação depende do esclarecimento da possibilidade incessante de
mudança naquilo que foi desvelado” (Negt 1995:16).
Portanto, a presença da dialética entre o geral e o particular, entre o profundo e o
superficial, entre o concreto e o subjetivo, entre o real e uma outra possibilidade, define para a
Sociologia, segundo Adorno, as condições para entendimento da realidade. Em cada fenômeno

1
A Nova sociologia da Educação : a terminologia NSE, convencionalmente, aplica-se para a situação
particular das mudanças na Sociologia da Educação ocorridas na Inglaterra no final dos anos 1960 e iníco
dos 70. No contexto dos estudos sociológicos de situações e processos característicos da vida escolar
surgiram contribuições criticas da escola que modelam uma sociologia crítica do currículo e das práticas
escolares. A NSE é uma sociologia do currículo e uma sociologia do conhecimento escolar: o
conhecimento escolar não é neutro, ele carrega ralações de poder ( Moreira, 1990; Moreira&Silva, 1995;
Forquin, 1996)

796
social e em cada relação social é preciso desvendar esse campo de tensão entre o que aparenta e
sua gênese, entre o revelado a possibilidade imanente de sua mudança. Isso torna a sociologia
de Adorno um meio de reconhecimento e de apreensão do que é verdadeiro no aparente. Além
disso, a operação de análise sociológica é processo com sentido: tem a finalidade de desvendar a
realidade na sua essência, a gênese e o valor, como condição para devolver ao homem a
possibilidade de recuperar a essência da vida humana desprezada e anulada pelas relações de
dominação capitalista. A recuperação dessa essência da vida humana é condição para uma vida
correta e justa (Adorno 2003). Nessa perspectiva fica evidente a interrelação entre a perspectiva
sociológica e a perspectiva filosófica no pensamento adorniano e demonstra que sua teoria
sociológica é uma ciência social engajada, crítica, marxista, interdisciplinar e tolerante.
Os cientistas sociais que buscam apropriar-se da epistemologia de Theodor Adorno para
desvendar as questões educacionais atuais, reiteram que o entendimento sobre o que Adorno
pensa sobre educação tem que ser buscado na sua sociologia e na sua filosofia porque na sua
obra essas duas dimensões estão presentes como uma unidade(Gruschka, 1995; 2004).
Para evidenciar que há uma sociologia e uma sociologia da educação em Adorno quero
me ater, inicialmente, à Introdução e a dois capítulos da obra clássica de Adorno e seu parceiro
Horkheimer, a “Dialética do Esclarecimento”, para me apropriar das possibilidades já presentes
de critica à educação e à escola. ( Horkheimer e Adorno, 1985) .
Estudiosos dessa obra assinalam que ela teve como finalidade, essencialmente,
apresentar uma análise do processo civilizatório (Duarte, 2002; Schweppenhaeuser, 1995;
Schweppenhaeuser, 2003). Sendo assim, os temas tratados no debate são temas sociológicos.
Acrescente-se que a metodologia é uma reflexão hermenêutica histórico social que demarca a
tradição de rompimento dos cientistas sociais da Escola de Frankfurt com a reflexão filosófica
sobre problemas sociais e inaugura uma sociologia com distanciamento da abordagem
positivista ( Adorno et al 1973).
Podemos destacar como a principal características da obra Dialética do Esclarecimento
que ela apresenta-se como uma filosofia social para entender a história social do homem. No
prefácio, os autores anunciam que não conseguiram ater-se aos elementos das ciências
tradicionais (a psicologia, a sociologia e a história da ciência, embora tenha sido essa a intenção
primeira do próprio projeto), porque elas se mostraram insuficientes e limitadas. A obra revela
uma nova concepção de teoria: esta deve ser comprometida com um juízo social-existencial,
pretende desenvolver uma reflexão sobre as condições civilizatórias segundo a interpretação
hermenêutica e recusa do positivismo. Como desafio, pretendeu apreender o conceito de
esclarecimento a partir do seu significado como tempo histórico-social mas, também, e de
forma essencial , como dimensão da vida da sociedade burguesa industrial . Essa possibilidade

797
foi oferecida pela peculiaridade do vocábulo alemão – Aufklaerung ( do verbo aufkaeren / auf
+ klaeren = fazer tornar-se claro – esclarecer ) , bem como os seus usos na linguagem culta e do
povo.
De um lado, Aufklaerung designa o tempo histórico conhecido como Época das Luzes
ou o Iluminismo, refere-se ao momento histórico social nos séculos XVII e XVIII, quando pode
ser demonstrada a hegemonia do saber sobre as crenças infundidas pela religião e sobre a
ignorância. É o momento da hegemonia das ciências e das evidências das conquistas do
progresso da civilização ( como anunciado no processo assinalado por Weber como
“desencantamento do mundo”). No outro lado, na linguagem comum e coloquial, Aufklaerung
significa o oposto à ignorância. Designa o processo pelo qual as pessoas se libertam do estado
de não saber, pelo qual se libertam dos preconceitos e passam a lidar com racionalidade. É
resultante da instrução pelo estudo escolar, pela capacidade de leitura, que produz a capacidade
de reflexão critica e entendimento racional do mundo. Assim, no alemão, “ein aufgeklaertes
Mensh” é um homem instruído/esclarecido, não mais possuído pela ignorância. Não quer dizer
que seja emancipado e esclarecido no sentido a ser pleiteado por Adorno.
No primeiro o capítulo, destinado a presentar o conceito de esclarecimento, os autores
assumem que era preciso entender o mundo esclarecido ou “desencantado”, na perspectiva
assinalada por Weber. Este entendimento demandava o diálogo com o conceito kanteano, pois
para Kant emancipação é o processo de emancipação intelectual, resultado não apenas do
processo histórico de superação da ignorância e da preguiça de pensar por conta própria mas,
também, a capacidade de superar a dominação de uma classe de opressores sobre a
humanidade; a dominação política econômica e intelectual. Para Kant, emancipação seria a
capacidade de superar a menoridade da razão, ou seja, sua subordinação ao estabelecido e ao
aparente. Assim, já neste primeiro capítulo, os autores procuram demonstrar o entrelaçamento
da racionalidade e da realidade social, o entrelaçamento inseparável entre a racionalidade para
dominar a natureza e os resultados contraditórios deste processo, procuram esclarecer como o
próprio domínio da natureza tornou-se nova forma de dominação do homem.
No capítulo “A Indústria Cultural - O esclarecimento como a mistificação das massas”
encontra-se uma análise e reflexão dialética sobre o desenvolvimento e decadência da cultura e
da educação na sociedade, desvelando o processo de alienação conseqüente do processo de
dominação cultural operado pelos aparelhos produtores e reprodutores da cultura de massa.
O conteúdo desse capítulo desenvolve a análise das relações sociais sob a heurística
dialética marxiana. Assim, evidencia o reconhecimento da ambigüidade constante na realidade
em mutação e na apreensão do que significa a sociedade capitalista. Quem é o homem na
sociedade concreta, como operam as determinações de ordem econômica ( relações de

798
produção) e como o homem pode agir na cultura da sociedade capitalista. Os autores denunciam
a tendência da sociedade capitalista de subjugar o indivíduo na torrente da homogeneização,
onde prevalece o mecanismo de construir a heteronomia, ou seja, a condição de ser e se manter
igual ao todo, do que decorre a perda e a destruição do processo de individuação. A sociedade
capitalista prioriza a adaptação ao coletivo pela adesão no lugar da percepção e ação autônomas.
O resultado é a perda da consciência individual que é substituída pela massificação. Com
evidências empíricas tomadas na produção cultural na sociedade daquele tempo, Horkheimer e
Adorno evidenciam como a cultura de massa e os mecanismos da industria cultural acabam
produzindo a regressão do esclarecimento à condição de mera Ideologia (Duarte, 2002).
A educação formal não escapou dessa análise: na introdução da Dialética do
Esclarecimento os autores expressam uma crítica direta à educação ao situarem o sistema de
ensino como uma das instâncias envolvidas com a destruição do verdadeiro esclarecimento,
com a destruição da capacidade criativa e de autonomia dos sujeitos: “Tornar inteiramente
supérfluas suas funções parece ser, apesar de todas as reformas benéficas, a ambição do
sistema educacional” (Adorno e Horkheimer, 1985:13). Aqui eles sinalizam como a educação
não realiza os ideais iluministas de libertação do homem da opressão através da instrução, mas,
pelo contrário, opera como mecanismo de alienação e de reprodução da dominação.
Theodor Adorno desenvolveu a critica à educação de forma mais direta no texto
posterior Teoria da Semiformação ( Theorie der Halbbildung), no qual deu continuidade a uma
análise e reflexão dialética sobre o desenvolvimento e decadência da cultura e da educação na
sociedade ( Adorno 1979). Essa dimensão assume, portanto, de forma particular, relevância na
sua obra e assinala a coerência epistemológica da Teoria Crítica no desvendamento do processo
histórico de produção da educação como relação social de dominação. Isso permite concluir
que nela está uma análise sociológica da educação correspondente à melhor tradição da
Sociologia da Educação. Nesse texto, ao desenvolver a análise dos mecanismos de atuação da
Industria Cultural na sociedade repercutindo na formação da mentalidade e na ação dos
sujeitos, Adorno denuncia que há um processo real na sociedade capitalista que produz o
alheamento do homem das suas condições reais de vida social. Nele está a chave para entender a
crítica adorniana dirigida à educação: a crise da educação é a crise da formação cultural da
sociedade capitalista, uma formação na qual o homem é alienado, mesmo que tenha sido
educado (escolarizado/instruído). A denuncia de Adorno, naquela época, tem implicações na
discussão atual, onde as questões relacionadas com praticas democráticas e inclusivas no
contexto multicultural e globalizado se tornaram centrais.
Torna-se cada vez mais necessário o empenho para a construção de uma concepção
educacional crítica que possa orientar praticas educativas de resistência a “ esse processo de

799
debilitação da individualidade que é um aspecto gerador da intolerância e do autoritarismo” (
Zuin, 2002:10). Esse empenho deve se ancorar nas lições de Adorno .
O indivíduo de Adorno, sob o império da Indústria Cultural, que é permanente sob
novas roupagens resultantes da ideologia da sociedade influenciada pelo avanço das novas
tecnologias da informação, perdeu o que há de essencial no humano – a capacidade de
subjetivação, de solidariedade, de respeito, perdeu a dignidade. Para nosso teórico, foi essa
alienação tornou possível o nazismo, o holocausto e os campos de concentração, porque ela
fabrica sujeitos alienados, incapazes de uma relação subjetiva e crítica com sua realidade, ela
aumenta o potencial de adesão sem consciência. Assim, se reproduz na vida social o aparente
como o válido, o falso como verdadeiro ( Adorno, 1979;1995).
Ao discutir a “semi-formação” sob o império da Industria Cultural, Adorno explicita sua
análise sociológica do sistema de ensino. Ao enfatizar o avanço da “semi-formação”, ocupando
todos os espaços educativos da sociedade, ele deslinda a ideologia do sistema de ensino e
denuncia graves problemas pedagógicos. Segundo ele, o aumento das oportunidades
educacionais não resultou em melhor formação para o povo porque, ao terem sido agraciados
com o direito à escola a eles foi dada a impressão de tratamento de igualdade. Entretanto, o que
ocorre na educação parcial (uma semieducação) que recebem, é a deformação da sua
consciência. Segundo Adorno, “Tudo aquilo que possibilitaria uma reflexão sobre a vida social
é descartado no processo educacional” ( Adorno, 1979: 119). Mas Como tentei evidenciar em
texto anterior (Vilela, 2005), na epistemologia de Adorno encontramos, também, argumentação
para negar a semiformação como algo estabelecido, sem esperanças de superação. Mesmo
quando, na avaliação do teórico, a possibilidade de realização do Homem está completamente
limitada e condicionada pelo alastramento da semiformação sob o controle da Indústria
Cultural, ele admite e aspira a uma transformação das relações sociais através do processo
educativo. No texto dedicado à análise da semicultura e da Indústria Cultural ele aponta que a
educação deve ser uma arma de resistência contra a força da Indústria Cultural, na medida em
que forme uma consciência crítica e reflexiva, capaz de permitir aos indivíduos desvendar as
contradições da vida social e capacitá-los para o exercício de resistência da cultura
verdadeiramente humana contra a cultura banalizada da e pela indústria cultural.
O desenvolvimento da humanização do homem de modo a capacitá-lo para a auto-
reflexão e para ser capaz de agir sobre as condições de opressão, posicionando-se contra elas e
libertando-se delas, é defendido por Adorno em quatro textos que fazem parte de uma obra
resultante do seu diálogo com o tema educação e com educadores: Educação após Auschwitz;
Educação para que ? A educação contra a barbárie; Educação e emancipação ( Adorno, 1995).

800
Assim, transportada para os desafios que se colocam para educação, no atual cenário do
neoliberalismo globalizado e suas contradições, a apropriação do potencial da Teoria Crítica
torna-se fundamental no debate acerca de questões da relação entre a escola e a sociedade no
mundo contemporâneo: um mundo globalizado e multicultural, uma sociedade cada vez mais
sofrida com as conseqüências do neoliberalismo e indivíduos cada vez mais submetidos à lógica
do mercado.
Concordando com Zuin (2002),Ramos de Oliveira (2002) e com Zuin,, Pucci & Ramos
de Oliveira (2000), os escritos de Adorno não podem estar ausentes para aqueles que perseguem
a recuperação da autocrítica e da reflexão na prática educativa e que defendem uma escola que
possa cumprir a promessa de uma vida mais justa. Os ensinamentos de Adorno sobre os
processos da Industria Cultural continuam atuais e devem orientar pesquisas e reflexões que
objetivem desvelar e criticar as condições sociais que reiteram, na atualidade, a universalização
da semiformação e suas conseqüências na alienação do sujeito.
Os ensinamentos de Adorno reforçam as posturas no campo da educação que perseguem
a produção de uma nova pratica pedagógica pautada pela “justiça curricular”. Essa, de acordo
com Connell ( 1992; 1995 ) deve ter como princípios: ver e entender os interesses dos menos
favorecidos e criar experiências para que esses interesses tenham lugar na escola, não para que
sejam apenas toleradas mas para que sejam de fato reconhecidas como direito; que todos tenham
direito a uma escolarização comum e de igual qualidade e significado social; que a escola tenha
como meta o direcionamento das suas ações para a construção da equidade social.
Isso nos remete á necessidade de retomar, também, a propriedade da concepção
adorniana de educação para a emancipação.

Educação para a emancipação segundo Adorno


Quero defender aqui que a educação para emancipação tal como defendida por Adorno
tem uma força especial para amparar a escola contemporânea no enfrentamento dos seus
desafios: O desvendamento dos mecanismos de dominação e de como são produzidos os
processos de segregação, de racismo e de xenofobia, de como eles operam dentro das escolas,
de como eles conduzem à banalização dos problemas decorrentes da injustiça social e como
continuam a produzir segregação e seleção, apesar da propagação do discurso pro-inclusão.
Enfrentar e resolver esses problemas é a condição necessária para mudar a escola de hoje. Essa
escola precisa superar a perspectiva que lhe tem sido imposta de reprodutora das relações de
dominação.
A Educação emancipatória, pensada por Adorno, seria capaz de fazer o homem
descobrir sua força de ação para a mudança, para construir o seu verdadeiro mundo de justiça

801
social, sob a égide da tolerância, da solidariedade, do respeito e da ação coletiva, orientada para
o bem comum. Deliberadamente, deve fomentar a capacidade de superar o conformismo e a
indiferença, a capacidade de experimentar, de arriscar, de fazer diferente dos outros, de romper
com a heteronomia resultante da vida social sob as relações sociais capitalistas. Essa
heteronomia revela-se na vida social pautada por ações determinadas fora do sujeito, assim
torna os sujeitos dependentes de normas que não são assumidas pela sua própria razão. A
finalidade da proposta de educação para a emancipação seria, então, promover o
desenvolvimento da subjetividade e da individualidade como condição para viver a pluralidade
da vida social humana.
Adorno assume, portanto, o programa de Kant e assume que esclarecimento é
capacidade de “ sem medo, poder ser diferente”. Emancipação, para Adorno, pressupõe a
coragem e a aptidão de cada um se servir de seu próprio esclarecimento. Educação para a
emancipação seria um programa deliberado de resistência ao estabelecido, de ser capaz de
compreender a contradição imanente na vida social sob o capitalismo e almejar fazer de outro
modo.
Nesta perspectiva, toda ação pedagógica deve enfrentar em teoria e prática a dialética
entre a aparência do mundo e sua realidade: deve buscar a compreensão de como a realidade é e
o que ela é; deve superar o aparente determinismo de ter que viver a aparência; deve refletir
causa e conseqüência de todas as relações sociais e buscar outras formas de pensar e de agir
para além das formas dominantes de adesão e de adaptação.
O resultado dessa nova prática seria formar uma outra consciência, que seria oposta
àquela dominante na sociedade alienada. No lugar da adaptação e do adestramento, a ação
escolar deveria desenvolver a autonomia. Essa é, portanto, a essência da concepção adorniana
de educação para emancipação. (Adorno, 1995). Assim, a condição primordial para a realização
de uma educação emancipatória seria o desenvolvimento deliberado de se fomentar a
capacidade de superar o conformismo e a indiferença, a capacidade de experimentar, de arriscar,
de fazer diferente dos outros.
Na perspectiva de uma educação critica e emancipatória, segundo Adorno, a categoria
de experiência está fortemente ligada ao seu objetivo educacional, ela é condição para se
promover o desenvolvimento da subjetividade e da individualidade, condições que foram
perdidas no processo social de dominação.

Possibilidades da educação e da escola na contemporaneidade


Espero ter deixado evidente o potencial da epistemologia de Adorno no debate acerca
de questões da relação entre a escola e a sociedade no mundo contemporâneo. Estivesse Adorno

802
refletindo conosco nossos problemas educacionais da atualidade, estaria ele nos exigindo
repensar nossos projetos de democracia escolar, nos convidaria, com certeza, a implementar
currículos escolares perseguindo a verdadeira eqüidade. Da mesma forma ele estaria defendendo
praticas pedagógicas, portanto, ações curriculares com perspectivas mais amplas de formação
humana e cultural. Não apenas as dimensões particulares próprias de grupos culturais presentes
na escola estariam sendo abarcados mas também, dimensões relacionadas com a formação
humana multifacetada, onde as dimensões artística e espiritual são também indissociáveis.
É inegável a pertinência das contribuições de Adorno para se orientar uma análise
sociológica crítica e engajada da nossa escola no mundo de hoje, o que tem implicações
particulares no debate e implementação de políticas e práticas curriculares, cuja centralidade
está na defesa de uma escola democrática, assentada numa perspectiva de inclusão da
pluralidade cultural na sociedade (Moreira , 2001; Moreira & Candau,2003; Connell,
1992;1995). Nessa dimensão, a escola inclusiva deve ser o universo de igualdade, de respeito e
de trocas mútuas. Da mesma forma demanda-se uma perspectiva ampliada de formação escolar
incorporando-se perspectivas de educação para a humanização do homem que foram relegadas
pela hegemonia de aspectos de formação intelectual e cientificista nas propostas educacionais
desenvolvidas nos séculos XIX e XX.
Isso representa, na prática pedagógica e nas concepções e desenvolvimento de políticas
curriculares, a construção de uma educação que, em primeiro lugar abandone sua dimensão de
uniteralidade de visão de mundo e de conhecimento. Em segundo lugar que se assuma na escola
seu sentido político, pautando uma proposta pedagógica que combine o compromisso de uma
avaliação ética e moral da sociedade contemporânea com uma atitude concreta de ação política
contra a injustiça e a desigualdade. Assim, a epistemologia da Teoria Crítica, em especial em
Adorno, é adequada para amparar as possibilidades para: uma escolarização bem sucedida;
currículos que contemplem as diferenças sócio-culturais; reconsiderar o sentido das diferenças
para que estas não se convertam em desigualdades e injustiças. As reflexões acerca do papel da
escola podem auxiliar a conduzir a ação pedagógica na perspectiva de uma política curricular
assentada no compromisso com empreendimentos voltados para a construção de saberes que
combinem a formação humana e o reconhecimento das diferenças com as regras de convivência
cidadã, condições para uma vida social pautada no princípio da inclusão.
Segundo Gruschka ( 2004) o debate atual sobre o sentido e o papel da escola tem na
análise social fornecida por Adorno uma estrutura de referência, não apenas para a critica mas
para a reorientação da organização e das práticas pedagógicas. Assumindo a posição desse
autor tento arrolar sinteticamente as lições de Adorno para um projeto pedagógico

803
contemporâneo, lições que sirvam para orientar as possibilidades de desenvolvimento de uma
outra educação.

1) Os educadores precisam entender que formas dominantes de pensar na sociedade e


espelhadas na escola são conseqüências da estrutura da sociedade capitalista e, assim, elas se
sustentam:
x Na cisão entre trabalho intelectual e manual e a hierarquia social dela decorrente;
x Na cisão entre pensar e sentir: o homem perdeu as capacidades de afetividade e de
sensibilidade;
x A industria cultural como agencia de formação cultural legitimada no capitalismo
deforma a formação humana, assim, elimina o esclarecimento;
x O sujeito social moderno é heterônomo: ele é igual aos outros, é massa e não indivíduo,
é sem subjetividade e sem autonomia;
x A escola se conforma a esta dimensão da sociedade: Há hierarquia entre as escolas
destinadas aos talentosos e as destinadas aos não talentosos e, isso, corresponde à
organização curricular pautada na hierarquia das disciplinas e em escolas diferentes
para grupos sociais diferentes. Além disso, a escola almeja socializar os sujeitos na
perspectiva de adaptação ao estatus quo, assim, ela adestra para a competência e para a
competição no lugar de desenvolver a reflexão e o entendimento.
2) Comprometer-se com educação para a emancipação não é fazer ativismo pedagógico para
conscientizar pessoas. Isso implica em nova postura para os educadores que devem reconhecer
que:
x Não se forma consciência emancipada sem a vivência do projeto de emancipação;
x Abraçar a causa da educação para a emancipação sem a devida reflexão teórica, ou seja,
sem entender as raízes históricas da alienação, continua sendo alienação. Portanto, é
preciso compreender primeiro como se produziu a semi-educação;
x Projetos pedagógicos ou curriculares de educação para a emancipação, correm o risco
de não ultrapassarem a dimensão de serem apenas novas idéias de educação e de
converterem os meios em seus fins;
x A reflexão e o entendimento, na vivência da emancipação, é que definem um novo
modelo de educação.

3) Um novo modelo de educação/proposta curricular para os desafios da vida social na


atualidade deve levar em conta que:
x Compreender a realidade social é compreender-se nessa realidade;

804
x É preciso educar para resistir ao estabelecido, para negar a seletividade e a exclusão;
x É preciso construir a autonomia no lugar da heteronomia: os alunos devem aprender a
agir, não por adesão ao dominante, mas por decisão particular fundada no
entendimento, na reflexão, na compreensão e na capacidade de ser conseqüente com
suas escolhas e decisões;
x Os sujeitos sociais precisam aprender a serem indivíduos e não horda; é essencial que
eles percam o medo de serem diferentes, eles precisam desenvolver a autonomia.

4) O debate acerca da alteridade e da diferença, essencial para se poder efetivar a educação


inclusiva que, hoje, é demanda central nos projetos e práticas educacionais, deve considerar
como princípio básico que essa educação não se efetiva sem a plenitude de desenvolvimento do
processo de subjetivação e individualização. Para Adorno:
x Subjetividade e individualidade são centrais para se abarcar na experiência educacional
todas as pessoas, independentes de seu pertencimento a grupos de classe social, de
gênero, de etnias e outras singularidades. Esses dois elementos são ingredientes
substanciais para o desenvolvimento de relações de respeito e de tolerância. Segundo
Adorno, quem não é autônomo não reconhece a autonomia do outro; quem não se
enxerga como o sujeito não pode aceitar o outro como sujeito.

5)A escola não pode continuar sendo uma caixa fechada hermeticamente às questões sociais da
atualidade.
x O discurso pedagógico incorpora as imagens e as mensagens da nova sociedade, mas, a
organização escolar e as ações pedagógicos continuam (re)produzindo as velhas
dimensões:
o Tomam a educação como privativa da escola e por isso insistem em que o
problema está em ter que “competir” com outras instancias da sociedade que
assumiram a função de educar – a TV , as tecnologias da Comunicação e da
Informação, etc;
o Promovem e reforçam a não autonomia porque, no cotidiano escolar, prevalece
o fazer pelo fazer, o embotamento da criatividade, a adaptação ao dominante
em nome da harmonia e da ordem, o embotamento das formas de sensibilidade
artística e de manifestações de sentimentos. Essa educação mutila o homem;
o Os rituais da escola, os exercícios e os mecanismos de avaliação, pautados
pelos princípios de separar, ordenar e excluir, preparam sujeitos para um
percurso de vida que nada se difere daquilo que foi a separação das pessoas

805
entre aqueles que mereceriam e deveriam ser encaminhadas para a rampa que
levaria para Auschwitz;

6)A escola precisa superar sua noção equivocada de emancipação, pois, tal como assumida tem
uma dimensão técnica – ela é traduzida como formação de competências para a eficiência, para
a produtividade e o sucesso econômico:
x A educação para a concorrência exclui a aprendizagem da cooperação, da tolerância e
da solidariedade;
x Escola que se orienta para avaliar o que faz com base em leituras de estatísticas para
poder “operar a seleção” sem receios, ou sem escrúpulos, não forma para a
solidariedade e para a cooperação.
7) Mas a escola pode fazer uma outra educação: criticar a escola acarreta a possibilidade e o
compromisso para transformá-la.

Concluindo, com as lições de Adorno, defende-se uma nova escola. Nesta deve ser
considerado, em primeiro lugar, que todo o processo escolar deve ser dirigido para derrubar as
barreiras que limitam as pessoas para tomarem parte, plenamente, da vida social, e para
compartilharem todos os recursos e bens culturais e materiais. Para isso, a escola deve criar
condições para que sejam desenvolvidas atitudes de respeito a opiniões e visões de mundo
diferentes. Assim, ela deve tomar como princípio, fortalecer cada forma particular de pensar e
de agir; ela deve despertar a esperança de que cada pessoa, independente de suas
particularidades ( cor , raça, culturas, gênero etc.) tenha reconhecido e legitimado seu direito à
vida e a participação na sociedade. E finalmente, a escola deve desenvolver o espírito de
solidariedade e de tolerância como princípio básico, capaz de defender a deformação da
personalidade. Ele é condição para possibilitar que cada sujeito tenha direito a um lugar na
sociedade e para que se sinta fazendo parte dela.
Entendo que as lições de Adorno fazem coro com aqueles que, na contemporaneidade,
tributam à escola um papel importante na construção de novas relações pedagógicas orientadas
para a produção de novas formas de cidadania. Seguem apenas alguns indicadores:

Só através de uma criação sistemática, apurada e metódica do


pensamento crítico independente, da cidadania ativa, de uma luta por
uma transformação emancipatória paradigmática, se justifica a escola e
aí, sim, ela tem toda a legitimidade e deve continuar.( Santos, 2001:31).

Em alguns processos de trabalho uma sociedade transforma seu


ambiente ( p. ex. na manufatura) e, em outros, uma sociedade

806
transforma-se a si mesma. A educação é um exemplo desse segundo
tipo. Ela pode ser definida como o trabalho organizado cujo objetivo
último é a capacidade para a prática social e cujo meio específico é a
capacidade para adquirir estratégias de aprendizagem ( Connell
1995:25).

Para finalizar retomo minha afirmação anterior ( Vilela 2005) de que o pensamento
educacional de Adorno pode ajudar a amparar os desafios da escola atual na sua tarefa ímpar de
ter que entender o desenvolvimento histórico das novas posições acerca do papel da escola no
mundo contemporâneo e a desenvolver uma educação plural como a mais coerente perspectiva
de inclusão.

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rivilela@uol.com.br
Professora de Sociologia da Educação do Mestrado em Educação da PUC Minas
meduc@pucminas.br
Doutora em Educação pela Universidade de Frankfurt

809
Expressões criativas como forma de resistência ao domínio do sempre igual

Roberta Stubs Parpinelli (Universidade Estadual de Maringá)


Luiz Hermenegildo Fabiano (Universidade Estadual de Maringá)

A proposta deste texto é realizar uma reflexão sobre o modo como a Indústria Cultural
prioriza e promove a reprodução do sempre igual em detrimento da expressão do novo e do
singular. Para tal abordagem, faz-se necessário conceituar o termo Indústria Cultural, inaugurado
em 1947 por Theodor Adorno e Max Horkheirmer perante a publicação do livro Dialética do
Esclarecimento. Para os autores, esse termo diz respeito aos conteúdos ideológicos que perpassam a
cultura, conteúdos tais que se derramam nas diferentes manifestações culturais e podem afetar a
subjetividade humana com valores e concepções, como a lógica da mercadoria e do utilitarismo,
que reforçam a sociedade tal como esta posta na atualidade. Vale ressaltar que a definição não é tão
simplista quanto as palavras acima fazem crer. A disseminação desses conteúdos ideológicos é
realizada de maneira velada, ou seja, é ocultada nos meandros dos diferentes instrumentos de
propagação cultural que incidem sobre a sociedade.
Para melhor compreender os aspectos ideológicos que perpassam a cultura na
contemporaneidade, é importante entender o conceito de esclarecimento (Alfklärung) e sua relação
com a apropriação da razão pelo processo de produção industrial. Seguindo a premissa de que a
superioridade do homem está no saber (Adorno e Horkheirmer, 1985, p. 19), o desenvolvimento da
razão possibilitou ao mesmo desenvolver conhecimentos para dominar a natureza. No entanto, com
o processo de produção industrial o conhecimento e a razão assumiram uma dimensão instrumental,
ou seja, ficaram atrelados ao capitalismo industrial assumindo uma perspectiva utilitária. Nesse
processo, houve um distanciamento do homem da função emancipatória do conhecimento que, por
sua vez, ao desempenhar papel instrumental e utilitarista, se transformou num meio para aumentar a
produção de bens industrializados e dar vida ao primeiro momento do modo de produção
capitalista. É nesse movimento de cooptação da função libertadora da razão e do pensamento
emancipatório que se instaura aquilo que Adorno e Horkheirmer (1985), denominaram razão
instrumental. Este termo diz respeito ao movimento concomitante de dominação da natureza e do
próprio homem inserido num momento histórico onde o desenvolvimento industrial clama pela
necessidade de novas tecnologias e novos meios de dominação da natureza. No entanto, o que no
século XVI era uma necessidade para melhorar as condições de vida do homem, paulatinamente, foi

810
adquirindo características puramente utilitárias e mercantilistas, neste processo foi-se esvaindo a
dimensão emancipatória do conhecimento, já que este se encontra agrilhoado ao processo de
produção industrial. O aprisionamento da razão a fins utilitários torna tendenciosa a busca pelo
conhecimento, pois delimita parâmetros ao dsenvolvimento intelectual e às ações humanas, fato que
aumenta significativamente o poder da sociedade sobre os indivíduos. Adorno (1971, p. 14) elucida
bem esse processo: “Em decorrência da falta de esclarecimento, o poder da sociedade sobre os
indivíduos é elevadíssimo. Os indivíduos se perdem numa massa impotente e dirigida pelo poder da
ordem dominante.”
No livro Dialética do Esclarecimento Adorno e Horkheirmer (1985), demonstram o
movimento pelo qual o esclarecimento assumiu um caráter instrumental. Atrelado ao modo de
produção dominante, o pensamento esclarecido, cujo objetivo era o desencantamento do mundo por
meio do saber, se desvinculou da reflexão e se tornou, também, um meio de dominação e
manutenção social. Ou seja, o pensamento esclarecido se torna porta voz da razão dominante
(instrumental), e passa a promulgar valores e idéias perpassadas pela ideologia burguesa, tendo
como questão última a autoconservação social.
Nesse contexto, a cultura, agora voltada para as massas humanas, desempenhou um papel
fundamental para manter o homem sob o jugo do capitalismo industrial. Desse modo, a indústria
cultural se configura como um canal de veiculação ideológica que intenta atribuir à cultura
características de mercadoria. Assim, na perspectiva da indústria cultural, ocorre a anulação da
dimensão emancipatória da cultura que, por sua vez, passa a propagar elementos sutis de
reprodução e manutenção da sociedade. Elementos tais, carregados de conteúdos alienantes, muito
bem representados pelas diferentes formas de entretenimento, cuja marca registrada é a ausência da
necessidade de reflexão e a aceitação a-crítica por parte daqueles que a consomem. Assim, toda
produção cultural é: “...redimensionada à condição exclusiva de mero entretenimento
utilitário...”(Fabiano, 2001, p. 136)
Resgatado o contexto no qual a indústria cultural foi se constituindo, pode-se afirmar que
uma das suas principais funções é a manutenção da sociedade vigente por meio da disseminação de
valores, normas e padrões que regularizam o modo de ser e estar dos coletivos humanos. Segundo
Adorno e Horkheirmer (1985), essa padronização seria uma forma de atribuir coesão ao sistema
social, pois cria a necessidade de se consumir os mesmos produtos frente ao mesmo processo de
produção desses bens materiais. Nota-se a relação entre a definição e disseminação de padrões e a
necessidade de que estes existam, bem como sua articulação com uma força motriz: o consumo.

811
Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos
consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. De fato, o que
explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a
unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. (Adorno e Horkheirmer,
1985, p. 114)
Desse modo, é possível dizer que o processo de massificação promovido pela indústria
cultural possibilita que a subjetividade incorpore valores de sujeição e reprodução. Pode-se
constatar então que, por meio do embotamento da capacidade reflexiva dos sujeitos, a indústria
cultural objetiva ocultar as diferentes manifestações de resistência, conduzindo, às escuras, os
sujeitos rumo à aceitação e reprodução dos valores por ela inculcados.

As idéias de ordem que ela inculca são sempre as do status quo. Elas são
aceitas sem objeção, sem análise, renunciando à dialética, mesmo quando
elas não pertencem substancialmente a nenhum daqueles que estão sob a
sua influência (Adorno, 1971, p. 293).

Essa aceitação a-crítica de valores e padrões por parte dos sujeitos, acaba obstruindo os
aspectos de alteridade e singularidade, transformando o heterogêneo em um todo pasteurizado.
Adorno e Horkheirmer (1985), afirmam que a cultura contemporânea confere a tudo um ar de
semelhança, engolfando as particularidades e as transformando num todo equalizado. Ou seja,
define algumas premissas universais para sufocar e se apropriar do particular, visando manter uma
certa coesão social por meio da repetição.

O que é salutar é o que se repete, como os processos cíclicos da natureza e


da indústria. Eternamente sorriem os mesmos bebês nas revistas,
eternamente ecoa o estrondo da máquina de jazz. Apesar de todo o
progresso da técnica de representação, das regras e das especialidades,
apesar de toda a atividade trepitante, o pão com que a indústria cultural
alimenta os homens continua a ser a pedra da estereotipia. (Adorno e
Horkheirmer, 1985, p.138)

Nesse processo de massificação, observa-se a compulsão pelo idêntico, uma perda do


interesse por novas possibilidades de entendimento por intermédio da experiência pelo
conhecimento, este reduzido ao pensamento esclarecido tal como exposto acima. A relação do
esclarecimento com o conhecimento ocorre no sentido de que este se encontra limitado aos cercos
da razão instrumental, atuando como objeto de autoconservação da ordem dominante. Desse modo,
a tendência maior é o da reprodução de conhecimentos já estabelecidos, mesmo que esse

812
movimento implique na falsa sensação da criação do novo, fato que será melhor discutido no
transcorrer do texto.

O processo de produção e reprodução desse sistema social acaba conduzindo a


subjetividade para um estado de embrutecimento e entropia, fato que compromete a criatividade
como agente de um processo de resistência e possibilidade de emancipação. A atuação da cultura
industrializada potencializa a desintegração do sujeito individual, fato que repercute na capacidade
de resistência dos sujeitos. Segundo Adorno (1995, p. 107): “A pressão do geral dominante sobre
todo o particular, sobre os indivíduos e as instituições, tende a desintegrar o particular e o
individual, assim como sua capacidade de resistência.” Essa desintegração do individual se faz na
medida que a Industria Cultural, ao propagar valores universais, visa tornar semelhante a
multiplicidade da coletividade humana. Esse movimento se faz por meio da disseminação de
valores, normas, modos de condutas, necessidades, entre outros, que regularizam o modo de ser e
estar no mundo. É importante ressaltar que esse processo ocorre, muitas vezes, por sutilezas,
maquiando esses universais com elementos aparentemente singulares a cada sujeito. Na medida que
o sujeito atua apenas como receptor de valores culturais impingidos pela indústria cultural, pode-se
dizer que o domínio do todo sobre o particular repercute no enfraquecimento do pensamento
reflexivo.

Um dos mecanismos que auxiliam na manutenção da soberania do universal sobre o


particular é a racionalidade técnica utilizada para padronizar a realização de algumas atividades por
meio de métodos e procedimentos que levem a resultados e processos sempre mais semelhantes,
ganhando uma dimensão utilitária e imbuída na lógica da mercadoria. A racionalidade técnica não
abre frestas por onde a criatividade possa se fazer presente, já que esta é sufocada pela padronização
da produção. Não obstante, a técnica é utilizada como fim em si mesma, não como meio, fato que
acaba repercutindo, durante o interstício de sua execução, na obliteração do heterogêneo. Adorno e
Horkheimer (1985), apontam que a técnica se tornou um instrumento para acelerar a produção em
série, fato que repercute na obstrução do diferente frente à lógica de produção industrial. Vide sas
palavras dos autores: “A técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em
série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social (Adorno e
Horkheirmer, 1985, p. 114).” Dostoievski soube ilustrar em um de seus contos, Memórias do
Subsolo, a maneira como a técnica pode se tornar uma camisa de força conceitual que acaba
impedindo a conexão com o novo e anulando a possibilidade do heterogêneo. “Ora senhores, ‘duas
vezes dois igual a quatro’ é um princípio de morte e não um princípio de vida.” p.43

813
Num movimento contrário à tendência de homogeneização dos coletivos humanos, pode-se
destacar as manifestações de criatividade como uma alternativa para se agenciar novas formas de
expressão para além dos dispositivos de controle e padronização. É importante destacar que a
concepção de criatividade utilizada no presente texto vai ao encontro das contribuições de Espinosa
(1983), no que se refere à expressão potência de ação. Para o autor, potência de ação é a força de
conservação e de expansão da vida, é a aptidão do corpo e da mente para a pluralidade simultânea,
é a força da mente para conceber inúmeras idéias e desejar simultaneamente tudo que aumente sua
capacidade de pensar, aumentando, concomitantemente, sua capacidade de viver. Nesse sentido, a
criatividade seria um potencial de ação que possibilita o distanciamento da racionalidade técnica,
abrindo espaço para novas formas de se relacionar com o mundo e possibilitando a inauguração de
outros modos subjetivos de se conectar com a realidade, com abertura para outras sensibilidades
que não se limitam àquelas disseminadas pela industrialização da cultura. Desse modo, o potencial
criador do sujeito coloca em crise a lógica utilitarista de criação, sob o signo do lucro, desenhando
fissuras por onde o sujeito possa se relacionar com a vida de modo mais fortalecido subjetivamente.

Assim, os movimentos de criação, entendidos aqui como potência de ação, seriam espaços
de expressão, pelos quais os indivíduos são livres para manifestar seus pensamentos menos atados à
ação coercitiva da ideologia dominante. Desse modo, disparos de subjetividades criativas podem se
fazer presentes em meio ao todo equalizado da indústria cultural. Pode-se dizer, que os indivíduos
podem vivenciar processos subjetivos que se diferenciem da subjetividade dissipada pela
industrialização cultural, atravessada por dispositivos de controle social, podendo metamorfoseá-la
em expressões de alteridade. Guattari (1993), denomina essa vivência e transubstanciação da
subjetividade de processo de singularização. É importante destacar que o modo como o indivíduo
vive a subjetividade nem sempre ocorre através de uma relação de criação, Deleuze e Guattari,
(1999), apontam que essa vivencia é oscilante:

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois
extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se
submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e
criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da
subjetividade.(Deleuze e Guattari, 1999, p. 33)

Para o autor, a singularização se faz num movimento que possibilita ao sujeito agenciar
processos de alteridade. Ou seja, ocorre o fortalecimento subjetivo do sujeito no sentido de exigir
outras relações com a realidade, relações tais que promovam fissuras em hábitos e modos de ser

814
instituídos socialmente e que desenham um movimento de refreamento no potencial criador do
sujeito. Esse processo de singularização se faz por intermédio de linhas de fugas (rupturas) que
podem desembocar em dois resultados: no primeiro, a linha de fuga se limita ao ato em si e acaba
não agenciando nada de produtivo que supere o ato propriamente dito; no segundo, as linhas de
fugas se conectam com outros fluxos criativos e agenciam mudanças no real. Nesses movimentos
de ruptura os sujeitos utilizam sua capacidade de reflexão e criticidade visando se desprender de
dispositivos de controle para, então, agenciar, ou não, formas de expressão singulares.

Nesse processo de singularização seria insensato excluir o movimento da indústria cultural


no sentido despotencializar ações diferenciadas dos sujeitos, assim como cooptá-las e revertê-las em
prol da autoconservação do sistema social. Sobre este aspecto, se faz necessário resgatar a discussão
sobre o imbricamento do universal com o particular, onde o todo se sobrepõe ao particular e engolfa
suas diferenças que, por sua vez, se tornam parte do todo e carregam a falsa sensação de preservar
sua identidade particular. Este processo ganha vida na indústria cultural justamente por satisfazer a
tendência do liberalismo de deixar o caminho livre a seus homens capazes (Adorno e Horkheimer,
1985, p. 124). Esse espaço para o aparecimento de novas competências imprime nos homens a
pseudo-sensação de singularidade, sem, no entanto, abalar a ordem social. Segundo Adorno e
Horkheimer (1985, p. 145) “As particularidades do eu são mercadorias monopolizadas e
socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de natural.” Ou seja, alimenta-se a crença
da possibilidade do heterogêneo, gerando, assim, um falso movimento de criação e de expressões
singulares. Este movimento fortalece a coesão social na medida que reproduz a lógica liberal onde:
“Nada deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do
ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá
que não se adapte. (Adorno e Horkheimer,1985, p. 145)

Feita as indispensáveis considerações sobre o movimento de cooptação e massificação da


indústria cultural, é importante retomar o potencial de ação dos sujeitos. Desse modo, pode-se dizer
que os movimentos de criação e de expressão podem atribuir uma nova roupagem ao concreto,
transcendendo o óbvio e possibilitando, no seu interstício, o exercício do pensamento reflexivo e o
reavivamento de seu potencial emancipatório. É justamente no redimensionamento do óbvio por
meio da atribuição de novos significados à realidade, que as manifestações criativas estão em íntima
relação com a arte e, por sua vez, com a estética que a constitui. Segundo Fabiano (2003, p. 497):

815
... a obra de arte não estabelece uma relação imediata, mas de mediação
com a realidade social que a produziu. Assim entendida, ela se corporifica
na sua forma interna, de uma autonomia relativa com relação à realidade
empírica sobre a qual se torna reflexão, crítica e negação.

Seguindo esse raciocínio, as manifestações criativas também podem assumir essa dimensão
crítica da sociedade, configurando-se como um meio de descortinar os ocultamentos ideológicos
que perpassam a indústria cultural. Assim, como a dimensão estética das obras de arte, que
isoladamente não se constitui como determinante de modificações sociais (Fabiano, 2003), as ações
criativas podem conter a possibilidade de articular tais mudanças. Desse modo, as manifestações
criativas permitem a realização de uma mediação diferenciada entre o sujeito e a forma como a
concretude social se estabelece. Essa mediação pode se configurar como um convite à reflexão e ao
questionamento, abrindo frestas para outros níveis de percepção e de ação na realidade.

Considerando o potencial de agenciamento do heterogêneo contido na arte e nas


manifestações de criatividade, é possível compreender a incessante luta travada pela indústria
cultural em conter esses processos criativos, já que a eminência do novo é apresentada como um
risco. Adorno aponta a necessidade da sociedade contemporânea em refrear quaisquer movimentos
que possam ameaçar o equilíbrio social, principalmente àqueles que incitem estados de consciência
mais tenazes. Segundo o autor a tendência a dificultar e impossibilitar esses processos singulares
corresponde:

(...) à tendência global, de base econômica, da sociedade contemporânea,


no sentido de não mais ir além de si própria em suas formas de consciência,
mas sim de reforçar tenazmente o status quo e, sempre que ele pareça
ameaçado, reconstruí-lo (Adorno, 1971, p. 347).

Tendo conhecimento que o novo, o inusitado ou qualquer outra forma de expressão que
incitem movimentos reflexivos são uma ameaça à manutenção do sistema tal como ele se apresenta
na sociedade de massas, faz-se necessário incidir a reflexão crítica justamente onde se instala tal
fraqueza. Pode-se apontar, dentre as possibilidades de resistência ações criativas, assim como a arte,
como uma maneira de exercitar possibilidades diferenciadas de expressão com uma nova relação de
conteúdo, no sentido de novas experiências diante de novas vivências perceptivas. Assim, as
manifestações criativas, ao possibilitar a abertura de fissuras pelas quais o pensamento esclarecedor
se reinaugura, possibilita tanto a constituição de níveis de consciência mais elevados quanto o
resgate do caráter emancipatório do conhecimento produzido pelo homem.

816
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817
A crítica do cinema na Dialética do Esclarecimento

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (UERJ)

Seria injusta a afirmação de que o século XX não teria produzido vultos expressivos no
pensamento filosófico em geral. Ao invés de elencar nomes, abordaremos um tema em um livro
que, justamente com os seus autores, obteve relevo no panorama do pensamento
contemporâneo. O tema, o cinema na cultura de massa, o livro a Dialética do Esclarecimento;
seus autores, Theodor Wiesegrund Adorno e Max Horkheimer. Uma breve nota biográfica é
providencial para a contextualização dos autores com suas contribuições e pressupostos de
nosso tema.

Ambos acadêmicos alemães de origem hebraica com idades próximas aos 20 anos, Adorno e
Horkheimer se conheceram em um evento de filosofia em 1922. Este encontro daria início a
uma parceria fecunda, que teria como pano de fundo a criação de um centro de pesquisa
chamado Instituto para a Pesquisa Social (Institut für sozial Forschung) vinculado à
Universidade de Frankfurt/Alemanha.
Colaboradores desta instituição, os autores debruçaram-se sobre fenômenos marcantes
daquela época de efervescentes transformações sócio-políticas, propondo uma espécie de síntese
entre a Filosofia Clássica e as Ciências Humanas, conjugando-as às idéias do Marxismo com
certa vanguarda do pensamento burguês, sociologia weberiana e a psicanálise de Freud. No caso
particular de Adorno, somava-se o interesse pessoal pela música; esta faria com que ele,
posteriormente, atuasse como consultor de seu amigo, o escritor Thomas Mann, durante o
processo de criação de seu Doutor Fausto; fato que, para alguns biógrafos, teria levado o
literato a compor o personagem Wiesegrund do referido livro, inspirado na pessoa de Adorno.
Diz-se também, que a literatura povoaria o âmbito do pensamento dos filósofos influenciados
pela obra Teoria do Romance de George Lukács (Pucci et all, 2000). Logo, as idéias de Adorno
e o Horkheimer agregadas às contribuições de outros colaboradores como Walter Benjamim
passariam a ser conhecidas como a teoria crítica da Escola de Frankfurt.
Foi neste mesmo período (década de 1930) que o governo autocrático do Nacional
Socialismo aniquilou todo e qualquer foco de resistência democrática na Alemanha, disparando
sua política anti-semita; fazendo que os autores se exilassem, levando consigo o instituto de
pesquisa que se transferiria para Nova Iorque a convite da Universidade de Columbia, mas que

818
ficaria finalmente em Los Angeles, Califórnia, onde já se encontravam, também exilados,
personalidades como Bertolt Brecht e o próprio Mann.
A imersão em uma cultura estranha como a norte-americana provocaria análises de
caráter sociológico e filosófico sobre a sociedade democrática de massa naquele país. Leituras,
que, com uma boa dose de perplexidade e crítica, traçaram uma visão aprofundada acerca da
formação daquela cultura e da influência de fenômenos como a mídia teria neste cenário. Um
outro fator que facilitou a observação deste último, foi a proximidade que os autores passaram a
ter dos estúdios cinematográficos de Hollywood e de seus bastidores. É nesta ambiência que as
diversas reflexões feitas na época aparecem pela primeira vez em 1947, reunidas sob o título de
Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos.

II

Após esta introdução, podemos, então, definir qual o propósito do presente artigo: temos
a proposta de apresentar o modo com que o cinema poderia estar ligado à cultura de massa, tal
como esta é tratada por nossos autores na forma de Indústria Cultural (Kulturindustrie).
Utilizaremos o ensaio: A Indústria Cultural – O Esclarecimento como Massificação das
Massas, contido na obra. Com este, temos elementos suficientes para explicar o modo com que
esta indústria opera e como o cinema, naquele momento, é interpretado pelos autores.
As críticas de Adorno e Horkheimer ao cinema transcendem o âmbito do estético ou do
meramente técnico, isto porque, a Indústria Cultural compreende mais que o plano da literatura,
das artes plásticas ou o das mídias; ela toca o político, o ideológico, o sociológico e o ético. Dá-
se desta forma, pois se refere a algo característico da sociedade capitalista, que, como sabemos,
constrói-se a partir das premissas de obtenção de lucro em relações de consumo e da produção
em massa de bens voltados a esta demanda. Bens cujo consumo se otimiza ao compreender a
maior quantidade possível de mercados, abrangência que é conquistada na formação de um
padrão que pretende a universalidade do produto a ser consumido.
A padronização do produto acaba sendo também a das relações de consumo, e, em
síntese, teríamos neste a redução do indivíduo na medida em que este o conduz a um certo
grupo de consumidores que possuem características comuns e que, embora se considerem,
singulares, já seriam alvo de um esquematismo que busca adequar o produto ao consumidor,
nem que, para isto, tenha que se padronizar o próprio consumidor.
Nossos autores atribuem esta padronização esquemática a um “órgão” chamado Indústria
Cultural, do qual a sociedade de consumo se vale para obter tal efeito. Esta (cuja intuição e

819
nomenclatura é proposta pela primeira vez pelos autores em pauta), também tratada de maneira
genérica por “cultura de massa”, tem no referido esquematismo:

(...) O primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar um
mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a se
ajustarem ao sistema (...). Muito embora o planejamento do mecanismo (...)
pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que
permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é
transformada em sua passagem pelas agências do capital, de modo a aparecer
como o sábio designo dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais
a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. A
arte sem sonho destinada ao povo realizada aquele idealismo sonhador que
vai longe demais para o idealismo crítico” (Adorno et all, 1997, p.117).

Aqui, os autores apresentam que a padronização é promovida com interesses daqueles


que são “donos” dos modos de produção, representantes das agências do capital que, se valendo
da abrangência desta indústria, têm usado seus canais de comunicação com a massa na
formação de um modelo que lhe seria conveniente, sem que sintamos ou que possamos nos
colocar em uma posição crítica. Pois, as determinações dadas pela indústria chegam a nós de
maneira mais imediata, através de nosso cotidiano, em mensagens aparentemente inocentes, mas
que ideologicamente nos remetem aos propósitos do mercado.
A citação ainda enfatiza o caráter totalitário deste procedimento, quando a indústria (no
interior de uma cultura dita liberal democrática) acaba de cercear a liberdade do público
consumidor, ao qual só resta escolher ou adequar-se entre os modelos que o mercado lhe
destinou previamente. É isto que interpretamos por “arte sem sonho destinada ao povo”, pois a
indústria determina até mesmo o que o tal público deve consumir, ou sonha pelo povo aquilo
que poderia dizer respeito a qualquer autonomia ainda cabida a este; mesmo aquele que,
ilusoriamente, ainda acreditamos ter quando, nas compras, achamos poder escolher, por
exemplo, entre um modelo de sapato ou outro. Também aí já estaríamos escolhendo entre
modelos/padrões dados previamente.
Cabe, agora, a pergunta que parece ter permanecido em suspenso e que se remete ao tema
de nosso texto: o que o cinema tem a ver com este processo da Indústria Cultural? Ou ainda,
como o cinema estaria implicado a isto que os autores chamaram de arte sem sonho?

820
III

Adorno e Horkheimer (mas principalmente o primeiro, que chega a abordar o cinema em


outros textos) são céticos quanto ao cinema e não só com este, mas com o rádio (sendo este que
desempenharia melhor a tarefa de unificar indivíduos guiando-os pela orientação de uma
política de mercado), a televisão e o jazz, como gênero musical.
São sobre estes que recaem as críticas de sua teoria. Os autores entendem estas mídias
como um aparato de estandartização do comportamento das pessoas, solapando individualidade
e formando um público a fim de adequar-se aos demais produtos da indústria da cultura
destinados às massas. Com as palavras dos autores:

O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de


que não passam de um negócio, é utilizada como uma ideologia destinada a
legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem assim
mesmo como indústrias, e as cifras dos rendimentos de seus diretores gerais
suprimem toda dúvida quanto a necessidade social de seus produtos.
(Adorno, 1997, p.114)

Aqui fica patente que, para nossos autores, o cinema na cultura de massa é peça
integrante no processo sistemático de exploração de bens culturais, com fins comerciais.
Reproduzindo, assim, um quadro típico de uma sociedade que se alicerça e se estrutura sobre as
leis do mercado, isto é, que se mostra estratificada socialmente, impregnada por ideologias,
aplacando qualquer diferença e conflito na medida em que, também estes, ela homogeniza
inserindo-os na lógica do consumo.
Entretanto, a ação totalizadora da Indústria Cultural não nos chega como uma coerção
declarada, mas se infiltra subliminarmente no momento em que mais estaríamos disponíveis a
ela, durante o lazer, ou seja, no entretenimento. Esta medida nos parece estratégica, pois, sem
intervir na jornada de trabalho/produção de cada indivíduo, ela se chega quando
experimentamos o ócio; isto é, no intervalo entre os negócios. Assim, se a sociedade diz que
esse homem tem que trabalhar e sua condição biológica diz que ele tem que dormir, é no
intervalo entre os dois que ele se “entre-tem”. Precisamente, o espaço de tempo de que dispõe
para se refazer do desgaste de um dia de trabalho para atuar novamente no dia seguinte. Neste
momento de descontração (no qual nem se quer pensar muito), o cinema como diversão atua
através do filme como formador de padrão, pois, para os autores é na entrega à lógica do
entretenimento que o indivíduo sobre o efeito absorvente do cinema se aparta de um

821
posicionamento crítico (Adorno, et all, 1997). Isto retrata que até mesmo a diversão é dada
sobre o modelo de capitalismo tardio; a ponto de ser apontada como mero prolongamento do
trabalho. Pois a busca por escapar da rotina do trabalho mecanizado e seus enfados não seria
mais do que a experiência de uma outra face da mesma rotina, obtida através do consumo de
mercadorias destinadas à diversão que não fazem outra coisa do que nos remeter dialeticamente
ao próprio processo de trabalho o qual queremos nos desvencilhar.
Para nossos autores reside aí “(...) a doença incurável de toda diversão” (Adorno et all,
1997) cujo prazer de “congelar” o enfado do trabalho não deve exigir, mais um esforço dos
espectadores, mas a passividade do deixar-se levar por um roteiro repleto de trivialidades e
associações habituais frente as quais o espectador não necessita ter a iniciativa de nenhum
pensamento próprio, pois o produto cinematográfico já se incumbiria de prescrever toda reação
ou sentimento possível. Bem como de tirar de cada cena qualquer conteúdo que pudesse causar
incômodo ou atividade intelectual. Disso se conclui, citando Adorno e Horkheimer (1997) que:
“exatamente como os objetos dos filmes cômicos e de terror, o pensamento é ele próprio
massacrado e despedaçado”.
As técnicas cinematográficas aperfeiçoadas teriam recursos para causar estes efeitos
estabelecendo a entrega e a identificação imediata do espectador com o que lhe é apresentador,
fazendo com que as idéias passados no filme fossem tão reais a ponto de se prolongarem ao seu
cotidiano; muitas vezes fazendo o espectador ter a experiência de sair à rua acreditando viver
aquilo que acabou de ver no cinema.
A própria linguagem do cinema com breves intervalos, seqüências ligeiras, falas fácei s de
memorizar, uma trilha sonora atraente e personagens arquetípicos em cujo comportamento se
alternam frases de efeito, piadas calculadas na justa medida de tempo de cada cena, seriam
presentes em cada parte do filme. Isto sem falar nos clichês sempre determinantes. Adorno e
Horkheimer (1997) apontam alguns deles: a) o fracasso temporário do herói que sabe como bom
esportista, suportá-lo até o “happy end”; b) o tapa de repreensão no rosto da mocinha mimada; o
comprimento diminuto da saia da heroína, e, por fim, a punição inevitável do vilão. Estas
fórmulas acabam por tornar o desfecho do filme sempre previsível, mas cumprem o propósito
de fazer o mundo inteiro passar pelo filtro da Indústria Cultural, pois:

(...) é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele


para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da
imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser
reduzido a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos, e entre eles em
primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro, paralisam essas

822
capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. São efeitos de
tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, (...) mas também de
tal sorte que proíbem a atividade intelectual de espectador, se ele não quiser
perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. (Adorno et.
all, p. 119)

Com esta passagem arremata-se a tese de que o cinema, como um gênero industrial
dotado de técnicas e linguagens específicas, promove aquilo que se chamou de “arte sem
sonho”.

IV

Mas seria apenas isso? Seria o cinema apenas mais um entretenimento da Indústria
Cultural, utilizado como meio para atingir seus fins? Estariam filmes como Amacord de Fellini
(diretor que, como sabemos, criou uma estética sui generis a partir do neo-realismo italiano); o
Acossado de Jean Luc-Godard, (inaugurador do movimento “Nouvelle Vague” e portador de
uma crítica ácida à sociedade industrial); Terra em Transe do cineasta brasileiro Glauber
Rocha; Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos e Cara a Cara de Júlio Bressane,
submetidos, afinal, às críticas apresentadas aqui? Não seriam estes alguns exemplos da forma
mais elevada de se fazer arte no século XX?
Se as idéias de Adorno e Horkheimer são plausíveis quando referentes ao rádio, elas não
são de todo aceitas no que se referem ao cinema e à televisão. Dentre estas, muitas avaliações
controversas feitas sobre a televisão podem ser justificadas pelo fato desta, mesmo nos EUA, ser
ainda um fenômeno recente nos anos 1940. Contudo, isto não se aplica ao cinema, que já
contava com obras que não se enquadrariam aos padrões da produção de Hollywood. Destas,
apenas os trabalhos de Orson Welles são comentados brevemente na Dialética do
Esclarecimento, quando afirma-se que: “todas as infrações cometidas por Welles contra as
usanças de seu ofício lhes são perdoadas pelo sistema, porque, enquanto incorreções calculadas,
apenas confirmam ainda mais zelosamente a vaidade do referido sistema” (Adorno et all, 1997).
Tal avaliação parece partir de uma generalização forçosa que visa grifar a suposta onipresença
da indústria a sua ação totalizadora, como os autores tentaram demonstrar.
Algumas das generalizações feitas no texto que nos referimos parecem desconsiderar por
completo a possibilidade de uma obra cinematográfica ser concebida como arte pura, possuindo
um fim em si própria, ou...(se pudermos atribuir para a arte um fim sócio-político) como
experiência liberadora de uma nova visão de mundo que nos permitiria, quem sabe até

823
criticamente, fazer oposição ao processo descrito. Permanece tergiversado pelos autores, assim,
o potencial transformador do cinema e, do mesmo modo, este como agente de esclarecimento
para os indivíduos sobre a mistificação que a indústria cultural cria para eles. Tarefas que
Adorno e Horkheimer parecem atribuir apenas à educação e à filosofia.
Nesses termos, o cinema seria apenas a produção que como nos “filmes policiais e de
aventura não mais permitem ao espectador de hoje assistir a marcha do esclarecimento”
(Adorno, 1997). Reproduzindo um modo ideológico da condição de vida nessa sociedade e o
esmagamento de toda resistência individual e intelectual.

Reflexões sobre o cinema na Indústria Cultural (bem como suas legítimas implicações
com a literatura, entendida, desde as categorias de nossa análise, como mais um produto para
massa e não como apenas linguagem), poderiam se estender mais em nosso texto. Contudo,
nosso texto se encerra aqui apresentando, para posterior reflexão, um dos comentários mais
fustigantes dos autores sobre o tema: “Se a maior parte das rádios dos cinemas fossem fechados,
provavelmente os consumidores não sentiriam tanta falta. Pois o passo que nos leva da rua ao
cinema não nos leva mais ao sonho (...)” (Adorno, 1997).
Conclui-se, assim, que o cinema tem um papel ambíguo no discurso dos autores. Pois, por
um lado, se apresenta como mais um veículo de massificação, abrangendo a esfera industrial a
partir da lógica do entretenimento; possui uma linguagem reificadora que só faz confirmar
aquilo que os autores convencionam chamar de “arte sem sonho destinada ao povo...” (produto
da redução de qualquer escolha singular a um padrão pré-estabelecido disponível no mercado).
Neste momento os autores comentam esta idéia em seus pormenores, dando exemplos diversos.
Por outro lado, os autores dão vazão a interpretações que afirmam que o cinema pode constituir
um veículo de esclarecimento das massas na medida em que, utilizando a própria máquina da
Indústria Cultural, adquire postura crítica frente a esta.

Bibliografia:
ADORNO. T. W, HORKHEIMER. M. A Indústria Cultural__ O esclarecimento como
mistificação das massas. In Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. Almeida. Rio de
Janeiro: Zahar. 1985.
_________. A Indústria Cultural. In Comunicação e Indústria Cultural. Gabriel Cohn (org). São
Paulo: Companhia Nacional.1978.
_________. Minima Moralia: Reflexões sobre a vida danificada. Trad. Luiz Eduardo Bicca. 2ª
Edição. São Paulo: Á
tica. 1992.

824
DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer & a dialética do esclarecimento. Col. Passo-a-passo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
FREITAS, Verlaine. Adorno e arte contemporânea. Col. Passo-a-passo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
TRUFFAUT, François. O cinema segundo François Truffaut/ Textos reunidos por Anne Gillain.
Trad. Dau Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1990.
PUCCI, Bruno; RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN. Antônio A.S. Adorno: O poder
educativo da Educação. 3a. Edição. Petrópolis: Vozes. 1999.

825
O espetáculo da mídia: a cultura afirmativa na indústria cultural

Robespierre de Oliveira (Universidade Estadual de Maringá)

“A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a


maquinaria. E os transfusores de sangue.” (Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago,
Revista de Antropofagia, Ano I, nº 1, maio de 1928)

Pretendo aqui traçar um breve esboço, correndo riscos calculados, do percurso da


elaboração da teoria crítica da cultura pelos frankfurtianos. Em seu livro A cultura da mídia,
Douglas Kellner argumenta haver uma “guerra de teorias” sobre cultura. Para sua apresentação,
ele adota um método “multiperspectívico” o qual pretende abordar os fenômenos culturais
mediante diversas perspectivas teóricas, de modo que cada teoria compense as lacunas de outra.
Mesmo assim, afirma seu embasamento principal sobre a teoria crítica da sociedade e sobre os
estudos culturais britânicos. A teoria crítica da sociedade possui uma elaboração crítica da
cultura importante para entendermos os fenômenos culturais atuais e criticá-los. Porém, mais do
que isso, ela aponta a relação necessária entre cultura e sociedade, o aspecto da dominação
ideológica e a necessidade de rompimento com essa estrutura de dominação, visando uma outra
sociedade. Segundo Kellner, um dos problemas da análise cultural da teoria crítica estaria na
noção de “cultura superior” versus “cultura popular”, em que a primeira é valorizada em
detrimento da segunda. Para superar esta dicotomia, Kellner discute outras teorias. Os estudos
culturais britânicos, por exemplo, reconhecem o valor da cultura popular, porém, ao apagar a
noção de uma cultura superior, fariam tábula rasa da cultura, o que impossibilitaria um
parâmetro crítico consistente. Assim, Kellner busca iluminar a teoria crítica mediante outras
teorias, construindo, talvez uma “constelação” teórica necessária ao esforço de elaborar uma
crítica forte ao desenvolvimento cultural contemporâneo. Entretanto, não cabe aqui refazer o
trabalho de Kellner, o qual exigiria um grande domínio das diversas teorias expostas, mas sim
mostrar o percurso da teoria crítica e seus desafios frente aos fenômenos culturais existentes.

A cultura afirmativa
Até o século XIX, pode-se dizer que a cultura estava dividida em dois aspectos por um
grande fosso: por um lado, uma cultura elevada, voltada para a elite da sociedade; por outro, a
cultura popular, produzida pelo povo (operários e camponeses) e voltada para o povo. Esta
distinção tem a ver com a própria estrutura do mercado do período. Os bens de consumo,
incluindo a cultura, da burguesia eram melhores e mais caros, devido à baixa produção dos
mesmos; ao passo que os bens de consumo do povo em geral para serem mais baratos tinham de
ser mais grosseiros. Certo, o refinamento para apreciação da obra de arte necessita de educação

826
e formação, as quais os trabalhadores desta época não tinham devido a uma jornada de trabalho
extenuante e falta de recursos.
Na Idade Média, a cultura elevada estava confinada à Igreja. Aos poucos, a burguesia
em ascensão conseguiu com que seus filhos estudassem e se formassem. A revolução francesa
apresentou propostas democráticas de educação republicana. Entretanto, a divisão econômica
dentro da sociedade impediu um processo de democratização da grande cultura. A sociedade foi
se moldando para as necessidades da produção. Assim, os cidadãos úteis deveriam ser educados
para o trabalho1, para garantia da produtividade e lucro dos capitalistas.
A grande cultura é aquela que para sua produção exige elaboração, conhecimento,
reflexão, articulação, material adequado ao suporte da arte (por exemplo, telas e tintas,
instrumentos musicais, e outros), tempo livre para sua execução, e para sua recepção exige
paciência, contemplação, reflexão e compreensão. Aristóteles afirmou em sua Metafísica que a
filosofia só foi possível graças ao ócio de poucos para se dedicarem à especulação. Deste modo,
a grande cultura opera com os sentimentos mais elevados e os pensamentos mais elaborados.
Tal cultura também é elevada por despertar e propiciar bons sentimentos e elevação da alma.
Kant, em sua famosa resposta à pergunta O que é o esclarecimento?, acreditava que pela
educação e pelo conhecimento os homens sairiam de sua menoridade. Muitos anos mais tarde,
Adorno e Horkheimer fizeram um diagnóstico oposto ao “otimismo” kantiano. Em O conceito
de esclarecimento, afirmam que “a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma
calamidade triunfal”.2 Para eles, o conhecimento e a racionalidade por si sós não são garantia
suficiente da “paz universal” e de uma vida melhor. Na medida em que o saber está a serviço
dos interesses da economia burguesa, a racionalidade foi sendo atrofiada em racionalidade
tecnológica ou instrumental. O conhecimento produzido pela humanidade perdeu aquele caráter
universal, de redenção universal, que antes era proclamado, mesmo de forma abstrata.
Marcuse, em Sobre o caráter afirmativo da cultura (1936), mostra como a grande cultura
da era burguesa foi eficientemente transformada em componente da estrutura de dominação.
Trata-se de uma cultura que afirma valores sem correspondência material que lhes sustente.
Uma cultura fundamentada na separação entre teoria e prática, entre o mundo superior das
idéias e o mundo inferior dos sentidos. Encontramos um exemplo na literatura clássica, segundo
o qual a grande literatura é a epopéia, a épica, o drama, enquanto a comédia é considerada um
gênero mais vinculado a sentimentos inferiores, ao que é chão, ao quotidiano. A cultura
afirmativa privilegia a razão, visando os grandes estados da alma. É uma cultura da alma
(indivíduo) e não do espírito (totalidade). Neste mundo da alta cultura, distanciado da realidade

1
Este tipo de formação permanece até hoje. Vide LDB.
2
Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, p. 19.

827
material, os homens são considerados livres e iguais, com o pleno uso de racionalidade. A
cultura afirmativa acredita, assim, na libertação do indivíduo através da educação (Bildung) para
a razão e a liberdade.
Para Marcuse, o “verdadeiro milagre” proporcionado pela cultura afirmativa consiste na
injeção de felicidade necessária para a reposição da energia mental humana para o trabalho. No
capitalismo, os trabalhadores não são coagidos para o trabalho, são livres. A revolta contra o
sistema de exploração é evitada com uma forma “refinada” da velha fórmula romana panis et
circensis. A energia espiritual deve ser alimentada assim como a energia física. A arte, os
espetáculos, os esportes e também a religião compõem a injeção de um mínimo de felicidade
necessária para suportar a labuta diária. Assim como a religião exerceu (e ainda exerce) seu
papel espiritual no passado, a cultura visa abranger e coordenar a vida espiritual dos indivíduos,
porém, não a partir dos próprios indivíduos. Os indivíduos experimentam sentimentos que lhes
vêm de fora como se fossem seus próprios.
Este papel de manipulação ideológica da cultura afirmativa, enaltecendo valores como
liberdade, felicidade e igualdade, aparece mais claramente no final do XIX e começo do XX,
quando houve uma necessidade de integração e democratização da cultura. O movimento
operário avançara em suas conquistas de melhores condições de trabalho. Os processos
sangrentos de lutas operárias visavam também melhorias na própria sociedade. Os conflitos da
sociedade afetavam a expressão cultural da sociedade. A literatura expressou isso, mostrando a
cisão que surgia na sociedade entre as classes (Dickens, Balzac, Victor Hugo, Dostoievsky,
Zola, são alguns exemplos). Nas artes, Delacroix representou a liberdade guiando o povo. Mas
além da representação da própria realidade, a cultura artística estava mudando com o
impressionismo. Depois vieram outros movimentos, como o dadaísmo, o futurismo e o
expressionismo. Parecia que a cultura estava sendo transformada democraticamente.
Entretanto, esse processo foi ameaçado pelo desenrolar dos movimentos sociais. A
Revolução Russa de 1917 pareceu impulsionar o desenvolvimento das artes a novas
perspectivas, com Eisenstein no cinema, Maiakóvsky na poesia e Isadora Duncan no bailado.
Mas a ascensão de Stálin mudou tal perspectiva ao recorrer a fórmulas mais tradicionais e
iconoclastas, o chamado “realismo socialista”. Por outro lado, a Alemanha viu ruir sua
República de Weimar e sua efervescência cultural. Em seu texto sobre a cultura afirmativa,
Marcuse visava mais claramente a Alemanha nacional-socialista. As paradas militares, os
ícones, a imposição sonora e visual de obras monumentais, buscavam a eficiência do sistema de
dominação. Os meios culturais procuravam afirmar mitos e tradições visando o
conservadorismo, o racismo, o machismo, o sexismo, entre outros, mediante imagens
sublimadas. Assim, contra a arte decadente (por exemplo, o expressionismo) impôs-se uma arte

828
idealizada dos clássicos gregos para mostrar a superioridade da força ariana.3 O realismo
heróico, o carisma do líder de massas, a ostentação, a pompa e a mobilização das massas,
baseiam-se na aparência e não em algo real. Todo o cenário é montado como farsa e apresenta-
se como drama. Os apelos a mitos, tradições e moral são baseados em falsas hipostasiações que
inserem os indivíduos em falsas coletividades, como “sangue, raça e solo”. O apelo à alma e a
outras entidades abstratas faz parte do controle do Estado autoritário.

Indústria cultural
O texto de Marcuse sobre a cultura afirmativa antecipa o de Horkheimer e Adorno sobre
a Indústria cultural. Também os textos de Benjamin, A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica (1936), e o de Adorno, O fetichismo da música e a regressão da
audição (1938), estão nas origens da crítica cultural frankfurtiana.
Segundo Benjamin, a obra de arte torna-se efetivamente mercadoria com a ampliação
do processo de reprodução técnica. Certo, a arte já era comercializada e reproduzida. Entretanto,
o desenvolvimento das técnicas de reprodução mudou o caráter da obra de arte, sendo esta
considerada mais pelo seu valor de troca do que de uso. A fotografia e o cinema mudam a
perspectiva da obra de arte. A reprodução técnica chega ao ponto de tornar nulo o original, a
cópia é indistinta do original. A perda da aura, o caráter único da obra de arte, é fundamental
neste processo de mercantilização da arte.
Do mesmo modo, o gramofone e o rádio mudaram a natureza da música (e outras
formas de arte e até da veiculação de informação). A introdução de um suporte material de
reprodução sonora, como o disco, tornou possível a audição de peças musicais sem a
necessidade de saber música ou de ir a concertos musicais. Até o século XIX, vendiam-se
partituras para a reprodução doméstica de músicas, havia a necessidade de um domínio musical
para reproduzi-las. Com o disco, isto desfez a necessidade de tal conhecimento. Adorno aplica o
termo fetichismo no mesmo sentido que Marx utilizou para descrever a troca de mercadorias,
como mística que considera as mercadorias terem pernas para se trocarem sozinhas. Isto é, o
fetichismo como encobrimento das relações humanas e não como desvio da libido (sentido
freudiano). Mais ainda: a falta de conhecimento musical implicaria também uma regressão na
audição para Adorno.

3
O filme A arquitetura da destruição (1989), de Peter Cohen, mostra como o ideal de beleza serviu para a
ideologia nacional-socialista, como justificativa para a higiene e a limpeza étnica. Do mesmo modo o
filme de Leni Riefensthal, O triunfo da Vontade (1936), exibe com força a imagem da cultura afirmativa.
Hitler teria afirmado ser contrário ao capitalismo norte-americano e sua cultura.

829
O processo de democratização, neste caso, visa atingir uma quantidade máxima de
consumidores para o lucro de seus produtores. Benjamin mostra como o custo elevado da
produção industrial do filme força o cinema a ser uma arte “popular”. Há a necessidade de
amortização dos custos. Não se pode ter lucro com apenas um espectador por filme. Do mesmo
modo, a eletricidade teve de ser estendida pela sociedade, para que esta dividisse os custos com
a produção industrial e o uso nas residências burguesas. Como mercadoria, a obra de arte
necessita ser vendida e para isto precisa ser não só aceitável, mas despertar o interesse e o
desejo dos consumidores. Isto implicou em reproduzir obras de arte acessíveis à maioria do
público. Assim, obras musicais mais elaboradas foram consideradas pouco lucrativas. Os filmes
de entretenimento logo despertaram o interesse dos comerciantes. Certo, tal processo foi
desenvolvido com maior vivacidade primeiro nos Estados Unidos, país cujo espírito protestante,
conforme Max Weber, é bastante aguçado para as necessidades do capitalismo.
Este processo de integração e democratização da cultura mediante o mercado não visou
elevar o nível geral da cultura, ao contrário, partiu de seu rebaixamento. Isto é, além de buscar
comercializar produtos culturais populares, sem grande elaboração, houve também a
simplificação de produtos culturais de grande elaboração.4 Deste modo seria mais vendável
produtos de fácil assimilação. Para Adorno apesar de seu caráter industrial, a Indústria cultural
não produz nada no sentido da criação, mas seu aspecto fundamental está na distribuição dos
produtos culturais. Assim, o rádio e o cinema funcionam como veículos de propaganda de
mercadorias, sejam culturais ou não. Músicas constantemente exibidas no rádio ou nos filmes
despertam o interesse do consumidor na compra do disco. Junto ao filme desenvolveu-se com a
Indústria cultural uma aura artificial, que não havia sido pensada por Benjamin. Trata-se do star
system, o qual valoriza os chamados astros e estrelas, as celebridades, para incluí-los no rol de
mercadorias a serem vendidas. Vendem-se, assim, suas recordações, como fotos, suas notícias
veiculadas nas mais variadas revistas. Os fãs geram lucros de tal maneira que filmes e músicas
são feitos para “agradá-los”.5
Deste modo, como observa Adorno, este processo de integração não foi educativo. As
informações dadas ao público buscam ser as mais simples, pois visam o maior número de
consumidores, os quais são pensados pela média. Tal média reflete uma baixa formação
cultural, educativa. O conhecimento que os consumidores devem ter é o conhecimento imediato,
do dia-a-dia, o mínimo necessário para o trabalho e para captar os produtos comercializados. A

4
Pense-se, por exemplo, no uso de músicas de Beethoven não só em CDs, apresentadas em diversos
estilos, como também em ringtones de celulares e caminhões de gás.
5
Por exemplo, o filme Star Wars (1977), George Lucas, foi lançado sem grandes expectativas. Seu
sucesso provocou a procura de artefatos relacionados ao filme. No natal de 1977, os pais davam de
presente a seus filhos certificados da indústria de que iriam receber seus brinquedos de Guerra nas
Estrelas no ano seguinte, pois a indústria não os tinha produzido a tempo.

830
razão instrumental (ou tecnológica) é a forma da racionalidade predominante, não crítica e não
reflexiva. Trata-se de um modo operativo da razão. Horkheimer esclarece que a razão é utilizada
como meio, como um instrumento, não sendo um fim em si mesma.6 Marcuse estabelece o
conceito de razão tecnológica7 a partir da racionalidade que preside o interior da fábrica, uma
racionalidade voltada para a eficiência, produtividade e lucro. Este tipo de racionalidade
expandiu-se para o todo das relações sociais, pensadas em termos do cálculo “custo-benefício”.
Assim, por um lado, a indústria cultural alivia o stress (a energia represada) do dia de
trabalho alienado, mediante a oferta de produtos culturais como entretenimento; por outro,
propicia uma programação do modo de pensar, de sentir e de experienciar dos indivíduos. O
raciocínio lógico, baseado em geral na relação causa e efeito e na operação entre pares opostos,
é altamente funcional na medida em que se põe como não questionável. A ausência de crítica
mais falta de capacidade reflexiva e cansaço mental possibilitam à indústria cultural fornecer
produtos cujo conteúdo são aceitos em geral como verdade.8 Assim é possível distorcer
narrativas históricas ou fatos atuais, o que pode ocorrer intencionalmente ou não. Entretanto
também se pode dizer que o inconsciente está introjetado dos valores propagados pela
manipulação ideológica. Ideologia, no sentido marxiano de falsificação da consciência para a
defesa do sistema de dominação, significa estender a relação de compra e venda de mercadorias
para o todo da sociedade. É neste sentido que a economia política torna-se o fundamento da
sociedade capitalista. Mas é necessário entender a crítica da economia política efetuada por
Marx, como crítica das relações sociais e não crítica meramente financeira, de cálculos
matemáticos, como os economistas burgueses reduzem o significado da economia.
Assim, a imagem típica desta sociedade é a do supermercado, com seus produtos
enfileirados em prateleiras organizadas e iluminadas de acordo com os interesses de venda.
Tudo se transforma em vitrine para venda.9 Deste modo, a indústria cultural contribui para uma
padronização e diferenciação necessárias para fomentar o consumo de mercadorias. A
diferenciação é importante para garantir a possibilidade de novos produtos serem consumidos.
O uso subliminar de afecção passou a ser importante veículo de venda. Dizer que tal celebridade
usa tal produto, ou fazê-la usar publicamente seja na TV ou no cinema, favorecia a venda do
produto, mais ainda com a autoridade explícita ou implícita da celebridade que mostrava sua

6
Horkheimer, O eclipse da razão (1947).
7
Marcuse, Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941).
8
O pensamento positivista, como o consideram os frankfurtianos desde o conceito de teoria tradicional,
parte da aceitação da realidade tal como é. É um pensamento descritivo, oposto ao pensamento negativo
de matriz hegeliana.
9
Adorno teria comentado que não haveria diferença entre uma propaganda de sabonete e um filme de
Leni Riefensthal.

831
confiança no produto.10 Os fãs são instrumentos da indústria cultural. Seu comportamento,
gostos, hábitos, etc., são alvo da indústria cultural e como tal controláveis. As possibilidades
mesmas de libertação devem ser controláveis, se surgirem fora do âmbito da indústria cultural
logo são incorporadas por ela. Deste modo, o consumo de mercadorias, da pasta de dente à
comida e ao automóvel, modelam os consumidores.

Dessublimação repressiva
Segundo Marx, produção gera consumo e vice-versa. Para Marcuse, a produção de
novas necessidades falsifica os interesses dos próprios consumidores. As necessidades são
falsas por amarrarem os indivíduos cada vez mais ao sistema de dominação e impedi-los de se
emanciparem. Necessidades básicas como alimentação, moradia, vestuário, são verdadeiras, na
medida de sua exigência. Entretanto, a necessidade de trocar de carro a cada ano, de comprar
artefatos de acordo com uma obsolescência planejada, seria falsa. Certo, pode-se argumentar
que as necessidades não sejam verdadeiras ou falsas por serem históricas. Neste caso, Adorno
argumentaria que vivemos num horizonte de não-verdade, o “todo é falso”. Na atual fase
histórica, a compra de mercadorias em 24 prestações implica um compromisso de não se voltar
contra o sistema por 24 meses.
Para Marcuse, a estrutura de dominação ideológica da indústria cultural afeta a própria
estrutura psíquica dos indivíduos. Em a Obsolescência da psicanálise (1963), afirma que os
indivíduos têm seu ego constituído não mais pela família, mas sim pelo mass media, pelas
gangues de jovens, pelas celebridades. A referência de uma starlet de Hollywood, por exemplo,
substitui a figura do pai. Trata-se de uma sociedade em que a figura do pai tende a desaparecer
na formação egóica dos indivíduos. Tal obsolescência, no entanto, apenas reitera a importância
da psicanálise. Os indivíduos, na presente estrutura social e cultural, encontram-se cada vez
mais isolados em suas possibilidades, sem uma identidade própria, formada em geral com base
no outro (que também não possui). Os indivíduos, assim perdidos, buscam integrar-se em falsas
comunidades, sejam baseadas em esportes, religião, música, celebridades, ou outras. A
sociedade, de fato, tende a tornar-se psicótica.
A especulação sobre a possibilidade de uma sociedade emancipada, a partir da teoria
freudiana,11 volta-se a dessublimação. Segundo Freud, a sublimação implica o desvio da libido,
sendo portanto repressiva. Para Marcuse, a grande arte expressa um conteúdo de verdade sob a
forma de alienação e transcendência da realidade dada. Trata-se da apresentação da beleza como
“promesse de bonheur”. Deste modo, elevam-se os sentimentos transcendendo a má facticidade

10
Clark Gable no filme Aconteceu naquela noite (1934, Frank Capra) aparece sem camiseta, o que fez
com que os homens deixassem de usá-la, caindo as vendas.

832
dada. Em suas Cartas sobre a educação estética do homem, Schiller considera a relação entre a
obra de arte e o seu espectador como capaz de educá-lo esteticamente, isto é, reeducação da
sensibilidade. Assim os homens seriam socialmente melhores. A expressaria seu caráter de
“Grande Recusa” da realidade dada. A arte sublime, mesmo representando o trágico, teria uma
função redentora e educativa. Entretanto, a cultura dessublimada manteve e ampliou seu caráter
repressivo. A cultura afirmativa, na sociedade unidimensional, torna-se dessublimação
repressiva. Citando Marcuse:
“A sociedade está eliminando as prerrogativas e os privilégios da cultura feudo-
aristocrática juntamente com o seu conteúdo. O fato de as verdades transcendentes das
belas-artes, de a estética da vida e do pensamento terem sido acessíveis apenas a uns
poucos ricos e instruídos importou em falha de uma sociedade repressiva. Mas essa falha
não é corrigida por brochuras, educação em geral, discos ‘long-playing’ e abolição do traje
a rigor no teatro e nos concertos. Os privilégios culturais expressaram a injustiça da
liberdade, a contradição entre ideologia e realidade, a separação entre produtividade
intelectual e material; mas também garantiram um campo protegido no qual verdades feitas
tabus podiam sobreviver com integridade abstrata — afastadas da sociedade que as
suprimia.
“(...) A alienação artística tornou-se tão funcional quanto a arquitetura dos novos
teators e salões de concerto em que ela é desempenhada, Aqui também, o racional e o mal
são inseparáveis. Indiscutivelmente, a nova arquitetura é melhor, isto é mais bonita e mais
prática do que as monstruosidades da era vitoriana. Mas é também mais ‘integrada’ — o
centro cultural se está tornando uma parte apropriada do ‘shopping center’, do centro
municipal ou do centro governamental. A dominação tem sua própria estética, e a
dominação democrática tem sua estética democrática. É bom o fato de quase todos poderem
ter atualmente as belas-artes ao seu alcance, simplesmente ligando o seu receptor ou
entrando numa loja. Contudo, elas se tornam, nessa difusão, dentes de engrenagem de uma
máquina de cultura que refaz seu conteúdo.”12
Marcuse torna claro aqui o foi dito antes sobre o processo de democratização e
integração. Na sociedade industrial avançada, um número maior de indivíduos possui acesso à
cultura, mediante seu pagamento. Isto, porém, não significa uma cultura mais rica ou indivíduos
culturalmente melhores. Ao contrário, o processo de dessublimação da cultura não trouxe a
libertação, manteve seu caráter repressivo de modo mais intensificado. A arte na era industrial
avançada, descrita por Benjamin, Adorno e Marcuse, dessublima a cultura por representar a
realidade por aquilo que é entendido como descritivo dessa mesma realidade. A simplicidade da
exposição, a facilidade da apreensão, a falta de exigência reflexiva, a crítica que não toca no
fundo dos problemas da realidade social, são características fundamentais da arte da indústria
cultural, assim como a repetitividade. Os valores estimulados por essa cultura são os valores do
capitalismo, colocados como valores eternos, universais e indiscutíveis.13 Antes a arte
apresentava imagens cujo contraste com a realidade existente propiciava não só a

11
Cf. Marcuse, Eros e civilização (1955).
12
Marcuse, A ideologia da sociedade industrial — O homem unidimensional, pp. 76-77.
13
Por exemplo, tornou-se comum difundir a frase segundo a qual a “decisão da justiça não se discute,
cumpre-se”, como se tais decisões fossem perenes.

833
transcendência espiritual, como também uma perspectiva crítica dessa realidade. Hoje, a arte
não só afirma o existente como busca impossibilitar qualquer transcendência crítica. Tanto o
realismo mais nu e cru quanto a fantasia da arte estão limitados a soluções no interior da ordem
existente. Grupos radicais são facilmente acomodados em nichos de mercado.
O indivíduo mal formado por essa cultura dessublimada tem, além de sua racionalidade,
sua própria sensibilidade afetada. Os indivíduos, por falta de alternativas, adaptam-se a um
ambiente hostil. Segundo Marcuse,
“os sentidos aprendem a aceitar (como uma necessidade vital) e a reproduzir
barulho, poluição, feiúra, violência — qualidades que se tornam incorporadas na
transformação do ambiente natural e técnico.”14
A sensibilidade é afetada tanto pela propaganda quanto pelos meios culturais. A
regressão da audição, a mudança da percepção visual, a dificuldade ou incapacidade de
narração, a perda de capacidade reflexiva em função de um pensamento operacional, a mudança
do comportamento social, sexual, e até alimentar15, são aspectos dessa afecção. Esta
modificação da sociedade, cujas origens podem estar nos anos 1950, fez triunfar a forma
mercadoria como elemento fundamental da sociedade. Lukács já havia prenunciado isto em seu
livro História e consciência de classe (1922), ao discutir a reificação, conceito fundamental para
a compreensão da racionalidade instrumental. Reificação significa tomar os homens como
coisas, retirando-lhes qualquer empatia de humanidade. Este conceito aparece de forma pouco
desenvolvida em Marx quando afirma que os trabalhadores sofrem um processo de
embrutecimento na produção. Neste caso, o trabalho não é mais formador, mas sim deformador.
Na medida em que a racionalidade da produção expande-se para o todo da sociedade, o processo
de reificação também se expande. Citando novamente Marcuse,
“O mundo objeto desta sensibilidade mutilada constitui o universo de relações
humanas que são ‘a priori’ antagônicas, mesmo hostis, tanto que relações não antagônicas
de solidariedade podem emergir e manter-se apenas por contraposição à hostilidade
primária, superando as barreiras que separam os homens uns dos outros, não como
indivíduos, mas como partes alíquotas do mesmo universo. Isto significa que os indivíduos
não estão apartados uns dos outros por virtude de suas próprias necessidades e faculdades
mas antes por virtude de seu lugar e função na divisão social pré-dada do trabalho e do
prazer.”16
Para Marcuse, o princípio de realidade assumiu na atualidade a forma de princípio de
desempenho, o qual significa responder às imposições da sociedade dada conforme a eficiência

14
Marcuse, Cultural Revolution, p. 130.
15
Deste modo, a fast food e a junkie food tornam-se não só pratos aceitáveis, mas passam a ser desejáveis.
Não só a praticidade da rapidez do prato, nem a propaganda massiva para seu consumo, mas sim a
alteração do gosto e do paladar tem responsabilidade na mudança de hábitos alimentares. Não cabe aqui
discutir-se os resultados disso, como doenças, que vão desde obesidade a câncer. Também pode-se pensar
em fenômenos opostos como a difusão da anorexia e da bulimia. Veja-se o filme A dieta do palhaço
(Super size me) (2004) de Morgan Spurlock.
16
Ibidem.

834
e produtividade. Deste modo, enfraqueceu-se o princípio de prazer.17 O prazer proporcionado
pela cultura seria para Freud uma maneira ‘civilizada’ de repor energias sexuais desviadas para
o trabalho produtivo. Mas no modo atual da cultura o prazer sexual é dessublimado. Ele pode
assumir a forma de objetos (mercadorias) como o automóvel, a máquina de trabalho18, revistas e
filmes. Marcuse havia mostrado em Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo (1942) como
o nacional-socialismo aboliu o tabu sobre o sexo, algo impensável para Freud na medida em que
o controle do sexo é fundamental para a civilização. Entretanto, tal abolição foi feito sob os
auspícios e controle do Estado. No capitalismo democrático da sociedade industrial avançada,
tal abolição foi realizada mediante a transformação efetiva do sexo como mercadoria. O sexo
não está mais escondido em objetos proibidos ou transformado em objeto de culto, é uma
mercadoria como outra qualquer. Mediante a reprodutibilidade técnica da fotografia e do
cinema (e hoje TV e internet), o sexo possui uma superexposição, sendo incorporado até a
objetos do cotidiano. Propagandas de TV, músicas comerciais, revistas, apelam cada vez mais
ao sexo como linguagem. Tudo se passa como se o mundo dissesse aos indivíduos de que é
capaz de resolver suas necessidades mais íntimas, desde que possa pagar. De fato, esta aparente
aceitação do sexo não só limita sua sublimação como objeto de desejo, como é passível de ser
vinculada ao conservadorismo.
Esta dessublimação repressiva da sexualidade é representada por Marcuse num exemplo
que remonta ao “efeito de choque” benjaminiano: “Por exemplo, faça-se uma comparação entre
o amor numa campina e o amor num automóvel, numa alameda nos arredores da cidade e numa
rua de Manhattan. Nos casos anteriores, o ambiente compartilha e convida à concentração dos
desejos libidinosos e tende a ser erotizado. A libido transcende as zonas erógenas imediatas —
um processo de sublimação não-represssiva. Em contraste, um ambiente mecanizado parece
bloquear tal autotranscendência da libido. Impelida no esforço para ampliar o campo de
satisfação erótica, a libido se torna menos ‘polimorfa’, menos capaz de eroticismo até da
sexualidade localizada, e esta intesificada.”19 Pode parecer que a resposta estaria na volta ao
campo, ao paraíso perdido à la Rousseau, porém, dado o caráter unidimensional da sociedade,
mesmo os recantos mais isolados estão se transformando e se comportando de acordo com a

17
“O Princípio de Prazer absorve o Princípio de Realidade; a sexualidade é liberada (ou antes,
liberalizada) sob formas socialmente construtivas. Esta noção implica a existência de formas repressivas
de dessublimação, em comparação com as quais os impulsos e objetivos sublimados contêm mais desvio,
mais liberdade e mais recusa em observar os tabus sociais. Parece que tal sublimação repressiva é de fato
operante na esfera sexual e que aqui, como na dessublimação da cultura superior, opera como o
subproduto dos controles sociais da realidade tecnológica, que amplia a liberdade enquanto intensifica a
dominação.” Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, p. 82.
18
O filme de Elio Petri, A classe operária vai ao paraíso (1971), representa bem a relação erótica entre o
operário e sua máquina.
19
Marcuse, idem, p. 83.

835
matriz. A aparente liberdade da sexualidade conjugada com sua repressividade é dosada pela
sociedade de dominação, juntamente com a violência. Se a sociedade tende à psicose, a
dessublimação repressiva intensifica esse processo.

O espetáculo da Mídia
Gostaria de concluir obviamente dizendo que esta exposição é muito condensada e não
preenche todas as lacunas. Hoje a mídia pode ser entendida como uma forma mais desenvolvida
da indústria cultural. Dizer que a cultura afirmativa tornou-se dessublimação repressiva significa
fornecer uma chave para separar “o joio do trigo” na cultura industrializada. Certo, o texto de
Adorno não permite saída possível para o impasse cultural na sociedade, saída buscada por
outros teóricos no conceito de “semi-formação”. Mas é possível pensar que a produção cultural
crítica, com todos os seus limites, pode encontrar frestas na estrutura de dominação para ser
tomada minimamente como libertadora. Explico: Joe Hill foi um dos pioneiros da chamada
música de protesto. Ele pretendia mostrar a exploração capitalista e despertar a consciência dos
trabalhadores por meio de músicas populares ao invés de panfletos doutrinários. Isto faz parte
de toda uma tradição de músicas políticas, que continua até hoje. Pode-se dizer que do ponto de
vista musical e poético não está à altura da grande música e da grande poesia, entretanto, mesmo
sendo incorporadas à indústria cultural, como também foi a grande música e poesia, não se pode
afirmar que seu protesto esteja completamente anulado. Isto é se somos formados por essa
cultura e protestamos contra ela, temos de exercitar a crítica imanente para rompermos nossas
amarras, não temos outro ponto de onde partir.
A mídia combina toda a cultura com a tecnologia num processo eficiente de
distribuição. Ela passa informações (jornalismo), pretende ser educativa, fornece
entretenimento, molda o comportamento (vestuário, alimentação, linguagem, gestos, etc.),
forma consumidores. A estrutura de dominação é essencialmente fundamentada sobre a forma
mercadoria, que reveste tudo o mais da sociedade, seja a cultura, o amor, as relações sociais, a
religião. O processo de manipulação ideológica da cultura e da mídia continua sendo complexo,
inclusive pelo fato de que há produtores de cultura que acreditam estar contribuindo para uma
produção cultural “decente”. O espetáculo da mídia consiste justamente, na sociedade
unidimensional, manter os indivíduos ocupados numa agenda que não é deles. Isto ocorre não
só com eventos sazonais (carnaval, olimpíadas, copa de futebol, natal, páscoa, etc.) como
também com o dia-a-dia. É necessário ocupar a vida dos indivíduos para além da jornada de
trabalho. O rádio, a TV, a internet, o telefone celular, tornam-se “companheiros” vitais dos
indivíduos, como a imprensa escrita. Por um lado, isto evita a existência de pensamentos
próprios, no sentido de serem originais, embora sejam “próprios”, eles são dirigidos a assuntos

836
pré-programados. Em Algumas implicações sociais da tecnologia moderna, Marcuse dá o
exemplo do viajante que tem sua viagem completamente pré-programada por outros. O que
dizer dos reality shows que forçam os indivíduos a discutirem não mais sobre si mesmos ou
sobre conhecidos, mas sobre terceiros que estão sob a vigilância televisiva. Tudo se passa como
se os sentimentos, os pensamentos e até a sexualidade não estivessem mais nos indivíduos
mesmos, mas fora deles, o que desfrutam, como a felicidade, é algo obtido mediante pagamento.
Gostaria de finalizar citando uma passagem de Marcuse que indica um caminho para a
libertação.
“(...) E a realização de humanitas implica o estabelecimento de uma nova relação
(sensual) entre homem e natureza. A natureza poderia tornar-se Sujeito em seu próprio
direito e Telos: como o ambiente e o solo da liberdade, que é incompatível com a
escravização e violação da natureza, seu tratamento como mero objeto. E outras palavras, o
objeto seria experienciado como sujeito para o grau ao qual o sujeito, o homem, torna o
mundo objeto num mundo humano. A realização da natureza mediante a realização do
homem enquanto ‘ser genérico’: pois a natureza também tornou-se um objeto da exploração
destrutiva — a natureza também clama por libertação.
“Isto é o que Marx chamou de ‘apropriação” do mundo objeto: o estabelecimento
de relações humanas com a natureza, a humanização das coisas. Significa que o mundo não
é mais experienciado como um conjunto de mercadorias (commodity market), nem homens
como compradores ou vendedores de forças de trabalho, nem coisas como meros artefatos
de posse e uso. O que aparece nesta experiência radicalmente nova é um valor de uso não
mais contaminado pela exploração: a experiência que as coisas, sem perder seu valor de
uso, existem em seu próprio direito, sua própria forma — que elas são sensíveis. A
exploração não é realmente abolida, sua herança não é realmente jogada fora até que o
homem tenha estabelecido esta nova relação com a natureza: a humanização da natureza
poderia também capacitar o homem a ter a boa consciência de sua própria natureza, de si
mesmo como parte da natureza. Esta é a ‘segunda natureza’: não é mundo do bon sauvage,
mas aquele da civilização superior — a promessa de liberdade.”20

Bibliografia:
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de
Almeida. 3ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
BENJAMIN, Walter. et alii. Textos Escolhidos. Consultoria: P. Arantes. 2ª ed. São Paulo, Abril
Cultural, 1983. (Os Pensadores)
HORKHEIMER, Max. O eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro,
Editorial Labor do Brasil, 1976.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru, Editora da
Universidade do Sagrado Coração, 2001.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização - uma interpretação filosófica de Freud. Trad. A.
Cabral. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
________________. Cultura e sociedade. Wolfgang Leo Maar (org.) Trad. Wolfgang Leo
Maar, Isabel Maria Loureiro e Robespierre de Oliveira. São Paulo, Paz e Terra, 1997,
1998 (2 vol.).

20
Marcuse, Cultural Revolution, p. 132.

837
___________. A Ideologia da Sociedade Industrial (One-Dimensional Man). Trad. G. Rebuá.
Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
___________. Tecnologia, guerra e fascismo. Douglas Kellner (ed). Trad. Maria Cristina Vidal
Borba. São Paulo, Unesp, 1999.
___________. Towards a Critical Theory of Society. Douglas Kellner (ed). London and New
York, Routledge, 2001.
__________. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. Trad. F. Guimarães. 2ª ed. Rio de
Janeiro, Zahar, 1981.

838
O Big Brother Brasil e a TV na era da globalização.

Rodrigo Boldrin Bacchin (Universidade Estadual Paulista – UNESP.)

O fenômeno dos reality-shows tem despertado a atenção e a curiosidade de milhões de


pessoas ao redor do globo, além de alcançarem sucessivos recordes de audiência e
movimentarem milhões de dólares em patrocínio a cada ano. Admirados por multidões e alvo de
críticas furiosas por parte de seus opositores, o fato é que eles mudaram a forma de se fazer
televisão e vieram para ficar. Diversificaram-se suas formas, multiplicaram-se e continuam se
renovando a cada temporada. Cabe aos intelectuais das diversas áreas, neste momento, refletir
sobre esse fenômeno de alcance global e avaliar suas conseqüências.
Em um primeiro momento do texto, gostaria de traçar um breve histórico sobre esse
novo formato televisivo1 – tanto em sua trajetória internacional quanto no Brasil –, destacando a
especificidade do meu objeto, para então compreendermos em que sociedade foi possível que
ele fosse produzido.
O primeiro antecessor provável dos reality-shows atuais foi exibido em 1973, pela
televisão pública norte-americana PBS, e chamava-se An American Family. Mas o destaque
deve ser dado ao programa The Real World, de 1992, também norte-americano, pois ele definiu
os moldes dos reality-shows atuais. A partir de então este formato televisivo ganhou uma
gigantesca dimensão comercial. Tivemos também outros programas de grande sucesso na tv
norte-americana e que depois foram produzidos em outros países do mundo como o Survivor, da
CBS – assistido por 52 milhões de pessoas no último episódio da sua primeira série – e a “Ilha
da Tentação”, da FOX – para citar alguns.
No entanto, tomarei como objeto de análise neste texto o programa Big Brother,
exibido pela primeira vez em 1999 na Holanda, pela produtora Endemol. Ele é um tipo
específico2 de reality-show, dentre outros. Ele teve um sucesso estrondoso, podendo ser

1
Quando uso a expressão ‘novo formato televisivo’ faço referência às diversas formas de programas com
caráter ficcional que marcaram e marcam a produção televisiva até então. Este é o caso da
teledramaturgia – tanto novelas quanto dos seriados -, dos programas humorísticos e até mesmo do
jornalismo. Todos eles caracterizam-se por seguirem um roteiro, uma pauta definida, e as orientações da
direção e da produção do programa – que editam o que é produzido conforme o roteiro a ser seguido. Por
sua vez, os reality-shows não seguem um roteiro pré-determinado, ou contam alguma história
previamente escrita. Sua proposta é mostrar os participantes, ou situações, como realmente são – a tese
que esses programas se apóiam é chegar mais próximo à realidade que eles exibem, sem edições ou
caráter ficcional.
2
Como apontei acima, existem diversos “tipos” de reality-shows. Citarei alguns exemplos para esclarecer
o leitor. Alguns deles mostram pessoas sobrevivendo e competindo em situações adversas na selva, como
é o caso do programa Survivor. Outros mostram pessoas mudando radicalmente de profissão, sendo
avaliados por especialistas que desconhecem este fato, como o Faking it. Existem, ainda, outros que

839
considerado como um dos primeiros programas verdadeiramente mundiais da televisão (Cf.
MARCONDES FILHO, 2002), tendo sido inicialmente vendido para 25 países com grande
sucesso, espalhando a febre dos reality-shows pelo mundo, já foi exibido em 70 países
diferentes até hoje. Seu idealizador, John de Mol, se inspirou em uma experiência científica
feita nos EUA: o projeto Biosfera 2; e também no romance 1984, do escritor inglês George
Orwell, que narra a história de uma sociedade controlada e vigiada permanentemente por um
governo central. A regra básica do programa consiste em exibir a vida de um grupo de 12
pessoas confinadas em uma casa, sem nenhum tipo de contato com o mundo exterior, onde são
filmadas 24 horas por dia. Os moradores da casa também têm que passar por testes, provas e um
deles é eliminado ao final de cada semana. Estas regras podem ter algumas variações ou
adaptações conforme a edição, ou o país onde é exibido, como podemos ver claramente nas
edições brasileiras.
O Big Brother chegou ao Brasil no ano de 2002 seguindo o mesmo modelo de seus
antecessores estrangeiros. Desde a primeira edição ele vem obtendo recordes de audiência ano
após ano. Mas ele não foi o primeiro reality-show exibido no Brasil. Antes dele tivemos o “No
limite”, da Rede Globo, e a “Casa dos Artistas”, do SBT. Também na televisão brasileira
podemos identificar possíveis precursores dos atuais reality-shows semelhantes ao modelo
utilizado no “Fama”, como por exemplo os shows de calouros – exibidos desde a época da
extinta TV TUPI até aqueles apresentados por Silvio Santos.
Como apontei acima, minha análise tem por objeto o programa Big Brother Brasil, que
segue o modelo Big Brother criado pela produtora Endemol, na Holanda. Devido a enorme
diversificação que esse novo formato televisivo teve mundialmente, multiplicando-se em vários
tipos de programas e competições diferente, penso que seja mais proveitoso para esta exposição
centrar suas análises em um único modelo. Na minha avaliação (Cf. BACCHIN, 2005), o Big
Brother além de ser um dos precursores deste fenômeno e seguir em todas as edições um
mesmo conjunto de regras básicas, reúne suas principais características – como o confinamento,
a competição por um prêmio final, a observação da privacidade de pessoas anônimas, a
visibilidade, dentre outras – que outros programas desenvolveram se utilizando de algumas
delas.
Antes da análise dos reality-shows propriamente dito, penso que seja necessário
primeiro observar algumas das modificações pelas quais a cultura passou nos últimos dois

mostram mudanças radicais no visual de pessoas “feias” (e “infelizes”) que se tornam “bonitas” através
de cirurgias plásticas e mudanças de vestuário e penteados – para que se sintam melhores consigo
mesmas –, como é o caso do grotesco Extreme make over. E existem também programas que mostram o
cotidiano de pessoas confinadas em uma casa, como é o caso que eu me proponho a analisar com o Big
Brother Brasil.

840
séculos – de uma cultura ‘elitista’ para o que poderíamos chamar de uma ‘cultura de massas’, ou
ainda de Indústria Cultural – para uma melhor compreensão do contexto da produção cultural de
onde esse tipo de programa foi concebido. Durante séculos a religião exerceu um forte papel de
controle na sociedade, delimitando o que o indivíduo podia ou não fazer. Ao longo do último
século esse papel da religião – de exercer uma forma ‘controle social’ e, o mais importante, de
dotar de sentido a vida das pessoas – foi gradualmente diminuindo, passando a ser substituída
pela tecnologia. Isso nos leva a outra discussão, que diz respeito à mudança de significado que
os objetos tecnológicos, e os meios de comunicação de massa, têm em nossa sociedade (Cf.
MARCONDES FILHO, 2002). Desde o advento do cinema assistimos a um movimento de
superação, em que cada nova tecnologia supera a anterior. É possível notar uma mudança da
sensibilidade, ou da percepção das massas, como nos aponta Walter Benjamin. O cinema
conseguiu condensar em uma tela todo o universo do sonho e do lazer. Na seqüência a televisão
leva o cinema para dentro da casa do espectador, acrescido de informação e esportes, retirando,
de certa forma, as pessoas das ruas. Com o advento e a popularização da Internet, podemos ver
uma radicalização desse processo, pois ela traz ainda bibliotecas, bancos, etc., todo o universo
exterior para uma tela dentro da casa do indivíduo. Não queremos com isso dizer que as pessoas
tenham deixado as ruas, mas apenas que existe a possibilidade de se fazer tudo, ou quase tudo,
sem ter que sair de dentro de casa. Situados no cerne de todas essas mudanças, os indivíduos se
encontram sem direção, como se as coisas estivessem ‘fora de ordem’, pois a religião já não
responde aos seus novos anseios e a tecnologia não é capaz de ocupar totalmente o espaço que
antes fora ocupado pela religião.
Com esse pequeno quadro esboçado acima, pretendo destacar a importância e a
influência que os meios de comunicação de massa, e o espetáculo, têm na vida das pessoas. Em
linhas gerais, observamos que na esfera da cultura, com o advento da burguesia, ela deixa de ser
‘elitista’ e as massas passam a ter acesso a ela, formando-se assim uma ‘Industria Cultural’.
Segundo Adorno, as mercadorias culturais desta indústria são criadas de acordo com o princípio
da comercialização e não segundo o seu conteúdo. A palavra indústria nos informa sobre a
característica da estandardização e da padronização não só na criação como nas técnicas de
distribuição dessas mercadorias culturais. Sua principal tese é que a Indústria Cultural produz
padrões de comportamentos conformistas, inculcando as idéias de ordem do status quo, que
substituem a consciência. Por sua vez, a televisão é vista pelo autor como um ramo importante
desta indústria, que combina as características do rádio e do cinema, e que segue a tendência
dela de cercar a consciência do público. Seus ramos se articulam de maneira a formar um
sistema, que não permitem a reflexão do indivíduo e nem permitem que ele veja outra coisa a
não ser as manifestações da Indústria Cultural e a visão de mundo que ela traz consigo. Então, a

841
televisão apresenta-se como representante de uma classe social e propaga a ideologia desta
como se fosse de toda a sociedade. As imagens apresentadas pela TV são modelos de
comportamento conformista, que correspondem à vontade dos que a controlam. Ela é um
produto planejado em moldes industriais, ou seja, ela é planejada, padronizada, e está sempre
buscando o efeito. De acordo com Adorno, o que a televisão faz, na verdade, é vender audiência
para seus patrocinadores, consumidores para os produtos anunciados.
A expansão da Indústria Cultural, apoiada na expansão da televisão, nos conduz a outra
situação que podemos chamar de ‘sociedade do espetáculo’3, assim como foi conceituado por
Guy Debord. Essa passagem de um conceito ao outro está extremamente relacionada ao
aperfeiçoamento dos meios de traduzir a vida em imagem, até o ponto em que a mercadoria
ocupa toda a vida social. Em uma sociedade que não é mais regulada pela política ou pela
religião – como vimos anteriormente – mas que passa a ser regulada pela lógica do ‘espetáculo’,
podemos observar como conseqüência uma inversão na relação público/privado. O efeito
midiático de um evento passa a ter mais importância que o seu papel na história ou as
conseqüências políticas que ele possa ter. Nessa sociedade a política passa a ser traçada pela
visibilidade instantânea e, portanto, a fama acaba por tornar-se mais importante que a cidadania
(Cf. KEHL, 2004). O espaço público é substituído pela visibilidade televisiva. A diminuição
relativa da importância dos assuntos públicos apresenta como correspondente um interesse
excessivo pelos detalhes insignificantes da vida privada. Podemos afirmar que, nessa sociedade
a dimensão dos ideais perdem lugar para a dimensão do consumo, permitindo-nos assim afirmar
também que a sociedade do espetáculo é a ‘sociedade do consumo’. O que garante ao indivíduo
a visibilidade, nesta sociedade, não é mais a ‘identificação’, mas sim a aparição da imagem
corporal para o Outro, que é representado pela televisão.
Gilbert Cohen-Seat e Pierre Fougeyrollas propõe reconhecer a ‘informação visual’
como um procedimento de conhecer o mundo, produzida pelo cinema e pela televisão. Esta
‘informação’ não estabelece uma relação passiva entre o homem e o seu meio ou entre os
indivíduos entre si. Ela tende, na verdade, a sobredeterminá-los, mudando, assim, a relação
entre a representação do mundo e as formas de expressão. De acordo com os autores, esta
‘técnica’ produz um ‘novo modo de expressão’ e um ‘novo conceito de mundo’ que tem seus
efeitos diretamente nas massas. A novidade trazida pela ‘informação visual’ é a potência técnica
que ela produz e a força com que ela se impõe aos indivíduos. Neste ponto as discussões dos

3
Espetáculo, para Debord, diz respeito a uma relação social entre pessoas e que é mediada pelas imagens.
O reconhecimento social dos indivíduos nessa sociedade depende inteiramente da visibilidade
espetacularizada. Esta sociedade, do espetáculo, não é mais regulada pela política ou pela religião, mas
sim pelo espetáculo. Nela o impacto midiático dos eventos é mais importante que seu papel na história ou
suas conseqüências políticas.

842
autores se aproximam da argumentação de Adorno a cerca da televisão e da Indústria Cultural,
que também se impõe aos indivíduos, não deixando espaços para a reflexão.
Neste momento do texto é possível que se retome os reality-shows e se faça algumas
considerações específicas sobre eles e sobre suas conseqüências. Penso que todos os que
desejam considerar o futuro de nossas sociedades atuais tem que escolher entre duas atitudes
possíveis: ou reconhecer a posição de destaque ocupada por esse novo formato, semelhante à
televisão no surgimento de um futuro novo – que traz consigo uma nova forma de indivíduo que
se relaciona de maneira diferente com o seu meio – ou negar esta posição de destaque e
permanecer numa visão antiga de mundo com relação ao futuro Isso se dá segundo a perspectiva
de que o homem cria as técnicas e é recriado por elas (CF. COHEN-SÉAT &
FOUGEYROLLAS, 1971). Assim, o homem anterior ao período da ‘informação visual’ não é o
mesmo que sofreu os seus impactos, e este não é o mesmo da era dos reality-shows e da
globalização. Penso que, conseqüentemente, este não será o mesmo depois de sedimentados os
efeitos produzidos por eles.
A partir da constatação que o reconhecimento social dos indivíduos na ‘sociedade do
espetáculo’ depende da visibilidade espetacularizada – como vimos acima –, é possível
compreender os motivos que levam as pessoas a quererem participar desse tipo de programa,
mesmo que eles não tenham consciência desse fato. O indivíduo passa a ser tratado como
‘consumidor’ e, inserido no seio desse processo, ele perde a singularidade das produções
subjetivas. Sua subjetividade passa a ser ‘reificada’, espetacularizada. De acordo com Maria
Rita Kehl, ele consome essa subjetividade industrializada a fim de preencher o vazio da vida
interior que ele abre mão em função da paixão de pertencer à massa, identificar-se com ela
como propõe o espetáculo. Segundo ela, por isso se explica o interesse pelos reality-shows. É a
tentativa de flagrar uma expressão espontânea da subjetividade do Outro, sem perceber que
aqueles que participam estão tão ‘formatados’ pela televisão – desacostumados da subjetividade
– quanto o telespectador.
Pode se ver este novo formato televisivo como sintomático do sofrimento do sujeito
contemporâneo, que perdeu a dimensão pública de seus atos e de sua existência, e que procura
substituí-la pelo ‘aparecimento’ da imagem do seu corpo (Cf. KEHL, 2004). Esta idéia é válida
tanto para os que participam como para os que assistem, tentando identificar a banalidade
cotidiana espetacularizada com a banalidade de sua própria vida. Uma vez que os ‘ideais’ – que
dizem respeito à dimensão pública da vida social – estão fora do alcance dos homens comuns,
só lhes resta o brilho fugaz da ‘fama’, a fim de compensar a mediocridade de sua vida cotidiana.
Pode se também afirmar que os reality-shows são uma reafirmação das idéias neoliberais,
representando com perfeição a crueza das estratégias, do cálculo e da concorrência sem limites

843
(Cf. KEHL, 2004). Seria um de seus produtos mais bem-acabados, impensável em outro
momento histórico que não o do neoliberalismo. Disso podemos extrair outra constatação,
segundo a qual a concorrência entre os participantes, em geral, se torna mais atraente do que a
sexualidade e o erotismo que num primeiro momento seriam os grandes atrativos do programa.
Pode-se afirmar que os reality-shows, apesar de toda novidade proclamada a seu
respeito, não inauguram nenhum processo verdadeiramente ‘novo’. Afirmo isso tendo em vista
que o Big Brother, por exemplo, aparece logo após o fenômeno de popularidade das webcams –
onde pessoas exibem sua intimidade através de sites da Internet – e que hoje é continuada
através da febre dos blogs e flogs. Assim, pode se pensar neles como programas de televisão que
respondem a uma demanda que é anterior ao seu surgimento, e não inaugurada por eles (Cf.
BUCCI, 2004). Eles podem ser vistos como uma imagem concreta do ‘espaço público
globalizado’ constituído pela televisão – lugar onde o indivíduo se reconhece integrante de um
imaginário novo e que se sobrepõe ao nacional. O Big Brother é o primeiro programa mundial
de televisão, sendo difundido em mais de 25 países com grande sucesso e quase
simultaneamente. Um programa que funcione nos mesmos moldes em tantos países diferentes
certamente pode ser visto como representante de um ‘imaginário novo’ e globalizado.
Após estas considerações sobre qual sociedade especificamente foi possível a produção
deste novo formato televisivo, e sobre algumas de suas conseqüências nessa mesma sociedade, é
possível refletir sobre como esse fenômeno se reflete na realidade brasileira – através da análise
do programa Big Brother Brasil.
O primeiro fato a ser observado é a clara tentativa de direcionar a trama feita pela Rede
Globo, editando horas de conversas sem assunto e fazendo todo o possível para criar uma tensão
dramática a cada ‘capítulo’, exercendo uma forma de direcionamento do programa e de indução
do comportamento do público. De acordo com Eugênio Bucci, isso se justificaria pois ninguém
vive sem ficção. É muito difícil transformar fatias de vida em entretenimento para as massas
sem receber o mínimo de recorte ficcional.
Um elemento importante para a compreensão do programa é a figura do apresentador.
Ele é o representante das regras do jogo, fazendo com que elas sejam respeitadas, ele também
impõe o assunto aos participantes. O modo como o apresentador se dirige ao público e aos
participantes é muito distinta e o modo diferenciado com que ele se relaciona com cada um dos
participantes – seja através de brincadeiras com um, falando sério com outro, falando mais com
uns do que com outros – mostram uma tendência, um modo de atuação que induz o público a
determinados comportamentos ou atitudes. Outro elemento essencial é a edição do programa.
Ela – ao mostrar muito um determinado participante, não mostrando outros, ou ainda mostrando
um participante de maneira tendenciosa – também exerce uma forma de indução do

844
comportamento do público com relação a este novo formato televisivo. As edições com algumas
cenas de certos personagens – as assim chamadas “novelinhas” – e os “perfis” dos participantes
que são indicados ao “paredão” também mostram uma tendência do programa de criar
estereótipos, ou ‘personagens’, para que se possa avaliar a popularidade de cada um.
As seis temporadas do programa Big Brother Brasil apresentam em comum o fato de
os participantes seguirem o mesmo perfil básico. Todos eles representam um ideal de vida típico
da classe média urbana (Cf. BENTES, 2002), que busca sucesso e fama: a modelo-manequim, o
dançarino de axé, a designer, o cabeleireiro, o massoterapeuta, o assessor de deputados, o
professor universitário, a promotora de eventos. Os que obtêm maior empatia com o público e
os vencedores do programa apresentam o traço comum de serem ‘personagens’ frágeis, simples
de serem entendidos, o que, para muitos, sugere ‘autenticidade’(Cf. MARCONDES FILHO,
2002). Eles causam grande identificação com o público em função de seu jeito simples e
humilde, ao menos aparentemente, algo que se assemelhe às características comumente
atribuídas ao povo brasileiro. Estas são idéias bastante próximas à discussão feita pela produção
cultural brasileira dos anos 60 e 70 acerca do tema do “nacional” e do “popular”, do que seria
característico do brasileiro, de seus traços distintivos, no sentido de que esses vencedores viriam
das camadas autenticamente populares, seriam verdadeiros representantes do “povo brasileiro”
(Cf. BACCHIN, 2005).
Outra conclusão possível – sem, no entanto, entrar em contradição com o que acabei
de argumentar acima – é que os reality-shows são uma forte expressão de um imaginário novo e
globalizado, criado pela televisão e que, de certa forma, se sobrepõe ao nacional. Afirmo isso,
pois o Big Brother é o primeiro programa da história da televisão a ser difundido para 25 paises
simultaneamente, e que até hoje já foi exibido em 70 países. Um programa, como argumentei
anteriormente, que funcione nos mesmos moldes, com o mesmo conjunto de regras, em tantos
países diferentes certamente pode ser visto como representante de um imaginário globalizado. O
Big Brother Brasil demonstra como pode co-existir essa característica de um imaginário
globalizado, ao mesmo tempo em que se adapta a cultura específica em que se insere, como
podemos ver através das características dos vencedores expostas acima.
A partir do Nem Big, Nem Brother, Maria Rita Kehl vislumbrar a possibilidade de
identificar o Brasil colonizado pela televisão. Não o Brasil pobre e favelado, mas o Brasil da
‘classe C’, que consome a prestação e que se espelha nos padrões estéticos das ‘popozudas’ e
dos ‘saradões’. A crueza e imperfeição dos corpos dos excluídos do Big Brother, além da
pobreza e simplicidade de suas casas, revelariam o sucesso da colonização por parte da
televisão. Estas são importantes conclusões alcançadas pela autora, mas penso que não só o
Brasil da ‘classe C’ está colonizado pela televisão, como também as classes A e B. Se aqueles

845
são uma triste tentativa de glamorizar a sua pobreza, estes têm acesso a esse mesmo glamour e
confortos propagados pela televisão. Os desejos e as intenções são as mesmas. O desejo é social.
O desejo de sucesso e fama são comuns, com a única diferença de que enquanto os corpos da
classe média baixa demonstram suas celulites e a crueza de suas imperfeições, os corpos das
classes A e B são esculpidos com horas de malhação, ou em clinicas estéticas e de cirurgias
plásticas, e revestidos pelas roupas e pelos produtos propagandeados pela própria televisão.

BIBLIOGRAFIA

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Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

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biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, 2005.

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In: COHN, G. Comunicação e Indústria Cultural, 1a ed., São Paulo: Companhia Editora
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Videologias: ensaios sobre televisão, 1a ed., São Paulo: Boitempo, 2004.

846
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______. Três observações sobre os reality-shows. In: BUCCI, E. & KEHL, M. R. Videologias:
ensaios sobre televisão, 1a ed., São Paulo: Boitempo, 2004.

847
Indústria Cultural e Educação: qual é a minha marca?

Roselaine Ripa (Universidade Federal de São Carlos)

As transformações físicas, as alterações psíquicas, os novos vínculos, as construções de


valores éticos e morais, as identificações no grupo de iguais, a sexualidade, a falta de motivação
e participação na sociedade, o consumo desenfreado, a tecnologia e a violência são referências
constantes quando nos referimos à adolescência no contexto da sociedade administrada.
Mas quais seriam as possibilidades que os adolescentes possuem para construir
identidades, para se humanizar e transformar a vida em sociedade? Refletir sobre estes dilemas
e perspectivas na atualidade é analisar a sociedade de mercado, as desigualdades sociais, os
meios de comunicação social, os ícones de consumo, os logotipos...
Os adolescentes constituem cerca de 25 % da população brasileira. Em 2000, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o Brasil tinha uma população
(entre 10 e 19 anos) de, aproximadamente, 35 milhões de adolescentes, dos quais 28 milhões
viviam na área urbana e 7 milhões na área rural.
A adolescência, como a própria origem etimológica atesta, significa a condição ou o
processo de crescimento do indivíduo (“ad” = “em direção a” + “olescer” = “desenvolver/
tornar-se jovem, autônomo”). Os dicionários registram que adolescência é “o período que se
estende da terceira infância até a idade adulta, caracterizado psicologicamente por intensos
processos conflituosos e persistentes esforços de auto-afirmação. Corresponde à fase de
absorção dos valores sociais e elaboração dos projetos que impliquem plena integração social”
(FERREIRA, 1975, p.39). Freud não teria usado a palavra “adolescência”, pois ela não existia
no idioma alemão de seu tempo, por isso ele referia-se a este período como “juventude ou
puberdade”. Em língua francesa, ela foi usada pela primeira vez no último quartel do século
XIX, com Victor Hugo.
Desde os tempos de Aristóteles, observamos a procura para identificar as principais
características dos jovens. Netto (1979, p. 5) nos fornece algumas informações sobre como a
adolescência foi estudada no decorrer da história. Há pesquisadores, como Stanley Hall (1904),
que consideraram a adolescência como um novo nascimento, um período dramático marcado
por conflitos e tensões. Outros estudos posteriores mostraram que este período nem sempre é
acompanhado de crises. Newman (1958), aplicando o teste de Rorschach (prova projetiva para
estudo da personalidade) em jovens indígenas do México, concluiu que as mudanças profundas
e a variabilidade, assinaladas como características psicológicas dos adolescentes de certas
culturas, podem estar ausentes em jovens de diferentes culturas. Os conflitos, a agressão e a

848
tensão, por exemplo, não se manifestaram nos jovens que participaram do estudo. Gallagher
(1963) já assinalava que a família, o processo educativo, os primeiros companheiros de
brinquedos e os professores seriam exemplos de influências nos processos emocionais do
adolescente. Porém, há ainda estudos que se referem à adolescência como “idade da crise”,
“fase inquieta e conturbada”, “período tenso”, entre outros conceitos, que generalizam algumas
características para todos os adolescentes e as analisam baseados apenas nas mudanças
biológicas e psíquicas.
A puberdade como transição do corpo infantil para as funções adultas da procriação
sempre esteve presente em todas as culturas. A passagem da infância à idade adulta era
realizada em um curto espaço de tempo, tendo alguns rituais de iniciação que objetivavam
reinscrever aquele que não é mais criança em um lugar entre os adultos. Já o conceito de
adolescência teria sua origem no momento em que ocorrera a modernidade e a industrialização.
A adolescência na modernidade tem o sentido de uma moratória, período dilatado de
espera vivido pelos que já não são crianças, mas ainda não se incorporaram à vida adulta. O
conceito de adolescência é tributário da incompatibilidade entre a maturidade sexual e o
despreparo para o casamento. Ou, também, do hiato entre a plena aquisição de capacidades
físicas do adulto – força, destreza, coordenação etc.- e a falta de maturidade intelectual e
emocional, necessária para o ingresso no mercado de trabalho. (KEHL, 2004, p. 91).
Esta dicotomia e as circunstâncias econômicas e sociais em que vivem os adolescentes,
com o aumento do período de formação escolar, a competitividade do mercado de trabalho e a
escassez de empregos, obrigam cada vez mais os jovens a permanecerem na condição de
adolescentes, ou seja, dependentes da família, distanciados das decisões e responsabilidades da
vida pública e incapazes de decidir seu destino.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a adolescência como constituída em
duas fases. A primeira fase iniciaria-se aos 10 anos e terminaria aos 16 anos, caracterizada,
basicamente, pelas transformações corporais e pelas alterações psíquicas derivadas destes
acontecimentos. A segunda fase iniciaria-se aos 16 anos e terminaria aos 20 anos, tendo como
principais elementos os novos vínculos com os pais, a questão profissional, a aceitação do corpo
e dos processos psíquicos do mundo adulto. Já a Constituição Federal (art. 227) e o ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente/lei 8.069/90) reconhecem a adolescência como o período
que vai dos 12 aos 18 anos incompletos. Sabemos que tais etapas podem ser consideradas
arbitrárias, pois as características podem variar de acordo com os aspectos sociais, econômicos e
culturais da sociedade onde o adolescente se desenvolve.
Atualmente, especialistas observam um número maior de “adolescentes” antes mesmo
do surgimento das características físicas da puberdade. Cada vez mais, crianças de 7, 8 ou 9

849
anos, com um corpo ainda infantil, adotam uma “postura de adolescentes”, caracterizada, muitas
vezes, como um fenômeno universal. Em outros casos, observa-se até mesmo o início do ciclo
menstrual em meninas com menos de 10 anos.
De apenas uma “fase da vida”, o adolescer tornou-se um período sempre problemático.
Porém, é duvidoso o conceito de adolescência como um fenômeno universal, já que em
sociedades nas quais a passagem da vida infantil para a vida adulta se faz gradativamente,
observa-se que a criança vai recebendo funções e direitos até que atinja plenamente a condição
de adulto, não apresentando as características do que constantemente se tem chamado de crise
da adolescência – ritos de passagem, sofrimento físico e psíquico. A adolescência é um processo
psicossocial, que suscita um número infindável de peculiaridades conforme o ambiente social,
econômico e cultural no qual o adolescente está inserido. Sendo assim, não podemos pressupor
um modelo de adolescência abstrato, universal e imutável.
Porém, observamos uma concepção cada vez mais divulgada e aceita de que a
adolescência seria uma etapa natural e o adolescente um indivíduo sujeito a padrões universais
de comportamentos e sentimentos, vivenciando uma etapa inevitavelmente conflituosa.
Segundo Oiteral (2003), ao estudar a adolescência, temos de considerar que existem
distintas experiências adolescentes, e que estas, embora com elementos em comum, dependem
do contexto psicossocial onde vive o adolescente. Nas classes sociais menos favorecidas, por
exemplo, o adolescer tende a começar e a terminar mais cedo, enquanto que nas classes sociais
mais favorecidas ele acontece também mais cedo, mas termina tardiamente.
A abreviação da infância e o prolongamento da adolescência tornam-se cada vez mais
visíveis na atual conjuntura. A indústria cultural impõe este prolongamento, denominado por
alguns especialistas como “adultescência” (OITERAL, 2003, p. 103), que designa o ideal de ser
adolescente para sempre, e reflete-se no fato de haver adultos tendo condutas adolescentes o
que, consequentemente, gera a falta de padrões adultos para os que realmente estão vivendo as
transformações biopsicossociais deste período evolutivo possam se identificar.
Além disso, o prolongamento dessa fase propicia a construção de novos rituais e, com
isso, muitas mudanças de comportamento estão sendo observadas. Algumas doenças
anteriormente consideradas típicas da população adulta passam a ser diagnosticadas em crianças
e adolescentes. Muitos adolescentes nem pensam em sair da casa paterna. Preferem “ficar” e
não mais namorar.
Neste sentido, é importante enfatizar que a experiência evolutiva do adolescer tem se
realizado atualmente em meio às transformações intensas e rápidas da sociedade construída pela
indústria cultural. Os adolescentes estão inseridos em um cenário que dissemina as

850
desigualdades sociais, a cultura do descartável, a banalização das experiências, a espacialidade
virtual, os produtos semiculturais, as logomarcas...
Na sociedade administrada, o adolescente passa a ser visto como um destinatário por
excelência de seus anúncios e propagandas. Segundo Kehl (2004), o adolescente, como produto
da modernidade e da industrialização, abriu espaço para que as empresas de marketing
descobrissem um novo perfil de consumidor. Um novo mercado consumidor estaria disposto a
adquirir as mercadorias que fossem assimiladas como bens essenciais ao estilo de vida. Os
jovens tornaram-se os consumidores cobiçados pelos fabricantes de mercadorias por estarem
“(...) livres dos freios morais e religiosos que regulavam a relação do corpo com os prazeres e
desligados de qualquer discurso tradicional que pudesse fornecer critérios quanto ao valor e à
consistência, digamos, existencial de uma enxurrada de mercadorias tornadas da noite para o
dia, essenciais para a nossa felicidade” (KEHL, 2004, p. 92). Assim, relegado em situações
anteriores, o jovem/adolescente passa a ser considerado cidadão, lembrado e relembrado porque
se tornou consumidor na sociedade da indústria cultural. Ser jovem virou slogan, clichê de
publicidade e sinônimo de vigor e modernidade.
Em tempos da indústria cultural hegemônica, a instabilidade de valores apresentada pela
sociedade, bem como a presença poderosa dos meios de comunicação social que exaltam
diariamente os ícones de consumo como atração principal da cultura e o prevalecimento de um
mundo feito de imagens, logotipos e virtualidade, revelam a sua influência sobre os
adolescentes, que se afastam cada vez mais de suas necessidades essenciais em troca de
necessidades fabricadas pela sociedade de consumo.
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação N.º 9394/96 e o ECA, o ensino
torna-se obrigatório e gratuito até os 14 anos, por ser considerado fundamental para a formação
de cidadãos críticos e capazes de atuar na sociedade em que vivem. Sendo a escola um espaço
formativo, consideramos que ela seria o melhor local para a investigação da nossa problemática.
Por isso, decidimos realizar visitas durante os meses de abril e maio de 2003, na 7ª série “F”, da
E.E. “Antônio Militão de Lima”, localizada no bairro Vila Nery, da cidade de São Carlos, São
Paulo. Os discentes, com idade entre 13 e 16 anos, estavam na fase da adolescência, na qual as
imagens de mundo são formadas e os valores básicos para a pessoa vão adquirindo contornos.
Em nossas observações, durante as aulas e intervalos, percebemos que os alunos
formavam grupos inicialmente de acordo com a localização de sua residência. Alunos que
moravam em bairros próximos permaneciam juntos durante a realização das atividades que
desenvolviam. Mas novos grupos foram se formando de acordo com as afinidades e modismos,
fato que consideramos relevante para nossa pesquisa.

851
Diante de tal contexto, optamos por nos aproximar desta problemática encontrada na
realidade educacional, adotando como procedimento metodológico o uso de questionários,
entrevistas e dissertações propostas aos alunos da 7ª série “F”.
Aplicamos questionários procurando identificar como os alunos se portavam diante dos
meios de comunicação social: o tempo que gastavam diante da televisão; a programação a que
assistiam; as mensagens publicitárias que mais chamavam sua atenção; outras fontes de
informação utilizadas; e a formação de grupos em sua sala de aula. Participaram desta atividade
os trinta e três alunos que estavam presentes no dia 25 de junho de 2003.
Nove entrevistas com cinco meninas e quatro meninos escolhidos aleatoriamente foram
realizadas nos meses de agosto e setembro de 2003, procurando identificar a importância que os
alunos atribuíam aos ícones de consumo: as práticas consumistas que possuíam; os motivos da
escolha de determinadas marcas; a percepção que possuíam sobre as pessoas que tinham ou não
o mesmo estilo; e a convivência entre os membros do seu grupo.
Dez dissertações foram elaboradas por cinco meninas e cinco meninos escolhidos
aleatoriamente no dia 12 de novembro de 2003, com o título Qual é a minha marca?. Nas
dissertações foram analisadas as imagens de mundo e os valores que os alunos expressaram
individualmente em seus textos de acordo com o tema proposto.
Para a exposição de algumas reflexões suscitadas pelos dados obtidos, dividimos os
depoimentos em dois temas: Minha marca... meus modismos... e Minha marca... meu jeito de ser...

Minha marca... meus modismos...


A sociedade construída pela indústria cultural divulga que o necessário é “ficar
antenado” às novidades do mundo globalizado. Tudo pode ser superado ou substituído a cada
segundo. Tudo muda rapidamente e, por isso, a reflexão, a análise dialética e o discernimento
mostram-se como não necessários. Como conseqüência, uma das maiores preocupações dos
adolescentes é querer acompanhar as mudanças do mundo atual, acreditando que com isso a sua
transformação também ocorrerá. Molda-se a identidade de acordo com os padrões que são
divulgados diariamente através do processo de difusão da semicultura.

“A cada dia vamos conhecendo um tipo de moda diferente, pessoas diferentes


de você. Então, graças a isso, estamos sempre querendo mudar nosso estilo.”

Muitos adolescentes aderem de forma irrestrita ao mundo marcado. Aceitam uma


personagem que lhes é destinada. A vestimenta, as atividades que executam e os lugares que
freqüentam revelam a postura que assumem diante da sociedade atual. Para alguns alunos esta é
a marca que possuem, tal como observamos nestes depoimentos.

852
“A minha marca é andar com roupas de bandas de rock, adoro entrar em lojas
de instrumentos musicais, gosto de tocar guitarra e jogar computador.”
“Meu estilo de roupa é bem descolado, gosto de roupas que estão na moda.
Também gosto bastante de sair à noite, ir ao cinema, pizzarias e lanchonetes.”

Numa sociedade que nega as condições reais de emancipação do indivíduo, a identidade


de cada um é concebida de acordo com aquilo que cada um possui e exibe. Por isso, torna-se
necessária a posse de algum ícone de consumo que possibilite o reconhecimento imediato
daquele que o carrega.

“A minha ‘marca’ é o que eu aparento ser; e isto pode me descrever muito


bem. Você pode ser descrito por sua marca. O que você aparenta ser.”

Sendo assim, a individualidade torna-se reconhecida se for divulgada tal como a


publicidade de um ícone de consumo qualquer. O adolescente precisa aparecer, precisa ser visto
e sentir-se vivo. Precisa do olhar acolhedor daquele que reconhece sua marca como soberana.
Somente assim acredita ser um integrante da sociedade, um cidadão espetacular dentro da
sociedade espetacular. As diferenças individuais tendem a desaparecer, pois sobre elas são
colocadas etiquetas que anulam as particularidades de cada ser. Este processo trava a reflexão, o
pensamento e a provocação, que são atitudes necessárias para se construir a identidade. Tudo
parece já ter sido visto, compreendido e feito. Basta desfrutar.
A sociedade administrada leva os indivíduos a acreditarem que os bens culturais
tornam-se um direito para todos. Tem-se a ilusão de que cada cidadão torna-se livre para
escolher e consumir o que deseja. Mas basta nos atentar para a forma com que estes bens são
propagados para perceber que já selecionaram de antemão o que cada grupo social pode ter
acesso. Vende-se cultura. Por isso, torna-se necessário seduzir e agradar os que irão consumí-la.

“Dependendo da vida, você ou eu temos uma marca boa ou ruim. Você é


livre para seguir o seu caminho, a marca, a impressão que você deixa é muito
importante.”

Alguns adolescentes desejam mudar, ousar e ser diferentes e exclusivos, mas a


insegurança, por não conseguirem ser notados ou por sofrerem preconceitos, faz com que a
possibilidade de superação seja ignorada. Acomoda-se com o que é divulgado e aceito por
todos.
“Não ando na moda, pois não gosto de usar o que todo mundo usa. Mas não
ando totalmente fora dela. Eu tenho o meu estilo, uso o que me faz sentir
bem, não o que todo mundo usa. Creio que a minha marca seja não ter
marca.”

853
Há o desejo de não ter uma marca que seja aquela que todo mundo usa. Talvez este
adolescente tente resistir à sedução de aderir incondicionalmente aos modismos. Não quer usar
o que todo mundo usa. Quer usar o que o faz se sentir bem. Deseja manter sua individualidade.
Mas ainda há o receio de estar totalmente fora, de se sentir ignorado e de não ser notado.

“Ninguém é igual a ninguém. Por isso, não estranhe quando eu descrever a


minha marca. Cada um entende de marca uma coisa. Eu, por exemplo, sou
uma pessoa que não gosta muito de ser igual aos outros, mas também não
quero que você me ache tão diferente também.”

Cada indivíduo luta para ser diferente, único e exclusivo. Cada um deseja ser
reconhecido pelo que é. Porém, na sociedade atual, ser reconhecido torna-se sinônimo de
aparecer, de se destacar a qualquer custo e de portar um ícone de consumo desejado por todos.
Talvez por isso não desejamos ser tão diferentes assim. Resgatar a marca individual, desejar ser
diferente apesar de muitas vezes não conseguir ou ter medo de se sentir assim podem ser
tentativas de resistir às imposições da sociedade construída pela indústria cultural.

Minha marca... meu jeito de ser...


A principal preocupação do adolescente é com a construção de si mesmo. Um ser em
formação que necessita desenvolver suas habilidades, relacionar-se e resolver conflitos. Porém,
cada vez mais os indivíduos de qualquer idade encontram-se com as capacidades enfraquecidas
e debilitados devido às imposições da sociedade construída pela indústria cultural.
Apesar disto, os adolescentes ainda demonstram o desejo de serem únicos, de terem
uma identidade que vai sendo construída ao longo da vida. Nos depoimentos abaixo, o jeito de
ser de cada um torna-se a marca pela qual desejam ser identificados.

“A minha marca é o meu jeito de ser, e o meu jeito de ser é simples e normal,
não igual a todos em minha volta. Cada um tem um jeito de se vestir, de
pensar, de fazer, etc..”
“Eu me julgo uma pessoa sem marca específica, nem igual nem diferente de
todo mundo, simplesmente única. Com uma personalidade única, com meus
medos, experiências, defeitos, qualidades, com minha história, que garanto
que não é igual a de ninguém.”
“A minha marca não se explica, eu sou eu mesma, não copio ninguém, sou
extrovertida, me acho bonita.”

Construir a identidade é um conflito que se estabelece a cada dia. É ter coragem de se


metamorfosear e exercer determinados papéis de acordo com a situação em que se vive. É não
aceitar incondicionalmente o divulgado, é reeducar os sentidos, é lutar, é resistir, é ousar e se
transformar. É assumir o seu jeito de ser e respeitar o jeito de ser dos outros.

854
“A minha marca, quem sabe, eu só sei que minha marca não é igual a sua ou
a deles, sei que eu sou eu e você é você.”

O adolescente, muitas vezes, se sente pressionado e excluído quando a sua marca não
corresponde ao que seu grupo de amigos deseja. Exibir uma marca e não querer mudar mesmo
diante do julgamento contrário de todos é uma situação conflituosa, que pode desencadear a
reflexão sobre as atitudes individuais e os valores sociais que influenciam a formação de cada
um. Mas também pode impedir a transformação individual e social ao considerar a identidade
como algo imutável e não como um processo.

“Alguns até achavam que eu era metida, já que na minha outra escola eu era
a ‘queridinha’ do professor. Eu amava ser sempre a aluna do mês, o exemplo
para todos, os outros tinham ciúmes de mim e isso me prejudicou muito, mas
fazer o que, é a minha marca e eu não posso mudar isso; pra ser franca, eu até
gosto dela e apesar de odiar que me julguem por isso, eu não quero mudar!
Eu sou o que sou, não o que os outros pensam de mim.”
“Eu acho que tenho várias marcas, boas e ruins. Uma delas é gostar de se
destacar, de um certo modo até comandar, por exemplo, gosto de ser a
coordenadora dos trabalhos escolares, gosto de explicar a matéria para quem
não entendeu, acho que sou comunicativa, tanto que quero fazer faculdade de
jornalismo.”

Nestes depoimentos, os adolescentes revelam o seu jeito de ser ao descreverem como


são ou como acham que são. Destacam o que precisam mudar e revelam suas marcas
individuais. Percebemos a tentativa de compreender a si mesmos e de refletir sobre as suas
escolhas e as suas atitudes. É esta busca constante, mesmo que limitada, de resgatarmos a nossa
capacidade de querer, de decidir, de refletir e de se metamorfosear que deve ser estimulada em
cada indivíduo.
O desejo que o adolescente possui de se tornar diferente, de tentar ser único e de tentar
resgatar a individualidade talvez traga vestígios da necessidade de resistir às marcas impostas
pela sociedade construída pela indústria cultural.

“Entretanto, sou totalmente diferente, pois minhas colegas só usam roupa da


moda, ‘aquela tem, então eu também quero’, bem eu não penso assim, eu
gosto de me sentir totalmente diferente, eu gosto de criar o meu estilo,
minhas modas, etc. Não gosto de me parecer com ninguém, gosto de ser,
como se diz, ‘eu sou mais eu’, de ser diferente.”

Porém, muitas vezes, ser diferente revela a cópia de modelos considerados diferentes,
mas que não deixam de disseminar os valores presentes na sociedade espetacular. A resistência
às marcas divulgadas como as soberanas e as únicas capazes de proporcionar a felicidade talvez
seja o caminho para que o adolescente consiga construir uma identidade única, singular, uma
marca capaz de resistir às imposições do mundo marcado. Uma marca capaz de querer construir
a vida.

855
“Eu faço o que faço porque eu acho que entrei no mundo para fazer o que
tem para fazer: construir a vida. Não construir a vida, construir tudo na vida.”

Para construir a vida, construir tudo na vida, as mudanças não devem ser isoladas.
Porém, os próprios indivíduos devem criar tentativas para construir a sua marca e resistir às
marcas difundidas como únicas e soberanas no mundo marcado. Sendo assim, individualmente
pode-se tentar criar a própria marca, pode-se tentar se superar. Porém, todos se tornam
responsáveis.

“A marca começa quando você nasce e vai se tornando adulto, pois a cada
dia você coloca um tijolo na sua marca que passa a se chamar marca da
vida.”

Considerações Finais

A experiência evolutiva dos adolescentes atualmente tem se realizado em meio às


transformações intensas e rápidas da sociedade construída pela indústria cultural. Sendo assim, os dilemas
e as perspectivas dos adolescentes sofrem as influências dos avanços tecnológicos, do conhecimento
instantâneo, do processo de globalização, das novas mídias, da semiformação generalizada e das
crescentes desigualdades sociais.
Apesar disso, observamos uma concepção cada vez mais divulgada e aceita de que a
adolescência seria uma etapa natural e o adolescente um indivíduo sujeito a padrões universais
de comportamento e sentimento, vivenciando um período inevitavelmente conflituoso. Porém,
são as diferentes experiências dos adolescentes e as regras socialmente construídas que têm
determinado em que momento e por meio de quais rituais de passagem se muda de uma fase da
vida para a outra.
De acordo com a maioria dos organismos internacionais, considera-se adolescente o
indivíduo que possui idade entre 12 e 20 anos. No entanto, outros períodos já estão sendo
propostos em abordagens acadêmicas, na dinâmica da vida política e na mídia. O período da
adolescência tende a oscilar e traz consigo os medos e as angústias individuais, bem como as
desigualdades econômicas e sociais. Neste sentido, a adolescência pode ser considerada como
um processo psicossocial, que suscita um número infindável de peculiaridades conforme o
ambiente social, econômico e cultural no qual o adolescente se desenvolve.
No entanto, diariamente divulga-se em todos os espaços culturais o modelo de
adolescente que a indústria cultural dissemina através de seus anúncios e propagandas. A
imagem divulgada para a identificação dos adolescentes de todas as classes sociais é a de um
consumidor, mesmo que poucos sejam capazes de adquirir todos os produtos divulgados. Uma

856
situação que pode gerar a sensação de não estar incluído na sociedade e de não ser capaz de
interferir e participar de suas transformações.
Por isso, o objetivo desta pesquisa foi analisar a influência dos ícones de consumo e
suas mensagens na estruturação da identidade, individual e grupal, dos adolescentes de uma
escola da rede pública do município de São Carlos. Os dados obtidos nas dissertações, nas
entrevistas e nos questionários propostos aos alunos da 7ª série “F” da E.E. “Antônio Militão de
Lima” nos permitiram observar o posicionamento que os alunos possuíam diante dos meios de
comunicação social, conhecer as fontes de informação utilizadas, identificar a importância que
os alunos atribuíram aos ícones de consumo e perceber a formação de grupos na sala de aula.
De acordo com as análises realizadas, é importante destacar que a produção cultural que
está sendo destinada aos adolescentes nem sempre está comprometida com a formação do
cidadão crítico, participativo e resistente às imposições da indústria cultural. Observamos que os
livros, as músicas e os programas de televisão que foram citados por um número grande de
alunos tornaram-se um estímulo para a aquisição dos ícones de consumo divulgados como bens
essenciais ao estilo de vida. Notamos, durante as falas e os depoimentos dos alunos, a ação
inculcadora da indústria cultural na direção de um consumo exarcebado, cujas mensagens
atingem os adolescentes principalmente através da televisão, já que ela ainda é o meio de
comunicação no qual os adolescentes têm permanecido muitas horas do dia.
Sendo assim, os adolescentes passam a ser vistos como uma nova fatia do mercado, eles
tornam-se um público perfeito para algumas corporações que pretendem transformar seus
produtos em bens essenciais ao estilo de vida, por mostrarem-se sensíveis a sua imagem
corporal e por necessitarem se sentir aceitos pelos membros de um determinado grupo.
Durante os depoimentos, percebemos que os adolescentes reconhecem que os ícones de
consumo trazem consigo uma mensagem que tende a ser adquirida junto com o produto. Porém,
não notamos nas respostas que nos foram dadas o questionamento necessário destas mensagens,
muitas das quais têm o adolescente como alvo principal. Alguns adolescentes acreditavam que
estavam livres para consumir o que desejavam e declararam que acreditavam comprar o que
queriam e no momento em que desejavam. Ignoravam, portanto, as influências e imposições da
indústria cultural que, muitas vezes, orientam as escolhas. Os indivíduos sentem-se satisfeitos,
realizados e completos por adquirirem um logotipo que todos podem identificar. Uma atitude
que perpetua o comércio fraudolento da indústria cultural, no qual os consumidores são
continuamente enganados com relação ao que é prometido e não cumprido.
Desta forma, os adolescentes passam a aderir inconscientemente à ideologia dos signos
de identificação e os transformam em signos de identidade e de recusa a qualquer discurso ou
argumento que possam se contrapor aos seus logotipos. Isso ocorre quando os indivíduos

857
passam a conceber a si próprios através destes ícones, pois ao possuí-los sentem-se parte do
grupo e da sociedade. Ser único não os faz se sentirem reconhecíveis, especiais e portadores de
uma identidade. É a posse de um logotipo que tem satisfeito a ânsia dos indivíduos de sentirem-
se identificados.
Os adolescentes buscam possuir uma marca, esteja ela associada ao vestuário, às
atividades que privilegiam ou às atitudes que executam individualmente ou em grupos. Para
cada um deles, o importante é ser reconhecido pela marca que exibe. Estas marcas estão ficando
cada vez mais evidentes e contribuindo para as divisões de grupos. A turma de amigos é um
espaço importante para a busca de identificação. Muitas vezes, ela torna-se um novo batismo
para o adolescente e, por isso, ele tende a aceitar todas as idéias e valores existentes no grupo
como se fossem seus. Porém, o não questionamento dos valores e regras afasta o indivíduo da
sua formação emancipatória, pois sua individualidade é nivelada pelo conformismo e pela
aceitação às imposições do grupo.
Na 7ª série “F” os alunos identificaram que formavam grupos e reconheceram a
influência deles no dia-a-dia de cada um de seus membros. Entre os grupos identificados na sua
sala de aula, os alunos destacaram dois grupos, nomeados por eles como os CDFs e os
Bagunceiros. Esta visão estereotipada está presente em várias outras salas de aula e parece ser
estimulada pela própria comunidade escolar. Divide-se os alunos entre os que são considerados
os melhores e os piores ou, talvez, entre os que terão sucesso e os que certamente serão os
fracassados.
O ser humano tem a necessidade de ser aceito pelo grupo do qual deseja fazer parte e se
tornar membro. É esta relação com o outro que permite a estruturação da identidade. Porém,
constatamos nos questionários e entrevistas que havia alunos que estavam excluídos dos grupos
que se formaram em sua sala de aula e se sentiam sozinhos e desejavam ter amigos.
Muitas vezes, os grupos se formam para revelar quem são seus membros. Trazem
consigo um pacote de acessórios e atitudes que pretendem sinalizar para a sociedade quem eles
são. Deixam evidente a necessidade de aceitação e reconhecimento social como questões
importantes durante o adolescer.
A sociedade atual ignora os direitos e liberdades que o adolescente deseja, pode e
necessita exercer. Ao mesmo tempo, ela divulga em todos os espaços culturais mensagens de
liberdade, ousadia e vigor vinculadas como atributos possíveis de serem atingidos pelo
adolescente através da aquisição dos ícones de consumo. Neste sentido, ele passa a acreditar que
só poderá encontrar-se consigo mesmo na sua relação com os ícones de consumo. Por isso,
monta a aparência e busca a diferenciação no grupo para conseguir ser identificado. Mas, para
isso, adere aos logos da indústria cultural que o padroniza.

858
O adolescente busca portar uma marca para mostrar-se impressionante. Deseja alcançar
a individualidade e a possibilidade de interferir na sociedade. Porém, a sociedade construída
pela indústria cultural revela que somente o que é destacado entre os demais é o melhor e que o
indivíduo tem que aparecer para se tornar impressionante e reconhecido. Por isso, o adolescente
sente a necessidade de exibir uma marca consagrada como a melhor ou um estilo consagrado
como singular. Deseja um logotipo capaz de diferenciá-lo dos demais, pois acredita que só ele
pode metamorfoseá-lo em uma pessoa de valor aos olhos da sociedade atual. A marca de cada
um, muitas vezes, passa a ser o modismo que está sendo divulgado pelos meios de comunicação
social. O adolescente acredita que só ela pode lhe garantir sua identidade individual e grupal.
Porém, percebemos alguns vestígios de resistência nos depoimentos dos adolescentes.
Alguns parecem desejar e lutar por uma marca única, por uma identidade humana que se
concretiza na sua relação com o outro e que deixa brechas para a reflexão, para a autonomia e
para o resgate do eu.
Como afirma Adorno (1996), a formação cultural ainda não desapareceu, sendo
necessário buscar vestígios da dimensão formativa no contexto da semiformação. Apesar de se
revelar uma tarefa difícil de ser cumprida na sociedade construída pela indústria cultural, as
relações sociais vigentes precisam ser transformadas, pois cotidianamente negam a formação
cultural verdadeira aos indivíduos que estão inseridos num mundo injusto, desigual e bárbaro.
O colapso da formação cultural pode ser percebido em qualquer parte, apesar de
apresentar-se camuflado em muitas situações. Para Adorno, a formação cultural sozinha não
conseguiria garantir a sociedade racional, mas poderia representar um momento essencial para o
processo de conscientização da necessidade de transformação das situações vigentes. Apesar
das imposições de bens culturais ajustados, a semicultura não conseguiu eliminar
completamente os elementos que poderiam contribuir para que a formação cultural seja
resgatada, tais como: a autonomia, a liberdade, a autodeterminação e a racionalidade. Com isso,
os indivíduos poderiam perceber a necessidade de resistir e criar meios para a transformação da
sociedade vigente.
Talvez, resistindo, sejamos capazes de construir uma marca individual na sociedade que
divulga “suas marcas” como soberanas e insubstituíveis. Talvez, resistindo, sejamos capazes de
responder à pergunta: Qual é a minha marca?

Referências Bibliográficas

859
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FIGUEIREDO, V. (Org.). Mímesis e Expressão. Belo Horizonte: Humanitas, 2001.

860
Sobre o percurso metodológico de uma pesquisa empírica fundamentada na Teoria Crítica
envolvendo subjetividade e formação no âmbito da arquitetura como recorte da indústria
cultural

Rosemary Roggero
Centro Universitário SENAC e Universidade Braz Cubas

Em Mínima Moralia, Adorno apresenta uma provocação inspiradora para a pesquisa


acerca da subjetividade: “Quem quiser saber a verdade acerca da vida imediata tem que
investigar sua configuração alienada, investigar os poderes objetivos que determinam a
existência individual até o mais recôndito nela.”
O objetivo deste artigo é apresentar o percurso de uma pesquisa (A Vida Simulada no
Capitalismo – um estudo sobre formação e trabalho na arquitetura, São Paulo: PUC, 2001)
envolvendo subjetividade e formação do indivíduo (no âmbito da arquitetura como recorte da
indústria cultural) que, fundamentada na Teoria Crítica e permeada pela abordagem qualitativa
da história de vida, possibilitou perceber a vitalidade da teoria e sua afinidade com a
metodologia empírica eleita.
A argumentação que sustenta a escolha dessa abordagem qualitativa considera que a
formação e o trabalho se constituem nas relações sociais, apanhá-los por meio da narrativa que o
próprio indivíduo faz de sua história de vida possibilita a construção de uma análise mais
totalizante, referida ao modo como ele foi formado para relacionar-se com o trabalho, bem
como a forma pela qual o trabalho se insere em sua vida. A biografia trata do particular
mergulhado no todo social, possibilitando que se apanhe, simultânea e dialeticamente, aspectos
da individualidade e da identidade, que se conflitam e se complementam na constituição do
homem contemporâneo. Nesse sentido, vale aclarar alguns conceitos com os quais o estudo da
história oral de vida se vê envolvido, como memória e identidade.
De acordo com Bosi (1979, p.9), é na esteira da memória, que se desenrola a biografia,
como algo dinâmico que, ao mesmo tempo, conserva e reelabora o passado. É pela memória que
“o passado não só vem à tona das águas presentes, como também, empurra, ‘desloca’ o
presente, ocupando o espaço todo da consciência.”
Por outro lado, o trabalho com a história oral de vida inclui o fato de que, em cada faixa
etária, o indivíduo vê a vida com enfoques variados: o adulto ativo faz uma distinção entre a
vida prática e o passado, com o qual não tem o hábito de ocupar-se longamente por percebê-lo
como sonho, fuga, arte, lazer ou contemplação, diferentemente da criança, do adolescente ou do
idoso.

861
Nesse sentido, a história oral de vida pode nos permitir compreender melhor aspectos do
desenvolvimento da consciência, considerando as contradições sociais e a alienação, que se
cristalizam na cultura, pela interação de inúmeros elementos, dentre os quais estão os requisitos
do mundo do trabalho e a formação. Em assim sendo, o estudo biográfico pode servir ao
desvelamento daquilo que é encoberto pela própria cultura, sob a égide do capital – o sujeito
embrionário.
Bosi (1979) entende que a memória possui uma substância marcada pela força do tempo
social. Assim, inúmeros eventos significativos dividem nossa história em períodos e funcionam
como uma espécie de rituais de passagem de uma condição a outra: o primeiro dia de aula, o
primeiro namorado, o casamento, os filhos, o primeiro emprego, a entrada na universidade...
Quando provocamos nossa memória, esses eventos vêm à tona através dos pontos de orientação
existentes naquilo que passamos a considerar mais significativo, à luz do próprio tempo
presente.
A força daquilo que evoca a lembrança, e mesmo a força da própria evocação, depende
do tipo de experiência. Entretanto, todos os eventos sofrem uma espécie de distorção devido à
tendência da mente de remodelar toda experiência em categorias que terão o sentido e a
utilidade para o presente. Mas não é só isso:
...um desejo de explicação atua sobre o presente e sobre o passado integrando suas
experiências nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida. O empenho do
indivíduo em dar um sentido à sua biografia penetra as lembranças com um ‘desejo de
explicação’. (Bosi, 1979, p.340)
Esse desejo de explicação percorrerá, certamente, os aspectos mais significativos das
relações mais relevantes experienciadas pelo indivíduo. Nesse sentido, a família, a escola e o
trabalho representam espaços de relações que provocam a memória de modo especial.
O trabalho e as preocupações ligadas a ele ocupam grande parte da vida, envolvendo,
por um lado, o período de adestramento que acaba confundido com o próprio cotidiano do
adulto e, por outro, representa sua inserção obrigatória nas relações econômicas e sociais.
“Temos, portanto, que atender a essas duas dimensões do trabalho: sua repercussão no tempo
subjetivo do entrevistado e sua realidade objetiva no interior da estrutura capitalista” (Bosi,
1979, p.390).
Essa dupla dimensão indica aspectos importantes das relações entre vida e trabalho,
possibilitando apanhar os fatores envolvidos no processo de qualificação, pois é inegável que
aquilo que exigiu anos de aprendizado e esteve implicado na subsistência, acaba tendo um
significado muito importante para as diferentes gerações.

862
Por outro lado, não são apenas os processos da memória que importam, quando está em
pauta a discussão da qualificação para o trabalho, mas também a questão da identidade.
Erikson (1972) discute esse tema, situando-o no contexto da juventude e afirmando que
as relações indivíduo/sociedade se nutrem pela identidade que os indivíduos vão estabelecendo
entre si, apoiada numa forma de julgamento entre a maneira como percebem a si próprios em
comparação com os demais dentre aqueles que, por alguma razão, se tornam importantes para
eles.
Segundo o autor, esse processo é, na maioria das vezes, inconsciente – “exceto quando
as condições internas e as circunstâncias externas se combinam para agravar uma dolorosa ou
eufórica ‘consciência de identidade’”(Erikson, 1972, p.21). Então, tanto o desenvolvimento
pessoal, quanto a transformação da sociedade encontram-se fortemente imbricados, em seus
avanços e crises, interferindo na definição e redefinição um do outro.
Para Erikson, nas relações indivíduo/sociedade há uma peculiaridade, que tem se
mostrado permanente, de os homens adultos abdicarem de si mesmos em nome de um equilíbrio
cultural e de um ideal de perfeição. Uma tal renúncia mostra seus efeitos na constatação de que
cada geração está preparada para engajar-se numa certa quantidade de atitudes consolidadas,
ainda que algumas estruturas de caráter se ajustem melhor que outras.
No campo das relações sociais, as diferenças nas estruturas de caráter acabam por
definir a existência de três classes: a classe dos especialistas (ou os que sabem o que estão
fazendo), a dos universalistas (ou os que sabem o que estão dizendo) e a dos tecnológica e
educacionalmente excluídos de todas as possibilidades por falta de capacidade, de oportunidade
ou de ambas. Mas, a interação entre as duas primeiras vai determinando as possibilidades de
identidade de uma era, e os universalistas preocupam-se e tendem a tornar-se os defensores dos
excluídos. (Erikson, 1972, p.35)
Quando se pensa, por exemplo, no acelerado desenvolvimento técnico deste momento
histórico e se vê uma massa de homens alienados do seu trabalho e de si mesmos na cultura
afirmativa, não se pode imaginar que noutros tempos e noutras realidades culturais o homem
tenha sido menos determinado. Por outro lado, a identidade não é o começo e o fim do
desenvolvimento humano, mas seu aspecto psicossocial mostra o terreno da existência
transitória do indivíduo, enquanto instado a adaptar-se socialmente e identificar-se com seus
semelhantes, e vai se relativizando à medida que o indivíduo amadurece:
...a necessidade humana de identidade psicossocial radica-se em nada menos do que a
sua evolução sociogenética. Foi dito (por Waddington) que a aceitação da autoridade é
o que caracteriza a evolução sociogenética do homem. Eu proporia que a formação da

863
identidade é inseparável dessa evolução visto que somente dentro de um grupo definido
pode a autoridade verdadeiramente existir. (Erikson, 1972, p.40)
Com esse argumento, Erikson (1972, p.41-4) afirma a importância do estudo das
biografias para a compreensão do ciclo completo da humanidade, o que “permite ao indivíduo
transcender a sua identidade – tornar-se mais verdadeiramente individual que nunca e, ao
mesmo tempo, situar-se verdadeiramente além de toda a individualidade” – o que pode ser
garantido por uma ética adulta. Daí a necessidade de a psicanálise e a ciência social estarem
unidas para empreenderem o dimensionamento do curso da vida individual no contexto de uma
sociedade em permanente mudança.
Através das diferentes fases da vida, o indivíduo faz fluir para as instituições seus
critérios de força vital – amor, fé, esperança, determinação, competência, sabedoria... – o que as
mantêm vivas bem como ele próprio, que, ao final de seu ciclo de vida, passará por nova crise
de identidade na qual reconhecerá “ser o que sobrevive em si mesmo”. Cada idade, portanto,
tem sua forma própria de alienação – tendencialmente mais vinculada à cultura – e o processo
de libertação do indivíduo se dá quando ele se torna capaz de decidir por:
...identificar-se com a sua própria identidade do ego e quando aprende a aplicar aquilo
que é dado àquilo que deve ser feito. Só assim ele pode extrair da coincidência do seu
próprio ciclo vital como um particular segmento da história humana a força do ego
(para a sua geração e a seguinte).(Erikson, 1972, p.74)
Por outro lado, ao analisar a formação da identidade, Crochik (1997, p.56) aponta que:
“... o indivíduo deve ser considerado também por aquilo que lhe é idêntico, expresso tanto por
suas características duradouras, mas não necessariamente imutáveis, quanto pelos predicados
da cultura que o identificam: o sexo, a profissão, a classe social.”
O autor conclui que essa identificação deveria envolver não somente os predicados
sociais que o indivíduo introjeta, mas também as características que são desenvolvidas em sua
relação com a cultura e, ainda, manter um certo grau de imprevisibilidade, perante aquilo que se
espera dele, em conformidade com os predicados que incorporou por meio da própria cultura.
A identidade vai se constituindo a partir da participação do indivíduo nas relações
sociais, mas não está atrelada apenas à idéia de adaptação, uma vez que esta conduz ao
sacrifício e à renúncia aos instintos, de que a cultura coercitiva se utiliza para integrar o
indivíduo.
Se o medo original do homem de ser destruído pela natureza transformou-se em medo
de ser expulso da coletividade, por meio dos mecanismos da dominação social, o enfrentamento
desse medo tem-se dado pela perpetuação do sacrifício que, se pode ser justificado enquanto

864
momento de diferenciação do indivíduo, torna-se injustificado ao perpetuar-se na forma de
renúncia da tomada de consciência de si, em prol da adaptação cultural.
Por outro lado, o indivíduo é produto social que se desenvolve historicamente sob o
capitalismo, cuja ideologia exige que ele se responsabilize pelos rumos da sua vida - seja ele
proprietário da força de trabalho ou proprietário do capital - integrando-se à perspectiva do
progresso social, por meio do trabalho individual e não pela razão.
É dessa forma que a identidade do indivíduo, nessa sociedade, se apresenta de forma
falsa. O que representa a propriedade, seja a propriedade do senhor, seja a do servo, é na
verdade, o que escraviza a todos, sob o signo da cultura afirmativa, que condiciona a formação
dessa identidade ao princípio do equivalente: “...do trabalhador não é exigida a razão, mas o
trabalho produtivo, do capitalista se exige a multiplicação do lucro. A riqueza do todo aumenta
regulamentada pelos contratos sociais. Através da (ir)racionalidade da atuação de cada um,
movida pelo apetite individual, a (ir)racionalidade do todo aumenta.” (Crochik,1997, p.61)
Mas, seria possível, então, resgatar, no indivíduo, a verdadeira identidade? De acordo
com Crochik (1997, p.57), pode-se pensar que sim, porque:
...a identidade individual é dada por elementos visíveis e invisíveis, constantes e
imprevisíveis, sociais e individuais, manifestos e ocultos, universais e particulares,
permanentes e em mutação. Não considerar os aspectos permanentes, embora não
imutáveis, é desconsiderar a memória, a experiência acumulada refletida ou não, ou
seja, a mesmidade, algo que o indivíduo reconhece como próprio e particular.
Nessa compreensão já é possível depreender um argumento de defesa à oportunidade
que o resgate da história oral de vida traz para a reflexão do indivíduo, que poderá tornar-se
capaz (se ainda não o fora) de pensar sobre sua própria experiência acumulada, no diálogo com
a sua memória, considerada como um fator importante e irrecusável pela cultura ao indivíduo,
ainda que esta o pressione em direção à renúncia total de si mesmo.
Mas, acerca da formação da identidade do indivíduo, Crochik (1997, p.58) ainda
complementa:
Ele não só é estas características, como as possui, são suas propriedades privadas e, é
claro, foram produzidas ou adquiridas por doação social: não o sexo, a classe social, a
cor da pele, mas as considerações e os papéis sociais atribuídos a ele. Não considerar
a possibilidade de mudança, ou aquilo que lhe é oculto, por sua vez, é julgar que o
indivíduo seja incapaz de ser outra coisa, além daquilo que se espera dele.
O que é adquirido por doação social poderia incluir a profissão, o trabalho, o próprio
processo de qualificação, uma vez que esses aspectos participam das relações sociais. Mas esses
mesmos aspectos, ainda que a pressão cultural à adaptação seja muito intensa, parecem poder

865
misturar-se àqueles que não são socialmente doados, e que, mesmo assim, participam de uma
outra esfera da formação da identidade, seja pelo fator biológico, seja por fatores como caráter,
índole e mesmo os desejos a que se deve renunciar em prol do processo civilizatório. Parece que
é assim que o indivíduo renuncia à total reificação, mantendo latente algo que lhe possibilitaria
conhecer uma subjetividade livre.
Por outro lado, está claro que não é o trabalho que proporciona isso e nem mesmo a
formação que conhecemos – Horkheimer e Adorno (1997) apresentam argumentos
incontestáveis para essa questão – mas a auto-reflexão que o indivíduo possa fazer a partir
daquilo que lhe ocupa e coisifica a vida negada (ou não, pois ele pode reconhecer compensações
em seu processo de formação e trabalho, em consonância com seu grau de incorporação da
cultura). E, nesse sentido, tem-se mais um argumento para que o resgate da história oral de vida
possa ser encarado como método para essa auto-reflexão.
Como exposto acima, Erikson aponta para a identidade como necessária ao processo de
individuação, não devendo ser tomada como algo rígido, fechado e imutável. Ele reconhece a
importância de captar como vai se formando e transformando a identidade, tanto no aspecto
histórico-pessoal do indivíduo, como na sua dimensão sociocultural, atravessando gerações que
vivenciam as mais diversas circunstâncias.
Além disso, o autor sugere a possibilidade de o indivíduo experimentar a liberdade a
partir do momento em que está constituída a sua identidade do ego e a sua capacidade de
discernimento, relacionada à compreensão dos determinantes do seu meio e à possibilidade de
atuar nesse meio. Esse desenvolvimento o capacita a reconhecer-se como ser histórico, capaz de
transformação social – uma herança importante para as novas gerações.
A argumentação de Crochik não parece, necessariamente, contrária à de Erikson, mas
aponta, de acordo com seu referencial crítico, para o que nega a formação de uma identidade e
de um indivíduo livre.
De modo aparentemente mais radical, entendem Horkheimer e Adorno (1971). Eles
enfatizam a identidade como um componente da pseudoformação do indivíduo, que concorre
para a integração, para a adaptação, para a acomodação às normas impostas, a fim de nivelar a
consciência psicossocial, fazendo com que a vida passe a ser inteiramente modelada pelo
princípio da equivalência e impedindo que o indivíduo seja capaz de perceber a si próprio ou à
sua suposta subjetividade.
Parece haver algumas distinções entre as abordagens apresentadas: enquanto para
Erikson a identidade é formativa, como parte do processo de individuação, para Adorno e
Horkheimer, tanto quanto para Crochik, ela tem se apresentado predominantemente

866
pseudoformativa, porque - sob a cultura afirmativa - identidade equivale a tornar-se idêntico,
adaptar-se.
Segundo os autores da teoria crítica, a identidade pode ser formativa, desde que se faça
a crítica ao que a impede e se instale a auto-reflexão. Daí a insistência em discutir
dialeticamente o conceito, a fim de desvelar o seu lado oculto, mergulhado na cultura, como faz
Crochik.
Essa especulação – um pensamento não-assegurado , como diria Adorno – se apóia na
interpretação acerca do estudo que Horkheimer e Adorno desenvolvem em relação à formação
do eu burguês, quando abordam o sacrifício. Os autores argumentam que há uma razão de ser
para ele, mas, uma vez cumprido o seu objetivo, não haveria porque perpetuá-lo:
O eu consegue escapar à dissolução na natureza cega, cuja pretensão o sacrifício não
cessa de proclamar. Mas ao fazer isso ele permanece justamente preso ao contexto
natural como um ser vivo que quer se afirmar contra um outro ser vivo. A substituição
do sacrifício pela racionalidade autoconservadora não é menos troca do que o fora o
sacrifício. Contudo, o eu que persiste idêntico e que surge com a superação do
sacrifício volta imediatamente a ser um ritual sacrificial duro, petrificado, que o
homem se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao contexto da natureza.
(Horkheimer e Adorno, 1997, p.60)
Haveria, então, uma dimensão necessária do sacrifício para a formação do eu, na qual o
homem se distingue da natureza. Mas, tendo se emancipado em relação a ela, não haveria
porque não reconciliar-se. A não-reconciliação do homem com a natureza é que perpetua o
sacrifício e forma o eu idêntico. Na identidade se eterniza, então, o sacrifício da subjetividade.
Essa distinção se mostra importante, sobretudo porque ambos os aspectos podem estar
presentes na análise de histórias de vida, quanto ao processo de qualificação. Horkheimer,
Adorno e Marcuse defendem a necessidade de se fazer a crítica social, para que se possa
perceber e resistir àquilo que nega ao homem reconhecer sua própria humanidade. Ao fazer o
resgate da qualificação profissional por meio da história oral de vida, possibilita-se ao indivíduo
a auto-reflexão sobre a construção de sua própria identidade, daquilo que percebe como negado
e daquilo que tem sido possível experimentar como humano.
Num ensaio sobre “Livros infantis antigos e esquecidos”, Benjamin (1985, p.235) inicia
sua abordagem com as seguintes questões: “Por que você coleciona livros? Alguém já fez essa
pergunta a um bibliófilo, para induzi-lo à auto-reflexão?”. Embora seu tema não tenha relação
direta com o que se tratou na pesquisa a que se refere este texto, dois aspectos desta citação são
provocadores: primeiro o título, que se relaciona ao antigo e esquecido; depois o fato de a
pergunta ser indutora da auto-reflexão.

867
Um estudo que aborda a vida simulada, pela via da formação e do trabalho no
capitalismo, pode supor que muito daquilo que define cada indivíduo torne-se, rapidamente,
antigo e esquecido pelas pressões que se sofre para a adaptação, a tal ponto que o ensejo para a
auto-reflexão sobre esses aspectos esteja muito pouco presente em seu cotidiano. Torna-se
necessário, ao menos, que se tenha a oportunidade de nomear o que nega a auto-reflexão, como
afirma Adorno (1983, p.270): “A coisificação de todas as relações entre os indivíduos, que
transforma suas características em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a
alienação e a auto-alienação universais, reclamam ser chamadas pelo nome...”
Por isso, quase que parodiando Benjamin, a pergunta-chave, indutora da auto-reflexão
que norteou as entrevistas como fonte empírica da pesquisa foi: Como a arquitetura entrou na
sua vida e faz de você o arquiteto (ou a arquiteta) que você é?
Mas, chegar a essa elaboração exigiu outras indagações da pesquisadora: os
depoimentos deveriam ser anônimos? As pessoas se sentiriam mais à vontade para narrar suas
histórias de vida se seu anonimato estivesse garantido? Como desenvolver a melhor atitude de
ouvinte? Como extrair conseqü
ências teóri cas de narrativas que representam um momento
determinado numa interação determinada, sem deixar-se levar pelo subjetivismo?
Tais questões foram pano de fundo para uma preocupação mais ampla: o pesquisador
torna-se mediador das narrativas e, ao objetivá-las para uma análise conceitual, assume um
papel em que é preciso (re)conhecer o outro numa interação dialógica que, se não pode
prescindir dos aspectos metodológicos que regem uma produção científica, também não poderia
prescindir dos fatores subjetivos que participam dessa interação.
Por outro lado, a objetivação dos depoimentos dos entrevistados por meio da escrita
implica nova consideração sobre o papel mediador do pesquisador: este se torna uma espécie de
co-narrador no processo de organização desses depoimentos, que desvelam experiências sob o
olhar do momento em que foram produzidas. Esses desafios já foram expostos na apresentação
dessa pesquisa, mas surgiram com maior ênfase nesse momento do estudo, exigindo novas
elaborações.
Como alerta Benjamin (1985, p.198, 200 e 201):
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.(...) ...o
narrador é um homem que sabe dar conselhos ...[o que é] menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada. (...) O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência
ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas à experiência dos seus ouvintes.

868
O sentido dessas idéias pode ser notado no fato de os entrevistados não solicitarem
anonimato e, mais que isso, esteve presente um desejo de que seus depoimentos pudessem ser
úteis a outras pessoas, um desejo que pareceu acompanhado de um certo orgulho de vislumbrar
essa possibilidade, ainda que isso se revelasse de um modo tímido em todos os casos (daí,
embora terem sido feitas as cartas de autorização de utilização das entrevistas, não pareceu
necessário anexá-las ao texto final da tese).
Os entrevistados receberam uma informação genérica sobre o estudo em questão, o qual
se propôs pensar a formação e o trabalho pelo ân gulo do sujeito nas suas interações sociais -
com a família, a escola, a profissão, a tecnologia e o lazer – como blocos temáticos que serviram
como roteiro para as narrativas e não apenas pelas necessidades impostas pelo mundo do
trabalho ou por aquilo que está presente nas teorias sociológicas ou psicológicas que têm
servido de base às práticas educacionais. Tratava-se de buscar na vida concreta, no que vinha
sendo vivido pelos sujeitos, algo que pudesse produzir uma interpretação sobre a formação e o
trabalho em momentos diferentes (formados nas décadas de 60 e 90), buscando novas
alternativas para o pensamento educacional, pela via daquilo que tem sido negado – a
subjetividade.
Essa perspectiva foi bastante bem recebida e, talvez, por causa dela, cada narrador tenha
se tornado um conselheiro, ainda que esta intenção não seja explicitada em nenhum
depoimento.
Por outro lado, se, como afirma Benjamin (1985), a arquitetura é uma arte tão antiga
quanto o homem, por meio daqueles que a praticam em qualquer de suas atividades, é possível
pensar sobre como o homem tem se constituído ao longo da história e se projetado na criação e
organização espacial do seu habitat, tanto quanto no desenvolvimento da cultura, no
capitalismo.
O autor (1985, p.204) ainda afirma que “...a verdadeira narrativa... se assemelha a essas
sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras
das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.” Nesse sentido, o papel
mediador do pesquisador assume “uma forma artesanal de comunicação... mergulha a coisa na
vida do narrador para em seguida retirá-la dele.” (p.205). Assim, cada depoimento deve guardar
a possibilidade de múltiplas compreensões, como já foi apontado na introdução deste texto, até
porque são representativos de um determinado momento.
Mas, como considerar esses dados subjetivos em relação a uma historiografia? Segundo
o próprio Benjamin (1985, p. 209):
Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de
indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas... Na base de sua

869
historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus
desígnios, e com isso desde o início se libertarem do ônus da explicação verificável. Ela
[a crônica da narrativa épica] é substituída pela exegese, que não se preocupa com o
encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no
fluxo insondável das coisas.
É possível pensar que uma narrativa autobiográfica não deixe de ser uma forma épica,
na qual o sujeito é o herói – embora negado pela totalidade – de sua própria existência. Nesse
sentido, não cabe averiguação das informações ou julgamento dos depoimentos, que registram
uma forma de elaboração do passado, de auto-reflexão, uma vez que, como afirma Arendt
(1992, p.152):
Todo pensamento é discursivo e, à medida que acompanha uma seqüência de
pensamento, poderia ser descrito, por analogia, como “uma linha avançando na
direção do infinito”, o que corresponde ao modo como usualmente representamos para
nós mesmos a natureza seqüencial do tempo. Mas, para criar uma tal linha de
pensamento, precisamos transformar a justaposição na qual as experiências nos são
dadas em uma sucessão de palavras proferidas sem som – o único meio que podemos
usar para pensar -, o que significa que nós não apenas dessensorializamos, mas
também desespacializamos a experiência original.
Ainda que dessensorializada e desespacializada, a experiência é retomada, é revisitada,
é objetivada por meio do discurso que permeia a relação que o sujeito desenvolve com o
passado e o futuro. O momento da entrevista é único. Sua retomada pelos entrevistados traria
novas conseqü
ências racionalizadoras e as narrati vas se veriam destituídas de seu caráter
original. A própria interação com o ouvinte-pesquisador seria repensada. Por isso, os
depoimentos foram feitos uma única vez - ainda que se tenha mantido aberta a possibilidade de
os narradores reverem suas narrativas – o que, de certo modo, remete à idéia da semente que
possa germinar como a fagulha libertadora da subjetividade, presente no ato de auto-reflexão
que o momento da interação entre o sujeito-narrador e a pesquisadora sugere.
Para Adorno (1983, p.270): “Desintegrou-se a identidade da experiência – a vida
articulada e contínua em si mesma – que só a postura do narrador permite.” Se tão forte crítica
tem fundamento, ela permite pensar que da possibilidade à concretização da liberdade parece
ainda haver um longo caminho a percorrer. Se permanecem as diferenças e distâncias culturais
sobre o planeta e se a experiência vem se desintegrando em meio à totalidade destruidora, isso
ocorre porque também têm se eternizado formas aprisionadoras de trabalho e uma falsa
formação. Falsa porque não remete à vida, mas ao trabalho alienado e alienante, porque presta-
se à autoconservação de um indivíduo fragmentado, impedido de ser pela escravização a sempre

870
renovadas necessidades de trabalho e de consumo. Nesse caso, a experiência, mesmo se
desintegrando tem algo de valor, sobretudo porque aponta para o que resta de humano,
denunciando sua própria fragmentação e aquilo que o impede de ser.
Além disso, a escolha do arquiteto como sujeito da pesquisa inclui a relação entre arte e
ciência, visando apreender o quanto uma formação que contenha o componente artístico
possibilitaria maior oportunidade de libertação do indivíduo, mesmo que esse componente se
reduza diante da importância que se dá à dimensão técnica, sob o capitalismo.
Guiada por essa idéia, esta pesquisadora procurou compreender de que modo os
elementos da formação moldam o indivíduo para sua função social no mercado de trabalho, e se
é possível encontrar as possibilidades de sua libertação quando ele se auto-reflete, tendo
presente que os limites dessa libertação estão presentes no quanto cada indivíduo se encontra
envolvido pela lógica da dominação – o que não é possível medir, mas se permite observar -,
revendo sua própria história de vida, por meio de um depoimento, numa relação de troca
simbólica pelo diálogo que se estabelece com um outro.
A esse outro – na pesquisa, representado pela pesquisadora – não cabe julgamento sobre
a vida dos indivíduos. Cabe, sim, uma análise teórica das narrativas, guiada por um princípio
fundamental: o ato de ouvir. Esse ouvir se pretende qualificado, tanto pela teoria que pontua a
análise posterior, quanto por um conhecimento do campo de atuação do entrevistado que
permite extrair do diálogo suas conseqü
ências para a pesquisa.
Como já dito, a pesquisa em que se fundamenta este artigo buscou investigar a vida –
entendida como manifestação permanente de um aprendizado cultural, produzido no âmbito das
relações sociais, num recorte específico sobre como se desenvolvem essas relações no campo da
formação e do trabalho.
Elementos reflexivos - a despeito de todo o processo de adaptação e integração a que
têm sido impelidos os narradores - estão presentes ao longo de suas próprias narrativas. Alguns
desses elementos supostamente mais ingênuos, outros mais amadurecidos, alguns
aparentemente cristalizados na ideologia dominante, outros sugerindo a superação do senso
comum. Retomar fragmentos dessas narrativas para conferir valor ao meu argumento torna-se
dispensável. Os depoimentos falam por si, se considerados na totalidade com que foram
apresentados e falam a cada um conforme a bagagem conceitual de que disponha para a leitura
dessas narrativas. Daí a sua fertilidade que não me é possível negar.
Este pode parecer um argumento piegas, mas há que se questionar se qualquer pessoa,
ainda que vítima da barbárie – pelas suas próprias mãos ou pelas mãos de outros – que consiga
sobreviver, não mantém essa fagulha e não está buscando algo que possa libertá-la daquilo que a
aprisiona. Nesse caso, as narrativas apontam – o que parece óbvio – que a verdadeira vida se

871
esconde atrás da vida simulada, mas está lá. A verdadeira vida existe, ainda que não esteja de
todo revelada.

Referências Bibliográficas
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CROCHIK, José Leon. Notas sobre psicanálise e educação em T. W. Adorno. In: A Atualidade
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MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. Cultura e Sociedade. São Paulo:
Paz e Terra. 1997. Vol. I.

872
Indústria cultural, ressentimento e resistência

Sinésio Ferraz Bueno

A partir dos anos 1940 iniciou-se o período de maior fecundidade e consistência da Teoria
Crítica. Uma transformação conceitual muito significativa nesta fase refere-se à abordagem da
ideologia de acordo com parâmetros qualitativamente diferentes. Segundo Sérgio Paulo Rouanet,
durante o período que se estende da fundação do Instituto de Pesquisas Sociais até a década de 40, a
ideologia era entendida em seu sentido marxista tradicional, como falsa consciência encobridora da
materialidade social. Após os anos 40, obras das mais importantes da Teoria Crítica serão marcadas
pela concepção da ideologia em sua função afirmativa da realidade. Neste caso, podemos dizer que
ocorreu uma metamorfose na produção da falsa consciência. Esta deixa de apelar à deformação da
realidade, à dissimulação da dominação em seu enraizamento material, passando então a invocar a
própria realidade como recurso de veracidade do discurso. A ideologia identifica-se com a
realidade. Para Adorno e Horkheimer, “ideologia e realidade correm uma para a outra” (1978:203).
Segundo Rouanet, a ideologia assume papel afirmativo, que não consiste mais em deformar a
realidade, mas em identificar-se com esta: “é a própria realidade, agora, que desempenha as funções
de mistificação antes atribuídas à ideologia” (1986: 71)
Em sua análise da sociedade unidimensional Marcuse apresenta a sociedade industrial do
pós-guerra como “sociedade sem oposição”, em que a própria liberdade é instrumento de uma
dominação suave e confortável, mediada pelas “falsas necessidades” do lazer e do consumo. Na
sociedade unidimensional, o “próprio conceito de alienação parece tornar-se questionável quando os
indivíduos se identificam com a existência que lhes é imposta e têm nela seu próprio
desenvolvimento e satisfação” (1969:31). O caráter inteiramente objetivo da alienação marca um
certo tipo de absorção da ideologia pela realidade, mas sem que tenhamos o “fim” da ideologia,
pois, conforme ressalta Rouanet, “a síntese unidimensional é uma caricatura, e não uma
reconciliação autêntica” (1986:72). Para Marcuse, a cultura no mundo capitalista tornou-se mais
ideológica do que era antes, apresentando novos desafios ao pensamento crítico, cuja tarefa agora
consiste em desmistificar o próprio estilo de vida unidimensional. Pois “surge assim um padrão de
pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que
por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou
reduzidos a termos desse discurso” (1969:32).

873
As implicações dessa unidimensionalização da realidade, centralmente marcada pela
absorção da ideologia pela própria realidade são detalhadamente abordadas por Adorno no texto
Crítica cultural e sociedade. Para Adorno, a ideologia no capitalismo tardio converteu-se em
“aparência socialmente necessária” que se identifica com a própria sociedade real (1998:22). Em
uma realidade tornada “prisão ao ar livre”, a ideologia deixa de desempenhar o papel de “falsa
consciência”, tendo se transformado em “propaganda a favor do mundo” (1998:22). A
transformação qualitativa no papel da ideologia aponta para um paradoxo fundamental, explicitado
por Adorno da seguinte maneira: “ninguém mais se preocupa com o conteúdo objetivo das
ideologias, desde que estas cumpram sua função” (ADORNO, 1998:20). Essa caracterização
paradoxal é acompanhada por uma definição enigmática sobre a qual nos determos mais à frente.
Segundo Adorno, a mensagem ideológica em si mesma tornou-se secundária em um contexto
cultural em que qualquer conteúdo é suficiente desde que desvie “a atenção do segredo conhecido
por todos”:

“A suspeita dos antigos críticos culturais se confirmou; em um mundo onde a educação é um


privilégio e o aprisionamento da consciência impede de toda maneira o acesso das massas à experiência
autêntica das formações espirituais, já não importam tanto os conteúdos ideológicos específicos desde que
haja algo preenchendo o vácuo da consciência expropriada e desviando a atenção do segredo conhecido por
todos. No contexto de seu efeito social, é talvez menos importante saber quais as doutrinas ideológicas
específicas que um filme sugere aos seus espectadores do que o fato de que estes, ao voltar para casa, estão
mais interessados nos nomes dos atores e em seus casos amorosos” (1998:20-21).

Igualmente, para Marcuse, “as pessoas sabem ou sentem que os anúncios e as plataformas
políticas não têm de ser necessariamente verdadeiros ou certos e, não obstante, os ouvem e lêem e
até se deixam orientar por eles”. Segundo Marcuse, na sociedade unidimensional a veracidade das
mensagens assume aspecto secundário, pois o que verdadeiramente importa é o fato de que, embora
as pessoas não acreditem nos conteúdos veiculados pela “linguagem mágico-ritual” do aparato, elas,
não obstante, agem em concordância com a adaptação prescrita (1969:107). Diante desse quadro de
identificação integral com a realidade, as implicações da transparência material do discurso
ideológico (ADORNO 1998:25) são comentadas exemplarmente por Paulo Arantes, para quem a
redundância da crítica marxista em um momento histórico monopolizado pelo pensamento único
equivale ao ato de estar arrombando uma porta aberta (2004:127).

874
O aspecto paradoxal do discurso ideológico contemporâneo, que consiste de promover a
adesão das massas por meio da veiculação de mensagens claramente falsas até para seus próprios
receptores encontra uma abordagem criticamente muito fecunda em outra obra de Adorno. Em seu
texto acerca da relação entre sociologia e psicologia, Adorno propõe que a explicação segundo a
qual os meios de comunicação de massa moldam a opinião pública é insuficiente, pois se as massas
se deixam enganar por uma propaganda claramente falsa, isso ocorre porque tais mensagens são
adequadas a condições subjetivas heterônomas gera das pela irracionalidade objetiva (1991:135-6).
A falsidade evidente das mensagens não impede que indivíduos atomizados, condicionados ao
sacrifício irracional e à servidão, comportem-se de acordo com os slogans sistematicamente
prescritos por seus senhores. Igualmente, os motivos subjetivos da adesão a mensagens ideológicas
que sequer solicitam a crença em seus conteúdos, embora prescrevam comportamentos submissos à
totalidade repressiva, são sugeridos por Marcuse quando este caracteriza a forma pela qual se dá
esse tipo de adesão. Para Marcuse, o resultado da síntese unidimensional consiste na mímesis: “uma
identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade e, através dela, com a sociedade em seu
todo” (1969:31).
A transformação qualitativa no papel desempenhado pela ideologia que aqui estamos
abordando encontra elementos muito importantes em um texto de 1941, intitulado “Sobre música
popular”, escrito por Adorno em parceria com George Simpson. Neste texto a adesão à totalidade
repressiva é abordada a partir da mediação da adesão à ideologia como “mentira manifesta”. O texto
analisa os recursos utilizados pelos produtores musicais da indústria cultural para induzir o público
a aceitar com grande entusiasmo um material cultural padronizado como se a opção por esta ou
aquela produção fosse resultado da livre escolha e correspondesse genuinamente aos desejos
espontâneos do público. Adorno e Simpson desvendam a solução para esse problema resumindo-a
em uma fórmula cuja concisão permanece válida para os ouvidos globalizados de nossos dias: “a
composição escuta pelo ouvinte” (ADORNO, 1986: 121). Para Adorno e Simpsom, diferentemente
da “boa musica séria”, que possui uma estrutura irredutível a padrões estereotipados, a musica
popular é submetida a uma estandardização estrutural que induz a uma audição igualmente
estandardizada. Para os autores, a musica popular apresenta-se “pré-digerida”, dispensando o
ouvinte de esforços para seguir o fluxo musical, ao mesmo tempo em que lhe fornece modelos sob
os quais qualquer outra obra similar poderá ser subsumida. A musica popular promove certo
automatismo musical que reduz os detalhes das obras a meras engrenagens de uma máquina, de tal
maneira que o “detalhe musical impedido de desenvolver-se torna-se uma caricatura de suas
próprias potencialidades” (ADORNO, 1986: 119). Ao mesmo tempo,, a padronização é

875
complementada pela “pseudo-individualização”, procedimento que envolve os produtos da indústria
cultural com a aparência da livre-escolha, induzindo nos consumidores a ilusão de que a escolha e a
fruição da obra sejam resultado da autonomia individual. Esse procedimento é exemplificado pelos
autores com a “improvização normatizada” característica do jazz. O jazz, bem como a indústria
cultural como um todo, envolve-se em uma versão moderna do velho problema da “quadratura do
círculo”: “a estandartização de hits musicais mantém os usuários enquadrados. Por assim dizer
escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os
esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, ‘pré-digerido’” (ADORNO, 1986:
123).
O artigo em questão de Adorno e Simpson analisa igualmente outros procedimentos pelos
quais a indústria cultural busca legitimar-se mediante o apelo aos desejos do público ao mesmo
tempo em que dissimula uma questão fundamental: a heteronomia desses desejos. Em sua parte
final os autores desenvolvem uma análise dessa heteronomia que sugere implicações extremamente
significativas e férteis para o estudo dos produtos da indústria cultural, e é à apresentação destas
dimensões que nos deteremos a seguir.
Adorno e Simpson destacam o caráter problemático da aceitação pelo público das inovações
e modismos impostos pela indústria cultural. Essa aceitação é mediada sobretudo pela ambivalência
frente aos produtos. A postura ambivalente, que consiste na mescla de admiração fervorosa e
hostilidade, é notada com grande clareza no fato de ser muito comum que canções e ícones de
sucesso sejam ridicularizados como antiquados por seus fãs ao se tornarem obsoletos. Essa postura
é explicada pelos autores da seguinte maneira: a imensa desproporção entre a impotência de cada
indivíduo e o poder dos monopólios culturais compromete na raiz a própria capacidade individual
de resistência frente aos modismos da indústria cultural. O que poderia ser expressão do gosto
individual converte-se em ameaça de não-integração diante de poderes colossais que afrontam o
indivíduo, em um processo de intimidação permanente. Assim que os produtos tornam-se obsoletos
e são substituídos por outros, “gostos que tenham sido impostos aos ouvintes provocam desforra no
momento em que a pressão é relaxada” (ADORNO, 1986: 142). A impotência objetiva do indivíduo
diante dos poderes sociais repercute subjetivamente sob forma de sintoma, a saber, sob a forma de
angústia socialmente mediada. No capitalismo tardio a angústia primitiva experimentada pelo
homem diante dos poderes da natureza, que o ameaçavam com o perigo da aniquilação física, é
perpetuada pelo temor da não-integração nos grupos sociais (ADORNO, 1991: 143-144). Segundo
Adorno a adesão dos indivíduos aos produtos de qualidade claramente questionável da indústria
cultural é impulsionada pelo desespero perante a impossibilidade de uma adesão racional à

876
sociedade, condição heterônoma que os meios de comunicação se encarregam de perpetuar. “A
energia pulsional do homo economicus então requerida ao homo psycologicus é amor forçado,
inculcado coercitivamente em direção a algo antes odiado” (ADORNO, 1991: 144). Diante da
desproporção flagrante entre o poder das instituições e a impotência do indivíduo, a resistência à
socialização forçada exige forças sobre-humanas, cada vez mais raras em uma estrutura econômica
que se encarrega de minar exatamente a capacidade individual de resistir (ADORNO, 1991: 145).
Embora a capacidade de resistência seja permanentemente ameaçada pela angústia da não-
integração a ponto de esta converter-se em segunda natureza, ela não é meramente eliminada, uma
vez que sobrevive em estratos mais profundos da personalidade. A “resistência não desaparece
completamente na rendição a forças externas, mas mantém-se viva dentro do indivíduo e continua
sobrevivendo até mesmo no exato momento do consentimento. Aqui, o despeito torna-se
drasticamente ativo” (ADORNO, 1986: 143). Justamente nesse ponto a ambivalência manifesta-se
em sua modalidade mais perversa, pois os consumidores da indústria cultural passam então a
compartilhar do autoengano acerca da liberdade de escolha. A semicultura manifesta então sua
propriedade de ser “esfera do ressentimento”, em um ciclo vicioso que alimenta a reprodução do
fascismo. A angústia provocada perante a ameaça dos poderes sociais concentrados, à qual é
complementar a “vergonha despertada pela acomodação à injustiça proíbe a confissão do
envergonhado. Por isso, eles voltam o seu ódio antes contra aqueles que apontam a sua dependência
do que contra aqueles que apertam as suas algemas” (ADORNO, 1986: 143).
A indústria cultural exerce papel central nesse processo de esmagamento da capacidade de
resistência do indivíduo justamente por ser a esfera social para a qual se coloca o problema da
ocupação do tempo livre. Como o tempo livre oferece potenciais de decifração da reificação
operada durante o tempo de trabalho, a reprodução da dominação depende da conversão do tempo
livre em tempo de lazer administrado. Esta administração é eficiente na medida em que
fundamenta-se permanentemente na reiteração da falsa liberdade de escolha, pois é isso que protege
os indivíduos de terem de encarar sua condição de não-individualidade. Assim, a indústria cultural
oferece uma proteção duplamente falsa: contra a angústia da não-integração frente a poderes sociais
que prolongam o medo diante da natureza, e contra a consciência acerca do engodo da liberdade de
escolha na sociedade capitalista. É dessa forma que a indústria cultural pode se dar ao luxo de
permitir até a indignação com o capitalismo; “o que ela não pode se permitir é a abdicação da
ameaça de castração. Pois esta é a sua essência” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 132). Como a
compreensão do estado objetivo de impotência, de castração real a que são submetidos os
indivíduos, aparece como fonte insuportável de angústia, a capacidade de resistência é

877
perversamente convertida em sintoma: ressentimento deslocado pelo qual “o rancor do engano é
transferido para a ameaça de que ele se torne consciente e eles defendem com fervor a sua própria
atitude, já que isso lhes permite serem voluntariamente enganados” (ADORNO, 1986: 143).
O papel do entretenimento como mecanismo de defesa contra a angústia a duras penas
recalcada explica um aspecto essencial da relação da indústria cultural com seus consumidores.
Trata-se do fato de que mesmo a padronização evidente das mercadorias culturais, a mentira
manifesta, é insuficiente para gerar o inconformismo, uma vez que a angústia da não-integração aos
coletivos e em última instância à sociedade como um todo é suficientemente intensa para impedir a
confrontação racional entre os conteúdos da indústria cultural e aqueles que seriam requeridos por
uma sociedade emancipada. Dessa forma, o “segredo conhecido por todos” permanece não-revelado
na mesma proporção em que a expropriação da consciência apresenta-se como signo triunfante da
autonomia ma sociedade de massas. É significativo que a configuração afirmativa da ideologia
torna-se hegemônica frente à sua versão encobridora, em um momento histórico no qual a
integração dos indivíduos à sociedade apresenta-se como “socialização forçada”, sustentada pela
redução da individualidade a modelos padronizados de comportamento. A similaridade entre a
ideologia afirmativa e a expropriação da consciência é abordada por Franklin Leopoldo e Silva
como confluência entre a heteronomia subjetiva e as imposições do espírito objetivo:

“Um segredo só pode se manter ao mesmo tempo secreto e conhecido por todos quando todos se
fazem cúmplices da expropriação da consciência. Não é preciso que haja uma cumplicidade objetiva e
concertada; basta que a consciência e sua emancipação sejam consideradas assuntos da vida privada. Assim
os indivíduos não ficarão sabendo jamais qual a relação entre essa expropriação subjetiva e as elaborações do
espírito objetivo. Esse isolamento da consciência faz com que se confunda a pobreza dessa intimidade vazia
com autonomia, caso em que a fragmentação aparece como positiva, isto é, não há qualquer esforço para
apreender a totalidade, nem mesmo ideologicamente”(2003: 5).

A sincronia histórica entre a ideologia afirmativa e a consciência expropriada sugere


claramente que estamos diante de um aperfeiçoamento das cadeias de controle que conduz o
processo de dominação a patamares historicamente inéditos, justificando plenamente as noções de
“sociedade totalmente administrada” (Adorno) e “sociedade sem oposição” (Marcuse). Por outro
lado, vale lembrar o modo como Adorno e Simpson encerram seu texto sobre música popular. Para
os autores, “para ser transformado em inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente
poderia efetuar a sua transformação em homem” (1986:146). Essa afirmação, simultaneamente

878
incômoda, relativamente otimista e um tanto enig mática, justifica-se pela constatação de que há
somente um fino véu entre consciência e inconsciência, que praticamente dispensa a distinção entre
ambas as esferas. A adesão à música das paradas de sucesso é permeada pela resignação furiosa e
ressentida, virtualmente acessível pela consciência. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a
indústria cultural obtém a adesão das massas não pelo recurso ao condicionamento, que reduziria os
indivíduos à condição de “meros centros de reflexos socialmente condicionados” (1986:146).
Exatamente porque a ideologia já não mais atua predominantemente pelo encobrimento, mas pela
afirmação da realidade, um fino véu então se estabelece entre consciência e inconsciência, “a
espontaneidade é consumida pelo tremendo esforço que cada indivíduo tem de fazer para aceitar o
que lhe é imposto” (1986:146). A ideologia configura-se então como “mentira manifesta”,
afirmando cinicamente uma realidade que em sua estrutura permanece repressiva. Mas ao mesmo
tempo em que se fortalece, a ideologia, juntamente com a dominação, ao tornar-se cada vez mais
transparente, torna-se também permeável à compreensão. A adesão furiosa parece expor os limites
da socialização forçada. Como não se trata de mero condicionamento, mas de manipulação da
vontade dos indivíduos, o que indica que esta permanece viva, a dominação apresenta-se vulnerável
exatamente ao mostrar-se total:
O entusiasmo frenético implica ambivalência não só na medida em que está pronto a se
converter em fúria real ou em humor sarcástico para com seus ídolos, mas também na efetivação
dessa rancorosa decisão voluntária. O ego, ao forçar o entusiasmo, precisa hiper-reforçá-lo, na
medida em que o entusiasmo ‘natural’ não bastaria para cumprir a tarefa e vencer a resistência. É
esse elemento, o de um deliberado forçar, que caracteriza a histeria frenética e consciente de si
mesma. O fã da música popular precisa ser imaginado como percorrendo o seu caminho com olhos
firmemente fechados e dentes cerrados a fim de evitar que se desvie daquilo que decidiu aceitar.
Uma visão clara e calma colocaria em perigo a atitude que lhe foi infligida e que, por sua vez, ele
tenta infligir a si mesmo. A voluntária decisão inicial, em que seu entusiasmo se baseia, é tão
superficial que a mais leve consideração crítica a destruiria, a menos que fosse reforçada pela
mania, que, nesse caso, serve a um propósito quase racional (ADORNO e SIMPSON, 1986: 144-
145).
A ambigüidade que envolve o fã da música popular pode ser considerada em um sentido
ampliado, como uma condição válida para os consumidores da indústria cultural como um todo.
Dessa forma, constatamos que o estudo realizado por Adorno e Simpson antecipa as conclusões
mais expressivas da pesquisa sobre a Personalidade Autoritária realizada poucos anos mais tarde
(ADORNO 1965). Nesta pesquisa registrou-se que comportamento de defesa agressiva dos valores

879
dominantes na sociedade burguesa reflete o ódio reprimido contra a ordem social e econômica
opressora. Como a compreensão racional dos motivos dessa hostilidade tem de permanecer
reprimida, uma vez que expõe ameaçadoramente a contradição entre indivíduo e sociedade, o ódio
se manifesta mediante sintomas agressivos em geral dirigidos contra populações que encarnam a
diferença ou a fraqueza na sociedade burguesa, como é o caso de moradores de rua, imigrantes,
negros, indígenas, crianças, mulheres, homossexuais e prostitutas. Homologamente, assim como o
fascismo alimenta-se do sadomasoquismo da personalidade autoritária, mediante a defesa raivosa e
ressentida dos valores tradicionais, também o entusiasmo frenético diante dos inúmeros ícones da
indústria cultural mascara uma “voluntária decisão rancorosa”. Essa homologia estrutural esclarece
o vínculo entre fascismo e indústria cultural, revelando em ambos os tipos de adesão a presença
subterrânea do ressentimento reprimido perante a ordem social capitalista, que exige de todos
sacrifícios pulsionais sensivelmente desproporcionais perante as recompensas que oferece.
O “segredo conhecido por todos” configura-se, portanto, como um reconhecimento tácito
da mais absoluta inadequação entre as verdadeiras necessidades dos indivíduos e os produtos e
serviços oferecidos pela sociedade de consumo sob pretexto de satisfazê-las. Exatamente em virtude
desse abismo entre indivíduo e civilização burguesa a adesão social é sistematicamente reforçada
pelos meios mais variados de persuasão e convencimento, de modo a que não se desfaça o fino véu
que separa a socialização forçada da consciência crítica acerca da falsidade objetiva de seus
fundamentos. A atuação compulsiva dos produtores da indústria cultural e dos profissionais de
marketing e publicidade no sentido de preencher o “vácuo da consciência expropriada”, ao mesmo
tempo em que evidencia a eficiência da modalidade unidimensional da ideologia, deixa também
transparecer sua fraqueza. Pois o formato histérico e ressentido da adesão social em que os
indivíduos tornam-se “atores de seu próprio entusiasmo” sinaliza cada vez mais o fato de que os
indivíduos na sociedade massas não podem ser meramente considerados um “invertebrado
agrupamento de insetos fascinados”(ADORNO e SIMPSON, 1986:146). O apelo maníaco dos
profissionais mais bem pagos da sociedade burguesa à vontade dos indivíduos indica claramente a
natureza dialética do vínculo entre indivíduo e sociedade. Pois se a mobilização da vontade dos
indivíduos é o principal instrumento da indústria cultural, isso revela “que a vontade ainda está viva
neles, e que, sob certas circunstâncias, ela pode ser suficientemente forte para os livrar das
influências que lhes foram impostas e que perseguem seus passos” (ADORNO e SIMPSON, 1986:
146).

880
Referências bibliográficas

ADORNO, T. W. Estudio Cualitativo de las Ideologias. In: Adorno, T. W. ...et. al. La


Personalidad Autoritaria. Buenos Aires: Editorial Proyección, 1965.
_. Dialética do Esclarecimento - fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antô
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de Almeida. Rio: Z
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Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 2001.
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ADORNO, T.W. e SIMPSON, G. Sobre a música popular. In: A indústria cultural. In: COHN, G.
Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
ARANTES, P. E. O pensamento único e o marxista distraído. In: Zero à esquerda. São Paulo:
Conrad Editorial do Brasil, 2004.
HORKHEIMER e ADORNO. Temas básicos da sociologia. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo:
Cultrix, 1978.
LEOPOLDO e SILVA, F. Notas sobre a relação entre educação e negação. Texto
apresentado no Ciclo de Debates “Adorno Hoje” realizado no Instituto Goethe. São
Paulo: 2003.
MARCUSE, H. A Ideologia da sociedade industrial. Tradução: Giazone Rebuá. Rio de
Janeiro: Z
ahar, 1969.
ROUANET, S. P. Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986.

881
DANÇA E POLÍTICAS CULTURAIS: RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE
O PODER PÚBLICO, O PODER PRIVADO E O ARTISTA

Solange Borelli (UniABC)

Esse ensaio reflexivo, fruto das experiências acumuladas na área artística e da


produção cultural, objetiva apresentar considerações sobre a Dança e a sua produção dentro de
uma sociedade que favorece um mercado cultural onde os bens simbólicos e suas representações
são regidas por uma lei “...do maior número, no prazo mais breve e com um lucro mais alto
determinando o valor e o sabor do signo-produto”, conforme nos alerta Bosi (1999).
Temos como proposta repensar e avaliar as dinâmicas que se operam na Indústria
Cultural a fim de que as manifestações artísticas encontrem sentido e operacionalidade. E que
sobretudo, as relações que se estabelecem entre os diversos poderes que constituem uma
sociedade e o artista sejam coesas, consistentes e éticas.
Vivemos um constante movimento de re-organização social, econômica, política e
cultural na sociedade contemporânea. A Dança não está fora desse contexto, uma vez que ocupa
atualmente um espaço significativo nas discussões sobre políticas públicas e privadas na área
cultural. Espaço conquistado especialmente nos últimos cinco anos pela classe artística através
dos inúmeros fóruns de discussões e articulações entre os coletivos organizados espalhados pelo
Brasil.
As discussões permeiam temas de extrema relevância para a produção artística, e
vão desde a preocupação com a qualidade da formação e qualificação dos profissionais da área,
a legitimidade e a legalidade da ação do profissional, até a garantia de investimentos para
montagens de espetáculos, para circulação desses espetáculos, para a manutenção de
companhias de dança independente.
Além disso, inúmeras outras questões se infiltram nesse universo, e talvez, o ponto
mais nevrálgico seja a possibilidade de reconhecê-la em sua singularidade, e não atrelada ao
termo artes cênicas, lembrando que Artes Cênicas refere-se ao Circo, Dança, Mímica, Ó
pera e
Teatro. Colocar todas essas manifestações artísticas num mesmo caldeirão tem prejudicado
cada linguagem naquilo que lhes é próprio, na singularidade, na especificidade, na peculiaridade
de cada arte que não permite um tratamento geral.
Essa pauta foi apresentada e amplamente discutida na Câmara Setorial de Dança
atrelada a Câmara Setorial de Cultura – orgão consultivo vinculado ao Conselho Nacional de
Política Cultural (CNPC), que tem como atribuição fornecer subsídios e formular
recomendações para definir diretrizes, estratégias e políticas públicas para o desenvolvimento

882
das linguagens artísticas (artes visuais, circo, dança, música, literatura e teatro) e demais setores
culturais, em sintonia com os eixos centrais das políticas do Ministério da Cultura.
A Câmara Setorial de Dança foi a primeira a ser instituída (2005) e partiu da
intensa mobilização dos coletivos organizados e dos fóruns estaduais que se estabeleceram no
período de 2004. Dentro dessas discussões emergiram temas como: o incentivo à produção, a
ampliação do acesso à essa manifestação, a promoção da cidadania mediada pela Cultura e Arte
e o fortalecimento da produção artístico-cultural na Economia, uma vez que representa setores
capazes de gerar trabalho e renda.
Nessa trajetória, os profissionais da Dança tem buscado apoio político junto ao
Congresso Nacional para reivindicações dessa categoria, o que nos instiga a investigar com
maior profundidade as relações que se estabelecem entre o poder público, poder privado e o
artista da dança.
Mas o que ainda percebemos é o descompasso entre as políticas culturais
desenvolvidas até o momento uma vez que os Projetos e Programas voltados á área da Dança
não se garantem nem pela continuidade nem pela consistência dos propósitos. Ainda não se tem
clareza, dentro dessas esferas (poder público e poder privado), o conceito de cultura, de arte e de
sociedade.
Sabemos o quanto a sociedade tem dificuldade em entender as manifestações
culturais, e dentro delas a dança, como elemento simbólico, estético e pedagógico que produz
conhecimento e re-significa a existência humana. Sabemos também o quanto, os meios de
comunicação são responsáveis pela massificação de determinados valores, quase sempre
equivocados.
No que se refere à dança, essa problemática torna-se ainda mais evidente, pois, a
cultura corporal impressa e expressa na sociedade a vê quase sempre como mera atividade
física, desprovida desse poder simbólico citado anteriormente.
Nesse sentido, Katz (2003), poderia acrescentar:

“A sociedade também tem dificuldade em entender as atividades culturais como


produtoras de conhecimento para todos, e não somente para alguns poucos eleitos.
Os meios de comunicação são os responsáveis pela massificação de certos valores
em detrimento de outros. Em se tratando de produção cultural, ou ela não ocupa ou
ocupa um ‘cantinho’ muito reservado na mídia. Temos poucas chances para
mostrar para a sociedade o que é e para que serve a cultura. E precisamos, de uma
vez por todas, romper com essa idéia de que é preciso escolher entre ‘dar’ dinheiro
para a cultura ou ‘dar’ dinheiro para os transportes, para asaúde ou para a
segurança...Na cabeça do cidadão comum, existe uma verdade inconteste: é melhor
tapar o buraco da minha rua do que promover atividades culturais...”

883
As iniciativas no setor público e/ou privado, quando consistentes, flutuam
fragmentadas e isoladas, seja pelo aspecto regional, seja pelo aspecto político partidário, ou
mesmo conceitual e estético. Com isso a produção em dança vem amargando períodos
complicados, tentando sobreviver num mercado que produz a sua própria lógica de
funcionamento em detrimento à lógica de funcionamento das próprias manifestações culturais.
A importância de se pensar a Dança numa outra dimensão se faz pela própria
necessidade de fomentar essa linguagem dentro das suas especificidades e necessidades,
tratando-a como manifestação cultural que agrega valores indispensáveis à sociedade. Dentro
desse raciocínio emergem inúmeras outras discussões, das quais destacamos:
¾ A Dança, enquanto produto cultural num país que mantêm vínculos
com a industria de entretenimento, de puro divertimento descomprometido, submetidas
às imposições dos valores predominantes.
¾ A Dança, que por contingências do cotidiano, não se reconhece dentro
das políticas culturais desenvolvidas tanto pelo poder público como pelo poder privado,
e que sofre ainda com o vínculo placentário com as culturas européias ou com a
influência sufocante norte-americana.
¾ A Dança, enquanto processo de formação profissional, tem uma
realidade um tanto quanto caótica. Sua origem, na estrutura informal de ensino
(escolas, conservatórios, academias, oficinas pontuais, etc.), é característica própria da
diversidade da Dança. Estabelecer parâmetros de formação do artista da dança não é
tarefa fácil, considerando as culturais, regionais e transversais dessa linguagem.
Necessário e urgente repensar com visão estratégica as políticas voltadas para essa
área de atuação. A falta de uma diretriz geral e de um plano específico para esse segmento tem
propiciado uma série de equívocos que poderão se tornar em breve irreversíveis.
Hoje, muito mais do que atuar cenicamente, o artista da dança (intérprete ou
criador) busca a sua inserção no mercado cultural. diversos modos que possibilite a veiculação
do seu produto estético, da sua dança, do seu espetáculo.
Partimos da premissa que a criação intelectual e artística “...é gênero de primeira
necessidade para o espírito humano, fator condicionante do desenvolvimento individual e
coletivo. Por isto, é entendida como uma questão de interesse público, que exige e justifica
investimentos públicos diretos”. (Sarkovas,2003)
Outros aspectos devem ser considerados: os aspectos legais da atuação profissional
do artista da dança; os relacionamentos entre contratados e contratantes um tanto quanto
confusos; relações de trabalho que se estabelecem na informalidade; instituições diversas sendo
criadas na tentativa de cumprir um requisito fundamental: a representatividade da classe.

884
Dentro desse panorama a Dança vem buscando se organizar através da
criação/consolidação de coletivos: companhias de dança, associações, cooperativas, fóruns,
centros de estudo, universidades, cursos de pós-graduação, etc.
Listamos algumas prioridades que merecem uma reflexão e sobretudo, uma ação
efetiva para que esse panorama se altere de forma positiva:

1. Democratizar o acesso à cultura, em especial às artes contemporâneas e dentro delas à


dança contemporânea, pois, como sabemos alguns segmentos da produção artística são
mais dependentes de uma política cultural mais efetiva, mais bem pensada, mais
criteriosa – como é o caso das artes cênicas e dentro delas, a dança.
2. Ampliar as referências estéticas e conceituais a cerca desta linguagem.
3. Sensibilizar, qualificar e capacitar o cidadão através da apreciação, reflexão e interação
com o produto artístico.
4. Estabelecer uma comunicação direta com o público-alvo, rompendo resistências
levantadas frente à arte contemporânea.
5. Qualificar as relações entre os parceiros envolvidos nessa dinãmica – Poder Público,
Poder Privado e o Artista - onde todos beneficiam de uma relação de confiança
assegurada através do comprometimento mútuo. Essas relações que se processam entre
o corpo, a dança e a sociedade são fundamentais para a compreensão da realidade na
qual estamos todos inseridos.
6. Possibilitar a construção de vivências na escola, intermediadas pelas experiências
estéticas, possibilitando uma transformação social, sobretudo se essas vivências
transcenderem o espaço físico escolar e adentrar nos seus entornos, ou seja, a
comunidade local onde esta escola está inserida.
7. Redimensionar o entendimento que se tem da dança provocando alterações no modo de
pensar, agir e produzir dança, visa provocar transformações na sociedade em que
vivemos naquilo que nos ressentimos por ainda não ser: uma sociedade mais
democrática, protagonista de seu tempo, em que a arte e a sensibilidade encontram-se
num terreno de fertilidade impar.
Afinal de contas: do que realmente a dança precisa? Do que realmente o artista da
dança precisa? Qual é a importância desses coletivos? Como o artista enquanto criador,
envolvido na produção do seu objeto estético, se articula nesse contexto político ecultural tão
efervescente e veicula sua obra? Como estabelecer um vínculo mais justo entre o
desenvolvimento econômico e o desenvolvimento cu ltural de uma sociedade? Como transpor
esse abismo?

885
Bibliografia:

Bosi, Alfredo. Cultura brasileira. Temas e situações. São Paulo, Editora Ática, 1999.

Brant, Leonardo (org). Políticas Culturais, volume I. Barueri, SP, 2003.

Katz, Helena. O corpo que dança in Guia brasileiro de produção cultural 2004. Natale, edson
– Olivieri, Cristiane. São Paulo: Editora éZ do livro, 2003.

Ministério da Cultura/ Funarte. Revista das Câmaras Setoriais de Cultura. Ano I – nº 1 –


dez/2005 a março/2006.

Sarkovas, Yacoff. As fontes de financiamento da cultura in Lições de dança. – Rio de


Janeiro: UniverCidade Editora, 2003.

Contato: Solange Borelli (solange_borelli@


yahoo.com.br)

886
Da conformação à crítica: educação e socialização em Herbert Marcuse

Stefan Fornos Klein1

***

Pretendo, a seguir, abordar o ponto de vista crítico adotado por Herbert Marcuse

em face do conceito de educação como entendida, notadamente, moderna e

contemporaneamente na literatura da teoria social. No intuito de contextualizar o modo

como educação e socialização são tratadas por Marcuse, é importante remeter

concisamente a um tema que perpassa toda sua obra: a interpretação crítica da forma de

racionalidade vigente em cada momento histórico. Isso dá-se visto que o ser social pauta

as suas ações pela razão, mesmo que essa seja a expressão, em certos contextos, da total

heteronomia individual, como sob a égide da racionalidade tecnológica, identificada por

ele no artigo de 1941 “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna”, e que,

posteriormente, é desenvolvida e desemboca no conceito do pensamento

unidimensional2. É nesse sentido que procura contrapor, a esse viés de razão como

conformação humana, a importância da realização histórica da razão, qual seja, o

objetivo de proporcionar a emancipação do ser humano em face da realidade alienada e

alienante a qual, portanto, de modo algum fomenta a autonomia.

A existência da forma de agir sob a orientação da teoria, ou seja, a concepção da

unidade de teoria e prática, está ancorada preponderantemente sobre a educação crítica,

1
Mestrando em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, com pesquisa financiada por bolsa de mestrado do CNPq. Este texto é a reprodução integral da
comunicação apresentada em 1ºde setembro de 2006, no Congresso Internacional “A Indústria Cultural
hoje”, realizado na Unimep, em Piracicaba.
2
Cf. MARCUSE, Herbert, 2004 [1941]; 2004 [1964].

887
que fornece os elementos para reconhecer as tendências presentes no processo social.

Com esse objetivo Marcuse identifica, em diversos de seus escritos, a importância de

conceber a educação como visando a preparação do ser humano para uma sociedade

vindoura, diferente da atual, e não somente para a integração ao estado de coisas

vigente. Ele calca esse argumento sobre a teoria pedagógica de Kant: “Kant declarou

como fim [Z
iel] da educação educar as crianças não de acordo com o estado presente,

mas de acordo com um estado futuro, e melhor, do gênero humano, de acordo com a

idéia de humanitas. Este fim [Z


iel] ainda contém a derrubada da constituição presente

do ser humano”3. É nesse âmbito que ele se posiciona de modo oposto ao conceito de

educação como classicamente estabelecido na sociologia por Émile Durkheim4, que

argumentava precisamente em favor da preparação e adequação dos indivíduos à

sociedade existente.

Para a teorização de Marcuse, é central o conceito de formação (Bildung) como

cunhado no contexto da filosofia da ilustração, que tem em mente um problema

colocado no debate entre Immanuel Kant e Moses Mendelssohn, em fins do século

XVIII, que dizia respeito às possibilidades efetivas do ser humano ser produtor

consciente da realidade e, desse modo, emancipar-se5. É a partir dessa referência que a

educação (e ainda mais certamente a formação) precisa, incondicionalmente, extrapolar

a sua tarefa de mera atividade conformadora. O ser humano crítico, a saber, o indivíduo,

no sentido forte do termo, deve adquirir consciência no que tange à produção da

3
MARCUSE, Herbert, 2004 [1966], p. 189 – grifo no original. Cf. também Id., 2004 [1972], p. 34 e Id.,
2004 [1965].
4
Cf. DURKHEIM, Émile, 1967 [1922].
5
O problema central situava-se em torno da definição do termo Aufklärung (traduzível tanto por
“esclarecimento” quanto por “ilustração”), que procuravam explicar. É, portanto, a capacidade de servir-
se do seu próprio intelecto que torna o ser humano autô nomo e é apenas desse modo que advém a
emancipação: quando o raciocínio autônomo lhe possibilit a a emancipação no sentido estrito do termo, de
se tornar independente face a outrem, de não depender da liderança de outro. Cf. KANT, Immanuel 1975
[1784] e MENDELSSOHN, Moses, 1992 [1784].

888
totalidade social, do meio ambiente e do ser social para, assim, poder agir em face deles.

Qualquer proposta de mudança social radical que prescinda desse parâmetro está, na

interpretação marcuseana, fadada ao fracasso.

Na concepção clássica de educação, referida a Durkheim, os dois principais

mecanismos de socialização são a família e a escola. A alteração desses parâmetros na

contemporaneidade é um dado patente, notadamente no que se refere ao decréscimo da

participação da família na inculcação dos valores. Com isso em mente, é importante

reter que um dos elementos para a abordagem marcuseana do tempo presente são as

análises de Max Horkheimer sobre a reorganização da família no esteio do declínio da

autoridade paterna, na passagem do capitalismo de livre iniciativa para o capitalismo

organizado dos grandes monopólios de poder econômico, político e cultural 6. Essa

transformação das relações de produção retira as bases da função socializadora da

família, atingindo os mecanismos essenciais de constituição da individualidade e

expressando a abolição do indivíduo na sociedade tecnológica, como referido em Eros e

civilização7. No sistema de administração objetiva vigente, parece que os indivíduos

“saltam” a fase da individualização: “o átomo genérico torna-se diretamente um átomo

social”, em um processo de socialização do qual estão ausentes as experiências

efetivamente pessoais. “A organização repressiva das pulsões parece ser coletiva, e o

ego parece ser prematuramente socializado por todo um sistema de agentes e agências

extrafamiliares. Já no tempo pré-escolar a vizinhança, o rádio e a tv fixam os padrões

comuns da conformidade e da revolta. Os desvios desses padrões não são tanto

rechaçados no seio da família, quanto fora dela e contra ela. Os especialistas dos

meios de comunicação de massa transmitem os valores requeridos; eles oferecem o

6
Cf. HORKHEIMER, Max, 1985 [1936].
7
Cf. MARCUSE, Herbert, 2004 [1955], p. 86.

889
treinamento perfeito de dedicação, perseverança, personalidade, sonho e romantismo.

Com essa educação a família não mais consegue competir”8.

Desse modo, surge o espaço que implica a ascensão no grau de importância da

socialização regida pela indústria cultural. Marcuse apontou alguns elementos desse

processo ao destacar, em seu artigo “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, a

centralidade que a propaganda havia adquirido para a organização do regime nazi-

fascista alemão. Posteriormente, observa similaridades flagrantes no que se refere ao

aparato da democracia de massas nos Estados Unidos, que ele chega a denominar,

também, de “democracia totalitária”.

Em artigo de 1965 intitulado “Para uma redefinição da cultura”, esse diagnóstico

desemboca na distinção entre a cultura, entendida como um processo de humanização

no sentido da realização do ser social emancipado, e a civilização, definida como o

domínio do reino da necessidade e das falsas necessidades humanas. Sob a hegemonia

da civilização predomina a ‘democracia’ ma ssificada, contexto em que a realidade

imediata é entendida como a verdade. Assim, somente o fomento desse conceito de

cultura proporciona a existência da razão que não endossa o controle da natureza e do

ser humano, mas busca as suas liberdade e felicidade.

Nesse contexto, a prática teórico-crítica encontra sua existência somente no

âmbito de uma educação crítica, que procure desanuviar as relações sociais reificadas da

sociedade tecnológica e, desse modo, fornecer os elementos que possibilitem a reflexão

individual face aos absurdos, à barbárie e às obscenidades intrínsecas ao modo de vida

capitalista. Um dos alicerces apontados por Marcuse para pensar os fundamentos da

construção de outra realidade é o âmbito da dimensão estética, calcada sobre a

8
MARCUSE, Herbert, 2004 [1955], ambas as citações p. 87 – grifo no original.

890
expressão artística que tem como eixo a capacidade de imaginação (Einbildungskraft),

que detém um papel chave no levar a cabo do que se pode denominar ‘reeducação’ do

ser. A referência às Cartas sobre a educação estética do ser humano, de Friedrich

Schiller, é um parâmetro fulcral da argumentação marcuseana9. É ali que se faz presente

uma dialética entre a estética como mediadora dos sentidos humanos e a estética como

busca do belo, expressa na figura de uma sociedade não-repressiva baseada sobre Eros,

a pulsão de vida.

Presente desde o início de sua pesquisa acadêmica, como em sua tese de

doutoramento, de 1922, acerca do romance de artista alemão, a questão do exercício da

fantasia no contexto da imaginação e do que Marcuse denomina de alienação artística

desemboca, em seus escritos posteriores, no conceito da nova sensibilidade como fonte

para a revolta subjetiva, notadamente desenvolvido no Ensaio sobre a libertação. Ali, a

arte se faz presente como portadora da utopia emancipadora sob a égide do ethos

estético; do conteúdo político presente na contra-cultura sob a música, a literatura e a

linguagem de protesto praticados nos Estados Unidos; do dado permanente da fantasia e

da visada de uma vida despida de trabalho alienado como indicadores de que há

perspectivas efetivas de uma visão radicalmente diferente da realidade.

A partir disso Marcuse enfatiza, de modo marcado, a importância de erigir um

novo ser humano, no registro da transformação da subjetividade que pode ser

proporcionada somente no contexto da reflexão que tematize a lógica regente da

totalidade social. “A revolta contra o capitalismo tardio tende a uma totalização das

reivindicações político-econômicas, a uma profunda transvaloração dos valores: o seu

fim [Z
iel] seria o desenvolvimento do socialismo como a progressão do trabalho

9
Cf. SCHILLER, Friedrich, 1951 [1793-1794]. O capítulo IX de Eros e civilização é intitulado “A
dimensão estética”. Para a referência a Schiller, cf. MARCUSE, Herbert, 2004 [1955], p. 158 e segs.,

891
alienado para o trabalho criador; do domínio da natureza para a cooperação; da

repressão para a emancipação dos sentidos; da razão exploradora para a razão

solidária. Tarefa da teoria seria livrar essas possibilidades de seu véu utópico e defini-

las como prática possível”10. São, portanto, tangíveis os elementos norteadores das

relações sociais radical e qualitativamente transformadas que devem possibilitar uma

vida que contemple a felicidade individual mediata. Trata-se não de remeter a uma

totalidade ideal-utópica, mas sim de formular uma utopia concreta, no sentido

materialista, como ponto de partida para delinear o abstrato e, desse modo, ter a teoria

como guia essencial para a prática.

A sociedade precisa tomar, para si, as rédeas da formação do ser humano e da

produção da cultura, de modo a poder disseminar a fundamental rejeição dos valores

subjacentes ao status quo, processo esse que Marcuse denomina de grande recusa, visto

que é condição sine qua non resistir à introjeção dos valores que promovem a

conformação individual. “A determinação social da consciência é, sob a administração

e a introjeção capitalistas totais, quase que completa e imediata; estas são injetadas

diretamente em cada um. Sob essas condições o início é uma mudança radical da

consciência, o primeiro passo para a transformação das condições sociais; nasce um

novo sujeito. Do ponto-de-vista histórico mais uma vez o período de esclarecimento

[Aufklärung] precede a transformação material - um período de educação, mas de uma

educação que se converte em prática: em demonstração, confrontação e rebelião”11. É

possível observar aqui como em seus escritos posteriores a 1964, ou seja, a partir do

momento em que se vê face a movimentos que tanto pregam quanto executam a ação a

partir da elaboração teórica, Marcuse aprofunda a associação entre educação e prática

assim como, para uma interpretação que aponta a convergência entre ambos, cf. BEHRENS, Roger, 2005.
10
MARCUSE, Herbert, 2004 [1974], p. 153.

892
política, precisando a origem do processo revolucionário como cada vez mais

dependente do esclarecimento.

A antevisão dessa realidade inteiramente outra esbarra em diversos obstáculos

objetivos, inclusive no próprio contexto da organização da educação. Por estar a cargo

do Estado não se pode esperar, de forma alguma, que haja amplas iniciativas em

oferecer espaço a movimentos proponentes de uma educação que aborde conteúdos

subversivos. É por conta desse diagnóstico que Marcuse reconhece: “A mudança

qualitativa da educação é mudança qualitativa da sociedade, e existem perspectivas

reduzidas de que uma tal mudança possa ser introduzida de maneira organizada e de

modo administrativo [verwaltungsmäßig] ; educação permanece a sua exigência

principal. A contradição é real: a sociedade existente precisa oferecer a possibilidade

para a educação visando a uma sociedade melhor, e uma educação desse tipo pode

tornar-se ameaçadora para a sociedade existente. Por isso não podemos esperar uma

reivindicação comum para tal educação, nem ratificação e ajuda de cima”12.

Desse modo, Marcuse argumenta em favor do que denomina de “dialética da

cultura” ou “dialética da educação”, que carrega, em si, a representação contraditória

dessa sociedade cindida. Enquanto a educação, sob a égide dos mecanismos

conformadores da indústria cultural, permanece restrita ao treinamento que não forma

indivíduos, mas sim prepara a infra-estrutura da dominação, a reificação da cultura pode

dar vazão, somente, à civilização repressiva no contexto do princípio de desempenho, a

saber, de uma competição incessante e destrutiva entre os indivíduos. Persiste, portanto,

a ideologia que declara essa pseudocultura do trabalho alienado como a sociedade

humana mais avançada. Em virtude desse viés torna-se necessário atingir a

11
MARCUSE, Herbert, 2004 [1969], p. 285.
12
MARCUSE, Herbert, 2004 [1966], p. 189.

893
subjetividade de cada um, de modo a provocar não apenas a vontade, mas a necessidade

da transformação radical. Esta decorre da socialização teórico-crítica, que coloca a

descoberto as contradições constituintes da sociedade repressiva, como a obsolescência

planejada subjacente a essa riqueza produtiva aparente. Assim sendo, um dos principais

mecanismos de origem da dominação pode ser subvertido de modo a, então, moldar o

desenlace da consciência crítica, que é o único caminho possível para a revolução total

requerida por Marcuse: a revolução tanto pulsional quanto material.

Referências bibliográficas

BEHRENS, Roger. “Schillers Schönheit. Oder das Gesetz der Befreiung”. In: Polizey!
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Disponível em: w < ww.marcuse.org/herbert/booksabout/00s/05BehrensSchiller.pdf>
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m Lourenço Filho. São
Paulo, Melhoramentos, 1967 [1922].

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_ Triebstruktur und Gesellschaft - Schriften [Eros e civilização]. Trad. Alfred
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_ Der Eindimensionale Mensch - Schriften [A ideologia da sociedade industrial
avançada]. Trad. Alfred Schmidt. Springe, zu Klampen, 2004 [1964], v. 7.

894
._ “Bemerkungen zu einer Neubestimmung der Kultur” [Comentários a uma
redefinição da cultura]. Trad. Alfred Schmidt. In: ._ Schriften. Springe, zu
Klampen, 2004 [1965], v. 8, pp. 115-135.

. “Das Individuum in der


_ Great Society” [O indivíduo na Great Society]. Trad. Alfred
Schmidt. In: ._ Schriften. Springe, zu Klampen, 2004 [1966], v. 8, pp. 167-193.

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_ Versuch über die Befreiung [Ensaio sobre a libertação]. Trad. Helmut Reinicke e
Alfred Schmidt. In: ._ Schriften. Springe, zu Klampen, 2004 [1969], v. 8, pp. 237-
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Universidade de São Paulo, v. 19, pp. 59-65, 1992 [1784].

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Schiller Werke. Salzburgo, Das Bergland-Buch, 1951 [1793-1794], v. 1, pp. 527-590.

895
O corpo na imprensa portuguesa

Susana HENRIQUES

Investigadora Associada do CIES/ISCTE (Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do


Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa); Docente no IPL/ESEL (Instituto
Politécnico de Leiria – Escola Superior de Educação de Leiria)

A presente comunicação pretende fazer uma discussão dos primeiros dados resultantes de uma
investigação em curso1, cujo objecto de estudo se centra na procura de entendimento para a
forma como os media expressam e constituem os consumos e os estilos de vida actuais –
nomeadamente os associados ao corpo.
Nas sociedades actuais, o info-entretenimento traduz uma adaptação da lógica do marketing por
parte de uma informação que procura tornar-se mais apelativa. John McManus desenvolve a
teoria comercial da produção de notícias que incorpora a ideia de que as empresas de media (ou
os media como empresas) competem entre si no mercado – pelas audiências, pela publicidade,
pelas fontes e pelos investidores. À medida que as redacções de informação se tornam mais
permeáveis a esta lógica mercantilista e que o jornalismo passa a servir o mercado, questionam-
se as implicações na função social do jornalismo (McManus, 1994:1): as notícias proporcionam
uma imagem mais clara do mundo ou o facto das notícias se tornarem, de uma forma mais
explícita, uma mercadoria faz com que, progressivamente, percam o seu valor informacional?
Já para os teóricos da Escola de Frankfurt os meios de comunicação eram responsáveis pela
difusão massificada, mas sedutora, de produtos culturais estandardizados, homogeneizados e
esterotipados. Estas características dos produtos culturais contribuíam para facilitar a sua venda
e aumentar os lucros da indústria cultural. Daqui resultaria um entorpecimento das massas, que
ficavam, assim, mais vulneráveis à manipulação (Adorno; Horkheimer 1977). McManus não é
tão determinista quanto à influência da lógica de mercado nas notícias, mas identifica algumas
das implicações. Este “jornalismo de mercado” atrai uma audiência com um duplo objectivo:
informar e vender aos anunciantes.
Daqui decorre, nomeadamente, uma valorização da imagem pessoal nas sociedades actuais.
Porque os actos, os gestos, as representações, geralmente construídas, são performativos no
sentido em que a essência ou identidade que eles pretendem expressar é fabricada e sustentada

1
No âmbito do Programa de Doutoramento do Departamento de Sociologia do ISCTE, com o apoiada da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia (FCT)

896
através de sinais corporais e outros meios discursivos (Butler, 1990). Daí a importância do
corpo, enquanto categoria de análise.
O objecto empírico passou essencialmente pela recolha e análise de notícias em jornais e
revistas cuja temática de fundo se relacionasse com estas formas emergentes de
“(re)apresentação” (Santos, 2000) dos consumos e dos estilos de vida relacionados com o corpo.
Esta recolha realizou-se entre os meses de Dezembro de 2004 e de 2005 na imprensa de maior
circulação2: Expresso; Visão; Jornal de Notícias, Correio da Manhã e O Público de sábado e
domingo.
Foram recolhidos 118 artigos noticiosos relacionados com o culto do corpo. Este corpus
resultou de uma pesquisa de cada edição “página a página” (Ponte, 2005). Seguida de uma
caracterização que pretende ajudar a perceber quais os media em que estas temáticas têm maior
expressão e as eventuais diferenças na respectiva abordagem. Numa segunda fase procedeu-se à
análise de conteúdo, que assentou em variáveis formais (como a assinatura do texto, a
proveniência da informação, as vozes citadas, a localização geográfica) e temáticas, de natureza
operatória (como o espaço representado e conteúdo temático das categorias definidas, que tem
por base as respectivas construções sociais e culturais), para uma primeira organização dos
artigos recolhidos (Ponte, 2005). Finalmente, procedeu-se a uma análise crítica do discurso dos
artigos sobre o corpo, com o objectivo de perceber a existência de formas diferentes de falar dos
consumos e dos estilos de vida, quer os que são expressos, quer os que são constituídos, porque
emergentes, nos produtos informativos da imprensa escrita nacional, actualmente.
São os resultados desta análise que de seguida se apresentam e discutem. Comecemos pela
análise de conteúdo, apresentando a análise categorial de frequências (Bardin, 1995).

2
Os dados relativos às audiências da imprensa resultam da combinação de diversas fontes: Relatório anual
OBERCOM (Observatório de Comunicação Social) 2003 / 2004; Marktest, bareme de imprensa; APCT (Associação
Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação). A recolha e análise das notícias das referidas fontes fez-se, no
intervalo dos doze meses previstos, em períodos de dois meses alternados com outros dois de paragem. Isto é,
procedeu-se à recolha de notícias nos meses de Dezembro de 2004 e Janeiro de 2005; Abril e Maio de 2005; Agosto e
Setembro de 2005. Na prática, isto representa um leque de informação que abrange meio ano em períodos
descontínuos de dois meses.

897
Quadro I – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função da fonte
Fontes
Expresso --
Única 7
Única Guia 2
Correio da Manhã --
Correio Vidas 28
Domingo 2
Jornal de Notícias 7
Grande Reportagem 4
Notícias Magazine 15
Público -
Público Fugas 1
XIS 23
Pública 20
Visão 6
Visão Sete 3
Tal como havíamos já constatado, numa fase exploratória deste trabalho3, são os suplementos de
fim-de-semana dos jornais que constituem a principal fonte deste tipo de artigos informativos,
com forte presença da lógica de marketing. Daí que tenha sido esta a orientação seguida na
recolha empírica.

Quadro II – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função da autoria do texto e da foto /
ilustração
Autoria
Texto sem assinatura 2
Texto assinado... 116
... por jornalista 84
... por pessoa externa com colaboração regular 18
... por pessoa externa sem colaboração regular 14
... por leitor -
Foto / ilustração assinada 38
Foto / ilustração sem assinatura 80
Sem foto / ilustração -

3
Este estudo exploratório foi apresentado na VI Conferência da Associação Europeia de Sociologia – Ageing
Societies, New Sociology. Comunicação: Consumption and life styles in the mass media, Múrcia, 2003.

898
Podemos verificar a partir deste quadro que quase todos os artigos são assinados (à excepção de
dois), principalmente por jornalistas. Ao contrário das fotos e/ou ilustrações que, na sua maioria
não têm qualquer identificação relativa à autoria.

Quadro III – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função da proveniência da informação
Proveniência da informação
Agências, fontes de rotina ---
Fontes públicas, institucionais ---
Iniciativa dos leitores ---
Fontes não oficiais, ONG’s 2
Colaborador / correspondente 14
Iniciativa do próprio jornal 3
Outros media 4
Outra, não identificável 95

Relativamente à proveniência da informação, importa destacar que, em 95 (80,5%) dos casos


não foi possível identificar a sua origem. No entanto, nos artigos em que foi possível, a
informação resultava principalmente de colaboradores ou correspondentes.

Quadro IV – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função do género jornalístico


Género jornalístico
Notícia breve 1
Fotolegenda, Fotocomentário ---
Catoon ---
Notícia desenvolvida, montagem 18
Reportagem ---
Entrevista ---
Opinião, crítica 1
Divulgação, aconselhamento 92
Coluna, crónica 1
Editorial 1
Dossier, destaque 3
Inquérito, estudo 1
Análise ---
Carta do leitor ---

899
Embora haja 18 notícias desenvolvidas, com cruzamento de informações de ordem diversa, a
grande maioria (92) insere-se na categoria “divulgação, aconselhamento”. Trata-se de artigos
que, ao abordar temáticas diversas relacionadas com os rituais associados à imagem corporal e à
beleza, apresentam também um conjunto de sugestões relativas aos produtos mais indicados à
situação apresentada. Por exemplo, a rubrica semanal da revista XIS “Ao espelho”, onde, a
partir de um artigo em que se explica a importância de cuidar das várias partes do corpo –
mãos4, boca5, olhos6, pele7, cabelos8, busto9... – se apresenta uma coluna com produtos
sugeridos para melhor assegurar esses cuidados. Estas sugestões são acompanhadas de uma
imagem do produto, uma breve descrição das principais funções, bem como a respectiva marca
e preço.

Quadro V – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função das vozes citadas / personagens
Vozes / personagens
Personagem principal 35
Pessoa Comum Personagem secundária 4
Personagem principal 10
Pessoa famosa Personagem secundária 3
Personagem principal 19
Perito, especialista Personagem secundária 10
Personagem de Personagem principal ---
animação / ficção Personagem secundária ---
Personagem principal ---
Famílias Personagem secundária ---
Organizações – Personagem principal ---
ambientais, cívicas... Personagem secundária ---
Personagem principal ---
Outra, não Personagem secundária ---
especificada Ambas 54

4
XIS, Ao espelho. “Mãos cuidadas”, 14 Maio 2005 – Fernanda de Andrade.
5
XIS, Ao espelho. “Boca perfeita”, 23 Abril 2005 – Fernanda de Andrade.
6
XIS, Ao espelho. “Olhos perfeitos”, 10 Setembro 2005 – Fernanda de Andrade.
7
XIS, Ao espelho. “Esfoliar a pele”, 27 Agosto 2005 – Fernanda de Andrade.
8
XIS, Ao espelho. “Cabelo Saudável”, 08 Janeiro 2005 – Fernanda de Andrade.
9
XIS, Ao espelho. “Busto perfeito”, 22 Janeiro 2005 – Fernanda de Andrade.

900
A maioria dos artigos não apresentava explicitamente personagens, no sentido de “vozes
citadas” – ou seja, personagens com voz activa no discurso produzido. E, quando o fazia,
tratava-se sobretudo de personagens comuns ou de especialistas, respectivamente.

Quadro VI – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função da localização geográfica


Localização geográfica
Local 20
Regional ---
Nacional 9
Europa, UE 1
EUA, Canadá, Austrália 4
América Latina, do Sul 2
África ---
Ásia ---
Vários 7
Sem especificação 74

Também a localização geográfica foi, em 74 artigos, impossível de determinar. Contudo,


destacam-se os artigos de âmbito local.

Quadro VII – Distribuição dos artigos sobre o corpo em função do espaço representado
Espaço representado
Quotidiano 2
Imaginário (ficção, virtual) ---
Natural ---
Doméstico 1
Laboral ---
Educativo ---
Entretenimento 1
Consumo 47
Público 4
Privado 37
Outro 26

901
Os espaços maioritariamente representados foram o espaço de consumo e o espaço privado. O
espaço de consumo refere-se principalmente a artigos que, de alguma forma, continham
referências, ou apelos, ao consumo; enquanto o espaço privado, remetia essencialmente para
ambientes mais íntimos. De realçar ainda que na categoria “outro” se encontram referências a
Spas, ginásios, clínicas de estética e outras instituições ligadas aos cuidados com a imagem
corporal.

Depois desta análise categorial – e em consequência desta – procedeu-se ainda uma arrumação
dos artigos, mais orientada por princípios interpretativos. O objectivo foi o de fornecer um
primeiro esboço das notícias recolhidas em cujo tema central era o corpo, por grandes áreas de
conteúdo temático.
Daqui resultou um primeiro grande subgrupo relativo aos cuidados corporais de beleza e à
estética. Este, é constituído por peças relativas a: instituições (SPA, clínicas, ginásios...);
técnicas (cirurgia, acupunctura...); produtos (cosméticos, perfumes...); localizados (cabelos,
rosto, lábios, pés...). No segundo subgrupo, composto por outros (terceira idade; roupas
maiores; voar em grande estilo; caras pálidas; marcas do stresse; manipulações e imagens
alteradas; sofrer para ser bela – os perigos da moda; o drama de ser gordo (editorial); beleza na
morte; a ditadura do corpo...). Este último conjunto de notícias é composto por artigos
dispersos, quanto ao assunto tratado, e que, por isso, não são susceptíveis de serem agrupados.
Interessa agora olhar com mais pormenor para as principais características dos artigos aqui
reunidos.
Comecemos pelos artigos relativos às instituições. Estes, são compostos por títulos como,
“Dossiê Boa Forma”10, onde se apresentam diversas propostas, tendo em conta a aproximação
do Verão: “Terapia pela água”, “Spas de Portugal”, “Desportos molhados”, “Dietas”, “Celulite”.
Um outro conjunto de artigos dá conta de 12 Spas visitados11, experimentados e recomendados
por Marisa Cruz, que, durante 12 semanas percorreu o país. Apresentam-se ainda diversos Spas,
em que se divulga o tipo de serviços aí prestados à beleza12. A imagem do corpo aqui presente é
a de um produto social, uma construção que representa um projecto que se insere em sistemas
de significado imbuídos de poder (Fox, 1997). Estes sistemas de significado são partilhados e
assentam numa imagem de perfeição possível de ser alcançada através de técnicas que
devolvem o corpo à natureza (Babo, 2002).

10
Única, 14 Maio 2005.
11
Jornal de Notícias, 02, Abril, 09 Abril, 16 Abril, 23 Abril, 30 Abril, 07 Maio, 14 Maio, 2005.
12
Por exemplo: Correio Vidas, Em forma. “Um banho de algas para adelgaçar”, 28 Maio, 2005; Visão Sete, Beleza.
“Celebração dos sentidos”, 16 Dezembro, 2004.

902
Os artigos agrupados em áreas temáticas referentes a técnicas, produtos e localizados pretendem
apresentar um conjunto de soluções, mais ou menos rápidas e eficazes de “modelação” corporal
de acordo com padrões estéticos “ideais”. Giddens (1994) situa estas preocupações em
contextos da modernidade tardia, que influenciam o trabalho sobre o corpo, enquanto local de
interacção e de apropriação. Assim, o corpo vai sendo refeito reflexivamente perante uma
diversidade de opções e de possibilidades. Apresentamos, de seguida, alguns títulos ilustrativos:
“Reengenharia estética”13; “Aspirações de ano novo”14; “Chiclete «wonderbra«”15; “Para uma
pele dourada”16.
Finalmente, no subgrupo temático, outros, encontramos uma série de peças que abordam temas
dispersos. Po exemplo, o star sistem enquanto modelos a seguir: as oscilações de peso das
estrelas de Hollywood, ditadas pelos diferentes personagens a encarnar – “O peso de
Hollywood”17 – e a apresentação do personal trainer de estrelas como Tom Cruise, Dennis
Quaid, Gena Davis, Demi Moore, Nicole Kidman, entre outros – “O segredo das estrelas”18. Na
cultura de massas, que caracteriza as sociedades actuais, a adopção de comportamentos
modernamente valorizados e a imitação de modelos positivamente conotados, das figuras
públicas e das “estrelas”, representa uma forma reflexiva de construção do eu, possibilitando a
integração e a valorização social.
Esta arrumação por subgrupos temáticos constituiu uma base para, de seguida, se proceder à
análise crítica do discurso de alguns dos artigos mais significativos – na medida em que são
mais ilustrativos – tendo por base a orientação deste estudo, no âmbito do jornalismo de
mercado. Seguiu-se, assim, uma amostra intencional, orientada pelos fundamentos teóricos
desenvolvidos e pelo conhecimento aprofundado do material empírico.
Destacamos dois artigos: “...haverá alguém mais bela do que eu?”19 e “A ditadura do corpo”20
(note-se que este é o artigo que compõe a capa da revista). Em ambos, se apresentam exemplos
de pessoas que recorreram à cirurgia estética para melhorarem a sua figura. No primeiro caso
destaca-se uma esteticista que “sacrificou umas férias de Verão para por dois mil euros, fazer a
redução do abdómen e o levantamento dos seios.”, a par de outros exemplos; no segundo,
acompanhou-se o actor Paulo Nery “nas várias fases do processo de embelezamento”. Ambos

13
Pública, 04 Setembro 2005 – Maria Antónia Ascensão.
14
Grande Reportagem, 08 Janeiro 2005 – João Lopes Marques.
15
Única, 02 Abril 2005 – Filipa Moroso (coord.).
16
Correio Vidas, 14 Maio 2005 – Maria Manuel Costa.
17
Única, 04 Dezembro 2004 – Rui Henriques Coimbra.
18
Correio Vidas, 13 Agosto 2005 – Sónia Dias.
19
Visão, Sociedade. “...haverá alguém mais bela do que eu?”, 19 Maio 2005 – Clara Soares; Ana Carina
Moreno.
20
Única, “A ditadura do corpo”, 03 Setembro 2005 – Bernardo Mendonça.

903
configuram um entendimento do corpo como parte de um projecto pessoal da auto-identidade
que define o indivíduo das actuais “sociedades de consumo” (Edwards 2000).
Ainda em ambos os artigos remete-se para um dos contos tradicionais infantis clássicos, a
História da Bela Adormecida, em que a Rainha Má pergunta ao espelho se existe alguém mais
bela do que ela própria. Num dos casos, logo no título; no outro, num subtítulo interno –
“Espelho meu...”. Situamo-nos, assim, enquanto leitores, no mundo da fantasia, em que não há
impossíveis. Vão neste sentido os comentários recolhidos:
“«Hoje fazemos o que queremos do nosso corpo», acredita Ana Freire. Aos 23 anos, cumpriu o
sonho de ter um peito maior. A cicatriz nas axilas é mínima, o pós-operatório é que custou mais.
Ainda assim, acha que foi a melhor coisa que fez – por seis mil euros: «já não me lembro do
dinheiro que gastei nem das dores que senti; agora sinto-me autoconfiante», argumenta. Paulo
Sobral, 37 anos, ganha-lhe aos pontos. Pintor decorativo, submeteu-se a uma lipoaspiração
abdominal («Não gosto de desporto e no ginásio os resultados seriam lentos») e orgulha-se dos
implantes capilares acabados de fazer. Pelo maio, não resistiu a experimentar os preenchimentos
e o botox – ou toxina botulínica, um paralisante muscular usado para alisar a expressão...”21
«É óbvio que não quero ser mais novo. Mas se puder estar com melhor aspecto, por que não?...»
“Paulo Nery faz parte de um número cada vez maior de homens que, sem complexos, recorrem
ao bisturi do cirurgião para ficarem com uma melhor relação com o espelho. (...) assume sem
vergonha a sua vaidade, a tão na moda e citada metrosexualidade, expressa em si no grande
cuidado que tem com o corpo, na vontade em parecer bem e ser apreciado. (...) Desta vez vem
acertar os detalhes para a lipoaspiração que fará ao abdómen e terminar o tratamento de
rejuvenescimento da face. (...) Está orgulhoso com a mudança física. «Agora vou sentir-me mais
à vontade na praia. Antes fazia como todos os homens, encolhia a barriga.».” 22
Nestes artigos tende a esbater-se a fronteira entre ficção e realidade, sendo a mensagem de base
que, ao seguir as instruções de um produto ou serviço, é possível atingir o ideal. Apresentam-se
como guiões, modelos de conduta para possuírem um determinado tamanho e forma corporais
para que sejam bem aceites em sociedade (Cunha, 2004). Estas ideias que apresentam a
manipulação do corpo, da imagem, como algo positivo são ainda reforçadas pelos comentários
dos jornalistas e dos especialistas citados (o cirurgião e o anestesista):
“...cirurgião plástico Ibérico Nogueira da Clínica Lookin, em Lisboa: «Hoje há uma verdadeira
explosão da procura de tratamentos cosméticos para melhorar a imagem». (...) E o bisturi pode
operar milagres na auto-estima. (...) Moldar o corpo como quem desenha um fato por medida.”23

21
Visão (nota 19).
22
Única (nota 20).
23
Visão (nota 19).

904
“...o anestesista solta uma tirada sábia. «Nesta sociedade todos nós temos de ser bonitos. O belo
está associado ao bom.»”24
Apresentam-se ainda alguns alertas, relativos às facilidades de acesso a estas práticas, através da
crescente acessibilidade ao crédito. E relativos ao impacto na saúde, nomeadamente,
dificuldades na recuperação e perigos associados a más práticas. Ainda ao facto de, em
Portugal, não ser obrigatório um médico ter iniciado ou concluído uma especialidade
reconhecida pela Ordem dos Médicos para a poder exercer.
“O acesso expedito ao crédito é o principal responsável pela banalização das plásticas – das
linhas criadas pela indústria cosmética até às facilidades da banca... (...). Alguns perigos
associados a técnicas como o bronzeado artificial dos solários.”25
“«Estou muito contente com os resultados. Segui à risca todas as indicações, o uso permanente
da cinta, as drenagens linfáticas, os cuidados com a alimentação, o beber muita água, etc.
Recuperei a minha linha dos 25 anos. Sinto-me bem e o meu ego agradece.» [Testemunho de
Paulo Nery].”26
Finalmente, a peça da Visão, apresenta o testemunho de uma figura pública, Teresa Guilherme,
que, embora se preocupe com o seu bem-estar e cuide da sua imagem, recusa qualquer tipo de
intervenção deste tipo de técnicas que considera “intrusivas”:
“[A sua receita é:] Aos 49 anos, não se cansa de fazer análises sanguíneas regulares, tem um
personal trainer e frequenta um quiropático (para manter ossos e articulações em forma). Desde
os 30 que Teresa Guilherme não come carne vermelha, dispensa o açucar e procura fazer o que
gosta. «O segredo da juventude está na alimentação, no movimento e na desintoxicação do
stresse, do medo e da culpa.», prescreve. Ela fala de uma beleza interior, bem diferente da que
se consegue artificialmente, onde o resultado alcançado, com prazo de validade, pode ser
espectacular.”
Concluindo, importa referir que é a noção de corpo belo que parece tornar-se o padrão na
construção de um corpo ideal, contra o qual se avalia, molda e constrói o próprio corpo. Um
corpo belo, ideal assente em imagens estilizadas, estereotipadas, até, construídas pelos media.
Assim, a auto-imagem corporal parece estar dependente de imagens sociais e o indivíduo parece
investir muito do seu tempo a controlar e a supervisionar a aparência do seu corpo, ou seja o seu
look (Featherstone, 2000).
Os artigos recolhidos evidenciam esta preocupação. E parecem denotar, também, forte presença
da lógicas de marketing, expressas na divulgação e aconselhamento de locais e produtos –
sobretudo.

24
Única (nota 20).
25
Visão (nota 19).

905
Bibliografia

Adorno, Theodor; Horkheimer, Max (1977), “La industria de la cultura: ilustración como
engaño de las masas” em Curran, James; Gurevitch, Michael; Woollacot, Janet (eds), Sociedad
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1970-2000, Lisboa, ICS (Imprensa de Ciências Sociais).
Santos, João de Almeida (2000), Homo zappiens – o feitiço da televisão, Lisboa, Notícias
editorial.

26
Única (nota 20).

906
A profissao de ensinar e a estrutura do tabu: a percepcao de Adorno sobre uma determinada
profissão.

Tobias Grave
Instituição: Universidade de Leipzig

Em 1965 Adorno aproveitou o ensejo de um convite para uma palestra, feito pelo Instituto Max Plank
de pesquisas sobre a formação, para refletir sobre um tema espinhoso. Tal como o título enuncia:
T
„ abus a respeito do professor“, tratou-se do stat us geral e, ao mesmo tempo, um tanto quanto
problemático, de uma instituição básica da sociedade. A conhecida depreciação e a animosidade
latente contra a profissão de ensinar, a qual é exposta em seu texto e que parece ser dificilmente
compatível com a necessidade social e com a função básica da escola, é a seguinte: Quanto mais se
precisa dos professores, menos eles são valorizados.
Entretanto, quando se trata da herança arcáica desta atitude, observa-se que a rejeição representa
apenas uma parte desta relação de sentimentos, pois ela contém, igualmente, uma veneração e um
eventual sortilégio mágico. Além disso, a ambivalência da relação de sentimentos sobre esta profissão
não se limita a este fato, pois também sua percerpção é comprovada a todo momento por meio das
atribuições de supremacia (referente à estrutura da escola) e de inferioridade (concernente ao prestígio
da profissão).
Fala-se muito da necessidade de se compreender tal depreciação como um anacronismo e que a
condição de igualdade aspirada pelo professor seria possível de ser, em grande parte, realizada. De
qualquer modo, as elaborações de Adorno sustentam esta contradição em toda a sua amplitude. Não
obstante este fato, ele é continuamente forçado a confrontar seu ímpeto esclarecido e admitir a
presença do arcáico no cotidiano escolar, bem como seu regresso permanente nos modelos de
percepção das escolas. Disto resulta a seguinte questão: se a erradicação da rejeição equivale à
supressão do processo de construção do tabu (Tabuierungen). Dito de outro modo: o arcáico
desapareceu, pode desaparecer, ou regressa permanentemente? O texto de Adorno é devedor de uma
resposta definitiva e o tema permanece em aberto.
Concomitantemente, cresce a suspeita de que as lembranças do tabu não consistem exclusivamente na
depreciação do professor, tal como facilmente se supõe, mas sim num tipo de intocabilidade do
professor que atende às condições da ambivalência arcáica que fora anteriormente mencionada. Caso
se aproveite deste desmentido implícito para se examinar o contexto do tabu e da relação de
ambivalência de forma mais apurada, o raciocínio se desloca de uma terminologia utilizada de forma
incondicional para o modelo de substituição da ambivalência original dos desejos de assassinato e
incesto, por meio da esfera de formação de tabus, tal como fora representado por Freud nas suas
considerações sobre o desenvolvimento da cultura em geral e da moral individual. Uma vez que o
professor seja valorizado como figura de identificação, surge novamente o problema da necessidade da
existência dos tabus. Coloca-se a questão da evitabilidade ou não da relação de ambivalência e,

907
portanto, da sua própria constituição. A importante observação de Adorno de que a esfera cultivada da
educação é acrescida com a violência, da qual ela deveria se libertar, sugere que não se trata
meramente da simples ausência da violência, a qual educa. A observação vai além de suas próprias
intenções e dá margem à possibilidade de se reavaliar as implicações da crítica de Adorno sobre a
profissão de ensinar.

908
Hipertexto

Christoph Türcke

Uma “Sociedade do Conhecimento” não é composta por muitos


“conhecedores”, mas sim por pessoas que não sabem como podem
concentrar o conhecimento, que foi reunido em técnicas, aparelhos,
arquivos e bibliotecas, em unidades transparentes ou ao menos acessíveis.
O problema não é novo. Trabalha-se nisto desde que se percebeu que a
ciência moderna, que não fora mais tutelada pela teologia, não se
concentrava, automaticamente, numa unidade de pesquisa amparada pela
razão, ameaçava antes se dispersar num grande número de conhecimentos
distintos. Contrários a este risco, Diderot e d’Alembert, já em 1750,
assumiram a direção do gigantesco projeto de construção de uma
enciclopédia com a intenção de “amealhar os conhecimentos espalhados
pela superfície terrestre; de apresentar o sistema geral destes
conhecimentos aos homens com os quais vivemos e transmiti-los aos que
estão por vir, para que o trabalho dos séculos passados não fosse inútil para
os séculos vindouros; para que nossos netos se tornassem não apenas mais
cultos mas também mais virtuosos e felizes”. Eles reuniram o trabalho de
150 colaboradores e 72.000 artigos numa “Árvore genealógica das
Ciências”, a qual parecia brotar de três forças básicas espirituais: a
memória, a razão e a força da imaginação; junto à qual eles ordenaram todo
tipo de história (e tambem a historia da natureza) à memória, as artes e
capacidades manuais à força da imaginação, e áreas tão heterogêneas tais
como Teologia e Ciências Naturais, Moral e Lógica, Pneumatologia e
Matemática à razão. No entanto, para que eles não se emaranhassem nas
ramificações precárias desta árvore, concordaram em realizar uma
ordenação alfabética de contribuições com referências abundantemente

909
cruzadas de outras palavras-chave, termos genéricos e conceitos
subordinados, ou seja, pelo método que prevaleceu em todo Léxico como o
mais prático. Mas isto à custa de que o “Entrelaçamento das ciências”, tal
como foi desejado por Diderot, permaneceu superficial e esporádico. Ele já
padecia da enfermidade básica de todos léxicos posteriores, os quais
representam, novamente, a disparidade que desejam superar. Tão mais
imprescindíveis os dicionários se tornaram para o estudo das línguas
estrangeiras e das disciplinas científicas, tão mais eles se revelaram
insuficientes para tal empreitada. Por mais que juntem os fatos, mais se
privam do contexto interior. Hegel desejou reconstituir tal contexto num
singular ato de força espiritual e apresentou uma enciclopédia filosófica
que deixava provir, facilmente, a estrutura lógica do universo, e as formas
da natureza, do espírito humano, da sociedade, da arte, religião e filosofia.
Contudo, o todo, para o qual ele os juntou, foi adquirido por meio do
suprimir de um volumoso e incontável número de detalhes. Hegel sabia
muito, mas nem de longe ele sabia tudo. Àluz de sua enciclopédia, a de
Diderot e de d’Alembert dá a impressão de ser como uma pedreira, para
não falar de outros léxicos.
Entretanto, à luz de cada léxico surge a paranóia de uma enciclopédia
arduamente trabalhada para se tornar um sistema filosófico. O mundo não
cabe numa única cabeça e muito menos se equilibra apenas em uma.
E se houvesse uma unica máquina que fosse capaz de processar o mundo
como texto? Esta foi a visão do engenheiro americano Vannevar Bush que
teve a idéia, em 1940, de gravar tudo que já fora escrito em microfilme, de
armazenar tal gravação numa escrivaninha e fazer aparecê-lo em dois
monitores. Por que dois? Porque dois textos diferentes poderiam ser vistos
simultaneamente e associados um ao outro por meio de um código
registrado em ambos os textos nos cantos inferiores da tela. Se numa outra
oportunidade se reativa o código do texto por meio do pressionar de uma

910
tecla, automaticamente também surge o outro texto. Bush nomeou seu
invento como Memory extender (Memex). Na verdade, não passou de um
mero recurso mnemônico maquinal que, no entanto, produziria algo
revolucionário: a libertação do pensamento humano de seus espartilhos
auto-culpáveis. Catálogos seguem o alfabeto, os índices seguem os
números, a árvore genealógica do conhecimento segue os conceitos
genéricos e subordinados, quão complicado e restritivo e este
procedimento!“A mente humana não tr abalha desta forma. Ela opera por
meio de associações”. Bush quis recuperar este processo associativo
original do cérebro por meio de uma simulação maquinal. O objetivo do
Memex não seria somente reduzir gigantescas bibliotecas ao tamanho de
escrivaninhas, mas principalmente elevar textos para um estado de
associação omnilateral. Neste estado eles tanto representariam quanto
possibilitariam um pensamento flexível e emancipado dos esquemas
estúpidos de ordenação. Em tal estado mais elevado o texto merece
também um nome mais elevado: hipertexto.
Esta palavra ainda não existia na era de Bush, mas ele pode ser identificado
como o pai do hipertexto graças ao seu ousado programa de associação de
texto e cérebro. Entretanto, as associações vivas são espontâneas, mas
nunca totalmente sem motivos, e também nunca totalmente transparentes.
Não existe nenhuma regra que explique porque elas aparecem exatamente
aqui e agora, desta forma e não de outra. Elas têm um grau de liberdade,
um momento de não derivabilidade, por conta do qual são inversamente
volúveis e fugazes, dependentes do contexto e da disposição. Se hoje, num
dia de tempo ruim, me ocorre o texto B por causa do texto A e eu associo
ambos por meio de um código, então talvez na próxima semana, depois de
uma ida ao cinema, me venham à mente textos totalmente diferentes e mais
produtivos. Quando as associações são fixadas e tão mecanizadas em
códigos que regressam num pressionar de uma tecla, isto significa matá-las.

911
Associação fixada não é mais associação, e quem deseja arrancar dela o
segredo do associar é sugado num regresso sem fim. A tentativa de captar a
associação livre num “link” evoca a existência de uma armadura infindável
de “links” posteriores, sem que nunca ocorra a captação. Por isso o Memex
de Bush não teve êxito.
Os códigos, com os quais se associavam os textos, deveriam, por sua vez,
ser ordenados de algum modo e, para isto, precisava-se de códigos cada vez
mais complicados, além de que livros de códigos cada vez mais complexos
necessitaram ser escritos para atender tal demanda. Bush nem sequer pôde
criar uma “máquina bibliográfica” funcional.
Doenças infantis de um projeto genial? O fracasso de Bush foi assim
interpretado pelos seus sucessores. Em essência, eles atribuíram o fracasso,
tal como Stephan Porombka demonstrou num brilhante estudo, a defeitos
técnicos sem suspeitar, de forma alguma, do próprio objetivo: que se
produzisse maquinalmente um espaço de associação livre de pensamento e
de texto. Ted Nelson apostou, neste processo, em novos métodos de
softw
are nos anos sessenta. Todos os documentos ao alcance deveriam ser
registrados e associados a um “Dokuversum” que “consiste em tudo o que
fora escrito sobre um determinado tópico [...]no qual se pode ler em todas
as direções que se desejar prosseguir”. Em 1965, Nelson criou o nome
Hipertexto e o atribuiu a este “Dokuversum” (universo documentado). “Por
hipertexto compreendo a escrita não seqüencial”. Esta definição lapidar age
até hoje como uma fórmula mágica cujo encanto é absolutamente
compreensível, caso se atente contra quem ela se refere: contra
“Gutenberg”, quero dizer, contra a própria cultura do livro e sua forma de
ler e escrever rigidamente seqüencial ou linear, identificando-a como a
essência de um progresso moderno rígido e repressivo. Quando o discurso
do hipertexto também se difunde, concorda-se com a seguinte observação:

912
o futuro deve pertencer ao escrever, o ler e o pensar “não seqüencial” e
“não linear”.
Mas como isto é possível? Mesmo os menores textos, as palavras pequenas
tais como “sim, não, ou” formam uma determinada seqüência de letras que
se deve ler exatamente nesta ordem, sendo que até mesmo os mais
entusiastas do hipertexto também procedem desta maneira totalmente
convencional e bem comportada. Se não fosse desta forma, tais entusiastas
não entenderiam absolutamente nada, do mesmo modo que eles não deixam
de falar sequencialmente, pois articulam sons na seqüência aprendida. Ler e
escrever de forma não linear? Bobagem. Que desta insensatez se possa
fazer algum sentido a curto prazo, algo como o protesto contra as estruturas
de sentido desgastadas, tal como no caso dos poemas dadaístas, isto não
muda nada o fato de que ninguém, a longo prazo, conseguiria se entender
assim. Onde se diz “não linear”, se quer dizer, na verdade, outra coisa, a
saber: não mais em grandes unidades lineares.
Mas com isto se coloca a questão de revide: Quão lineares foram
estas unidades “gutemberguiana”, cuja tirania dever-se-ia abolir? Elas
foram mesmo unidades no sentido rígido da palavra? Certamente, se se
compara com o estado atual, no qual os leitores mais apaixonados se
queixam de que dificilmente conseguem ler um livro do início ao fim.
Porém, como era antes quando começávamos a ler um romance policial e
nao sabíamos, até a penúltima página, quem era o assassino? Ou quando
acreditávamos ter devorado um romance numa tacada? Provavelmente
esquecíamos de tudo ao nosso redor e penetrávamos madrugada adentro.
Ora, tal procedimento é totalmente diferente do que um processo linear.
Quem conta as pequenas interrupções que ocorrem quando o leitor por um
momento se afasta e se entrega às suas próprias associações; quando olha
novamente duas páginas para trás, observadas de forma imprecisa, e olha
de soslaio uma página para frente para averiguar se a leitura de fato

913
continua a estar de acordo com suas expectativas, para não falar da ida à
cozinha ou ao banheiro para poder se tornar novamente receptível? O que
aparece para olhos de toupeira como um processo obstinadamente linear se
revela, por meio da observação um pouco mais precisa, como uma
oscilação de uma linha com um excedente de associação contínuo que é
inevitável quando de fato se imagina o que se lê, ou seja, quando há
desvios, superficialidades, repetições, pausas para pensar, olhares para trás
e para adiante. E se fosse necessário empregar um conceito chique para tal
procedimento, este conceito seria “navegar”. Ora, aquilo que é válido hoje
para a Internet na condição da forma mais nobre de movimento não fora
impróprio para as formas anteriores a ela. Quem se aproveita da rivalidade
do hipertexto como meio não linear na comparação com o livro não sabe o
que significa ler. Já o tradicional ler nunca fora meramente linear, bem
como o “novo” ler não deixa de sê-lo. O real processo de pensamento,
escreve Adorno na Minima Moralia, seria “tampouco uma progressão
discursiva de etapa em etapa, assim como, inversamente, tampouco os
conhecimentos caem do céu. Ao contrário, o conhecimento ocorre numa
rede na qual se entrelaçam preconceitos, opiniões, inervações,
autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na experiência
que é densa, fundada, porém de forma alguma transparente em todos os
seus aspectos”. Mas tal experiência não pode se representar ao copiar-se a
sim mesma. Ela deve se traduzir nas formas da mímica e dos gestos, da
linguagem, da imagem e do som, os quais ela encontra em seu meio
ambiente.
De modo que a experiência traduzida não é mais a experiência feita
originariamente, mas só assim se torna concreta da mesma forma como
uma peça musical só é concretizada quando ela é tocada, embora o tocado
não seja mais aquilo que fora imaginado pelo compositor. Ele é menos,
mas também mais. Todo texto situa-se aquém da experiência que ele

914
comunica, mas é apenas por meio do texto e das estruturas de linguagem
que a experiência consegue superar sua limitação monádica.
E tais estruturas não podem existir sem a seqüência de sujeito, predicado,
objeto, e sem a hierarquia de conceitos genéricos e subordinados. Elas são
tão indispensáveis e insuficientes como a ordem alfabética nos léxicos. Sua
insuficiência incomoda, mas ela faz com que o texto aponte para além de si
mesmo. Sem provocar o leitor para elaboração de seu próprio construto
representacional, o qual é tampouco trivialmente identico com a seqüência
de palavras impressas, quanto com construto do autor, nenhum texto
poderia ser palpitante.
Portanto, exige-se uma dupla resistência. Tão mais é preciso resistir às
estruturas seqüências e hierárquicas da língua e do texto por meio da prova
constante de sua insuficiência, tão seguramente elas, por sua vez, formam a
resistência que a experiência precisa para se representar como diferente das
seqüências. Cada resistência é produzida para que possa um dia cessar. Seu
ponto de fuga é o estado de reconciliação utópica. A princípio, nele se
dispersa toda contradição; e então toda contradição teria um bom fim. O
inconveniente da visão-hipertexto não é o utópico, mas sim o prematuro
declínio da tensão: a utopia adquire o preço de liquidação. Um espaço livre
do pensar, ler e escrever não linear deve ser produzido por meio de
máquinas, mas no velho mundo capitalista.
O Dokuversum, que produz texto legível em todas as direções, deve
instituir não apenas a liberdade, mas também já ser sua imagem autêntica.
Entretanto, o texto que se desprende da forma do livro não paira assim tão
facilmente sobre todas as partes. Ele adquiriu, de imediato, uma nova
forma. Ele é, desde o princípio, texto programado. Toda liberdade
decorrente, toda associação e combinação das partes do texto totalmente
distantes e heterogêneas funcionam continuamente apenas conforme um
esquema fixo. Subentende-se que ligar tudo com tudo, portanto todos os

915
“e”, “ou”, “mas”, um com o outro, conduziria para o nada. Apenas
palavras-chave tornam-se aptas e, portanto, só servem para alguma coisa,
quando são apuradas por serem inteligentes. Eles têm que compreender
algo do conteúdo dos textos ligados estando na condição de separar o
essencial do não essencial e de associar com outro essencial, de tal modo
que possam fixar os resultados de seu trabalho de diferenciação e
associação em links. Mas o quão estes links se deixam ser combinados
depende das normas do respectivo programa digital, que se compõe, por
sua vez, de inúmeras conexões 0-1, ou seja, em links de miniatura que
conduzem o percurso do impulso elétrico. O texto conectado, que tais links
possibilitam, deve ser incrivelmente amplo, mas se diferencia
qualitativamente de um “Dokuversum”. Ele permanece constantemente
parcial e, apesar de todas as afirmações opostas, fechado. Apenas com a
chave correta é que ele se deixa abrir. Tem que se dominar seu Softw
are
para fazê-lo expandir novos textos e associações, e isto significa trabalho
duro. Entrar alegremente, acrescentar seus próprios textos e idéias e
continuar, desta maneira, a escrever o texto universal, tal como as crianças
procedem na escola com as histórias abertas: Exatamente isto nenhum
softw
are vai permitir. É por isso que muitos jogos de computador, os quais
o programador de experimenta com prazer, têm desde o princípio o gosto
insosso do substituto. Ao invés de oferecer ao leitor uma história pronta, tal
como fazem o romance tradicional ou a revista de histórias em quadrinhos
(sendo que tal leitor pode aceitá-los ou colocá-los de lado), os jogos de
computador lhe apresentam um texto do qual ele deve produzir sua própria
história: ele mesmo tem que salvar a princesa, esclarecer o assassinato,
redescobrir a cultura desaparecida, reativar uma memória suprimida, ou até
mesmo ele próprio escolher as tarefas que se deseja solucionar.
O leitor de um livro não fora sempre um mero sequaz bem comportado do
autor? Agora ele se torna um criativo co-autor. Entretanto, sua criatividade

916
total consiste apenas a escolha de possibilidades que são, todas elas,
afirmadas de antemão. A associação livre, a favor da qual o projeto de
hipertexto foi posto em marcha, é espontânea e livre apenas quando ela está
aberta, a qualquer momento, para o imprevisto.
A práxis do Hipertexto consiste em reduzir a liberdade de escolha ao
previsto; o que ocorre aos partidos, às companhias telefônicas, aos seguros
de saúde, aos detergentes e aos aparelhos de televisão tanto mais acontece
ao hiperespaço: abre-se um labirinto total, são quase infinitas as
possibilidades de nele se movimentar. Porém, todos os caminhos já são
dados de antemão e nenhum deles conduz para fora. O programa de
computador é a versão high tech da providência.
Certamente se trata de um reino de liberdade bem miserável, no qual um
contemporâneo que clica o mause e olha fixo para a tela dispõe, ad libitum,
de todos os comandos e conexões que já são pré-determinados por um
programa de computador, tal como se fosse um senhor que exercesse sua
soberania sobre um prato pré-preparado. Mas porque não ignorar isto? Não
é a utopia do hipertexto simplesmente o carro-chefe extravagante de uma
série de conquistas altamente prestimosas? Contudo, é fantástico ter o
Goethe ou Nietzsche inteiros num CD e, por meio de uma palavra-chave,
poder encontrar a qualquer citação desejada. E quando todas as bibliotecas
forem digitalizadas, conectadas e acessíveis por todos, então o
“Dokuversum” não se tornará uma realidade prática que se pode utilizar
como puro subsídio sem que se deva preocupar com a utopia associada?
Não se salvará disto tão facilmente. A revolução midiática do século vinte
atingiu em cheio o texto. E não cessa de conseguir aliados para o
hipertexto, do quais McLuhan foi apenas o mais proeminente. Ele também
anunciou, tal como Nelson, o fim da cultura do livro. Entretanto, assim o
fez não a favor do texto não linear, pois preferiu a apostar suas fichas na
fita magnética, no telefone e na televisão. Eles deveriam remediar o

917
prejuízo que veio ao mundo por conta do alfabeto e que atingiu seu ápice
com a imprensa. Por meio do texto escrito e suas leituras taciturnas os seres
humanos se isolaram uns dos outros e foram reduzidos ao visual.
“Gutenberg” se firma como a incorporação da alienação social. A ligação
eletrônica entre locais distantes deve anulá-la e aquela comunicação
imediata que acolhe todos os sentidos, e que outrora demarcava a ligação
tribal primitiva, deve se restabeler num nível mais alto e numa dimensão
global. Por meio do telefone, do rádio e da televisão “o sistema nervoso
central é ampliado numa rede mundialmente unificada” e o “processo de
conhecimento criativo, coletiva e corporativamente à toda sociedade
humana”, como se esta extensão técnica já tivesse, por si própria, uma
qualidade moral e social e permitisse à humanidade dar as mãos para uma
nova proximidade e cordialidade.
Para que isto se torne crível, deve-se, entretanto, esquecer rigidamente
como se realiza, de fato, a união da humanidade por meio da eletricidade.
Ó
rgãos isolados, principalmente o olho e o ouvido, são conectados a um
aparelho que transmite estímulos e impulsos apenas quando ele os
decompõe de acordo com uma regularidade mecânica, quando os canaliza,
filtra, para serem sons separados ou cortes imagéticos das perspectivas
centrais ou, quando a técnica já possibilita, para serem sensações táteis
mensuráveis. A participação ou a comunicação eletrônica consiste de uma
dispersão de acontecimentos pontuais, os quais são ligáveis ou desligáveis.
Eles são igualmente separados tanto do meio ambiente concreto do emissor
quanto do receptor. Um lugar onde ambos se encontram não é mais
especificável. Os meios eletrônicos ganham sua força de abrangência
mundial e de poder conectar a humanidade apenas às expensas de que eles,
com perfeição, descontextualizam e isolam os sentidos e as vivências numa
medida que nunca fora atingida na época da imprensa. Aquilo que parece
como a superação da alienação gutemberguiana revela-se como sua mera

918
potencialização. O inimigo está em toda parte, até mesmo nas próprias
novas mídias. Só que seu pioneiro não pode admitir tal fato. Tão mais
intensamente ele deve projetar seu inimigo interno para fora e atestar
constantemente à cultura da escrita um caráter seqüencial forçoso e
isolador, como se a lírica, a literatura e a dialética nunca tivessem provado
a imensa variedade espiritual que se encontra na escrita. Não por acaso a
força de poder conectar a humanidade atribuída aos novos meios de
comunicação se alimentam do venerável lema concernente ao apogeu da
imprensa: “Todos os homens se tornam irmãos”. Beethoven precisava de
uma sinfonia inteira para transmitir tal força congenialmente. Atualmente,
os meios eletrônicos devem fazer isto diariamente por conta própria.
Sugere-se que eles sejam esta mensagem.
De um ambiente espiritual totalmente diferente partiu um ataque geral
filosófico ao livro escrito de forma tradicional. Para Deleuze, o livro é o
centro de todas as estruturas hierarquicamente lógicas; seu inimigo é a
árvore lógica, da qual de um tronco brotam dois galhos, dos quais outros
dois se originam na mais bela ordem até chegar aos menores ramos. “De
um se originam dois. Toda vez que nos deparamos com esta fórmula,
mesmo se Mao a usasse como estratégia ou se ela fosse compreendida tão
“dialeticamente” quanto fosse possível, fazemos isto utilizando o pensar
clássico mais antigo e mais refletido, o qual é totalmente desgastado. A
natureza não procede assim, pois as raízes se tornam raízes mestras com
um riquíssimo número de ramificações laterais e circulares; em todo caso,
elas não são dicotômicas”. Elas são rizomáticas. O rizoma (tal como o
título do famoso panfleto de Deleuze e Guattari, de 1976) que corresponde
propriamente ao termo tubérculo, carocinhos, se espalha,
concomitantemente, para todos os lados e, como “a natureza” procede desta
forma, deve finalmente dar cabo ao chatíssimo “livro-raiz” e à sua lógica
binária autoritária. Até “as palavras de um Joyce, às quais se atribui, com

919
razão, a palavra “ramificabilidade”, rompem a unidade linear das palavras,
e até mesmo a unidade linear da língua, para produzir uma unidade cíclica
da frase, do texto ou do conhecer em movimentos iguais”. De tal unidade
se salva apenas por uma coisa: “o princípio da pluralidade”. “Não sejam
um ou muitos, sejam a pluralidade”. De acordo com este lema deve-se
pensar, ler ou fazer política. “Não há nada para se compreender num livro,
mas muito do que se pode se servir”.
Que estas frases seguem uma gramática totalmente convencional; que elas
confrontam o pensar dualístico e rizomático numa rigidez dualística; que
nenhuma destas pluralidades exaltadas como rizoma ou “Platô” seria
principalmente identificável se não fosse considerada como unidade, bem,
isto nunca atrapalhou Deleuze e seus fãs. Foi suficiente “rizoma” - como
“não linear” - ter se tornado uma palavra mágica, um eco do maio
parisiense de 1968. Naquele tempo, quando os partidos comunistas e os
sindicatos se enrijeceram hierarquicamente, e o risco para o capitalismo
parecia partir unicamente das ações espontâneas dos estudantes e
trabalhadores, surgiu a imagem de uma nova guerrilha crítico-radical. Ela
vicejava de uma experiência de totalidade, na qual se sentiu
antecipadamente aquilo que hoje significa “Globalização”.
A extensão desta guerrilha é espantosa. “Um rizoma pode ser quebrado e
destruído em qualquer lugar, mas ele sempre se espalha ao longo de suas
próprias linhas ou de outras”. Ora, nos anos sessenta, esta colocação foi
levada em consideração pelos estrategistas militares antes mesmo de ser
formulada. Eles elaboraram o descentralizado ARPANET para o pentágono
com o objetivo de que um primeiro ataque soviético não paralisasse as
centrais de informações militares. O ARPANET foi uma peça de guerrilha
de alta tecnologia, mas inventado no centro da maior potência mundial e se
tornou revolucionário não apenas no sentido técnico. Ele converteu a
resistência descentralizada, o último recurso dos humilhados e oprimidos

920
contra a supremacia do ocupante, em um recurso do mais poderoso. Esta
foi uma rebelião silenciosa, mas de um alcance que se torna evidente
apenas de forma gradativa. E assim se iniciou a volta neoliberal do
capitalismo high tech, a guerrilha de cima. O APARNET nunca precisou
captar o temido ataque atômico soviético. Ao invés disso, ele foi aberto
para o tráfico público. Dele se originou a Internet. De uma defesa militar
ele se transformou em uma ofensiva civil, cuja vitória sobrepuja toda
vitória militar. Um rizoma se tornou hegemônico.
Mas com isto o hipertexto teve um salto qualitativo, pois desde então ele
não se dissemina apenas pelo CDs, mas também por meio de linhas
telefônicas e transmissões via satélite. A massa de dados da Internet, para a
qual todos que não podem renunciar ao e-mail e à observação do mercado
eletrônico são sugados, tende realmente para o “Dokuversum” previsto por
Ted Nelson, só que de outra maneira. As hiper-histórias, embora
inflacionadas neste novo ambiente digital, são degradadas a um play
ground. O próprio hipertexto, por sua vez, se torna sério, e cada vez mais
se torna apoditíca a alternativa de ou ser deixado para trás, ou de se clicar,
por bem ou por mal, através das massas de dados. Ninguém acredite que
isto deixe totalmente intocada sua forma de pensar. Talvez o saltar brusco
de um link para o outro lhe impinja estímulos acelerantes, talvez ele acione
a busca para conceitos precisos. No geral, entretanto, ele torna o
pensamento cada vez mais fugaz e sem fôlego. Copiar um texto
manualmente, de forma correta, exige dos alunos atuais
incomparavelmente mais concentração do que a que era exigida dos seus
pais. Ler “de forma não linear” é a grande sensação para todos que não têm
mais paciência para o romance mais longo. Uma vez incapazes de se
aprofundar no texto, se aprofundam no computador. Olhar constante e
fixamente para a tela do monitor, aliado à falta de movimento, resulta,
atualmente, no surto de crianças com sobrepeso e problemas de visão.

921
Ted Nelson também se considerou um guerrilheiro. Sua defesa de um
“Dokuversum” foi também uma defesa para o livre acesso a todos os
dados, PCs para todos e luta contra o então monopólio e política de
restrição da IBM. Deste modo, ele também é o pai dos Hackers.
Certamente, eles têm seus méritos. Sem dúvida, o ato de penetrar nos dados
secretos das grandes firmas ou dos militares é um ato de guerrilha. Ele
mostra que toda codificação é decodificável; que nenhum código é
totalmente seguro. Ainda assim, ele é subversivo limitadamente enquanto
sua intenção não for nada mais do que um livre navegar para todos os
dados.
Os métodos de guerrilha não são facilmente identificados como subversão
crítica. A Internet mostra o que ocorre quando eles se transformam em
domínio público. Plantas que se espalham rizomaticamente podem ser
podadas. Não por acaso, o jardim foi o antigo ideal da natureza pacificada.
A Internet, entretanto, se deixa represar apenas parcialmente, não se
consegue dominá-la totalmente. Ela se transformou no meio principal e no
símbolo do capitalismo neoliberal globalmente espalhado. Em tais
condições, lê-se o Rizoma como cartilha da desregulação. E a “não
linearidade”, glorificada como recurso radical contra todo progresso linear
falso, se revela como o seu melhor lubrificante.

Tradução de Antonio Zuin

922
RECONCILIANDO CISÕES NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL:
POSSIBILIDADES DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR ATRAVÉS DO CONTEÚDO
DANÇA1

Verónica Alejandra Bergero


Elenor Kunz
UFSC – Programa de Pós graduação em Educação Física – Mestrado.

INTRODUÇÃO

A dança tem uma marcante presença na cultura dos jovens. Pode-se dizer que é a faixa
etária que mais relação tem com essa forma de expressão, pois freqüentar danceterias nessa
idade é uma das principais formas de diversão, entretenimento e socialização com pares. Mas na
escola, historicamente, tem sido tímida a abordagem desse conteúdo da cultura de movimento2.
Graças ao trabalho de diferentes autoras, entre elas: Fiamoncini (2003), Soares et all (1998),
Strazzacappa (2001), Saraiva Kunz (2003), podemos compreender alguns elementos sobre o seu
status na instituição escolar. Assim, encontramos que na realidade cotidiana das escolas o seu
tratamento é muito limitado, se comparado à hegemonia que o esporte tem como conteúdo
disciplinar.
Por outro lado, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1999), apresentam um certo
desconcerto para o seu tratamento, colocam-na como conteúdo da Educação Física e ao mesmo
tempo como conteúdo da Educação Artística. Um outro elemento a ser considerado é que para
os professores da escola atuarem na abordagem desse conteúdo, especificamente na área da
Educação Física, a formação inicial, na maioria das instituições, oferece conhecimentos restritos
a um semestre, pouco tempo em comparação à carga horária destinada às modalidades
esportivas.
Mas apesar das (des)orientações e prescrições para abordar a dança, é necessário
compreender como ela está presente na escola quando é trabalhada na Educação Física Escolar.
Por um lado, encontramos o fato de que os/as professores/as têm que responder a diferentes
demandas; entre elas, as solicitações da direção da escola, para cumprir com as datas e
comemorações do calendário oficial. Outro tipo de demanda vem das/os próprias/os alunas/os.
Ambas habitualmente resolvem-se preparando alguma dança da moda que as/os alunas/os já

1
Este texto é a sínteses de Dissertação de Mestrado: “Indústria Cultural e Dança: Superando cisões e
reinventado humanidade na Educação Física” defendida em março de 2006 por Verónica Alejandra
Bergero no Programa de Pós-graduação em Educação Física do CDS - UFSC.
2
Na expressão de DIETRICH (1985) citado por KUNZ (1991, p. 38) “A cultura de movimento significa
inicialmente uma conceituação global de objetivações culturais, em que o movimento humano torna-se o
elemento de intermediação simbólica e de significações produzidas e mantidas tradicionalmente em
determinadas comunidades ou sociedades”.

923
conhecem, estas/es escolhem as suas músicas e elaboram as coreografias copiando as difundidas
pela mídia.
Por outro lado, e já com uma intenção pedagógica mais clara, encontra-se uma
abordagem com vistas ao rendimento ou à desportivização da dança, na qual os/as alunos/as são
treinados/as em coreografias para participar de competições, intra ou extraescolares3.
Essa tendência à desportivização da dança, geralmente acontece na escola quando o
professor tem uma formação específica em dança ou pela presença de alunas/os que realizam
danças extra-escolarmente em alguma academia especializada. É importante assinalar que as
academias particulares de danças – espaços sociais legitimados para o seu ensino – estão
extremamente influenciadas pela mídia, nelas há horários específicos para o ensino de diferentes
estilos das danças da moda, o que acentua seu consumo alienado pelos jovens.
Pode-se perceber que na atualidade, de maneira generalizada, qualquer que seja o
tratamento dado na Educação Física Escolar ao conteúdo dança, ele geralmente acontece sob a
influência sufocante dos meios de comunicação de massa, reproduzindo as danças da moda.

Dois dos principais autores da Teoria Crítica da Sociedade da Escola de Frankfurt, Max
4
Horkheimer e Theodor W. Adorno, empregaram pela primeira vez o termo Indústria C
ultural
no livro Dialektik der Aufkläurung em 1947, para referir-se à mercadorização da cultura, sua
banalização e reificação. Os bens culturais, em geral, constituem-se como mercadorias, entre
eles a dança. A Indústria Cultural conforma-se como um sistema no qual todos fazemos parte
como produtores e consumidores em um processo dialético. Processo que padroniza gostos,
estandardiza consciências, aliena, massifica, dilui a auto-determinação, ofusca interesses e
necessidades particulares.

O GÊNESIS DO PROBLEMA E O PERCURSO

A inquietude com o tema surgiu da minha atuação profissional como docente de


Educação Física de uma escola de Ensino Médio em Córdoba/Argentina, ao trabalhar com o
conteúdo dança, onde verifiquei a preferência dos jovens pelas danças da moda. Essas danças
são essencialmente reproduzidas e, ao mesmo tempo em que a maioria dos jovens apresenta

3
Em minha história docente venho me preocupando com o fenômeno da competição nas aulas de
Educação Física, algo que se materializou ao cursar a especialização em Educação Física Escolar na
UFSC, quando realizei um trabalho de investigação intitulado: iLgas Estudiantiles oCrdobesas:
Descubriendo sus sentidos. As ligas são um programa de competições em diferentes áreas, organizado
pelo governo de cidade de Córdoba – Argentina, para as Escolas do ensino médio, no qual, além de
competições esportivas, existem as de danças, nas quais participam as alunas/os que já tem conhecimento
dessa prática no plano extra-escolar, em academias especializadas. A dança que está colocada nessas
competições escolares, na maioria dos casos, não é o resultado do trabalho cotidiano de professores/as e
sim das aprendizagens obtidas por uma minoria de alunos/as fora da escola.

924
uma grande facilidade de decorar as coreografias propostas pela Mídia, conseguem realizá-las
muito bem, demonstrando verdadeiros shows; percebe-se a falta de criatividade, de expressão,
de comunicação, de segurança com o seu corpo e seus movimentos, quando propostas outras
formas de trabalho com a dança. Em se tratando de outros conteúdos da dança e de outras
perspectivas e modalidades que não as colocadas pela mídia, é corrente a não aceitação e até
mesmo a negação do trabalho5.
Um dos conflitos mais freqüentes, com o qual me enfrentei na minha prática pedagógica
nessa escola, foi o fato de que as alunas solicitavam a escolha das suas músicas e suas
coreografias, acontecendo habitualmente a escolha da mesma música e dos mesmos
movimentos por vários grupos ao mesmo tempo, o que ocasionava desacordos, discussões e até
brigas, para definirem qual o grupo que tinha escolhido primeiro a música e os movimentos em
questão. As músicas e os movimentos que continham apelo à sexualidade eram os mais
procurados.
Ante esses fatos, questionava-me sobre: o que leva as pessoas a consumirem, gostarem
e aceitarem um determinado bem cultural e não outros? Por que as pessoas rejeitam o que não
está prescrito pela mídia? Qual a natureza da alteração mental que dá-se nas pessoas como
resultado desse consumo de bens padronizados? Por que as escolhas manifestam-se em massa?
Esses questionamentos foram permeados por reflexões que surgiram com meu retorno
ao Brasil em 2003, a partir de minha participação em núcleo de estudo6, o que concretizou o
meu interesse por esta temática.
Concebo a escola como o lugar do “conhecimento” onde se deve privilegiar o contato
com vivências e experiências novas e não simplesmente a reprodução do que já está colocado, e
por isso considero que se deve possibilitar na Educação Física Escolar o desenvolvimento de
uma consciência crítica aos modelos da dança difundidos através da mídia. Partindo da hipótese
de que a relação pedagógica professor-aluno é mediada pela Indústria Cultural, se faz necessário
compreender quais os mecanismos que na era da indústria cultural provocam o declínio do
indivíduo (Adorno/H
orkheimer e C
anevacci) e os processos de massificação (L
eB
om, Freud e
Adorno/H
orkheimer), analisando especificamente es ses processos no que concerne ao consumo
do bem cultural: dança – caracterizando a forma e o conteúdo que esse bem adquire – e em que
medida a Educação Física Escolar contribui para reforçar ou transformar essa situação.

Este trabalho caracterizou-se, prioritariamente, por ser uma pesquisa teórica, na busca
de uma perspectiva orientadora e esclarecedora de uma das problemáticas educativas com que

4
O “conceito” foi ideado pelos autores nessa data, mas o processo da indústria cultural já estava sendo
configurado antecipadamente.
5
O descrito foi observado também, com alunos do curso de graduação da UFSC na disciplina
M
etodologia da Dança durante a realização do meu estágio de docência.

925
vinha me deparando no meu agir pedagógico cotidiano. Considerando, conforme Demo (1994)
que a pesquisa teórica não implica imediata intervenção na realidade, mas que seu papel é
decisivo para construir condições básicas de intervenção.
Evitando cair em teoricismo, construí o percurso do trabalho dialogando com
experiências empíricas enquanto docente e com falas de jovens e professores entrevistados7,
intencionalmente, em ocasião da pesquisa. Nesse sentido, os dados empíricos foram usados com
o intuito de enriquecer as argumentações, reconhecendo que os mesmos traduzem maior
familiaridade frente à problemática em foco, especificam e precisam tendências, relevos,
informações, além de poder colaborar e facilitar a aproximação prática.
Considerei, além do estudo teórico-bibliográfico, outros instrumentos que surgiram no
contexto real da investigação, como entrevistas, programas de televisão, observações em festas
e em diferentes espaços educacionais onde desenvolvo e desenvolvi minha prática pedagógica.
Todos esses elementos e técnicas fizeram parte deste trabalho, considerando principalmente a
relevância desses instrumentos e a solicitação teórico-metodológica do próprio objeto de estudo.

INDIVÍDUO E MASSIFICAÇÃO

A fim de melhor compreender como se dá a influência da Indústria Cultural na vida dos


indivíduos, foram abordados num primeiro momento os conceitos de “Indivíduo” e
“Massificação”.

O Declínio do Indivíduo.

A partir dos texto Indivíduo de Adorno e Horkheimer, do livro Temas básicos da


Sociologia e do texto Ascensão e declínio do indivíduo, do livro Eclipse da R
azão, produzido
por Horkheimer, os autores indicam que ao longo da historia diferentes filósofos, psicólogos e
sociólogos tem-se debruçado sobre o estudo do individuo. Indo desde concepções que o
consideram como algo concreto, fechado auto-suficiente por um lado até concepções que o
consideram socialmente mediado.
Desse modo aparece por um lado, a definição de Boécio pronunciada no século VI, que
considera individum aquele que não pode ser subdividido, como o diamante e cuja predicação
própria não se identifica com outras semelhantes. Mas, no estagio atual da Indústria Cultural
vemos que existe uma exacerbação do individualismo (concorrência, egoísmo, auto-suficiência)

6
Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea coordenado pelo Prof. Dr.
Alexandre Fernandez Vaz – CED - UFSC
7
O levantamento de dados foi feito na cidade de Florianópolis, numa escola pública do centro da cidade.

926
em detrimento do individuo, já que os seres uniformizam suas predicações, crenças, gostos,
valores e praticas.
Em conseqüência, o conceito de mônadas de Leibniz oferece um modelo conceitual
para o individuo na sociedade burguesa. “As mônadas não têm janelas pelas quais possa entrar o
sair alguma coisa”. (LEIBNIZ, apud ADORNO 1956, p. 46) Concepção que se vê enfatizada
pelo liberalismo e a livre concorrência. O desenvolvimento do poder industrial sem limites
provoca mudanças nas relações humanas e considera-se inútil e supérfluo qualquer pensamento
que não responda aos interesses de mercado, comprometendo uns dos atributos mais
importantes da individualidade, o da ação espontânea.
Assim, Horkeimer observa que a tarefa das massas deve ser a “resistência aos padrões
monopolistas que se infiltram em suas próprias organizações e afetam individualmente suas
mentes” provocando o declínio do individuo (2000, p. 148). E, o autor, agrega que o
antagonismo entre individualidade e as condições econômicas e sócias da existência é um
elemento essencial da individualidade. A instauração da propriedade privada exclui da condição
de sujeitos, considerandos não eu, as crianças, as mulheres, os pobres, os não civilizados. Mas
acrescenta que a elite esteve sempre mais preocupada com as estratégias de lucro e a conquista
do poder. Mas, que quanto mais intenso é o poder sobre as coisas mais as coisas o dominarão.
Por sua vez, o autor italiano, Massimo Canevacci (1984), corrobora que foram os
frankfurtianos os que apresentaram pela primeira vez a idéia da dialética do indivíduo.
Considerando que o sujeito senhor de si produz simultaneamente sua afirmação e sua
autodestruição, já que todo o seu desenvolvimento, assim como a gênese da civilização e do
mundo burguês está fundado no sacrifício de se.
Canevacci distingue entre autonomia individual e autonomia de classe considerando
que, embora seja cada vez mais verdadeiro que só poderá existir efetiva liberação com a
abolição do trabalho assalariado, dita autonomia é relativa à totalidade da organização social,
cultural e psíquica do vivido, cuja herança vai vem além da era capitalista e tem sua origem na
própria origem da civilização, e até da espécie. Assim, segundo Canevacci, os diversos
excluídos voltam-se contra os que excluem, podendo realizar uma universalidade humana tão-
somente a partir da própria especificidade de classe, de sexo, de raça, de “normalidade”.
O autor italiano indica que “a tendência atual ao desaparecimento da individualidade
tem suas raízes no próprio nascimento do indivíduo, desde a origem das origens: por isso, as
causas “naturais” da discriminação são inseparáveis das causas sócio-culturais” (CANEVACCI
1984, p. 42), e vislumbra que “as possibilidades concretas de alternativa emergem (...)
precisamente a partir dos excluídos de sempre. E atribui o mérito pela redescoberta materialista
do “pessoal”, à particularidade de alguns indivíduos e, “naturalmente”, diz o autor, às mulheres.
(CANEVACCI 1984, p. 42)
Conclui Canevacci:

927
o indivíduo burguês alcançou na descoberta apenas formal da liberdade, da igualdade e da
fraternidade o seu máximo nível (e o nascimento da ideologia, não por acaso contemporânea de
tais conceitos, teve imediatamente a tarefa de mascarar a vergonha pelo fato de serem eles
“propriedade” tão-somente das classes dominantes). Cabe a outros a tarefa de realizar aquelas
promessas (p. 45).

O processo de Massificação

Para abordar a questão da massificação, foi utilizado o trabalho realizado por Freud,
rupo e Análise de Ego , produzido em 19218 e o texto A M
Psicologia de G assa de Adorno em
parceria com Horkheimer, publicado em 1956 no livro Temas básicos de S
ociologia, ambos
desenvolvem suas teses a partir do trabalho “Psicologia das M
ultidões ” de Le Bom.
Para Le Bom, de acordo com Adorno e Horkheimer, as principais características que os
homens manifestam na massa são as seguintes:

A personalidade consciente tende a desaparecer; predomínio da personalidade inconsciente,


orientação por sugestão e contagio de sentimentos e idéias que apontam em uma só direção,
tendência para converter em atos as idéias sugeridas. O indivíduo deixa de possuir um eu; ele
passa a ser um autômato destituído de vontade própria (1956, p. 80).

Outra característica enfatizada é o caráter conservador das multidões, isto é atribuído à


influência predominante do inconsciente, que se identifica com a herança ancestral. A
incessante mobilidade das multidões só atua sobre as coisas superficiais, ressaltando o caráter
absoluto do seu respeito fetichista pela tradição, assim também, como o profundo horror
inconsciente que estas sentem por toda novidade que seja capaz de modificar as suas condições
de vida.
Adorno e Horkheimer acrescentam que “a massa é um produto social, não uma
constante natural (...) proporciona aos indivíduos uma ilusão de proximidade e de união. Ora,
essa ilusão pressupõe, justamente, a atomização, a alienação e a impotência individual” (1956,
p. 87).
Mas os autores reconhecem que a mente coletiva também é capaz de gênio criador,
reconhecendo insuficiência na obra de Le Bom e consideram que a psicologia da massa, ao
postular a priori a malignidade da massa e proclamar a necessidade de um poder que a
mantenha sob controle, torna-se instrumento da corrupção totalitária. Desse modo, por sua vez,
Freud reconhece que as grandes decisões no domínio do pensamento e as momentâneas
descobertas e soluções de problemas só são possíveis ao indivíduo que trabalha em solidão,
embora, ele considera que a mente grupal também é capaz de gênio criativo, o que pode ser
percebido na própria linguagem, no folclore e canções populares, entre outros fatos.

928
Apresentam-se assim, algumas contradições nas idéias dessas teorias sobre psicologia
de grupo, mas o meu interesse esta baseado em compreender a atitude assumida pelas multidões
alvos da Indústria Cultural, ou seja, sobre grupos de pessoas que se manifestam a priori como
efêmeros e sem uma organização determinada, mas que, igualmente, comportam-se, agem,
pensam e sentem da mesma maneira, aderindo ao consumo de determinados bens da Indústria
Cultural. Nesse sentido, as considerações levantadas por Le Bom não parecem tão
inapropriadas.
Na atualidade, em determinadas atividades; quando trata-se de uma festa, por exemplo,
ou de jovens dançando numa boate, produz-se uma espécie de catarse coletiva, onde tudo vale.
Em conseqüência, o individualismo que predomina em nossos dias, nas relações sociais, parece
desaparecer. Em danças de músicas propostas pela mídia e por ela legitimadas, as limitações e
distâncias diminuem, a impermeabilidade dos corpos se dissipa, as fronteiras se esfumam, e uns
fundem-se aos outros realizando movimentos eróticos, onde tudo parece ser permitido. Percebe-
se uma exacerbação da sexualidade como um deixar fluir a natureza humana.
Quando observamos crianças, jovens e até adultos dançando ao ritmo de algumas
músicas comerciais, a Indústria Cultural parece legitimar qualquer comportamento que poderia
ser considerado como exagerado ou fora dos parâmetros civilizatórios. Parece que se deixa
escapar um comportamento reprimido pelo processo de civilização, como é a sexualidade, e ao
ser sob uma forma coletiva, sob uma forma legitimada pela Indústria Cultural, torna-se
permitido, não julgado, adquirindo, um caráter de certo, verdade, bom, belo, aceito e legitimado
por todos. Isso pode-se perceber como um espaço de socialização, onde catalisam-se e
dissipam-se, coletivamente, tensões, repressões e inibições.
Por outro lado, foi indicado por Freud (1996) que o mecanismo de intensificação da
emoção é favorecido por outras influências. O autor acrescenta que “um grupo impressiona um
indivíduo como sendo um poder ilimitado e um perigo insuperável. (...). É-lhe claramente
perigoso colocar-se em oposição a ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam”.
(p. 95).
Respeito ao perigo de colocar-se em oposição ao grupo, isto é o que provavelmente
acontece com os alunos na Educação Física Escolar quando são propostas outras formas de
dança diferentes às difundidas na mídia. Os jovens não aceitam o novo e em geral trocam
olhares controladores entre eles, produzindo-se tensão entre o ficar ridículo ao sair dos padrões
do grupo e se animar ao novo, contagiado pelo outro. Mas nessa situação, o contágio
fundamentalmente se manifesta ao fazer que todo o mundo permaneça resistente ao diferente.
Freud (1996, p. 136), ao tratar das “enigmáticas palavras “hipnose e sugestão”, refere-se
como possíveis formas de hipnose, à fixação dos olhos sobre um objeto brilhante ou escutando

8
A versão utilizada, neste trabalho, foi a de língua portuguesa de 1996.

929
um som monótono e acrescenta que esses procedimentos servem para desviar a atenção e
mantê-la retida. Parece-me que os mecanismos da Indústria Cultural têm certa analogia com o
processo de hipnose descrito por Freud e fundamentalmente, encontro certa similaridade com o
que acontece com alguns tipos de danças difundidas através de vídeoclips, onde por um lado,
temos uma sobre exposição de imagens que passam frente aos nossos olhos com grande
velocidade e que provocam certa fascinação e por outro, a presença de um som monótono, com
batidas repetitivas.

A INDÚSTRIA CULTURAL: O CASO DA DANÇA

No texto A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, Adorno


e Horkheimer chamam a atenção que, na ideologia da indústria cultural, a própria constituição
dos bens não deixa espaço para a fantasia e o pensamento do espectador, são feitos de forma tal
que sua apreensão exige presteza, dom de observação, mas também proíbem a atividade
intelectual do espectador se eles não querem perder os fatos que desfilam velozmente diante de
seus olhos. Ante isso poderíamos perguntar: qual o grau de compreensão que jovens,
professores e pais teriam sobre a forma e os conteúdos veiculados pelas danças de moda?
Tendo em conta que embora possa se dançar sem música, a relação entre estas duas
manifestações artísticas é muito próxima, e a aceitação o não de determinados tipos de danças
tem direta relação com o tipo de musica. O que permite fazer, segundo Martins Carneiro (2004),
certas analogias com as reflexões feitas por Adorno nos seus estudos sobre música. Para Adorno
os hábitos de audição das massas gravitam em torno do reconhecimento. O principio básico é
que basta repetir algo até torná-lo reconhecível para que ele se torne aceito. Em efeito, Martins
Carneiro indica que as danças que são aceitas são as que mais se repetem através de diferentes
mecanismos que tem autoridade no âmbito da dança, como um grupo famoso, academias e
emissoras da teve.

A “forma” da dança da mídia

A estrutura da danças é elaborada para ser televisionada e os movimentos são


modificados respondendo à necessidade de entrar no visor da câmara. A televisão manda. A
estruturação e o ditame da linguagem da dança que a televisão prescreve é tal que, às vezes, as
pessoas estão em situações, como uma festa, por exemplo, em que não se requereria uma
formação em linhas e fileiras e mesmo assim é desse jeito que se dispõem para dançar
determinadas danças, nas quais o que interessa é o virtuosismo e a habilidade de conseguir
acompanhar a seqüência de movimentos prefixados. Essa condição de ter que responder ao

930
modelo padrão faz que se anulem as possibilidades de um se expressar autônomo e sensível
através da dança.
As características principais que o bem cultural Dança adquire assim, são: mecanização
e automatização de movimentos, simulação de máquina, redução na utilização do tempo -
velocidade e ritmo invariável -, limitação no uso do espaço - só plano frontal e no nível médio -,
sem deslocamentos, qualidades de movimentos reduzidas, pouca variedade e monotonia,
individualismo e escassa comunicação entre os pares, novos padrões de eficiência, novos
conceitos estéticos e morais.
A dança vai perdendo suas particularidades como manifestação artística, sentimentos,
emoções, expressões são desconsideradas em prol de movimentos mais atraentes e virtuosos, o
prazer estético, a experiência estética e os sentidos ficam diminuídos.

O “conteúdo” sexualidade nas danças de moda.

Quando pensamos na sexualidade manifestada nas danças que crianças e jovens


realizam nos deparamos com uma ambigüidade. Estará-se manifestando uma superação a tabus
historicamente produzidos em torno da sexualidade como resultado do processo de civilização?
E nesse sentido poderia ser considerado positivo, como uma forma de aproximação do homem a
sua natureza e suposta superação de dicotomias. Ou, estaremos frente uma perda da
sensibilidade? já que o ser humano parece necessitar cada vez estímulos mais exacerbados para
viver a sua sexualidade. O prazer deve ser produzido e procurado cada vez a graus mais
intensos. Ao respeito Lopes Louro diz “linguagem, crenças, fantasias, desejos inconscientes e
atributos biológicos constituem a sexualidade, em combinações e articulações complexas. A
partir de essa compreensão é que centro a minha preocupação com a estimulação precoce e
inadequada que essas danças provocam com o trato da sexualidade em crianças e jovens.
A sociedade toda se apropria dessas linguagens irrefletidamente, se universaliza e se
naturaliza a problemática da prostituição, da violência e da injustiça à qual essas classes estão
submetidas. Resulta perverso e converte se numa fiel “estilização da barbárie” como expressado
por Benjamin.
Segundo Soares Zuin a reincidência da barbárie é também observada “no consumo de
produtos simbólicos que incentivam a sexualidade precoce das crianças, que ainda não possuem
as capacidades afetivas e cognitivas necessárias para poderem refletir sobre o modelo de
sexualidade imposto” (2001, p. 15)
Considero o trato com a sexualidade um tema bastante controverso, sobre o qual nos
professores não estamos preparados para lidar com isso, e ante a desorientação naufragamos
entre posturas moralistas ou indiferentes. Ao respeito Taborda de Oliveira (2003, p. 165) nos
diz:

931
é claro que, como enfatiza Karl Kraus, pedagogizar a sexualidade, por exemplo, equivale a
deserotizá-la. Mas, na outra ponta, a gravidez indesejada, a prostituição e a disseminação de
doenças sexualmente transmissíveis são um flagelo que atinge crianças e adolescentes em todo
o mundo, mas de forma trágica nos países ao Sul do Equador. Então, diante de dificuldades
inomináveis, formalmente desconsideramos a sexualidade humana como “lugar” de formação,
ou burocraticamente afirmamos que ela não é prerrogativa da educação física, mas, tal vez, do
ensino de biologia ou ciências. E enquanto nos enredamos em discussões corporativas e
formais, nossos alunos continuam se formando (ou deformando) à revelia da nossa intervenção.

POSSIBILIDADES DE RECONCILIAR CISÕES NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Por ultimo, retomo a idéia de Canevacci, quando nos diz que o processo de
transformação é cotidiano e diz respeito a múltiplas frentes, que vão desde a contradição entre
forças produtivas e relações de produção à organização da família, da sexualidade, da
anormalidade, das raças, das gerações. Chamando especial atenção ao fato que, segundo o autor,
foi o indivíduo burguês que alcançou seu máximo nível na descoberta “apenas” formal da
liberdade, da igualdade, e da fraternidade o que provocou o nascimento da ideologia que teve
que mascarar a vergonha, pelo fato de serem eles propriedade, tão-somente, das classes
dominantes. Nesse sentido, considero que o desenvolvimento da ideologia da Indústria Cultural
serviu, e ainda serve, para reforçar e ocultar essa injustiça na promessa da felicidade jamais
cumprida. Canevacci, alerta que cabe a “outros” a tarefa de realizar aquelas promessas.

É com o intuito de contribuir com as possibilidades da promessa da época das luzes vir
a concretizar-se, tornando seus ideais possíveis a outros indivíduos, que a continuação sugiro
algumas perspectivas de trabalho com o conteúdo Dança na Educação Física Escolar, baseada
nas idéias desenvolvidas por Paulo Fensterseifer (2001) que propõe apoiado em Rouanet – que
por sua vez fundamente-se na teses habermasiana - os pressupostos de retorno ao ideal da
Modernidade, a partir do desenvolvimento de uma neomodernidade e do próprio Sergio Paulo
Rouanet (1987) a proposta de Reinvenção das Humanidades nos curriculuns escolares.

Assim as idéias do desenvolvimento de uma neomodernidade baseiam-se no fato de


superar o lado mal sucedido da modernidade. Em palavras de Rounaet:

o homem está querendo despedir-se de uma modernidade doente, marcadas pelas esperanças
traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelos neofundamentalismos
mais obscenos, pela razão transformada em poder, pela domesticação das consciências do
mundo industrializado e pela tirania política e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gênero
humano ( Rouanet apud Fensterseifer 2001, p.178)

Concordando com Habermas que a modernidade é um “projeto inacabado”,


Fensterseifer consente “que é na própria modernidade que encontramos os padrões normativos
que nos possibilitam ‘comparar o existente com o desejável’ (p. 178). E continua, fundado em
Rouanet, explicitando que isso significa “criticar a modernidade real com os critérios da

932
modernidade ideal – a que foi anunciada pelo Iluminismo, com sua promessa de auto-
emancipação de uma Humanidade razoável”, o que é a essência do “ser moderno” (ROUANET
apud FENSTERSEIFER 2001 p. 178) Assim, o autor considera que

buscar no arquivo morto da modernidade o sentido autêntico da modernidade, significa


contestar a modernidade atual em nome da modernidade virtual; significa opor a todas as
fantasias pós-modernas a exigência de um programa inflexivelmente moderno, como única
forma de concretizar as esperanças sedimentadas no projeto da modernidade. (ROUANET
apud FENSTERSEIFER 2001, p. 179)
Uns dos aspectos deste programa é que se aceitam os progressos no desenvolvimento
industrial, tecnológico e a informatização, no entanto, não se idealiza a indústria cultural
eletrônica. Preocupa-se com os efeitos manipuladores tentando “impedir a transformação dos
homens num rebanho de autômatos abúlicos, de zumbis sorridentes e de idiotas robotizados”
(FENSTERSEIFER 2001, p. 179) Rouanet diz que “podemos reabilitar-nos se pudermos
contribuir, pela reflexão ou pela ação, para uma certa correção de rumos”. (p.308). Nesse
sentido, considera fundamental que as humanidades venham a assumir o papel que lhes cabe no
sistema brasileiro de ensino. E as define como as disciplinas que contribuem

para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária


imediata, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico
ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidea, vale
dizer, um ideal civilizatório e uma normalidade inscrita na tradição, ou simplesmente
proporcionar um prazer lúdico”. (1987, p.309)

O autor julga razoável considerar que “pertencem às humanidades disciplinas como


línguas e culturas clássicas, seu objeto original; língua e literatura vernáculas; principais línguas
estrangeiras e respectivas literaturas; história; filosofia, e belas artes”. (Rouanet 1987, p. 309)
Vislumbro, em conseqüência, a necessidade do estudo, na Educação Física Escolar, de
elementos da história universal da dança, a partir dos quais podemos tentar compreender o seu
status na atualidade. Abordando o significado que a mesma apresentou historicamente para a
humanidade, remontando as suas origens e ao seu significado para diferentes culturas e
civilizações, comparando as diferentes características e transformações que esta apresenta na
sua forma e conteúdo, nos diferentes momentos históricos, e que respondem a diferentes
interesses.
Assinalo, também, a importância de assistir a apresentações de diferentes tipos de
danças, o que pode contribuir para desenvolver um outro gosto estético, gosto que, nós
professores, também devemos aprender a cultivar. Esses conhecimentos, acredito, permitirão
perceber que os modelos de danças que hoje se consideram verdadeiros, inquestionáveis e até
com um tom de naturalidade, reconheçam-se como construções históricas e por tanto factíveis
de serem re-significadas e transformadas em prol de uma produção cultural autônoma e não
alienada.

933
Destaco a importância de desenvolver uma metodologia que além de capacitar os alunos
para a crítica da dança, permita-lhes conhecer e experimentar formas novas e variadas. Nesse
sentido, a Dança Improvisação apresenta-se como a mais apropriada para o ambiente escolar,
por fugir de modelos predeterminados e incentivar a criatividade, flexibilidade de agir, a
sensibilização e conscientização do corpo e do movimento, a comunicação, a expressão e
socialização, como também a capacidade de representação e compreensão de formas, idéias e
sentimentos. Essa modalidade de dança contribui também, para o desenvolvimento da
verbalização e comunicação oral, constituindo-se como propícia para o desenvolvimento de
pessoas mais participativas nas instâncias da vida social. Fundamental se torna desenvolvermos
estratégias de socialização da mesma, para evitar a elitização que tem caracterizado outras
poéticas de dança ao longo da história e, conseqüentemente, devemos superar o populismo que
“naturaliza” outras formas de danças, produto da padronização e banalização de cultura de
massa.

Chamo a atenção para a necessidade de desenvolver nos cursos de formação de


Educação Física uma consciência crítica dos bens da cultura de movimento veiculados pelos
meios de comunicação e para a superação do estudo das ciências humanas, nestes cursos, como
simples conhecimentos técnicos.
Reconheço a existência, embora quantitativamente limitada, de relevantes trabalhos9 a
nível acadêmico, que vêm desenvolvendo propostas metodológicas críticas para o trabalho da
dança na escola e o desenvolvimento de projetos que nessa linha vêm trabalhando, como por
exemplo, os descritos por Strazzacappa (2002-03) Urge, no entanto, a proliferação dos mesmos.
Ressalto o indicado por Kunz sobre a importância de percebermos a existência de
interpretações e significações individuais e coletivas que fogem da padronização e
estereotipagem, para poder potencializá-las, auxiliando a criança e o jovem a reorganizar o
desenvolvimento de subjetividades (e intersubjetividade) críticas e emancipadas, consideradas
pelo autor, imperativo para a construção de uma nova sociedade. (2003)
Desse modo, acredito que estaremos contribuindo, desde o tratamento da dança na
escola, com a formação de indivíduos autônomos onde os mesmos se reconheçam, nas suas
diversas individualidades, capazes e responsáveis de assumirem o seu destino individual e
coletivo em prol de uma humanidade mais emancipada, esclarecida e feliz.

9
Alguns deles já citados na introdução.

934
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936
Infância, mídia e indústria cultural: outros traços constitutivos.

Aldo Pontes
Doutorando FE-USP
Doente USF, FAM

Categoria: Comunicação em Pôster.


Eixo Temático: Comunicação, Indústria Cultural e Semiformação

1 – Introdução

Saiba: todo mundo foi neném


Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem

Saiba: todo mundo teve infância


Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu
(Saiba - Arnado Antunes)

Um primeiro olhar sobre a letra habilidosamente composta por Arnaldo


Antunes, certamente não revela muito mais que a obviedade: ninguém escapa da infância. Até
aqui, nada de novo. Agora levando em consideração os estudos sobre a infância, mais
especificamente aqueles oriundos da sociologia, da antropologia, psicologia social e áreas
correlatas, temos todas as pistas para suspeitar que a infância vivenciada por Albert Einstein foi
completamente diversa daquela vivida por Buda; que a infância Adolf Hitler, não foi a mesma

experienciada por Galileu Galilei... Isso ocorre por que a infância1, bem diverso do que
comumente costumamos entender, precisa ser repensada e compreendida como muito mais que
apenas uma fase na vida dos indivíduos. Concebida a partir de uma perspectiva histórico-
cultural, essa se constitui como sendo uma invenção, uma criação do homem moderno
influenciado por forças políticas, sociais, econômicas e culturais. Dessa forma, à medida que a
sociedade sofre mudanças mais amplas, a idéia de infância também estará sujeita a
transformações. Diante disso, nos questionamos como é a infância em uma sociedade marcada
definitivamente pela ação da Indústria Cultural e, conseqüentemente, das mídias, como a que

937
vivemos hoje? É no enfrentamento do desafio de pensar em respostas a essa questão que nos
aventuramos neste texto. Estamos certos dos nossos limites de tempo espaço, mas, mesmo
assim, não abdicaremos de socializar um pouco do que encontramos no percurso na feitura de
nossa tese de doutorado que vimos desenvolvendo na FE-USP sob a orientação da Prof. Dra.
Heloisa Dupas Penteado.

1 – Infância, indústria cultural e mídia televisiva: tecendo a trama.

Mapeando o que dizem alguns autores das literaturas que tentam responder a
questões similares a que propomos aqui, de forma ponderada ou radical, observamos que
apontam de forma bastante recorrente ações agressivas da Indústria Cultural sobre a infância. A
máquina movente que legitimando essa ação continua sendo a televisão que, definitivamente
instalada nos lares e outros espaços do cotidiano, molda comportamentos, sugere modismos,
coage ao consumo, e inculca valores (Rezende; Rezende, 2002).

Na sociedade midiática, desde a infância o indivíduo é seduzido pelo espetáculo


veiculado pela mídia televisiva (Debord, 1997) que, por sua própria constituição objetiva, veta a
atividade mental (crítico-reflexiva) do espectador em troca de uma falsa ilusão de prazer,
fantasia, gozo... (Adorno, 2002): "o espetáculo é uma visão de mundo que se materializou, é a
afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana - isto é, social – como simples
aparência". Assim, de acordo com Debord (1997), se o objetivo do espetáculo televisivo é
convencer de que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A realidade surge no espetáculo,
e o espetáculo é real (Debord, 1997).

A sedução pelo espetáculo exibido na telinha da TV ocorre pelo fato de nada se


interpor entre a criança e a TV. Para ela, a TV é o projeto total, que não se ausenta, não se cala,
não se nega. A TV não frustra, não permite a dúvida nem a angústia. Faz cessar tensões
internas, faz sonhar. A relação entre a criança e a TV é a relação com um objeto total (Kehl,
1991).

1 “O sentimento da infância não significa o mesmo que a afeição pelas crianças: corresponde à
consciência da particularidade infantil, é essa particularidade que distingue essencialmente a
criança do adulto, mesmo jovem” (Ariès, 1981, p. 99).

938
Por meio da TV, a Indústria Cultural atinge não apenas as crianças com maior
poder aquisitivo, paradoxalmente, são as com menor poder aquisitivo suas maiores
consumidoras. Como assinala Ferrés (1996, p. 79-80), a televisão produz seus maiores efeitos
socializadores nas camadas sociais e culturais mais frágeis. Em conseqüência, as crianças são
umas presas fáceis e influenciáveis do meio. E a falta de educação aumenta o risco de
manipulação: antes de mais nada porque, quanto menos educação, mais ócio incontrolado e,
portanto, mais tempo de exposição ao meio; mas porque também a educação não proporciona
orientações para um consumo racional e crítico.

Essa sedução do telespectador mirim torna-se ainda mais fácil em uma


sociedade cada vez mais violenta, em que as brincadeiras comuns da infância, profundamente
marcadas pelo lúdico, pela troca, pela socialização, pela criação, realizada em espaços abertos
como quintais, parques, praças etc., saem de cena e dão lugar hoje a uma infância cada vez mais
marcada pela eletronização na qual cada criança, enclausurada em seus quartos individuais,
consome TV, vídeo game, internet, telefone etc., uma infinidade de produtos anunciados por
uma publicidade especificamente criada para ela. Afinal a criança de hoje é o consumidor de
amanhã, conforme nos lembra Giacominni Filho (1998).

Em consonância com o que indica esse autor, Henry Giroux (2004), analisando
a ação da Disney no contexto social infantil, alerta que as crianças experimentam a influência
cultural da Disney por conta da confusão de representações e de produtos encontrados em
vídeos domésticos, shoppings, filmes “educacionais”, bilheterias, programas populares de TV,
restaurantes familiares, e outras formas de extensão da marca.

Outro aspecto que contribui decisivamente para a constituição dessa infância


consumidora do espetáculo televisivo é o fato das principais instituições reguladoras,
formadoras nessa fase, a família e a escola, estarem cada vez mais distantes da realidade
vivenciada pelas crianças, aos poucos deixando de ser referenciais para elas. A escola,
confinada a um currículo que há muito tempo não dá conta da realidade; e a família (nuclear,
burguesa) preocupada apenas em formar, em educar a criança para ter sucesso na vida adulta,
acabaram perdendo sua relevância, deixando um vazio propício para o surgimento de uma nova
e competente reguladora, formadora: a televisão. Nas palavras de Caparelli (2002, p. 133): “A
importância da família e da escola como mediadoras do conhecimento foi diminuindo com o
aparecimento dos meios massivos de comunicação” .

939
Ainda em relação à saída de cena das famílias, hoje preocupadas apenas com o
futuro brilhante de seus filhos, vale observar que a grande estratégia utilizada é a submissão dos
pequenos a rotinas estressantes que começam na segunda e invadem os fins de semana: balé,
karatê, natação, escola, aula particular, campeonato disso, campeonato daquilo... Dessa forma,
não há dúvida de que as crianças estarão preparadas para a vida adulta, para o competitivo
mercado de trabalho da sociedade moderna, pois já na infância estão acostumadas com o
estresse da constante corrida contra o tempo, típica do mundo dos adultos.

Kehl (2004) chama a atenção para os possíveis danos dessa realidade afirmando
que, em relação à brincadeira, a situação das crianças das classes média e alta é muito perversa,
pois: “as crianças-com-agenda desaprendem de brincar. Os pais estão preocupados em prepará-
las para o futuro, para fazer sucesso no mercado de trabalho do mundo capitalista, para
corresponder a padrões de eficiência sempre mais exigentes na nossa imaginação do que na
realidade. Se esquecem de deixar um tempo para que elas aprendam a viver. Acostumadas a
uma vida programada, tutelada por profissionais, babás e motoristas, estas crianças
desenvolvem um horror ao vazio”.

Sobre essa falta de atenção às crianças por parte das famílias contemporâneas,
há registros de estudos realizados nos Estados Unidos que comprovam que naquele país os
adultos dedicam à criança, em média, sete minutos por dia. Dedicar significa estar com ela sem
fazer outra coisa, como ler jornal, falar telefone etc. Tal realidade é apontada por Campos;
Souza (2003) quando indicam que: O tempo compartilhado entre pais e filhos é cada vez mais
escasso: trabalha-se cada dia mais para o aumento do poder aquisitivo (e conseqüentemente do
consumo), e atualmente a mulher tem uma contribuição crescente na fatia produtiva da
população, ficando bastante tempo fora de casa. Os pais chegam tarde em casa, as crianças são
atarefadas, as refeições são solitárias ou feitas fora do lar. A família se reúne cada vez menos
para conversar sobre o cotidiano... Podemos identificar também como uma característica de
nossa sociedade as múltiplas formas de conjugalidade: famílias monoparentais, descasamentos,
recasamentos, assim como a crescente incidência de filhos únicos (Campos; Souza, 2003).

Inseridas nesse contexto, às crianças sobram poucas opções de lazer e


entretenimento típicos dessa categoria. Restando-lhes apenas a velha companheira de todas as
horas: a televisão.

940
Em meio a essa outra realidade, o preço pago é a privação da criança de dois
fatores fundamentais para o desenvolvimento de sua autonomia: a brincadeira e o humor
descompromissados, sem hora, tempo marcados, cronometrados. Existe algo mais repressivo do
que a frase: “Brincadeira tem hora?”. Vale retomar aqui as palavras de Kehl (2004) quando
indica que a brincadeira floresce no tempo vazio. Mais ainda: floresce quando a cabeça está
vazia. Com muita perspicácia, a autora chama atenção para as muitas formas de repressão,
castração da brincadeira. De acordo com a autora: "Cabeça vazia, oficina do diabo", diziam as
avós de antigamente, conscientes de que para impedir uma criança de pensar bobagens,
travessuras e aventuras, era preciso ocupá-la com alguma coisa. “Mas o diabo que se engendra
numa cabeça vazia é o capetinha do faz-de-conta, do devaneio, da pura alegria de viver”.

Na concepção de Sayão (2004), os pais têm a sua parcela de culpa pelo fato das
crianças entrarem no mundo adulto cada vez mais cedo. Isso pode ser verificado quando os pais
acabam esquecendo que, apesar de já considerarem seus filhos mocinhos ou mocinhas que
precisam se comportar, esses ainda não são adultos, há uma etapa a ser vivida: “Até pouco
tempo, as crianças brincavam de namorar, brincavam de ir ao salão de beleza, de médico, de
dentista etc. Elas brincavam de ser gente grande” (p. 12). Diante disso, a autora alerta que há
pouco tempo para ser criança, que cada vez mais o período da infância é bem mais curto,
considerando a expectativa de vida.

Por um outro lado, Sayão (2004) diz que os pais não são os únicos, nem muitos
menos os principais responsáveis pelo encurtamento da infância. Afirma que o mundo
contemporâneo elegeu a juventude como seu ícone maior, supervalorizando dessa forma o ser
jovem, suplantando assim a infância. Essa realidade é comumente legitimada nas telas das
mídias, as quais não se cansam de mostrar que ser jovem é sinônimo de atitude.

Refletindo sobre o que assinala Sayão (2004), entendemos que o fruto dessa
ideologia maciçamente propagada pelas mídias no mundo atual é que o tempo de ser criança
precisa passar rapidinho para que a criança se torne logo um jovem, um adulto para ser “aceita”,
“valorizada”, “reconhecida” pela sociedade.

A impressão que temos, face ao exposto, é que novamente estamos diante de


uma reconfiguração da idéia de infância, já que, como apresentamos em linhas gerais, as marcas
da infância hoje são outras bem diferentes das da vivenciada há algumas décadas atrás.

941
“Estamos em via de exorcizar uma imagem bicentenária de criança e trocá-la pela imagética do
jovem adulto” (Postman, 1999, p.139).

Para Sarmento (2006, p. 17) trata-se de um fato consumado: “o lugar da


infância na contemporaneidade é um lugar em mudança. A modernidade estabeleceu uma
norma da infância, em larga medida definida pela negatividade constituinte: a criança não
trabalha, não tem acesso direto ao mercado, não se casa, não vota nem é eleita, não toma
decisões relevantes, não é punível por crimes (é inimputável). Essa norma assenta num conjunto
estruturado de instituições, regras e prescrições que se encarregam da “educação” da criança,
especialmente a escola e a família”.

Alguns autores mais extremistas, como Postman (1999), por exemplo, já há


algum tempo vêm sinalizando o desaparecimento da infância. “Num mundo letrado, ser adulto
implica ter acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais. Num mundo
letrado, as crianças precisam transformar-se em adultos. Entretanto num mundo não letrado não
há necessidade de distinguir com exatidão a criança e o adulto, pois existem poucos segredos e a
cultura não precisa ministrar instrução sobre como entendê-la" (p. 31).

Em seus estudos sobre a relação mídia e educação, Postman (1999), a partir de


uma perspectiva cultural, afirma que o fato da família vir gradualmente perdendo o controle
sobre a vida de seus filhos aliada à crescente força que a mídia televisiva vem ganhando na
sociedade, contribui diretamente para o desaparecimento da linha divisória entre a infância e a
vida adulta. Nas palavras desse autor: “a televisão destrói a linha divisória entre infância e idade
adulta de três maneiras, todas relacionadas à sua acessibilidade indiferenciada: primeiro, porque
não requer treinamento para apreender sua forma; segundo porque não faz exigências
complexas nem à mente nem ao comportamento, e terceiro porque não segrega seu público” (p.
94).

Configurada dessa forma, em uma cultura profundamente marcada pela ação da


Indústria Cultural e das mídias, ser criança, adolescente, adulto e idoso é determinado pelas
mídias, ou melhor, pelos interesses que estão subjacentes, os interesses da Indústria Cultural. "A
questão é que todos os acontecimentos na TV surgem completamente destituídos de
continuidade histórica ou qualquer outro contexto, e numa sucessão tão rápida e fragmentada
que caem sobre a nossa cabeça como uma enxurrada. Esta é a televisão como narcose,
entorpecendo a razão e a sensibilidade" (Postman, 1999).

942
3 - Notas finais

Ao excursionarmos um pouco pela história da infância para entendê-la hoje,


sentimos a necessidade de ampliar o nosso olhar para ver não mais a infância, mas as infâncias.
Palavra de deve ser pensada em sempre como um processo em constante transformação. Apesar
de caracterizada dessa maneira, é muito instigante saber que algumas marcas dessa categoria
vem se perpetuando ao longo dos tempo, dentre essas, enfatizamos: a ludicidade; a curiosidade
infantil; a necessidade de querer saber como as coisas funcionam; como são por dentro; o querer
ver mais do que o tempo e os adultos permitem. Fazemos esse registro com o intuito de chamar
atenção para as inúmeras possibilidades interação com os pequenos no sentido de garantir-lhes
experienciar intensamente as diversas nuances da velha infância.

Tratam-se de formas de burlar a dinâmica agressiva da Indústria Cultural e das


mídias sob a constituição da nova infância.

É fundamental que fique claro que, mesmo sendo muitas vezes pouco amiga das
crianças, pensamos que a televisão em si não pode ser considerada sozinha como sendo a grande
responsável pelos inúmeros problemas que emergem do cotidiano escolar. Como nos lembra o
professor Gómez (2006): "No obstante los recursos y las características tecnológicas propias del
medio televisivo y su particular definición social como institución, su influencia en la audiencia,
aunque creciente e importante, no es ni única ni totalizadora"

A TV também pode em muito contribuir para uma formação crítica dos


pequenos. Como nos ensina Adorno (1995, p. 76), podemos identificar duas funções da TV na
formação cultural dos indivíduos: a primeira tem a ver com uma ação deformativa (responsável
pela divulgação e inculcação de ideologias (dominantes) para/na consciência dos espectadores);
já a segunda, teria sim uma ação formativa (o uso desse meio de comunicação para divulgação
de informações e de esclarecimentos). Porém, não podemos esperar muito das emissoras de TV,
pois, mesmo sendo uma concessão pública, o compromisso primeiro da TV não é educar, mas
sim entreter. É aí que defendemos a importância de uma mediação pedagógica da família, da
escola, dos professores. Mestres que cotidianamente são mediadores na construção do
conhecimento dos pequenos. Trata-se de enriquecer a experiência, mas sem negá-la, de
possibilitar uma leitura reflexiva e crítica, mas sem eliminar o prazer sensorial e emocional

943
(Ferrés, 1996, p. 83). Em outras palavras, instiga-los a exercitar as muitas possibilidades de ver
e viver o cotidiano.

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A CENA DIDÁTICO PEDAGÓGICA NO ENSINO FUNDAMENTAL: um espaço
de mediação da Indústria Cultural

Aline Ongaro Monteiro de Barros


Maria Beatriz Machado Leão
Sérgio Texeira
Thelicia Mendes Canabarra
Profº Dr Luis Antonio N.Lastória - orientador
Profª Drª Nilce A. de Arruda Campos - orientadora

Introdução
A escola, como instituição social de cunho educativo deveria ser de fundamental
importância para a perpetuação de nossa cultura, uma vez que ela é uma particularidade
inserida no todo social. Isso, contudo, não significa que deva ser idêntica ao todo. Na
verdade ela reflete, enquanto particular, o movimento da totalidade. Nessa perspectiva,
a lógica que rege cada momento histórico da totalidade sempre tenderá a definir a
finalidade objetiva da escola. Se hoje a esfera educacional, também, se tornou refém da
indústria cultural, sem dúvida o sistema educacional irá refletir as conseqüências disso
para a formação cultural dos indivíduos.
Para se compreender a situação real do sistema educacional brasileiro, suas
atuais políticas e a maneira como a indústria da cultura se insere de modo mais visível
no contexto da educação há que se resgatar dados do início da década de 90, época em
que se inaugurou o lema “Brasil Novo”, na era Collor. Tal governo assumiu a prioridade
da inserção do País no mercado globalizado, comandado pelo capital financeiro, ao qual
se subordinaram as políticas de modo geral. O modelo neoliberal de economia, cuja
racionalidade financeira visava tornar o país atraente ao fluxo do capital internacional,
através da redução de gastos públicos e do encolhimento do Estado, tornou-se via de
realização da política educacional. Conforme Monteiro (2000):

Nesse contexto, o “Plano de Qualidade Total em Educação” foi


elaborado com objetivos de privatização, descentralização,
priorização do novo modelo educacional e qualidade do ensino,

946
enquanto produtividade, atendimento às necessidades
mercadológicas e avaliação sistemática do Sistema
Educacional, calcadas nas demandas do mercado. Essa nova
diretriz passou a enfatizar as Necessidades Básicas de
Aprendizagem entendendo os processos de aprendizagem
direcionados à incorporação e difusão do desenvolvimento
tecnológico, contemplando ação (saber fazer), utilização (saber
usar) e interação (saber comunicar).

Em meados da mesma década e dando continuidade a tais políticas, o Programa


de Progressão Continuada –cujos objetivos de democratizar o ensino bem como
solucionar o problema da repetência e evasão escolar– acabou por acentuar a
sedimentação de um conhecimento superficial e acrítico nos diversos extratos sociais e
colaborar com o alto índice de analfabetismo funcional de boa parcela da população
estudantil.
Segundo N. A. Campos (2004), ao analisar os Parâmetros Curriculares
Nacionais, a aproximação entre psicologia e educação no contexto neoliberal resultou
num ‘construtivismo tecnicista’ que se configurou como pilar da lógica das alterações
no sistema educacional brasileiro, ao centralizar-se na dimensão ativa do aluno como
sujeito de sua formação. Desse modo, a escola deixa de ser espaço de educação e
veiculação do ideal de autonomia para atender às exigências de mercado. Cabe portanto
ao sistema de ensino, promover a profissionalização e a adequação dos indivíduos às
urgências produtivas , transmitindo competências e habilidades para que atuem
competitivamente. Assim, a educação assume um caráter pragmático e utilitarista,
transformando a formação docente em capacitação para o serviço, descuidando da
formação inicial e de uma fundamentação teórico-política.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que todas as transformações ocorridas no
papel da educação, principalmente nessas últimas décadas, traduzem o processo de
deslocamento generalizado da tecnologia industrial – suas lógicas e também seus
instrumentos – para as esferas sociais e subjetivas, processo este, denominado por
Theodor Adorno e Max Horkheimer de indústria cultural. De fato, o que se vê é uma
racionalização do todo social, que passa a ser mediado pelas mesmas categorias que

947
regem a produção material, como a uniformidade e a fragmentação, as quais buscam o
máximo de eficiência com o mínimo de desperdício (Cf. CROCHIK, 1998).

Se esta racionalização é desejável na produção e na administração dos


bens necessários para a autoconservação da humanidade, ela suscita
questões importantes quando se apresenta nas esferas que são, ou
deveriam ser, o espaço de subjetivização da cultura e, portanto, da
individuação, tal como é o caso da educação. A escola, por exemplo,
que mantinha uma certa autonomia em relação à produção material e
por isso podia pensá-la e negá-la como sendo a principal esfera da
vida, à medida que adquire a função de produzir e reproduzir a mão-
de-obra, diminuindo o seu interesse pela formação individual,
colabora com a eliminação da possibilidade de formar alunos que
possam refletir sobre as condições atuais de vida (CROCHIK, 1998, p.
17).

Ao reduzir o papel do educador a uma dimensão secundária de mero facilitador


de ensino, carente de uma perspectiva teórico-metodológica, a autoridade do professor
se viu fragilizada, tornando as condições concretas de aprendizagem mais susceptíveis à
intromissão de produtos externos ao currículo escolar - produtos da Indústria Cultural.
Tais produtos acabam por acentuar a desintegração na formação educacional dos
indivíduos por meio da deterioração progressiva do ensino que se transforma em meras
informações fragmentadas e superficiais. A formação cultural, que conforme Adorno
(1996), deveria possibilitar condições aos indivíduos para se realizarem com autonomia
e liberdade de espírito, sob o ideário neoliberal, resume-se a uma semiformação que
aniquila a possibilidade do pensar humano, conduzindo-o ao domínio da heteronomia.
Como conseqüência desse processo, o que se observa hoje em dia, é que a
instituição escola vem perdendo sua função formativa. Cada vez mais é possível
constatar que a maior parte dos profissionais ligados às instituições de ensino, se
apresenta despreparada para exercer o ato educativo, pois se insere no contexto escolar,
sem o devido domínio dos conhecimentos que devem proporcionar às crianças.
Desse modo pode-se dizer que o avanço do capitalismo verificado nas duas
últimas décadas fez com que a relação entre os objetivos preconizados para a educação

948
brasileira e o movimento de concretização da totalidade social viesse a se tornar cada
vez mais imediato, ou seja, a educação, enquanto finalidade primeira da escola, passou a
ser subsumida pelos mecanismos da indústria cultural que, nesse caso, age
insidiosamente sobre a padronização dos eventos culturais e sobre a racionalização da
sua distribuição.
Na perspectiva de produzir conhecimentos que dêem visibilidade ao processo de
deterioração da formação educacional dos indivíduos é que se insere o presente estudo,
cujo objetivo central é o de investigar as ações didático-pedagógicas do professor
enquanto mediações da Indústria Cultural e da “semiformação generalizada”. Nesse
artigo pretendemos apresentar os resultados parciais obtidos através de pesquisa
empírica, realizada em uma escola pública de ensino fundamental do município de
Piracicaba.

Metodologia

A presente investigação constitui-se como um desdobramento de um projeto


denominado “Ação Psicológica na comunidade: a questão do fracasso escolar”. Tal
projeto tem início na Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP – vinculado a
um estágio em Psicologia constituído por um eixo teórico-prático que abarca
referências da Psicologia Educacional e Psicologia Social. Tal estágio é conhecido
como ‘Projeto Integrado’ por envolver dois campos de conhecimento e atuar junto a
escolas da periferia do município de Piracicaba. No ano 2001, o trabalho oriundo deste
projeto começou a ser realizado em uma escola da rede municipal de ensino
fundamental, fonte do material coletado para a presente pesquisa.
O cenário no qual se insere tal escola é marcado pela precariedade das condições
de subsistência e por uma disparidade de valores e crenças, decorrentes não só da
diversidade da procedência territorial dos seus habitantes, como da forma que
adquiriram suas moradias. Esse bairro, inicialmente, foi projetado para assentar inscritos
num programa habitacional do município, mas acabou por abrigar também famílias
retiradas de áreas de risco, bem como, inúmeras famílias que invadiram as habitações
não ocupadas.

949
Comprometido com a perspectiva de colaborar com um ensino público de
melhor qualidade, o Projeto Integrado pretende resistir ao caos do cenário educativo
nacional, buscando alternativas para intervir na realidade produzida pela política
educacional que, cada vez mais, imprime ao ensino uma qualidade questionável. Entre
outros objetivos, o trabalho atual do estágio direciona-se à reversão do analfabetismo
funcional instalado nas instituições públicas de ensino e à produção de conhecimento
acadêmico que auxilie reflexões acerca da educação brasileira.
Como este estágio conjuga ensino-pesquisa e extensão, a problemática da semi-
formação e da escola como um dos braços da indústria cultural, tornou-se um eixo de
investigação a partir do qual se desdobra o presente estudo que, como vimos no início,
tem como meta investigar as ações didático-pedagógicas do professor enquanto
mediações da Indústria Cultural e da “semiformação generalizada”.
Com o intuito de averiguar como se configura a presença da indústria cultural na
didática do professor da mencionada escola, realiza-se a coleta dos dados para essa
investigação. Essa coleta envolve três etapas: a) observações cursivas roteirizadas,
realizadas em salas de aula da Etapa Inicial e Ciclo I do ensino fundamental; b) análise
de documentos institucionais; c) entrevistas semi-dirigidas desenvolvidas por eixos
temáticos, realizadas com os professores das salas de aula observadas. Até o momento,
foi realizado um total de doze observações: oito em classes de Ciclo I, Etapa I do ensino
fundamental (antiga 1º série), e quatro em salas da Etapa Inicial (antigo pré-primário).
Concomitantemente teve início a análise documental dos planos de ensino e planos de
aula dos professores das salas em observação, visando detectar a relação de coerência
desses documentos com a proposta educacional da escola, seu projeto pedagógico e a
ação didática do professor.

A Indústria Cultural no cenário da Escola

O fracasso escolar –fenômeno que atualmente se expressa sobretudo através dos


altos índices de analfabetismo – imprime uma marca de impotência tanto nos alunos que
se tornam estigmatizados por essa experiência, quanto no corpo docente que se submete
a esta aparente fatalidade. Tal fenômeno, se problematizado pela ótica da Teoria Crítica,
pode ser diagnosticado como resultado da reprodução dos mecanismos utilizados pela

950
Indústria Cultural para propagar no social sua ‘mercadoria’; mecanismos estes, que
estão servindo de modelo para a inserção do conhecimento em sala de aula. Nesse
sentido o papel da Didática na formação dos professores é assunto que não pode ficar
apartado, uma vez que é peça fundamental na mediação do ensino.
A prática educativa deve ser estabelecida não só por critérios que levem em
conta o enfoque curricular (grade/planos de ensino) e o uso preciso de estratégias e
metodologias que assegurem os conteúdos, mas também por uma atuação
constantemente compromissada com uma visão crítica e reflexiva por parte do
educador. A falta desses recursos reafirma a semiformação dos professores e revela os
vínculos estreitos com a Indústria Cultural como mediadora do ensino.
Na escola investigada a carência de recursos pedagógicos pode ser constatada
nas observações realizadas como a que se expressa no episódio em que os alunos
estavam sugerindo um nome próprio ao substantivo ‘cão’ com a finalidade de a
professora ensinar a diferença entre substantivos próprios e comuns. Vejamos:

CENA I
...Bom, vamos fazer uma votação pro nome de cachorro. (escrevendo as sugestões
dos alunos num cantinho da lousa): Sc. (para ScoobyDoo), Rambo, Mustafá,
Maycou, Rex, Pingo, Samueta, Espot , Bt. (para Bethooven) e L. (para Lessie)
Começa a votação. A professora pede para os alunos levantarem a mão uma vez
só, mas a regra não é cumprida:
Professora:-....levanta a mão tudo de novo ... QUANTAS PESSOAS VOCÊ É,
ZAQUEU?(a sala ri) Nova votação (não adianta), a professora percebe que a regra
não vai ser cumprida. As crianças ora levantam o braço 2 ou 3 vezes, ora levantam
de forma dúbia . A professora diz: Levantar o braço é isso aqui, ó...(mostrando o
braço bem erguido) ...
(01h40min) LESSIE finalmente ganhou a votação, mas a professora não sabe
como escrever: LESSI.... olha para a pesquisadora e pergunta, visivelmente
constrangida: É assim que se escreve? Ao perceber seu constrangimento, a
pesquisadora diz que também não tem certeza, pois não é nome em português, mas
achava que tinha um E no final.
Ao escrever Lessie na frente de ‘cão’, a professora comenta: a gente quer ser
democrática, mas num dá.... Bom gente, eu vou procurar no dicionário e depois eu
falo pra vocês como é que escreve certinho, tá? (Parece agir como se o nome
Lessie estivesse no dicionário)
Próximo item (novela) foi quase unanimidade: ‘Belíssima’.

951
No item loja - com alguma dificuldade para se lembrarem - foi sendo sugerido:
‘Carrefour’, ‘Shopping’, mas a professora optou rapidamente por ‘S.S. Presentes’,
(loja da irmã de um aluno).
Com as listas completas, os alunos começam a cópia e a professora dá início à sua
jornada pelas carteiras, enquanto relembra:- ah....deixa eu riscar pra vocês o
caderno...PODE DESPERTAR, ‘SEU JOSÈ’... O SR. TAMBÉM, ‘SEU
JOAQUIM’....

A semiformação produz uma deformidade na subjetividade dos indivíduos e cria


uma percepção equivocada da realidade, induzindo-os a participarem de uma
unanimidade artificialmente construída pela cultura de massas e produzindo espaço
fértil às ações da Indústria Cultural nas diversas esferas da relação humana, inclusive a
religiosidade, hoje em dia banalizada e massificada pela poderosa e ascendente indústria
da fé, como podemos constatar na cena a seguir:

CENA II
....Ao chegarmos na escola nos deparamos com os alunos reunidos no pátio,
enfileirados por classe, cantando músicas de conotação religiosa
(evangélica).Em seguida rezaram o Pai Nosso (2 vezes, pois um dos lados
rezou mais rápido que o outro, segundo a coordenadora, que comandava a
oração). E, minutos depois, já na sala de aula:
Professora:Boa tarde!!!
Todos: Boa taaarde...
Professora: Já falamos oi, já rezamos duas vez pois da primeira rezamo
correndo. Como é que vamos num atrapalhar se a gente reza correndo? No
‘venha a nós’ num é tudo pra gente...é o vosso reino; não é seja feita a nossa
vontade, é a vossa vontade, a vontade de deus, né gente? Ceis prestenção na
tia , que ela puxa certo.

Nessa lógica, a semiformação observada no corpo docente da escola em questão,


e evidenciada nas interações educativas destes com os alunos, traduz uma verdade
condicionada objetivamente por uma subjetividade socialmente deformada.
A partir das observações em sala de aula, pudemos constatar como a Indústria
Cultural permeia a prática educativa, valorizando a busca do prazer imediato e da
alegria em detrimento de uma organização didático-metodológica que possibilite ao
menos, a apreensão das diretrizes necessárias à realização das atividades propostas. O
episódio a seguir, quando a professora repentinamente, lembra-se de um bicho de

952
pelúcia que foi utilizado no ano anterior como objeto de interação entre escola-família –
e em função dessa lembrança, interrompe a atividade que está sendo desenvolvida –
ilustra bem esse fato:

CENA III
Professora: Tchutchucão...ah...lembra... ele está no armário... os meninos
chamavam ele de Tchutchucão e as meninas de Tchutchuquinho....
Interrompe a atividade e dirige-se ao armário, enquanto vai explicando para a
sala:
...O Tchutchucão era um cão que passava de casa em casa...fazia tarefa,
dormia, jantava, escovava os dentes, até ia ao cinema, ao shopping....uma vez
ele foi numa festa de aniversário e ninguém queria saber do palhaço...só dava
o tchutchucão...ele voltou todo sujo de brigadeiro e a gente teve que lavar...era
muito legal... só a mala dele está aqui...essa sacolinha é das roupinhas
dele....tinha que ver...às vezes sumia roupinha que era de bebê...as mães
pegavam e num devolviam ou ele chegava com um monte de roupinha
nova....Eu pensei que ele estava aqui....alguém deve ter pegado....GENTE....O
TCHUTCHUCÃO SUMIU MESMO!!

Da mesma forma, a infantilização, recurso da mídia para o entretenimento do


público infantil, é clichê frequentemente usado como solução didática. Diminutivos e
abreviações duvidosas são utilizadas em larga escala como forma de se estabelecer certo
caráter de camaradagem, para que a aula fique mais atrativa:

CENA IV
Professora: Ó, gente! A “prô” vai sortear uma letrinha e vocês vão
olhar na cartelinha que eu vou passar pra vocês e marcar o número
que a “prô” vai falar nas suas cartelinhas!

Vale também observar, na continuidade desse mesmo episódio, como a


possibilidade de um aprendizado consistente é atrofiada por um esquematismo que
prioriza o tempo em detrimento do sentido e a memorização automatizada é mais
valorizada que a capacitação pessoal do aluno:

CENA V.
Professora: Eu vou escrever o número sorteado na lousa uma vez
só… aí a “prô” (dirigindo a si mesma) vai apagar rapidinho… então
tem que prestar atenção, hein! (percebendo que alguns alunos estão
retirando o plástico que envolve algumas das cartelas de bingo)

953
NÃO! NÃO, GENTE! As que estão com plastiquinho devem
permanecer com plástico!
Os alunos começam a falar ao mesmo tempo.
Professora: Oi, bem.. deixa eu falar! Posso falar? (é interrompida
pela solicitação de um aluno que pede para ir ao banheiro)
Professora: Posso falar? Ai meu Deus! Depois vocês falam. Não fica
fazendo assim na cartela que vai estragar! NÃO! NÃO E NÃO!

Tal como num programa infantil de televisão, a professora se traveste no papel


da apresentadora de gincanas, procurando manter o domínio do público ao incentivar
com premiações o cumprimento das tarefas:

CENA VI
Professora: Gente, gente! Se vocês não se comportarem, a estagiária
não vem mais aqui…(A classe toda olha para a pesquisadora que
está apenas coletando os dados para este estudo, como que se
quisessem uma confirmação sobre a validade daquela declaração. A
pesquisadora tenta não esboçar expressão alguma…)
Professora: Ó, gente! Quem completar a cartelinha primeiro
ganha uma caixa de giz de cera!
Alunos: Êba!!!

Essas formas de relação didático-pedagógica, não apenas incentivam a idéia de


minoridade do indivíduo em processo formativo, como transformam a educação num
produto para consumo em larga escala, erradicando do conhecimento a sua
profundidade. A proposta do 'aprender brincando', utilizada como recurso da pedagogia
construtivista, se levada às últimas conseqüências, demonstra uma total ausência de
reflexão crítica e aponta para a idéia de que a diversão tem que imperar numa sala de
aula a qualquer custo, superando até a possibilidade de transmissão de algum
conhecimento.
No episódio abaixo –que ocorreu durante uma suposta aula de Educação Física
cuja atividade foi uma brincadeira com jogos didáticos da língua portuguesa!–, foi
possível observar que a incapacidade da professora em efetivar a atividade ficou muito
além de ser apenas uma falha didático-metodológica e nos demonstra uma ausência total
de significação dos eventos ali ocorridos, em prol do divertimento e do preenchimento
do tempo. De início, pudemos observar que a falta de organização da professora e a não

954
preparação prévia tanto do material, quanto da atividade em concordância com o plano
de ensino, comprometem os resultados obtidos:

CENA VII
São 02h45min e a professora diz às crianças que trouxe jogos para brincar.
São 4 tipos de jogos com regras e abordagens diferentes que deverão ser
jogado em grupo.O material consiste em cartelas de papelão ainda não estão
picotadas e não organizadas para a atividade.
Professora: Antes vamos nos dividir em grupos pra depois eu distribuir as
cartelas. ‘Prestenção’, gente...
Para dividir em grupos, a professora conta o número de alunos e faz um link
com a aula de matemática e escreve o número 30 na lousa (as crianças estão
aprendendo o número 10).

A repetição mecânica dos alunos em dar respostas carentes de sentido, dá


indícios de como a professora se coloca como expressão do modelo da Indústria
Cultural, adestrando o ‘consumidor do ensino’ para que ele esteja sempre em
concordância com o que lhe é apresentado:

CENA VIII
Professora: Quantos grupos de 5 alunos eu posso fazer com 30?
Alunos: ???????????
Professora:Posso formar 6 grupos.Com 30 posso formar 6 grupos de 5...
Alunos:.....?????.....
Professora: Posso formar 6. Quantos grupos de 5 eu posso formar? (a
operação matemática da divisão ainda não foi ensinada)
Sala:(em uníssono) 6.....

O caráter de improvisação e espontaneidade das tentativas improdutivas de dar


significação ao conteúdo na condução da atividade são fatores de peso que
comprometem o desenvolvimento do aprendizado. Novamente o uníssono das respostas,
vem atestar a total falta de entendimento por parte dos alunos, agora agravada pela
dispersão e pelo desinteresse que começa a contagiar a sala. Tal qual um programa de
auditório, em que todos querem participar do evento, o imediatismo começa a roubar o
lugar da disciplina:

CENA: IX
Professora: Querem ver? sentem-se nos seus lugares...

955
(o que é impossível, pois as crianças estão extremamente excitadas com a
possibilidade de brincar durante a aula) Agora quero que vocês 5 levantem-
se.... olha, é um grupo!!
Enquanto os alunos indicados ficam em pé, outros se levantam para participar
do grupo. Só depois de algum tempo ela consegue estabelecer uma certa
ordem..
Professora: Quanto grupo tem aqui?
Alunos: ciiiiiiiiinco.....
Professora:Nããão....., tem 1 grupo, esse de pé é um grupo...Agora , vocês 5
levantem...é outro grupo!
(os novos alunos indicados se levantam mas como os alunos do primeiro
grupo não sentam ela percebe que formou um grupo de 10. Pede para o
primeiro grupo sentar) VOCES AÍ..SENTEM...
Algumas crianças se recusam enquanto outras aproveitam a distração dela
para se juntar ao grupo em pé , formando um aglomerado de crianças.A classe
está em polvorosa, a professora berra, tentando manter a ordem. Desiste do
tipo de organização e muda a estratégia.

Com o agravamento da situação, a idéia de ‘concretizar’ o conceito de grupo


toma corpo e a professora parece esquecer por completo seu papel de educadora, para se
empenhar numa empreitada narcísica (pois não consegue ter a percepção de nada além
de si mesma) e alucinada, em busca de solução. Sob a ‘direção de cena’ da professora,
a sala de aula mais parece um set televisivo momentos antes de uma gravação, em que
os ‘alunos-figurantes’ desconhecem as regras de produção:

CENA X
Professora: Vamos juntar as carteiras então.
Começa a arrastar as carteiras tentando agrupa-las. Alguns alunos tentam
ajuda-la, mas atrapalham, enquanto que outros não saem do lugar.
Professora: Não se mete... ou... Fulano, quem mandou você trazer essa carteira
aqui? Dá pra sair daí...você tá atrapalhando, num percebeu?
Ao tentar fazer grupos de 5 carteiras percebe que esse agrupamento fica
complicado espacialmente e muda mais uma vez a regra.

Centrada no objetivo de rearranjar o espaço da sala, a professora, num instante


de lucidez, se lembra da finalidade desse movimento, que parece agora ser
desnecessário e carecer de sentido. Não podemos deixar de salientar aqui que o
descompromisso por parte da professora vai muito além de questões metodológicas,
pedagógicas ou de prática didática. A reprodução da sua semiformação de forma tão

956
irrefletida e autoritária fere a possibilidade da constituição do espírito de cada aluno,
insinuando que eles não conseguem aprender, induzindo-os a acreditar em suas
incapacidades pessoais:

CENA XI
Professora: Espera gente... para tudo!!! Vamos dividir por 6 pra ficar mais
fácil. Quantos grupos de 6 vamos fazer com 30?
Alunos: (em uníssono) 6.........
Professora: Não, com 30 eu posso formar 5 grupos de 6....Bom, vamos
dividir os grupos em carteiras!!!.
Arrasta carteiras, confusão dos integrantes, euforia total e berros da
professora.
São 03h35min e a classe está finalmente dividida em 5 grupos de 6. Passaram-
se 50 minutos até que a professora pudesse distribuir uma cartela de jogo para
cada grupo.

Dando continuidade ao episódio, uma nova etapa de contradições surge, agora


sob o tema do ensino de regras. Novamente a ausência de uma postura didático-
metodológica parece ser a principal responsável pela falta de sentido que se configura
na cena. Na tentativa de escamotear sua incapacidade de ensinar, a professora acaba
projetando no aluno, sua própria ignorância:

CENA XII
Professora: Agora vamos montar o jogo. É preciso picotar para destacar as
pecinhas para poder jogar e eu também vou explicar como é que se joga os
jogos. Tem jogos diferentes, então prestenção na explicação de cada regra
pois quando forem jogar, já sabem....
Levanta uma das cartelas para que a classe toda veja e diz: Então...quem tiver
com esse aqui, tem que pegar a palavrinha e juntar com o desenho..tão
vendo..olha...vaso..ceis acham a palavra vaso.
Em seguida, pega outra cartela: Olha....nesse tem que achar qual letra que
falta pra completar a palavra...qual consoante que ta faltando..daí ceis coloca o
quadradinho das letrinhas em cima...
Na terceira regra percebe que será impossível continuar explicando dessa
forma pois os alunos não estão entendendo absolutamente nada.
Professora: Geeeeeeente, fica quieto num dá pra trazer joguinho pra vocês,
mesmo... ceis num prestam atenção...ficam tudo louco....calma...Senta todo
mundo no lugar e começem a picotar... cuidado pra não rasgar....eu vou passar
em cada grupo pra explicar melhor.

957
A expectativa de finalmente poder brincar com os jogos, levada às ultimas
conseqüências pelos eventos anteriores, conduz os alunos a uma extremada excitação,
bem como o desgaste de energia da professora, em solucionar os problemas, nos leva a
pensar que tal arranjo parece mais uma encenação, em que os agentes envolvidos não
passam de personagens de um programa de humor pastelão:

CENA XIII
A professora começa a orientar um grupo, mas a maioria dos alunos quer
explicações imediatas Professora:...QUEM TIVER DE PÉ ENCHENDO
ATRAS DE MIM, NUM VAI JOGAR....vai todo mundo sentar e aguarda no
seu lugar....assim num dá, ceis parece que nunca brincou...
Ela orienta simultaneamente, alucinadamente e faz intervenções disciplinares
histericamente.O restante da classe picota, rasga, pede orientação ,brinca,
dança , briga e disputa pra ver quem faz o que, enquanto a professora dá
orientação a um grupo..O barulho e a bagunça parecem já não afetar a
professora. E, em determinado momento – acreditem - ela propõe que as
crianças troquem de jogo entre os grupos pra que todos possam brincar com
todos os jogos....
São 4:00 horas,bate o sinal: fim do jogo!!!!.
OBS: os jogos nada tinham a ver com o conteúdo dado no dia.

A semiformação imperativa observada no episódio acima, abriu espaço não só


para que o ‘estilo fun’ e o ideal de naturalidade fossem confundidos com recursos
didáticos, mas para que o mote do 'aprender brincando' favorecesse o comportamento de
assimilação e adaptação aos preceitos da Indústria Cultural pelas massas. Instantes de
improvisos, orientações didático-pedagógicas casuísticas, não fundamentadas do ponto
de vista metodológico e o predomínio de condutas pedagógicas inconsistentes
propiciaram a indisciplina generalizada, a fragilização extrema e a descontinuidade do
processo educacional.
A forma descompromissada e frenética como os conceitos vão sendo
apresentados durante o episódio, é similar às novidades que a mídia nos bombardeia.
Por outro lado, a forma como ele foi sendo recebido e descartado quase que
automaticamente pelos alunos, também é bastante parecido com a obsolescência
planejada característica da Indústria Cultural. Não há esforço algum para um
entendimento, não há trabalho de reflexão, nem de desenvolvimento ou de continuidade.

958
Nada fica. Nada se consolida. A alfabetização deve acontecer por conta de algum
milagre...

Contudo, há que se ter um parâmetro de comparação para demarcar as diferenças


entre as ações educativas que, apesar da semiformação, obtém algum êxito. Ou seja,
aquelas que apresentam um comprometimento didático-pedagógico minimizado pela
ação norteada por um plano de ensino coerente com a grade curricular, e que possibilita
à didática assumir seu papel específico de mecanismo tradutor de teorias e práticas
educativas. O episódio a seguir, retrata esse comprometimento a partir da tentativa da
professora, utilizando-se da lousa como recurso, ensinar o nome das figuras geométricas
para os alunos (retângulo = campo e círculo = meio-campo), desenhando-as e
configurando o cenário de uma partida de futebol. Nesse episódio os alunos vão aos
poucos dizendo o que há num campo de futebol, a professora prossegue, questionando-
os sobre a função de cada jogador e elementos destacados pelos alunos, associando-os
aos signos escritos:

CENA. XIV
A professora exercita a adição com seus alunos contando os jogadores de cada lado
do campo e trabalha a subtração utilizando a hipótese do juiz ir expulsando os
jogadores. Em seguida, o ajudante do dia distribui metade de uma folha de sulfite
para cada aluno, onde estão impressas algumas figuras encontradas no momento
anterior. A atividade é colada no caderno dos alunos. Dirigindo-se à lousa, a
professora pergunta:
- Qual é o primeiro desenho da folhinha? Como se escreve?
Passando em cada carteira, a professora acompanha o rendimento e a dificuldade de
cada aluno durante a atividade. Quando surge uma dificuldade individual na escrita
das palavras, ela vai até a lousa e tenta levar os alunos a superarem juntos tal
dificuldade. Aproveita a atividade para explicar regras como utilização de “m”
antes p ou b e para a formação de sílabas . Professora:
-Lembram como se escreve o nome do amiguinho José? Com que sílaba começa?
-(Alunos) JO
Professora: -Isso... ‘JO’! E pra formar o ‘JU’ o que precisa fazer?
Como é que eu sei que aqui está escrito ‘DA’?
Aluno 1: Por causa do David!
Aluno 2: Porque tem o D e o A.

Observamos que mesmo as ações didáticas que apresentam uma ação


pedagógica, minimamente, norteada por um plano de ensino coerente com a grade
curricular e que possibilita à didática assumir seu papel específico de mecanismo
tradutor de conhecimentos e práticas educativas são, também, permeadas pelos produtos
produzidos pela mídia. A organização metodológica demonstrada pela professora não
apresenta de forma tão explícita, a falta de reflexão característica das intervenções em

959
que a própria didática parece inexistir. No entanto, mesmo nesse episódio, a similitude
entre lógica capitalista e cultura industrializada se faz sentir na utilização naturalizada
do tema copa do mundo, imposto sorrateiramente pela mídia e utilizado irrefletidamente
pela professora para desencadear o processo de alfabetização. Não é por acaso que a
escolha não recaiu sobre um poema, uma fábula ou mesmo um conto infantil de algum
escritor exemplar de nossa literatura.
Todavia, é importante salientar, porém, que tal cena reafirma a reprodutibilidade
do estilo vigente, ao aproveitar a urgência dos eventos ‘em alta’ da vida cotidiana,
prestando tributo a uma demanda de porcarias que serão descartadas no momento
seguinte. Se o ideal de naturalidade e a utilização da linguagem do cotidiano equivalem
a um padrão de competência, na Indústria Cultural fica evidenciado que o ensino,
tecnicamente condicionado por esses valores, pode surtir algum efeito de assimilação
por parte dos alunos, mas acaba por promover o adestramento do espírito e a
impossibilidade da expressão da força criadora. Vejamos:

CENA XV

Uma outra atividade ainda voltada ao tema da copa do mundo é a entrega de uma
cartela com uma charada: “O que é o que é?... que na copa é pequena deita e rola?”.
A professora pede para os alunos escreverem a resposta na cartela e vai ao auxílio
dos alunos que não conseguem escrever a palavra bola, resposta à charada. Após
corrigir a produção de cada aluno, vai à lousa corrigir junto à toda classe e chama a
atenção dos poucos alunos que não acertaram, uma vez que, na atividade anterior
eles já haviam escrito a palavra bola.

Como se pode notar, os episódios analisados neste trabalho, até o


momento, parecem constatar a nossa hipótese de que a indústria cultural e a
racionalidade tecnológica se fazem presentes no cenário da referida escola. De fato, os
dados coletados demonstram que os professores dessa instituição de ensino expressam,
em suas práticas e ações cotidianas, um pensar que se mostra fragmentado, desconexo,
colado à realidade aparente, que não consegue refletir e opor resistência ao que lhe é
apresentado. Desse modo, a partir das observações realizadas, pode-se dizer que na sala
de aula impera a quase total falta de metodologia por parte do professor, cuja
precariedade na formação profissional se reflete em uma prática espontaneísta e
desorganizada.

960
Reflexões Parciais

Para finalizar podemos observar que a realidade atual cada vez mais vem se
caracterizando por relações de produção permeando e barbarizando as interações
sociais. Temos acompanhado mudanças nas ações estabelecidas entre adultos e crianças
bem como o surgimento de uma nova subjetividade em função da organização do
cotidiano pela mídia e o modo como as experiências das crianças nas escolas vêm se
transformando em uma sociedade de consumo.
Os dados coletados até o momento, no presente projeto, tem nos possibilitado
observar os reflexos desse processo na educação, mais especificamente nas instituições
de ensino, em que as relações intersubjetivas entre professor/criança têm demonstrado
estar mediadas a partir das influências que a indústria da cultura e o consumo por ela
determinado exercem sobre nós. Podemos dizer que tendo a indústria cultural e a
semiformação a seu serviço, o modo de produção capitalista finalmente conseguiu
concretizar seu intento de dominação plena, de criação de indivíduos impotentes,
acomodados, portadores de uma consciência técnica, desprovidos da capacidade de
reflexão crítica, prontos para servirem ao capital e aos ditames de um sistema que visa,
acima de tudo, o lucro.
Até esta etapa de nosso estudo as constatações obtidas vêm, portanto, corroborar
a tese acerca da precariedade da formação acadêmica do professor e como ela contribui
com o processo de semiformação, cujo desdobramento no âmbito didático-pedagógico
abre espaço, ao mesmo tempo em que deixa transparecer, os meandros através dos quais
a indústria cultural pervade as ações pedagógicas. Cabe, portanto, dar continuidade à
investigação com a finalidade de aprofundar essas análises.

961
BIBLIOGRAFIA

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d e q u a l i d a d e ? P r e s e n ç a P e d a g ó g i c a . V. 6 , n º 3 3 , ma i o / j u n h o . 2 0 0 0 .

P U C C I , B . ( O r g . ) T e o r i a c r í t i c a e E du c a ç ã o : a q u e s t ã o d a f o r ma ç ã o
cultural na Escola de Frankfurt. Petrópolis, R J : V o z e s ; S ã o C a r l o s ,
S . P : E D U F I S C A R , 1 9 9 4 . ( C i ê n c i a s s o c i a i s da E d u c a ç ã o ) .

Z U I N , A . S . ; P U C C I , B . e O L I V E I R A , N . R . d e . ( o r g s .) A E d u c a ç ã o
D a n i f i c a da : c o nt r i bui ç õ e s à T e o r i a C r í t i c a d a Ed u c a ç ã o . P e t r ó p ol i s -
RJ/São Carlos-SP: Vozes/Ed. UFSCar, 1997.

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SP: autores associados, 1999.

962
A ARTE DE EDUCAR E A EXPERIÊNCIA DO FILOSOFAR: CONSIDERAÇÕES A
PARTIR DE THEODOR W. ADORNO1

Anderson Luiz Pereira2

Introdução
Nos últimos anos, a atividade educativa tem se tornado uma técnica, um mero fazer
mecânico. Ainda que muitos profissionais da educação não assumam o tecnicismo presente no
ensino, elaborando, em contrapartida, discursos humanistas vagos que, quase sempre,
alimentam o mercado editorial, tal fenômeno pode ser observado enquanto uma tendência
regressiva que aflige o sistema de ensino atual.
Não raro, os professores se queixam de que “determinada teoria não funciona na prática”,
ou então, assumem uma teoria pedagógica, muitas vezes sem conhecê-la a fundo, afirmando “eu
sou construtivista” ou “eu adoto a corrente materialista-histórica”. Tais queixas indicam que
uma boa parte dos professores promove, em sua atividade, uma aplicação técnica e instrumental
de modelos pedagógicos ou de métodos de ensino, legitimados pelas ciências da educação e/ou
pelas prescrições das políticas oficiais de ensino, sem que estas se tornem objetos de uma
reflexão crítica apurada. E pode-se dizer que a assunção de uma teoria pedagógica em voga
parece ocorrer como uma determinação heterônoma, para que ele se identifique formalmente
com os modelos de ensino propagados, e não por intermédio de uma escolha consciente, para a
qual se exige uma relação viva e reflexiva com a sua própria atividade. Assim, a atividade do
docente se estabelece a partir de uma relação com os modelos pedagógicos pré-fixados e com
técnicas de ensino, acrescidos de um rótulo ou um verniz teórico, tendendo a se tornar uma mera
tecnologia.
Essa concepção é, também, corroborada pela maioria dos cursos de formação de
professores que, ao menos no Brasil, tendem a privilegiar, em suas grades curriculares, as
chamadas disciplinas metodológicas, desprestigiando aquelas relacionadas às Ciências Humanas
e à Filosofia. Justamente pelo fato de que essas instituições de ensino superior, privadas ou
públicas, respondem às exigências do mercado, a formação de professores passa pelo crivo da
qualificação profissional, exigindo do futuro educador, num curto espaço de tempo, um preparo
meramente técnico.

1
Este trabalho compreende os resultados parciais obtidos pela pesquisa de iniciação científica “A arte de
educar e a estética na educação: considerações a partir de Theodor W. Adorno”, financiada pela FAPESP
e orientada pelo Prof. Dr. Pedro Ângelo Pagni, da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília – UNESP.
2
Graduando em Filosofia – FFC/UNESP, integrante do grupo de pesquisa GEPEF (Grupo de Estudos e
Pesquisa em Educação e Filosofia)

963
Diante dessas questões, surge a seguinte indagação: como resistir à instrumentalização do
ensino e à atitude irreflexiva instaurada na atividade docente? Nosso objetivo principal consiste
em argumentar pela hipótese segundo a qual uma alternativa ainda possível aos agentes
educativos é a de conceber a educação como uma arte e, enquanto tal, portadora de uma
dimensão estética. Para tanto, buscamos, a partir do pensamento de Theodor W. Adorno,
estabelecer possíveis correspondências entre o processo comunicativo que compreende a relação
entre produtor e receptor estético e o processo comunicativo que envolve a relação entre
educador e educando, tentando delinear qual seria essa dimensão estética presente na atividade
pedagógica e como seus problemas poderiam se tornar objetos de reflexão filosófica por parte
dos educadores.
Nesse sentido, nosso objetivo nessa comunicação de pôster será o de vislumbrar, a partir
do pensamento crítico de Adorno, quais seriam as condições de possibilidade de se pensar a
educação enquanto uma arte e as possibilidades desta ser portadora de uma dimensão estética.
Por essa via, iremos nos ater às considerações adornianas em relação à filosofia e à experiência
do filosofar enquanto um momento decisivo na arte de educar. O método de interpretação dos
textos selecionados por esse projeto segue os termos propostos por Hans-Georg Gadamer
(1998), segundo o qual o intérprete busca, a partir de um diagnóstico que realiza acerca dos
problemas que lhe afetam, compreender seu tempo histórico presente num conflito com o
passado que se lhe apresenta no texto, à maneira de um diálogo constante.
No ensaio Observações sobre o pensamento filosófico (1995b, p.15-25), Adorno observa
que, graças à separação entre o pensar filosófico e o objeto a ser pensado, o pensamento
filosófico se tornou presa da coisificação e se alienou do conteúdo objetivo, na medida em que
sua independência converteu-se em um aparelho, semelhante às máquinas e aos computadores,
graças ao seu método autocrático e formalizado de pensar. Adorno se contrapõe à formalização
do pensar filosófico afirmando que este “só começa quando não se contenta com conhecimentos
que se deixam abstrair e dos quais nada mais se retira além daquilo que se colocou neles”
(1995b, p.16). Para que o pensamento filosófico seja produtivo e criador, deve haver nele um
momento de passividade, momento este no qual ele passa a ser determinado por aquilo que não
é, ou seja, o próprio objeto, o outro que se diferencia das formas subjetivas do pensamento. Ao
invés de conduzir-se em si mesmo de acordo com as regras da lógica, submetendo a priori à sua
legalidade tudo aquilo que não é ele mesmo, o pensamento ou o pensar filosófico, segundo
Adorno (p.18), “deve primeiro entregar-se verdadeiramente à coisa, onde, como ensinaram Kant
e os idealistas, constitui ou inclusive produz a coisa”. O pensar não é equiparado nem a um
processo psicológico e nem a um processo lógico-subjetivo, orientado para as formas do sujeito,
como se observa na teoria tradicional e da subjetividade moderna. A objetividade do

964
pensamento depende de sua relação com a coisa, com aquilo com o qual se relaciona, sem
submetê-lo autocraticamente e sem auto-reflexão às formas puras e lógicas do sujeito. Trata-se
de uma entrega total e um perder-se sem reservas no objeto, permitindo que este revele e
expresse suas contradições e complexidades, uma entrega não determinada por um método já
presumido. Pensar filosoficamente consiste em “ser perturbado por aquilo que o pensamento
não é”, ou seja, pelo próprio objeto, mas não enquanto modelado pelo sujeito de maneira
reificada e sem reflexão, mas enquanto um outro, um não-idêntico. Ainda, segundo Adorno
(p.23), o pensar filosófico não faz justiça apenas à experiência que o anima, mas também, por
essa via, em relação a si mesmo.
Os limites da subjetividade moderna em relação ao momento de se pensar o pensamento,
e de não apenas determiná-lo, identificando nele suas determinações objetivas, tornando-o algo
mais que a mera exposição repetitiva dos fatos, serão tratados por Adorno no artigo Sobre
sujeito e objeto (1995b, p.181-201). Ao invés de definir o que seria sujeito e o que seria objeto,
procedimento este que resultaria numa aporia difícil de ser resolvida, na medida em que os
conceitos de sujeito e objeto ou aquilo a que se referem têm prioridade sobre qualquer definição,
Adorno irá operar criticamente com os conceitos tradicionais de sujeito e objeto, a saber, o
sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, aquele que conhece e é doador de sentido e aquele
que é material desqualificado, mas que se torna objeto de conhecimento. De acordo com Adorno
(p.183), tanto o sujeito quanto o objeto encontram-se mediados reciprocamente: o objeto se
encontra mediado pelo sujeito e o sujeito se encontra mediado pelo objeto. Isso significa que
tanto a separação, na teoria do conhecimento tradicional, entre sujeito e objeto, quanto a sua
identificação, representam, ambos, uma inverdade dessa relação. O sujeito, quando separado do
objeto na sua independência em relação a ele, subjugando-o e reduzindo-o a si mesmo, na
condição de senhoril, torna-se algo que ele não é, pois se encontra mediado pelo objeto. Mas,
por outro lado, a identificação entre sujeito e objeto, a qual representa um estado originário e
romântico no qual não havia ainda autoconsciência, porque não havia ainda o sujeito, também
representa uma etapa primitiva e já superada, correndo o risco de ser regressivo todo o
conhecimento que elimine o sujeito e o objeto, tornando ambos a mesma coisa, quando, na
verdade, não o são.

Se fosse permitido especular sobre o estado de reconciliação, não caberia


imaginá-lo nem sob a forma de indiferenciada unidade de sujeito e objeto
nem sob a de sua hostil antítese; antes, a comunicação do diferenciado.
Somente então o conceito de comunicação encontraria seu lugar de
direito como algo objetivo (ADORNO, 1995b, p.184).

965
Eis os limites da teoria tradicional e do conhecimento objetivo, bem como de todo o
pensamento filosófico que se resumiu a ser um organon das ciências: comunicar o outro do
pensamento filosófico, aquilo que não mais é da ordem racional, aquilo que a razão, por si só e
enquanto tal, não consegue mais pensar. É tomando por base esse limite que Adorno irá
redefinir o papel a ser desempenhado pelo pensamento filosófico na atualidade, a saber,
segundo a regra da primazia do objeto, levar o sujeito a se deparar com seus próprios limites,
desfazendo-se a dicotomia entre sujeito transcendental e sujeito empírico e conduzindo-o a uma
autoreflexão acerca de si mesmo. Segundo Adorno, Kant já teria realizado a intentio obliqua, a
saber, a determinação das condições subjetivas para o conhecimento objetivo. Porém, a
primazia do objeto, o segundo giro copernicano, leva a uma intentio obliqua da intentio obliqua,
ou seja, a uma revisão da posição do sujeito prevalecida na teoria tradicional. Esse movimento
de autoreflexão poderia levar o sujeito a refletir sobre seu próprio formalismo, o qual outra coisa
não seria senão a reflexão da própria sociedade, na medida em que esta determina objetivamente
as condições subjetivas do pensar (1995b, p.199). Nesse movimento de autoreflexão, o sujeito
se depara com as formas objetivas e subjetivas da dominação, convertidas em formas de
pensamento, as quais lhe foram exigidas e com as quais se conhece o objeto, transformando os
homens e a si mesmo em algo manipulável. Trata-se de uma crítica ao subjetivismo, que
privilegia apenas o momento subjetivo, esquecendo-se o quanto de objeto tem o sujeito, e de
uma crítica ao objetivismo, que se esquece o quanto de sujeito tem o objeto. É nisso que ainda
consiste a liberdade do sujeito e do pensamento filosófico: se esforçar em comunicar o
indiferenciado que o conhecimento sistemático e científico não são capazes de pensá-lo,
evitando a violência contra o objeto em nome da ciência, desempenhando, por essa via, uma
forma de resistência à reificação e à coisificação da experiência e da consciência.
De acordo com Adorno (1995b, p.202-229), no artigo Notas marginais sobre teoria e
práxis, “a questão relativa à teoria e práxis depende da relativa a sujeito e objeto”, evidenciada
graças a uma reflexão histórica. Assim como na relação entre sujeito e objeto, Adorno também
se refere aos dois modos de se conceber a relação entre teoria e práxis, os quais conduziram,
ambos a seus modos, a formas regressivas de agir e de pensar. Nesse artigo, Adorno se refere
tanto à separação entre teoria e práxis instaurada pela metafísica, com o privilégio da primeira
sobre a segunda, quanto às correntes que a esta se contrapuseram e estabeleceram uma
identidade entre teoria e práxis, como no caso de pragmatismo, o qual utilizava como critério do
conhecimento a utilidade prática. Nessa última condição, avessa a todo conhecimento que não
fosse capaz de demonstrar o seu efeito prático e útil, o indivíduo sentiria como uma
inconveniência para ele a experiência de auto-alienação em direção ao que não se assemelha,
pois como se encontra num contexto dominado pelo utilitarismo, positivismo e cientificismo,

966
para os quais não deve existir nada que não se possa pegar, nem mesmo o pensamento, ele se
sente inibido a realizá-lo. O pensamento filosófico que se restringe à razão subjetiva e
instrumental, suscetível de aplicação prática, será incapaz de diagnosticar o que ocorre
historicamente em nome do exercício desenfreado dessa razão e das ciências.

Dever-se-ia formar uma consciência de teoria e práxis que não separasse


ambas de modo que a teoria fosse impotente e a práxis arbitrária, nem
destruísse a teoria mediante o primado da razão prática, próprio dos
primeiros tempos da burguesia e proclamado por Kant e Fichte. Pensar é
um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a ideologia da pureza do
pensamento mistifica este ponto. O pensar tem um duplo caráter: é
imanentemente determinado e é estringente e obrigatório em si mesmo,
mas, ao mesmo tempo, é um modo de comportamento irrecusavelmente
real em meio à realidade. Na medida em que o sujeito, a substância
pensante dos filósofos, é objeto, na medida em que incide no objeto,
nessa medida, ele é, de antemão, também prático. Mas a irracionalidade
sempre novamente emergente da práxis – seu protótipo estético são as
ações casuais com as quais Hamlet realiza o planejado e fracassa na
realização – anima incansavelmente a ilusão de uma separação absoluta
entre sujeito e objeto (ADORNO, 1995b, p.204-5).

Essa opção pela teoria enquanto uma forma de práxis, ou seja, o momento da reflexão e
produção teórica como uma forma de agir, representa não só um ataque ao pragmatismo, mas a
todo movimento ativista decorrente do movimento estudantil alemão nos anos sessenta,
promovidos graças a uma práxis política sem a mediação da teoria. Segundo Adorno (1995b,
p.210), o pensar, o momento da teoria e do pensar filosoficamente, diz respeito a uma análise
profunda da situação vigente, a qual não se esgota na adaptação irreflexiva a ela. Enquanto
reflete a situação, no âmbito da teoria e do pensamento reflexivo, o sujeito revela momentos que
poderiam conduzir para além da situação factual. Ao se contrapor a uma práxis mediada e ligada
à situação, a teoria converte-se em uma força produtiva prática e autônoma; mais do que isto:
transformadora, pela via de uma dialética negativa, e reveladora de uma outra realidade. Sempre
que atinge algo importante, o pensamento produz um impulso prático, mesmo que oculto a ele.
Não há nenhum pensamento que não tenha um telos prático, pois qualquer pensamento sobre a
liberdade baseia-se na sua possível produção, desde que não esteja sujeito a um freio prático e
nem encomendada sob medida para os resultados pré-definidos.
Pelo exposto até aqui, Adorno parece insistir em que o pensamento ou o pensar filosófico,
se se pretende resistir às formas instrumentais e fetichizadas de pensar, deve se entregar sem
ressalvas à experiência com o objeto. Essa experiência intelectual do pensamento filosófico com
o seu objeto permite não só comunicar o outro de toda comunicação, aquilo que é premido pelo
conhecimento objetivista e pelo subjetivismo, como também comunicar o outro recusado da

967
práxis, elaborando-o teoricamente no pensamento. Nesse sentido, o pensamento filosófico, nos
termos explicitados por Adorno, constitui uma resistência ainda aberta ao pensamento a fim de
se contrapor a todo e qualquer reducionismo, cientificismo e instrumentalismo ainda vigentes.
No artigo Para que aún la filosofía? Adorno (1969, p.9-24) nos diz que a filosofia deveria
renunciar à pretensão de compreender o todo racionalmente por meio do pensamento
sistemático, pois isso implicou historicamente em uma forma de totalitarismo e na postulação de
um ideal de emancipação a ser alcançado pela educação e pelo ensino de um ponto de vista
universal, justificando, portanto, a supressão do particular e do não-idêntico. A crítica seria a
única via ainda aberta para o filosofar, pois só enquanto fragmento, que se detém sem ressalvas
ao objeto singular e às suas contradições, é que a filosofia superaria toda a forma de sistema e
todo impulso à justificativa racional do todo. A filosofia, como crítica, deve fazer oposição a
toda forma de heteronomia, como uma tentativa quase que frustrada do pensamento em
permanecer dono de si mesmo. Essa insistência de Adorno em retomar a filosofia hoje pela via
crítica aparece na sua famosa conferência Educação após Auschwitz (1995a, p.121), na qual
explicita que a tarefa ainda possível tanto à filosofia quanto à educação seria a de promover uma
“inflexão em direção ao sujeito”, a partir do qual os agentes educativos reconheceriam os
mecanismos subjetivos e objetivos que tornaram e tornam as pessoas capazes de cometer atos de
barbárie, revelando-os a si próprias e impedindo que se tornem capazes de reiterá-los na medida
em que se tornam conscientes. O choque e o espanto suscitados no encontro com o núcleo
sensível do conceito, com a memória recalcada pela razão instrumental, seriam, nesses termos, o
início dessa experiência do filosofar na arte de educar. No encontro com essa dimensão
indeterminada da experiência, os agentes educativos, segundo Adorno, poderiam promover essa
auto-reflexão acerca da barbárie irracional em que se tornou o mundo totalmente administrado.

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Editorial do Brasil, 1976.

KANT, I. Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? In: KANT, I. Textos Seletos.


Petrópolis: Editora Vozes, 1974.

969
Memória e Produção Teatral: uma experiência em escolas de ensino fundamental

Andréa G. Ferreira
Unicamp – Programa Pós-graduação em Educação

Plantando Sonhos é uma experiência de criação teatral desenvolvida, através de uma


parceria entre Grupo Andaime de Teatro-Unimep e Prefeitura Municipal de Piracicaba, em três
unidades escolares de ensino fundamental, durante 2003-2004.
(Re)visitando a experiência vivida pelos diferentes segmentos destas escolas e pelos atores
do grupo, em criar uma peça de teatro a partir do olhar sensível em relação ao contexto social,
histórico e cultural dos alunos, aproximando-se da memória da comunidade, o processo de criação é
analisado especialmente sob a luz da teoria de Walter Benjamin sobre as experiências sociais e
culturais da modernidade capitalista, com enfoque para o teatro enquanto espaço de ação que deve
ser ocupado pelo aluno e para a recuperação da narrativa na produção de conhecimentos,
articulando conhecimento racional e sensibilidades. Neste contexto, levanta questões sobre a
transformação da percepção durante a consolidação do sistema capitalista de produção e as
experiências estéticas e criativas vivenciadas pelos alunos durante o processo de criação de uma
peça teatral, sobre a hierarquização dos saberes, que não estabelece uma comunicação entre os
diversos saberes socialmente produzidos e desqualifica a criança como produtora de conhecimentos,
e, também sobre o conflito entre o “uso econômico do tempo” e o tempo da criação.
O empenho do departamento de ensino fundamental da secretaria municipal de educação
para (re)significar as práticas dos professores em relação ao ensino da arte faz o grupo Andaime se
unir aos educadores para desenvolver um processo de criação teatral com alunos de 3ª e 4ª séries, a
partir de uma aproximação lúdica com a memória coletiva da comunidade onde a escola está
inserida, a fim de revelar seus conteúdos históricos, sociais e culturais e possibilitar a
(re)significação e comunicação dos mesmos.
Para desenvolver a proposta junto aos educadores, o grupo Andaime é motivado pelo desejo
de compartilhar experiências e descobertas intensamente vividas em sua trajetória desde 1996,
quando os atores decidem focar o olhar em grupos ou comunidades de pessoas que ocupam um
determinado lugar, e transformar em matéria cênica, temas e situações da sua região.
Através da montagem da peça “Lugar Onde o Peixe Pára”, em 1996, o grupo busca
(re)compor elementos da história e da cultura piracicabana, especialmente da população ribeirinha.
“Nonoberto Nonemorto”, resultado do olhar voltado para os bairros piracicabanos Santana e Santa

1
970
Olímpia, em 2000 - comunidades centenárias de origem tirolesa/trentina - mostra a presença dos
imigrantes como elemento constitutivo do perfil de uma cidade e de uma região. Em “Comovento”,
peça montada em 2003, resultado de uma pesquisa sobre o circo-teatro, o grupo leva para o espaço
cênico questões relativas ao artista, especificamente em relação a sua identidade.
Ao longo deste percurso o Andaime vai entendendo que seu trabalho está voltado para a
trajetória humana, ou seja, para a história de um determinado grupo de pessoas, para como estes
indivíduos foram se constituindo através da interação com a cultura e que movimentos provocaram
que transformaram essa mesma cultura num determinado espaço de tempo. Cultura que, segundo
Thompson, não deve ser entendida somente como “sistemas de atitudes, valores e significados
compartilhados, e as formas simbólicas em que se acham incorporados”, mas como uma arena de
conflitos e contradições, como um conceito localizado dentro das relações sociais, das relações de
poder. Não se trata, simplesmente, de reconstituir fatos históricos e levantar objetos folclóricos de
nossa cidade, reunindo antigos costumes, pois o que se tenta explicitar é o que foi vivido. Os
indivíduos narram os fatos vividos a partir do que são hoje, fazendo relações com diferentes
acontecimentos, no entrecruzamento de sujeitos, tempos e espaços.
Entrelaçando desejos, o Plantando Sonhos chega à escola com a perspectiva de fazer com
que esta instituição compreenda o teatro enquanto um espaço de ação que deve ser ocupado pelo
aluno desenvolvendo sua autonomia e descentralizando a figura do professor, porque percebe a
criança como sujeito de suas produções.
O teatro deve ser percebido enquanto uma linguagem que produz conhecimento, e pode
comunicar idéias, sensações e sentimentos, a partir de uma relação direta e sensível com o contexto
social e cultural do aluno, com o particular da comunidade, com suas histórias, linguagens, crenças,
dificuldades, conflitos, conquistas, reveladas através do encontro com a memória de seus membros,
com as experiências de vida por eles narradas, e (re)significadas à partir do olhar, das experiências
dos alunos e do movimento provocado pelo próprio teatro.
O processo de criação, ao contrário da racionalidade técnica exigida pela modernidade
capitalista, busca privilegiar o jogo, a expressão livre, as experiências, a sensibilidade, a percepção,
a memória, o corpo, enfim, a dimensão humana dos sujeitos envolvidos, articulando conhecimento
racional e sensibilidades.
Apesar das escolas, onde o trabalho foi desenvolvido, estarem buscando práticas
diferenciadas em relação ao ensino das artes, a proposta, quando apresentada é recebida com
entusiasmo por algumas, e com receio por outras, pelo fato de terem que se dispor a algo
desconhecido.

2
971
Contar a história de uma comunidade através de uma peça teatral não significa revelar
nenhuma verdade, ao contrário, o que se pretende é substituir as formas congeladas da escola por
formas vivas, articulando saberes socialmente produzidos. Promover o encontro entre gerações para
ouvir vozes emudecidas e fazer com que o espaço cênico apareça, segundo Artaud, como expansivo
e seletivo; como espaço que elabora uma série múltipla de símbolos, reacende os conflitos latentes e
revela às pessoas envolvidas sua força oculta; como poético. O teatro é sempre produção, por onde
a vida deve passar, é o exercício da arte dialética, a qual considera as idéias sob todos os aspectos
imagináveis.
Para Artaud, o teatro deve reunir, promover o conflito, por em movimento as significações
e as formas e produzir uma corrente de impressões, correspondências, analogias, restituindo ao
pensamento sua liberdade e às formas sua vida. Desta maneira, o teatro pode fazer com que os
acontecimentos externos, passando sobre o seu plano, descarreguem-se na sensibilidade dos sujeitos
envolvidos. E é justamente esta dimensão do indivíduo que se deseja explorar, dimensão que vai
adormecendo em função da racionalidade técnica exigida pela modernidade capitalista, a qual
determina o modo de pensar dos indivíduos e, conseqüentemente, as práticas escolares. A
sensibilidade é fundamental para a construção de outras possibilidades.
O primeiro passo para esta prática é a criação de um espaço para o jogo, o qual estimula a
criança a iniciar um contato direto com o ambiente, movimentar seu corpo, sua energia. O jogo
solicita pesquisa, experimentação, criação, transformação e promove revelações, descobertas,
encontros com si próprio, com o outro e com as coisas da vida. Este espaço ainda deve considerar
os desejos, os sonhos, as necessidades e os saberes das crianças; promover desafios que não
possuem uma única resposta, conquistas, prazer dos sentidos e a plenitude da infância; compreender
as manifestações expressivas dos alunos enquanto manifestações daquilo que têm a dizer a partir de
sua relação com o mundo.
É o exame detalhado e cuidadoso do mundo particular da comunidade que irá revelar o
poder das coisas comuns, permitir que o poder de seu sorriso estético apareça, porque, segundo
Hillman, a beleza é permanentemente dada, inerente ao mundo em seus atributos, está à mostra,
sempre. É este mundo particular que fornece o material para o teatro e o crescimento artístico de
cada um irá desenvolver-se com o reconhecimento e percepção deste mundo e de si mesmo dentro
dele.
A percepção humana, segundo Benjamin, foi profundamente atingida pelas mudanças
ocorridas no setor da produção capitalista, juntamente com os setores da cultura. Com a reprodução
técnica a arte perde o valor de autenticidade e criatividade, sua função social se transforma, porque

3
972
torna-se mercadoria. A reprodutibilidade é decorrente de uma necessidade de possuir o objeto e não
de contemplar – característica de uma forma de percepção que capta “o semelhante no mundo” e
não as características peculiares.
A indústria cinematográfica é uma das grandes responsáveis por esta transformação, pois
permite a difusão da obra cinematográfica para as massas, como a torna obrigatória em função do
custo de sua produção.
Objeto de distração e recepção coletiva, o cinema reduz tensões entre a obra produzida e a
vida cotidiana. Diante do filme, a contemplação não é mais possível, o espectador percebe imagens
que não podem ser fixadas, porque desfilam velozmente diante de seus olhos, interrompendo
imediatamente a atividade intelectual, a imaginação e a espontaneidade. Predomina-se o efeito
realizado pela técnica e não mais a idéia.
Segundo Adorno, na arte destinada às massas, o conteúdo só varia na aparência, os detalhes
desaparecem. Com a televisão, os materiais estéticos empobrecem ainda mais.
Para o fazer teatral proposto, através do Plantando Sonhos, ou seja, um fazer que priorize o
aluno enquanto criador e não somente receptor, que afete os hábitos de pensamento, promova o
conflito, a (re)significação dos acontecimentos, passando pela percepção e sensibilidade, o
envolvimento de todos os segmentos da escola é fundamental, pois o projeto não é pensado para
acontecer desvinculado da rotina escolar. Apesar de possuir uma estrutura pré-concebida por seus
coordenadores, ele se completa a cada dia através do pensar com o coletivo da escola. O que se
pretende é fazer do processo uma prática comum onde todos possam narrar suas experiências,
construir conhecimentos e superar dificuldades.
Assim sendo, os professores da escola também são convidados a participar de jogos teatrais,
a experimentar e refletir sobre este fazer criativo, a discutir os recursos que seriam utilizados para
pesquisa, enfim, a construir cada etapa do processo, revendo conceitos e posicionamentos.
Diante dos primeiros jogos propostos às crianças, pelos atores do grupo de teatro, muitas
delas mostram dificuldades, pois não sabem lidar com este espaço de liberdade para o movimento,
para a expressão livre, porque estão habituados à rigidez das regras estabelecidas pela escola,
fundadas em princípios construídos historicamente. Algumas professoras não sabem o que fazer e
passam a construir suas primeiras impressões sobre o processo que está sendo vivido, ou seja, o
espaço para o jogo é visto como o espaço para a desordem, e, uma pergunta não se cala: Quando
iremos fazer teatro?
No entanto, é a partir da aparente desordem que a imaginação começa a ser libertada e se
iniciam as primeiras experiências vivas, as primeiras manifestações de emancipação das crianças

4
973
em relação a essas regras, uma nova maneira de relação entre os envolvidos, de se ver, se olhar,
ouvir e dialogar com o outro.
As oficinas de teatro, realizadas mensalmente com os professores durante o HPTC (Horário
de Trabalho Pedagógico Coletivo), contribuem para que, aos poucos, comecem a compreender
algumas das reações dos alunos, como agitação, conversas e risos, diante dos jogos propostos
desenvolvidos semanalmente.
Esses encontros com os alunos propiciam a exploração de um conteúdo mais humano, uma
nova maneira de se relacionar com o tempo humano, o qual não se pensa nem se mede,
simplesmente vive-se.
Há que se considerar então, a dimensão tempo, a maneira como é utilizado pela escola, pois
um fazer teatral baseado na pesquisa e experimentação exige um tempo que não é o do relógio, mas
o tempo da criação, o qual pode ser diferente para cada indivíduo que participa do processo. Isso
não quer dizer que não se planeja um período para o desenvolvimento do projeto, para o trabalho
nas oficinas de teatro, mas sim que o mesmo deve ser o tempo da dedicação, da superação, e não o
da urgência, do imediatismo, da velocidade.
Segundo Thompson, na sociedade capitalista madura todo o tempo deve ser consumido,
negociado, utilizado, porque tempo é dinheiro. No entanto, essa noção desenvolveu-se através de
mudanças importantes na percepção do tempo na Europa Ocidental entre 1300 e 1650 – período de
transição para o capitalismo industrial - quando inicia-se o processo de disciplina tempo/trabalho. A
percepção do tempo passa a ser condicionada pela tecnologia e sua medição é realizada como meio
de exploração da mão-de-obra.
Por meio da divisão e controle do trabalho e da supressão de formas de lazer, características
do capitalismo industrial, novos hábitos de trabalho e uma nova disciplina de tempo vão sendo
construídas historicamente.
Juntamente com os jogos inicia-se uma pesquisa no bairro onde a escola está inserida,
utilizando-se de vários recursos pensados coletivamente em reuniões com os professores e técnicos
da escola. No entanto, a ênfase é dada às narrativas orais, linguagem alegórica, que, segundo
Benjamin, é capaz de resguardar as relações entre as palavras e as coisas, porque está diretamente
ligada à experiência, à vida em si, à esfera do discurso vivo, porque retira da experiência o que
conta e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.
Rememorar, para Benjamin, é trazer o passado vivido como opção de questionamento das
relações e sensibilidades sociais existentes também no presente, uma busca relativa aos rumos a
serem construídos no futuro.

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974
A essência do teatro, segundo Peter Brook, se origina no contador de histórias, que, olhando
seu auditório, começa a narrar. No entanto, a arte de narrar praticamente acabou porque as
experiências deixaram de ser comunicadas em função da evolução de forças produtivas, entre elas a
informação.
Vivemos hoje num mundo que está se tornando a cada dia mais inexpressivo, padronizado,
sem diversidade cultural, com indivíduos afastados de suas necessidades essenciais em troca de
necessidades fabricadas pela sociedade do consumo. E neste novo mundo, circula uma nova forma
de comunicação, a informação, a qual veicula através dos meios de comunicação em massa,
informação sobre acontecimentos próximos, notícias de todo o mundo sem conexão entre uma e
outra.
Ao invés de notícias, os alunos saem a procura de histórias, e no encontro com funcionários
da escola e antigos moradores do bairro, familiares, membros da comunidade que conhecem suas
histórias, tradições e o movimento que ali se dá. Lançam novo olhar para fatos conhecidos e
desconhecidos do cotidiano. A escola passa a dialogar com visões de mundo ali presentes e as
descobertas passam a ser os elementos expressivos para as improvisações de cenas teatrais.
O caráter inumano dos conteúdos escolares e as relações educacionais começam a ser
permeadas pelas histórias de vida dos alunos que ali compartilham. O tempo passa a ser vivido e
sentido mais intensamente e não simplesmente medido pela cronologia do relógio.
As narrativas, além de oferecerem um material riquíssimo para as improvisações e
posteriormente, para a encenação dos alunos, fazem com que as escolas estabeleçam um contato
direto com o bairro onde estão inseridas, com os objetos e pessoas dentro dele. A comunicação
torna-se mais viva, a sabedoria é transmitida e se integra à experiência do ouvinte num processo
continuo de criação. O ouvinte participa do diálogo, multiplica sua riqueza, pois há sempre uma
lacuna completada pela sua imaginação.
Todas as experiências narradas são compartilhadas em sala de aula e os alunos decidem
quais delas devem ser improvisadas durante as oficinas de teatro.
Improvisar não significa criar “um monte de coisas” sem participar do que está fazendo, é
ouvir e ver verdadeiramente, apropriando-se criticamente do que fazem. Neste jogo permanente de
criação não existe certo e errado, pois estamos lidando com a sensibilidade, com o humano, o que
existem são diferentes possibilidades a serem experimentadas pelos diferentes alunos.
A improvisação deve ser o centro do fazer teatral, deve predominar, pois é dela que os
gestos se manifestam de maneira inesperada, autêntica e apenas uma única vez. A improvisação

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975
visa a construção do movimento carregado de sentido como alternativa para o gesto mecânico, pois
a linguagem do teatro exige que os gestos expressem idéias, atitudes do espírito.
Segundo Artaud, no teatro as idéias devem permanecer em conflito, as formas são criadas e
consumidas para serem criadas novamente.
À partir de todo material levado para as improvisações, define-se um roteiro, incluindo as
histórias e os lugares que foram mais significativos para o grupo. Para tanto, durante todo o
processo o professor e o coordenador das oficinas de teatro devem ouvir atentamente os alunos,
suas manifestações e suas escolhas, porque é deste olhar que se procura identificar os
acontecimentos mais importantes para as crianças e, a partir deles criar o roteiro, o qual não tem que
ser necessariamente uma seqüência de fatos, com começo, meio e fim, mas conter as histórias que
cada grupo achou mais importante discutir, pensar, criar. Deve-se cuidar para não desqualificar a
percepção dos alunos em nome da opinião do professor, pois, segundo Benjamin, devemos valorizar
todos os momentos da vida, desde a infância, como produtores de conhecimentos, sentimentos,
sensibilidades.
Cada grupo de alunos, juntamente com a professora de sala de aula, é responsável pela
escrita de uma das cenas do roteiro, a qual contém os fragmentos que o coletivo mostrou maior
interesse durante o processo de pesquisa e improvisações.
A cena escrita pode ser recriada quando aparecem elementos novos e variações propostas
pelas crianças durante os ensaios. Discuti-se meios de se fazer entender, porque a cena deve
comunicar idéias ao expectador. As crianças são despertadas para a criação de situações ilógicas na
cena, pois o ilógico rompe nossa compreensão cotidiana, racional, técnica, produz a magia fazendo
a realidade passar pelo sonho e o sonho pela realidade, faz o momento da surpresa, produz
transformações na escala das aparências, no valor de significação e simbolismo do criado.
É um trabalho coletivo onde todos possuem a responsabilidade de construir uma história, à
partir de tantas histórias, e encontrar meios para comunicá-la.
A encenação é uma pausa criativa, é mais uma experiência, o desafio do encontro com a
platéia, sem a qual não há teatro. Os alunos devem aprender a ver a platéia como um grupo com o
qual ele está compartilhando uma experiência, ser encorajados, porque não há erros nem acertos, há
acontecimentos que podem ser diferentes a cada apresentação.

7
976
Bibliografia

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mistificação das massas. In Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio Janeiro,
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VIGOTSKI, Lev Semenovich, A formação social da mente. S. Paulo, Martins Fontes, 1998.

8
977
A arte no Mundo Administrado: seu potencial crítico e o rebaixamento do conteúdo pela
forma

Cynthia Maria Jorge Viana (UFSJ/MG)


Yonara Dantas de Oliveira (UFSJ/MG)
Kety Valéria Simões Franciscatti (UFSJ/MG)

Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ/MG


Departamento das Psicologias – DPSIC
Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial – LAPIP

O presente texto tem como objetivo, com base na Teoria Crítica da Sociedade, refletir sobre o
potencial crítico da arte contrapondo-o aos produtos da Indústria Cultural. Por meio das
dimensões da criação artística e da recepção, discorre-se sobre o processo de formação da
subjetividade problematizando os efeitos da Indústria Cultural neste processo. Além disso, serão
discutidos alguns aspectos observados em grupos de teatro amador de São João del-Rei.
O trabalho de observação e análise acerca dos grupos de teatro amador de São João del-Rei,
como atividades realizadas no âmbito da iniciação científica, é parte da pesquisa “Psicologia e
Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada”, desenvolvida na Universidade Federal de São
João Del-Rei (UFSJ) – DPSIC/LAPIP. Tal pesquisa tem como objetivo realizar estudos
sistemáticos sobre o processo de formação cultural com base na articulação entre o
conhecimento proporcionado pela psicologia e o conhecimento artístico, entendendo que nesta
articulação, a psicologia encontra condições apropriadas para investigar e refletir sobre os
impedimentos objetivos e subjetivos à individuação. Com base em Franciscatti (2005),
considera-se a expressão artística, envolvendo três dimensões que se relacionam: a primeira
como testemunho, por manifestar os sofrimentos injustificados, a segunda como resistência, por
conter o ódio e a terceira como possibilidade de transformação; ressaltando também que se for
possível alguma experiência estética esta, na tensão entre interno-externo e particularidade-
universalidade, pode tornar vivificada, na particularidade do receptor da obra, as determinações
da totalidade social e subsidiar a reflexão sobre os elementos históricos que impedem a
realização da cultura e de uma vida satisfatória. A pesquisa está estruturada em três eixos que se
relacionam mutuamente: 1. Formação e Criação Artística: tensão forma e conteúdo, forma e
expressão; 2. Formação e Recepção: tensão estímulo e resposta; produtos e configurações
psicológicas (sensíveis e intelectuais); e 3. Formação e Indústria Cultural: contexto e meios;
relação ideologia e preconceito. No desenvolvimento dos dois primeiros eixos têm surgido
reflexões que embasam o terceiro e são algumas destas reflexões que estão aqui sistematizadas.
Desse modo, além da discussão teórica que está sendo realizada no desenvolvimento desta
pesquisa, dentro de projetos de iniciação científica que estudam aspectos presentes no processo

978
de criação artístico e de recepção da obra dramatúrgica, têm-se acompanhado três grupos de
teatro amador de São João del-Rei. Neste texto, são apresentadas considerações a respeito do
trabalho realizado por dois deles: “Núcleo Cultural Brasil é Arte”, com a peça “Mendigos”, de
autoria própria e o “Cia Metáfora”, com uma livre adaptação do diretor da peça “Entre quatro
paredes”, de Jean-Paul Sartre.
O método desta investigação envolve a seleção, leitura e sistematização do marco teórico, que
se refere aos autores da Teoria Crítica da Sociedade, de autores que trazem contribuições
históricas e conceituais à temática e ao objeto deste estudo e de outros autores embasados nas
considerações da bibliografia estudada. Além disso, foram realizadas leituras sobre a tradição
teatral da cidade, consultas a arquivos de grupos de estudos da UFSJ – Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro (GETEB) e Grupo de Pesquisa em Artes Cênicas (GPAC) – e a
arquivos pessoais de integrantes e ex-integrantes de grupos de teatro. Realizou-se um
levantamento dos grupos de teatro existentes na cidade atualmente, bem como entrevistas
abertas com alguns representantes destes e com pessoas ligadas às artes cênicas na cidade de
São João del-Rei. Um dos critérios para a seleção dos grupos foi a participação de estudantes
universitários. Fez-se um levantamento das peças encenadas, dos autores por eles escolhidos e
das técnicas de representação utilizadas, para entender o porquê destas escolhas e o que elas
suscitam. Também foram realizadas observações dos ensaios e das apresentações, a fim de
conhecer a dinâmica de criação artística, os aspectos do processo grupal e a implicação dos
atores neste. Para subsidiar as reflexões acerca da recepção da obra dramatúrgica e de
estabelecer condições para uma posterior caracterização do público de teatro amador em São
João del-Rei, foi elaborado e aplicado um questionário preliminar com os espectadores das
peças encenadas pelos grupos observados. Além da transcrição das entrevistas, dos
questionários e de fotos recorreu-se ao diário de campo para registro das observações.

Mimese, Expressão Artística e Experiência Estética: breves considerações.

No livro Teoria Estética, Adorno (1988), ao discutir a respeito da teoria freudiana e da teoria
kantiana da arte, contrapõe os dois autores e apresenta alguns aspectos importantes que
elucidam as potencialidades da arte no estudo da subjetividade. Entende-se que seja do
confronto e da articulação do que pôde ser desenvolvido por cada um destes autores que o
objeto pode ser iluminado, ou seja, o melhor que pôde ser apresentado por um lado reflete o que
no outro é carente. Um é colocado para frustrar a ação do outro ou, na articulação, potencializar
o esclarecimento e deste movimento conhecer o existente em seu aprisionamento e em suas

979
possibilidades de superação. Ao realizar essa contraposição, Adorno (1988) afirma que “a arte é
antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua
esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua
representação” (p.19). Neste sentido, é importante manter a tensão entre o momento objetivo e o
momento subjetivo que constituem a arte, entendendo que esta, por não se depreender
imediatamente da sociedade, traz a necessidade de se considerar a apropriação subjetiva da
objetividade presente no processo de criação artístico. Tal momento, que se refere à formação
cultural, revela-se como condição privilegiada de contato e reflexão a respeito dos danos à
individuação. Com isso, Adorno reflete a respeito de como obras de arte legítimas revelam por
meio da passagem pelo particular (o artista) algo que representa a humanidade.
A arte só pode existir por conter elementos expressivos e miméticos daqueles que representam o
sofrimento de todos de modo particular, o que “conduz a um paradoxo subjetivo da arte:
produzir algo de cego – a expressão – a partir da reflexão e pela forma” (Adorno, 1988, p.134),
ou seja, na precisa tensão entre conteúdo e forma estética. Para Adorno, é através da forma e, na
tensão desta com o conteúdo – categorias indissociáveis –, que a arte participa da civilização,
sendo precisamente o fato da sua existência uma crítica severa às promessas não realizadas pela
cultura, a saber, gratificação e segurança. A arte aproxima-se da realidade objetiva devido a sua
estrutura, porém é capaz de contornar tal realidade por manter-se fiel a si mesma. A forma como
mediação entre a obra – a qual substancia – e a estrutura social – a qual critica – condensa os
elementos que tornam as obras de arte inteligíveis e críticas. É na elaboração e articulação das
partes entre si e o todo que se revela tal mediação, o que torna a obra de arte capaz de participar
da esfera social. Neste sentido, a forma é o elemento pelo qual as obras se tornam críticas em si
e, dessa maneira, pode-se dizer que “forma e crítica convergem. Nas obras de arte, a forma é
aquilo mediante o qual elas se revelam críticas em si mesmas; o que na obra se revolta contra o
resto do relevo é verdadeiramente o suporte da forma” (Adorno, 1988, p.165).
Ressalta-se que neste processo o decisivo é a tensão entre a expressão e o aspecto formal; uma
obra de arte que ressalta um elemento em detrimento do outro perde, necessariamente, a sua
negatividade. Dessa maneira, obras que em sua constituição preservam tanto o aspecto formal
quanto o momento expressivo, tornam-se rebeldes contra a aparência organizada do que existe,
sendo este “o fenômeno negativo de sua verdade” (Adorno, 1988, p.150). Como denúncia e
contato com a realidade e não como fuga, a arte revela a barbárie e as cicatrizes deixadas pelas
condições sociais que impossibilitam a realização do homem como indivíduo. O que se revela é
o sofrimento desnecessário e a perpetuação da violência que afeta a todos e revela uma
capacidade de perceber o mundo – a capacidade do artista inscrita no processo de criação
artístico – de maneira peculiar. Os “privilegiados filhos da renúncia” (Adorno, 1993, p.186), na

980
contenção do ódio, expressam algo que pode representar uma contradição lógica:
“(...) disposição sobre o momento mimético que suscita, destrói e salva o seu caráter não-
arbitrário. O arbitrário no não-arbitrário é o elemento vital da arte, a força para tal arbitrário é um
critério fidedigno da aptidão artística (...). Os artistas reconhecem nesta aptidão o seu sentimento
formal.” (Adorno, 1988, p.134.)

Os artistas expressam por meio de suas obras uma insatisfação que, sendo de todos, mostra que
nesta forma de organização social as coisas poderiam ser diferentes. Como a liberdade e a
felicidade ainda não são possíveis, os artistas que se embrenham nesta tarefa, colidem,
inevitavelmente, com a realidade e “têm sem exceção de pagar caro por isso enquanto
indivíduos, permanecendo desamparados atrás de sua própria expressão, a qual escapou à sua
psicologia” (Adorno, 1993, p.187). É por meio da sensibilidade e de uma intencionalidade não
intencional, que os artistas dão voz a imaginação e expressam um mundo particular, mantendo-
se assim fiéis a si mesmos enquanto devolvem à realidade o que a ela é devido (Adorno, 1993).
Por ser justamente pela capacidade de produzir algo de modo estético ou fazer coisas das quais
não se sabe o que são, que o artista revela polemicamente – em um contexto histórico específico
– a desarmônica sociedade em que tentamos sobreviver. Considera-se a arte como expressão de
dor e sofrimento, ou seja, aquela capaz de fornecer indícios para pensar o reflexo das
imposições sociais aos homens. Pensar em uma já alcançada reconciliação entre sensibilidade e
razão, neste tipo de organização social em que as possibilidades de formação encontram-se cada
vez mais impedidas de serem realizadas, é negar o conteúdo de verdade da arte, o seu potencial
crítico que se volta contra a aparência do que existe.
Além disso, para que seja possível o contato com a arte enquanto historiografia do sofrimento
também é requerida uma rigorosidade diante do objeto que, por sua vez, requer daqueles que
entram em contato com as obras de arte certas disposições específicas para a sua fruição: para
além da projeção pede-se o controle de projeção. Deve-se, então, distinguir a mimese da falsa
projeção. Para Horkheimer e Adorno (1944), na mimese genuína o exterior se torna um modelo
para o interior se ajustar, o estranho torna-se familiar; já na falsa projeção, o interior é projetado
no exterior, caracterizando o mais familiar como algo de hostil. Referindo-se ao que foi
pensando junto com Horkheimer (1994) no livro Dialética do esclarecimento e destacando o
caráter processual e formativo da experiência estética, Adorno escreve:
“A experiência pré-artística necessita da projeção [nota reportando-se ao livro acima citado], mas a
experiência estética – justamente por causa do primado apriórico da subjetividade nela – é
movimento contrário ao sujeito. Ela exige algo como a autonegação do espectador, a sua
capacidade de abordar e perceber o que os objetos estéticos dizem ou calam por si mesmos. A
experiência estética estabelece primeiro uma distância entre o espectador e o objeto. É o que se
quer dizer quando se pensa na contemplação desinteressada. Beócios são aqueles cuja relação com
as obras é dominada pela sua possibilidade de se porem mais ou menos no lugar das personagens
que aí ocorrem; todos os ramos da indústria cultural se baseiam neste fato e reforçam esta idéia na
sua clientela.” (Adorno, 1988, p.381.)

981
Entretanto, se “(...) a arte, mimese compelida à consciência de si mesma, está porém ligada à
emoção, à imediatidade da experiência; de outro modo, não se poderia distinguir da ciência (...)”
(Adorno, 1988, p.289), também é necessário que a experiência estética ultrapasse os próprios
limites da arte; para isso “a experiência só não basta, é preciso que ela seja alimentada pelo
pensamento” (p.384). Na tensão entre o psicológico e a sociedade são reveladas as mediações
sociais, tanto as opressivas como aquelas que indicam vestígios de libertação e de felicidade.
“Se o modelo de compreensão estética é o comportamento que se move na obra de arte; se a
compreensão está ameaçada desde que a consciência sai dessa zona, esta deve, no entanto, manter-
se móvel ao mesmo tempo no interior e no exterior, apesar da resistência a que se expõe uma tal
mobilidade do pensamento. Quem apenas permanece no interior, a esse a arte não lhe abrirá os
olhos; quem apenas fica no exterior, falsifica as obras de arte por uma falta de afinidade.”
(Adorno, 1988, p.385.)
Quebrar a rigidez para mover-se entre diferentes dimensões torna-se condição para que a
experiência estética possa acontecer com toda potencialidade e almejar a realização daquilo de
humano que ela guarda. Trata-se de empreender a oposição refletida entre o externo e o interno,
e deste movimento, ser capaz de realizar uma projeção consciente. Se a experiência estética é
permeada tanto pela fruição como pelo entendimento, por meio dos mecanismos de introjeção e
projeção, a obra de arte deve permitir este movimento de seu público desenvolvendo-se a partir
de uma precisão que faça justiça a sua própria verdade e não seguindo a linha da menor
resistência entre si e seus consumidores. Aliás, se isto for privilegiado, tem-se uma obra que
serve muito bem aos interesses da Indústria Cultural. Nela, a conformação das disposições
necessárias para a criação artística transforma os produtos em mercadorias que suscitam,
também pela degenerescência da recepção e da experiência, configurações psicológicas
adequadas para a manutenção e a propagação das formas necessárias à sociedade industrial.
Os Limites da Arte: Indústria Cultural e a forma como conteúdo
Horkheimer e Adorno (1994) cunharam o termo “Indústria Cultural” para fazer distinção entre
os produtos desta com os da chamada “cultura de massa”. Esta pressupõe que se trata de algo
que surge espontaneamente das massas. Já a Indústria cultural parte de pressupostos bem
diferentes, ela é “uma integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores” (Adorno,
1986, p.92). Passa-se a idéia de que os produtos são resultados de uma demanda dos
consumidores, mas “a atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da
indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa” (Horkheimer e Adorno, 1994,
p.115). Faz-se uso do fato de milhões de pessoas buscarem por produtos desta indústria para
justificar a reprodução e, consequentemente, a necessidade de padronização. Se os padrões são
resultados das necessidades dos consumidores, não há porque resistir.
“De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade
do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica
conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem

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sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o
caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma.” (Horkheimer e Adorno, 1994, p.114.)
Para os autores tudo é simplificado, só há variação no que se refere à aparência, clichês são
utilizados de maneira arbitrária. Isto determina no espectador um reconhecimento prévio do que
será apresentado já no início, e um sentimento de satisfação quando tudo segue conforme o
previsto. Mesmo os momentos de “improvisação” são calculados. Com isso, a Indústria Cultural
que oferece às pessoas a sensação de que o mundo está em ordem – ignorando que esta ordem é
alimentada pelo sofrimento, pela barbárie – frustrando a felicidade que ela simula proporcionar.
Pode-se dizer que a Indústria Cultural, como uma forma de ideologia, mantém e propaga o
ritmo da indústria, um “ritmo de aço” que mantém perigos injustificados perante o acúmulo
material da civilização, e que suscita, por meio de atitudes defensivas, as configurações
psicológicas necessárias para a manutenção da dominação própria e alheia. Ainda segundo
Horkheimer e Adorno (1994), os produtos da Indústria Cultural pretendem ser uma extensão do
real. Um exemplo desta pretensão pode ser encontrado na indústria cinematográfica: o filme não
deixa espaço para que o espectador possa divagar, ele “adestra o espectador entregue a ele para
se identificar imediatamente com a sociedade” (p.119). Nos dias de hoje, há uma atrofia da
capacidade de imaginar e da espontaneidade: “os próprios produtos (...) paralisam essas
capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva” (p.119), não deixando espaço para
movimentos característicos da experiência formativa. Garante-se, portanto, na administração
total que subordina os sentidos e o espírito ao ritmo do trabalho, uma administração efetiva da
recepção. No livro Teoria Estética, Adorno (1988) ratifica esta tendência:
“Os ingênuos da indústria cultural, ávidos das suas mercadorias, situam-se aquém da arte; eis
porque percebem a sua inadequação ao processo da vida social atual – mas não a falsidade deste –
muito mais claramente do que aqueles que ainda se recordam do que era outrora uma obra de arte.
(...) A paixão do palpável, de não deixar nenhuma obra ser o que é, de a acomodar, de diminuir a
sua distância em relação ao espectador, é um sintoma indubitável de tal tendência.” (Adorno,
1988, p.28.)

Numa racionalidade permeada pela superprodução, os produtos são feitos somente para um
consumo compulsivo (pulsão sem objeto) e um dos focos privilegiados é o entretenimento –
entendido como um distrair-se, manipulação do momento de descanso que sirva à lógica do
trabalho. Para Horkheimer e Adorno (1994) “(...) o que é novo é que os elementos
irreconciliáveis da cultura, da arte e da distração se reduzem mediante sua subordinação ao fim
a uma única fórmula: a totalidade da indústria cultural. Ela consiste na repetição” (p.127), no
ritmo compulsivo da forma como conteúdo. Nesse sentido, a arte pode acabar servindo também
a esse mundo administrado, tornando-se simplesmente consumível. “As mercadorias culturais
da indústria se orientam (...) segundo o princípio de sua comercialização e não segundo seu
próprio conteúdo e sua figuração adequada” (Adorno, 1986, p.93). O rebaixamento de seu

983
conteúdo é evidente, a forma pela forma toma o lugar daquele de maneira por vezes disfarçada,
mas categórica. “Cada produto apresenta-se como individual; a individualidade mesma
contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o
que é coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de vida” (Adorno, 1986, p.94).
Isto, de certo modo, aparece nos grupos de teatro quando a preocupação em causar um
determinado impacto ou passar uma determinada mensagem, determinado referindo-se a uma
padronização, sobrepõe-se à tensão forma e conteúdo. Nos grupos de teatro amador observados
esta suposta necessidade de obter uma resposta específica do público é evidente e perpassa todo
o processo de criação artístico.
Em um dos grupos, o “Núcleo Cultural Brasil é Arte”, nas entrevistas realizadas, além do diretor
tomar como meta a profissionalização dos atores e a tarefa de tornar o grupo uma referência de
peso no cenário teatral, um dos elementos de destaque é a idéia recorrente para os integrantes do
grupo de que o espetáculo deveria “causar impacto”. O cenário e, é claro, o título da peça,
remetem à noção de que os personagens são as pessoas pobres que vivem nas ruas, mas, no
decorrer do espetáculo surgem outros personagens que têm o intento, segundo o grupo, de
lembrar ao público, que todos somos mendigos, pois estamos sempre mendigando algo como
carinho, aceitação ou oportunidade. No outro grupo, “Cia Metáfora”, a mensagem estava ligada
diretamente à repressão sexual. Mesmo que a peça escolhida contenha alguma sexualidade, a
adaptação busca ressaltar este aspecto de maneira excessiva, inserindo no texto de Sartre “Entre
quatro paredes”, como adereço cênico e lingüístico, o “órgão”, visto que no decorrer do
espetáculo foram feitas referências nas falas dos personagens e havia um objeto coberto em
cena, recursos utilizados para criar uma expectativa no público. Ao final do espetáculo revela-se
que tal “órgão” refere-se ao órgão sexual masculino, um pênis, tomado como um ponto de
convergência para as mulheres representadas na peça. Porém, esta tentativa – conclusão obtida a
partir de uma discussão sobre a adaptação com uma parte do público no dia posterior ao
espetáculo – cinde a peça nestes dois momentos. O “órgão” e o texto de Sartre passam a ser
momentos que não se comunicam entre si.
Com isso, se a forma aparece como conteúdo, mesmo quando a expressão grita, mas não
consegue se impor, o potencial crítico da arte se reduz. Adorno (2003), discutindo a arte
engajada a partir da obra de Valery, indica que “essa teoria deseja que a arte fale imediatamente
aos homens, como se o imediato, em um mundo de mediação universal, pudesse ser realizado
imediatamente” (p.158). A racionalidade do mundo administrado que impõe a todos as
configurações psicológicas requeridas por essa ordem está presente também naqueles que se
confrontam com a possibilidade de fazer arte, deixando rastros nos grupos de teatro amador de

984
São João del-Rei. Estes, imersos na ideologia predominante, acabam reproduzindo aquilo
mesmo que a arte poderia revelar polemicamente em sua elaboração objetiva.

Palavras-chave: Teoria Crítica da Sociedade – Individuação – Arte – Expressão Artística –


Experiência Estética – Indústria Cultural

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Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. pp.113-
156.

985
CONFORMISMO E MIMESE – a influência do consumo mediado pela televisão na
relação entre indivíduo e sociedade.

Fabiana Paola Mazzo

Resumo

O trabalho a ser apresentado se apóia em textos de Herbert Marcuse e Theodor W.


Adorno e estuda neles as suas concepções acerca da relação entre indivíduo e sociedade. O
objetivo é o de tentar configurar tanto o comportamento mimético (Marcuse, 1979) quanto o
conformismo (Adorno/ Horkheimer, 1985) e entender as conseqüências de ambos em relação à
desmedida expansão do consumo de bens supérfluos que atendem o que Marcuse denomina de
“falsas necessidades”. Para tanto, destacar-se-á também o papel da televisão, entendida tanto
como instrumento tecnológico de dominação quanto como “guia dos perplexos” e a sua
influência tanto na relação entre indivíduo e sociedade quanto na relação dos indivíduos com o
consumo.

Palavras-chave: indústria cultural; subjetividade; conformismo; mimese; consumo;


televisão.

A relação entre indivíduo e sociedade, complexa como é, transformou-se


significativamente quando os bens de consumo, principalmente os culturais, começaram a ser
produzidos em massa e para as massas. É nesse momento que surge a indústria cultural que
passa a agir também como mediadora de tal relação. Na concepção de Adorno a indústria
cultural suprimia a autonomia da obra de arte. Isso, a partir do momento em que todo bem
cultural poderia ser introduzido em um universo kitsch e banalizado através de sua reprodução
em larga escala. Tais produtos culturais seriam dessa forma distribuídos como qualquer outro
produto de necessidade secundária e fútil. Esse universo favoreceria a expansão crescente de um
tipo de adesão incondicional dos indivíduos à sociedade vigente, possibilitando desse modo uma
espécie de identificação deles com a sociedade. O agente desta identificação seria o consumo de
uma enorme gama de produtos destinados a satisfazer necessidades geradas por essa sociedade,
a qual Marcuse denomina “tecnológica”, ou seja, a sociedade industrial desenvolvida, moldada
por meio do desenvolvimento tecnológico.
Marcuse nos mostra que com o advento da indústria moderna são constituídas novas
formas de organização social – no que diz respeito às sociedades industrializadas. Tais formas
de organização são abordadas pelo autor, que evidencia e problematiza as relações sociais e a

986
relação entre indivíduo e sociedade constituídas durante o processo de desenvolvimento
tecnológico nessas sociedades (Marcuse 1979). Partindo deste pressuposto afirma haver nas
sociedades industrializadas desenvolvidas relações de repressão e supressão dos impulsos
individuais relacionadas à imposição da ordem e da dominação por parte das instituições
detentoras do poder, tanto no plano social como no plano político. Em um artigo anteriormente
publicado Marcuse já distingue no processo de desenvolvimento tecnológico esse movimento,
no qual a tecnologia é tida como

[...] um processo social no qual a técnica propriamente dita (isto é, o aparato técnico da
indústria, transportes, comunicação) não passa de um fator parcial. [...] A tecnologia,
como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções
que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar
e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos
padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação.
(1998, p.73)

Tomada por esse ângulo de visão, a tecnologia desenvolve-se junto a um plano de


controle social que já vinha sendo engendrado para que a racionalidade se impusesse como uma
forma eficiente de organização e doutrinamento social (Marcuse, 1998). A tecnologia, nesse
sentido, funciona como reprodutora de relações de poder e dominação bem como se apropria da
racionalidade técnica dos meios de produção desenvolvida até então para controlar eficazmente
tanto o mercado quanto o sistema social no qual ela se estabelece. Essa característica faz da
tecnologia não só um instrumento, mas sim, um sistema social que visa a maior produção
quantitativa e a maior diversidade de bens a fim de que o consumidor sinta-se incluído e
satisfeito –no quanto possa estabelecer um padrão de vida que o sustente dentro desse sistema.
O que se pode perceber é que esse processo faz parte de uma racionalidade tal em que o
indivíduo é pressupostamente livre para o consumo e na qual ele próprio se identifica com os
produtos que consome. É por meio do trabalho que esse indivíduo se inclui na racionalidade do
sistema e é por meio das relações sociais que se inclui num plano normativo de adequação a
esse sistema. Marcuse vai dizer que a racionalidade tecnológica é ideológica num novo sentido;
não naquele da falsa consciência, mas num sentido em que ela (a racionalidade tecnológica) é a
verdadeira consciência (Marcuse, 1979). Tal sistema social faz com que novas relações de
trabalho e consumo sejam estabelecidas ao indivíduo e levam, segundo Marcuse, a “uma falta
de liberdade confortável, suave, razoável e democrática”, onde,

987
Nas condições de um padrão de vida crescente, o não-conformismo com o próprio
sistema parece socialmente inútil, principalmente quando acarreta desvantagens
econômicas e políticas tangíveis e ameaça o funcionamento suave do todo (1979, p. 23-
24).

Esta “falta de liberdade confortável” irá se configurar nas sociedades industrializadas


sob a forma própria da liberdade, ou melhor, sob a idéia de liberdade, na medida em que os
indivíduos acreditam serem livres em uma sociedade pressupostamente democrática, quando, na
verdade, estão submetidos a um sistema social que lhes dá a liberdade de consumir os produtos
oferecidos pelo mercado e satisfazer seus desejos – não os deles, mas os do mercado – enquanto
têm que, para sobreviver (para sustentar seu consumo), trabalhar horas a fio. Este tipo de relação
entre indivíduo e sociedade suprime, pois, o indivíduo enquanto sujeito de suas ações e desejos
e, portanto, esfacela sua subjetividade1.
Diante dessa nova realidade, Marcuse verifica que o termo “introjeção”, que vinha
sendo utilizado para explicar a relação entre indivíduo e sociedade até então não poderia ser
utilizado para explicar a relação que surge na “sociedade tecnológica”. Isso porque o termo
(“introjeção”) está relacionado a um movimento de interiorização da sociedade pelo indivíduo e
isto implicaria a existência de um espaço interno e subjetivo desse indivíduo o que, para o autor,
não ocorre. Chega então à conclusão de que, na sociedade industrial desenvolvida, ou
tecnológica, a qual se regra por uma nova forma de organização social, o indivíduo é privado de
sua subjetividade e se relaciona com a sociedade numa relação mimética por meio da qual ele se
identifica “com a sua sociedade e, através dela, com a sociedade me seu todo” (MARCUSE,
1979, p.31).
Até o momento, essa discussão mostra o quanto o desenvolvimento da sociedade
industrial moderna se fez com base na repressão dos impulsos propriamente humanos, em favor
de uma racionalidade técnica que assegura tanto o seu desenvolvimento econômico-produtivo
quanto prepara os indivíduos para uma convivência harmônica, seja com os meios de produção,
seja com a atividade do consumo. O processo social propicia assim uma espécie de
reconciliação forçada, porém eficiente, do indivíduo com a sociedade, gerando, portanto, o
conformismo.
É nesse sentido que as reflexões de Adorno tornam-se imprescindíveis para esta
discussão na medida em que cercam tais formas de organização as quais, com base na repressão,
proporcionam o que ele define como a semiformação (halfbildung) dos indivíduos. A

1
É de se notar, porém, que, atualmente, o trabalho começa a ser desmantelado em todas as regiões e
atividades e que esse fato acarreta amplas conseqüências para todos.

988
semiformação permite o aparecimento de “pseudo-indivíduos” e provoca a regressão de suas
potencialidades transformando-os, assim, em instrumentos engendradores (ao mesmo tempo em
que engendrados) de um sistema que se constitui sobre bases violentas de dominação por meio
da racionalidade tecnológica. Adorno traz ainda à tona a força, a eficiência com que a indústria
cultural integra os indivíduos num mesmo sistema, no qual nem sequer a possível resistência
consegue se isolar. Segundo o autor,

Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença
pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma
agrária ao capitalismo. A rebeldia realista torna-se a marca registrada de quem tem uma
nova idéia a trazer à atividade industrial [...] Quem não se conforma é punido com uma
impotência econômica que se prolonga na impotência individual do individualista
(1985, p. 123-4/125).

A indústria cultural absorve o que é diferente e transforma essa diferença em produto,


ou seja, integra, torna-a apenas mais um objeto de consumo, perpetuando assim “a reprodução
do que é sempre o mesmo”. Por mais que a indústria defenda a força do indivíduo, este não tem
lugar nela. O conformismo torna-se necessário à sobrevivência na medida em que a integração
ao sistema é forçada. A força maior é a da sociedade e é por isso que Adorno (1985, p.139)
defende que “apesar de todo o progresso da técnica de representação, das regras e das
especialidades, apesar de toda a atividade trepidante, o pão com que a indústria cultural alimenta
os homens continua a ser a pedra da esteriotipia”. É dessa forma que, na concepção desse autor,
a indústria cultural, privando os homens de sua subjetividade e de seu direito de liberdade,
transforma-os em peças para o funcionamento do mercado, em dados quantitativos para o
consumo dos bens culturais.
Marcuse, por sua vez, refere-se não só aos bens propriamente culturais, mas também a
todos aqueles cuja produção não visa a satisfação das necessidades vitais, mas que atendam,
sim, as “falsas necessidades”. Falsas seriam, portanto, as necessidades que não emergem do
indivíduo, mas de interesses sociais de dominação:

Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças
externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a
satisfação dessas necessidades são heterônomos. Independentemente do quanto tais
necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas
pelas condições de sua existência; independentemente do quanto ele se identifique com

989
elas e se encontre em sua satisfação, elas continuam sendo o que eram de início –
produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão (MARCUSE,
1979, p.26).

A diversidade presente nos produtos desta sociedade garante o funcionamento


incessante do mercado por meio de sua dimensão quantitativa e efêmera. Dessa forma, a
produção e o consumo das “falsas necessidades” são manipulados de forma a manter a ordem
estabelecida por meio da liberdade de escolha (que faz com que o indivíduo sinta-se sujeito de
uma ação que, na verdade, é controlada pelo mercado) e da sensação de satisfação obtida, que
na verdade é falsa, uma vez que a satisfação não é a do consumidor, mas a do mercado. Essa
relação entre indivíduo e sociedade que toma forma a partir desse sistema social será entendida
como degradante e desumanizada.
Com base nessa discussão pode-se perceber, portanto, que o resultado do processo
tecnológico e da conseqüente produção e consumo de bens faz emergir um aspecto próprio da
sociedade contemporânea, que é o esfacelamento da subjetividade. Isso se dá por conta do
estabelecimento de uma racionalidade tecnológica que desenvolve nas sociedades uma
organização social em que predominam relações de poder. Dessa forma, o indivíduo fica
submetido ao sistema estabelecido e perde, ou melhor, tem deturpada – através da apropriação
de suas necessidades pela racionalidade tecnológica – a consciência de suas próprias ações, pois
a sua realidade não é outra senão aquela que se mostra através dos instrumentos tecnológicos.
Tal aspecto existe porque foi naturalizado através desses instrumentos – criados sob a promessa
do progresso.
Da união entre tecnologia e indústria cultural, tendo sido tal união auxiliada pelo
crescimento dos meios de comunicação em massa, surge a televisão. A televisão pode ser
entendida, portanto, tanto como instrumento tecnológico que reproduz a dominação, quanto
como instrumento da indústria cultural, que duplica o mundo e dispensa o indivíduo da
necessidade de pensamento. Para Adorno,

A televisão permite aproximar-se da meta, que é ter de novo a totalidade do mundo


sensível em uma imagem que alcança todos os órgãos, o sonho sem sonho; ao mesmo
tempo, permite introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo que considera
adequado ao real (1971b, p.346).

Dessa forma, atrofia também a autonomia do indivíduo na medida em que, ao identificar-


se com a “realidade” presente na tela de TV, toma-a para si como sua própria realidade. Nesse

990
sentido, na sociedade contemporânea, a televisão apresenta-se talvez como o principal dentre os
instrumentos tecnológicos que se desenvolveram dentro da lógica do ordenamento social, uma
vez que é responsável pela reprodução das relações sociais, agindo como um grande mentor
deliberativo de padrões de comportamento e, como conseqüência, de consumo. Assim sendo,
num movimento de retroalimentação com a sociedade, a televisão reforça, sistematiza e propõe
modos de vida que tendam ao consumismo exacerbado e ao controle social, como mostra
Adorno:

Quanto mais inarticulada e difusa a audiência da mass media pareça ser, mais ela tende
a obter sua ‘integração’. Os ideais de conformidade e convencionalismo eram inerentes
nos romances populares desde o seu início. Agora, entretanto, esses ideais têm sido
traduzidos na forma de claros conselhos a respeito do que se deve ou não fazer. A
procedência dos conflitos é preestabelecida, e todos os conflitos são meras farsas. A
sociedade é sempre a vencedora, e o indivíduo é apenas um marionete manipulado
através das regras sociais (1991, p.140, tradução livre)

Essa parece ser a mesma relação a qual Marcuse descreve como mimese e pela qual se
pode reafirmar a idéia de subjetividade esfacelada e do total concernimento do indivíduo com
relação à sociedade. Essa característica leva o indivíduo a prezar por sua “liberdade confortável”
de forma conformista. O conteúdo televisivo reforça, pois, o sistema social em que prevalece o
poder na medida em que faz com que os indivíduos, “conscientes” de que fazem parte desse
sistema, reproduzam através do consumo e, conseqüentemente das relações sociais, todo um
esquema em que a violência é banalizada e legitimada enquanto meio para que se alcance o
poder. O telespectador, portanto, tomando a realidade da TV como molde de sua própria
realidade, ao identificar-se, toma para si discursos, comportamentos e adquire os produtos
sugeridos a ele durante a programação deste ou daquele canal. Esse movimento de identificação
pressupõe, porém, uma imediata inclusão social e, dessa forma, o indivíduo fala, se veste, age e
consome de acordo com essa outra realidade presente na televisão, como se dessa forma ele
obtivesse, também imediatamente, respeito e inserção perante a sociedade. Por meio da
televisão, uma relação entre identificação e consumo é reproduzida e reforçada de forma a
proporcionar a manutenção de um sistema social dominador através da própria relação entre
indivíduo e sociedade.
Para concluir, quando se pensa como esse tipo de relação se apresenta no Brasil,
descobre-se um amplo sistema em que a relação entre indivíduo e sociedade é grandemente

991
influenciada pela televisão, o que se torna problemático de acordo com a influência que ela
exerce para essa sociedade:

O que é alarmante num país como o Brasil é que a televisão tenha adquirido uma
importância tão grande na vida das pessoas, suprindo a falta de cultura, informação
escrita e até a falta de formação escolar da maioria dos brasileiros (KEHL, 1995, p.178)

Há de se notar que a televisão no Brasil faz parte do dia-a-dia de grande parte de sua
população. Tendo, portanto, adquirido grande importância e garantido sua presença na vida dos
telespectadores, pode-se perceber o quanto ela os envolve, seja através de novelas, programas
ou comerciais. Essa relação entre o brasileiro e a televisão faz também parte das discussões até
agora feitas na medida em que mostra claramente a força da sociedade, reproduzida e duplicada
pela televisão, sobre o indivíduo, que também é telespectador e que, a partir dessa relação,
identifica-se e consome de acordo com os conselhos de uma realidade que ele identifica como
sendo sua.

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994
O CONCEITO DE TÉCNICA, FORMAÇÃO E NATUREZA NA TEORIA CRÍTICA

Giovane de Oliveira
UFSCAR

O trabalho foi desenvolvido entre março de 2005 e abril de 2006, apoiado nos estudos da escola de
Frankfurt desenvolvidos pelo grupo de estudos e pesquisas de Teoria crítica da UFSCar, sob
orientação de Antonio Àlvaro Zuin, Newton Ramos de Oliveira e Bruno Pucci com o financiamento
da bolsa PIBIC/CNPQ. Durante este período foram lidos textos de Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer, Herbert Marcuse, e outros comentaristas destes, buscando conceitos relativos ao tema
da pesquisa para, a partir de uma análise da sociedade capitalista, notar a técnica, a formação e a
natureza como elementos da relação do homem com a natureza interna e externa.
A vasta analise feita pelos frankfurtianos vai nos fornecer elementos para discutir a relação do
homem com a natureza, em seus diversos aspectos formativos e as conseqüências trágicas das
relações capitalistas.
Partindo da obra “Dialética do esclarecimento” de Adorno & Horkheimer, observa-se que o
embate com a natureza iniciou uma trajetória de dominação que perdura por séculos e se mostra
muito cruel. A tentativa da eliminação da mitologia, na luta encampada por Ulisses, demonstra,
através da derrota das forças naturais, que o homem se tornou soberano perante as divindades.
Assim iniciaram-se embriões das relações sociais ocidentais. Os paradigmas enfrentados por Ulisses
em sua viagem caracterizam diversas relações sociais, como a de trabalho no contato com os
lotófagos e no episodio das sereias, relações de gênero no contato com Circe e em seu retorno a
Ìtaca.
A superação do mito pela racionalidade possibilitou que a técnica se desenvolvesse totalmente no
sentido de dominar a natureza e utilizá-la no modo de produção desenvolvido a partir da
racionalidade capitalista. O iluminismo confiou ao esclarecimento o progresso e a dignificação
humana. Mas a relação de produção orienta a técnica para a obtenção de capital e manutenção de
privilégios e não para o bem-estar humano. A massificação e a homogeneização das pessoas parte
muitas vezes da fetichização, da organização das vontades. O controle sobre a formação humana ,
principalmente através da mídia e da escola, faz com que os exploradores condicionem os homens a
serem simples peças (substituíveis) em meio ao industrialismo. O trabalho, o entretenimento e
consumo condicionado e o sono, são as principais atividades de todos aqueles que obtiveram

1
995
sucesso ou não na sociedade capitalista, pouco exercendo de verdade atividades que lhes dão prazer
ou fruição, como a arte e o sexo.
O que se mostrar diferente da lógica capitalista será excluído e combatido para que se reintegre, ou
seja, destruído. Comportamentos, atitudes, pensamentos, a escola retransmite aquilo que é normal e
certo, reduzindo a diversidade, criatividade e a liberdade. Com a reprodução da lógica capitalista, a
escola limita o desenvolvimento do corpo e da alma das crianças, impondo valores que dão mais
importância a objetos do que à vida humana e em todas as outras formas de atividades construtivas.
A perda de foco da natureza em prol da tecnologia é notada pelo grande avanço desta e progressiva
destruição daquela. Esta relação demonstra claramente a teoria de Freud do retorno do reprimido,
ou seja, muitas coisas foram deixadas para traz no trajeto da civilização ocidental, para a tecnologia
⎯ a natureza foi uma delas ⎯ por isso o esclarecimento combate fielmente o retorno de instintos
primitivos ou modos de vida diferentes. Esta disputa se dá tanto nas esferas sociais quanto
psicológicas.
Geram-se diversos conflitos psicológicos e sociais na tentativa de afastamento entre o homem e a
natureza. O homem é um animal. Com desejos de satisfação naturais como a libido sexual e a fome,
o trabalho e a desigualdade social, vértebras deste sistema industrial mas não se permite estas
satisfações básicas. Esta relação, por estes e muitos outros motivos, está fadada a fracassar em
termos de sustentabilidade social, ambiental e psicológica. Este é um grande conflito entre a
civilização e o primitivo, o homem esclarecido e o meio natural. É difícil, mas necessário que se
busquem mecanismos para a harmonização.
O desequilíbrio entre Eros e Thanatos, que em linhas gerais representa as pulsões de vida e de morte
presente em todos, gera esta capacidade humana de destrutibilidade. Basicamente a sociedade
relegou Eros ao inconsciente, principalmente através da repressão sexual, para estabelecer as
relações sociais de trabalho da forma que elas são. Assim as criança são submetidas a diversas
formas de controle de seus impulsos naturais, forjando uma sociedade que tem uma tendência social
e psicológica de destruição.
O capital não vê limites para sua expansão permanência, por isso inclusive a violência é vista como
uma atitude legitima, normal. Muitas vezes o progresso é quem vai promover e justificar as atitudes
violentas.
Diante de tantas pressões, são geradas medidas para que a população suporte este estado. Marcuse
denomina estes cabrestos como satisfação compensatória, tendo o fetiche da mercadoria como
carro-chefe do consumismo, que se perpetua através do emprego (trabalho), entretenimento
(mídia/consumo), etc.

2
996
Por outro lado Herbert Marcuse salienta que as atitudes e vivencias que propiciem alguma
emancipação e em geral vão contra o sistema e sua lógica, geram também alguma satisfação,
benéfica à vida, que ele denomina de emancipatórias.

Adorno coloca como uma prioridade para a educação a desbarbarização, ou seja, superar esta
capacidade de violência e destruição que a sociedade capitalista desenvolveu no passar dos séculos,
isto passa por uma auto-reflexão critica e humanizada da utilização da tecnologia, por exemplo. O
conformismo desenvolve-se em meio à indiferença causada pela frieza das relações humanas atuais,
faz com que todos, entre burgueses e proletários, convivam em situações extremas de desigualdade,
permeadas por restrições sociais que em geral são violentas e desumanas.
A escola, como um agente ligado às relações de poder, situa-se claramente nas mãos daqueles que
dominam e que não querem que haja nenhum tipo de mudança social, por isso é difícil propor
formas diferentes de educação que se proponham à emancipação, uma vez que ela está emaranhada
no capitalismo. Os discursos de mudança nos rumos da educação esbarram muitas vezes nas
atitudes cotidianas vividas na escola. Desde o aspecto físico até a o currículo oculto incentivam
relações de competitividade, autoridade, etc. Valores importantes para esta forma de organização da
sociedade, em que o fracasso é muito mais presente na vida de todos do que o sucesso, que deve
estar como uma perspectiva, uma ilusão que mantém o entorpecimento.
O medo, a culpa e a repressão são desenvolvidos desde cedo através da adequação social a este
modo produção. Estas características também são desejáveis em qualquer ser humano para uma boa
convivência diária com esta situação.
A formação de professores, críticos desta realidade, pressupõe o entendimento destes mecanismos
de controle psico-sociais para que abandonem as metodologias tradicionais, que foram
desenvolvidas e apuradas no capitalismo. Além deles, os pais tem uma grande importância na
sensibilização e formação dos filhos desde a concepção, devendo estar esclarecidos sobre a ação
coercitiva da cultura para que possam disputar aspectos decisivos na formação das crianças, em
todos os aspectos.
A formação da consciência coisificada é uma prerrogativa para as relações de trabalho
exploratórias, ela está mergulhada na indiferença e numa certa incapacidade de amar. Mesmo o
pensamento cristão, com intenções de amor ao próximo e de caridade, não solucionou o problema
da injustiça social, pois não combateu a raiz do problema, que são as relações de produção,
contribuindo para a amplificação de relações bárbaras.

3
997
Para o desenvolvimento das virtudes humanas seriam necessárias relações sociais, psicológicas e
ambientais diferentes, para isto é necessário explorar caminhos ainda não percorridos pelo
egocentrismo humano. Através de um progresso que não colocasse o capital como fim, em
detrimento ao desenvolvimento humano.
A satisfação total dos desejos humanos se tornaram incompatíveis com a civilização ocidental, que
aprisionou o principio de prazer para reproduzir um principio de realidade desumano, onde as
pessoas só tem a liberdade de viver sua repressão. O rompimento com este princípio de realidade
deve caminhar no sentida da sustentabilidade social e ambiental.

Referências bibliográficas:

ADORNO, T.W. Progresso. In: Lua nova, nº 27, 1992. pg 217-36.

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Janeiro: Paz e Terra, 2003.

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Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

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esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Pgs 19-52.

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Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Pgs 53-80.

GHIRALDELLI, Paulo J. O corpo de Ulisses: a modernidade e materialismo em Adorno e


Horkhaimer. São Paulo. Editora Escuta, 1996.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.


Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. Pg 33- 103.

MARCUSE, Herbert. Ecologia e crítica da sociedade moderna, 1977. In: LOUREIRO, Isabel.
Herbert Marcuse: a grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999.

4
998
INDÚSTRIA CULTURAL E OS UIVOS DO SEXO – AS PROJEÇÕES DO DISCURSO
SEXUAL DE “UIVO” NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Hugo Langone
UFRJ

Por todo o legado bibliográfico deixado pelos beatniks, ainda se encontram vivos e atuais os
aspectos que os caracterizam como a grande geração americana de escritores marginais. Através da
ruptura de comportamentos que mesmo na sociedade contemporânea melindram um considerável
número de pessoas, a geração beat colocou em discurso os anseios da juventude pós-Segunda
Guerra Mundial com uma fusão entre vida, experimentação e literatura jamais antes realizada.
Tendo como seus dois grandes expoentes Jack Kerouac e Allen Ginsberg, a beat
generation viu neste último a mais completa incorporação de suas convicções, fazendo de Ginsberg
o grande poeta mentor de seu grupo e daqueles que, ainda hoje, alimentam pontos-de-vista paralelos
aos que são condicionados pela cultura tecnológica vigente.
O grande marco de sua vida como escritor foi a publicação de “Howl”, ou “Uivo”, como
veio a se chamar no Brasil. Lançado pela primeira vez em 1956, e logo censurado pelo governo
americano, o poema-manifesto que exaltava os grandes gênios e marginais de seu tempo foi, junto
com On The Road, de Kerouac, um divisor de águas para a geração beat e para toda a literatura
ocidental:
Pelo que lembrávamos, nunca ninguém havia
ousado tanto na poesia — havíamos atingido um
ponto sem volta — e estávamos prontos para ele,
para um ponto sem volta. Nenhum de nós queria
voltar para o cinza, o frio, o silêncio militarizado,
para o vazio intelectual, para a insipidez
espiritual — a terra sem poesia. [...] “Uivo” era a
metamorfose de um Allen quieto e fervoroso, de
um acadêmico brilhante e boêmio preso às
próprias paixões e repressões, em um bardo
épico. 1

Com um ritmo inconfundível, o “Uivo” emerge e sacraliza o comportamento que


destoava os “grandes expoentes de sua geração”, como denominava o próprio autor, através do

1
McCLURE, 2005, p. 23-26.

999
imaginário composto por tudo aquilo que sempre se fez agressivo aos padrões ocidentais da
sociedade industrial da época: o radicalismo das drogas, do jazz, e, principalmente, da sexualidade.
As idéias sugeridas pelas referências sexuais do poema, que nas novas gerações já
parecem estar relativamente difundidas, se constituem pela criação de uma ramificação ideológica
do sexo, imprimindo-a a naturalidade e a essencialidade através das imagens da alimentação e da
música (“who lounged hungry and lonesome through Houston seeking jazz or sex or soup”2), a
dessacralização atrelada à imagem do sagrado (“who let themselves be fucked in the ass by saintly
motocyclists, and screamed with joy”3), a exaltação (“[...] N.C., secret hero / of these poems,
cocksman and Adonis of Denver joy to the memory of his innumerable lays of girls in empty lots &
diner backyards[…]4”) e até mesmo a transgressão (“who were expelled from the academies for
crazy & publishing obscene odes on the / windows of the skull”5).
Como forma de fortalecer e fixar a gama de idéias que o poema carrega, Allen Ginsberg
se apropria do sistema de mantra hinduísta. O próprio poeta, em seu ensaio intitulado “Reflections
on the mantra”, de 1966, explica:
After several minutes of devoted repetition […]
it is possible that the awesome physical sound
reverberating out of the body into the air might
serve as a vehicle for the expression of
nonconceptual sensations of the worshiper. […]
So that longer stretches of mantra chanting may
become the opportunity for realization of certain
blissful or horrific feelings which are latent and
hitherto unrealized […] Thus the mantram may
serve as an instrument for widening the area of
immediate self-awareness of the singer.6

Ao contrário da proposta apresentada pela questão formal do poema, na indústria cultural


de Adorno e Horkheimer esse artifício tem seu objetivo modificado. Em Ginsberg, sua utilização se
concentra num âmbito ideológico; a cultura de massas, por sua vez, ao criar um jogo de repetições

2
“que vaguearam famintos e sós por Houston procurando jazz ou sexo ou rango”
3
“que se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urraram de prazer”
4
“[...] N.C. herói secreto destes poemas, garanhão / e Adonis de Denver — prazer ao lembrar das suas
incontá- / veis trepadas com garotas em terrenos baldios & pátios dos / fundos de restaurantes [...]”
5
“que foram expulsos das universidades por serem loucos & public- / carem odes obscenas nas janelas do
crânio”
6
Depois de alguns minutos de repetição fervorosa [...] é possível que o grandioso som físico que reverbera de
fora do corpo para o ar sirva de veículo para a expressão de sensações não-conceituais do adorador. [...]
Portanto, longas repetições do canto do mantra podem se tornar a oportunidade de realização de certas
sensações, felizes ou terríveis, que são latentes e ainda não realizadas [...] Assim, o mantram pode servir como
instrumento para ampliar a área da imediata autoconsciência do cantor.

1000
encoberto pela máscara da novidade, se dedica ao fortalecimento do efeito (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 118), isto é, ao apelo do consumo através do falso novo.
Ao mesmo tempo, essa mesma indústria se organiza e se apodera às voltas das mesmas
contribuições que um dia se constituíram transgressoras. Com efeito, essa nova disposição se
encontra ainda mais fortalecida no campo da sexualidade devido ao aproveitamento dos
movimentos de liberação sexual ativos nas décadas de 1950, 1960 e 1970, que colocaram em
discurso uma visão do sexo facilmente absorvida pelos princípios instintivos conceituados por
Freud.
Incluído nesse conjunto de correntes libertárias, a beat generation também viu as idéias
expostas no poema-manifesto de Ginsberg serem trabalhadas pela indústria cultural. O próprio
Marcuse, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, cita a geração em seu texto sobre a
dessublimação repressiva: “A mulher vampiresca, o herói nacional, o beatnik, a dona de casa
neurótica, o gangster, o astro, o magnata carismático desempenham uma função muito diferente e
até contrária à de seus predecessores culturais. Não mais imagens de outro estilo de vida, mas
aberrações ou tipos da mesma vida, mais como afirmação do que negação da ordem estabelecida”
(MARCUSE, 1985, p. 71).
De fato, a mecanização da sociedade serve como base operacional para a utilização que a
cultura de massas faz das visões mais recentes da sexualidade. Por contraste à produção, a
sublimação não mais se dá de forma ampla, e o cenário para uma experimentação libidinosa torna-
se restrito. A diminuição dessa energia, limitando o alcance sublimativo, caminha em direção
antagônica com a própria necessidade que o impulso tem de se expandir. Ao tentar a expansão e ser
bloqueada por um ambiente mecanizado, culmina na erotização da sexualidade localizada (Ibid., p.
83). Por sua vez, essa redução, que condiciona as necessidades instintivas por não “cobrar” uma
transformação radical e dolorosa do desejo, cria uma aceitação imediata por parte do sujeito de tudo
que se oferece.
É através dessa pronta aceitação que a visão dessacralizada do sexo, vista por Ginsberg
como forma de elevação espiritual ou, como disse Kerouac em uma de suas entrevistas para a TV,
como forma de ver a face de Deus, é utilizada como uma espécie de “isca” para a submissão
voluntária, que conseqüentemente “enfraquece a racionalidade do protesto” (Ibid., p. 85). Inserindo-
se a visão natural da sexualidade (como àquela do autor de “Uivo”) nos ambientes de trabalho e nas
relações cotidianas — “Assim o sexo já não está no sexo mas em toda parte”, como concluiria
Baudrillard (1990, p. 14) —, se satisfazem de forma permitida os instintos de prazer previamente
restringidos, o que, de imediato, constituem situações confortáveis tanto para aqueles que

1001
indiretamente continuam estabilizados pela domesticação dos indivíduos quanto para os que se
mantêm conformados. Essa consciência feliz, bastante abalável, como elucidado em Marcuse, pode
ainda libertar “os impulsos instintivos de muito da infelicidade e do descontentamento que
elucidam o poder repressivo do universo de satisfação estabelecido” (MARCUSE, 1985, p. 86).
Caberiam aos descontentamentos que vêm a transcender a barreira do supracitado
conformismo a mobilização de uma nova organização, uma disposição social que formulasse uma
nova coesão social e uma ordem menos destinada à proliferação de uma utilização domesticadora
da sexualidade e que, consequentemente, fizesse jus às contribuições que grandes homens, como
Ginsberg, ofereceram à humanidade.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. “A indústria cultural”. In: Dialética do


esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal — Ensaio sobre os fenômenos extremos.


Campinas: Papirus, 1990.

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Nova York: Harper Perennial, 2000.

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MARCUSE, Herbert. “A conquista da consciência infeliz: dessublimação repressiva”. In: Ideologia


da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

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MCCLURE, Michael. A nova visão de Blake aos beats. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.

1002
MEMÓRIA E FORMAÇÃO DOCENTE: A AUTO-REFLEXÃO COMO EIXO NA
FORMAÇÃO EM SERVIÇO

Ivana de Oliveira Gomes e Silva


UFPA - Universidade Federal do Pará – Campus de Altamira

“É necessário contrapor-se a uma total ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas
golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como
educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.”

Theodor Adorno

O presente ensaio trata do resgate de minha experiência docente nas matérias Didática e
Prática de Ensino, com professores da região da Transamazônica que cursam Pedagogia em
regime de convênio com a Universidade Federal do Pará, Campus de Altamira. Tomo como
base teórica da reflexão a palestra de Theodor Adorno, “Tabus acerca do Magistério” para
provocar a memória e reflexão das experiências dos alunos professores quanto à sua vivência
formativa.
No lugar de origem da civilização ocidental, a Grécia Antiga, o pedagogo era o escravo
que conduzia a criança. Pedagogia significou o controle, a direção, a tutela do adulto sobre a
criança. O conceito atual de Pedagogia, diz de uma ciência da “educação” que, de acordo com
os filósofos, de Platão a Kant, se preocupavam com sua organização e seu conteúdo, deveria
conduzir o indivíduo a atingir no decorrer da existência um máximo de humanidade. Segundo as
análises de Adorno, a imagem do professor é vinculada à figura histórica do escriba, ou de um
preceptor que era pouco mais que um lacaio, ou o professor como o escravo, ou como alvo do
menosprezo do guerreiro por representar uma forma de superação da violência física.
As contradições e a aversão que envolve a profissão de ensinar, além do verificável no
plano material (profissão de fome), passam também por manifestações subjetivas inconscientes
que, de acordo com Adorno, são perpassadas pela herança das representações históricas como o
escravo, ou o veterano mutilado, dentre outras. A gênese da docência enquanto profissão aponta
para a posição de menoridade social, de lacaio e serviçal, refletindo o que o autor define como
“ressentimento do guerreiro” que por um permanente mecanismo de identificação se impõe ao
povo. Uma atitude em que se misturam o respeito pela independência do espírito e um desprezo,
ainda que tênue, por quem, não portando armas, logo pode ser vítima de esbirros. Movidos por
rancor, os analfabetos consideram como sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se
apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta posição social
ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero. O professor é o herdeiro do

1003
monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio ou a ambigüidade que
caracterizava o ofício do monge é transferido para o professor (Adorno, 1995, p. 102-3).
De acordo com a análise realizada por Adorno os profissionais liberais, como juristas e
médicos, demonstram liberdade, inclusive com a possibilidade de ganhar mais, mantendo um
“certo ar de nobreza e ousadia, além de terem algum poder real delegado, diferindo do professor
que exerce poder sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é
execrado por ser uma paródia do poder verdadeiro, que é admirado”.
A tendência última registrada nas pesquisas de Adorno, infelizmente mantém-se atual:
“o professor se converte lenta, mas inexoravelmente em vendedor de conhecimentos,
despertando até compaixão por não conseguir aproveitar melhor seus conhecimentos em
benefício de sua situação material” (idem, p.105).
Um outro agravante da imagem negativa do professor é sua função disciplinar, punitiva.
O intelectualmente mais forte castiga o mais fraco. Antes o castigo também era físico. Usar da
vantagem do saber que possui em relação ao saber de seus alunos, é uma desonestidade
(unfairness) , porque ele a vantagem é indissociável de sua função, lhe conferindo uma
autoridade de que poucas vezes abre mão.
Para Adorno, em que pese o abuso do preletor dogmático, essa postura desonesta do
professor é impelida pela sociedade, que permanece baseada na força física, não obstante os
propagados avanços da ciência e da tecnologia. Humanamente não acompanhamos esse
movimento, obedecemos antes às determinações colocadas pelo sistema. “De um certo modo,
emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade” (ibdem., p.143).
Apesar do contexto desfavorável à humanização, a resistência necessária para a
emancipação é, também para o autor, a resistência contra a escola como mundo fechado em si
mesmo. A geração da cultura pela escola é correlata à produção da não-cultura (barbárie), e se
desenvolve como produtora de esclarecimento e de ofuscação. A resistência precisa se
estabelecer a partir do interior da escola e da cultura.
No tangente à metodologia utilizada no desenvolvimento desta proposta de trabalho, o
ponto de partida desta experiência foi a reconstrução dos programas, neste caso, o programa da
disciplina “estágio supervisionado”, no formato que segue:

PLANO DE CURSO

1. EMENTA
Estudos sobre a educação nas séries iniciais (Educação Infantil e Fundamental Menor),
no contexto da prática pedagógica.

1004
1.1 ASPECTOS LEGAIS

O Estágio Supervisionado no Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia é uma


atividade curricular obrigatória integrante do Projeto Pedagógico do Curso que oportuniza a
relação prática/teoria/prática. Deve ajustar-se aos dispositivos do Decreto N.º.497 de 18 de
agosto de 1982, que regulamenta a Lei n.º.494, de 07 de dezembro de 1977, que dispõe sobre o
estágio de estudantes de estabelecimentos de ensino superior, entre outros, e que no seu Artigo
1. º ressalta:
§ 2. º - O estágio somente poderá verificar-se em unidades que tenham condições de
proporcionar experiência prática na linha de formação do estagiário, devendo o aluno estar em
condições de realizar o estágio segundo disposto na regulamentação da presente Lei (Redação
dada pela Lei n.º.859, de 23/03/1994.).
§ 3. º - Os estágios devem propiciar a complementação do ensino e da aprendizagem e
serem planejados em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares
(Incluídos pela Lei n.º.859, de 23/03/1994).
Artigo 4. º “(...) O estágio não cria vínculo empregatício de qualquer natureza (...)”.
Considerando o disposto acerca das atividades de estágio, no § 3º “serem planejados em
conformidade com os currículos, programas e calendários escolares”, se faz inviável, devido às
condições excepcionais do curso, que é formação para docentes em serviço, realizado no
período intervalar, das férias escolares, impossibilitando o planejamento e execução das
atividades inicialmente previstas. Em virtude do exposto a disciplina foi ressignificada tendo em
vista o momento de sua oferta.

2. OBJETIVOS
A prática educativa que se propõe como reflexiva e crítica não pode ocorrer por acaso.
É preciso definir objetivos que norteiem o fazer pedagógico envolvendo professor e alunos. Os
objetivos constituem-se em diretrizes gerais. Para este curso propomos:

OBJETIVO GERAL

¾ Discutir e analisar o cotidiano de práticas docentes nas séries iniciais do ensino


fundamental.

1005
OBJETIVOS ESPECÍFICOS

¾ Discutir as implicações político-sociais sobre os elementos teórico-metodológicos que


subsidiam a prática docente;
¾ Realizar sessões de troca de experiências sobre o exercício docente que contribuam para a
melhoria da realidade vivenciada;
¾ Repensar a possibilidade de transformação de práticas docentes a partir da articulação
ensino-pesquisa no cotidiano das atividades do exercício docente.

3. CONTEÚDO

A proposição de um tema constitui fator relevante para o desdobramento dos conteúdos que
serão trabalhados durante o curso.
¾ cotidiano escolar e as práticas docentes na memória dos docentes
¾ Rememoração dos elementos teórico-metodológicos que subsidiam o fazer pedagógico de
professores das séries iniciais do ensino fundamental
¾ Saberes docentes e docência enquanto prática libertadora

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Serão adotados os procedimentos de aula expositiva, relato oral e escrito dos docentes
em formação, leitura e discussão de textos em grupos

5. PLANEJAMENTO

5.1 Apresentação e discussão programática da disciplina;


5.2 Composição de grupos visando a leitura analítica dos textos propostos, a troca de
experiências entre os discentes, visando a crítica do cotidiano escolar e de suas práticas
docentes;
5.3 Socialização das experiências sobre o cotidiano escolar e as práticas docentes;

6. RECURSOS DIDÁTICOS

¾ Quadro e giz, textos e narrativas orais e escritas dos alunos.

1006
7. AVALIAÇÃO

A avaliação permeará todos os momentos propostos para o seu desenvolvimento. Serão


considerados os seguintes itens: a) freqüência; b) desempenho nas atividades propostas c) nível
de envolvimento e participação dos grupos na leitura e análise dos textos indicados e na
produção textual solicitada d) qualidade do trabalho final individual, de síntese sobre a prática
vivenciada; e) avaliação da disciplina e auto e hetero-avaliação (grifos meus).
Esta reconstrução proposta e aqui brevemente descrita pretende contribuir para uma
formação de professores que dependa menos de um currículo formal e que possua como
conteúdo concreto os espaços para a sua autoprodução enquanto sujeitos, buscando superar a
deformação profissional e a semiformação denunciadas por Adorno nos Tabus.
Em que pese todas as fragilidades na formação dos educadores, a vida danificada e,
conseqüentemente, a educação molestada, Adorno (1995, p.116) revela ter esperanças na
transformação, “quando a democracia tomar a sério sua chance”, deixando clara alguma
confiança no papel da escola neste processo.
Mas não se deve esquecer que a chave da transformação decisiva reside na sociedade e
em sua relação com a escola. Contudo, neste plano, a escola não é apenas objeto.[...] Enquanto a
sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de
resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o
contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito
importante (Adorno, 1995, p. 117).
Partindo das análises aqui parcialmente expostas, em que Adorno articula de forma
interdisciplinar marxismo e psicanálise, característica essencial dos autores da Teoria Crítica da
Sociedade originários da Escola de Frankfurt, e por considerar indispensável a superação da
pseudoformação dos professores no contexto de uma educação danificada, proponho durante as
disciplinas que tratam do estágio e prática docente um exercício que pretende viabilizar o
esclarecimento como contraposição ao aprisionamento melancólico da profissão que parece,
pela semi-formação, impossibilitada de educar e obrigada tão somente a treinar, para manter
funcionando uma realidade que se impõe, ideologicamente, massacrando o ser pensante. Tal
educação fragmentada é, de acordo com Adorno e Horkheimer, parte da indústria cultural.
No contexto atual em que a realidade imposta pelo mercado apresa o sujeito, é
imperativo um compromisso com a ruptura, com a contestação e com a resistência, pela via da
incansável busca do esclarecimento, precisamente no processo de formação do educador. A
reflexão articulada a partir dos textos e das contradições cotidianas da prática docente como
uma forma de reelaboração do passado, compõe o eixo dos debates que objetivam o auto-

1007
esclarecimento dos condicionantes concretos da profissão de ensinar, possibilitando o
rompimento progressivo com a pseudoformação que conduz historicamente a uma ação docente
danificada e conivente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T.W. Educação e Emancipação, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

___. O ensaio como forma. In: COHN, G. (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1994
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ALVES, Nilda.(org.).Formação de Professores: pensar e fazer. São Paulo: Cortez, 1999.

BRAGA, Rosalina Batista. Formação inicial de professores uma trajetória com permanências
eivada por dissensos e impasses Disponível em:
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COHN, G. (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1994. (Grandes Cientistas Sociais, 54)

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Abril Cultural, 1991, p. 31-68.

HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos,


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985.

___. e ADORNO, T. W. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix; EDUSP, 1973.

___ . e ___. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. trad. Guido Antônio de


Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 1985.
MOURA, Ana Regina Lanner de.Memorial:Fazendo-me professora. Disponível em:
http://www.scielo.br. Acesso em setembro 05.

PUCCI, B. (org.). Teoria Crítica e Educação: a questão da formação cultural na Escola


de Frankfurt. Petrópolis: Vozes; São Carlos: Edufiscar, 1994. p. 11-58. (Ciências
Sociais da Educação)

RAMOS-DE-OLIVEIRA, N. Reflexões sobre a educação danificada. In: ZUIN, A. A.


S., RAMOS-DE-OLIVEIRA, N. & PUCCI, B. (orgs.) A educação danificada:
contribuições à teoria crítica da educação. Petrópolis, RJ: Vozes; São Carlos:
Universidade Federal de São Carlos, 1997, p. 13-44.

REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filosofia. (vol. I), São Paulo: Paulinas, 1991.

1008
Obra de arte e realidade social: Walter Benjamin e Indústria Cultural

Juliana Souza
Universidade Estadual de Maringá

Walter Benjamin e a arte reprodutível

Para o mundo contemporâneo o advento do cinema, assim como, a fotografia, trouxe


grandes mudanças. Desde os fins do século XIX as técnicas de reprodução atingiram um nível
de perfeição, que é possível confundir até que ponto vai a arte autentica e a arte passível de
reprodução. Isso se dá porque as técnicas de reprodução se impuseram como formas originais de
arte.
Segundo Walter Benjamin, a fotografia pode ser entendida como a primeira grande
revolução no que diz respeito ao papel da criação artística, pois nessa reprodução da imagem “a
mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam ao olho”1.
No ensaio, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin apresenta tal
mudança histórica desde a xilogravura. Afirma, assim, que “a reprodução técnica da obra de arte
representa um processo novo, que vem se desenvolvendo na história intermitentemente, através
de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente”2. Por trás dessa
reprodutibilidade, dessa homogeneização da arte, o que está em vigência são os interesses do
capital. E quanto mais interesse no lucro gerado do comércio das artes, mais se diluía a cultura.
Para ilustrar tal situação, basta ressaltar que alguns autores da época de Benjamin, já produziam
suas obras visando essa multiplicação, com isso muda-se os interesses inerentes a criação
artística.
Contudo é a aura3 da obra de arte que sofre mais ataques com a sua reprodutibilidade,
é um abalo da tradição. Pois na reprodução de uma obra de arte está ausente o aqui e agora, o
momento único. Segundo Benjamin, é nessa existência única que se desdobra a “história da
obra”4. O aqui e agora do original constitui o conteúdo de sua autenticidade, pois “a esfera da
autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à
técnica”5.

1
Walter Benjamin, Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p.167.
2
Idem, p. 166.
3
Benjamin define aura como “uma figura singular, composta de elementos especiais e temporais: a aparição única de
uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”.
4
Por história da obra podemos entender, segundo Benjamin, que “essa história compreende não apenas as
transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade
em que ela ingressou”. Benjamin, obra de arte, p. 167.
5
Idem, p.167.

1
1009
Quando submetemos uma determinada obra à reprodução serial abalamos a tradição
da arte. Antes uma obra só podia ser encontrada num certo local, ao ser reproduzida em
qualquer situação, ou seja, há uma atualização do objeto reproduzido. Essa constatação da
reprodutibilidade vai ao encontro do que chamamos de cultura de massas, é uma arte ao alcance
de todos, mas que traz diversos problemas de autenticidade, e o principal é a ausência de valor
no patrimônio cultural, ou seja, a perda do valor de culto da obra de arte.
“Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das
massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos
através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de
possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua copia,
na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução,
como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades
cinematográficas, e a imagem”6.

A obra de arte pode ser caracterizada de duas formas: o valor da obra como objeto de
culto, e o valor da obra como realidade capaz de ser exposta. A obra destinada ao culto é aquela
em que se caracteriza pelas imagens expostas e não ao fato de serem vistas necessariamente;
geralmente só mais tarde que seria reconhecida como obra de arte. Já a obra com valor
expositivo é o oposto, ela é destinada essencialmente a sua exposição perante o público, e a sua
função artística é meramente acessória, Benjamin afirma que a fotografia e o cinema são os
principais meios de difusão desse tipo de arte.
Mas como sabemos o filme foi o que mais modificou as interpretações artísticas, pois
o filme empacotado e industrializado é entregue aos espectadores, os quais não possuem a
influência alguma sobre o que é assistido, como no teatro. O método de gravação do cinema
destrói brutalmente a aura, pois os atores de cinema encenam diante de um aparelho eletrônico,
projetado para gravar seus atos, levando em conta que são atos fragmentados. Não há uma
unidade representativa do ator, justamente pela utilização da técnica da montagem. Desta forma
o ator pode gravar primeiro uma cena que estará no final do filme, e só depois que ele gravará a
cena do início do filme, ou seja, a continuidade e a aura se perdem. De acordo com estes fatores
a significação social da obra se perde juntamente com o espírito crítico.
No âmbito do ser humano como espectador, o cinema trouxe novas possibilidades de
conhecimento, tanto objetivo quanto subjetivo. Por conhecimento objetivo entendemos o que
tange o cotidiano do indivíduo, aos seus modos e suas atitudes perante uma sala de cinema. Já
por conhecimento subjetivo, tomamos um sentido mais amplo, por considerar a experiência e o

6
Idem, p.170.

2
1010
prisma sensível e perceptivo do espectador. Ou seja, o cinema consagrou-se como um novo
organizador da percepção. Benjamin postula que: o cinema nos abre a experiência do
“inconsciente visual”, o homem representa para si o mundo. Torna-se visível aquilo que não
víamos. A câmera passa a ter um certo poder messiânico, de descobrimento e revelação.
A estrutura do filme deve basear-se nas especificações de imagem e som organizadas
de um certo modo, tendo em vista que esse “modo” não é acidental. O cinema é um dado novo
da percepção, uma técnica nova: novo olhar, nova linguagem. O cinema pode ser entendido
numa visão, na qual, a sua produção e consumo podem ser dados a partir de representações, de
alegorias. O efeito de choque, a perda da aura e a atrofia da experiência podem ser facilmente
entendidos a partir deste ponto, onde a ordem do olhar se transforma em algo totalmente novo.
Na qual são acentuadas as diferenças entre filme e realidade, responsáveis pela dimensão
estética do cinema. Outro elemento fundamental do cinema é a profundidade e o movimento,
que chega ao espectador, não como fatos concretos, mas como uma mistura de fatos e símbolos,
que estão presentes, mas não estão nas coisas, nos objetos.
A montagem, que é um elemento visual novo, pode ser entendida como a impressão da
realidade; é um esquema lógico, é o princípio do cinema clássico. São regras de coerência
espacial, baseadas no princípio de continuidade, e suas convenções narrativas, ou seja, a
organização do olhar; é a síntese de fragmentos para formar um todo orgânico. Segundo
Benjamin em O autor como produtor, o procedimento da montagem está relacionado ao
“material montado que interrompe o contexto no qual é montado”. Prossegue argumentando que
essa “interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim exercer uma função
organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espectador a tomar uma
posição quanto à ação”7.
No caso do efeito de choque provocado pelo cinema, este pode ser encarado como
uma exigência do filme, pois a rápida sucessão das imagens na tela influenciam e dirige a mente
do espectador, e pode ser de caráter traumático. Antes as imagens apresentadas para um
determinado público, em geral, eram imagens reproduzidas em telas, quadros, esculturas. A
partir do cinema, rapidamente, o público foi englobado por essa nova prática de arte, onde as
imagens não eram mais estáticas, nem passíveis de uma interpretação livre e não manipulada.
Agora as imagens estão em constante movimento, numa mudança brusca entre as imagens, e o
público, indiretamente, engloba as ferramentas usadas para apreender a sua atenção. É a
disposição formal das imagens sucessivas que controla a atenção.
Em suma, a experiência de choque cinematográfica opera duplamente com a realidade:
a experiência vivida e a experiência abstraída pelo espectador. É uma força terapêutica que

7
Idem, p.133

3
1011
explora a possibilidade concreta em influir sobre a formação e destruição das coisas, dos
significados e da constituição do sujeito. O cinema tem o poder de interferir na realidade da
imaginação de tal espectador, não num sentido prático, mas no conflito dialético que a
observação, a contemplação e a sensação se encontram. Entretanto para Benjamin, o cinema não
se apropria da satisfação dos sentidos, entretendo-os, mas expandindo-os, pela força de sua
provocação e pelo choque em movimentar a sensibilidade.
Ao causar tal provocação pelo efeito de choque na sensibilidade, Benjamin disserta
acerca da transição do cinema mudo para o cinema falado. Haja visto, para o autor tal transição
era problemática, possuía uma conotação negativa, e continha um caráter político forte. Pois
através desta inovação percebe-se a questão da interferência cultural norte-americana na Europa.
Numa passagem Benjamin ilustra com firmeza o que essa transição poderia trazer problemas, é
fácil notar que o cinema mudo era mais livre que o cinema falado:
“É certo que o cinema falado representou, inicialmente, um retrocesso; seu
público restringiu-se ao delimitado pelas fronteiras lingüísticas, e esse fenômeno
foi concomitante com a ênfase dada pelo fascismo aos interesses nacionais.”8

Entre essa relação do cinema falado e o fascismo Benjamin adverte que,

“As mesmas turbulências que de modo geral levaram à tentativa de estabilizar


as relações de propriedade vigentes pela violência aberta, isto é, segundo
formas fascistas, levaram o capital investido na indústria cinematográfica,
ameaçado, a preparar o caminho para o cinema falado.”9

O período de pré-guerra, ou seja, o período de tensão fascista, necessitava de algum


artifício para acalmar as massas, com o cinema falado as massas voltaram a freqüentar as salas
de cinema. Contudo, ele estimulou os interesses nacionais, que neste período não eram nada
promissores ao bem estar do ser humano, pois esses interesses propagavam o nazismo. Essa era
uma época de fortes mudanças, tanto nas artes quanto na política mundial, pois os regimes
totalitários estavam no seu auge. Benjamin tinha presente uma realidade e uma esperança.
Negativamente a realidade era o fascismo e com ele a guerra. Positivamente a esperança era
representada pela revolução socialista.
O comunismo não respondeu à altura das exigências que os movimentos fascistas
exigiam de seus oponentes. O próprio Benjamim não deixou de ser uma vítima desta

8
Idem, p.172.
9
Ibidem.

4
1012
incapacidade. De uma forma ou de outra, os partidários da razão10 mostravam-se inaptos a
perceber, na sua totalidade, a força e o alcance dos movimentos massivos engendrados pela
direita em toda a Europa. Como observara o autor, as metamorfoses no modo de exposição
geradas pelas técnicas da reprodução tinham afetado também a política. Entrara em campo um
novo processo de seleção – agora diante do aparelho técnico – do qual emergiam. Pois este
seria, de fato, o século dos astros e dos ditadores: e ambos se dirigiram às massas através do
cinema11.

É interessante ressaltar como o fascismo se apossou das obras de arte, principalmente


as obras clássicas, bem como utilizou recursos de estetização em paradas, marchas e cartazes. A
sua política e a guerra foram transformadas em espetáculos de arte, é justamente a isso que
Benjamin chamará de estetização da política e da guerra. Essa estetização dava-se pela grande
propaganda de tais regimes e pelos espetáculos destinados às massas, era como uma política do
“pão e circo”, direcionada para afetar as emoções e sentimentos dessa massa. O lugar da
reprodutibilidade estava reservado a serviço da propaganda de mobilização totalitária das
classes sociais. Em uma visão mais pessimista Benjamin adverte que:

“não se deve, evidentemente, esquecer que a utilização da política desse controle


terá que esperar até que o cinema se liberte da sua exploração pelo capitalismo.
Pois o capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às
oportunidades revolucionarias imanentes a esse controle. Esse capital estimula o
culto ao estrelato, que não visa conservar apenas a magia da personalidade, há
muito reduzida ao clarão putrefato que emana do seu caráter de mercadoria, mas
também o seu complemento, o culto ao público, e estimula, além disso, a
consciência corrupta das massas, que o fascismo tenta pôr no lugar de sua
consciência de classe”12.

Inversamente a essa situação político-artística Benjamin defende a emancipação das


massas, visando uma revolução socialista. Logo a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de
arte serviriam favoravelmente no processo de democratização da cultura, a arte não seria mais
restrita a uma elite, seria para uma totalidade. Mas essa esperança benjaminiana frustrou-se
quando a massificação da propaganda da arte fora usada e incorporada pelo stalinismo, e depois

10
Podemos exemplificar esses partidários da razão, como sendo os teatrólogos e cineastas engajados, como: Brecht e
Eisenstein.
11
Podemos ilustrar as afirmativas desse parágrafo com o que o Ministro da Propaganda Goebbels concordaria
plenamente ao proferir seu célebre discurso, no Congresso do Partido em Nuremberg, em 1934, imortalizado nas
imagens de O Triunfo da Vontade (1936), pela cineasta Leni Riefenstahl.
12
Walter Benjamin, Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 180.

5
1013
desfigurada totalmente pelos países capitalistas, principalmente na cultura norte-americana. A
partir de então surgia literalmente a cultura de massas, e se instaurava a Indústria Cultural.

Indústria Cultural, cinema e sociedade

O século XX é o século do cinema, é onde a história deste século melhor se revela.


Esta não é uma constatação banal, pois é a própria história do século XX feita pelo cinema. O
cinema falado em 1945 subordinava-se à propaganda norte-americana, é importante ressaltar o
que acontecia no mundo neste ano: é o ano da bomba atômica. Com o fim da Segunda Guerra
Mundial o cinema hollywoodiano entra definitivamente no circuito europeu, bem como no
mundo todo, a conseqüência seria o desaparecimento do cinema nacional em todos os países da
Europa. O capitalismo vinculado à imagem, principalmente a cinematográfica, é norte-
americano13.
Juntamente com Horkheimer, Adorno elaborou o conceito de indústria cultural,
identificando a exploração comercial e a vulgarização da cultura, como também a ideologia da
dominação da natureza pela técnica, em que essa tem como conseqüência a dominação do
próprio homem. Na perspectiva da indústria cultural, o cinema se acomoda na subjetividade,
pela maneira que detém o modo de produção e de circulação dos formatos culturais. O resultado
é a criação de uma ilusão de satisfação, tal que satisfaz os sentidos e emoções.

“Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o


momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria indústria à
qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas a
padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a
lógica da obra e a do sistema social”14.

A partir de uma argumentação negativa, pode-se dizer que a indústria cultural não é
sinônimo de meios de comunicação, nem se refere às empresas produtoras e nem às técnicas de
difusão dos bens culturais. Em suma, significa a transformação da mercadoria em cultura e da
cultura em mercadoria, ocorrida em um movimento histórico-universal, que gerou o
desenvolvimento do capital monopolista, dos princípios de administração e das novas
tecnologias de reprodução: a fotografia e o cinema. Em linhas gerais, a indústria cultural

13
“Não é à toa que o sistema da indústria cultural provém dos países industriais liberais, e é neles que triunfam todos
os seus meios característicos, sobretudo o cinema, o rádio, o jazz e as revistas. É verdade que seu projeto teve origem
nas leis universais do capital”. Adorno e Horkheimer. Dialética do Esclarecimento, p. 124.
14
Idem, p. 114.

6
1014
representa a expansão das relações mercantis a todas as instâncias da vida humana, na qual as
indústrias produzem em massa os bens culturais15.

A ideologia presente na indústria cultural significa sempre dominação, porém, isso não
significa a inexistência de resistências a essa dominação. Uma coisa é dizermos que os
indivíduos estão em conformidade com as imposições da indústria cultural, outra coisa é
dizermos que eles aceitam tal dominação. A indústria cultural consegue dominar todos os meios
de comunicação e distribuição. Com isso as obras de arte, tanto popular quanto das chamadas
elites, perderam por completo o seu caráter de individualidade e autenticidade. Benjamin
alertara para isso, mas Adorno e Horkheimer comprovaram de maneira mais concreta, por
estarem no centro da Indústria Cultural.

A indústria cultural transforma as atividades de lazer em um prolongamento do


trabalho. Os homens recorrem a essas atividades como fuga. Porém, tais atividades os colocam
novamente em condições de se submeterem ao processo de trabalho desqualificado. Promete-se
ao trabalhador, através de suas atividades de lazer, uma fuga do cotidiano, e lhe oferece, de
maneira ilusória, esse mesmo cotidiano como paraíso, em outras palavras, a indústria cultural
repõe tal energia perdida para voltar ao trabalho. Nesse lazer é sempre oferecido ao trabalhador
o mesmo, porque o novo é sempre um risco. A diversão é procurada por quem quer escapar do
processo mecanizado das enfadonhas situações de trabalho, que são dominadas por seqüências
de operações padronizadas. Porém, essas mesmas seqüências padronizadas estão também nas
atividades de lazer. Nos mais variados filmes de ação, somos tranqüilizados com a promessa de
que o vilão terá um castigo merecido, e a mocinha sempre terminará o filme feliz com o
mocinho. É uma diversão, mas uma diversão que aliena o indivíduo, para que o indivíduo
continue aceitando a exploração do sistema capitalista.

Contudo, uma das funções do cinema seria a de “regulador moral das massas”,
domando seus instintos revolucionários e emancipatórios, incutindo em suas cabeças um padrão
de comportamento exibido em seus filmes, no sentido de manter e perpetuar o sistema. O filme
exibido serviria como um molde para as atitudes tomadas perante as mais diversas situações. É a
vida sem reflexão do homem moderno. A indústria cultural não cria nada de novo, somente da
uma nova roupagem a velhas idéias, ou seja, reproduz o que há de conservador na sociedade,
mostrando como se fosse moderno. Ela sonega a informação e aliena os indivíduos, na medida
em que padroniza a sociedade.

15
O conceito de indústria cultural significa uma forma de mercantilização da cultura de forma vertical, autoritária,
que procura adaptar as mercadorias culturais às massas e as massas a essas mercadorias. Cabe lembrar também que a
categoria “massas” significa a homogeneização das classes sociais; o processo de massificação atinge todas as
classes.

7
1015
Tomando mais atentamente esta questão da ideologia, com a visão de Horkheimer, na
obra Eclipse da Razão, em que não faz parte da lógica da razão instrumental a socialização do
acesso ao conhecimento e à realidade. Esse momento coincide com um considerável
desenvolvimento técnico e com a ciência voltada para a aplicação técnica, ambos frutos da
razão instrumental, cuja lógica é a dominação, controle e poder sobre a natureza e sobre a
sociedade, transformando a própria ciência em senso comum cientificista. “A racionalidade
técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma”16. E esse processo não está restrito somente a classe operária, nota-se tal
processo em toda a esfera da sociedade. O mundo foi conquistado racionalmente, porém a
racionalidade científica e técnica conseguiram o efeito de converter o homem em um escravo de
sua própria técnica. Só através da valorização da razão crítica o homem poderá se emancipar das
ideologias e das dominações político-econômicas.

Conclusão

As obras de arte transformaram-se em mercadorias como tudo o que existe no


capitalismo. Sem sua aura, a obra de arte não se democratizou, massificou-se, transformou-se
em mercadoria anunciada nas formas propaganda e publicidade. Ou seja, a esfera pública toma
dimensões para propagar suas idéias e conceitos, mas no sentido de propagar e não de publicar.
Com a indústria cultural, a cultura massificou-se, vulgarizou-se. Instaurava a nova Era da
humanidade; com o fim da separação entre obra de arte e vida, perpetuava a vida tecnificada. Os
autores identificaram expressões de uma cultura deformada pelo poderio econômico, ou seja, de
caráter político. A Dialética do Esclarecimento, pode ser vista como uma tentativa de integrar a
crítica cultural conservadora em uma teoria social crítica, na qual toda a produção
cinematográfica está condenada, tudo, negativamente, nem as produções que se dizem “cult”, ou
artísticas, tem esse caráter emancipatório para Adorno e Horkheimer17.

Concluindo, Walter Benjamin pensou o cinema com um equilíbrio inusitado: entre a


paixão de um simples mortal pela magia das imagens em movimento e sua militante e utópica
crença no papel emancipatório das técnicas de reprodução. As esperanças de Benjamin foram
frustradas pelo fascismo.A técnica, inclusive a do cinema foi usada como um fetiche da guerra.
Numa época em que a sociedade está cada vez mais deslumbrada com os avanços da tecnologia
e que a política caminha inexoravelmente para o triunfo da espetacularização. Em contrapartida,

16
Adorno e Horkheimer. Dialética do Esclarecimento, p. 114.
17
“As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em
revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação,

8
1016
temos Adorno e Horkheimer, numa argumentação mais pessimista, sem a ilusão de um cinema
para o bem das massas. Benjamin vislumbra na massificação da cultura um potencial
emancipatório. No início de seu ensaio “A obra de arte”, refere-se à análise de Marx, acerca da
subversão do sistema capitalista pela classe proletária. Propondo-se estudar as esferas da
superestrutura, sobretudo as esferas culturais, Benjamin também faz o seu prognóstico. Apesar
das esferas superestruturais evoluírem bem mais lentamente, já na década de 1930, percebia em
seu desenvolvimento as possibilidades de rupturas com as formas culturais tradicionais
anteriores. Valendo-se do método marxista, observa que as condições que sinalizam uma
ruptura com as formas culturais anteriores estão presentes nas condições atuais de produção.

Benjamin rompe com as noções tradicionais de arte, que enaltecem valores como
poder criativo, genialidade, valor de eternidade e mistério, valores estes que, naquela época,
eram a base do projeto fascista. Para o autor o que vem a ser modificado é a noção da própria
obra de arte, e a relação dos indivíduos com a arte. Porém, há ressaltavas do autor, que com
pesar fala acerca da perda da aura, e o desencantamento da realidade Contudo que era novo para
Benjamin eram as técnicas de reprodução. Ele não se preocupava em saber se o cinema era ou
não arte. Seu real interesse era saber até que ponto o cinema interferia no caráter geral da arte.

Para Adorno e Horkheimer, não há uma preocupação em definir se o cinema é ou não


uma arte. Há, entretanto, uma preocupação no caráter emancipatório, em definir se a autonomia
e a reflexão são perdidas. Se há interferência no caráter ideológico dos indivíduos, nas massas.
A técnica não deve ser pensada de uma maneira absoluta, mas deve ser relativizada, já que
proporciona a produção em série e, conseqüentemente, rompe com a distinção entre o que é arte
e o que é o próprio sistema social. O cinema e o rádio não devem ser tomados como obras de
arte, pois são apenas negócios a serviço da reprodução capitalista e da coisificação e
padronização da cultura. A indústria cultural liquidou com a obra de arte, destruiu sua
capacidade crítica e transformadora. Ela passou a mediar a relação dos homens com a realidade.

Mas o que vem a ser realmente positivo em Benjamin é a relação que este faz a
respeito das novas técnicas de reprodução. Pois a base material continua sendo capitalista,
porém, a arte passa a se destinar às massas. Não foi só uma mudança quantitativa, no sentido de
ter aumentado o número de participantes em relação às artes, mas também mudou o modo de
participação dessas massas em relação às artes, ou seja, uma mudança qualitativa. Benjamin dá
suporte às teorias da Indústria Cultural, ou seja, não há rupturas e sim uma continuidade.

organização e computação estatística dos consumidores. Para todos há algo previsto; para que ninguém escape, as
distinções são acentuadas e difundidas”. Idem, p. 116.

9
1017
As teorias de Benjamin e da Indústria Cultural, apesar de serem escritas nos anos
inicias do surgimento do cinema, ainda hoje estão atuais. A indústria cinematográfica está cada
vez mais interessada em números, em quantias. A pretensão artística do cinema está esgotada. E
o capitalismo está ainda dominante.

Referências Bibliográficas

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11
1019
Indústria Cultural, Televisão e Semiformação

Kaithy C. Oliveira
Anita C. Azevedo Resende
Faculdade de Educação - Programa de Pós-Graduação em Educação- UFG

A modernidade, desde o seu momento embrionário, constitui-se em um ininterrupto


paradoxo, propiciando transformações e permanências; rupturas e continuidades, afirmações e
negações, em um constante movimento que situa todas as esferas humanas em “um ambiente
que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação das coisas em redor – mas
ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”
(BERMAN, 1986, p. 15). Um momento histórico que se caracteriza por um conjunto de
transformações que atinge todas as dimensões da vida humana, seja ela no plano social e/ou
individual, o que permite complexificar a compreensão de seus processos determinantes, uma
vez que estes se fazem pela via de um peculiar obscurecimento da realidade a qual engendra e é
engendrada.
Esse novo mundo que emerge com a modernidade se desenvolve na esteira da
universalização da forma mercantil, própria da vida urbana-industrial. Um aspecto fundante que,
aos poucos, pôde se instalar em quase toda a complexidade das relações humanas, em um
processo que ainda hoje se mantém e se torna cada vez mais abrangente. Tal processo foi
desencadeado em simultaneidade ao desenvolvimento de um sistema que gradativamente
lançou-se na amplitude dos espaços objetivos e subjetivos, em suas mais variadas esferas,
inscrevendo na história aquilo que Ianni (1988) chamou de “fábula moderna”, na qual a
atividade econômica, o fomento do consumo, a privatização de todas das esferas sociais e a
individualização tornam-se espaços fundamentais para o desenvolvimento dos domínios do
capitalismo.
Toda essa trama que se articula para modificar e/ou consolidar tanto o indivíduo como a
sociedade necessitou estabelecer, também, uma mudança radical nos seus processos de
socialização, que são os autênticos responsáveis pela viabilidade de um modo de produção e
reprodução da vida em qualquer particularidade histórica. Nesse sentido, as diferentes esferas
que instituem a sociabilidade, como a família, a igreja, os movimentos sociais, os grupos, a
escola, as organizações, a indústria cultural, entre outros não foram poupadas da mesma lógica
constituída e constituinte do sistema capitalista a qual fazem parte. A universalização da forma
mercantil e de seu procedimento racional tem propiciado e garantido a manutenção e
desenvolvimento do projeto burguês de sociedade.

1020
Está em causa um processo de adaptação dos indivíduos modernos à realidade a qual
pertencem, o que torna possível a estes a aderência, incontestável e acrítica, aos princípios
ideológicos fundantes dessa sociedade, que se edifica mediante a reposição da promessa do
alcance universal da “felicidade”, da “liberdade”, da “igualdade de oportunidades”, enfim, em
concepções que se vinculam, ao mesmo tempo, às noções de progresso econômico, científico e
tecnológico; à imediata satisfação de carências e necessidades, sejam elas materiais ou
imateriais; à ilimitada liberdade individual; ao fim da dor e das frustrações; entre outras.
Promessas permanentes que se mostram frágeis e inexeqüíveis por múltiplos motivos, dentre os
quais se destacam a sua reiterada negação e obstacularização exatamente por aquele que a
promete, o espírito capitalista; bem como os limites impostos pela própria civilização.1
A forma de organização do mundo capitalista necessita excluir do alcance de suas
promessas uma maioria de pessoas, visando a parcial realização destas para um grupo restrito
em todo o mundo. A promessa se mantém, exclusivamente enquanto forma, o que contribui
decisivamente na constituição de mecanismos de alienação e controle, individuais e sociais,
capazes de alcançar quase todas as dimensões da vida, perpetuando, assim, a continuidade da
perspectiva industrial e o seu desenvolvimento.
É no cumprimento desse programa que a indústria cultural pode ser inserida, uma vez
que se constitui em um amplo e organizado esquema que desenvolve sofisticadas formas de
adaptação dos indivíduos. Para tanto, penetra profundamente em quase todos os espaços,
objetivos e subjetivos, nos quais houve um dia lacunas a se preencher com preceitos do modo de
vida industrial, o “louvor do ritmo de aço” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 113). Sendo
assim, a idéia de que existiriam espaços nos quais o indivíduo poderia escapar ao desumanizante
não reconhecimento, ou seja, espaços que propiciassem uma relativa liberdade e autonomia,
ficam suplantados por um processo que ameaça quase todas as possibilidades de afrontamento e
distanciamento crítico da realidade imediata.
Tudo isso expressa um peculiar cerceamento das possibilidades de resistência. E nisso a
indústria cultural contribui decisivamente, se esforçando em impedir que haja a “formação de
indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”
(ADORNO, 1977, p. 295), o que implica a conservação do status quo dessa sociedade, que se
serve da heteronomia dos indivíduos em suas débeis consciências tuteladas (ADORNO, 2000, p.
169).

1
Os limites civilizatórios são discutidos por Freud, principalmente, em seu texto O mal-estar na
civilização, publicado em 1930(1929), no qual argumenta que a realidade revela-se como um
impedimento do desejo de felicidade, compreendida como o retorno ao estado de completude no qual há
uma total ausência de desejos. Essa busca de completude se levada à cabo implicaria um retorno ao
bárbaro fundamento animal, no qual “vence o mais forte”. Uma vez instituída a civilização, a humanidade
necessitou reprimir seus desejos para continuar existindo, seja em comunidade ou em sociedade.

2
1021
Todo esse aparato é mantido pela falsa compreensão de uma realidade que não se dá a
conhecer pela aparência, face aos seus complexos processos de obscurecimento que não só
procura apagar a história, forjando a “expropriação” do homem de sua objetividade; como
também impede a sua real compreensão, o que implica maior distanciamento da possibilidade
de superação do modo de vida capitalista. Nesse sentido, o mundo parece ser dotado de um
funcionamento próprio e mecânico, de origens naturais e naturalizantes, que esconde a real
dinâmica de uma realidade que só se constitui pela ação do homem, em sucessivas objetivações
e subjetivações. Nas palavras de Adorno (1986): “Lo que se presenta al sujeto como inalterable
se fetichiza, se vuelve impenetrable e incomprendido” (p. 196).2
Assim, grande parte das resistências foram exterminadas por um arsenal mascarado de
alívio e descontração, cuidadosamente elaborado em sua funcionalidade prática. Trata-se da
produção em massa de produtos e equipamentos encadeados pelas possibilidades advindas da
revolução científico-tecnológica, que trouxe ao contato dos vários estratos sociais um montante
inesgotável de inventos que facilitam a vida, que preenchem o moderno “tempo livre” e que
criam novas necessidades de consumo. A indústria cultural é fundamental na consolidação desse
processo, determinando em grande medida a formação de um novo homem que aceitou (e
continua aceitando), geralmente sem questionamentos, a “importância” dessas novas e
novíssimas facilidades, agora vistas como necessidades, que intricadamente trazem junto de si a
realização dos planos fundamentais do modo de vida mercantil.
A exemplo disso, os núcleos privados (habitação dos indivíduos), como a maioria dos
espaços sociais desse mundo, foram se constituindo a partir de uma aderência ampla a esse
projeto que permite, sem hesitação, uma invasão irrestrita da indústria cultural e de todo o
aparato que ela representa. Emblema significativo dessa invasão permitida é o atual prestígio
alcançado pela televisão, um meio de comunicação de massa que é difusor dinâmico e
complexo dessa lógica. Ela entrega em domicílio o pacote de informações e entretenimento que
conduz ao cumprimento do programa socializador que sua própria produção representa.
A TV arrasta multidões de telespectadores ao seu convívio ao dar-lhes a falsa
possibilidade de terem em suas próprias casas uma “janela para o mundo” que além de divulgar
fatos e ficções (compreendidos corriqueiramente como “verdades”), auxilia em um modelo
peculiar de educação (semiformação) que essencialmente adapta e conforma o indivíduo ao
mundo que os consideram apenas pelo potencial econômico, ou seja, como “clientes e
empregados” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 137). Assim, a televisão

2
Tradução Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu, “Educação e Sociedade”,
n. 56, ano XVII, dezembro de 1996: “O que se apresenta ao sujeito como inalterável se fetichiza, se torna
impenetrável e incompreendido”.

3
1022
(...) permite aproximar-se da meta, que é ter de novo a totalidade do mundo
sensível em uma imagem que alcança todos os órgãos, o sonho sem sonho; ao
mesmo tempo, permite introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo
que se considera adequado ao real. Preenche-se a lacuna que ainda restava
para a existência privada antes da indústria cultural, enquanto esta não
dominava a dimensão visível em todos os seus pontos. (ADORNO, 1977, p.
346)

As imagens e sons veiculados por essa mídia misturam fragmentos sem nexos da
realidade com uma ficção cheia de pretensões ditatoriais que divulga o estereótipo como modelo
a ser seguido, tudo isso administrado pelo partidário interesse da indústria cultural. Comentando
essa globalizante tendência, Ianni (1995) afirma que a mídia:

(...) com freqüência, apresenta o mundo como um vasto vídeo-clipe, um


caleidoscópio aparentemente sem nexo, transfigurando e refigurando os
acontecimentos como um espetáculo, no qual todo e qualquer dramatismo
fica subjetivado, no qual as dimensões épicas dos acontecimentos dissolvem-
se na pirotécnica do audiovisual, tanto simulacro e virtual como
desterritorializado e ahistórico. (p. 96)

A televisão utiliza-se fortemente dessa perspectiva e contribui nesse processo ao


despertar nos telespectadores a clara sensação de um acesso cada vez mais farto de fatos
cotidianos do mundo inteiro, que em verdade são estilhaços desconexos e ahistóricos que pouco
têm a ver com a real dinâmica desse mundo. Todavia, essa avalanche de dados permite ao
indivíduo o alcance do almejado status do “bem informado” que, grosso modo, se realiza à
partir da limitação racional do semiformado. 3
Entendendo o caráter recíproco da constituição da televisão, em relação à sociedade e
aos indivíduos, é possível afirmar que sua gradativa inserção nos núcleos privados amplia o
alcance semiformativo promovido pela indústria cultural, operando quase exclusivamente, já na
sua produção, como procedimento que garante a continuidade e confirmação da lógica
instrumental que é, ao mesmo tempo, produto e produtora dessa realidade. Com base nesses
aspectos Adorno (1986) afirma:

Pero en la sociedad existente sin más y que persiste ciegamente, la


acomodación no va más Allá: la configuración de las relaciones choca con
los linderos del poder; todavía en la voluntad de disponer aquéllas de una
manera digna de los seres humanos sobrevive el poder en cuanto principio
que impide que la conciliación, y de este modo se representa el ajuste, que,
no menos que el espíritu, se convierte en un fetiche – en la preminencia del

3
O termo alemão Halbbildung é traduzido tanto por “semiformação” como por “pseudoformação”, de
acordo com a perspectiva teórica dentre os vários tradutores para os idiomas português e espanhol.
Apesar dessa diferenciação ser compreendida como fundamental para os grandes estudiosos da teoria
adorniana, nessa oportunidade de discussão tal polêmica não terá centralidade, tendo em vista os
objetivos desse breve exposto.

4
1023
medio organizado universal sobre todo fin razonable y en el bruñido de la
seudorracionalidad sin contenido – y erige un edificio de cristal que se
desconoce hasta tormarse por la liberdad. Y esta conciencia falsa se
almagama por sí misma a la igualdade falsa y finchada del espíritu.4

Esse procedimento racional que se apresenta na contemporaneidade como hegemônico e


dominador refere-se à razão que se instrumentaliza e se serve da afirmatividade necessária desse
mundo para se consolidar como o elemento comum que perpassa todas as esferas da vida
moderna. Desse modo, a indústria cultural, sob o emblema da televisão, representa um dentre
vários espaços em que a razão instrumental ocupa a função contraditória de conformação das
mentes e no qual o objetivo fundamental torna-se a reiterada possibilidade de “manter e
salvaguardar as condições gerais sob as quais a indústria pode florescer” (HORKHEIMER,
2000, p. 48). Uma vez que “ser racional significar não ser refratário, o que por sua vez conduz
ao conformismo com a realidade tal como ela é.” (HORKHEIMER, 2000, p. 19).
Compreender as determinações que tornam possíveis essa realidade opaca, e em
contínua produção e reprodução capitalista, é o cerne dessa proposta de trabalho. Para alcançar
tal objetivo busca-se investigar a televisão em sua inserção, em massa, no núcleo privado da
vida social buscando compreender os nexos constitutivos que permitem esse meio de
comunicação se firmar como importante elemento de (con)formação do indivíduo moderno.

4
Tradução Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu, “Educação e Sociedade”,
n. 56, ano XVII, dezembro de 1996: “A adaptação não ultrapassa a sociedade, que se mantém cegamente
restrita. A conformação às relações se debate com as fronteiras do poder. Todavia, na vontade de se
organizar essas relações de uma maneira digna de seres humanos, sobrevive o poder como princípio que
se utiliza da conciliação. Desse modo, a adaptação se reinstala e o próprio espírito de se converte em
fetiche, em superioridade do meio organizado universal sobre todo fim racional e no brilho da falsa
racionalidade vazia. Ergue-se uma redoma de cristal que, por se desconhecer, julga-se liberdade. E essa
consciência falsa se amalgama por si mesma à igualmente falsa e soberba atividade do espírito”.

5
1024
Referências Bibliográficas

ADORNO, Teodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (Org). Comunicação e indústria
cultural: leituras de análise dos meios de comunicação... São Paulo: Nacional, 1977.

______. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2000.

______. Teoria de la seudocultura In: Sociológica. Versión española de Victor Sanchez de


Zavala, revisada por Jesús Aguirre. Madrid: Taurus, 1986.

______. Teoria da Semicultura. In: Educação & Sociedade. Nr. 56, Ano XVII, Dezembro.
Campinas, SP: Cedes, 1996. (pág. 388-411)

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.


Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Foriatti. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

HORKHEIMER, Max e ADORNO, Teodor W. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos


Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

IANNI, Octavio. A aldeia global. In: Teorias da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.

______. A Sociologia e o Mundo Moderno. São Paulo: EDUC, 1988.

6
1025
As representações dos alunos de Pedagogia ao próprio curso sob o olhar da teoria crítica

Kelly Cristiane da Silva


Universidade Federal de São Carlos

Com base em observações de campo, nas quais se constatou quão pequeno é o número
de alunos que realmente optaram pelo curso de pedagogia na certeza de uma boa escolha
profissional, e em dados do Inep 2104-8023/9563, os quais demonstraram que em São Paulo, no
ano de 2005, o curso de pedagogia constou entre os três mais procurados; surgiu a questão:
como seria possível uma procura tão relevante por um curso com ênfase na formação de
professores se apenas uma minoria dos ingressantes querem de fato exercer a profissão de
ensinar? Estes dados apontam para uma ambigüidade dentro do sistema educacional, assim esta
pesquisa se destina a entender a relação paradoxal entre demanda e valorização do curso de
pedagogia pela relevância da questão.
A pesquisa busca investigar quais as representações sobre o curso que os alunos de
pedagogia da Universidade Federal de São Carlos possuem, procurando entendê-las com base,
principalmente, nos estudos de Theodor W. Adorno e Paulo Freire; de modo específico observar
se a relação escolha profissional e descontentamento com o curso procede na turma de calouros
deste ano. Para tanto, foi utilizado como procedimento de pesquisa entrevistas e observações de
campo.
O curso de pedagogia da UFSCar, segundo informações do site oficial tem sua
“formação voltada à docência nas séries iniciais do Ensino Fundamental e à atuação do
pedagogo como especialista em administração, supervisão e orientação educacional”. Os
calouros são em número de 50 e destes serão entrevistados 8 homens e 8 mulheres, das quais
metade das entrevistas de cada sexo já foram realizadas. Na próxima etapa da pesquisa serão
colhidos dados da turma de 2004, pois é possível que ao final do curso, após terem passados por
disciplinas de fundamentos, de metodologias e de estágio, os alunos do curso de pedagogia
possuam novas representações acerca da profissão de ensinar.
Com base nas entrevistas, já colhidas, foi possível constatar que em sua maioria tanto as
mulheres quanto os homens são influenciados na escolha da carreira por familiares que já
exercem a função de pedagogo (a), mas só optaram pelo curso após terem tentado, sem sucesso,
ingressar em outros. Nenhum dos entrevistados optou pelo curso de pedagogia como sua única e
primeira escolha. Um dado muito interessante é que na maioria dos casos os alunos se inclinam
por profissões que envolvem as disciplinas nas quais tiveram um bom relacionamento com o
docente que a ministrava.

1026
Quando questionados sobre a predominância feminina no curso, a maioria acredita que
é devido a profissão ser associada aos cuidados e qualidades maternas, no entanto, grande parte
possui lembranças de professores muito rígidos e distantes, tal como nas expressões acerca das
recordações de infância sobre as brincadeiras de dar aulas. Os entrevistados imitavam os seus
professores em suas representações, como demonstram expressões freqüentes em suas falas:
“Imitava meus professores. Adorava berrar, bater na mesa e sair para tomar lanche deixando-
os sozinhos...” “Eu era brava, dizia sempre: silêncio que eu estou explicando!” Apenas um
entrevistado nunca havia brincado de escolinha, e um relatou “Eu era um professor legal.
Tentava ser o contrário dos professores de que não gostava”.
Os calouros não pensam em atuar como professores dos primeiros ciclos do ensino
fundamental, embora não descartem a possibilidade de passar por esta etapa, como na fala de
alguns homens: “Ah! Creio que dar aulas para os menorzinhos já não é muito a minha praia”,
“Se for necessário sim, mas eu quero partir para a área administrativa...”, ou na de uma
mulher: “ A princípio sim, mas depois quero ter minha própria escola.” No entanto, os homens
buscam, em sua maioria, seguir a carreira educacional na área político-administrativa e as
mulheres têm tendência à área psicopedagógica.

Muitos disseram ter perspectiva de seguir carreira acadêmica, pois esta é mais
valorizada pela sociedade, como ressaltou Adorno (2003, pág. 99) “(...) parece inabalado o
status do professor universitário (...) De um lado o professor universitário como profissão de
prestígio; de outro, o silencioso ódio em relação ao magistério de primeiro e segundo graus;
uma ambivalência como esta remete a algo mais profundo.” Esta inclinação pela carreira
acadêmica, bem como pelas habilitações propostas pelo curso, ocorre também pelo fato dos
professores universitários e estes outros profissionais receberem um salário muito melhor
remunerado do que os professores de séries iniciais, fato este que não é tão presente no contexto
alemão como salienta Adorno (2003, pág. 98) “Existem também motivações materiais: a
imagem do magistério como profissão de fome aparentemente é mais duradoura do que
corresponde à própria realidade na Alemanha”.

Embora acreditem que um educador é formado com base em estudo, paciência, força de
vontade e compromisso com a profissão de ensinar, qualidades que acreditam serem
estimuladas pelo curso, a maioria demonstrou, contraditoriamente, não estar inclinada a exercê-
la o que confirma as representações aversivas dos alunos à profissão de ensinar, supostas por
Adorno (In. RAMOS 1994, pág. 128) “(...) a sedimentação coletiva das representações (dos
eventuais candidatos ao magistério) que, como preconceitos sociais e psicológicos, persistem
teimosamente e acabam por se tornar forças atuantes na realidade, tornam-se forças reais”.

1027
Segundo Ciampa (1983, pág. 131), um teórico da psicologia social, “Interiorizamos
aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nos
predicarmos coisas que os outros nos atribuem. Até certa fase esta relação é transparente e
afetiva; depois de algum tempo, torna-se menos direta e visível; torna-se mais seletiva, mais
velada (e mais complicada).” O conflito instalado sobre a profissão de ensinar, nesta
perspectiva, está justamente na interferência dos preconceitos e representações negativas sobre
as expectativas de realização profissional. Ciampa 91983, pág. 138) ainda declara
“Evidentemente, a questão (da identidade) não se restringe à relação com a família. Refere-se
também, a nossa localização na sociedade...”.
Todos os entrevistados estão cientes dos preconceitos que cercam a profissão de
ensinar. Entre as meninas são freqüentes os comentários que remetem ao estado civil, pois
quase todas as alunas de pedagogia são solteiras, e são comuns os alunos e as alunas de outros
cursos referirem a elas como “caçadoras de engenheiros”. Uma entrevistada disse ter ouvido de
uma colega que cursa engenharia “A pedagogia surgiu para mulher de médico e engenheiro ter
profissão”.
A presença das atitudes preconceituosas é mais evidente quando existem homens
cursando pedagogia. O aluno torna-se alvo de chacotas sobre sua opção sexual, como neste
relato “os meus amigos zoaram, disseram que eu escolhi este curso ou porque têm bastante
mulher, ou porque eu era bicha, ou porque era muito fácil de entrar...”; mais estes também
percebem um “olhar” de desconfiança, por parte das colegas de turma, como afirma uma das
entrevistadas “Ah! Creio que todo mundo pensa na desconfiança sexual, pois todo mundo fala
que este curso só tem mulher e que os poucos homens que eu iria encontrar, possivelmente
seriam homossexuais...”.
Não foram todas as entrevistadas que disseram ter desconfiado, assim como nem todos
os alunos sentiram tal desconfiança, mas estas representações acerca da profissão de ensinar,
não se estendem às habilitações. Nas observações de campo foi comum ouvir de alunos de
outros cursos, principalmente de cursos que não são da área de humanas, que “ser professor das
séries iniciais é muito fácil, pois este trabalha com crianças e estas são fáceis de serem
enganadas”, pode se perceber então que o que está em questão é qual o conceito de criança que
apresenta a sociedade, questão esta muito complexa para ser respondida nesta pesquisa.
Quando perguntados sobre de que modo o professor (a) consegue obter o respeito da
turma foram freqüentes as respostas: respeitando os alunos; ensinando bom-senso; conversando
de forma amiga; dando ênfase à importância dos estudos; não se impor; estimular a participação
dos alunos; conhecendo os alunos. Mas, em seqüência, quando questionados sobre como
achavam que o professor ou a professora deve proceder em relação aos alunos que não prestam

1028
atenção e conversam em sala de aula, surgiram respostas como: “Após uma conversa se não
resolvesse, eu colocaria para fora”, “Eu diria saia, pois este aluno não ajuda em nada.”, a
maioria, no entanto, acredita que seria necessário chamar atenção e que depois chamaria o aluno
para um diálogo particular, sem que este causasse constrangimentos aos alunos.
Percebe-se que ainda existe a concepção de educação autoritária e que muitas vezes os
alunos possuem um discurso que contradiz com a prática, talvez por ter internalizado como
corretas as práticas aos quais foram submetidos na infância ou adolescência. Muitos dos
entrevistados se recordam com mágoas de professores aos quais sofreram ou presenciaram
outros colegas sofrerem atos considerados não adequados à conduta de quem quer ensinar, tais
como: rebaixar os alunos na frente dos colegas; justificar que estes não aprendiam porque os
pais não deram educação; pedir para os alunos fazerem cópias de 0 a 3000 diversas vezes no
mês, para que desta forma os alunos passassem grande parte da aula copiando; agindo de forma
a não aproximar os alunos e causar medo, para que assim os alunos silenciassem. Adorno (2003,
pág. 105) declarou “Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que
castiga (...) Mesmo após a proibição dos castigos corporais, continuo considerando este
contexto determinante no que se refere aos tabus acerca do magistério. Esta imagem representa
o professor como sendo aquele que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco (...)”.
Em relação às boas lembranças, geralmente os alunos atribuem aos professores que
estimulavam a aprendizagem, que eram amigos e que ensinavam sem impor um autoritarismo,
mas com estímulos; Muitas críticas foram tecidas ao ensino confessional, por alunos que
freqüentaram estas escolas, estes acreditam que o diálogo, em seus casos, muitas vezes foi
submetido apenas por intermédio da autoridade e não no companheirismo.
Historicamente os preceptores enfrentam preconceitos, tal como na Grécia antiga de
Homero, em que os pedagogos eram escravos criminosos, a exemplo de Fênis e Pátroclo,
personagens da Ilíada; na idade média, como adverte Adorno (2003, pág. 101) “(...) o professor
é herdeiro do escriba, do escrivão. Como já assinalei o menosprezo de que é alvo tem raízes
feudais (...)”, e nos dias atuais como pode ser observado nesta pesquisa. Adorno propõe em seus
estudos uma reflexão acerca dos preconceitos ao magistério de caráter político em que a
educação seja o caminho da emancipação. Tais observações acerca das representações dos
graduandos em pedagogia à profissão de ensinar necessitam, portanto, de atenção, pois entendê-
las significa como assevera Adorno (2003, pág. 114) “discutir estas representações ainda na
fase de formação dos professores”, para assim possibilitar um olhar menos reticente sobre a
profissão de ensinar.

1029
Bibliografia

ADORNO, T. W. Tabus a Respeito do professor, tradução de Wolfgang Leo Maar. In


Theodor W. Adorno: Educação e emancipação, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
2003 .

CIMPA, A C. Estória de Severino e a História de Severina, São Paulo: Editora


Brasiliense, 1983.

OLIVEIRA, N. R. A Escola este Mundo Estranho. In: PUCCI, B. (org). Teoria Crítica e
Educação: a questão da formação cultural na escola de Frankfurt, Rio de janeiro:
Editora Vozes; São Paulo: EDUFSCAR, 1994.

1030
Arte e Design: Uma Relação Sob a Perspectiva da Teoria Estética de Theodor Adorno

Lean Carlo Bilski


CCET – Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Resumo

A relação entre arte e design tem sido tratada, até o presente momento, a partir da importância
cada vez maior dada ao projeto e ao produto de design e a sua conexão com uma análise
estética que tem como base a beleza do produto, na intrínseca relação entre forma e função. A
pesquisa pretende analisar as concepções dos teóricos que trataram da relação entre as artes e
a máquina, principalmente os que estiveram ligados às primeiras escolas de design industrial
do século XX, como László Moholy-Nagy, e Tomás Maldonado, representantes,
respectivamente, da Bauhaus e da Escola Superior da Forma de Ulm. Essa relação entre arte e
design industrial recebeu importantes estudos teóricos, contudo poucos abordaram-na sob a
perspectiva que adotaremos. O estudo envolverá seu objeto a partir da filosofia da arte de
Theodor Adorno, especialmente sob o viés de uma análise da proximidade cada vez maior entre
a arte contemporânea e o design industrial, a distinção cada vez mais complexa entre os
produtos das duas áreas e a observação de obras que parecem casos-limite entre arte, design
industrial e cultura de massa. Assim, como foco principal, procuraremos estabelecer, em
termos conceituais, uma distinção entre arte e cultura de massa e a complexa relação entre as
duas esferas de produção cultural, em face da quase onipresença da cultura de massa na
contemporaneidade. Abordando tal distinção pretendemos responder à questão do sentido de
uma obra de arte autônoma e chegar o mais perto possível de uma clareza conceitual com
relação às obras que partilham traços de obras-de-arte em sentido estrito, como é concebido
por Adorno, com elementos da cultura narcisista da indústria cultural.

1. Introdução
Historicamente o design surgiu no seio da arte. Os movimentos que abriram espaço para
a aceitação da máquina como uma nova beleza, como o futurismo na Itália, com a sua rejeição
ao passado e a exaltação da beleza da máquina, o construtivismo na Rússia, onde a reprodução
industrial convinha aos objetivos de estabelecimento do comunismo, a racionalidade dos
tecnocratas como Adolf Loos, que procuravam a beleza da obra de arte dentro da fidelidade à
sua lei formal, bem como os movimentos artísticos da Art Nouveau e o Jugendstil, que hoje são
tidos como uma espécie de “proto-design”, deram as condições para que o design industrial se

1031
desvinculasse das suas premissas constituintes do século XIX, onde o que imperava era um tipo
de “maquiagem” para os materiais produzidos pela indústria.
Não podemos ignorar também a destruição da “aura” da obra de arte na proposição de
Walter Benjamin em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de
1935, onde a arte perde o caráter de singularidade perante o fenômeno da sua reprodutibilidade
técnica. “O que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse
processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando,
podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto
reproduzido”. (BENJAMIN, 1994, p.165) Com isso “a arte perde o seu privilégio de obra única
e, se a intenção inicial era a de justificar as novas formas de arte como a fotografia e o cinema,
pelo viés da gravura, ele inclui na questão tudo o que pode ser reproduzido tecnicamente”.
(BINI, 1996)
Mas foi Marcel Duchamp, com os seus “readymades, que provocou uma reviravolta nos
contornos entre arte e objetos de uso. “O primeiro foi Roda de Bicicleta (1913), uma roda de
bicicleta montada sobre um banco; o mais escandaloso, Fonte (1917), era um urinol masculino
assinado ‘R. Mutt’1. Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o
que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros
objetos”. (ARCHER, 2001, p.3)
A problemática da arte e a estética na era tecnológica tomava forma, e o design
procurava impor seu estatuto de arte. É na Bauhaus que a atividade é inserida dentro do binômio
utilidade-beleza. “A pesquisa aturada de formas pregnantes, que pudessem modelar os objetos
fabricados em série pela indústria moderna, sem que esse alvo utilitário barrasse o caminho à
invenção artística: eis o projeto pioneiro do grupo da Bauhaus, que deu dignidade estética à
estilização e ao design”. (BOSI, 2004, p.25) Decorrente do processo de ensino e da influência
dos mestres da Bauhaus e dos seus alunos, surgem “casos de analogias ‘estilísticas’ entre
algumas pinturas (Mondrian, Van Doesburgh, Malevich), algumas esculturas (Arp, Pevsner,
Gabo), e os objetos industrialmente produzidos (móveis de Rietveld, de Lê Corbusier, de Mies,
de Breuer)”. (DORFLES, 1990, p.42)
Os contributos históricos deixaram a linha entre arte e objetos industriais cada vez mais
tênue. O design começa a ser exposto nos museus de renome internacional e, paulatinamente,
vai se modificando o processo de formação do objeto industrial e o modo de interpretar tal
objeto. Uma série de análises trouxe a problemática da relação entre arte e design à tona. Ficou
clara a dificuldade em inserir o design industrial dentro de alguma categoria específica, o que
levou teóricos, designers e artistas a uma série de formulações sobre tal atividade. Muitos

1
Mutt: cão viralata ou pessoa simplória.

1032
consideram o design industrial uma arte, precisamente uma das “artes aplicadas”, alguns
defendem que o design é um sucedâneo artístico e outros vão ainda mais longe, considerando o
design como uma “nova” obra de arte, onde os objetos técnicos de uso seriam uma síntese das
artes, advindo de uma necessidade de redução, proposta nos anos de 1920, das excessivas
manifestações culturais.

2. Arte e Design
Para estabelecermos uma análise da relação entre arte e design sob um viés da teoria
estética de Adorno, devemos verificar a constituição da atividade de design sob uma nova
perspectiva, que leva em consideração a incidência dos processos de Racionalidade Instrumental
e Indústria Cultural no design industrial para, posteriormente, podermos observar como se dá a
relação entre a arte, tal como concebida por Theodor Adorno, e o design industrial.
Mesmo que resumidamente, devemos lembrar que Adorno e Horkheimer creditaram ao
mito, que se dava através do feitiço e outras ações cientificamente não comprováveis, a
antecipação da Aufklärung (Iluminismo, Esclarecimento); um protótipo da poderosa ciência
moderna, tida como arma humana para intervenção nos processos naturais. Porém, a dominação
da natureza começa a se concretizar a partir do século XVII. Nessa época, a ciência européia
adquiriu os meios teóricos para a intervenção em processo do mundo físico e, com a Revolução
Industrial, quase duzentos anos depois, o conhecimento se traduz explicitamente em tecnologia:
“em transformação do ambiente natural, mediatizada por teorias, com objetivos econômicos
bem definidos a alcançar”. (DUARTE, 2004, p.29) Deste modo, “tal conhecimento, oriundo do
medo ancestral do homem diante das ameaçadoras forças naturais, se corporificou no conceito
moderno de ‘técnica’, que não tem como objetivo a felicidade do gênero humano, mas apenas
uma precisão metodológica que potencialize o domínio sobre a natureza”. (DUARTE, 2004,
p.27)
Verlaine FREITAS (2003, p.15) nos lembra:

Nesse momento em que a razão, principalmente na interpretação positivista da ciência,


preocupa-se apenas com o domínio cognitivo da realidade, de tal modo a propiciar a
elaboração de tecnologias de controle dos processos naturais, tem-se aquilo que é
chamado de razão instrumental, pois o pensamento despreocupa-se da finalidade com
que é usado, interessando-se apenas pelos meios pelos quais é capaz de gerar
tecnologias e valores financeiros.

Porém, a razão instrumental não fica destinada apenas aos processos que dizem respeito
à ciência moderna. Ela acaba ocorrendo de forma substancial no sistema capitalista como um
todo, estendendo-se à esfera dos bens culturais, em âmbitos que pareciam imunes às investidas

1033
do sistema capitalista, a saber, mais precisamente, o âmbito artístico. Esse processo acaba por
gerar o que conhecemos por cultura de massa, que atinge seu ápice em meados do século XX,
quando a cultura contemporânea passa a basear-se na sua própria difusão universal.
O design industrial nasce no seio da disseminação tecnológica industrial, quando a
reprodutibilidade técnica tornou possível todas aquelas formas artísticas ou para-artísticas, uma
arte planificada e mecanizada que, distribuída cada vez mais amplamente, atinge uma escala
universal. As obras destinadas a este novo tipo de “função de massa” devem responder aos
requisitos de gosto que tal universalidade requer. O nível artístico deve tornar a fruição
suscetível a todos e a cada um. Abdica-se de qualquer qualidade de sofisticação e
excepcionalidade, pois se responde imediatamente, como dizem os defensores dessa indústria, à
necessidade do público, que clama pela sua estandardização. Esse aspecto já é uma parcela dos
objetivos e conseqüências da indústria cultural. Esta atende imediatamente o seu público, pois
se apropria dos anseios do mesmo para estabelecer seus objetivos de lucratividade e controle
social.
Nesse momento, devemos lembrar de uma distinção importante: mesmo Adorno e
Horkheimer admitiam a existência de uma espécie de “arte leve”, uma arte popular “que supria
a função de entretenimento que a cultura mercantilizada exerce hoje”, (DUARTE, 2004, p.40) e
que, em muitas ocasiões, é muito difícil distinguir suas características daquela que podemos
chamar arte erudita. “Mas, no âmbito da indústria cultural, o que ocorre é uma espécie de
absorção, cuidadosamente estudada e executada, da arte leve na séria ou, eventualmente, o
contrário, sempre no sentido de cumprir os objetivos de lucratividade e manutenção da ordem
vigente”. (DUARTE, 2004, p.40)
A estética adorniana, como nos lembra Verlaine Freitas (2003), coloca a arte dentro de
uma dimensão crítica bastante valiosa, principalmente a arte moderna, pela radicalidade com
que esta se estabelece. Dessa maneira, para Adorno “a arte é a antítese social da sociedade, e
não deve imediatamente deduzir-se desta”, (ADORNO, 2000, p.19) a arte deve sempre exercer
uma resistência perante a integração capitalista. Por isso a ressalva do filósofo com relação ao já
citado Jugendstil, que organiza-se dentro de uma beleza impotente e, dentro de sua
vulnerabilidade, é facilmente colocado como mercadoria. No pólo oposto da ornamentação,
encontra-se a racionalidade dos tecnocratas, como Adolf Loos, que procuravam a beleza da obra
dentro da fidelidade à sua lei formal. Desse modo, a obra tecnológica torna-se problemática por
tentar renunciar ao seu modelo, a obra funcional.
Sob esta ótica, a relação entre arte e design torna-se problemática. Como assinalamos
anteriormente, foi através de uma série de contribuições históricas que o design atingiu sua
dignidade estética. A partir daí teóricos e designers passaram a analisar as relações entre arte e

1034
design. Tomás Maldonado (1977, p. 37-38), partindo de um princípio onde todas as formas
criadas pelo homem têm a mesma dignidade e indo contra a hierarquização da arte, diz que:

na realidade, uma pintura realiza uma função distinta de uma colher, porém a colher
também é um fenômeno da cultura. [Para o autor, o objeto industrialmente produzido]
pode expressar uma realidade cultural, com todos os elementos ideológicos,
psicológicos e artísticos que esta supõe. [Sendo assim,] o design industrial aparece hoje
como a única possibilidade de resolver, em terreno efetivo, um dos problemas mais
dramáticos e agudos do nosso tempo, que é o divórcio entre a arte e a vida, entre os
artistas e os demais homens. [...] Em efeito, o “artístico” aparece hoje como o gérmen
mais profundamente dessocializador da cultura contemporânea.

Segundo Maldonado a arte seria estéril em relação à realidade e à sociedade. Mas, para
Adorno (2000, p.253) “a arte não é social apenas mediante o modo de sua produção, em que se
concentra a dialética das forças produtivas e das relações de produção, nem pela origem social
do seu conteúdo temático. Torna-se antes social através da posição antagonista que adota
perante a sociedade e só ocupa tal posição enquanto arte autônoma”. Quando Maldonado propõe
resolver através do design a separação entre arte e vida, ele acaba por atender aos ditames de
uma socialização falsificada, patrocinada pela produção de uma cultura mercantilizada.
Certamente o objeto de design expressa diretamente a realidade cultural e é justamente aí que
reside a verdadeira distinção entre uma “arte superior” e uma “arte inferior”. Podemos entender
que, para Adorno (2000, p.168), “a separação entre arte superior e arte inferior [...] tem a sua
razão determinante no fato de a cultura dever o seu fracasso à humanidade que a produziu” e,
contrariamente ao design, a arte, em sua função social, deve exercer um papel antagônico à
mercadoria.
Não é só Maldonado que destina ao design industrial tal função social. Seu companheiro
de Ulm, Otl Aicher (1922-1991), destinava ao design função semelhante. Para Aicher o design
deveria oferecer beleza. O autor exemplifica comentando sobre os talheres de Ferruccio Laviani,
de 1987. Belos e, de certa maneira, inúteis, por causa de sua forma. Mas, para AICHER (2005,
p.109), vale o esforço, porque “hoje podemos nos dar a satisfação de sentar sobre a arte e comer
com a arte. [...] Tanto Piet Mondrian quanto Wassily Kandinsky queriam fazer algo mais que
peças de museu. Queriam contribuir para superar o materialismo e levar os homens ao puro
espiritual. [Então, através do design como um ‘agenciador de arte’,] comemos espiritualmente e
nos sentamos espiritualmente agora”.
Vendo desta forma, a função do design seria criar valores nos objetos e através dos
objetos; “desenha-se” uma cultura através dos objetos de uso que servem de alavanca para a
indústria que os fomenta e, por conseguinte, o design acaba participando da reprodução
incontrolada dos meios de controle que a indústria cultural dispõe para manter o status quo. É

1035
por essa razão que devemos insistir na distinção entre a função do design industrial e da arte
autônoma na sociedade do capitalismo monopolista.
O designer austríaco Ettore Sottsass, quando no comando do estúdio Memphis,
concebia suas obras dentro de um estilo irônico e provocativo. Dando prioridade à imagem em
detrimento da funcionalidade, Sottsass estabelecia uma crítica irônica ao funcionalismo e à
produção em série. Seus objetos eram carregados de características que não lhe pertenciam e os
resultados beiravam a escultura contemporânea. Porém, mesmo com todas essas características
de excepcionalidade e complexidade de repertório, a obra de design tem o seu caráter artístico
minado por inserir-se completamente no reino das mercadorias. A obra de design não oferece
resistência ao processo de assimilação que a racionalidade instrumental e a indústria cultural
impõe à todas as criações do espírito humano, justamente porque mesmo o objeto mais
“artisticamente” projetado e concebido constitue-se para satisfazer um outro; todos têm, como
característica inerente, a adequabilidade ao que o consumidor é capaz de assimilar ou espera do
produto, seja esse último pertencente à massa ou às elites. Enquanto isso, a arte autônoma
configura-se como um ser para-si, como expõe ADORNO (2000, p. 265):

Se as obras de arte são efetivamente a mercadoria absoluta como aquele produto social
que rejeitou, para a sociedade, toda a aparência do Ser – aparência que habitualmente as
mercadorias mantêm com dificuldade -, a relação de produção determinante, a forma da
mercadoria, insere-se então tanto nas obras de arte como a força social produtiva e o
antagonismo entre as duas. A mercadoria absoluta seria desembaraçada da ideologia,
que é inerente à forma de mercadoria, que pretende ser um para-outro enquanto que,
ironicamente, é apenas um para-si, que existe para os que dele dispõem.

Na sociedade da troca total “só o inútil garante o estiolamento do valor


utilitário. As obras de arte são os substitutos das coisas que já não são pervertidas pela troca, do
que já não é governado pelo lucro e pelas falsas necessidades da humanidade degradada”.
(ADORNO, 2000, p.254) Por essa razão, ADORNO (2000, pp.244-245) retoma a discussão
sobre a finalidade da obra de Kant para falar das obras de arte na era técnica:

Só mediante uma reflexão sobre as relações das obras de arte com a finalidade é que se
pode, sem dúvida, abordar o problema da obra de arte na era técnica, questão tão
inevitável como suspeita por causa do seu zelo o do caráter de slogan socialmente
ingênuo para a época. [...] A formulação paradoxal de Kant exprime uma relação
antinômica sem que o autor da antinomia a tenha explicitado: pela sua tecnicização, que
as ata incondicionalmente às formas funcionais, as obras de arte entram em contradição
com a sua ausência de finalidade. Nas artes aplicadas, os produtos são, por exemplo,
adaptados a fins tais como a forma aerodinâmica visando a diminuição da resistência do
ar, sem que as cadeiras tivessem de guardar uma tal resistência. Mas a arte aplicada é
um Mené Teqél [fim fatídico] da arte. O seu momento incondicionalmente racional, que
se reduz à sua técnica, trabalha contra ela. Não é como se a racionalidade matasse

1036
sempre o inconsciente, a substância ou alguma outra coisa; só a técnica capacitou a arte
para receber o inconsciente. Mas a obra de arte plenamente elaborada em sua
racionalidade e pureza liquidava, em virtude justamente da sua autonomia absoluta, a
diferença em relação à existência empírica; e assemelhava-se, sem a imitar, ao seu
contrário, à mercadoria. Já não seria possível distingui-la das obras plenamente
racionais e instrumentais a não ser pelo fato de que ela não possui nenhum fim, e isso
desmente-a.

A finalidade acaba sempre por deteriorar a fruição estética do objeto de design. Mesmo
as obras que tendem a se distanciar desse processo, sofrem do fetichismo imputado à
praticamente todas as criações culturais contemporâneas. O modo habitual do homem
contemporâneo em relacionar-se com as produções artísticas é estabelecendo possibilidades de
consumo e fruição. “Ter ou desejar ter uma gravura, um disco ou um livro finamente ilustrado é
o seu modo de relacionar-se com o que todos chamam de arte. Tal comportamento, embora se
julgue mais requintado que o prazer útil de usar um bonito liquidificador, afinal também está
preso nas engrenagens dessa máquina em moto contínuo que é o consumo, no caso o mercado
crescente de bens simbólicos”. (BOSI, 2004, p.7) Se nas produções artísticas mais autônomas
com relação à mercadoria, essa interação entre espectador e obra é minada pelo fetichismo, na
produção que tem o consumo como fim específico essa relação é ainda mais deteriorada. O que
devemos pensar, a partir disso, é que tipo de relação com a obra de arte o espectador deve
procurar, que tipo de obra de arte estabelece uma relação verdadeira com o indivíduo na
contemporaneidade.
No período do pós-guerra pôde-se assistir a uma progressiva revolta e a um
distanciamento cada vez maior das artes com relação aos processos industrias, à mercantilização
e à construção racional. A analogia estilística que existiu entre algumas obras modernas e
objetos industriais, principalmente na época da Bauhaus, passa a ser cada vez mais difícil. O que
provoca, senão uma escassíssima afinidade, um completo desaparecimento de elementos das
artes no objeto industrial.
A arte autônoma, “ao cristalizar-se como coisa específica em si, em vez de se contrapor
às normas sociais existentes e se qualificar como ‘socialmente útil’, critica a sociedade pela sua
simples existência, [...] denunciando a degradação provocada por uma situação que evolui para
a sociedade de troca total: nela tudo existe apenas para-outra-coisa. O aspecto associal da arte é
a negação determinada da sociedade determinada”. (ADORNO, 2000, p.253) Contrariamente ao
prazer proporcionado pela indústria cultural, a arte exprime o sofrimento inerente à condição do
ser humano moderno, através do uso de materiais que chocam nossa sensibilidade: construções
gramaticais sem sentido, como a poesia concreta; músicas sem melodia quase nenhuma, acordes
dissonantes, não harmoniosos, etc.

1037
Por essa razão, a arte autônoma deve escapar à mesmice do cotidiano, para fazer com
que o ser humano escape à mesma condição. No mundo da administração total, a experiência
estética caminha para o lado oposto. O que não quer dizer que a arte deve voltar totalmente à
práxis artesanal para se desvincular dos preceitos capitalistas. Mesmo que, por resistência, o
fazer artesanal ainda subsista na arte moderna, o alargamento do material traz a inclusão de
elementos tomados de empréstimo da indústria e do desenho industrial.
Os movimentos neodadaístas do começo dos anos de 1960, como o Fluxus,
manifestaram grande interesse pelos objetos de uso. Através da construção artística, os objetos
de uso tomavam uma perspectiva completamente diferente da usual. Essa contribuição é
preciosa, pois expressa claramente a vulgaridade e o absurdo dos produtos de um determinado
tipo de design industrial e, certamente, sacode, em certa medida, a auto-suficiência de alguns
designers, despreocupados com o papel social que exercem. Assim, o caminho é invertido. Os
produtos que antes participavam de um processo dessocializador, no sentido de que escondiam
as relações sociais que o produziram, e faziam parte de uma alienação consumista, tomam parte
em um processo que procura a reconciliação do homem com a realidade.
“A arte respeita as massas ao apresentar-se a elas como aquilo que poderiam ser, em vez
de a elas se adaptar na sua forma degradada”. (ADORNO, 2000, p.268) O sujeito imerso na
indústria cultural, que de certa forma o fabrica, sempre procura o divertimento e o prazer, na
medida de que o gosto segue a linha da menor resistência, na sociedade em que os homens
perderam o hábito de pensarem além de si próprios. “Que a arte inferior, o divertimento surja
como evidente e socialmente legítimo é ideologia; esse caráter de evidência é apenas a
expressão da onipresença da repressão”. (ADORNO, 2000, p.269)

3. Conclusão
Finalmente, julgamos ser importante manter filosoficamente o conceito de obra de arte
em sentido estrito, tal como concebido por Adorno, com sua exigência de autonomia frente às
expectativas psicológicas e sociais, porque assim podemos combater a tendência contemporânea
em legitimar formas artísticas que falsificam nosso contato com o mundo e estendem a
repressão à imaginação. Para Adorno, somente a obra de arte autônoma oferece a oportunidade
de elevação para além da constante pressão social e, pelo menos por enquanto, o design se
mostra incapaz de estabelecer uma construção fora desses arquétipos e emblemas pseudo-
comunicativos, impregnados de animismo e fetichismo, que predominam nos dias atuais e
servem tão somente para estabelecer uma quantificação social, distribuir prestígio e legitimar o
status social de indivíduos e grupos. Um design livre dessas características talvez só seja

1038
possível se pensarmos em um outro modelo de sociedade, mas isso já é tema para outros
trabalhos.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2000.

AICHER, Otl. El mundo como proyecto. 5ª ed. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.

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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BINI, Fernando. Arte ou Design? Inter-Designers / Inter-Faces As várias faces do design no

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Bauru/SP/outubro de 1996.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2004.

DORFLES, Gillo. Introdução ao desenho industrial. Lisboa: Edições 70, 1990.

DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer & a dialética do esclarecimento. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

FREITAS, Verlaine. Adorno & a arte contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

MALDONADO, Tomás. Design industrial. Lisboa: Edições 70, 1991.

___________. Vanguardia y racionalidad. Barcelona: Giulio Einaudi, 1977.

MOHOLY, Nagy. La nueva vision y resena de um artista. Biblioteca de diseno y artes

visuales. Buenos Aires: Infinito, 1972.

1039
“NOVAS TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO: RISCOS E
POSSIBILIDADES FORMATIVAS”1
L. C. Farias2 ; B. Pucci3
1
Projeto de Iniciação Científica financiado pelo programa FAPIC/UNIMEP.
2
Graduanda em Psicologia – Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP - Faculdade
de Ciências Humanas - FHC, Grupo de Pesquisa Teoria Crítica e Educação, Piracicaba, SP.
3
Professor Doutor em Educação, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação -
PPGE, UNIMEP, Piracicaba, SP.

INTRODUÇÃO
Este projeto de pesquisa está diretamente vinculado ao Projeto “Tecnologia, Cultura e
Formação” , como um recorte do eixo “A problemática das novas tecnologias e seu impacto
na sociedade contemporânea”. Trata-se principalmente de uma pesquisa teórica e
posteriormente iluminou manifestações dessas mesmas tecnologias nas relações acadêmicas
da UNIMEP e suas possibilidades formativas e deformativas através de entrevistas realizadas
com docentes e discentes da Universidade.

A primeira parte da pesquisa apresenta fundamentalmente estudo teórico de autores


contemporâneos com objetivo de fornecer um panorama científico para realizar a investigação
sobre a temática deste subprojeto. Subdivide-se em dois eixos. No primeiro eixo são
estudadas as novas tecnologias genéticas, digitais e cibernéticos. Estudam-se o conceito de
“tecnologia e o futuro” de Laymert Garcia dos Santos, do livro Politizar as novas
tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética; “a integração homem-
máquina e as conseqüências para o humano”, de Donna Haraway, em seu livro Antropologia
do ciborgue – as vertigens do pós-humano; “a ratio presente no ciberespaço”, com a leitura
do ensaio de Alain Melendez O ciberespaço e as manifestações da razão instrumental na
Idade Mídia; “a sociedade da informação” em Gilberto Dupas em seu ensaio Ética e poder na
sociedade da informação: revendo o mito do progresso. No segundo eixo, são analisadas as
novas tecnologias nas relações educacionais e na experiências de ensino-aprendizagem, a
partir dos estudos: “virtudes” da contemporaneidade: flexibilização e adaptabilidade”, no
artigo de Dalila Oliveira A reestruturação do trabalho docente: precarização e flexibilização;
“a visão produtivista da educação”, no artigo de Maria Auxiliadora Monteiro, Aprender a
aprender: garantia de uma educação de qualidade?; “as novas tecnologias educacionais
como fortalecedoras da racionalização da educação”, de José León Crochik no livro
Tecnologia, Cultura e Formação... ainda Auschwitz; “o descompasso entre o mundo do

1040
trabalho e o mundo da educação”, em Lucídio Bianchetti, no livro Da chave de fenda ao
laptop: tecnologia digital e novas qualificações.

No segundo momento da pesquisa, a parte experimental, consistiu em análises das


entrevistas realizadas com docentes e discentes da UNIMEP que trabalham em cursos
diretamente mediados pelas novas tecnologias.

OBJETIVO
Este projeto tem como objetivo investigar as possibilidades formativas e deformativas
à partir da utilização das novas tecnologias na educação escolar. Realizou-se uma análise
comparativa dos textos dos autores citados e posteriormente esta base teórica auxiliou a
pesquisa de forma experimental para a apreensão das manifestações das novas tecnologias nas
relações acadêmico-educacionais da UNIMEP. Com essa análise, acredita-se compreender o
contexto das novas tecnologias no sistema. Apreender suas variações como sendo genéticas,
digitais e/ou cibernéticas e também, como o poder dessas tecnologias pode influenciar as
relações sociais, políticas, econômicas, e principalmente educacionais. Uma das questões que
serão discutidas é sobre as perspectivas do futuro humano e a constituição de um novo sujeito
conforme as exigências feitas pelas novas tecnologias. O enfoque está nas relações
educacionais e nas experiências de ensino-aprendizagem.

MÉTODOS
No primeiro momento da pesquisa a metodologia utilizada foram os textos teóricos de
autores contemporâneos com o objetivo de realizar uma análise comparativa com o objetivo
de estudar a problemática das possibilidades formativas e deformativas gerada pela utilização
generalizada das novas tecnologias na educação escolar. Foram realizadas discussões de cada
texto juntamente com o orientador e também de outras bolsistas do mesmo projeto mãe.

1. As novas tecnologias genéticas, digitais e cibernéticas:

1.1. Tecnologia e o futuro do humano: ensaios de Laymert Garcia dos Santos “Tecnologia,
perda do humano e crise do sujeito de Direito” (1997) e “Tecnologia e seleção” (2001), do
livro de Santos Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital
e genética” (2003).

1041
1.2. A integração homem-máquina e as conseqüências para o humano: texto de Donna
Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século
XX” (1995), do livro Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós-humano.

1.3. A ratio se faz presente também no ciberespaço: ensaio de Alain Melendez, O


ciberespaço e as manifestações da razão instrumental na Idade Mídia (2004)..

1.4. A sociedade da Informação em questão: ensaio de Gilberto Dupas, Ética e poder na


sociedade da informação: revendo o mito do progresso (2001).

2. As novas tecnologias nas relações educacionais e nas experiências de ensino-


aprendizagem.

2.1. As “virtudes” da contemporaneidade: flexibilização e adaptabilidade: artigo de


Dalila Andrade Oliveira, “A reestruturação do trabalho docente: precarização e flexibilização”
(2004).

2.2. A visão produtivista da educação: artigo de Maria Auxiliadora Monteiro, Aprender a


aprender: garantia de uma educação de qualidade? (2000).

2.3. As novas tecnologias educacionais fortalecem a racionalização da educação. Texto de


José Leon Crochik: Teoria Crítica e novas tecnologias da educação (2002).

2.4. O descompasso entre o mundo do trabalho e o mundo da educação: texto “Novas


Tecnologias, novas qualificações: desafios à educação”, do livro de Lucídio Bianchetti, Da
chave de fenda ao laptop: tecnologia digital e novas qualificações: desafios à educação
(2001).

Num segundo momento foram realizadas entrevistas com discentes e docentes da


UNIMEP. A análise foi realizada a partir dos subsídios teóricos levantados anteriormente.
Foram entrevistados oito sujeitos: 4 docentes (2 do curso Sistema de Informação e 2
de comunicação) e 4 discentes dos mesmo cursos referidos que trabalham em cursos
diretamente mediados pelas novas tecnologias.
As entrevistas foram realizadas pelas bolsistas dos dois projetos vinculados ao projeto
mãe, a partir de tópicos elaborados em conjunto com o orientador. Com o consentimento dos
entrevistados, as entrevistas foram áudio-gravadas e transcritas para o trabalho de análise dos
dados.
Os eixos temáticos foram:

1042
1- Utilização das novas tecnologias na sala de aula: Você as utiliza com freqüência? O
que você acha de sua utilização: pontos positivos e pontos negativos.
2- Se você utiliza direta e constantemente as novas tecnologias em seu curso ou
disciplina. O contato contínuo com a máquina, o conhecimento mais detalhado sobre a
mesma, lhe traz satisfação pessoal e realização profissional? Comente isso.
3- A função da universidade é formar o aluno para a vida e para o trabalho. O que
você entende por formação?
4- As novas tecnologias utilizadas na sala de aula – pela lógica binária das máquinas,
pela busca da funcionalidade, dos resultados imediatos – favorecem ou dificultam a formação
dos alunos? Comente a resposta.
5- Na relação pedagógica “professor-aluno”, para que a aprendizagem possa
efetivamente se desenvolver, a questão fundamental é a qualidade da comunicação entre as
pessoas. As novas tecnologias mediando a relação professor-aluno favorecem ou prejudicam a
aprendizagem? Comente.
6- Os recursos informáticos colocados a serviço do professor e do aluno na UNIMEP:
“pasta digital de disciplinas”, “consultas on line”, “correio eletrônico”, “Power Point”, “TV
em sala de aula” etc, favorecem ou dificultam a formação dos alunos? Comente a resposta.
7- Que interpretação você dá para o uso das novas tecnologias quando o ensino ocorre
a distância, tendo como mediação aparatos que permitem determinadas interações não-
presenciais?
8- Você acha que com a intensificação e universalização do uso das novas tecnologias
na UNIMEP o professor será proximamente substituído por um técnico? Quais as
conseqüências disso no interior de nossa instituição?

RESULTADO E DISCUSSÃO
No primeiro eixo temático muitos disseram que os pontos negativos são provenientes
da maneira do seu uso. Observa-se que muitos ainda pensam na neutralidade da tecnologia
,mas vê-se mais a frente que elas estão ai e tem influência direta nos comportamentos das
pessoas
Observa-se no segundo eixo temático que a tecnologia está atrelada à vida cotidiana
do indivíduo, tanto pessoal quanto profissional. Quando se fala em satisfação profissional, a
pessoal já está sendo dita também, ou seja, as tecnologias estão inseridas e constantemente
utilizadas na vida privada e social.

1043
Pôde-se observar no terceiro eixo as diversas idéias de formação mas alguns
convergem num mesmo ponto, a importância da técnica atrelada à teoria. Para Adorno,
formação era entendido como “a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva”, a
cultura que se constitui pelo dupla caráter de ser, ao mesmo tempo, adaptação à vida real e
busca da autonomia do sujeito. “A formação tem como condições a autonomia e a liberdade”
– dizia ele.
Observa-se no quarto eixo temático que o pensamento perde seu poder de pensar a si
mesmo, a fantasia se atrofia e o indivíduo é forçado a se adaptar ao sistema, pois perante os
donos do poder só se consegue afirmar quem se submete sem restrições.
No quinto eixo percebe-se que o papel do professor torna-se cada vez mais necessário,
pois cabe a ele fazer a mediação entre o acerto crescente de informações – multifacetadas e
fragmentadas – e os alunos, contextualizando-as, integrando-as e criticando-as, para que se
possa assegurar o desenvolvimento da reflexão e a construção do conhecimento e assim,
assegurando a aprendizagem.
No sexto eixo temático verifica-se que os aparatos tecnológicos são utilizados com
muita freqüência pelos entrevistados. Constata-se que as novas tecnologias utilizadas na sala
de aula, pela busca da funcionalidade, dos resultados imediatos, acabam dificultando a
formação dos alunos pois o poder de manipular as sensações humanas é posto.
No sétimo eixo temático observa-se que os professores e os alunos permanecem
divididos e não sabendo ainda como melhor responder a pergunta. Todos concordam que tem
pontos vantajosos, como a questão do tempo, porém é um processo para ser utilizado como
apoio e não como único fator de formação.
Para alguns o oitavo eixo apresentou-se como um exagero a idéia da substituição do
homem pela máquinas mas é o que ocorre, ou seja, a dominação das novas tecnologias e o
humano não tem mais controle sobre ela.

CONCLUSÃO
A utilização dos aparatos tecnológicos nas salas de aula acarreta importantes
transformações na formação do indivíduo. Segundo o autor da Teoria Crítica, Adorno, todo
esse processo leva a uma semiformação do indivíduo. O indivíduo acaba por não desenvolver
sua autonomia e liberdade de espírito, e capacidade de um pensar crítico e reflexivo.
Assim, na educação escolar os aparatos tecnológicos possuem grandes possibilidades
formativas quando usados com competências pelos professores no processo de

1044
ensino/aprendizagem ao realizar a mediação entre o acervo crescente de informações –
multifacetadas e fragmentadas - com os alunos, contextualizando-as, integrando-as e
criticando-as, para que se possa assegurar o desenvolvimento da reflexão e a construção do
conhecimento e assim, assegurando a aprendizagem. Para isso, os professores precisam ser
preparados para o uso e domínio dessas novas linguagens e também para a sua articulação
com as atividades específicas da sua disciplina.

Quanto possibilidades deformativas ocorre quando esses meios tecnológicos são


utilizados no processo de ensino/aprendizagem com regras voltadas para o mercado capital ,
como por exemplo “aprender a aprender” pois prega a operacionalidade e não-reflexão do
pensamento. Dessa forma aprofunda cada vez mais a crise da formação pois é a qualidade da
educação que garante a formação do indivíduo, como cidadão e sujeito da práxis social.
Por fim, deveria usar a tecnologia contra a própria tecnologia para desfazer seus
encantos de precisão, de aceleramento e funcionalidade. E sim utilizá-la a serviço da
formação e da criação de novas experiências no âmbito educacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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qualificações: desafios à educação. Petrópolis: Vozes, 2001
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MONTEIRO, Maria Auxiliadora. “Aprender a aprender”: garantia de uma
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OLIVEIRA, Dalila Andrade A reestruturação do trabalho docente: precarização e
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1127-1144

PUCCI, Bruno A escola e a semiformação mediada pelas novas tecnologias ,


Piracicaba: PPGE/UNIMEP, 2004, 14 pp. (publicação interna)
PUCCI, Bruno E a razão se fez máquina e permanece entre nós. Piracicaba:
PPGE/UNIMEP, 2005, 14 pp. (publicação interna)
PUCCI, Bruno e RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton O enfraquecimento da
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SANTOS, Laymert Garcia dos Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-
técnico da informação digital e genética São Paulo: Editora 34; 2003

1046
ELEMENTOS PRESENTES NA ANÁLISE ESTÉTICA DE ADORNO

Lígia Almeida Durante


Isabella Fernanda Ferreira

Adorno, além de filósofo e sociólogo, teve também uma formação musical que
certamente o influenciou no modo de interpretar o mundo e analisá-lo, tentando apontar causas
e soluções para os problemas acarretados pela indústria cultural. Na formulação de sua teoria,
Adorno dialoga centralmente com Marx, Kant e Freud, utilizando-se do método dialético para
suas análises e produções científicas. No que se refere à estética, Adorno tende a superar os
pensadores de até então, pois, apesar de:

(...) todos os ramos da filosofia, a estética é aquele que parece possuir o


menor grau de uniformidade entre os autores, oscilando entre a dignificação
da beleza natural ou artística, entre o aspecto conceitual ou sensível, entre
uma abordagem abstrata, geral, e a crítica de obras determinadas.
(FREITAS, 2003, p.9).

Confrontando o marxismo com a psicanálise, Adorno tem em seu pensamento uma


forma mais ampla e completa da estética, atribuindo um valor que não fora dado pela maioria
dos outros filósofos: a de denunciar o sofrimento construído historicamente pela humanidade e
o de desempenhar a crítica da própria cultura. Na perspectiva adorniana “(...) a cultura tem um
duplo caráter: remete à sociedade e intermedeia esta e a semiformação” (ADORNO, 1996, p.
389).
Adorno constata que na linguagem alemã a idéia de cultura está cada vez mais em
oposição à práxis, colocando-se em favor do que ele denomina de “cultura do espírito”,
comprovando, desta maneira, que a burguesia não conseguira sua emancipação por completo,
não dando, portanto, para aceitar que a sociedade burguesa seja em si a representante da
humanidade. Por outro lado, Adorno apontando para uma outra característica da cultura baseada
na adaptação (desencadeando um tipo de conformação à vida real já estabelecida, reforçando
uma unidade precária de socialização, impedindo o que o autor entende como: “explosões
desorganizadoras que, conforme é óbvio, se produzem às vezes justamente onde já está
estabelecida uma tradição de cultura espiritual autônoma” (ADORNO, 1996, p. 390), cuja idéia
filosófica correspondente de formação, procura formar agora, com uma característica de
protetora da existência, uma detentora de dupla finalidade:

1
1047
(...) obter a domesticação do animal homem mediante sua adaptação
interpares e resguardar o que lhe vinha da natureza, que se submete á
pressão da decrépita ordem criada pelo homem (ADORNO, 1996, p. 390).

Frente a estas constatações, Adorno aponta a necessidade da permanência da tensão


entre autonomia e adaptação, afirmando que:

Quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em


categorias fixas – sejam elas do espírito ou da natureza, de transcendência
ou de adomocação – cada uma delas, isolada, coloca-se em contradição com
seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma formação regressiva
(ADORNO, 1996, p. 390).

Adorno é realista afirmando que não dá, nas condições atuais, para ser radicalmente
contra a popularização da cultura; porém, também alega que não dá para não refletir sobre o
grau de semi-entendimento e semi-experimentação que esta popularização provoca, tornando-se
altamente nociva à formação cultural, pois elementos que não são adequadamente assimilados
acabam sendo fator de fortalecimento da reificação da consciência, visto que, não existe
formação sem pressupostos verdadeiramente experimentados. Adorno salienta a presença da
dialética da produção da cultura, pois se por um lado a cultura não sobrevive sem ser consumida
e, portanto, popularizada, por outro lado, essa consumação danifica a cultura inserida no
processo de industrialização, afirmando que:

De fato, seria insensato querer segregar tais textos em edições


científicas, em edições reduzidas e custosas, quando o estado da técnica e o
interesse econômico convergem para a produção massiva. Isso não significa,
porém, que se deva ficar cego, por medo do inevitável, diante de suas
implicações, nem sobretudo, diante do fato de que entra em contradição com
as pretensões imanentes de democratizar a formação cultural. Somente uma
concepção linear e inquebrantável do progresso espiritual planeja com
negligência sobre o conteúdo qualitativo da formação que se socializa como
semiformação. Diante dela, a concepção dialética não se engana sobre a
ambigüidade do progresso em plena totalidade repressiva. O que os
antagonismo enraízam é que todos os progressos em relação à consciência
da liberdade cooperam para que persista a falta de liberdade. (ADORNO,
1996, p. 402).

2
1048
Adorno também defende o conhecimento reflexivo da existência da dialética da
produção cultural, pois somente assim podem “ser criados” focos de resistência.
Esta resistência, (no que diz respeito à produção e a contemplação das obras de arte),
está intimamente relacionada com o que Adorno denomina na sua obra Teoria Estética(1992) de
“promessa de felicidade”. Esta promessa de felicidade que é inerente à arte quando genuína é
para Adorno a capacidade que a arte possui de denunciar o sofrimento construído
historicamente pela humanidade. Enfim, a arte se torna uma promessa de felicidade, pois, ao
carregar imanente em si mesma a possibilidade de reflexão sobre o sofrimento humano, traz
também consigo a possibilidade de superação deste sofrimento. Eis aí, o potencial formativo da
arte, que se apresenta corroído pela indústria do entretenimento, pela indústria cultural, pois
para Adorno a arte é alegre não porque entretêm, mas porque traz a possibilidade de humanizar
as relações sociais.
Embora com a situação generalizada da Indústria Cultural, que reduz a arte muitas
vezes a uma fonte de alegria receitada - como afirma Adorno: “ vitaminas a cansados homens de
negócios”- se ela assim não fosse, não teria conseguido sobreviver; como algo que faz parte de
sua própria definição, e não como algo externo a si mesma; isto é, embora não se referindo à
sociedade, a fórmula kantiana de “finalidade sem fim” nos permite, segundo Adorno, verificar
isto, pois “O fato de por sua própria existência, desviar-se do caminho da dominação a coloca
como parceira de uma promessa de felicidade, que ela, de certa maneira, expressa em meio ao
desespero” (ADORNO, 2000, p. 12).
Dessa maneira, Adorno em sua perspectiva, acredita que o alegre na arte é o contrário
do que muitas vezes assumimos levianamente como tal, pois não se trata do conteúdo em si,
mas, sobretudo do seu procedimento, do abstrato que permite à arte abrir-se à realidade, ao
mesmo tempo em que a violência denuncia: “Eis sua alegria e também, sem dúvida, sua
seriedade ao modificar a consciência existente.” ( ADORNO, 2000, p. 13).
A arte para Adorno não é tão somente distração como a indústria cultural dissemina,
mas é também forma de conhecimento:

(...) a arte, como forma de conhecimento, recebe todo seu material e


suas formas da realidade – em especial da sociedade – para transformá-la,
acaba embaraçando-se em contradições irreconciliáveis. Sua profundidade
mede-se pelo fato de poder ou não, pela reconciliação que suas leis formais
trazem às contradições, destacar a real irreconciliação (...). Somente pela
transformação do contraditório como negativamente preservado é que a arte
se realiza, o que é desmentido assim que a arte é glorificada como algo que
ultrapassa o que existe, independente do seu contrário (...). Como algo que

3
1049
escapa da realidade e, no entanto, nela está imersa, a arte vibra entre a
seriedade e a alegria. É esta tensão que constitui a arte. ( ADORNO, 2000,
p. 13)

Adorno ainda posiciona-se, afirmando que após à barbárie de Auschwitz, a


alegria despreocupada na arte não é mais concebível, pois as forças históricas que
produzem o terror são originárias da própria estrutura da sociedade.
Dessa forma, para Adorno, a única maneira possível de arte, não é nem a alegre e nem a
triste, mas sim, uma terceira possibilidade mergulhada, segundo ele, encoberta no nada,
apresentada pelas obras de arte de vanguarda, com seus traços sem sentidos e tolos, que, embora
não sendo agradáveis àqueles que possuem uma visão positivista, representam julgamentos bem
humorados sobre o humor e não uma regressão da arte a um estágio infantil.
Adorno considera como Arte aquela produzida pelos modernos, porque, diferentemente
da arte clássica, ela não pode oferecer reconciliação ou consolo. A arte moderna oscila entre
duas determinações: consciência de sofrimento e consolo afirmativo. Todavia, apesar da
oscilação não pende para nenhum dos lados.

A arte, pois, é afirmação e negação de si mesma. Ela responde à idéia de


sua própria negação, por isso ela pode indicar a reconciliação. A utopia
como conceito negativo é o que a arte veicula. A arte moderna e a dialética
negativa vinculam-se ao estado injusto de coisas existentes por superar.
(RAMOS DE OLIVEIRA, 2001, p. 88-89).

Adorno encontra na estética a esperança e a possibilidade de um enfrentamento


da contradição da arte na sociedade burguesa (seu estatuto material). Portanto, o
conhecimento da realidade se faz possível através da arte, de uma maneira que não é
possível com a filosofia: a mediação através da experiência estética.

A filosofia de Adorno, com sua ênfase na mediação como


conceito indispensável para o enfrentamento das contradições,
convida o pensamento a enredar-se em um esforço interdisciplinar,
onde a potência do esclarecimento filosófico se mede por sua
capacidade de seguir com ternura os contornos do sensível (CEPPAS,
2003, p. 227)

4
1050
Enfim, este conhecimento mediado pela experiência estética encontra-se em permanente
movimento que pode ser ilustrado com a imagem de uma espiral.
Estes foram elementos iniciais para uma compreensão da questão estética de Adorno.
Porém cabe aqui algumas considerações acerca do conceito de mímesis, sem contudo, a
pretensão de defini-lo.
Ramos-de-Oliveira (2000), procura apresentar em linhas gerais, o que, no seu
entendimento, seria condição para que o ser humano consiga alcançar o conhecimento e o
prazer artístico. Ambos, objetivos distorcidos pela sociedade administrada atual, no qual o
pensamento do filósofo Theodor W. Adorno pode e deve ser utilizado para reflexão,
constituindo-se em uma resistência, pois: “Só aprende quem abandona a ilusão do saber, só frui
a arte quem deixa os maneirismos dominantes”. ( RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, p. 45)
O autor supracitado ainda faz argüições a respeito dos aspectos degradantes da indústria
cultural, Ramos-de-Oliveira, sintetizando da seguinte maneira:

(...) a indústria cultural e sua face subjetiva, a semiformação cultural,


são imensos e poderosos sistemas anti-socráticos e antiplatônicos.
Antifilosóficos, portanto, seja no campo do conhecimento, seja no campo da
percepção. Destruidores da produção, circulação e distribuição dos
conhecimentos e da sensibilidade(...).Esperamos estar demonstrando que a
Indústria Cultural, como um dos mecanismos da Sociedade Administrada,
tem que ser enfrentada, de uma maneira ou de outra, por todo e qualquer
esforço educativo. A educação não pode desconhecer esta super-
deseducação que se alastra e tudo invade no imaginário e no cotidiano, nos
sonhos e nos projetos que se efetivam. Esta dessensibilização é barbárie (...)
as rigorosas e extensas análises da Teoria Crítica podem servir senão de
estrutura a uma teoria e ação pedagógica, pelo menos, de uma abertura, um
descortino do pensamento e da reflexão educativa. (RAMOS-DE-
OLIVEIRA, 2000, p. 51)

Ramos-de-Oliveira argumenta que numa sociedade administrada, (como a atual


moderna que impõe mecanismo invasivos com ação anti-socrática e degradam a sensibilidade),
a resistência é importante e deve ser trabalhada, e isto se dá por meio do pensamento e da
sensibilidade (expressão artística é uma forma importante de sensibilidade).
Em toda à sua obra, Adorno, deixa claro, ora explicitamente, ora implicitamente, o
grande valor que atribui às artes, à estética, desde a escolha pelo modo como iniciou a escrita de
seus trabalhos em forma de ensaio, até à maneira como expõe seu pensamento e produz suas
críticas.

5
1051
Ramos-de-Oliveira procura efetuar uma análise do pensamento de Adorno, a partir da
característica do ensaio, alegando que um estudo detido da expressão e da forma Adorniana
pode nos trazer muitas revelações que evidenciam sua maneira de refletir e expor seus
resultados.
Não só o ensaio em si, mas a própria escolha pelo ensaio revela todo o ser de Adorno,
evidenciando sua maneira de ser e de pensar, pois se é característico do ensaio a liberdade, a
rebeldia e a heresia, este tornou-se um meio eficiente para Adorno combater os traços cruéis da
formação social germânica. O ensaio também entra em perfeita harmonia com as tendências
mais íntimas de reflexão de Adorno (realizado com um espírito sistemático e rigoroso, mas que
não se fecha num sistema). De uma maneira rigorosa, mas não autoritária, Adorno dialoga e se
opõe.
Adorno ao recusar-se a sistemas fechados evidencia sua aderência à teoria crítica,
mostrada com clareza tanto na sua inclinação pelo ensaio como forma de expressão de suas
reflexões, como por todo o repúdio que carrega sobre as obras de arte estandartizadas e
superficiais que degradam os sentidos e prejudicam a reflexão humana. Aliás, segundo Freitas:

(...) a estética adorniana somente pode ser bem compreendida


se a colocarmos no horizonte daquilo que é criticado pela arte.
Podemos dizer, com certo exagero, que cada linha dos textos estéticos
de Adorno somente tem seu sentido assegurado na medida em que é
lida com base em sua crítica da sociedade capitalista. (FREITAS,
2003, p.10).

Segundo Adorno (1988), a arte, para conseguir expressar-se - ou seja, para conseguir
alcançar aquela linguagem imediata que permite a expressão daquilo que nenhuma linguagem
consegue expressar - necessita da tensão entre os elementos miméticos e racionais inerentes a
ela.
O elemento mimético permite ao indivíduo o encontro com o natural, com o
encantamento, efetuando a apresentação do irracional, isto é, fornece a possibilidade da
expressão do inconsciente, das sensações, dos sentimentos, do afeto que o artista consegue
demonstrar, à medida que, em contato com o natural, encontra por meio do elemento racional,
ou seja, com o seu momento criador e organizador, ou até diria(trabalho de 2 pessoas!), de
planejamento; a possibilidade de como, de que maneira transformar em linguagem toda a sua
irracionalidade.
Porém, para que esta linguagem se torne concreta, torne-se objetiva, faz-se necessário a
presença da técnica como o meio para a consolidação da expressão racional do elemento

6
1052
irracional que é a mímeses. Sendo assim, na obra de arte, quando verdadeiramente expressiva,
não existe nem a absolutização do elemento mimético e nem a absolutização do elemento
racional, mas sim uma tensão, uma coexistência, uma interligação, uma ocorrência de aspetos
autônomos e adaptativos.
Tanto no momento da contemplação, como no instante da produção de uma obra-de-arte
(quando esta consegue expressar-se), estão presentes os elementos racionais e miméticos da
obra.
Porém, atualmente na sociedade industrial moderna, o artista depara-se com a presença
da dialética da técnica criada pela ideologia presente em uma tecnologia de espoliação, que
significa que a técnica pode ser por um lado, intra-estética (ajudando a arte como um meio para
efetivar a sua expressão), e por lado, tornando-se extra-estética (um fim em si mesma,
desencadeando a plena integração da obra de arte no seio da Indústria Cultural, rompendo a
tensão entre os elementos miméticos e os elementos racionais, destruindo sua dialeticidade).
Frente a tudo isto, podemos ousar afirmar que, quando uma arte consegue se expressar,
ela por sua própria essência, que se baseia na reapropriação do irracional de uma maneira
racional, consegue apresentar como forma de conhecimento a obscuridade desta irracionalidade
justificada como sendo racional, até mesmo, quando cria a dominação do homem pelo próprio
homem. (cf Adorno, 1988).
Notamos desta maneira, que ao pesquisarmos a questão da estética em Adorno, várias
categorias de análise devem ser perpassadas. A dificuldade está em está em se perceber que,
embora diferentes, tais categoria são indissociáveis, pois ao nos questionarmos sobre a
autenticidade de uma obra artística nos deparamos com a presença objetiva da indústria cultural
que, por sua vez, desencadeia um estado pauperizado das consciências à nível subjetivo
denominado por Adorno de semiformação, até chegarmos a analisarmos as conseqüências
sociais e culturais que este estado semifomativo impõe à sociedade de uma maneira
generalizada.
Enfim, quando Adorno teoriza sobre arte, ele teoriza também sobre o modo de produção
humana, o estado subjetivo dos seres humanos, a crise da cultura e suas conseqüências nas
relações sociais. Quando Adorno disserta sobre arte, ele coloca a sua visão de sociedade, de
formação cultural e de emancipação social.

7
1053
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADORNO, T. W O fetichismo na música e a regressão da audição. Trad. de Luiz João


Baraúna. São Paulo, Abril Cultural,1983. (Coleção Os Pensadores).
___________ Teoria Estética. Trad. de Artur Moura. Sao Paulo, Martins Fontes, 1992
____________Educação e Emancipação. Trad de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1995.
___________ & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Trad. de Guido Antônio de
Almeida. Rio de Janeiro, Zahar, 1985

CEPPAS, P. Formação filosófica e crítica: Adorno e o ensino de filosofia em nível introdutório.


Rio de Janeiro, PUC, 2003. (Tese de Doutorado).

FREITAS, V. Adorno e a arte contemporânea. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

PUCCI, B et als. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis-RJ, Vozes,1999.

RAMOS-DE-OLIVEIRA, N. Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba-SP, UNIMEP,


2001

8
1054
“A NÃO NEUTRALIDADE DAS NOVAS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO 2”

Liliana Scatena
UNIMEP

INTRODUÇÃO

Este subprojeto, “a não neutralidade das novas tecnologias na educação”, se vincula ao


projeto “Tecnologia, Cultura e Formação”. Apresenta-se como uma pesquisa teórica, pois
possibilita ao iniciante à pesquisa um contato com a problemática das novas tecnologias, através
de pensadores para se discutir no caso, o sistema de informatização progressivo da UNIMEP e
seu impacto sobre o ensino-aprendizagem.
No primeiro momento da pesquisa foi realizado o estudo do conceito de tecnologia em
Martin Heidegger ; em Theodor Adorno e Max Horkheimer; em Herbert Marcuse; em Pierre
Lévy e Laymert Garcia dos Santos. No segundo momento da pesquisa foi realizado o estudo do
ensino operacional que está progressivamente introduzindo-se nas escolas, através da autora
Marilena Chauí. E também foi estudado o processo de passagem do sistema analógico ao digital
nas Tecnologias de Informação e Comunicação através do autor Lucídio Bianchetti .
O objetivo desse projeto é investigar a problemática da não neutralidade das novas
tecnologias na educação escolar, através do estudo e análise crítico-comparativa dos pensadores
citados acima e do experimento realizado na UNIMEP, onde foram observadas as manifestações
do impacto das novas tecnologias no dia-a-dia dessa universidade. Acredita-se que com isso, se
possa compreender que a tecnologia não se separa das ideologias, que os conhecimentos podem
vir deturpados pelo sistema e que o processo escolar reflete este sistema.

METODOLOGIA

A metodologia do projeto consistiu na discussão do conceito de tecnologia e sua


intervenção no âmbito educacional através dos autores estudados além das entrevistas realizadas
na UNIMEP, onde foram observadas as manifestações do impacto das novas tecnologias no dia-
a-dia dessa universidade.
Estudou-se a técnica em Martin Heidegger discutindo sua crítica à ciência e à técnica
moderna, as conseqüências disso para a vida do ser humano. A racionalidade técnica em
Theodor Adorno e Max Horkheimer que relatam o processo de constituição da razão
instrumental. A tecnologia como sistema em Herbert Marcuse onde ele apresenta um sistema

1055
que é instrumento de controle e de dominação. As tecnologias da inteligência de Pierre Lévy:
onde procurou-se entender as categorias “tecnologias da inteligência” e “ecologia cognitiva”. A
virada cibernética de Laymert Garcia dos Santos com o objetivo de compreender mais de perto
o impacto das novas tecnologias. Tecnologias de informação e comunicação e a trajetória
tecnológica da informática e as telecomunicações em Lucídio Bianchetti. Ensino operacional
nas universidades em Marilena Chauí onde se questionou o tipo de ensino operacional que está
progressivamente introduzindo-se nas escolas.
Na parte experimental da pesquisa foram determinados eixos temáticos pré-
estabelecidos nas entrevistas com os professores e alunos da UNIMEP.
Os eixos temáticos foram: utilização cada vez maior das novas tecnologias no mundo de
hoje; tempo de Trabalho e o ritmo de Trabalho; como o uso das novas tecnologias interfere nas
atividades de lazer e de entretenimento; a progressiva tecnologização do trabalho e da vida;
crise de gerações e de civilizações; utilização cada vez maior das novas tecnologias na
UNIMEP; satisfação pessoal e realização profissional no contato com a máquina; utilização das
novas tecnologias na sala de aula; capacitação permanente e ensino a distância.
Os sujeitos escolhidos foram 4 professores e 4 alunos da Universidade Metodista de
Piracicaba - Campus Taquaral, localizada na cidade de Piracicaba- SP.
Para a escolha dos cursos elegeram-se os que estabelecem um contato mais estreito com
as novas tecnologias na sala de aula e também os cursos que não necessitam da utilização
freqüente das novas tecnologias. Os cursos escolhidos foram os seguintes: Sistemas de
Informação, Turismo, Economia, Rádio e TV, Psicologia e Filosofia.
Utilizou-se a seguinte técnica para a apresentação e discussão dos resultados da parte
experimental da pesquisa:

1- Eixo temático

2- Seleção de trechos significativos das entrevistas

3- Exposição comparativa das respostas

4- Análise das respostas

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No eixo teórico sobre o uso cada vez maior das novas tecnologias no mundo de hoje,
existem falas avaliando como positivas: a facilidade e rapidez de se ter acesso à informação, a
dinamização da vida cotidiana, a facilidade na comunicação, automatização do processo de

1056
trabalho. Os sujeitos relatam que há um grande volume de informações, porém a quantidade de
informações não garante necessariamente a qualidade dessas informações.
No eixo teórico a respeito do tempo e ritmo de trabalho pode-se fazer uma análise de
que houve um equívoco em relação a previsão dessas questões contemporâneas. Acreditava-se
que, com o desenvolvimento da técnica, o homem poderia trabalhar menos e viver melhor e ter
mais tempo para se dedicar à cultura, ao lazer, à vida em sociedade, mas não foi isso o que
aconteceu e as análises de Horkheimer e Adorno demonstraram isso.
Na questão que indagava como o uso das novas tecnologias interfere nas atividades de
lazer e de entretenimento verificou-se que com a racionalidade tecnológica, o divertir-se passou
a significar estar de acordo. O trabalhador é ocupado o tempo todo, a diversão é desenvolvida
como prolongamento do trabalho. Desse modo, a Indústria cultural reproduz a ideologia
dominante ao ocupar continuamente o espaço de descanso e do lazer.

Através das respostas sobre a progressiva tecnologização do trabalho e da vida, se


confirma a constante cobrança sofrida pelos sujeitos devido a dominação do capitalismo global.
Foram citados o ritmo intenso de trabalho, a constante capacitação a que estão submetidos os
sujeitos da pesquisa.

Na questão sobre crise de gerações, percebe-se uma maior preocupação com a


dificuldade de adaptação do que com a falta de autonomia que a crescente tecnologização
acarreta. O maior problema da crise de gerações não é a dificuldade de acompanhar o avanço
tecnológico, mas é o fato de esse avanço destruir valores importantes para essas pessoas que
fazem parte das gerações anteriores a era informacional.

A respeito da utilização cada vez maior das novas tecnologias na UNIMEP, percebe-se
nos entrevistados um divergência de opiniões, pois alguns dos sujeitos acham que os
professores estão atrasados e outros sujeitos disseram que a UNIMEP está defasada em relação
a utilização das novas tecnologias na educação. O fato é que a mediação dos aparatos técnicos
pode resultar em regressão dos sentidos e por isso se faz necessária a discussão a respeito destes
no ambiente escolar.

Sobre satisfação pessoal e realização profissional com o uso da tecnologia constata-se


que a realização desses indivíduos que tentam escapar da mecanização se faz através da
intensificação do próprio processo de mecanização. As respostas dos sujeitos colaboram para o
apontamento de uma atitude considerada até mesmo patológica, pois essas pessoas vivenciam a
tecnologia de uma forma irracional.

No eixo teórico sobre a utilização das novas tecnologias na sala de aula, verifica-se que
os aparatos tecnológicos são utilizados com freqüência, mas que segundo alunos e professores,

1057
já estão defasados em relação aos recursos tecnológicos que estão disponíveis no mercado.
Constata-se que as novas tecnologias utilizadas na sala de aula, pela busca da funcionalidade,
dos resultados imediatos, acabam dificultando a formação dos alunos.

Alguns dos entrevistados disseram que a capacitação permanente é necessária e não se


pode fugir desse processo, pois as pessoas têm que se adaptar continuamente às mudanças
geradas pela aceleração tecnológica. Outros sujeitos vêem como pontos negativos a busca
incessante de conhecimentos, a competitividade, a busca de produtividade levadas às últimas
conseqüências. Percebe-se através das falas dos entrevistados que o ensino adquiriu como
característica predominante a orientação imediata para o mercado. Os estudantes são
incentivados, desde o início, a considerar tudo o que aprendem sob o ponto de vista da utilidade,
sua graduação é realizada sob o ponto de vista da economia. E as novas tecnologias estão
forçando os trabalhadores a constituírem novas qualificações, englobando novos
conhecimentos, como única possibilidade de ingressarem ou se manterem num mercado de
trabalho cada vez mais restrito e exigente.

Todos os entrevistados demonstraram preocupação em relação ao ensino a distância.


Percebe-se que alguns professores possuem maior propriedade sobre o assunto e discorreram
sobre as desvantagens da educação a distância baseados em uma argumentação direcionada.
Outros sujeitos não deram um posicionamento, apenas discutiram a questão baseados no senso
comum. A ausência física de um professor implica em várias questões como a falta de
autoridade do professor, a falsa noção de aprendizado, de uma real formação. A aula mediada
pelo computador torna-se um mecanismo de acondicionamento da sensibilidade humana à
racionalidade. Impede tanto o aluno como o professor (por detrás da tela) de sofrerem
experiências que tornem a faculdade de pensar algo que não se expressa apenas pelo
conhecimento lógico formal.

CONCLUSÃO

Demonstrou-se através de entrevistas realizadas com professores e alunos dessa


instituição, que o processo de mediação tecnológica é transcendente à individualidade de cada
sujeito em particular. O aluno não consegue ter um conhecimento espontâneo porque a escola
foi invadida pela indústria cultural. Os docentes e os discentes estão sobrecarregados de trabalho
devido o ritmo progressivo da informatização.

1058
Através dos estudos baseados na Teoria Crítica, verifica-se que um dos eixos
fundamentais da educação contemporânea deveria ser o de enfatizar, mesmo contra corrente, o
imprescindível caráter da autonomia, da emancipação do sujeito.
A educação, que detém a responsabilidade da formação, deve se preocupar antes de
tudo com a educação dos sentidos, da sensibilidade, com a educação da expressão rigorosa das
idéias em contraposição às facilidades enganosas e deformativas da Indústria Cultural.
Deveriam ser objetivos fundamentais da Educação:
1. Esclarecer os indivíduos para que consigam refletir sobre os problemas ocasionados pelas
novas tecnologias.
2. Estimular a criação de novas formas de resistência e de intervenção social,cultural e política
para que o conhecimento não seja deturpado pelo sistema.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T.W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.


Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985;
BIANCHETTI, L. Da chave de fenda ao laptop. Tecnologia digital e novas qualificações:
desafios à educação. Petrópolis: VOZES/Editora da UFSC/Unitrabalho 2001.
BRÜSEKE, Franz Josef. A Técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2001;
CHAUÍ, M. A universidade pública sob nova perspectiva. In Revista Brasileira de
Educação,2003, nº 24, pp. 05-15;
LÉVY, P. As Tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na era da informática.
Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994;
MARCUSE, H. “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna”. In Tecnologia, Guerra e
Fascismo. Coletânea de Textos editada por Douglas Kellner. Tradução de Maria Cristina Vidal
Borba. São Paulo: Editora da UNESP, 1999;
SANTOS, L. G. dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação
digital e genética. São Paulo: Editora 34, 2003;
SANTOS, L. G. dos e outros. Revolução, Tecnologia, Internet e Socialismo. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.

1059
GOSTOS E PREFERÊNCIAS DAS CRIANÇAS SUGERIDAS PELOS PROGRAMAS

TELEVISIVOS

Luciana Camurra – PIBIC/UEM


Teresa Kazuko Teruya – DTP/UEM
Regina Lucia Mesti – DTP/UEM

O presente trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa de iniciação científica em


andamento na Universidade Estadual de Maringá, Paraná. O objetivo desta investigação é
analisar nas manifestações das crianças entre 7 a 10 anos de idade, os conteúdos dos programas
de televisão que elas assistem, em uma perspectiva da análise da teoria crítica. Pretende-se
verificar a ocorrência de interferência dos programas televisivos nas manifestações de gostos e
preferências dessas crianças por meio de entrevistas. Pesquisas evidenciam o aumento
significativo da quantidade de propagandas que falam diretamente ao público infantil. Ainda
que tenha sido, recentemente, divulgada uma regulamentação desse tipo de peça publicitária, foi
mantida a criação da imagem da criança na sociedade de consumo como cliente que pode vir a
desejar e consumir produtos. Pesquisas, na perspectiva da Teoria Crítica, indicam que as
propagandas não atuam apenas para mostrar produtos, expor conceitos ou apresentar histórias,
mas sim para vender idéias e modos de viver, mais do que convencer do que é bom e
necessário; a intenção é fazer crer em certos valores. Essa exploração comercial e cultural, que
submete os indivíduos, Adorno e Horkheimer (1985) denomina Indústria Cultural e analisam
como é feita a difusão de valores éticos e estéticos que atuam como obstáculos à formação do
indivíduo capaz de crítica. Em síntese, a análise crítica da interferência da indústria cultural na
formação da criança indica que a programação televisiva propaga valores, atitudes, idéias e
estilos de comportamentos que podem demarcar as condutas de crianças, sujeitos desta
investigação. Utilizamos os fundamentos teóricos da teoria crítica e da educação, para
identificar e analisar como os conteúdos televisivos aparecem nas manifestações infantis
solicitadas durante as entrevistas com escolares. A elaboração de uma análise crítica sobre as
intervenções midiáticas, presentes nas manifestações infantis, produz conhecimentos para
reflexões e atuação dos professores na educação escolar.

Palavras-chave: Educação - Indústria Cultural - Teoria Crítica.

Os estudos sobre a participação dos conteúdos dos meios de comunicação de


massa como a televisão, na formação de noções e valores, principalmente durante a

1060
infância, são considerados relevantes às áreas de educação, psicologia, antropologia
entre outras. De acordo com Elza Dias Pacheco (1985, p. 17)
um dos problemas que demanda o interesse dos especialistas nas
ciências do comportamento é a possível relação do conteúdo veiculado
pelos meios de comunicação de massa com os comportamentos,
atitudes, experiências e valores das crianças e adolescentes expostos a
tais meios.

A televisão tornou-se um instrumento promissor para a sociedade capitalista


alcançar os propósitos do capital. A indústria cultural tem contribuído para padronizar e
uniformizar os gostos, as preferências, as necessidades e o pensamento das crianças e
jovens, pois ela se encarrega de difundir os valores éticos e estéticos que gera uma falsa
participação na experiência social, mas a decisão sobre preferências e gostos de
consumo não é da própria criança.
Para Wrigth (1968), um dos fatores que atribui tal poder à televisão é que “de
todos os meios de comunicação de massa, a televisão é mais fascinante. Fabrica sonhos,
destrói mitos, adultiza as crianças, infantiliza os adultos, invade nossa intimidade […]”
(p. 142). Seus recursos persuasivos possuem efeitos socializadores que interferem na
percepção de mundo. A maioria dos pais coloca os filhos diante da TV para entreter a
criança. Desde a tenra idade ela começa a gostar de desenhos animados, filmes e depois
novelas. Assim, é produzida a naturalização de uma realidade vista na televisão.
Outro fator que deve ser considerado no que se refere à interferência da televisão
na formação e no desenvolvimento tanto do adulto quanto da criança, é a projeção:
as telecomunicações (digam elas respeito ao real ou ao imaginário) empobrecem
as comunicações concretas do homem com seu meio. E finalmente, não é
apenas a comunicação, é nossa própria presença perante nós mesmos que se
diluiria, em virtude de ser sempre mobilizada para outro lugar.[...] o mundo
imaginário é assim consumido e, num mecanismo psicológico de projeção-
identificação, ocorre a ‘mágica do sósia’ (MORIN, 1997, p.79-80)

Dessa forma, os produtos culturais, especialmente veiculados pela televisão,


geram um processo de socialização com fortes apelos emocionais. As imagens
televisivas ativam as emoções, orientam condutas e indicam uma direção para a ação.
Essa ocorrência força o indivíduo a perder ou a não formar uma imagem de si mesmo,
levando-o, assim, ao caminho da alienação. Nesse sentido, Rezende (1993, p. 58) afirma
que:

A telecomunicação envolve, entretém, mantém o espectador dentro dele. A vida


cotidiana, o trabalho, o dia cansativo, as vivências próprias, enfim, a

1061
personalidade do telespectador refugia-se numa instância nebulosa; é como que
guardada entre parênteses. Magicamente imerso na comunhão estética...
Fundidos nessa nova relação, é possível ao telespectador, a liberdade psíquica
para exorcizar seus demônios aprisionados, realizar os sonhos mais secretos, as
necessidades proibidas, ou simplesmente, evadir-se para lugares aprazíveis, ter a
aparência física desejada, ou status, bens e dinheiro de que precisa.

Nesse contexto, a TV apresenta-se como instrumento de poder na formação de


opiniões e na propagação de valores, que orienta os comportamentos e condutas sociais.
Nas palavras de Rezende (1993) “a TV vende todos os valores, de produtos de limpeza
a idéias, sentimentos e atitudes” (p. 60).
A Teoria Crítica demonstra como atua os meios de comunicação para converter
os indivíduos em simples compradores e consumidores dos produtos culturais. Esses
meios servem, em primeira mão, aos interesses dos mais fortes economicamente,
veiculam imagens e propostas de condutas com fins comerciais. Essa exploração
comercial e cultural, a que os indivíduos estão subjugados, Adorno e Horkheimer
(1985) denomina de Indústria Cultural. Segundo esses autores, essa de exploração não
apenas configura os desejos, mas também difunde valores éticos e estéticos, gerando
uma falsa experiência social nos homens na medida que não decidem sobre seus
valores, seus gostos e suas preferências. Nessa perspectiva, é pressuposto que a
Indústria Cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes
de decidir conscientemente.
A televisão está intrinsecamente ligada aos elementos do mundo industrial e
exerce um papel específico de difundir a ideologia dominante. Dos conteúdos
veiculados, são poucos os que efetivamente contribuem na formação do pensamento
crítico. Esses conteúdos, frutos da sociedade mercantilista, ao invés de gerar
esclarecimento criam obstáculos à formação do indivíduo para a consciência autônoma.
(ADORNO e HORKHEIMER, 1985).
Na perspectiva da Teoria Crítica, a Indústria Cultural é portadora da lógica do
capitalismo com seu ritmo mecanizado e tempo mínimo. A TV é um meio de
comunicação que por um lado, condensa várias dimensões do sistema em seus
programas de consumo rápido, suas novelas e seus noticiários parciais em 24 horas por
dia e, por outro lado, amplia essas informações condensadas a milhares de
telespectadores. Neste trabalho, delimitamos o estudo sobre a atuação da TV e sua
provável interferência na formação e desenvolvimento da criança, com as sugestões de
maneiras de ser e conceber o mundo.

1062
Para a realização da pesquisa empírica, utilizamos uma população de doze
crianças de 7 a 10 anos de idade que freqüenta uma escola pública, sendo três de 1ª
série, três de 2ª, três da 3ª e três da 4ª série do período vespertino. A escolha das
crianças foi feita de maneira aleatória, de acordo com a manifestação da aceitação em
participar da entrevista. Estabelecemos contato prévio com as famílias das crianças para
explicitar o nosso objetivo e solicitar permissão para contato, entrevistas e observações.
Os resultados das entrevistas indicam que as crianças assistem regularmente aos
programas televisivos. No horário da manhã, elas assistem aos desenhos animados e no
horário da noite, elas assistem às novelas ou aos filmes, geralmente acompanhados
pelos pais. Das crianças entrevistadas, somente uma possui um aparelho de TV no
quarto, tendo a liberdade de assistir filmes durante a madrugada.
Constatamos em nossos entrevistados um alto consumo de mídia, o que favorece
a formação da criança consumidora. As imagens rápidas e fragmentadas que passam
insistentemente pelos olhos dela, formam determinadas capacidades de atenção e
memória teleguiadas que são interiorizadas de forma mecânica. Dessa maneira, a
televisão auxilia na formação de consumidores infantis e atua em seus gostos e
preferências. As entrevistas indicam que muitas crianças assistem as programações com
a presença dos pais, mas sem a participação efetiva deles, portanto, elas ficam a mercê
de suas próprias conclusões, ou, o que é pior, das conclusões prontas dadas pelas
programações televisivas.
Numa perspectiva psicanalítica do exame da atuação da TV sobre a criança,
Soifer (1992) faz uma análise sobre o prejuízo causado pela televisão no processo de
estruturação da vida mental. Ela afirma que as crianças são mais vulneráveis as
influências desse meio de comunicação.
A televisão requer, em primeiro lugar, a atenção visual e, associada a
esta, a auditiva, de modo tão intenso que ambas encobrem os estímulos
percebidos pelos outros sentidos, incluindo o proprioceptivo (orgânico).
Isto torna-se possível devido a ação de um mecanismo denominado
identificação projetiva, que nos permite imaginar que entramos no outro
e sentimos o mesmo que ele, ao mesmo tempo nos induzindo a crer que
somos esse outro (SOIFER, 1992, p.13).

Essa possibilidade de identificação com o outro fascina a criança que nega a si


mesma realizar suas próprias experiências e, conseqüentemente, torna-se vulnerável à
televisão. “É por meio dessa magia, desse fantástico que a criança elabora suas perdas,
materializa seus desejos, compartilha sua vida, anima, muda de tamanho, liberta-se da

1063
gravidade, fica invisível e assim, comanda o universo por meio de sua onipotência”
(PACHECO, 1998, p. 34).
Na sociedade brasileira, o aparelho de TV está presente na maioria dos lares, nos
bares, nas salas de espera nos consultórios e nas escolas a qualquer hora do dia, como
meio de informação e de entretenimento. Vivemos em um momento histórico de rápido
crescimento e proliferação dos meios de comunicação de massa nas sociedades
ocidentais, os quais são formas simbólicas mercantilizadas que refletem as experiências
e visões de mundo das pessoas, sendo sempre mediadas pelas instituições e pelos
aparatos técnicos da mídia. Dessa forma, cultura midiática tornou-se acessível à
sociedade que consome os bens culturais produzidos pela mídia. Isso seria a chamada
midiação da cultura. De acordo com Moreira (2003, p. 208), a cultura midiática,
tem a ver com determinada visão de mundo, com valores e
comportamentos, com a absorção de padrões de gosto e de consumo,
com a internalização de ‘imagens de felicidade’ e promessas de
realização para o ser humano, produzidas e disseminadas no capitalismo
avançado por intermédio dos conglomerados empresariais da
comunicação e do entretenimento, e principalmente por meio da
publicidade [...] é a cultura do mercado pensada e produzida para ser
transmitida e consumida sendo a gramática, a lógica própria, a estética e
a forma de incidência e recepção peculiares ao sistema midiático-
cultural.

Um dos espaços da cultura em que se torna mais visível o processo de


construção social de identidades talvez seja o da mídia, e particularmente, o da
propaganda. Vários estudos têm nos mostrado que, na compra de determinados bens,
não são exatamente os objetos o que nos importa, mas a aparência deles, a imagem, a
impressão que eles produzem, a fascinação que provocam seriam mais importantes.
Tudo se passa como se vivêssemos vários momentos de nossa vida em função de gostos
e preferências ilusórias, pela qual o objeto funcionaria como um espelho em que
enxergamos nossos desejos tornados realidade.
Dessa forma, a mídia, associada a poderes econômicos, tem se distinguido não
só no seu papel de deformadora da opinião pública como na própria estruturação e
funcionalidade do aparelho de pensar e da mentalidade social. A televisão, por meio de
suas programações e comerciais, utiliza-se de seu poder de persuasão para incentivar
comportamentos e sugerir valores, atitudes, gostos e preferência, muitas vezes
inalcançáveis para a grande maioria das crianças. Por meio do espetáculo que veicula,
elaborado cuidadosamente com determinado propósito, certas emissoras não medem

1064
esforços para manter os pontos de audiência, os quais, geralmente estão voltados para
atender fins políticos e econômicos.
Há um tipo de propaganda que tende a mecanizar o público, iludir, impor,
persuadir, condicionar e influir nas preferências do consumidor, de tal maneira que ele
pode perder a noção e a seletividade de seus próprios gostos. Esta espécie de indução,
quando incessante e descontrolada, pode trazer inúmeras conseqüências à formação da
criança, já que afeta sua capacidade de escolha, na medida em que impede que elas
decidam conscientemente sobre seus gostos e suas preferências. O espaço interno do
sujeito se torna controlado pelos estímulos externos e se impõe como manifestações da
pessoa.
A mercantilização da produção simbólica via Indústria Cultural tem forte
influência no processo de padronização dos indivíduos, que é a eliminação da diferença
e a uniformização das pessoas. Assim, a Indústria Cultural é a ferramenta utilizada para
se alcançar esta padronização. Muitos assistem aos mesmos programas, consumem os
mesmos produtos, fazem uso dos mesmos modelos de roupas. Há também uma
padronização do homem no aspecto do mundo interno, porque até a forma de pensar,
sentir, desejar, vivenciar, relacionar-se segue aos padrões, ou seja, até o âmago da vida
interna está sofrendo a influência opressora da mídia. Todos seguem sem perceber o que
ela nos impõe e faz parecer natural as tentativas de padronizar, com a eliminação da
diferença na forma de pensar, de sentir e de agir.

Na verdade, a ideologia encontra-se tão ‘colada’ à realidade que


qualquer comportamento que não se atrele ao atendimento das
necessidades de consumo é rotulado como desviante. Não obstante,
tem-se a impressão de que não há qualquer tipo de padronização ou
uniformização do produto. Parece que vivenciamos uma identidade
‘única’, já que nos diferenciamos de todos os outros que não usam
nossas marcas socializadoras, tais como as marcas dos tênis e grifes de
roupas famosas (ZUIN, 2001, P. 12).

Para Burgelin (1970, p.191), “a televisão pode levar a criança a preferir uma
visão editada da vida à própria vida. Basta-lhe ligar um botão para que venha ao seu
encontro sem o menor esforço, espetáculos, pessoas, acontecimentos”. O poder de
persuasão da televisão retira a criança da biblioteca, do parque, do clube e leva-a a
interessar-se menos pelo meio social, pelo coletivo, e, também menos por si mesma.
Desta forma, a criança torna-se uma grande consumidora de televisão que lhe
proporciona gratificações e, assim, restringe ainda mais os seus contatos com o mundo.

1065
Os estudos sobre a relação da televisão com a criança apontam aspectos
negativos provocados pelo papel da ideologia que favorece a alienação, os estereótipos
e a violência. Todavia, há pesquisas como as de Giroux (1995, 1999), que relativizam
esse papel e mostram que a formação da criança não depende apenas da televisão.
Afinal, antes da TV elas encontram-se sob uma influência também importante, que é
aquela trazida pelos próprios pais e pela educação emancipadora que propõe um
questionamento e uma auto-reflexão crítica das imagens e mensagens.
Nesse sentido, a criança não é descrita em sua posição de total passividade
diante da TV, pois há outros meios que interferem na formação e no desenvolvimento
da criança, como por exemplo, a educação escolar e familiar. Ainda assim consideramos
necessário este estudo para compreender como os conteúdos desse meio de
comunicação de massa, podem interferir nas manifestações infantis.
A Teoria Crítica analisa a manipulação exercida pela televisão sobre o indivíduo,
de acordo com os interesses da classe dominante, enquanto outras pesquisas indicam a
família, a escola e a igreja, também como responsáveis pela formação da identidade.
Reconhecendo a complexidade deste tema sobre o qual as pesquisas o examinam
em diferentes perspectivas, não se pode atribuir à TV, o poder de fragmentar a
consciência humana, desconsiderando outras culturas ou organizações nas quais o
indivíduo encontra-se inserido, e que também possuem potencial de interferência na
constituição da individualidade. Há outras dimensões de suas vidas (família, escola,
colegas, brincadeiras) que criam obstáculos à exploração e à submissão. Entretanto, não
se pode negar, que, em maior ou menor grau, este meio também interfere na
estruturação psíquica da criança e conseqüentemente em algumas de suas formas de ser
e de pensar. A continuidade de nosso estudo requer a análise das manifestações infantis
para verificar a demarcação de gostos e preferências sugeridas pela televisão.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M.. Dialética do esclarecimento: fragmentos


filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
BURGELIN, Olivier. A Comunicação Social. São Paulo: Ed. Livraria Martins Fontes,
1970.
GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas
políticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

1066
GIROUX, H.. Disneyzação da cultura infantil. In: SILVA, T. T. da; MOREIRA, A. F.
(orgs.) Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais.
Petrópolis: Vozes, p.49-81, 1995.
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: Ed.
Forense Universitária, 1997
MOREIRA, Alberto da Silva. Cultura Midiática e Educação infantil. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 24, n. 85, p. 1203-1235, dezembro, 2003.
PACHECO, Elza Dias. O Pica-Pau: Herói ou Vilão? Representação Social da Criança
e Reprodução da Ideologia Dominante. São Paulo: Ed. Loyola, 1985.
PACHECO, E. D. Televisão, criança, imaginário e educação. Campinas: Papirus,
1998.
REZENDE, Ana Lúcia de; REZENDE, Nauro Borges de. A Tevê e a Criança que te
vê. São Paulo: Ed. Cortez, 1993.
SOIFER, R.. A criança e a TV: uma visão psicanalítica. Porto Alegre: Artes médicas,
1975.
WRIGHT, Charles R. Comunicação de Massa: Uma Perspectiva Sociológica. Rio de
Janeiro: Ed. Block, 1968.
ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural.
Cadernos Cedes, ano XXI, N. 54, agosto/2001, p. 9-18.

1067
Subjetividade e contemporaneidade: análise da reificação humana

Luciene Maria Bastos


Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal de Goiás

Tratar da subjetividade na atualidade não é tema fácil, visto a complexidade das


relações que permeiam a vida do indivíduo no atual momento histórico. Momento em que o
capitalismo, como modo de produção e reprodução da vida, se transnacionaliza num processo
de globalização que rompe as barreiras espaço-temporais. A transnacionalização da economia,
advinda da evolução científica e tecnológica, reorienta os modos de agir, de ser e de pensar das
pessoas. Em razão de o capitalismo, em seu movimento de manutenção, precisar,
necessariamente, se difundir na esfera do consumo, este engendra a cultura do consumo – a qual
diz respeito à formação de mentes adaptadas e adaptáveis. O que está em questão é a
solidificação da razão instrumental, a qual, no trajeto do iluminismo, configurava-se como
promessa de esclarecimento, com o fim de “livrar os homens do medo e investi-los na posição
de senhores [...]. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.19). No trajeto da ciência para desencantar o mundo,
livrá-lo do misticismo, o “saber que é poder” não conhece barreiras, se restringe ao método, à
operação, ao procedimento eficaz. A técnica é a essência desse saber, que, sob a máscara do
progresso, se converte em desenvolvimento da maquinaria da dominação.
No atual contexto da civilização burguesa, segundo Horkheimer e Adorno (1985),
a ciência perde sua memória, raiz e sentido, rendendo-se à instrumentalização, isto é, tornou-se
presa do processo global de produção. O pensamento perde seu elemento crítico e se insere num
processo de conciliação com o existente. Nesse sentido, a mídia constitui uma face importante
que atua como elemento formador e conformador das consciências dos indivíduos. Mesmo o
indivíduo não sendo um espectador inerte e passivo, não se pode descartar a importância da
mídia no processo de elaboração da consciência social. Nesse processo, a linguagem perde seu
teor de negação, de resistência, “não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar
com as direções dominantes do pensamento” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.12). A
comunicação, a informação e a interpretação ocorrem em nível de imagem, cultiva-se a cultura
da imagem, perde-se a palavra e seu sentido, os conceitos esvaziam-se.

Os conceitos foram “aerodinamizados”, racionalizados, tornaram-se


instrumentos de economia de mão-de-obra. É como se o próprio pensamento
tivesse se reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa
estrito, em suma, tivesse se tornado uma parte e uma parcela da produção.
[...]. Quanto mais as idéias se tornam automáticas, instrumentalizadas, menos
alguém vê nelas algum pensamento com um significado próprio. São

1068
consideradas como coisas , máquinas. A linguagem tornou-se apenas mais
um instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade moderna
(HORKHEIMER, 2000, p.30).

A subjetividade, enquanto interioridade da consciência que se constitui na dialética


de oposição entre homem e mundo, se insere no movimento da cultura, a qual traz em si a
humanização do homem. É pela cultura que o homem se faz homem, o pensamento pensa a si
mesmo e avança no movimento histórico. O mundo enquanto “dado”, exterior que nega e opõe-
se ao homem, torna-se afirmação deste pela cultura. Assim, a subjetividade e a objetividade não
são receptáculos vazios que recebem tal ou qual conteúdo, antes, são dimensões que se
constituem numa relação de intrínseca correspondência entre indivíduo e sociedade.
Marx (1993) afirma que, apesar da vida individual ter caráter de particularidade,
esta e a vida genérica não são diversas ou opostas. Inversamente, representam uma totalidade;
“e, precisamente a sua particularidade faz dele um indivíduo e uma comunidade” (MARX,
1993, p.95). São as particularidades, ou as multiplicidades, que constituem a unidade, isto é, a
individualidade do homem.
A busca de compreensão dos processos que constituem a subjetividade na
contemporaneidade exige, antes, a compreensão deste contexto histórico, momento no qual
relações, estruturas e experiências adquirem novas conotações. Neste sentido, a afirmação de
Berman (1995) sobre a modernidade se faz fecunda e verdadeira também na
contemporaneidade:

Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder,


alegria, crescimento, autotransformação das coisas ao redor – mas ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que
somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse
sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é
uma unidade de desunidade: ela despeja a todos num turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.
Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o
que é sólido desmancha no ar”(BERMAN, 1995, p.15).

Notadamente vive-se num universo de desintegração e mudança, de ambigüidades


paradoxais. Momento em que a novidade, o novo é equivalente à qualidade, à beleza, à verdade.
A história é significada pelo presente. O passado remete ao velho, o ultrapassado, o que não tem
mais valor, caracterizando um completo declínio dos valores e da tradição. O advento da
modernidade traz em seu bojo a promessa de constituição de um sujeito autônomo, emancipado.
No entanto, o que se efetiva é um processo de subjetivação do sujeito, tornando-o uma categoria
abstrata e volátil. O fato de o sujeito ser um meio esvazia-o de conteúdo.

1069
A total transformação de todos os domínios do ser à condição de meios leva à
liquidação do sujeito que presumivelmente deveria usá-los. Isso dá à
moderna sociedade industrialista o seu aspecto niilista. A subjetivação, que
exalta o sujeito, também o condena. O ser humano, no processo de sua
emancipação, compartilha o destino do resto do mundo. A dominação da
natureza envolve a dominação do homem (HORKHEIMER, 2000, p.98).

O processo de dominação da natureza é intrincado da subjugação da natureza no


interior do próprio indivíduo. Respeitante a essa relação, o trabalho é um ato e uma condição
humana, representa a possibilidade de produção da humanidade, uma vez que media a
constituição da realidade material e espiritual em que o homem vive. Nesse sentido, o trabalho é
manifestação da subjetividade do homem no mundo. Todavia, as transformações ocorridas no
engendramento e consolidação da modernidade, configuram uma nova forma de instituir a vida,
o homem e a sociedade. O trabalho cindiu-se em trabalho manual e intelectual, o que retira do
homem a possibilidade de elaborar sua prática, seu fazer. Semelhante divisão se expressa num
parcelamento das funções visando o aceleramento da produção exigido pelo desenvolvimento
industrial. Para Horkheimer e Adorno (1985), o trabalho, na economia burguesa, está
mediatizado pelo princípio do eu, um eu que se autoaliena enquanto seu processo de
autoconservação se subordina à aparelhagem técnica.
Marx (1993), demonstrara que a expansão do capitalismo levou o homem a um
processo de alienação, no qual este perde o controle sobre o produto de seu trabalho, assim
como sobre a produção, o que se amplia para uma relação de alienação com seu semelhante e,
igualmente, de si mesmo. A alienação do trabalho concorre, substancialmente, para que o
homem constitua-se como ser particular. Cabe salientar que a subjetividade tem como elemento
basilar o processo de individuação.
Sob esse aspecto, Horkheimer e Adorno (1973), afirmam que o processo de
individuação pressupõe a atividade do indivíduo com seus pares, ou seja, a socialização. A vida
humana é essencialmente convivência, o homem é para os outros o que são seus semelhantes
para ele. “Mesmo antes de ser o indivíduo o homem é um de seus semelhantes, relaciona-se com
os outros antes de referir explicitamente ao eu; é um momento das relações em que vive, antes
de poder chegar, finalmente, à autodeterminação”(HORKHEIMER; ADORNO,1973, p.47). O
que significa e justifica a definição aristotélica do homem como zóon politikón,1 pois este só se
constitui em sua correlação vital com outras pessoas, o que lhe infunde caráter social.
Entretanto, com a difusão do princípio capitalista de concorrência e a revolução
técnica, a sociedade burguesa transformou o zóon politikón em homo oeconomicus, ao qual é
exigida a luta por seus interesses de lucro, sem preocupar-se com o bem da coletividade.

1
Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos e Política.

1070
O meio ideal da individuação, a Arte, a Religião, a Ciência, retrai-se e
depaupera-se como posse privada de alguns indivíduos, cuja subsistência só
ocasionalmente é garantida pela sociedade. A sociedade, que estimulou o
desenvolvimento do individuo, desenvolve-se agora, ela própria afastando de
si o indivíduo, a quem destronou (HORKHEIMER; ADORNO, 1973,
p.55).

A socialização historicamente constituída na sociedade burguesa capitalista


apresenta-se mais como individualização do que individuação. O indivíduo torna-se cada vez
mais um átomo isolado, que leva uma existência superficial, num processo que Horkheimer e
Adorno (1973) denominam “atomização”. Processo promovido pelo progresso da racionalidade
técnica visando a dominação do homem e da natureza. O que está em relevo é a transformação
da razão, como emancipação, em instrumento de poder e dominação, em razão subjetiva.
Segundo Horkheimer (2000), a razão subjetiva está ligada ao funcionamento
abstrato do pensamento, diz respeito à adequação de procedimentos objetivos para servirem aos
interesses do sujeito quanto à autopreservação. Relaciona-se essencialmente com meios e fins.
Deve ser enfatizado que a razão objetiva era concebida não só em sua forma subjetiva, como
força da mente individual, mas era concernente, também, ao mundo objetivo, ou seja, às
relações entre os seres humanos e destes com a natureza. Relacionava-se, fundamentalmente,
aos propósitos da vida humana com a totalidade.
Mas quando a razão passa a negar a objetividade, a vê-la apenas em sua aparência,
esta se formaliza, isto é, torna-se adequação à forma procedimental. “Tendo cedido em sua
autonomia, a razão tornou-se um instrumento” (HORKHEIMER, 2000, p.29). A razão
solidifica-se como adequação do comportamento humano aos padrões socialmente
reconhecidos, o que, por sua vez, conduz ao conformismo com a realidade exatamente como ela
é. As funções da razão passam a se preenchidas pelos mecanismos de controle do sistema
econômico, cuja primazia é o individualismo liberal.
Na emergência do indivíduo burguês, o individualismo figurava como um princípio
constitutivo. A idéia de interesse pessoal conquistou gradativamente o primeiro plano e
finalmente suprimiu os outros princípios fundamentais à sociedade, como ética, moral,
solidariedade, dentre outros. Há uma sobreposição do particular ao universal. Historicamente, a
ação do homem em prol de seus interesses à custa de gratificações efêmeras, torna-se quase uma
naturalização. De acordo com Horkheimer (2000), a individualidade é prejudicada quando cada
um se isola em seus próprios problemas e interesses. “À medida que o homem comum se retira
da participação nos assuntos políticos, a sociedade tende a regredir à lei da selva, que esmaga
todos os vestígios da individualidade”(p.137). O individualismo é um forte elemento de coesão
da racionalidade instrumental.

1071
Tal racionalidade é mantida por um grande aparato ideológico que materializa a
ilusão de que os problemas sociais serão resolvidos pelo desenvolvimento científico-
tecnológico. O homem vive ainda sob a promessa iluminista de que o progresso dos meios
técnicos trará a felicidade. Para Adorno (1993), a ideologia não se reduz a um sistema de idéias
ou representações culturais, não é uma característica de tal ou qual consciência social, mas, de
forma específica, é um processo responsável pela formação da consciência social. A ideologia
apresenta a experiência social como realidade imediata, quando, na verdade, são experiências
mediadas por um processo de produção. A eficácia da ideologia reside justamente em sua
capacidade em vedar, camuflar a atividade social mediante o impedimento da reflexão sobre o
modo como a realidade fora produzida. A ideologia é uma aparência socialmente necessária
para o capitalismo. Assim, o princípio da imediatez é garantido pela característica imanente do
capitalismo, a saber, a igualdade dos valores de troca corporificados nas mercadorias.
Marx (1983), demonstrara que a especificidade do processo de produção e
reprodução capitalista origina-se de sua característica em converter força de trabalho, o que gera
valor, em mercadoria. O caráter de mercadoria que o produto do trabalho humano adquire no
modo de produção capitalista provém da subordinação do valor de uso ao valor de troca, o que é
inerente ao fetiche. À medida que a mercadoria não revela que, na verdade, representa uma
objetivação humana e, ao mesmo tempo, “vende” uma ilusão, uma promessa de felicidade, ela
se torna fetiche. É este processo que a ideologia esconde, criando a ilusão de que no mercado há
a livre troca de equivalentes. Em conseqüência, a ideologia obscurece a compreensão das reais
condições da existência social, isto é, vela a possibilidade de consciência da exploração e da
dominação. Cria uma aparência ilusória.
Semelhante aparência é reafirmada na atualidade pela racionalidade tecnológica,
caracterizando a subordinação do humano à técnica. A conseqüência advinda do domínio da
técnica sobre o humano na dimensão cultural – sem perder de vista que é por meio da cultura
que o humano adquire significado, abarcando o que o homem foi, o que é, e o seu vir a ser
histórico – é que a cultura passa a se caracterizar pela reprodução e pela homogeneização. A
cultura é metamorfoseada em negotium. Em virtude de a cultura ser um negócio, com fins
comerciais realizados por meio de uma sistemática e programada exploração de bens
considerados culturais, é engendrado o que Horkheimer e Adorno denominam “indústria
cultural”. Esta traz em seu bojo toda a ortodoxia do capitalismo e nele exerce um papel
específico, a saber, o de portadora da ideologia dominante.
Aliada à ideologia capitalista, a qual significa o todo do sistema capitalista, a
indústria cultural contribui de forma eficaz para a falsificação e reificação das relações entre os
homens e destes com a natureza. É necessário sublinhar que o iluminismo objetivava justamente

1072
o progresso da relação homem-homem e homem-natureza via ciência. Entretanto, tal progresso
transformou-se em instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento
da consciência das massas, uma vez que, “através da ideologia da indústria cultural o
conformismo substitui a consciência”(ADORNO, 1993, p.93).
Tolhendo a consciência das massas a indústria cultural cria condições favoráveis à
implantação e manutenção do status quo. A indústria cultural veicula, enfaticamente, ilusões de
uma sociedade justa, democrática, livre, ao mesmo tempo em que as possibilidades de
realização desses ideais são suprimidas pela negação das condições sociais que geram a
opressão e a injustiça. A defesa de determinado tipo de democracia, liberdade e cidadania,
veiculada a aspectos econômicos, não permite que a consciência do indivíduo perceba que esta
não é a liberdade, a democracia e a cidadania ideais.
Um dos elementos fundamentais que dificultam a resistência ao processo de
massificação e reificação da consciência do indivíduo é a extirpação do processo de
individuação, fator que consubstancializa a fragilidade da subjetividade, uma vez que a
individuação é substituída pela imitação imposta pela sociedade administrada.

Nos rostos dos heróis do cinema ou das pessoas privadas, confeccionadas


segundo o modelo das capas de revistas, dissipa-se uma aparência na qual, de
resto, ninguém mais acredita, e o amor por esses modelos de heróis nutre-se
da secreta satisfação de estar afinal dispensado do esforço da individuação
pelo esforço (mais penoso, é verdade) da imitação (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p.146).

Na imitação, na mimese, dos personagens fornecidos pela indústria cultural, a vida


interior transforma-se num aparelho eficiente que corresponde a impulsos instintivos segundo o
modelo apresentado. As mais íntimas reações das pessoas estão profundamente reificadas para
elas próprias, visto que se identificam quase absolutamente com as mercadorias culturais.
Consolida-se um sujeito da razão individual que tende a tornar-se “um ego
encolhido, cativo do presente evanescente, esquecendo o uso das funções intelectuais pelas
quais outrora era capaz de transcender a sua rela posição na realidade”(HORKHEIMER, 2000,
p.142). As reações do ego primam pela irreflexão e o automatismo, os processos conscientes são
substituídos por reações imediatas, quase físicas. O que subsidia a conversão da objetividade
aparente em subjetividade verdadeira, na qual ocorre uma identificação irracional que integra
todos os indivíduos ao sistema. Cada eu individual se equaliza (roupa, cabelo, programas,
diversão, etc.)

As particularidades do eu são mercadorias monopolizadas e socialmente


condicionadas, que se fazem passar por algo natural. Elas se reduzem ao
bigode, ao sotaque francês [...] são como impressões digitais em cédulas de
identidade que, não fosse por elas, seriam rigorosamente iguais [...]
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.145).

1073
A homogeneização causada pela indústria cultural hipostasia os indivíduos, que já
não são mais indivíduos, “mas sim meras encruzilhadas das tendências do
universal”(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.145), solidificando uma pseudo-individuação
que se caracteriza, fundamentalmente, pela elevação do individualismo à posição de per se.
Segundo Horkheimer (2000), para a efetivação deste sujeito individual o antigo
processo de aprendizagem mimética2 ganha nova conotação, engendrando a ilusão e o
ofuscamento da realidade.

Assim como a criança repete as palavras da mãe, e os mais jovens repetem as


maneiras grosseiras dos mais velhos que os submetem, assim também o auto-
falante gigantesco da cultura industrial, berrando através da recreação
comercializada e dos anúncios populares – que cada vez menos se distinguem
uns dos outro – reduplicam infinitamente a superfície da realidade. Todos os
engenhosos artifícios da indústria da diversão reproduzem continuamente
cenas banais da vida, que são ilusórias, contudo, pois a exatidão técnica da
reprodução mascara a falsificação do conteúdo ideológico ou a arbitrariedade
da introdução de tal conteúdo. Essa reprodução nada tem em comum com a
grande arte realista, que retrata a realidade a fim de julgá-la. A moderna
cultura de massas, embora sugando livremente cediços valores culturais,
glorifica o mundo como ele é. Os filmes, o rádio, as biografias e os romances
populares têm todos o mesmo refrão: Esta é nossa trilha sonora, a rota do que
é grande e do que pretende ser grande – esta é a realidade como ela é, e como
deve ser, e será (HORKHEIMER, 2000, p.143-4).

Para o indivíduo hipostasiado, de pensamento formalizado, a realidade converte-se


em aparência e a aparência em realidade. As pessoas aceitam modelos antecipadamente
preparados e fornecidos pela agencias de cultura de massa como se estes fossem naturais. Em
conseqüência, o indivíduo, em seu processo de socialização imitativa, adapta-se aos grupos no
poder de forma alienada e irrefletida, tornando-se simplesmente mais um membro do sistema
econômico.
A identificação com os produtos da indústria cultural proporciona a ilusão de
felicidade. “Ora, essa ilusão pressupõe, justamente, a atomização, a alienação e a impotência
individual”(HORKHEIMER;ADORNO, 1973, p.87). A reificação da subjetividade é
engendrada pela alienação do homem de sua humanidade, em sua constituição, pela
transformação da individuação em individualização e a impotência individual, isto é, a
fragilidade do ego em enfrentar as tensões e contradições que permeiam a realidade. Sem a
força de uma coesão interna, a subjetividade é constituída pela relação de reificação entre o
homem e o mundo, em que o primeiro funda sua existência em suas próprias prerrogativas e
interesses. O indivíduo na contemporaneidade sofre mecanismos que lhe desbasta a consciência
e promovem sua adesão a um estado de máquina, de coisa, de res.

2
Cabe lembrar que o primeiro aprendizado do ser humano ocorre por meio da imitação da mãe e
familiares (por exemplo, falar, andar, comer, etc.).

1074
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

• ADORNO, Theodor W. Sociologia. São Paulo: Ática, 1993.


• BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Mara L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
• HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.
• ___; ADORNO. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
• ___. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix e editora da USP, 1973.
• MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1993.
• ___. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os
pensadores).

1075
Dialogando com a televisão e o vídeo em cursos de formação de licenciados em História

Maria de Fátima Caridade da Silva


Rio de Janeiro/ RJ

1- Por que refletir sobre este tema?


Muito se tem discutido a cerca da inserção de recursos tecnológicos no ambiente
escolar, fato justificável pela sua forte presença no nosso cotidiano, tornando-se necessário o
uso destes recursos pela escola, trazendo mudanças significativas para a educação,
aproximando-a do contexto global. Tais recursos podem favorecer o aprendizado, a construção
dos processos cognitivos, apreensões e percepções do mundo, vindo dessa forma incentivar o
ensino e promover a aprendizagem tanto de alunos como de professores. Segundo Stahl (1997)
os sistemas educacionais podem ser potencialmente afetados pelas tecnologias, assim como o
processo de ensino-aprendizagem, as habilidades de pensamento e os papéis de professores e
alunos. Mason (citado por Stahl, 1997, p. 294) menciona três impactos da presença da
informação e da tecnologia na educação: abre espaços para novas estratégias de pesquisa, a
aprendizagem sobre tecnologia deve ser integrada ao currículo e o uso da tecnologia para
aprender demanda novas habilidades cognitivas.
Sabe-se que a fala, a escrita e o texto impresso preservam sua importância no processo
de construção do ser humano, porém, o computador, o vídeo, a TV engajam os alunos pela
proximidade com que são usados no dia-a-dia, propiciando uma nova perspectiva de trabalhar
os conteúdos, modificando de forma significativa o espaço da sala de aula. Sampaio e Leite
(2003) argumentam sobre a importância da apropriação dessas tecnologias pela escola,
afirmando que
[...] cercados que estamos pelas tecnologias e pelas mudanças que elas acarretam no
mundo, precisamos pensar em uma escola que forme cidadãos capazes de lidar com
o avanço tecnológico, participando dele e de suas conseqüências. Esta capacidade se
forja não só através do conhecimento das tecnologias existentes, mas também, e
talvez principalmente, através do contato com elas e da análise crítica de sua
utilização e de suas linguagens. (p. 15)

As autoras detectam que a escola enfrenta um novo desafio: além da necessidade de


superar o analfabetismo da língua, apresentando pelos alunos, há necessidade de superar o
analfabetismo tecnológico do professor, um passo importante na transformação da visão
tradicional de ensino que se constituiu no paradigma dominante.
Embora a tecnologia seja um elemento bastante expressivo da cultura atual, ela precisa
ser devidamente compreendida em termos das implicações do seu uso no processo de ensino e
aprendizagem. Esta compreensão é que permite ao professor integrá-la à prática pedagógica,
sabendo que ela não resolve todos os problemas da educação, uma vez que a sua inclusão não

1076
significa necessariamente mudança. Apenas incluir a tecnologia na escola não significa que
haverá aprendizagem. É a mediação pedagógica do professor que efetiva a construção do
conhecimento, com o uso da tecnologia, ou não.
Diante de uma realidade tão complexa, esta pesquisa, inserida na moderna sociedade
tecnológica, propôs-se o desenvolvimento de um estudo sobre o uso da televisão e do vídeo em
cursos de formação de professores de História, ou seja, investigar se os professores desses
cursos oferecem aos seus alunos, futuros professores, oportunidade de alfabetização tecnológica
(Sampaio e Leite, 2003) em relação à televisão e ao vídeo. Para atingir este objetivo, buscou-se
responder as seguintes questões de estudo:
1- Qual o papel pedagógico da TV e do vídeo na sociedade atual?
2- Como se dá o processo de alfabetização tecnológica do professor quanto à TV e vídeo em
cursos de formação de professores?
3- Como os professores desses cursos utilizam a TV e o vídeo nas suas práticas pedagógicas?
4- Como os alunos desses cursos (futuros professores) percebem o seu processo de alfabetização
tecnológica em relação à televisão e ao vídeo?
Pelo que foi exposto, na sociedade atual, torna-se necessário refletir sobre o domínio
das tecnologias e seus usos na escola como integrantes da formação inicial do professor,
garantindo uma base de conhecimentos para a sua atuação na sala de aula. Mais uma vez a
televisão e o vídeo podem apresentar uma possibilidade pedagógica relevante neste contexto.

2- Olhando a formação do professor e sua alfabetização tecnológica


Para Libâneo (2002) o processo de formação de professores deveria englobar as
características que se pretende que os professores desenvolvam em suas aulas: o
socioconstrutivismo, atividades que levem os alunos a estruturar suas idéias, analisar seus
próprios pensamentos, saber expressá-los, resolver problemas, fazer pensar.
Além de se potencializar as competências de pensar, aponta para a necessidade de se
desenvolver a leitura crítica da realidade, associando o movimento do ensino do pensar ao
processo de reflexão dialética de cunho crítico. Indica a necessidade de se formar sujeitos
capazes de um pensar epistêmico com capacidades básicas de instrumentação conceitual, que se
coloquem ativamente diante da realidade, apropriando-se do momento histórico, não apenas
pensando a sua realidade, mas sentindo-se capaz de reagir a ela.
Os professores precisam atuar sobre as gerações que se formam de maneira
significativa e crítica. Para que tal fato se concretize Belloni (1998) aponta para as seguintes
necessidades: em primeiro lugar redefinir o papel do educador, a complexidade de suas tarefas
exige uma formação inicial e continuada totalmente nova. Como formar o professor que a

1077
escola do futuro exige? A redefinição do papel do professor relaciona-se diretamente com a sua
formação. Em segundo lugar encontra-se a comunicação, que é o meio através do qual os seres
humanos constroem os seus saberes, principalmente a cultura.
Belloni (2002) chama a atenção para a necessidade de reflexões sobre a inter-relação
da educação com a comunicação, e que se complexificam com a entrada das tecnologias (p. 32).
Aponta, então, a mídia-educação como condição da educação para a cidadania, considerada
como fundamental para a democratização das oportunidades educacionais e para que o acesso
ao saber se concretize.
Segundo Stahl (1997) as novas tecnologias são um desafio e ao mesmo tempo
provocam um impacto sobre o papel dos professores, embora os cursos de formação de
professor pouco trabalhem as novas tecnologias e seus reflexos na sociedade. Entre as
dificuldades para a inclusão deste aspecto nos currículos dos cursos de formação de professores,
encontram-se o investimento com equipamentos e o fato de que muitos professores não superam
preconceitos e práticas já cristalizadas e que rejeitam a tecnologia. Os cursos devem levar em
consideração o impacto das tecnologias na sociedade e elaborar uma proposta pedagógica que
fundamente a inserção da tecnologia na escola e na prática docente.
Para que o uso da tecnologia se concretize na escola, há necessidade de uma
alfabetização tecnológica. Da leitura de Sampaio e Leite (2003) emerge um conceito de
alfabetização tecnológica que é dinâmico, capaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento
tecnológico e a mutabilidade do mundo em que vivemos. O termo alfabetização tecnológica
engloba três sentidos: interpretação da linguagem e da mensagem, domínio da técnica e crítica à
técnica. Num contexto mais amplo, esta alfabetização faz parte da educação geral do indivíduo e
a escola intervém formando o sujeito reflexivo, capaz de avaliar a validade ou não da
tecnologia; envolve o aproveitamento das novas habilidades mentais desenvolvidas pelas
crianças através de uma abordagem multimídica, cuja linguagem ao ser incorporada possibilita
que a escola diminua a distância entre ela e os jovens; indica que há necessidade de trabalhar
criticamente as informações e os valores que são transmitidos pelas tecnologias.
A preocupação com a formação do professor revela que incluir a alfabetização
tecnológica no currículo é de grande importância, embora a forma como se dê esta inclusão
deva ser avaliada. Apenas aulas teóricas não parecem ser suficientes para desenvolver o
conceito, assim como não parecem ser suficientes para fazer com que o professor incorpore o
uso da tecnologia na sua prática pedagógica. Como muitos professores ainda não se
conscientizaram da necessidade de formação continuada, a formação inicial deveria garantir,
segundo as autoras, uma base mínima de conhecimentos que possibilite ao professor fazer uma
análise crítica da sociedade; a formação de competências técnicas que o permitam compreender

1078
e organizar a lógica através da qual seu aluno estrutura o seu pensamento. A sociedade
tecnológica firma-se como realidade, tornando o conceito de alfabetização tecnológica uma
necessidade, apontando para a sua inclusão na formação do professor, visando o uso crítico e
autônomo da tecnologia, atendendo aos interesses das classes populares.
A tecnologia deve ser usada para uma ação transformadora da sala de aula: o
professor deve utilizá-la criticamente em situações criadas a partir da realidade do aluno,
praticando novas propostas pedagógicas na construção do conhecimento, objetivando a atuação
crítica e reflexiva do aluno sobre a realidade.

3- Pensando a TV e o vídeo na construção do conhecimento


Sendo a sociedade contemporânea caracterizada pela multiplicidade de linguagens e
pela forte influência dos meios, mediadores entre a realidade e as pessoas, não se justifica mais
que a educação se limite a alfabetizar para o uso da palavra escrita, esquecendo-se da educação
para a leitura da imagem, sendo que ambos são instrumentos de comunicação importantes. As
linguagens do cinema, da TV e do vídeo são desdobramentos de formas de olhar e registrar,
fazendo-se necessário uma leitura crítica desses meios de comunicação.
Por quê integrar o vídeo e a TV ao ensino na busca de construção de conhecimento?
Segundo David Korten, citado por Dowbor (2001), “Nas sociedades modernas, pode-se
considerar que a televisão se tornou a instituição de reprodução cultural mais importante. As
nossas escolas são provavelmente a segunda mais importante” (p. 73). Como um importante
instrumento de socialização, com grande poder de penetração e de fascinação, ocupa muitas
horas da vida cotidiana das pessoas.
Para Belloni (2001), dentre as mídias, a televisão apresenta-se como uma presença
constante e aparentemente gratificante para os jovens, o que confirma o seu importante papel
como socializadora das novas gerações, constituindo-se num poderoso fator de reprodução
social e num mecanismo eficaz de controle. Do ponto de vista da autora, a escola também é uma
importante instituição que socializa, no entanto, apesar de já se deparar com a tecnologia do
computador, com suas novas linguagens e potencial de interatividade, a escola ainda não
apreendeu os novos modos de aprender dos educandos e que foram trazidos pela televisão, que
também detém um importante papel como fornecedora de significações como mitos, símbolos e
representações através de imagens irreais.
Belloni (2001) aponta a televisão como transmissora do saber acumulado e de
informações sobre a atualidade, representações do mundo e regras de integração social. As
crianças se apropriam e reelaboram essas significações “a partir de suas experiências e
integram-se ao mundo vivido no decorrer de novas experiências” (p. 34). Destaca o vídeo como

1079
“a mídia mais freqüentada e que transformou a vida cotidiana de muitos povos e certamente o
imaginário infanto-juvenil em escala planetária” (p. 18).
Diante deste amplo leque de novas configurações trazidas pela TV e pelo vídeo que se
refletem na sala de aula, destaca-se o papel do professor, como aquele que deve introduzir,
segundo Belloni (2001, p. 18) tanto “questões éticas (conteúdos e mensagens) quanto aspectos
estéticos (imagens, linguagens, modos de percepção, pensamento e expressão)” realçando-se a
necessidade de alfabetização tecnológica, neste caso, para uso específico de televisão e do
vídeo. Percebemos, assim a necessidade de incluir a alfabetização tecnológica do professor na
formação de professores e na formação continuada, sendo extensiva aos alunos e demais
profissionais da educação. Em síntese, o professor é um elemento ativo na prática educativa,
cuja dinâmica poderá integrar e interligar a escola à realidade dos alunos.

4- A realização da pesquisa
Devido a significância social dos cursos de formação de professores e a importância
da introdução do vídeo/televisão na prática pedagógica dos professores para que os seus alunos,
futuros professores, também sejam capazes de fazer o mesmo em suas salas de aula realizando
uma prática pedagógica condizente com a sociedade moderna, escolheu-se o curso de história
de três universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro que possuem licenciatura em
História para o desenvolvimento desta pesquisa. Duas são federais e uma estadual e estão
localizadas na área metropolitana do estado do Rio de Janeiro, a saber: Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (unidade de São Gonçalo), Universidade Federal Fluminense e Universidade
Federal Rio de Janeiro.
Em relação à metodologia adotada, esta pesquisa, apresenta natureza qualitativa, por
serem o seu processo e significado os focos principais da abordagem. Apresenta ainda caráter
descritivo e cunho exploratório por buscar o entendimento de um fenômeno. Segundo Ledy e
Ormrod (1985), a pesquisa descritiva envolve a identificação das características de um
fenômeno observado ou a exploração de possíveis correlações entre dois ou mais fenômenos. A
pesquisa descritiva sempre examina a situação como ela é. Não envolve mudar a situação
investigada, nem busca detectar relações de causa e efeito.
Foram utilizados como instrumentos da coleta de dados o questionário e entrevistas
semi-estruturadas. Na elaboração do questionário, o objetivo da pesquisa foi traduzido na forma
de questões abertas e fechadas com o apoio da literatura revista.
O questionário foi aplicado aos alunos e as entrevistas a quatro professores de prática
de ensino das universidades pesquisadas. Os 50 alunos escolhidos estavam matriculados no
curso de História no ano de 2004, e cursavam as disciplinas pedagógicas. Teoricamente estavam

1080
em melhores condições para responder às questões da pesquisa, por possuírem maior vivência
com os recursos tecnológicos da televisão e do vídeo no desenvolvimento do seu curso do que
os alunos dos períodos iniciais.

5- Revelações da pesquisa
Entre as principais conclusões podemos confirmar que há uma forte presença dos
meios de comunicação, principalmente da televisão no cotidiano das pessoas. Este fato justifica
que estas mídias sejam integradas ao processo pedagógico e também, porque são formadoras de
sentidos, transmitindo valores, ideologias e representações das classes dominantes, através de
conteúdos que precisam ser estudados e analisados. Assim, a História se apresenta como uma
disciplina capaz de inserir no seu currículo a televisão e o vídeo trabalhados nesta perspectiva; e
estes aspectos se fazem presentes nas falas dos alunos, conforme revelado nos dados analisados.
Para que as tecnologias possam ser integradas ao ambiente escolar, há necessidade de
que o professor se sinta seguro, dominando aspectos técnicos, didáticos e pedagógicos da
educação, fazendo uma apropriação crítica das mesmas, pois as tecnologias não são neutras,
alteram a forma como pensamos, desenvolvem novas capacidades cognitivas e perceptivas.
Portanto, uma alfabetização tecnológica e crítica dará condições ao futuro professor de fazer
uma análise objetivando quando usar, como usar e por que usar determinada tecnologia. A
análise dos dados indicou que habilitar o licenciando para o uso da televisão e do vídeo não faz
parte do currículo de História (grade curricular), mas se faz presente, mesmo que de maneira
dispersa, da prática dos professores de sala de aula.
Quase todos os licenciandos participantes revelaram que se sentem relativamente
seguros em relação a sua alfabetização tecnológica, pois na sua quase totalidade, farão uso da
televisão e do vídeo em suas futuras práticas pedagógicas. No entanto, muitos demonstram certo
desconforto em usá-las, já que não se sentem totalmente preparados para integrá-las ao seu
trabalho, evidenciando mais uma vez a necessidade de integrar a alfabetização tecnológica à
formação inicial dos professores.
Os licenciandos reconhecem que a quantidade de disciplinas oferecidas e que têm
como objetivo a alfabetização tecnológica em relação ao uso pedagógico da televisão e do vídeo
não é suficiente para que aprendam a utilizar estas duas mídias. Eles deixaram claro que não há
necessidade de incluir uma disciplina obrigatória para ensinar o uso da televisão e do vídeo, mas
recomenda-se uma disciplina específica e optativa que trabalhe com os professores a utilização
dos diferentes recursos tecnológicos nas suas futuras aulas. Sugere-se, então, a criação nas
Faculdades de Educação de uma instância que oportunize a prática da integração da televisão e
do vídeo, e porque não, das demais tecnologias na prática pedagógica.

1081
A pesquisa revelou que as mídias são utilizadas predominantemente como
ferramentas, havendo necessidade de uma educação para as mídias, principalmente no que se
refere ao uso de programas de televisão. A leitura crítica refere-se predominantemente aos
filmes. Recomenda-se que a leitura ideológica de programas de televisão, noticiários e
propagandas também deveriam ser incluídos nestas leituras críticas, assim como a compreensão
dos objetivos em relação ao consumo e a maneira como a persuasão funciona nas mensagens
publicitárias.
Além da alfabetização tecnológica do professor, conforme entendido nesta pesquisa,
constatou-se a necessidade de inclusão da alfabetização crítica da mídia, tanto aos currículos
escolares, como nos currículos da graduação. Recomenda-se, então a introdução de discussões
pertencentes ao campo dos Estudos Culturais na formação inicial de professores, por ser um
campo que tem como um de seus objetivos analisar de que modo os textos culturais afetam o
público e que possibilidades de resistência e luta se encontram presentes nas obras da cultura da
mídia.
A cidadania não se revelou uma preocupação direta na fala dos licenciandos, mas
encontra respaldo nas suas preocupações quando objetivam o desenvolvimento do senso crítico
nos seus futuros alunos. Procurando ensinar as diferentes e complexas leituras dos artefatos
culturais que estas mídias apresentam e ensinando a lidar com as diferentes forças políticas e
sociais que se expressam através delas, a formação para a cidadania se faz presente.
Nesta formação para a cidadania, estaria incluída a melhoria da qualificação dos
alunos e dos professores como telespectadores capacitados para a leitura audiovisual. Na busca
deste caminho, procurou-se, neste estudo, reflexões para que o uso pedagógico da televisão e do
vídeo nos cursos de formação de professores pudesse contribuir para se repensar o ensino,
principalmente o de História, tornando mais significativos para os alunos a aprendizagem de
seus conteúdos. De acordo com Nikitiuk (2001), “a História é, principalmente, o lugar do outro
que se projeta e resiste, o sempre imprevisível” (p. 24). Nosso compromisso, enquanto
professores, deveria objetivar a formação deste ser resistente a todas as tentativas de
homogeneização, cuja humanidade o fez imprevisível, no entanto, crítico e participativo do
mundo em que vive. E este mundo inclui a tecnologia, e inegavelmente a televisão e o vídeo.

1082
Referências Bibliográficas

BELONI, Maria Luiza. Tecnologia e formação de professores: Rumo a uma pedagogia pós-
moderna? In: Revista Educação e Sociedade. Ano XIX/dezembro/1998, nº 65 CEDES, p. 143
162.

________________. Mídia-educação ou comunicação educacional? Campo novo de teoria e de


prática. In: A formação na sociedade do espetáculo. Org. Maria Luiza Belloni. São Paulo:
Edições Loyola, 2002, p. 27 – 45.

________________. O que é mídia-educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

DOWBOR, Ladislau. Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2001.

LEDY, Paul D. Ormrod, Jeanne E. Practical Research. Planning and Design. New Jersey:
Prentice-Hall, 1985.

LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do


pensamento pedagógico brasileiro? In. PIMENTA, Selma Garrido, GHEDIN, Evandro (orgs.).
Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002, p. 53-
79.

NIKITIUKI, Sonia Maria Leite (org.). Repensando o ensino da História. São Paulo, Cortez,
2001.

SAMPAIO, Marisa Narciso; LEITE, Lígia Silva. Alfabetização tecnológica do professor.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

STAHL, M. Formação de professores para uso das novas tecnologias de comunicação e


informação. In: CANDAU, V.M. (Org). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997, p. 292-317

1083
Analise de revistas femininas: algumas mediações da administração da sexualidade pela
indústria cultural.

Maria Flor Conceição


O.; MUNIZ, P.S. ; MAIA, A.F.
UNESP Bauru

Esta pesquisa buscou verificar algumas mediações da administração da sexualidade pela


indústria cultural a partir da teoria crítica, principalmente dos conceitos, desenvolvidos por
Marcuse, de “mais repressão” e “dessublimação repressiva”, que permitem compreender a
relação alienada dos sujeitos com sua sexualidade. Atualmente, a repressão sexual não se
configura como um mero conjunto de proibições, mas como uma aparência de liberdade
traduzida pela ordem “goze”. Uma vez que tal gozo, no entanto, só pode ser obtido por meio de
produtos de consumo ou de técnicas fornecidas pela indústria cultural, a ordem social, por esse
meio, é assim confirmada.
Para explicitar alguns aspectos desta administração da sexualidade são importantes
também, pesquisas empíricas que investiguem o perfil das condutas sexuais propostas pela
indústria cultural. Para tal, foram selecionadas algumas revistas femininas, a fim de analisá-las
sob duas perspectivas, histórica e atual, realizando assim dois recortes.
No primeiro recorte foram analisadas 10 revistas ‘X’1, publicadas entre 1987 e 2004,
numa média de 1,7 anos abrangidos por revista analisada. No segundo recorte foram analisadas
cinco diferentes publicações – doravante designadas A, B, C, D e E2 - todas publicadas no ano
de 2005. Trata-se em todos os casos de revistas de grande circulação voltadas para público
feminino.
A análise focou o conteúdo das matérias que dissessem respeito diretamente à
sexualidade, segundo a classificação da própria revista. A análise do conteúdo resultou em
categorias e subcategorias que procuraram expressar os temas encontrados, fornecendo um

1
Uma revista de origem norte americana, difundida em diversos paises. Este trabalho analisou a versão brasileira, na qual 80% dos
leitores tem idade entre 18 e 49 anos, 90% deles são do sexo feminino e sua tiragem mensal em todo país é de 297.200 exemplares.
No site da revista pode-se encontrar uma definição para a mesma, ressaltando seus objetivos para com seus leitores: “... incentiva e
orienta a mulher na busca pela realização pessoal e profissional. Estimula a ousadia e a coragem para enfrentar os desafios, a busca
pelo prazer sem culpa e a construção da auto-estima e da autoconfiança”.
2
Os perfis das revistas analisadas são: Em “A” 87% dos consumidores são mulheres, 39% das leitoras tem entre 25 e 44 anos e 12%
são da classe A, 40% da B e 31% da C. A tiragem é de 194.490 exemplares. Na revista “B” 86% dos leitores são do sexo feminino,
52% tem entre 18 e 39 anos, 22% são da classe A, 44% da B e 24% da C. A tiragem é de 496.440 exemplares. Na revista “E” 90%
das leitoras são mulheres, 80% tem entre 18 e 49 anos; 23% são da classe A, 47% são da classe B e 23% são da classe C. A tiragem
é de 297.200 exemplares. As revistas “C” e “D” não disponibilizam essas informações, porém no editorial consta que as revistas
são destinadas ao público feminino, e pelo valor de venda constata-se que a revista “C” destina-se principalmente a classe B e “D”
principalmente para classe A/B.

1084
quadro geral do conteúdo presente nas reportagens voltadas para a sexualidade. A seguir foi
feita uma quantificação, contando o número de páginas dedicadas a cada uma das categorias e
subcategorias, visando observar quais temas ou assuntos são predominantes. Outros aspectos
também foram observados: se há modificações no conteúdo das matérias entre a década de 80 e
os dias atuais e diferenças de tratamento sobre o tema segundo o perfil do público visado pelas
revistas.
Os resultados apontaram para a existência de duas grandes categorias: a primeira está
relacionada às finalidades propostas para as condutas sexuais e a segunda categoria está
relacionada aos meios para alcançar os fins propostos.
Após esta primeira categorização, efetuou-se uma subcategorização das reportagens
destinadas aos fins, assim como as destinadas aos meios. Tal subcategorização se mostrou
necessária para um maior detalhamento do trato dado à sexualidade nos dois âmbitos. Na tabela
abaixo, pode-se visualizar com maior clareza as duas grandes categorias e suas respectivas
subcategorias:

Tabela 1: Descrição das categorias e subcategorias.


1- FINS 1.1 – MELHORAR, MANTER OU MUDAR A RELAÇÃO COM O SEXO OPOSTO;
(reportagens que discutem 1.2 – ESCOLHA DO SEXO OPOSTO;
as finalidades da vida
sexual) 1.3 – CONQUISTA DE UM PARCEITO SEXUAL DO SEXO OPOSTO;

2 – MEIOS 2.1 – TÉCNICAS PARA OBTER PRAZER SEXUAL;


(reportagens que propõem 2.2 – TÉCNICAS PARA CONQUISTAR UM PARCEIRO SEXUAL;
modos e técnicas voltados
para a vivência da 2.3 – TÉCNICAS PARA MUDAR, MANTER OU MELHORAR A RELAÇÃO COM O
sexualidade) SEXO OPOSTO;
2.4 – TÉCNICAS PARA CONHECER O SEXO OPOSTO.

As categorias e subcategorias foram elaboradas a partir do conteúdo das reportagens.


Segue abaixo uma tabela (2) ilustrativa com exemplos de títulos de reportagens classificadas em
cada sub-categoria.

Tabela 2: Exemplos de títulos de reportagens


Subcategorias relacionadas aos Fins Exemplos de Reportagens

Melhorar e manter a relação com o parceiro 1- “O Que Mais Surpreende Um Homem No Casamento”
(X, 1992).
2- “Terapia de casais: dois no divâ” (C)
Escolha do sexo oposto 3- “Em defesa do homem mais novo” (X, 1988).
4-“Ponto de vista dele” (X, 2004).
5- “Pare de sonhar. Ache o homem dos seus sonhos” (E).
Conquista do sexo oposto 6- “Os homens revelam: o que me fez marcar um Segundo

1085
encontro” (X, 1989).
7- “Fim de caso: Os dois lados da moeda: Homens e
mulheres mostram visões diferentes sobre o que não deu
certo no amor” (D).
Subcategorias relacionadas aos Meios Exemplos de Reportagens
Técnicas para obter prazer 1- “A emoção do Sexo em lugares surpreendentes” (X,
1996).
2- “SPA dos prazeres proibidos” (E)
Técnicas para conquista de um parceiro 2- “O que um homem realmente espera hoje do primeiro
encontro” (X, 1987).
3- “Fera na paquera” (X, 2004).
4- “Procura-se um amor: tratar pela internet” (A)
Técnicas para conhecer o sexo oposto 5- “Especial Nova Homem” (X, 2004).
6- “Ah, se os homens se abrissem: coisas preciosas que
você precisa saber sobre eles”. (B)

A reportagem “Terapia de casais: Dois no divã” (C) proporciona alguns parâmetros para
uma definição da primeira subcategoria relacionada aos Fins. A reportagem é uma compilação
de casos de casais que procuraram terapia e assim melhoraram a relação. A introdução já é a
conclusão de toda a reportagem e de todas as histórias relatadas: “Terapia de casal geralmente
é a última esperança para resolver uma crise que põe a união em risco. Mas também pode ser
um instrumento para enriquecer a relação em tempos de paz, afinando a convivência”. Tal
trecho deixa explícito o fim visado pela reportagem, qual seja, dar suporte para as leitoras, a fim
de que busquem manter ou melhorar uma união.
A subcategoria Escolha do sexo oposto encontra seu grande referencial na reportagem:
“Pare de sonhar. Ache o homem dos seus sonhos” (E). Esta matéria traz uma discussão sobre os
critérios femininos para a escolha de um parceiro, questionando-os e propondo que as mulheres
adotem novos parâmetros. Toda essa discussão é referendada por profissionais, principalmente
da psicologia, especialistas em masculinidade. A atitude recomendada aparece explicitamente
no trecho seguinte: “... a primeira atitude que você deve tomar para encontrar o homem dos
seus sonhos é... parar de sonhar” “... e os homens não facilitam nada. Preferem sumir ou
aprontar uma com você. É da natureza deles...”. Masculino e feminino são naturalizados e
tomados como um estereótipo generalizável. As mulheres devem parar de sonhar porque não é
possível conquistar e manter um homem senão com os pés no chão, à moda do que
pretensamente caracterizaria o masculino. Os sonhos são desdenhados por não serem
suficientemente realistas, ou por expressarem um desejo que tem de ser deixado de lado para
que a leitora, adaptada então à sociedade repressiva, possa encontrar um homem.
A matéria intitulada: “Os homens revelam: O que me fez marcar um segundo encontro”
(X, 1989). é uma reportagem bem representativa da subcategoria conquista do sexo oposto. Ela é
composta por depoimentos masculinos divididos em duas colunas: atitudes femininas que são
desejáveis e outras que são inconvenientes a ponto de não ser provável que o homem queira

1086
marcar outros encontros. O fim de conquistar um homem é explícito, e a estratégia, nesse caso,
é não estragar as chances de um segundo encontro; evidentemente é pressuposto esse desejo em
todas as mulheres.
Adentrando pelas subcategorias alocadas na categoria ‘meios’, a primeira identificada
foi ‘técnicas para obter prazer’. Selecionou-se uma dada reportagem, cujo título é: “A emoção
do sexo em lugares surpreendentes” (X, 1996). Trata-se de depoimentos sobre os locais nos
quais os casais entrevistados fazem sexo. Tais depoimentos são utilizados como um modelo
direto para as leitoras e, por esta razão, considerou-se tal matéria como uma oferta de técnicas,
pois ensinam meios e modos pelos quais seria possível obter mais prazer nas relações sexuais. A
oferta de técnicas aqui é feita pela presença de exemplos de casos supostamente vividos por
pessoas reais, disfarçando o caráter instrumental presente na reportagem. O pressuposto é que
todos têm direito a ter prazer sexual e esse prazer depende de estratégias como a busca de
“lugares surpreendentes” para ocorrer. Tais exemplos incitam à imitação, sem que em nenhum
momento apareça qualquer reflexão sobre a distância que existe, de fato, entre os leitores e os
ideais propostos pela revista.
A reportagem intitulada “Procura-se um amor: Tratar pela Internet” (A) é um dos
exemplos bem significativos para a categoria denominada ‘Técnicas de conquista de um
parceiro’. A matéria inicia afirmando haver um grande aumento do uso deste meio para
conhecer novas pessoas, principalmente parceiros sexuais. São destacados exemplos de tramas
de novelas de TV, e aparecem casos de encontros felizes pela Internet. O que justifica alocar
essa reportagem na categoria citada é que, em destaque na reportagem, ensina-se, através de
passos, como procurar um parceiro na Internet e algumas técnicas para esta busca obter sucesso.
É ilustrativo destacar trechos destes dois pequenos manuais: “Duas maneiras de procurar: 1-
Os sites de relacionamento... as etapas seguintes são a comunicação por e-mail, por telefone e
ao vivo; 2-... as salas de bate-papo virtual... em poucos minutos, dá para descobrir se o homem
procura uma companheira ou apenas sexo...” “Para ter sucesso na busca:... o primeiro
encontro gera muita expectativa... risco de se decepcionar com o outro... medo de cair nas
mãos de um psicopata... para diminuir estes riscos, siga as dicas dos especialistas...”.
Novamente, a oferta de critérios substitui a experiência do próprio sujeito na busca por um
parceiro pela internet. São pressupostos certos fins: arrumar um parceiro do sexo oposto,
estabelecer um relacionamento satisfatório – seja duradouro ou somente recreativo – e não
correr riscos.
A subcategoria ‘Técnicas para conhecer um parceiro do sexo oposto’ pode ser
exemplificada pela reportagem: “Ah, se os homens se abrissem: coisas preciosas que você
precisa saber sobre eles”(E). Nesta matéria é apresentada uma conduta típica do homem e da

1087
mulher, denominando-os de macho e fêmea, ressaltando uma explicação biológica do
fenômeno. Principalmente por ser algo da natureza do homem, como afirma a reportagem, é
possível propor meios de desvelar o universo obscuro do masculino ou como diz na matéria: “...
decifrar e assimilar a obscura linguagem dos homens”. “Pequeno glossário masculino: 1-
quando ele diz - Parabéns pela promoção, pode estar querendo dizer - Será que você vai
acabar ganhando mais do que eu?...”. A naturalização do masculino e do feminino é uma pauta
ideológica muito comum nas revistas e, nesse caso, se sugere que mesmo condutas
evidentemente mediadas socialmente, como uma eventual comparação entre os salários dos
parceiros, são, na verdade, produto de determinações naturais entranhadas tanto nos machos
quanto nas fêmeas da espécie humana. Tudo se resume, então, em saber manejar
adequadamente a natureza para obter o fim esperado.
Em todas as revistas foi possível encontrar matérias representativas de todas as
subcategorias indicadas. Isto sugere uma grande abrangência na forma de tratar as necessidades
e desejos ditos femininos, codificando essas necessidades e formas da sexualidade tanto através
das décadas na revista X quanto nas diferentes publicações analisadas no ano de 2005. Isso não
quer dizer que a forma de lidar com os temas é a mesma em todas as revistas, mas que todas
lidaram com a questão da sexualidade indicando ações que estão abrangidas pelas categorias
indicadas.
A quantificação do número de páginas dedicadas a cada uma das categorias e
subcategorias, em relação ao número total de páginas dedicadas ao tema sexualidade na revista
X, mostrou que as matérias relacionadas aos fins encontradas nos anos 80 e 90 ocupam,
respectivamente 30,1% e 38,2%, e as matérias relacionadas aos meios: 69 9% e 61,8%. Já nos
anos 2000 essas quantidades se transformam, havendo 9,5% das reportagens relacionadas aos
fins e 90,5% das reportagens relacionadas aos meios. Assim, o predomínio quantitativo das
reportagens voltadas para o oferecimento de meios foi aumentado significativamente após o ano
2000. O predomínio da oferta de técnicas é coerente com a função ideológica e repressiva da
indústria cultural; no âmbito da racionalidade técnica a discussão sobre a eficiência dos meios
suprime a discussão sobre os fins, e elide as dimensões ética e política que deveriam estar
presentes na experiência dos sujeitos em relação a sua sexualidade.
Analisando quantitativamente as revistas A, B, C, D e E é possível constatar que o
percentual de páginas dedicadas a fins e meios variam conforme a revista. Nas revistas A, B e E
os números são, respectivamente, 33%, 10% e 23,6% em relação aos fins, enquanto, em relação
aos meios encontramos 67%, 90% e 76,4%. Esses números corroboram a tendência observada
na revista X. No entanto, a revista C foge a este padrão, apresentando 75% do total de páginas
dedicadas à sexualidade voltado para os fins, contra somente 25% das páginas dedicadas aos

1088
meios. Já a revista D apresenta dados mais equilibrados, sendo que 45% são dedicados aos fins
e 55% aos meios. Como nessa amostragem foi analisado um único exemplar de cada revista,
talvez essa diferença nas revistas C e D não seja tão significativa. Ou, por outro lado, talvez a
predominância dos fins seja específica dessa revista em razão da necessidade de adaptação ao
público visado, ou melhor, para abranger determinado público que seja mais atraído pela
discussão sobre os fins.
De qualquer modo, é evidente a predominância quantitativa das reportagens que tratam
os temas relacionados à sexualidade feminina a partir de uma perspectiva técnica ou
instrumental. Porém, essa tendência se expressa em diferentes tons segundo o público visado
pela publicação, isto é, há nuances não somente quantitativas, mas também no número total de
páginas dedicadas à sexualidade, no modo como os temas são tratados – mais ou menos
explicitamente, por exemplo – na extensão da reportagem, na relação entre texto e imagem,
entre outras diferenças bastante significativas, mas que não foram focadas especificamente nesta
investigação.
Essas diferenciações indicam uma maior segmentação do mercado editorial. A
segmentação, entretanto, não indica atendimento às demandas do público, mas principalmente,
uma maior abrangência da indústria cultural, que só se adapta ao gosto do público na exata
medida em que isso é necessário para melhor manipula-lo. A existência de uma grande
variedade de revistas cria a ilusão de diversidade e liberdade de escolha, mas o gosto, que é sem
dúvida mediado socialmente, torna-se administrado ainda mais radicalmente na medida em que
se produz uma falsa identidade entre os interesses do indivíduo e as características do produto.
Parece haver uma relação evidente entre o poder aquisitivo do público visado e a
natureza das matérias presentes nas revistas. Nas revistas destinadas às classes B e C, conquistar
um parceiro é o maior foco. É interessante ressaltar que, nas revistas voltadas para esse público,
muitas matérias tem como conteúdo fofocas e detalhes da vida de celebridades, oferecendo
modelos a serem seguidos a partir de uma vinculação, principalmente, com a televisão e o
cinema. Nas revistas voltadas para as classes A e B, a obtenção de prazer sexual é o tema mais
freqüente, e os modelos oferecidos são, muitas vezes, atestados por especialistas, como
psicólogos, médicos ou sexólogos.
Assim, a despeito da suposta liberdade sexual que existiria atualmente, e seria atestada
pela presença do tema na indústria cultural, em especial nas revistas dedicadas ao público
feminino, é possível constatar que na verdade a sexualidade é administrada pela oferta
abundante de técnicas sexuais que indicam pormenorizadamente o que fazer, pensar e sentir
neste âmbito da vida dos sujeitos, confirmando as teses marcuseanas sobre a dessublimação
repressiva e a mais-repressão. Sem dúvida a visibilidade dada ao tema permite, ao menos, que

1089
certos tabus sejam questionados, mas o oferecimento de modelos de identificação vicários e a
ideologia instrumentalista enfraquecem no sujeito as qualidades que permitiriam a ele
emancipar-se ou, ao menos, perceber que a indústria cultural impede a realização do prazer que
ela, não obstante, não cessa de prometer.
O controle social exercido pelas revistas, falsamente revestido de um discurso
naturalizante, indica uma busca pela dominação da natureza no corpo e na sexualidade,
impedindo a experiência e a reflexão sobre esse corpo que, segundo Adorno & Horkheimer
(1985), está morto, pois está alienado, servindo ao capital e impedido de se tornar um corpo
vivo, que sente, experiencia e que é sede das pulsões.
O corpo e a sexualidade são parte da totalidade natural-social do ser humano. Não é
isso, no entanto, o que encontramos na indústria cultural e nas revistas; o que se encontra é essa
totalidade mutilada e o corpo vivo negado. É necessário refletir e sensibilizar o corpo e a
sexualidade para a fruição, a experiência e a expressão: “ao se abrirem as portas da
sensibilidade, o corpo passa de negado a mediador das relações entre o homem e o mundo”
(Ramos, 2004, p.170). É necessária uma reconciliação com a natureza, que não é um retrocesso
ao passado ou a ilusão de um contato imediato com a natureza, mas sim o reconhecimento das
necessidades humanas.
A administração da sexualidade constatada pela análise das revistas evidencia a
dessublimação repressiva, conceito desenvolvido por Marcuse (1969), em que a energia
libidinal é canalizada para uma sexualidade subordinada à lógica de mercado, ou seja, a energia
libidinal é administrada para o consumo de produtos padronizados, que no caso são as inúmeras
técnicas que são vendidas pelas revistas. Na dessublimação repressiva, o conflito entre princípio
de prazer e de realidade é dirigido por meio de uma liberação controlada, realçando a satisfação
obtida com as mercadorias que a sociedade oferece. No caso das revistas a liberação sexual que
é permitida implica um acordo com as regras impostas, oferecendo como satisfação uma
pretensa obtenção de prazer e sucesso com o sexo oposto. Nas revistas encontram-se
pressupostos os desejos femininos, reduzindo as fontes do princípio de prazer contra o princípio
de realidade que se transformou em princípio de desempenho.
Para que se estabeleça ideologicamente uma “liberdade sexual” controlada são impostos
desejos e com isso padrões sexuais que são oferecidos como meios para alcançá-la. Estes
desejos e padrões sexuais são transmitidos por meio das revistas e de toda a indústria cultural,
ou seja, a sexualidade é formatada por meio de padrões adaptados ao caráter funcional da ordem
social. Subordinada ao princípio de desempenho, a sexualidade é vista a partir de categorias
estáticas às quais são agregados valores mercadológicos que são vendidos a preços módicos
nestas revistas; melhor é um maior número de orgasmos ou ter orgasmos mais prolongados e

1090
intensos. Portanto, a sexualidade está subjugada à lei de equivalência das mercadorias.
(Marcuse, 1998).
Por meio desta pesquisa, evidencia-se também o conceito de mais repressão, por meio
do qual Marcuse (1969) diferencia a repressão necessária para a manutenção da humanidade da
“mais-repressão”, utilizada para manter o estado social de dominação, porém desnecessária à
espécie humana e à manutenção dos vínculos sociais. Inserido nessa dinâmica de mais
repressão, princípio de desempenho e dessublimação repressiva, o indivíduo renuncia a Eros,
reduzindo sua realização sexual à finalidade de manter a ordem social vigente.
Eros é mutilado por uma moral sexual que assume diversas formas na indústria cultural.
Esta moral tem sua forma mais conspícua no imperativo “goze!”, conforme explanou Ramos
(2004), na qual o sujeito consome de forma compulsiva os padrões impostos a ele, evidenciando
um aparente prazer neste consumo compulsivo. Este prazer é um pré-prazer, conceito
desenvolvido por Freud no qual o fim almejado não é o coito em si, mas sim os alvos sexuais
preliminares, sendo que estes “tomam o lugar dos [objetos] normais” (Freud, 1996, p.155); a
satisfação está na leitura e nas promessas que as revistas vendem e não no ato e na prática da
sexualidade.
Com isso constata-se que existem novas formas de tabus sexuais repressores e, como
afirmou Adorno (1969), a sexualidade está subordinada a uma moral da diversão, a “liberdade
sexual” é pura aparência, pois a sociedade racional que se funda no domínio da natureza interna
e externa, e que prioriza a moral do trabalho e o principio de desempenho em detrimento do
princípio de prazer, não tem mais a necessidade dos mandos patriarcais, estes mandos já são
ditados pela indústria cultural. Desta maneira o sexo é modificado e explorado de mil maneiras
pela indústria cultural e é dirigido, institucionalizado e administrado pela sociedade sendo assim
dessexualizado.

1091
BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. Los tabus sexuales y el derecho hoy. In: Intervenciones: nueve modelos de
crítica. Caracas: Monte Ávila Editores, 1969, p.91 a p.115.

ADORNO, T. W; HOCKEHEIMER, M. A dialética do esclarecimento: Fragmentos


Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1996.

MARCUSE, H. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.


Tradução de Àlvaro Cabral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.

MARCUSE, H. A obsolescência da psicanálise In: Cultura e Sociedade. Vol. II. Tradução de


Wolfgang Leo Maar, Robespiere de Oliveira e Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Paz e Terra,
1998, p.91 a p.111.

RAMOS, C. A Dominação do corpo no mundo administrado. São Paulo: Escuta/Fapesp,


2004.

1092
A frágil influência adorniana na produção científica em educação musical no Brasil

Monique Andries Nogueira


UFRJ

Introdução:

O presente texto visa compartilhar reflexões acerca dos resultados parciais de uma
investigação que tem como objetivo central reconhecer a existência de um princípio educativo na
obra adorniana dedicada à crítica musical. A primeira etapa desta investigação se constituiu na
busca de interlocução, por meio de levantamento bibliográfico junto às principais instâncias
relativas à pesquisa em educação musical brasileiras, a saber, Associação Brasileira de Educação
Musical (ABEM), Associação Nacional de Pesquisa em Música (ANPOM) e em documentos dos
principais programas de Pós-graduação em Música. A quase inexistência de pesquisas e trabalhos
que tenham como referência a crítica musical de Adorno suscitou uma indagação a respeito dessa
pouca aceitação do pensamento adorniano nos meios musicais brasileiros e é na tentativa de
elucidar este fenômeno que se configura este pôster.
Ao analisar as possíveis razões desta pouca influência, percebi que se configuravam em três
eixos: 1) a precariedade da formação teórico-filosófica da maior parte dos cursos superiores de
música, marcados por uma ênfase exagerada na prática e na performance; 2) o fascínio exercido
pela tecnologia com suas falsas promessas de felicidade advindas da indústria cultural, que parece
dificultar a interlocução com Adorno; 3) a forte presença de um pensamento de matriz pós-moderna
que rejeita o conceito adorniano de semi-formação e gravita em torno de um relativismo teórico que
iguala todo tipo de música, ancorado em uma equivocada concepção de multiculturalismo.
Pretendemos, nessa ocasião, desenvolver esses três eixos de análise.
1) A formação teórica nos cursos superiores de música no Brasil
Adorno tem na música um dos seus mais importantes campos de análise. Sua crítica
musical, embasada em uma sólida formação desenvolvida desde sua infância e continuada por toda
vida, ultrapassa os limites do puramente estético, ou melhor, daquilo que seria estreitamente ligado
apenas à linguagem musical propriamente dita e edifica aquilo que seria conhecido por uma “nova
sociologia da música”. Em sua crítica, Adorno procede a uma aguda análise dos elementos
musicais, sem deixar de evidenciar o alcance sociológico da produção, como exemplifica o trecho
abaixo, relativo à improvisação no jazz:

1093
Em um grande número de casos, como o break do jazz anterior ao swing, a função
musical do detalhe improvisado é completamente determinada pelo esquema; o break não
pode ser nada mais do que uma cadência disfarçada. Por isso restam bem poucas
possibilidades para uma efetiva improvisação, devido à necessidade de apenas
circunscrever melodicamente as mesmas funções harmônicas subjacentes. Como essas
possibilidades foram rapidamente exauridas, logo ocorreu a estereotipagem de detalhes
improvisadores, assim a estandartização da norma acresce, de um modo puramente
técnico, a estandartização de seus próprios desvios: pseudo-individuação (ADORNO,
1994 b, p. 123-124).
Neste exemplo, fica clara a riqueza da crítica adorniana: ao mesmo tempo que demonstra
profundo conhecimento do fenômeno musical, evidenciado pela utilização apropriada de termos
técnicos (cadências, funções harmônicas), nos acena para um desdobramento sociológico do mesmo
(a pseudo-individuação).
Minha experiência nos meios acadêmico-musicais - tanto como aluna quanto como docente
de curso superior de música - me possibilita reconhecer que neles a crítica musical adorniana não
tem presença marcante. E aí residia minha perplexidade, quando iniciei meus estudos de Pós-
graduação em Educação (ainda que voltados para a educação musical), ao percebe que esse autor,
tão fundamental para a compreensão das funções sociais da música, pudesse nunca me ter sido
apresentado na graduação!
Embora esse estranhamento que senti anos atrás já me acenasse para a possibilidade da
continuidade desta ausência, o fato é que tinha a esperança de que esse cenário houvesse se
modificado após o incremento da pesquisa em música, com o advento de vários programas de Pós-
graduação em música e do surgimento de fóruns e associações de pesquisadores, a partir de meados
da década de 90. Ao proceder ao levantamento já citado, constatei a permanência do mesmo
quadro: a crítica musical de Adorno continuava a ser pouco relevante na área, embora continuasse a
evidenciar sua fertilidade nos encontros científicos das áreas de Educação e Filosofia.
Minha hipótese de explicação reside justamente na relativa juventude destas mesmas
instâncias. Ora, é sabido que o surgimento da Pós-graduação em Educação, em idos de 1965, na
PUC-Rio, alavancou todo um movimento de produção teórica que deixou marcas também nos
rumos dos cursos de graduação. A influência de professores-pesquisadores nas suas instituições de
ensino de origem possibilitou uma maior circulação de idéias, promovendo uma modificação nas
estruturas curriculares destes cursos, antes notadamente de caráter prático, depois com marcas mais
visíveis das áreas de fundamentação teórica (Filosofia, Sociologia , entre outras).

1094
Já o surgimento da maior parte dos cursos de Pós-graduação em Música, assim como das
associações de pesquisadores, data de meados da década de 90, o que me leva a considerar que o
movimento acontecido nos meios de pesquisa em Educação, exemplificado anteriormente, ainda
esteja por acontecer nos meios musicais. Enquanto isso não acontece, os cursos superiores mantêm
uma tradição conhecida como “conservatorial”: a ênfase na performance, no talento e nas
habilidades “naturais” que certos alunos apresentam. Obviamente, essa matriz de pensamento
dificulta a aproximação com um autor como Adorno que justamente busca desnaturalizar essas
condutas, apontando para uma influência sempre crescente das estruturas sociais, tanto na produção
quanto na recepção da música.
Além disso, essa ênfase exagerada na performance, dificulta a participação de professores e
disciplinas (Filosofia, Sociologia, Educação, Estética) de outros campos de saber, já que a maior
parte da carga horária dos alunos é dedicada a disciplinas de caráter prático (aulas de instrumento,
música de câmara, prática de orquestra, percepção musical). Obviamente não estamos aqui
menosprezando a importância dessas disciplinas: apenas ponderamos que o caráter altamente
endógeno dos cursos superiores de música, dificulta o aprofundamento e, ao mesmo tempo, a
ampliação dos referencias teóricos dos alunos. Exemplo cruel desta realidade é que na maior parte
destes cursos a disciplina Estética, quando acontece, se resume ao estudo das principais correntes
estilísticas, ministradas por professores de formação exclusiva em música e nem sequer acena para
uma reflexão filosófica sobre a arte e a condição humana. Neste contexto, a participação do
pensamento adorniano permanece comprometida.
2) O fascínio tecnológico e as falsas promessas de felicidade
Segundo Zuin, “é praticamente impossível ficar insensível aos apelos sedutores feitos pela
indústria cultural, numa sociedade cuja consolidação e reprodução da cultura prioriza o princípio da
comercialização de seus produtos sob as mais variadas embalagens”(1995, p. 153). Nos meios
musicais, esses apelos parecem exercer forte fascínio. A indústria fonográfica no Brasil envolve
montantes expressivos e toma parte significativa na economia. Em um estado como o da Bahia, por
exemplo, a indústria da axé-music é ponta de lança do movimento turístico, responsável por
significativa fatia do Produto Interno Bruto (PIB). É um produto estratégico: não por acaso nas
peças comercias veiculadas na televisão pela Companhia de Turismo do Governo da Bahia tem
destaque conhecida cantora, considerada “musa” deste gênero musical.
Tratando da estandartização, Adorno afirma que “a composição escuta pelo ouvinte. Esse é
o modo da música popular despojar o ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos
condicionados” (1994b, p. 121). É fácil perceber a atualidade dessa idéia: basta assistir a cenas de

1095
eventos cuja trilha sonora é a axé music para se localizar os “reflexos condicionados” em adultos
fazendo todos rigorosamente a mesma coreografia patética de “danças da manivela”, “bombas”, “de
ladinho”, entre outras pérolas.
Entretanto, apesar da óbvia pouca qualidade estética, o aparato tecnológico que mobiliza
essa indústria – um show de artistas de grande apelo econômico conta com mais de 200 pessoas na
sua produção - , assim como o grande capital envolvido, exerce efetivamente um fascínio não só
sobre largas camadas da população, mas também sobre os próprios músicos. Não é raro ver artistas
e intelectuais de renome assumindo posições de defesa de ícones da indústria cultural. Adorno já
nos alertava para isso: “instalou-se um tom de indulgência irônica entre os intelectuais que querem
se acomodar a esse fenômeno e que tentam conciliar suas reservas em relação à indústria cultural
com o respeito diante do poder”(1994 a, p. 96).
3) Pós-modernismo e relativização estética
Esse terceiro eixo de análise me foi possível vislumbrar a partir de conversas e entrevistas
informais com músicos e pesquisadores em música. Buscando aprofundar minha investigação,
tentei estabelecer contato com possíveis interlocutores. No entanto, não os encontrei, pois não me
custou muito perceber que a postura vigorosa de Adorno na denúncia da indústria cultura e da semi-
formação promovida por ela é vista como ultrapassada nos meios musicais. Há um certo consenso
em torno de um pretenso “elitismo” adorniano – segundo alguns, facilmente observável em seus
ensaios sobre música popular e jazz.
Obviamente, podemos fazer um exercício de re-significação em alguns trechos de Adorno
(1994b), como por exemplo quando utiliza expressões como “música séria”em oposição à “música
popular”. É certo que em tempos de louvável cuidado com expressões preconceituosas, o termo
“séria” traz implicações perigosas, pois se poderia retirar dele a idéia de que a música popular não é
séria. Contudo, se nos prendêssemos mais à essência do pensamento adorniano do que às
expressões utilizadas em momentos históricos outros, poderíamos trilhar diferente caminho de
análise. Para Adorno, a diferença entre a música séria e a popular reside na estandartização
marcante nesta última, isto é, na padronização que cerca tanto a produção quanto a audição: “a
estandartização estrutural busca reações estandartizadas” (1994b, p. 120). Este trecho evidencia que
o ataque de Adorno se dirige à música fabricada para o sucesso comercial, veículo de semi-
formação, que busca a regressão do ouvinte. Sendo assim, podemos substituir a expressão “música
popular” por “música de consumo”: não mudaria em nada a essência da idéia adorniana e acalmaria
os politicamente corretos de plantão.

1096
Também notou-se que ao lado da ausência de referências a Adorno, o levantamento da
produção científica nos meios musicais apontou para uma maciça presença de autores ligados à
matriz de pensamento pós-moderno. Nesses casos, alguns conceitos como o de indústria cultural e o
de semi-formação são considerados legados de um paradigma de modernidade já superado. É
freqüente a noção de que vivemos uma época em que os limites estão sendo abolidos e que
demarcações como música de qualidade/música de consumo não têm mais sentido. Particularmente
significativa foi a apresentação de uma pesquisa em evento nacional cuja autora defendia a
utilização de “música midiática” na escola. Segundo ela, a escola insiste em utilizar canções
folclóricas, eruditas e outras do tipo infantilizado, quando o que os alunos querem é funk, música de
novelas. O referido trabalho mereceu destaque no evento, o que, na minha opinião –não colocando
em dúvida, obviamente, a seriedade da pesquisadora – denota que este é o pensamento majoritário
nos meios musicais, para minha profunda tristeza.

Conclusão
A breve reflexão aqui produzida é apenas o início de uma investigação mais vigorosa que se
pretende realizar. No entanto, a motivação para trazer a público esses primeiros resultados reside
justamente na gravidade do quadro encontrado. É profundamente preocupante que o legado
adorniano relativo à crítica musical venha sendo esquecido nos meios musicais científicos
brasileiros, justamente em um momento histórico cujo cenário cultural, a meu ver, evidencia sua
atualidade.

Bibliografia:

ADORNO, T. W. A indústria cultural. In CONH, G. (org). Theodor W. Adorno. 2a ed. Coleção


Grandes Cientistas Sociais, no. 54. São Paulo: Ática, 1994 a.
ADORNO, T. W. Sobre música popular. In: COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno. 2a. ed. Coleção
Grande Cientistas Sociais, no. 54. São Paulo: Ática, 1994 b.
ZUIN, Antônio Álvaro S., Seduções e simulacros – considerações sobre a indústria cultural e os
paradigmas da Resistência e da Reprodução em Educação. In: PUCCI, B. (org.). Teoria crítica e
Educação – a questão da formação cultural na Escola de Frankfurt. 2a ed. Petrópolis: Vozes; São
Carlos: UFSCar, 1995.

1097
Luzes e sombras na relação entre arte e psicanálise

Nivaldo Alexandre de Freitas


Universidade de São Paulo

Resumo: Este artigo visa expor algumas relações entre arte e psicanálise a partir da Teoria
Crítica da Escola de Frankfurt. A psicanálise é uma teoria que possui elementos para iluminar
não apenas o momento do artista no processo de elaboração da arte, mas também para apontar
como a arte se encontra enredada em dificuldades, como a ameaça de se transformar em mera
mercadoria, como mais um meio da indústria cultural. Por outro lado, às vezes a psicanálise é
usada seguindo as tendências das reduções biográficas que dão ao artista a total
responsabilidade por sua obra, quando a sociedade também se faz presente em sua composição.
A psicanálise como ciência ainda pode deixar para trás achados importantes que a arte traz a
tona, pois esta é considerada menos fiel à descrição do indivíduo e de sua relação com a
sociedade: quem quiser saber sobre o psiquismo não recorrerá a artistas que tem muito a falar
sobre ele, mas à ciência que se consolida como a mais apropriada para tal, e que encerra a arte
na sombra de seus conceitos.

Palavras-chave: Arte; Psicanálise; Dialética.

1098
Psicanálise e Teoria Crítica
A psicanálise passou a ser um referencial teórico importante para se pensar as
manifestações artísticas do século XX e atuais, mas seu emprego não deixa de carregar os
mesmos problemas que qualquer outra teoria carrega quando é levada à esfera estética. Se uma
teoria iluminar vários elementos de uma obra, pode também deixar uma enorme sombra ao fim
dessa interpretação. É acerca dessa relação difícil entre arte e psicanálise que se pretende refletir
aqui. Para tanto, parte-se do referencial da chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt,
notadamente Theodor Adorno, filósofo que participou do debate artístico na época do
expressionismo e que trouxe a psicanálise para o centro desse debate, criticando-a para melhor
utilizá-la.
A psicanálise tem sido usada como “instrumento” para analisar diversas formas de arte,
e geralmente o resultado é a explicação da obra pelo artista somente, ou pior, pelas suas
neuroses adquiridas na infância remota. Essa concepção de arte em Freud pode ser vista, por
exemplo, em seu trabalho sobre Dostoiévski1. Nele, Freud procura explicar elementos literários
a partir de ocorrências na infância do autor e pelas suas relações parentais, não fazendo
referência às mediações sociais que estariam também constituindo a obra no momento da sua
elaboração e que não teriam ligação exclusiva com os traumas psicológicos do artista.
Na tentativa de explicar o processo artístico, Freud procura apenas no psiquismo do
artista o porquê de sua criação, quando a arte, segundo Adorno, expõe uma crítica social
realizada pela própria sociedade e com a mediação criadora do indivíduo.2 É justamente o fato
de que a arte não deve ser imediatamente deduzida da sociedade que leva Adorno a procurar o
espaço de sua representação no indivíduo, e para isso recorre à psicanálise, mas indica os
problemas referentes às interpretações de Freud e seus seguidores que entendiam a arte como
resultado das projeções inconscientes dos artistas.
A interpretação psicanalítica considera que o artista possui um psiquismo normal,
quando a qualidade estética pode ser fruto exatamente da ausência de um equilíbrio “normal”
das pulsões. A arte é também equiparada aos sonhos diurnos pela psicanálise, como se a obra
não fugisse dos mecanismos psíquicos inconscientes e se afirmasse como algo distinto do
próprio indivíduo, diferente do que ocorre com os produtos da elaboração onírica. Uma obra
surrealista, por exemplo, não seria tão pungente se fosse como um sonho.
O que há de projetivo no processo de produção do artista é apenas um momento na
relação com as obras. A linguagem, o material artístico e o produto têm seus pesos e carregam

1
Sigmund Freud, (1928), Dostoiévski e o parricídio, Incluído em Obras Completas, V. XXI.
2
Theodor W. Adorno, Teoria Estética, 1970, p.19.

1099
consigo a própria sociedade e sua história. A arte não seria fruto unicamente dos movimentos
subjetivos pulsionais e muito menos reflexo e propriedade do artista. A psicanálise deixaria
escapar o impulso crítico e a idéia de verdade da arte; não daria voz à própria objetividade
contida na obra, não atentaria para sua autonomia como objeto que carrega o processo histórico
em seu próprio material.
Por outro lado, a ambigüidade da psicanálise consiste no fato de servir também para o
entendimento da situação da arte a partir do século XX. Ou seja, a crítica ao seu caráter
ideológico não anula sua importância como uma teoria que descreve as bases pulsionais do
indivíduo em sua relação com a arte. A psicanálise na esfera estética pode, por exemplo, ajudar
à crítica da sua redução à mera mercadoria, numa descrição detalhada do âmbito que foi
nomeado por Adorno, juntamente com Horkheimer, de indústria cultural.

Indústria cultural e sublimação


O conceito de indústria cultural refere-se à cultura transformada em mercadoria,
produzida em série e destinada, a mando dos reais donos do poder, à mistificação das massas.
Desde muito cedo ela está presente no processo de formação da subjetividade, levando o sujeito
a se identificar com modelos oferecidos em escala industrial, não sendo mais privilegiados os da
família, como na época da descrição freudiana. O sutil mecanismo usado pela indústria cultural
para ajustar os indivíduos à esfera da produção, justamente em seu lazer, é denunciado por
Horkheimer e Adorno como sendo a realização em sua máxima potência do esquematismo do
sujeito, conceito tomado de empréstimo a Kant e que consiste na capacidade intrínseca do
sujeito de fazer a mediação entre os dados imediatos e sua própria razão pura. O indivíduo passa
a ver o mundo através do filtro da indústria cultural: a rua passa a ser o prolongamento do filme
e a relação íntima, o prolongamento da novela da tv. O mecanismo da indústria cultural oscila
entre o sutil e o escancarado descaramento: “O modelo básico da receptividade da indústria
cultural é o do vídeo-game, que dá aos adolescentes e às crianças o prazer de percepções
esquematizadas previamente pelo autor do jogo. Essa atitude é muito semelhante à requerida no
trabalho, que normalmente é monótono, repetitivo, sem criatividade, impessoal.”3
A indústria cultural nivela todos os detalhes de seus produtos culturais e os submete à
forma previamente estipulada da obra, eliminando qualquer tensão entre o todo e as partes,
tensão que estaria presente em uma obra de arte legítima.
É claro que esse processo não se limita a aspectos cognitivos, deixando as bases
pulsionais ao pleno domínio e liberdade do sujeito. Ao invés disso, dita-se o que deve ser
sentido como prazer e desprazer, decreta-se o fim da repressão sexual, mas efetivamente se

3
Verlaine Freitas, Adorno e a arte contemporânea, 2003, p.20.

1100
oferece mais repressão de forma tão controlada ao ponto do indivíduo não percebê-la como tal.
Este é outro dos grandes engodos da indústria cultural: prometer incessantemente o prazer e
apenas ceder mais esforço. A sublimação na indústria cultural é impossibilitada, pois seus
produtos são muito distintos da arte, sendo essa distinção relativa à sua estrutura interna, que diz
respeito aos procedimentos que lhes dão origem. Em tais procedimentos estão em jogo aspectos
que atingem sutilmente a dinâmica pulsional do sujeito, pois dizem os autores que a indústria
cultural é pornográfica no chamado da pulsão, mas pudica em sua saciação, ela apenas apresenta
o objeto sexual, mas coloca a meta pulsional a uma distância suficientemente grande. Assim, ela
apenas reprime, marcando aí uma diferença com a arte que é sentida nas profundezas do eu. Se
a arte ainda possibilitava algo além da repressão – e nessa realização apresentava as limitações
da felicidade – agora a indústria cultural apenas reprime, e ainda consegue ser aceita como
simples repressão.
Nesse sentido, o conceito de sublimação torna-se fundamental na crítica cultural
exatamente por se tornar, de certa forma, ultrapassado, como, aliás, vários conceitos freudianos,
conforme diria Marcuse mais tarde, pois na obsolescência do conceito se evidencia o quanto a
repressão avançou e a possibilidade de felicidade regrediu.
O conceito que hoje melhor explica a relação do indivíduo com a arte não é mais a
sublimação, mas sim o conceito de fetichismo.

Fetichismo
Assim como o indivíduo, a arte também está ameaçada com a perda de sua autonomia.
Ela é reduzida à mercadoria que possui uma finalidade, diferente da arte burguesa cujo princípio
apresentava resistências aos fins do mercado. A arte, agora presa da indústria cultural, destina-se
ao entretenimento e não lhe é mais permitido ser algo sem finalidade, estado no qual
contraditoriamente cumpria a função de contribuir para a individuação pelo simples fato de
propiciar o contato com o diferente. Mas o novo, alertam Horkheimer e Adorno4, não é a arte
ser mercadoria, e sim é ela se assumir como tal e renunciar à sua autonomia, pois somente como
arte burguesa ela se realiza autônoma em relação ao mercado, mas apenas em certa medida, já
que somente os artistas que não ocultavam a contradição de querer escapar do mercado ao
mesmo tempo que se está enredado nele é que atingiam algo além de um valor de troca. Sabe-se
que muitos artistas que elaboravam arte autônoma dependiam da venda das mesmas para a sua
sobrevivência e também a de seu trabalho, sem deixar de trazer essa contradição para o interior
de sua obra. O problema novo apontado pelos autores é o mercado determinar várias etapas da

4
Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, A indústria cultura, in Dialética do Esclarecimento, 1985.

1101
feitura da obra, presente, assim, já em sua essência. Ela não se torna mercadoria, ela já nasce
como tal.
Como dizem os autores, a arte era antes uma mercadoria que existia graças ao fato de
poder ser vendida, mas ao mesmo tempo em que era, contraditoriamente, invendível. Nesse
novo momento que se segue ao declínio do capitalismo liberal, a mercadoria como princípio da
elaboração artística faz com que a obra seja “hipocritamente invendível”5. Este agora é seu novo
rótulo para conquistar maiores cifras no mercado.
Não apenas na esfera da produção é que se dá essa mudança, mas também em relação à
sua recepção. O valor de uso da obra, se é que ele existe, é substituído pelo valor de troca. A
obra passa a valer pelo prestígio que confere, que está indissociado do conhecimento e da
experiência. Assim, a arte se torna um fetiche, seu único valor de uso, e como mercadoria ela
passa a ser aquela coisa “muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”
que Marx descreveu6. Mas como a arte feita mercadoria pode atrair os homens? Basta recordar a
explicação de Marx em relação ao mistério da forma mercadoria: “O mistério da forma
mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as
características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios
produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também
reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente
fora deles, entre objetos. Por meio desse qüiproquó os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais.”7
Assim, a análise de Horkheimer e Adorno coloca em evidência as dificuldades da
existência da arte atualmente, já que ela afeta tanto sua receptividade como sua produção.
Quanto à primeira, diante de uma obra o indivíduo tende a percebê-la através do filtro da
indústria cultural, não dispondo da liberdade perante a mesma para poder perder-se nela,
entrando em contato com seus elementos miméticos. Em relação ao artista, além desses fatores é
preciso considerar a questão da dificuldade de sublimação quando se trata de uma época que a
torna tabu, em que o esquema imposto pela indústria cultural manipula as moções pulsionais do
sujeito. Mas não se pode negar que a arte como mercadoria também fornece certo deleite àquele
que a consome, mas diz Adorno que se trata de um deleite mesquinho, que o faz até mesmo
esquecer o que seja realmente o prazer.

Apesar do conceito de fetiche da mercadoria, de Marx, ser o principal para entender a


relação com a arte (do século XX e atual) e preceder a explicação psicanalítica, ele não pode

5
Ibidem, p.148.
6
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Abril Cultural, 1983, Vol.1, T.1, p.70.
7
Ibidem, p.71.

1102
explicar totalmente como o espectador alienado pode obter deleite a partir de uma arte com a
qual ele não estabelece relação. Aí entra o conceito psicanalítico de fetiche. É inevitável a
angústia que sente o indivíduo descrito por Freud quando ele se põe por inteiro diante da arte do
século XX. Ou essa arte gera angústia no pequeno-burguês, como o faz a arte de Kafka, uma
angústia como aquela que “precede o vômito”, como disse Adorno8, aquela que surge diante da
visão das imagens de um mundo deteriorado, ou é mera mercadoria a ser consumida. Aquele
que foge a qualquer angústia e procura se relacionar com uma arte muda, apenas pode se
entregar ao deleite mediante o fetichismo na arte. Mas aí cabe perguntar até que ponto essa arte
ainda pode ser chamada por esse nome. É preciso que algo atraia a pulsão, mas esse algo não é
mais a obra de arte em sua plenitude, mas somente um pálido e tosco representante seu: todo o
conteúdo de verdade encarnado na forma da obra é reduzido a apenas um ou dois de seus
componentes: como, por exemplo, o concerto de violino de Brahms é reduzido ao Stradivarius
do século XVII nas mãos do solista internacional, mas cujo timbre somente é diferenciado por
um instrumentista experiente. É preciso fixar o afeto na mera superfície da arte e negar a
realidade que ela expressa, numa atitude psíquica que vai além da repressão.

Assim, do ponto de vista da psicanálise é possível pensar que a obra reduzida ao fetiche
provoca o deslocamento da pulsão, mas não para sublimá-la, fornecendo um retorno ao
espectador, prazeroso ou não, mas transformador. Mas ela também não reprime a pulsão, o que
evitaria qualquer contato com o sujeito. O fetichismo dribla a repressão, vai além dela, fixando a
libido, impedindo-a de tomar completamente o objeto e conhecê-lo.

Para que a arte não se submeta aos moldes da mercadoria e termine por corroborar a
ordem vigente é necessário que ela fuja à linguagem da propaganda e diga aos homens por meio
de uma linguagem própria. Por isso, a arte moderna traz inúmeras mudanças na relação que o
espectador estabelece com a obra, forçando-o a uma outra postura, mudanças que se
aprofundam ainda mais no caso da arte contemporânea.
Como exemplo se pode pensar a obra de Kafka, analisada por Benjamin e Adorno. A
linguagem desse artista impede que seus escritos sejam tomados como mercadorias. Para
entender sua mensagem ou mesmo para pensar a relação entre um autor como Kafka e sua obra,
Adorno procurou pensar um novo conceito de expressão, o qual funciona como crítica ao
conceito de sublimação.9

8
Theodor W. Adorno, Anotações sobre Kafka, in Prismas: Crítica Cultural e Sociedade, 1998.
9
Ver sobre o conceito de expressão em Theodor W. Adorno, Minima Moralia - Reflexões a partir da vida
danificada, 1993, p.186.

1103
Dostoiévski
Finalmente, cabe expor alguns aspectos da interpretação da arte realizada por Freud,
pois se foi apontado que ele efetuou uma redução da obra às neuroses do artista, é preciso então
analisar como isso se deu efetivamente a partir de ao menos um objeto artístico que ele analisou,
embora é preciso destacar que tal redução não ocorreu toda vez que Freud falou sobre arte. Seu
ensaio “O Moisés, de Miquelângelo”, é um verdadeiro trabalho de decifração da obra a partir do
ponto de vista do receptor. Nele, Freud permitiu perder-se na obra, projetar nela seus impulsos
miméticos respeitando, porém, sua objetividade: um trabalho de interpretação psicanalítica.
Entretanto, não fez o mesmo em outros trabalhos sobre arte, como seu estudo sobre Dostoievski
intitulado “Dostoiévski e o parricídio”.
Freud não tinha em seu horizonte teórico a preocupação de pensar quais os elementos
da realidade que a arte denunciava. Para ele, a arte era antes um campo profícuo para se pensar
alguns conceitos da psicanálise. É claro que tinha clareza de sua força descritiva, mas não
buscava por meio de uma arte de vanguarda compreender a realidade de seu tempo. Freud se
mostrava até mesmo avesso às vanguardas, tendo recorrido à arte da renascença e a do século
XIX, com exceção de Gradiva, que data de 1903. Ora, como então se relaciona a análise da
teoria crítica com o ensaio de Freud sobre Dostoiévski?
Em “A posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno aponta que a maneira
de narrar teve que se transformar para ainda conseguir ser confiável, já que os meios da
indústria cultural retiraram muitas das funções do romance: “o romance precisaria se concentrar
naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato.”10 O narrador não poderia, em suma,
fingir que ainda seria possível narrar experiências, como se a individuação fosse ainda possível.
Com o romance psicológico não seria diferente. Ele também sofreu um descrédito, não
podendo o narrador prosseguir nessa forma de narrar. E foi justamente a ciência psicológica de
Freud que a ajudou a cair em descrédito, retirando-lhe seus objetos. Dostoiévski seria o grande
romancista que deixou de ser confiável com o desenvolvimento da psicanálise: “com razão
observou-se que, numa época em que os jornalistas se embriagavam sem parar com os feitos
psicológicos de Dostoiévski, a ciência, sobretudo a psicanálise freudiana, há muito tinha
deixado para trás aqueles achados do romancista.”11 Quem quisesse conhecer algo sobre o
psiquismo deveria recorrer a Freud.
Todavia, é um erro pensar que Dostoiévski não tem mais nada a ensinar sobre
psicologia ao tempo que o sucede. A ciência ofuscou aquilo que havia de mais importante em
Dostoiévski, sua psicologia não era como a de Freud. Este, a partir de seus casos clínicos, em

10
Idem, A posição do narrador no romance contemporâneo, in Notas de Literatura I, p.56.
11
Ibidem.

1104
seu consultório, descreveu o homem que via diante de si, o homem empírico. De forma distinta,
Dostoiévski descreveu uma psicologia da essência: “(…) se por ventura existe psicologia em
suas obras, ela é uma psicologia do caráter inteligível, da essência, e não do ser empírico, dos
homens que andam por aí. E exatamente nisso Dostoiévski é avançado.”12
Mas como a própria essência do indivíduo vem se perdendo, sendo o indivíduo marcado
pela subjetividade vazia, a forma do relato também necessita mudar para continuar a descrever
esse estado de coisas. Daí o interesse de Adorno também em autores como Kafka e Beckett.
Pode-se tomar, como um exemplo de exagero da análise freudiana, a interpretação
realizada por Freud da epilepsia de Dostoiévski como sendo uma forma de histeria e que estaria
vinculada ao acontecimento marcante da vida do autor e que seria a motivação central de sua
obra: o assassinato de seu pai. As crises epilépticas funcionariam como uma punição pelo desejo
inconsciente que ele nutria de que o próprio pai morresse. Não seria por acaso, portanto, que o
assassino do pai em Os irmãos Karamazov é um personagem epiléptico, o que seria uma
maneira indireta do autor confessar suas intenções.
Todavia, conforme aponta Boris Schnaiderman13, o epiléptico, bem como o louco de
uma forma geral, não era excluído da sociedade russa como o era no ocidente. Desde a literatura
de Gogol, que muito influenciou Dostoiévski, a loucura era um tema corrente, o que mostra o
desconhecimento de Freud do contexto da obra de Dostoiévski, e sua pressa em estabelecer uma
expressão da neurose desse autor.
Já em relação à riqueza da obra do autor russo que foi ofuscada pela interpretação
freudiana, Georg Lukács diz que Dostoiévski é o primeiro grande escritor da metrópole
capitalista capaz de expor a dinâmica das mudanças sociais, morais e psicológicas que se
evidenciavam no final do século XIX.14 Seus personagens nascem da miséria das grandes
cidades, e é a partir disso que Dostoiévski examina sua estrutura psíquica e a deformação de
seus ideais morais. Boris Schnaiderman aponta, ainda, algo da técnica refinada do autor russo,
sua escrita situada entre a prosa e a poesia, a qual é colocada a serviço da denúncia da
reificação.
Portanto, Adorno, ao pensar a relação entre a arte de Dostoiévski e a ciência de Freud,
descreve a própria dialética do esclarecimento, uma vez que evidencia as potencialidades da
ciência do psiquismo em descrever seu objeto, mas expõe como ela também acaba ofuscando
facetas preciosas das obras artísticas que também diziam muito acerca da psicologia. Ao se
pensar o escritor ao lado de Freud, evidencia-se os contrastes que essa relação pode acarretar.
Alguns elementos da obra de Dostoiévski não receberam, depois do psicanalista, a devida

12
Ibidem, p.57.
13
Boris Schnaiderman, Dostoiévski - prosa poesia, 1982.

1105
importância como elementos esclarecedores do psiquismo. É aí que repousa a sombra da
interpretação psicanalítica.

Referências bibliográficas

ADORNO, T. W. Minima Moralia - Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo:


Ática, 1993.
_____________ Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
_____________ Prismas: Crítica Cultural e Sociedade. São Paulo: Ática, 1998.
_____________ Teoria Estética. Lisboa: Edições 70.
FREITAS, V. Adorno e a arte contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
FREUD, S. (1928) Dostoiévski e o parricídio. In Obras Completas. V. XXI, Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LUKÁCS, G. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp.70-78.
SCHNAIDERMAN, B. Dostoiévski – Prosa Poesia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982.

14
Georg Lukács, Dostoiévski, in Ensaios sobre literatura, 1965 [1943].

1106
O DISCURSO ESTÉTICO DA BODY MODIFICATION NA FORMAÇÃO CULTURAL
DA JUVENTUDE CONTEMPORÂNEA

Nívea Maria Silva Menezes


Mestranda em Educação pelo PPGE-UNIMEP

Este texto tem como objetivo fazer um diálogo entre o discurso estético expresso no corpo a
partir da Body Modification e a formação da identidade do jovem contemporâneo.
Atualmente, o corpo contribui para um processo de exclusão e concomitantemente inclusão,
dependendo do padrão de corpo que é vislumbrado nas vitrines. Desse modo, tanto as coisas
quanto as pessoas se tornam cada vez mais substituíveis, faz se necessário à demarcação de
algum tipo de ícone que permita o reconhecimento imediato daquele que o porta, que deixe
algum vestígio. O uso do corpo permitido pelas modificações corporais encontra-se em
tendências dentre as quais, podemos destacar as mais conhecidas como as tatuagens e piercings
(incluindo-se agora as tatuagens e piercings genitais), alargamentos de orelhas, escarificações
(cicatrizes profundas), brandings (marcações com ferro em brasa), implantes subcutâneos, body
play (brincadeiras com agulhas que perfuram o corpo), blood play (brincadeiras com sangue),
cuts (amputações) e os chamados “rituais de suspensão” nos quais as pessoas são presas a
piercings gigantes e penduradas por um sistema simplificado de cordas e polias. Lastória (2004,
p. 02).
As modificações corporais configuram-se numa estética in, quando seguem a moda vigente,
disputada e almejada pelo padrão imposto via Indústria Cultural, mas que é logo superada e
descartada por outra, transformando-se em estética, out, ou seja, fora da moda e ultrapassada,
nessa busca incessante pelo logotipo ideal. Portanto, as estéticas in e out são voláteis e
substituíveis por novas tendências do mercado. Türcke (2001, p. 113).

O corpo exaltado pela Indústria Cultural constrói e reforça, modismos a partir do fascínio pelas
novas tecnologias; pois, a estetização do corpo compreende um mecanismo de funcionamento
desta Indústria, na medida em que ele também pode ser lugar de autonomia, de resistência, e
principalmente de diferenciação na medida em que cria e referenda novos parâmetros a serem
seguidos pela sociedade de consumo. O declínio da mediação familiar e da escola parece estar
relacionado com a propensão a comportamentos espetaculares e sensacionais impingidos ao
corpo, como constituintes de uma dada personalidade da juventude.

Nesse sentido, a análise da constituição desses comportamentos pode indicar em que medida os
jovens mimetizam em seus corpos e em suas relações as tendências extremas da sociedade.
Segundo Le Breton, o corpo é pensado como uma matéria indiferente, simples suporte da

1107
pessoa. Ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir
a fim de melhorá-lo, uma matéria-prima na qual se dilui a identidade pessoal, e não mais
uma raiz de identidade do homem (...). O corpo é normalmente colocado como alter ego
consagrado ao rancor dos cientistas. Subtraído do homem que encarna à maneira de um
objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de qualquer valor.
(2003, p.15). O discurso difundido pela tecnociência corrobora para uma tendência extremista
manifesta no uso instrumental do corpo, quando o esvazia de significados simbólicos e o
transfere para a categoria de coisa sem valor. O que é extremamente paradoxal, haja vista os
investimentos da cultura contemporânea sobre o mesmo.

Conforme Charles Melman, nossa cultura vem sendo pautada por um novo modo de conceber o
mundo e também de como se comportar nele e, isso afeta sobremaneira as relações consigo e
com os outros. É o que Melman conceitua como sendo a Nova Economia Psíquica – NEP. Que
se apresenta como sendo, doravante, um notável consenso no nível dos comportamentos, das
escolhas em favor de uma nova moral. Manifestações que deixam poucas dúvidas sobre a
novidade dessa economia. Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de
se casar ou não, de viver a família, a pátria, os ideais, de viver-se. (2003.p.15).

Um dos reflexos disso é exatamente o tratamento dado ao corpo, usado cotidianamente


enquanto tela de exibição do homem contemporâneo. Que não consegue mais expressar idéias
em que os códigos imagéticos não sejam utilizados via de regra para intervir naquilo que se quer
dizer. E encontra no corpo principalmente dos jovens, lugar para as mais diversas práticas
corporais. A identidade do jovem contemporâneo parece ter uma relação intensa com a NEP,
pois nessa lógica organizacional não há limites para se alcançar o que se deseja e muito menos
mediação nesse processo. O uso do corpo e sua exibição através dos rituais de body
modification, por esses jovens, representam sintomas dessa nova forma de conceber a
identidade dentro da cultura.

Segundo Kehl, no corpo têm-se marcas da sociedade contemporânea que compreendem um


texto a ser lido. Parece que o corpo lhe basta; o corpo que foi para o bebê a primeira sede
narcísica do eu, continua dando conta, para estes novos sujeitos, de todas as questões a
respeito do ser e do sentido da vida. (2004, p. 177).

Melman nos chama atenção para essa nova conformação dos sentidos, pois se apresenta como
um fenômeno novo, no qual estamos lidando com um momento de mutação, onde passamos de
uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada em prol da exibição do
gozo. Doravante nos encontramos na era da liberação do gozo, que não necessariamente é

1108
manifesta pela liberação do gozo sexual padrão, mas que apela para outras formas de gozo. Há
uma escravidão dos sujeitos pelos objetos de consumo, que podemos qualificar como uma
economia perversa de mercado; na qual os sujeitos só enxergam a possibilidade de realização
pessoal se portam determinado ícone, sem que haja um processo de mediação simbólica. O
sujeito sob essa ótica se torna incapaz de refletir sobre a ação.

Ao passo que, nos encontramos na era do prazer e da liberação irrestrita dos gozos, e inexiste
limite, atrelado a isso também se criou um imenso vazio que leva as pessoas a estados de
intensa depressão. Os obstáculos que antes exigiam dos sujeitos o pensamento, a reflexão e
elaboração de idéias, hoje não existem mais, não sabemos mais o que há para pensar. Daí a
extrema fragilidade pela qual atravessa o sujeito na contemporaneidade. Para Melman: o sujeito
não é mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referências,
o indivíduo se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa.
Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma freqüência de estados
depressivos diversos. (2003, p.40)

Portanto, os sujeitos que “gravitam” sem referências, têm o amparo não mais da família, do pai
ou da mãe, que se tornaram anacrônicos nessa lógica, mas de toda uma recente economia
voltada para atender seus desejos. Economia esta, que reforça cotidianamente as fragilidades
tanto das relações como da constituição identitária, que está esvaziada de referências. Como isso
afeta o comportamento das novas gerações torna-se algo sem precedentes. As tendências
extremas fomentadas pela nova economia psíquica juntamente a economia de mercado,
propiciam situações que escravizam os sujeitos de tal maneira que é exigido deles a prova da
capacidade de participar dessa economia. A forma como estão dispostas as estratégias de
sedução são tão articuladas pelas leis de mercado, que a negação a estes dispositivos é
praticamente nula.

Chegamos num estágio que a identidade do jovem, só vai lhe pertencer se ele tiver um formato
que ele entende que convence! A identidade dele está colada ao corpo, o sujeito se auto-
escraviza em nome de algo que ele imagina que deve ser; e isso caracteriza uma economia
perversa estreitamente atrelada à economia liberal de mercado. Na qual os sujeitos querem ir
sempre e sem mediação direto ao gozo, que como já dissemos, não precisa ser necessariamente
o gozo sexual padrão.

A expectativa de corpo que se vislumbra socialmente hoje é nessa nova economia psíquica alvo
constante, pois, nela o corpo assume uma relação de objeto a ser exibido, de coisa que porta

1109
tanto um potencial in como out, e que traz consigo a capacidade de incomodar dependendo da
estética adotada. O caráter out das tendências body modification são manifestações crescentes e
trazem um discurso que é de protesto, mas que, no entanto, se resume ao porte do signo
imagético, não há um debate sobre a atitude de protesto. É preciso se pendurar se cortar, se
costurar, usar próteses diversas, etc. para de fato o jovem sentir que o seu grito visual vai captar
atenção; nesse contexto a ação prescinde da palavra, ela se cola no visual. Isso revela, cada vez
mais, traços de um comportamento que aponta para a regressão dos sentidos, pois os sujeitos
não estão mais se inserindo na cultura através de códigos simbólicos ou abstratos, mas sim por
intermédio do imaginário.

A nova economia liberal de mercado, apoiada pela mídia, inegavelmente tem um apelo muito
forte no seu discurso, o corpo nessa perspectiva de mercado para existir deve antes de tudo
impressionar. Assim, a relação com o próprio corpo e conseqüentemente com o corpo do outro,
não escapa da reificação impingida aos corpos pelo mercado.

Numa sociedade em que o apetite pelas experiências de todo tipo vive seu ápice e a promessa
fugaz de felicidade anuncia-se cotidianamente, apesar disso, as pessoas se vêem em meio a um
enorme vazio. Pois seu acesso aos prazeres dessa nova economia libidinal são paliativos, e ela é
organizada, sobretudo para ludibriar o sujeito. Mas mesmo assim ele se rende aos seus
encantos... Ainda que para isso dilua sua identidade pessoal e assuma um perfil que
provavelmente terá um reconhecimento público e midiático.

Como tudo na Indústria Cultural transforma-se em mercadoria feita para se exibir e isso inclui
as relações humanas, é necessário no atual contexto o resgate da capacidade de mediação, de
reflexão sobre os atos e não ir ao ato simplesmente! Assim, a economia de mercado tem papel
fundamental no consumo exacerbado de produtos que constroem referências sobre o corpo, seus
arquétipos, valores e os usos do mesmo.

É preciso abandonar o imaginário sem mediações do mundo sem gravidade de que nos fala
Melman e nos atermos ao mundo real; se quisermos ainda, ir além de uma personalidade
empobrecida pelas experiências formativas apresentadas no mundo contemporâneo.

Neste sentido, pensar a questão da formação dos sujeitos que estão envoltos nesses processos de
deformação da identidade torna-se primordial. Tudo que dissemos até agora aponta para sujeitos
em vias de degradação regressiva. E a cooptação dos sentidos pela nova economia psíquica,
apesar de ser um fenômeno recente, é tão somente o prenúncio da crescente disposição dos
sujeitos contemporâneos a se adequarem ao esvaziamento dos sentidos.

1110
Referências Bibliográficas

FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. CD-ROM Freud: Obras Completas,
53p.

KEHL, Maria R. Com que corpo Eu vou? Videologias: ensaios sobre televisão. Eugênio Bucci
e Maria Rita Kehl. São Paulo: Boitempo, 2004. pgs. 174-179.

LASTÓRIA, Luiz A. Calmon Nabuco. Utopias somáticas como contra-face da distopia social
CD-ROM Colóquio Internacional: “Teoria Crítica e Educação” realizado de 13 a 17 de
setembro de 2004. pgs. 01-12.

BRETON, David L. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.


pgs.13-21.

ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. 4 ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro; 1998. pgs. 122-149.

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: Gozar a qualquer preço. Janeiro - Companhia
de Freud, 2003. 211pg.

SAFATLE, Vladimir. Um corpo obsoleto: sobre a relação entre fragilização das identificações
e reconstrução contínua do corpo. In: CD-ROM do Colóquio Internacional: “Teoria Crítica e
Educação” realizado, de 13 a 17 de setembro de 2004. pgs. 01-12

1111
O DISCURSO ESTÉTICO DA BODY MODIFICATION NA FORMAÇÃO CULTURAL
DA JUVENTUDE CONTEMPORÂNEA

Nívea Maria Silva Menezes


Mestranda em Educação pelo PPGE-UNIMEP

Este texto tem como objetivo fazer um diálogo entre o discurso estético expresso no corpo a
partir da Body Modification e a formação da identidade do jovem contemporâneo.
Atualmente, o corpo contribui para um processo de exclusão e concomitantemente inclusão,
dependendo do padrão de corpo que é vislumbrado nas vitrines. Desse modo, tanto as coisas
quanto as pessoas se tornam cada vez mais substituíveis, faz se necessário à demarcação de
algum tipo de ícone que permita o reconhecimento imediato daquele que o porta, que deixe
algum vestígio. O uso do corpo permitido pelas modificações corporais encontra-se em
tendências dentre as quais, podemos destacar as mais conhecidas como as tatuagens e piercings
(incluindo-se agora as tatuagens e piercings genitais), alargamentos de orelhas, escarificações
(cicatrizes profundas), brandings (marcações com ferro em brasa), implantes subcutâneos, body
play (brincadeiras com agulhas que perfuram o corpo), blood play (brincadeiras com sangue),
cuts (amputações) e os chamados “rituais de suspensão” nos quais as pessoas são presas a
piercings gigantes e penduradas por um sistema simplificado de cordas e polias. Lastória (2004,
p. 02).
As modificações corporais configuram-se numa estética in, quando seguem a moda vigente,
disputada e almejada pelo padrão imposto via Indústria Cultural, mas que é logo superada e
descartada por outra, transformando-se em estética, out, ou seja, fora da moda e ultrapassada,
nessa busca incessante pelo logotipo ideal. Portanto, as estéticas in e out são voláteis e
substituíveis por novas tendências do mercado. Türcke (2001, p. 113).

O corpo exaltado pela Indústria Cultural constrói e reforça, modismos a partir do fascínio pelas
novas tecnologias; pois, a estetização do corpo compreende um mecanismo de funcionamento
desta Indústria, na medida em que ele também pode ser lugar de autonomia, de resistência, e
principalmente de diferenciação na medida em que cria e referenda novos parâmetros a serem
seguidos pela sociedade de consumo. O declínio da mediação familiar e da escola parece estar
relacionado com a propensão a comportamentos espetaculares e sensacionais impingidos ao
corpo, como constituintes de uma dada personalidade da juventude.

Nesse sentido, a análise da constituição desses comportamentos pode indicar em que medida os
jovens mimetizam em seus corpos e em suas relações as tendências extremas da sociedade.
Segundo Le Breton, o corpo é pensado como uma matéria indiferente, simples suporte da

1112
pessoa. Ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir
a fim de melhorá-lo, uma matéria-prima na qual se dilui a identidade pessoal, e não mais
uma raiz de identidade do homem (...). O corpo é normalmente colocado como alter ego
consagrado ao rancor dos cientistas. Subtraído do homem que encarna à maneira de um
objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de qualquer valor.
(2003, p.15). O discurso difundido pela tecnociência corrobora para uma tendência extremista
manifesta no uso instrumental do corpo, quando o esvazia de significados simbólicos e o
transfere para a categoria de coisa sem valor. O que é extremamente paradoxal, haja vista os
investimentos da cultura contemporânea sobre o mesmo.

Conforme Charles Melman, nossa cultura vem sendo pautada por um novo modo de conceber o
mundo e também de como se comportar nele e, isso afeta sobremaneira as relações consigo e
com os outros. É o que Melman conceitua como sendo a Nova Economia Psíquica – NEP. Que
se apresenta como sendo, doravante, um notável consenso no nível dos comportamentos, das
escolhas em favor de uma nova moral. Manifestações que deixam poucas dúvidas sobre a
novidade dessa economia. Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de
se casar ou não, de viver a família, a pátria, os ideais, de viver-se. (2003.p.15).

Um dos reflexos disso é exatamente o tratamento dado ao corpo, usado cotidianamente


enquanto tela de exibição do homem contemporâneo. Que não consegue mais expressar idéias
em que os códigos imagéticos não sejam utilizados via de regra para intervir naquilo que se quer
dizer. E encontra no corpo principalmente dos jovens, lugar para as mais diversas práticas
corporais. A identidade do jovem contemporâneo parece ter uma relação intensa com a NEP,
pois nessa lógica organizacional não há limites para se alcançar o que se deseja e muito menos
mediação nesse processo. O uso do corpo e sua exibição através dos rituais de body
modification, por esses jovens, representam sintomas dessa nova forma de conceber a
identidade dentro da cultura.

Segundo Kehl, no corpo têm-se marcas da sociedade contemporânea que compreendem um


texto a ser lido. Parece que o corpo lhe basta; o corpo que foi para o bebê a primeira sede
narcísica do eu, continua dando conta, para estes novos sujeitos, de todas as questões a
respeito do ser e do sentido da vida. (2004, p. 177).

Melman nos chama atenção para essa nova conformação dos sentidos, pois se apresenta como
um fenômeno novo, no qual estamos lidando com um momento de mutação, onde passamos de
uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada em prol da exibição do
gozo. Doravante nos encontramos na era da liberação do gozo, que não necessariamente é

1113
manifesta pela liberação do gozo sexual padrão, mas que apela para outras formas de gozo. Há
uma escravidão dos sujeitos pelos objetos de consumo, que podemos qualificar como uma
economia perversa de mercado; na qual os sujeitos só enxergam a possibilidade de realização
pessoal se portam determinado ícone, sem que haja um processo de mediação simbólica. O
sujeito sob essa ótica se torna incapaz de refletir sobre a ação.

Ao passo que, nos encontramos na era do prazer e da liberação irrestrita dos gozos, e inexiste
limite, atrelado a isso também se criou um imenso vazio que leva as pessoas a estados de
intensa depressão. Os obstáculos que antes exigiam dos sujeitos o pensamento, a reflexão e
elaboração de idéias, hoje não existem mais, não sabemos mais o que há para pensar. Daí a
extrema fragilidade pela qual atravessa o sujeito na contemporaneidade. Para Melman: o sujeito
não é mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referências,
o indivíduo se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa.
Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma freqüência de estados
depressivos diversos. (2003, p.40)

Portanto, os sujeitos que “gravitam” sem referências, têm o amparo não mais da família, do pai
ou da mãe, que se tornaram anacrônicos nessa lógica, mas de toda uma recente economia
voltada para atender seus desejos. Economia esta, que reforça cotidianamente as fragilidades
tanto das relações como da constituição identitária, que está esvaziada de referências. Como isso
afeta o comportamento das novas gerações torna-se algo sem precedentes. As tendências
extremas fomentadas pela nova economia psíquica juntamente a economia de mercado,
propiciam situações que escravizam os sujeitos de tal maneira que é exigido deles a prova da
capacidade de participar dessa economia. A forma como estão dispostas as estratégias de
sedução são tão articuladas pelas leis de mercado, que a negação a estes dispositivos é
praticamente nula.

Chegamos num estágio que a identidade do jovem, só vai lhe pertencer se ele tiver um formato
que ele entende que convence! A identidade dele está colada ao corpo, o sujeito se auto-
escraviza em nome de algo que ele imagina que deve ser; e isso caracteriza uma economia
perversa estreitamente atrelada à economia liberal de mercado. Na qual os sujeitos querem ir
sempre e sem mediação direto ao gozo, que como já dissemos, não precisa ser necessariamente
o gozo sexual padrão.

A expectativa de corpo que se vislumbra socialmente hoje é nessa nova economia psíquica alvo
constante, pois, nela o corpo assume uma relação de objeto a ser exibido, de coisa que porta

1114
tanto um potencial in como out, e que traz consigo a capacidade de incomodar dependendo da
estética adotada. O caráter out das tendências body modification são manifestações crescentes e
trazem um discurso que é de protesto, mas que, no entanto, se resume ao porte do signo
imagético, não há um debate sobre a atitude de protesto. É preciso se pendurar se cortar, se
costurar, usar próteses diversas, etc. para de fato o jovem sentir que o seu grito visual vai captar
atenção; nesse contexto a ação prescinde da palavra, ela se cola no visual. Isso revela, cada vez
mais, traços de um comportamento que aponta para a regressão dos sentidos, pois os sujeitos
não estão mais se inserindo na cultura através de códigos simbólicos ou abstratos, mas sim por
intermédio do imaginário.

A nova economia liberal de mercado, apoiada pela mídia, inegavelmente tem um apelo muito
forte no seu discurso, o corpo nessa perspectiva de mercado para existir deve antes de tudo
impressionar. Assim, a relação com o próprio corpo e conseqüentemente com o corpo do outro,
não escapa da reificação impingida aos corpos pelo mercado.

Numa sociedade em que o apetite pelas experiências de todo tipo vive seu ápice e a promessa
fugaz de felicidade anuncia-se cotidianamente, apesar disso, as pessoas se vêem em meio a um
enorme vazio. Pois seu acesso aos prazeres dessa nova economia libidinal são paliativos, e ela é
organizada, sobretudo para ludibriar o sujeito. Mas mesmo assim ele se rende aos seus
encantos... Ainda que para isso dilua sua identidade pessoal e assuma um perfil que
provavelmente terá um reconhecimento público e midiático.

Como tudo na Indústria Cultural transforma-se em mercadoria feita para se exibir e isso inclui
as relações humanas, é necessário no atual contexto o resgate da capacidade de mediação, de
reflexão sobre os atos e não ir ao ato simplesmente! Assim, a economia de mercado tem papel
fundamental no consumo exacerbado de produtos que constroem referências sobre o corpo, seus
arquétipos, valores e os usos do mesmo.

É preciso abandonar o imaginário sem mediações do mundo sem gravidade de que nos fala
Melman e nos atermos ao mundo real; se quisermos ainda, ir além de uma personalidade
empobrecida pelas experiências formativas apresentadas no mundo contemporâneo.

Neste sentido, pensar a questão da formação dos sujeitos que estão envoltos nesses processos de
deformação da identidade torna-se primordial. Tudo que dissemos até agora aponta para sujeitos
em vias de degradação regressiva. E a cooptação dos sentidos pela nova economia psíquica,
apesar de ser um fenômeno recente, é tão somente o prenúncio da crescente disposição dos
sujeitos contemporâneos a se adequarem ao esvaziamento dos sentidos.

1115
Referências Bibliográficas

FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. CD-ROM Freud: Obras Completas,
53p.

KEHL, Maria R. Com que corpo Eu vou? Videologias: ensaios sobre televisão. Eugênio Bucci
e Maria Rita Kehl. São Paulo: Boitempo, 2004. pgs. 174-179.

LASTÓRIA, Luiz A. Calmon Nabuco. Utopias somáticas como contra-face da distopia social
CD-ROM Colóquio Internacional: “Teoria Crítica e Educação” realizado de 13 a 17 de
setembro de 2004. pgs. 01-12.

BRETON, David L. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.


pgs.13-21.

ROUANET, Paulo Sérgio. Teoria Crítica e Psicanálise. 4 ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro; 1998. pgs. 122-149.

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: Gozar a qualquer preço. Janeiro - Companhia
de Freud, 2003. 211pg.

SAFATLE, Vladimir. Um corpo obsoleto: sobre a relação entre fragilização das identificações
e reconstrução contínua do corpo. In: CD-ROM do Colóquio Internacional: “Teoria Crítica e
Educação” realizado, de 13 a 17 de setembro de 2004. pgs. 01-12

1116
O potencial libertador da arte no pensamento marcusiano

Orestes Simeão de Queiroz Neto

A sociedade do período burguês, anterior à época de Herbert Marcuse, preconizava como


direito inalienável a liberdade do indivíduo. Era uma liberdade pautada pelos valores universais,
porém, para o indivíduo, consistiu apenas em simulacro de liberdade, porque ele continuava
acorrentado a um sistema que perpetuava a sua condição não livre.
Sob esse contexto, a cultura burguesa afirmava os valores ditos universais do belo, justo e
verdadeiro e de liberdade intrínsecos aos indivíduos. Contudo, para a grande maioria era vetada a
possibilidade de realização daqueles valores. O sujeito que se imaginava livre, na verdade não o era,
pois não possuía realmente a autonomia necessária para decidir por si mesmo. Apenas obedecia
cegamente aos ditames do sistema sem nenhuma contestação. Resignava-se a trabalhar
incessantemente, em condições deploráveis, consumindo apenas pouco mais que o necessário para a
manutenção de sua vida escravizada.
Nesse cenário de imposição, Marcuse aponta o papel desempenhado pela arte burguesa, a
saber, encobrir a desigualdade social e a infelicidade humana. Mas como a cultura afirmativa realiza
tal tarefa? Como serve para manter o status quo? Segundo Marcuse, a cultura afirmativa responde à
infelicidade e à desigualdade social num plano idealizado. Assim para o autor, “às necessidades do
indivíduo isolado ela responde com a característica humanitária universal; à miséria do corpo, com
a beleza da alma; à servidão exterior, com a liberdade interior; ao egoísmo brutal, com o mundo
virtuoso do dever” (Marcuse, 1997, p.98).
Não obstante, esses ideais foram em algum momento histórico profundamente
progressistas, mas deixaram de sê-lo e foram colocados a serviço do sistema, promovendo o
controle e garantindo apenas a perpetuação do próprio sistema . Um exemplo disto são os ideais da
Revolução Francesa — liberdade, igualdade e fraternidade — que não se concretizaram, ficando
apenas em sentido abstrato. Assim, “uma vez alçada ao poder e diante de reivindicação de
liberdade, igualdade e fraternidade concretas, a burguesia responde com a cultura afirmativa:
liberdade abstrata, igualdade abstrata e fraternidade abstrata” (Silva, 2005, p.31).
No entanto, é preciso perceber que, ao remeter a felicidade do indivíduo para algo
idealizado, a arte conteria por isso mesmo elementos de ruptura, elementos de transformação do
todo social. “A arte nutriu a crença de que toda a história constitui até hoje apenas a obscura e

1
1117
trágica pré-história da existência futura” (Marcuse, 1997, p.99). A arte serviria para acordar do sono
profundo da resignação, fazendo lembrar da vida trágica e indicando uma outra forma de
organização social possível. As belas pinturas e esculturas do período burguês apontam para uma
felicidade que poderia deixar de ser etérea e passar a fazer parte da concretude da vida humana, ou
seja, que saísse do plano da transcendência se voltasse ao plano da imanência .
No pensamento marcusiano a arte burguesa revelaria a sua própria condição irreconciliável
com o mundo, ao desvelar novas formas de existência condizentes com a beleza e a felicidade. A
contradição está em que o irreconciliável encoberto no plano da transcendência aponta
imediatamente para a sua própria auto realização no mundo. O termo é bem claro, ou seja, parece
irreconciliável, simplesmente porque questiona o mundo e ao mesmo tempo, ao fazê-lo, a arte
indica as possibilidades de torná-lo inteiramente outro .
No mundo das falsas necessidades e ilusões vãs a mera menção de outra forma de
organização da vida, de realização da felicidade do homem e efetivação do sonho de exercitar a arte
de viver, demonstradas mesmo que de forma idealizada nas obras de arte, designa um motivo de
preocupação para o sistema. E quanto mais se reafirma a repressão sobre os indivíduos nas suas
várias instâncias, mais se torna insustentável essa mentira e a loucura incutida nos seres humanos,
prova disso é a própria arte que recusa todo esse horror. Assim, para Marcuse, “numa sociedade
que se reproduz por meio da concorrência econômica, a simples exigência de uma existência feliz
do todo já representa uma rebelião” (Marcuse, 1997, p.100).
A arte não referenda o lucro a qualquer custo, a opressão, a miséria, a carência e o
sacrifício, mas denuncia a própria autofalência do sistema, ao desvelar implacavelmente essa
realidade que, se foi estabelecida entre os homens, também pode ser desfeita.
Em Marcuse a arte pode ser entendia como reconciliação, ao tornar real as idealizações de
um mundo justo, verdadeiro, belo e feliz. Isso significaria não haver nenhuma dicotomia entre os
planos da imanência e transcendência. Todavia, a reconciliação implicaria no desaparecimento da
arte: “Essa perspectiva apontaria para a morte da arte, pois a oposição entre arte e a vida seria
superada” (Silva, 2005, p.47). As expressões da arte e da vida seriam realçadas, ou melhor, não
haveria distinção entre uma e outra. Isso implicaria numa comunidade de pessoas de fato livres e
autônomas.
Segundo nosso autor, as bases técnicas para fazer a transformação social já existem, porém
é preciso que se reoriente a razão que rege o sistema, ou seja, transmutar a razão instrumental que
guia as ciências, para uma outra razão que rege a arte. Não a razão responsável pelo aniquilamento
do indivíduo, aquela que “... também teve por função reprimir e até destruir o impulso para viver,

2
1118
para viver bem e para viver melhor....” (Marcuse (1973, p.211), mas uma outra razão que libere o
indivíduo para a vida, para vivê-la bem e para viver melhor ainda. As figuras mítico-estéticas de
Prometeu, Narciso e Orfeu discutidas por Marcuse em Eros e Civilização, ilustram as diferenças
entre a razão instrumental e a razão arte.
Quando se observa os arquétipos de Prometeu contempla-se possibilidades de manutenção
do stabishment . Prometeu responde prontamente em defesa dessa sociedade infeliz. “Ele simboliza
a produtividade, o esforço incessante para dominar a vida; e o trabalho sofrido estão
inextricavelmente interligados” (Marcuse, 1999, p.147). Através da elaboração dos signos, busca-
se justificar o sofrimento, a desilusão dos indivíduos, de forma tanto inconsciente quanto consciente
perpetuando, assim, uma ordem racionalista responsável pela infelicidade humana. No entanto
existe algo que escapa ao espectro do terror, a própria fantasia (imaginação), que não se coaduna
com a razão sistêmica, resguardando aspirações de realização integral do homem. Prova do possível
encontro do homem consigo mesmo são os signos de Orfeu e Narciso restabelecendo em nossa
memória a legitimação da transformação qualitativa da sociedade.
Orfeu e Prometeu são arquétipos de uma vida livre e bela, enunciam a alternativa de um
modelo de sociedade regida por uma razão pauta nos valores artísticos. Obviamente que a troca do
padrão racional por um padrão estético seria prova inequívoca do amadurecimento de nossa
civilização. Por isso Orfeu e Prometeu são “... a imagem (...) da alegria e da plena fruição; a voz que
não comanda, mas canta; o gesto que oferece e recebe ...” ( Marcuse, 1999, p.148). As imagens que
se revoltam e denunciam o aniquilamento promovido pelos homens contra eles mesmos. Na época
de hoje, basta lembrarmo-nos dos bombardeios israelenses no Líbano, ou ainda, da guerra do
Iraque, para que tudo isso? Por que não vivenciarmos uma existência pacificada?. Por que
insistirmos na separação da razão e da arte?
Partindo do pressuposto de que vivemos sob a tutela de um princípio de realidade repressor,
a razão e a arte estão em pólos opostos: de um lado a razão irracional, facilmente notada em todos
os desastres estabelecidos até hoje em seu nome (exemplos acima) e, de outro, a arte em sua
aparente irracionalidade, negando determinadamente toda a situação criada pelo sistema gerador de
infelicidade humana. A razão reflete uma falsa harmonia presente na relação entre o homem e a
natureza e entre os próprios homens. Falsa harmonia porque torna obscura a aparência racional e a
realidade irracional. Assim não se questiona a obsolescência programada dos carros, a devastação
das florestas, ou ainda a vida controlada que vivemos, pois apenas em aparência elas podem ser
racionais. No entanto, são a prova de que estamos em uma realidade totalmente irracional. A
natureza é vista como um prolongamento de nossos jardins, onde se manipula segundo interesses

3
1119
escusos toda a fauna e flora do planeta. Da mesma maneira, estabelece-se uma relação não de
sujeito e sujeito, mas uma relação em que o outro é tratado apenas como objeto para atender a
determinados fins. Não importa a quais riscos os funcionários de uma dada empresa são
submetidos, desde que maximizem ao máximo os lucros dos investidores. As pessoas são vistas
apenas como mercadorias, facilmente trocadas ao bel prazer dos donos do capital.
Promoveu-se assim a dissociação entre a razão tecnológica e a razão arte. A primeira
significa a totalidade de instrumentos que ratificam a manutenção do status quo. Em outros termos,
“...uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamentos dominantes, um
instrumento de controle e dominação” (Marcuse, 1999, p.73). Essa racionalidade até o momento
obscureceu qualquer possibilidade de transformação qualitativa da sociedade, principalmente
porque promoveu o aparecimento de uma falsa arte no seu universo de dominação. Pode-se atribuir
a nomenclatura de falsa arte, porque não contém os aspectos relevantes da liberdade, fantasia e, em
certo sentido, da insensatez. Esse tipo de arte é guiado de forma tecnicista, regulamentado para um
gosto específico e acondicionado em padrões de consumo previamente definidos pelo sistema.
Basta vermos os quadros adquiridos em leilões, não retratam em si uma arte diferenciada, mas
significam reserva de valor. Ou ainda, quando vemos multiplicar réplicas de obras famosas de
maneira industrial para apenas ornamentar os escritórios das grandes corporações. E a segunda, a
razão arte, seria justamente o fato de ser assaz irracional, incompatível com o mundo da dominação.
A razão arte não é um suplemento para entorpecer os indivíduos, mas seu “... efeito é um despertar
da memória, a lembrança de coisas perdidas, a consciência do que foi e do que poderia ter sido”
(Marcuse, 1999, p. 286). A razão arte põe em xeque a razão tecnológica em todos os momentos em
que nega os padrões de comportamento dominante, pois é a única dimensão que não pode ser
absorvida pela sociedade do capital.
A racionalidade técnica empreendida no universo da opressão estabeleceu padrões de
produção de bens, produtos e serviços em nível jamais imaginado. A razão técnica “...pode
promover tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho
árduo” ( Marcuse, 1999, p.74). Obviamente isso resultou em novos padrões de consumo que se
revelaram eficazes em escravizar o indivíduo a uma “vida boa”. Vida que assinala, por um lado, o
consumo de mercadorias desnecessárias à existência e que, por outro lado, diminuem o sentido
crítico e autônomo dos sujeitos. Por isso, a crítica ao sistema torna-se mais abstrata, pois os
indivíduos estão ludibriados com benesses oferecidas pelo sistema. No entanto, a vida boa que
imaginam ser o ponto máximo de liberdade e prazer, não significa nada disso. Ao contrário,
promove-se o aniquilamento dos indivíduos em troca da elevação do padrão de vida e trabalha-se

4
1120
cada vez mais para se poder participar da sociedade opulenta, mesmo que isso signifique exterminar
outros seres humanos. Contudo, graças ao aparato técnico, poder-se-ia trocar a labuta por prazer, o
aniquilamento pela vida, bastando para isso reorientar a razão tecnológica em razão de arte.
Exatamente como no passado, a arte e a filosofia já enalteciam a celebração da vida e não da morte,
mesmo que fosse em sentido idealizado. Na atualidade, a razão tecnológica tornou possível a
concretização desses ideais, mas é oportuna uma inversão da razão técnica em razão arte. Porque a
razão tecnológica se pauta por um modelo instrumentalista e a razão arte nega com toda veemência
esse instrumentalismo suicida. “Assim, as especulações sobre boa vida, a boa sociedade, a paz
permanente obtêm um conteúdo cada vez maior: em bases tecnológicas, o metafísico tende a tornar-
se físico” (Marcuse, 1973, p.213). Abre-se de imediato a questão: será possível promover a junção
do desenvolvimento técnico sob a égide da arte e filosofia?
Segundo Marcuse, a junção é possível, exatamente porque o desenvolvimento racional
tecnológico estaria no limite pleno de sua capacidade. Isso teria profundas implicações para as
estruturas e direções estabelecidas. O progresso gerado então poderia romper com o sistema
estabelecido, transformando, segundo nosso autor, quantidade em qualidade. Assim a sociedade não
seria medida por padrões quantitativos e meramente economicistas, mas por padrões
qualitativamente superiores.
Contudo, defender esse ponto de vista não significa apelar para uma metafísica dos valores,
mas exatamente o contrário, colocar os valores no imanente, redefinindo-os como resultado do
progresso técnico. “Sob tais condições, o próprio projeto científico ficaria livre para fins
transutilitaristas e livre para “arte de viver”, além das necessidades e dos supérfluos da dominação”
(Marcuse, 1973, p.214). Com isso, haveria a reversão completa da racionalidade tecnológica em
uma racionalidade arte, projetando para a realidade humana existências livres e pacíficas.
Certamente seriam alteradas as relações entre ciência e arte, na medida em que os opostos seriam
transmutados em um só. Em outros termos, teríamos uma concepção nova de ciência.
Para chegarmos a esse propósito, é forçoso que o rompimento com o padrão racional
tecnológico não signifique abdicarmos do progresso técnico, pois ele tem diminuído os níveis de
exploração do trabalho humano. Por exemplo, quando determinadas atividades de extração de
minérios podem agora ser realizada por robôs, dispensando o uso de força humana de trabalho e,
obviamente, evitando os perigos dessa atividade ou, quando novos medicamentos são
desenvolvidos e mitigam a dor e sofrimento.
Não se mencionou ainda um ponto fundamental da teoria marcusiana: o redirecionamento
do progresso técnico para outras finalidades, sem dúvida uma das mais relevantes, a existência

5
1121
pacificada. A racionalidade técnica promoveria a libertação do indivíduo da labuta penosa e não
edificante, porém outros dilemas se apresentam. A razão tecnológica passa, segundo Marcuse, a
depender da direção política: “... do esforço coletivo para conseguir uma existência pacífica, com as
metas que os indivíduos livres possam escolher para si” (Marcuse, 1973, p.217).
Não obstante, dizer adeus à sociedade afluente em nenhum momento nos remete nas
próprias palavras do autor: “... à pobreza saudável e robusta, à limpeza e à simplicidade” ( Marcuse,
1973, p.223). Nosso autor não um crítico da técnica. Na verdade, na sua ótica, ela pode sinalizar o
fim completo da labuta e dor desnecessária do ser humano. Abdicar da sociedade opulenta não
significa virar as costas para a técnica, mas sim que podemos nos utilizar dela para criar uma outra
sociedade.
Virar a página da sociedade afluente é por certo aumentar a riqueza social distribuída, pôr
fim à mobilização permanente e negarmos a negação das satisfações reprimidas nos indivíduos pelo
sistema. Por isso, a arte em sua tarefa de se opor à repressão institucionalizada e reviver a memória
da felicidade possível, denunciada em todas as obras autênticas, mostra-se implacável e contundente
na busca pela essência livre dos seres humanos. Justamente por tratar-se talvez da última instância
ainda não absorvida pelo princípio repressor da sociedade descartável, o universo artístico pode
reinterpretar os obsoletos padrões da sociedade opulenta em novos padrões. Pode enfim, veicular
sobremaneira a autenticidade dessa utopia possível.

Referências

MARCUSE, Herbert Cultura e sociedade I. Tradução de Wolfgang Leo Maar et all . São Paulo:
Paz e Terra, 1997.

MARCUSE, Herbert Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.


8.ed. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Livros Técnicos e Científicos, 1999.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Tradução Giasone Rebuá. Rio de


Janeiro: Zahar, 1973.

MARCUSE, Herbert. Tecnologia, Guerra e Fascismo. Tradução Maria Cristina Vidal Borba. São
Paulo: Unesp, 1999.

SILVA, Rafael Cordeiro. Arte e Reconciliação em Herbert Marcuse. Trans/Form/Ação: Revista de


Filosofia. São Paulo, 28(1):29-48, 2005.

6
1122
BANALIZAÇÃO DA ARTE E DOMINAÇÃO SEGUNDO A TEORIA CRÍTICA

Paulo Irineu Barreto Fernandes


Universidade Federal de Uberlândia - MG

INTRODUÇÃO

No presente trabalho, faço um estudo de como os teóricos de Frankfurt entendem o papel da


arte. Em seguida, procuro estabelecer relações que demonstrem que a arte possui um elemento de
protesto e de elevação a um plano superior, elemento este que sempre esteve presente em todas as
manifestações artísticas genuínas, mas que, no capitalismo avançado, é deixado em segundo plano.
Além disso, analiso as relações entre cultura e dominação, bem como os conceitos de indústria
cultural e cultura de massas, que são próprios do sistema capitalista. O trabalho toma como
ponto de partida o estudo do pioneirismo da Escola de Frankfurt no que se refere ao tema da
indústria cultural.
Fundamental para a construção da expressão indústria cultural, foi a análise do conceito de
“esclarecimento”. Este tinha como finalidade promover a libertação dos homens do medo e do
encantamento, tornando-os senhores de si mesmos. Admitindo-se que tal finalidade poderia ser
atingida por meio do domínio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que o Iluminismo
instauraria o poder do homem sobre a ciência e a técnica. Mas não foi isso que se verificou. Ao se
ver liberto do encantamento e da magia, o homem tornou-se vítima de uma nova forma de
encantamento: o progresso dos meios de dominação técnica. Ao invés de libertar o homem, o
progresso da técnica acabou por escravizá-lo, alienando-o. Os meios de comunicação de massa,
resultado direto do desenvolvimento da técnica, tiveram papel importante nesse processo de
“escravização”.
Adorno, em diversas ocasiões, refere-se ao esquematismo kantiano, seja na tentativa de
demonstrar que a indústria cultural inverteu a ótica kantiana, ou para evidenciar que o papel
atribuído por Kant à consciência na formação de um indivíduo autônomo foi apoderado pela
indústria cultural.
No livro Crítica da Razão Pura, Kant define a sensibilidade como uma faculdade de
intuição, através da qual os objetos são apreendidos pelo sujeito cognoscente. Kant, através do que
ele denominou “revolução copernicana” em filosofia, afirmou que é a faculdade de conhecer que

1
1123
regula os objetos, a realidade objetiva e não o inverso. Cabe, portanto, um papel fundamental ao
sujeito no processo de conhecimento e de construção da realidade. Para Adorno, no entanto, a
indústria cultural assumiu o controle do que, de acordo com Kant, deveria ser creditado à
consciência.
A função do esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber,
referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada
ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao
cliente. Na alma deveria atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados
imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo está hoje
decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos organizadores dos
dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que
permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é
transformada em sua passagem pelas agências do capital do modo a aparecer como o
sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar
que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção.1

Toda a realidade, agora, deve passar pelo filtro da indústria cultural, cujo alimento é o
casamento do conformismo dos consumidores, que ratificam a demanda do todo produzido, com o
descaramento da produção.
O pioneirismo dos teóricos de Frankfurt está no fato de terem sido os primeiros a evidenciar e
nomear este uso da técnica para fins de dominação. Hoje a expressão indústria cultural tornou-se
comum e, em muitos casos, é até banalizada.
Cabe agora abordar a maneira como cada um dos autores estudados no presente trabalho
entende a maneira como se dá a relação entre a banalização da arte e dominação no contexto da
sociedade capitalista.

BENJAMIN E A REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA DA OBRA DE ARTE

No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin procura


estabelecer uma relação entre a arte e a política, na tentativa de dar uma estrutura atual às questões
colocadas pela teoria estética. O ponto central do ensaio é a investigação acerca da possibilidade da
utilização, para fins políticos de emancipação e para a revolução comunista, dos novos conceitos da
teoria estética. Conceitos estes que surgiram a partir do advento da massificação das técnicas de
reprodutibilidade da obra de arte.

1
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, p. 117.

2
1124
Para Benjamin, as técnicas de reprodução da obra de arte não só possibilitaram o surgimento
de novos conceitos na teoria da arte, como também possibilitaram, a partir destes novos conceitos, o
surgimento de novas teses sobre as tendências evolutivas da arte. Entre tais conceitos, podemos
destacar alguns que são fundamentais para o desenvolvimento do presente trabalho, a saber: o
próprio conceito de reprodutibilidade técnica da obra de arte e os conceitos de aura e autenticidade.
As técnicas de reprodução representam, pela primeira vez na história, uma emancipação da
obra de arte em relação aos elementos da tradição. É a partir desta concepção que Benjamin defende
a mudança e transformação da função social da arte, que deixa de ser um elemento de manutenção
da tradição, fundando-se em outra esfera, a da práxis política.
A precedente discussão representa um aspecto importante que redunda na seguinte
dicotomia: tradição versus revolução. O primeiro destes elementos sempre serviu às concepções
totalitárias, como o fascismo, para o qual representou a tentativa de uma estetização da política. O
segundo representa a resposta dada pelo comunismo, em que Benjamin busca evidenciar a
possibilidade de uma politização da arte (estética). Cito agora dois exemplos que servirão para
ilustrar os conceitos de estetização da política e politização da arte. Ambos são decorrentes da
reprodutibilidade técnica.
Um exemplo da estetização da política está no documentário “Arquitetura da destruição”, de
Peter Cohen, produzido em 1989. O filme mostra o caráter “estético” do nazismo. Hitler e os seus
comandados procuravam promover uma “limpeza étnica”, tendo a arte como fundamento,
sobretudo a música de Wagner, a arquitetura e a pintura.
No filme evidencia-se que um dos argumentos usados pelo “Nacional Socialismo” era o de
que “a arte é o espelho da saúde social”. Desta forma, os nazistas associaram a liberdade de criação
dos elementos usados na arte moderna com as imperfeições próprias de uma raça considerada
inferior, neste caso os judeus. Quando a derrota já se afigurava como inevitável, a principal
ocupação do III Reich foi o extermínio dos judeus, que, a princípio, eram mortos através de
fuzilamento. Com a construção dos campos de concentração, o extermínio se caracterizou ainda
mais como uma “limpeza estética”, pois as câmaras de gás, que usavam substâncias usadas em
insetos, conferiram um caráter “higiênico” às execuções, já que os judeus eram vistos como uma
praga sobre a Terra.
Um exemplo da politização da arte está no filme O grande ditador, no qual Chaplin
interpreta o ditador Hynkel, clara alusão a Hitler, e um barbeiro judeu. O barbeiro se vê em
problemas com a tropa de choque, até que um oficial alemão, que ele havia salvo na guerra, o
reconhece e, por gratidão, impede que os soldados o molestem e aos seus amigos (judeus). As

3
1125
coisas começam a mudar quando o oficial, protetor do barbeiro, não concorda com a postura do
ditador e torna-se inimigo do mesmo. Assim recomeçam as hostilidades contra os judeus. O
barbeiro e o comandante são enviados para um campo de concentração. Ao ser confundido com
Hynkel, o barbeiro tem a oportunidade de fazer um discurso no qual faz um elogio à paz e à
fraternidade, em oposição à ideologia (e prática) nazista.

THEODOR ADORNO E O FETICHISMO NA ARTE

Se o pensamento de Benjamin admite o uso, para fins políticos, dos conceitos próprios da
época da reprodutibilidade técnica da obra de arte, o de Adorno se mostra mais radical. Em termos
gerais, Adorno não admite a distinção entre a politização da arte e a estetização da política, feita por
Benjamin.
Adorno expõe o fato de que as queixas acerca da decadência do gosto musical sempre
existiram. No entanto, é a liquidação do indivíduo autônomo o que constitui o sinal característico da
arte inferior, cujo principal elemento é o seu viés consumista e não artístico. Nessa relação, o
consumidor não é sujeito, mas objeto. As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria
cultural, que impede a formação de indivíduos autônomos, independentes e capazes de julgar e de
decidir conscientemente. É a indústria cultural que determina o que e quando se vai consumir, pois
oferece os seus produtos a um consumidor que ela apresenta como autônomo, fazendo-o acreditar
que escolhe.
Essa imagem, no entanto, contrasta totalmente com aquela que realmente se verifica, que é a
de um homem que perdeu a sua individualidade e a sua autonomia. A indústria cultural, além de nos
oferecer uma realidade mecanizada, nos impede de pensar na possibilidade de uma outra realidade.
Transforma em sonho a possibilidade de uma autonomia e, em seguida, nos retira este sonho,
remetendo-nos cegamente para o consumo de seus produtos, com os quais nos identificamos,
transformando-os em fetiches e nos reduzindo a meras “coisas”, como evidenciado na citação
abaixo:
O entretenimento torna-se o imperativo de uma ordem econômica fundada na
reprodução do lucro. Como o sistema deixa muito pouco espaço para a formação
crítica do indivíduo, resta-lhe unicamente a opção do relaxamento proporcionado
pela música de massa. Sob este aspecto, produção e consumo andam juntos e os
produtores da diversão comercializada podem, tal como Pilatos, se eximir de
qualquer culpa que a eles possa ser imputada: apenas dão às massas o que elas

4
1126
realmente querem.2

Para Adorno, não há nenhuma possibilidade de que a reprodutibilidade técnica da obra de


arte possa servir a alguma forma de emancipação, trata-se apenas de uma regressão à barbárie. É um
“engano das massas”, portanto!
Enquanto os argumentos de Benjamin centram-se nas teses sobre as tendências evolutivas
da arte, os argumentos de Adorno tomam como ponto central as queixas acerca da decadência do
gosto, cujo principal elemento é o “encantamento dos sentidos”. Enquanto Benjamin trabalha com a
possibilidade de politização da arte, esta possibilidade, para Adorno, está descartada.

HERBERT MARCUSE E O CARÁTER AFIRMATIVO DA CULTURA

No ensaio “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, publicado em 1937, Marcuse aborda o


processo histórico de separação entre cultura e civilização. Nele evidencia o duplo caráter da cultura
burguesa, de alienação e de protesto, marcado pela oposição entre o real e o ideal.
Marcuse expõe o fato de que uma das tarefas sociais da cultura afirmativa é tornar tolerável
uma existência má promovendo a felicidade onde a mesma não existe, mas é uma necessidade. É na
arte, segundo Marcuse, que repousa a possibilidade de solução para tal contradição, mais
especificamente no caráter de aparência da beleza da arte, pois esta contém em si um elemento não
presente na filosofia ou na religião, a saber: a aparência de uma satisfação no plano em que
vivemos.
Para Marcuse, a arte é um plano (único) da cultura que permite a reprodução da felicidade
como valor cultural, o que não ocorre nos dois outros planos por ele destacados, a filosofia e a
religião. A arte é o mensageiro de uma verdade possível. As obras de arte burguesas contêm sempre
uma imagem de felicidade. O indivíduo vivencia uma libertação, através de um rompimento
privado da reificação. Por um instante, a pessoa que contempla a obra se sente indivíduo, deixa de
ser coisa, ao gozar de um sentimento único, próprio, seu.
Desta forma, eternizado na obra de arte, o momento belo pode ser sempre repetido, e quem
o contempla pode sempre reproduzir essa felicidade na fruição da arte. A arte confere autenticidade
ao inautêntico, pois o sentimento que ela desperta é verdadeiro.
A liberdade promovida pela sociedade (e cultura) burguesa tem como objetivo manter as
pessoas sob controle, uma vez que ela implica na condenação da fruição. Desta forma, busca impor

2
SILVA, Rafael C. A atualidade da crítica de Adorno à indústria cultural, p. 36.

5
1127
limites à reificação, cuja manutenção é vital para a perpetuação do sistema, não podendo, no
entanto, ser desmedida, pois isto afetaria o próprio sistema.
No âmbito da cultura afirmativa os planos “desprovidos de alma” não pertencem mais à
cultura, pois são abandonados abertamente à lei do valor da economia. Contraditoriamente, somente
a beleza e a fruição dotadas de alma são admitidas. A arte, desta forma, possibilita a felicidade no
plano em que vivemos. O que a credencia para tal? A sua beleza! Entendida assim, no entanto, a
arte estaria se prestando a um papel enganoso e contraditório. O papel ao qual a arte se presta torna-
se enganoso devido ao fato de que ela dá ao ideal uma aparência de realidade, para que o indivíduo
encontre a satisfação dos seus anseios e necessidades de fato. A satisfação que o indivíduo usufrui é
o efeito real da manifestação da arte, no âmbito da cultura afirmativa. Assim, a arte contribui para o
enquadramento e a moderação, confere um caráter de comodismo ao indivíduo, transforma-se em
mais um elemento para a dominação.
Seria necessário, portanto, de acordo com Marcuse, uma forma de arte não afirmativa, que
se voltasse contra as formas de dominação adotadas pelo sistema vigente, através da qual fosse
possível a superação efetiva da cultura afirmativa, o que não implicaria numa demolição da cultura
em geral, mas tão somente de seu caráter afirmativo.
Nos anos 60, Marcuse volta a indagar sobre a questão referente ao papel da arte. No texto
intitulado “A arte na sociedade unidimensional”, de 1967, ele defende o potencial liberador da arte.
Neste texto Marcuse expõe as razões que o levaram a retomar o tema da arte: uma espécie de
desespero centrado na possível morte da linguagem tradicional, claramente incapaz de comunicar o
que acontece no momento político presente. Para Marcuse, a arte é vista como “a única linguagem
revolucionária que resta”.3
No que se refere à “dimensão política” da arte, Marcuse não está certo de que já tenha
chegado o momento de sua efetivação, ou seja, ao colocar a questão de que terá chegado ou não o
momento de unir a dimensão estética à emancipação política, a resposta é negativa. Para ele, o
papel da arte, no que se refere à reconstrução social, não é o de embelezar o que já existe, mas sim o
de reorientar a vida numa nova sociedade.
Marcuse estabelece uma distinção entre a tecnologia, que se limita à reprodutibilidade
técnica e uma técnica que seja isenta do poder destrutivo que transforma homens e coisas em
objetos de consumo apenas. Tal técnica seria a responsável pela “construção” do belo, não um belo
material e sensível, mas um belo “formal” e não existente. Ao realizar esta transfiguração, a arte

3
MARCUSE, Herbert. A arte na sociedade unidimensional, p. 245.

6
1128
apenas mantém vivos a amargura, o desespero e o horror, transformando-os em elementos de júbilo,
transformando o negativo em positivo. Portanto, embora ilusória, a arte contém em si um caráter de
emancipação. Nisso reside sua perspectiva política.

CONCLUSÃO

1- De acordo com o que foi exposto, é correto concluir que há um inegável pioneirismo da
“Escola de Frankfurt” no que se refere ao tema da indústria cultural. Esse pioneirismo está
intimamente ligado à maneira como os teóricos perceberam que as implicações do avanço da
técnica, no capitalismo atual, atendem aos interesses de poder e dominação daqueles que são
economicamente mais fortes, viabilizando e consolidando a hegemonia. Sob esse aspecto, faço
minhas as palavras de Silva.
A forma mais sutil de dominação é representada pela indústria cultural. Ela se
adequa plenamente à vida administrada, funcionando como fator de legitimação e
obediência à hierarquia social. Por isso ela ocupa uma posição tão significativa na
economia monopolizada. Sob o temo cultura, em sua acepção contemporânea, estão
alojados os indicativos de que ela é a face ‘estética’ da racionalidade do cálculo, da
classificação e cumpre a função de preencher o tempo que o trabalhador não está
fisicamente presente no local de trabalho. 4

Até mesmo a falsa sensação de liberdade de escolha que é sentida pelos consumidores é
uma criação da indústria cultural, que substitui o papel da consciência. O domínio da arte
(burguesa) foi o terreno escolhido para ser o alicerce da dominação, através da supressão do
elemento de protesto que sempre esteve presente na produção artística.
2- No que se refere à maneira como os teóricos de Frankfurt abordam o processo de
banalização da arte, são evidenciadas duas dimensões. A primeira que pode ser denominada de
possível, evidenciada por Benjamin, a segunda, de real, evidenciada por Adorno. A primeira denota
uma possibilidade que, salvo raras exceções evidenciadas no presente trabalho, ainda não se
concretizou; a segunda denota uma realidade atual e consolidada.
É interessante pensar que Benjamin, que retirou sua própria vida numa situação de extremo
desespero, tenha manifestado otimismo em relação às questões levantadas no presente trabalho. A
afirmação feita por Borges, embora enfoque outro contexto da obra de Benjamin, também faz
sentido aqui.

4
SILVA, Rafael C. A percepção da barbárie: construção e desmoronamento da Teoria Crítica de Max
Horkheimer, p. 133.

7
1129
Walter Benjamin, nome destacado no rol de ilustres judeus promotores da filosofia
alemã, é ao mesmo tempo ousado e impotente. Abalou a sagrada cultura alemã,
enfrentando ideais clássicos como os defendidos por Goethe, favorecendo os anti-
heróis do cotidiano submundano, e levou até o fim trágico o absurdo de sua história
pessoal sob o fascismo. 5

A visão de Adorno, por sua vez, está em oposição à de Benjamin. O que está presente em
Adorno é a constatação de que o processo de banalização da arte é um terreno fértil para a
dominação, não havendo sequer um setor da realidade social em que a indústria cultural não possa
interferir. É importante também frisar que, ao contrário de Benjamin, para Adorno, a destituição da
aura da obra de arte não conduz, necessariamente, para a autonomia da mesma.
Finalmente, em Marcuse é possível determinar dois momentos diferentes em relação ao tema
da arte e de sua relação com a dominação e a política. O primeiro momento, ainda nas décadas de
’30 e ’40, caracteriza-se por entender a arte como uma promessa de felicidade no âmbito da cultura
afirmativa. A arte é a mensageira de uma verdade possível e o único plano da cultura que permite a
reprodução da felicidade como valor cultural, conferindo beleza à realidade efetiva. O que
credencia a arte para tal é a beleza própria da obra de arte. No âmbito da cultura afirmativa, a arte é
simultaneamente alienação e protesto: alienação enquanto a beleza de seus temas satisfaz apenas a
alma e não compromete em nada com a transformação social. Assim, a arte reforça a dominação.
Mas ela é também protesto, pois a beleza de seus temas funciona como denúncia da opressão do
mundo externo. Se a transformação social ainda não é possível, é pelo menos prometida para o
futuro. Sob esse aspecto, emerge sua dimensão política.

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10
1132
A presença do cinema no ensino médio: estudo sobre o uso pelos professores de História

Sandro Luis Fernades


UFPR – PPGE

Considerando a inserção dos equipamentos de videocassetes nas escolas e a disseminação


do seu uso a intenção deste trabalho é apresentar algumas possibilidades de análise por meio de
perspectivas de estudos da cultura e da comunicação. A pesquisa em andamento envolve
professores de história do ensino médio que utilizam filmes de ficção como recurso didático. Mas
para sustentar a análise da presença no cinema em sala de aula é necessário refletir sobre alguns
conceitos: cultura, cultura de massa, indústria cultural, comunicação de massa, capital cultural e a
presença da comunicação na sociedade brasileira. Esses conceitos são complementares à proposta
de pesquisa. E tem se mostrado fundamental analisar o professor na sua atuação em sala, sua
orientação sobre cultura e a sua interação com a mídia. Nesse viés cultural é necessário
compreender o capital cultural do professor, sua relação com a cultura dos alunos e a indústria
cultural.
De acordo com Williams (2003), a análise da cultura deve considerar o valor ideal
(universal) de determinada produção, bem como o documento, mas principal a análise deve ser
social, considerando significados e valores. É necessário entender a presença do cinema em sala de
aula como obra histórica e cultural, construída com base com determinado contexto, e
principalmente produzindo representações que são experimentadas de maneiras singulares e
coletivas, dependendo da faixa etária e capital cultural. Ainda Williams aprofunda a reflexão sobre
teoria da cultura que auxilia na interpretação do quadro sugerido pelas pesquisas até o momento:
(...) yo definiría la teoría de la cultura como el estudio de las relaciones entre los
elementos de todo un modo de vida. El análisis de la cultura es el intento de descubrir la
naturaleza de la organización que constituye el complejo de esas relaciones. El análisis
de obras o instituciones específicas es, em este contexto, el análisis de su tipo esencial
de organización, las relaciones que unas u otras encarnan como partes de la
organización en su conjunto. En él, la palabra clave es "patrón": cualquier análisis
cultural útil se inicia con el descubrimiento de un tipo característico de patrones, y el
análisis cultural general se ocupa de las relaciones entre ellos, que a veces revelan
identidades y correspondencias inesperadas entre actividades hasta entonces
consideradas por separado, y en otras ocasiones muestran discontinuidades imprevistas.
(2003, p. 56).
É importante entender nesse contexto o papel da comunicação através de filmes, segundo
Williams (1969, p. 313) se tiverem intenções de “persuadir grande número de pessoas a agir, sentir,

1133
pensar e saber de certa maneira”, então essas obras foram produzidas de acordo com a fórmula da
comunicação de massas. E é dessa categoria de filmes que se refere este trabalho. Filmes
produzidos com intenção comercial sem características pedagógicas explícitas, têm na escola um
ambiente diferente. Portanto ao serem levados para a sala de aula, estão num contexto não adequado
à sua produção original. E isto implica em adaptações e reflexões necessárias para justificar e usar o
filme com fins claros, coerentes e pertinentes.
Percebe-se pelas aproximações com as escolas pesquisadas, que os professores não
desenvolvem reflexão em relação às características da produção (quanto a ser de massa,artístico ou
comercial). Os professores adotam filmes que atraem a atenção dos alunos. E atrair a atenção tem
como base a ação, ou a ilustração direta através de cenas ou partes de filmes, que tem mais impacto
quando melhor produzidos. Entende-se como melhor produzidos quando se trata de filmes com
cuidados artísticos e técnico apurados, que utilizam tecnologia de ponta. Numa escola pesquisada,
no dia da entrevista, a professora comentou que iria passar A Queda: as últimas horas de Hitler
(HIRSCHBIEGEL, Oliver. Der Untergang. Alemanha/Itália: Degeto Film e outros. Distribuição:
Newmarket Films / M.M. Marcondes. 2004. 156 min.), e não tinha assistido ao filme. Ela seguiu
orientação de uma aluna que tinha assistido, e como eles estavam estudando a segunda guerra, o
filme deveria ser adequado. Tampouco, quando utilizados filmes com possibilidades de desenvolver
estudos, são produzidas ou encaminhadas reflexões e críticas sob orientação do professor. Trabalhos
em que os filmes são objeto de estudo (estético, histórico, ideológico) foram encontrados apenas
num professor, no universo de 20 pesquisados.
A pesquisa foi desenvolvida em 9 colégios de ensino médio, públicos, numa região da
cidade de Curitiba. Colégios com cotações diferenciadas perante a comunidade e a SEED
(Secretaria Estadual da Educação do Paraná). A aproximação foi feita a partir da área do núcleo da
SEEd responsável por estes colégios. O contato inicial foi realizado com diretores e diretoras das
intuições. Inicialmente foi passado para todos os professores de história das escolas um questionário
para perceber o nível de uso de filmes em sala de aula e o tratamento da presença dos mesmos na
sala de aula. De cada escola um professor que desenvolve trabalhos com filmes com intensidade
considerável (pelo menos uma aula por mês). Em todos os colégios havia pelo menos um professor
com este perfil. As entrevistas foram iniciadas no último bimestre de 2005.
A presença, nos colégios, de pesquisas e reflexões sobre a sociedade midiática é pouca e
fica num nível apenas de necessidade de inserção na escola. Isso significa que o professor percebe a
importância da comunicação de massa para os alunos, bem como da produção cinematográfica, e as
diversas formas de interação que são promovidas no meio social com seus alunos. Mas não há

1134
reflexão e nem estudos sistematizados nas escolas sobre isso. Em princípio, demonstrou-se
desinteresse e nenhuma necessidade por tal tipo de estudo. Apesar de afirmar que todos gostam de
cinema, o cinema não é percebido como algo que possa efetivamente ser um recurso que seja
entendido num contexto maior,ou seja, na interação dinâmica da vida do adolescente, o cinema
como parte integrante da história ou das condições de cultura contemporânea. A maioria dos
professores reclamou do preço do cinema, outros da falta de tempo para assistir em casa e ainda
dificuldades teóricas, pedagógicas e didáticas para desenvolvimento de trabalhos adequados. Uma
das reflexões que existem é que a escola precisa estar atualizada tecnologicamente. Daí a busca
frenética por tecnologia. Nas escolas a tecnologia é colocada de forma isolada. Isso se percebe na
valorização dos computadores e sucateamento e ou esquecimento da televisão. Nos colégios não há
nenhum cuidado com a qualidade dos equipamentos de TV e vídeo, tampouco com as condições de
assistência por parte do público. E em relação aos computadores, a preocupação é estrutural e não
há reflexão sistematizada sobre o uso ou presença dos equipamentos. Em relação à televisão e o
vídeo (DVD também) não há estrutura adequada (não há televisões que circulem pela escola com
facilidade ou no caso das salas especiais, não há cuidado com o conforto e tampouco com a
qualidade de som e imagem).
Nesse ponto percebe-se uma contradição entre a cultura dos sujeitos escolares e a cultura da
escola. Não há dúvidas sobre a importância da TV e do cinema na cultura contemporânea. Segundo
Loureiro e Della Fonte (2003, p. 42): “pode-se afirmar que atualmente o cinema e a televisão
representam as principais formas de mídia imagético-eletrônica, veículos de formação da cultura
político-social no Ocidente e, provavelmente, também no Oriente industrializado.” Essa
representação na escola não é considerada com a devida relevância. Como os alunos interagem com
os produtos culturais e as experiências que são produzidas nessa relação dentro da escola e fora dela
não é levada em conta nos procedimentos didáticos do uso do cinema na aula de história.
Por que ocorre a dificuldade de refletir e considerar os universos dos saberes escolares? As
escolas não têm problemas sérios de infra-estrutura: todas têm energia elétrica e equipamentos
disponíveis. Mas é maior valorização dos computadores em relação ao equipamento de vídeo e
televisão. Apenas a informática em tratamento de tecnologia escolar. Outras tecnologias apesar de
utilizadas são colocadas em segundo plano quanto à atualização de equipamentos e também de
processos de uso. Os equipamentos que podem levar à reflexão sobre comunicação de massa e
indústria cultural são tratados como tecnologia dominada por todos os envolvidos (sujeitos
escolares). Portanto não necessitam de estrutura adequada e tampouco discussão. Por que essa
contradição?

1135
Ortiz (2001) vai afirmar que isso é resultado da construção da modernidade brasileira nos
meios de comunicação. A maneira como se deu à inserção dos meios de comunicação na sociedade
brasileira (iletrada) foi bem diferente dos países desenvolvidos. O universo das letras não estava
consolidado quando o rádio e depois a televisão foram disseminados no Brasil. Houve o tratamento
de integração nacional e bem de consumo principalmente a partir do final dos anos 60 com a
consolidação da TV como meio de comunicação de massa. Resultado de empreendimentos de
grande envergadura, a TV passou a ser gerenciada de maneira capitalista. Numa perspectiva
gerencial moderna. E não havia uma discussão intelectual relevante sobre essa inserção e mudança
nos meios de comunicação. Então a tradição moderna brasileira não incluiu discussões e críticas
sobre sua construção. Segundo Ortiz (p. 207): “Penso que hoje vivemos no Brasil a ilusão de que o
moderno é novo, o que torna difícil compreender que as transformações culturais que ocorrem entre
nós possuem uma irreversibilidade que faz com que as novas gerações já tenham sido educadas no
interior dessa ‘modernidade’”. Logo, percepção dos professores da transparência dos meios de
comunicação social no Brasil. Relaciona-se com esses meios com base numa tradição que leva a
uma naturalização dos procedimentos.
Para a maioria dos professores entrevistados, em se tratando da TV e do cinema, há uma
naturalização da presença em sala desses produtos culturais. Não há claramente na escola
responsabilidade sobre construir críticas e condições de compreensão desses meios. Há um padrão
na apresentação (Adorno e Horkheimer, 1985) desses produtos oriundos da Indústria Cultural,
produzidos segundo uma lógica do consumo. Reforçando uma qualidade de produto não passível de
reflexão, mas deve-se ir além dessa análise dos filósofos alemães, pois a fascinação (Prokop, 1986)
exercida pela obra cinematográfica (representação daquilo que o professor apenas ilustra em sala de
aula) é muito mais significativa do que a sugestão ou a simples influência. Gera um estado de
admiração que produz inúmeros sentidos, e uma quebra na rotina. Além de levar,
voyeuristicamente, a vislumbrar coisas impossíveis de conhecer e vivenciar, os produtos da
indústria cultural fascinam pela qualidade técnica e artística.
A presença do cinema em sala desempenha, normalmente um papel que é, conforme
Loureiro e Della Fonte, a busca de um presente que fascina, contínuo, sem relação com o passado
público. Ou seja, as aulas de história são povoadas por momentos que atraem o aluno
exclusivamente pela fascinação do presente. Então a estratégia de uso de filmes transforma-se em
presença de obras cinematográficas. Descoladas da cultura do aluno, provocando um interesse
deslocado da história. Os educadores não conhecem a realidade cultural dos alunos, e apenas têm
expectativas quando à cultura que a escola deve passar e os alunos devem adquirir.Os professores

1136
não conhecem a vivência cultural dos alunos, e tampouco desenvolvem estratégias para aproximar
deles as produções culturais que não fazem parte da cultura do corpo discente.
Segundo Bourdieu é importante entender a construção do capital cultural em nossa
sociedade para entender como o capital cultural define o desempenho escolar. Os economistas não
consideram o investimento em capital cultural e sua relação com educação. Apenas dão conta dos
investimentos educativos e econômicos. A questão é quanto rendem as despesas com educação para
a sociedade ou quanto, em retorno, a sociedade produz materialmente. Este funcionalismo ignora a
reprodução bem como a importância do capital cultural e do capital social na formação dos
estudantes. Por isso o investimento em tecnologia da informática para responder à necessidade de
atualização da escola, é mostrar que a escola está de acordo com a demanda da sociedade.
A consolidação do capital cultural como distinguidor de habilidades com reconhecimento
institucional. Garante também a conversão econômica e a valorização do investimento escolar. A
aprovação nas escolas é a legitimação de um determinado capital cultural estabelecido. Não há
crítica sobre o capital cultural e sua influência na expectativa de formação. E os professores nas
escolas reproduzem, com raras interferências e críticas, um capital cultural diferente do que os
alunos vivenciam.
As primeiras aproximações em colégios públicos (ensino médio) mostraram, em relação aos
professores de história, que não há preocupação em inserir os filmes em sala de aula como objeto de
reflexão, nem por parte do professor e tampouco em relação aos alunos. Apenas um professor
mostrou-se interessado em discutir o papel do cinema na comunicação, a possibilidade de
construção de reflexão pelos alunos e a crítica às escolhas didáticas. Aspectos como produção de
filmes, direção, estética, ou mesmo características históricas da produção não são pensadas. Trata-
se, preferencialmente de ilustrações acerca de determinado tema. Isto leva a uma reflexão dos
acertos dos frankfurtianos em relação à Indústria Cultural e a acomodação do consumidor.
A escola deixa, com tal atitude, de interferir na formação significativamente. Não há
determinação da mídia na formação dos sujeitos escolares. A questão a ser desenvolvida mais
profundamente é a da ausência de reflexão principalmente para entender os mecanismos de
produção e inserção da indústria cultural na cultura escolar.

1137
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1141
A EXPRESSÃO DA INDÚSTRIA CULTURAL VEICULADA PELO RÁDIO E A
TELEVISÃO

Sheila Cristina Souza

A massificação da cultura

Torna-se conveniente a afirmação de que aprendemos sempre com o outro, assim


acreditamos que podemos fazer referência a um dos grandes filósofos, que se apresenta com
relevância para esse trabalho, o ateniense Sócrates. Sua filosofia surge a partir da consciência da
própria ignorância, do saber que não sabe, assim ficou-nos gravado a célebre frase “sei que nada
sei”, e por isso, se destacava dos demais, destacava-se dos sofistas, que utilizavam falsos
argumentos para convencer, defendendo apenas o que fosse do seu interesse, o que pudesse tirar
vantagens. É acompanhando os passos do filósofo Sócrates que conseguimos chegar a algum
conhecimento, como bem nos lembra Newton Ramos no seu texto “Educação: pensamento e
sensibilidade”: “um pensamento alimentado pelas procuras, pelas negações, pelas resistências,
pelos diálogos, pelas reflexões – um pensamento flexionado por seu exercício integral.”1.
Portanto, quando falamos dos sofistas conseguimos perceber que estamos cercados por eles e
que, talvez, sejamos um deles. Cotejamos, rapidamente, com a sociedade a que pertencemos,
que acredita ser a detentora do conhecimento, de estar e saber refletir. Será realmente que somos
seres livres e que seguimos as nossas vontades? Será que não estamos copiando algum
comportamento, alguma moda, passando a nos interessar pelo o que antes não chamavam a
nossa atenção? Será que estamos refletindo sobre tudo que chega a nossa televisão, em nosso
rádio? Esse fato pode ser denominado de anti-socrático.
Podemos perceber, claramente, que há, hoje, uma padronização excessiva, tanto da arte,
que se transforma em produto, quanto da necessidade de consumação desses produtos.
Negarmos esse direcionamento é inútil. Somos guiados, plenamente, pela falsificação do
verdadeiro, e isso está sendo impresso através dos veículos de comunicação. Destacamos, então,
os que são mais acessíveis a todas as classes: o rádio e a televisão. Nesses instrumentos, rádio e
televisão, com os quais se faz passar as mensagens conforme o gosto e interesse de quem as
divulga, nem sempre identificamos com clareza a sua orientação, o falso não é sempre
reconhecível e passamos a utilizá-lo tendo-o como referência valorosa e autêntica. Numa
produção desenfreada, mantida pela indústria cultural, que a todo o momento traz novos

1
Newton Ramos. Educação: pensamento e sensibilidade. RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN,
Antônio Álvaro; PUCCI, Bruno (Orgs.). Teoria Crítica, Estética e Educação. Campinas-SP: Autores
Associados; Piracicaba: UNIMEP; 2001, p. 44.

1142
produtos e rapidamente os rejeita, imprimindo-lhes, cada vez mais, um caráter de descartável e
de substituível2. E o que permanece é a imagem de que somos seres autônomos, que temos
escolhas próprias, entretanto, o que escolhemos ou optamos já se encontra bem definido e
determinado para nós.
O que acabamos de dizer reflete o que se considera a atividade da indústria cultural: criar
a ilusão de que precisamos sempre dos seus produtos, e tudo isso é aceito sem questionamentos.
É a indústria cultural que nega o verdadeiro conceito de obra artística e utiliza para isso veículos
de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, para manipular ou direcionar a massa.
Esses veículos são acessíveis a qualquer sujeito, independentemente de sua posição social, pois
esses instrumentos já são símbolos da própria situação da indústria em sua massificação.
Por meio desses veículos, com que identificamos o rádio e a televisão, somos levados a
conviver diariamente com “produções artísticas” que muito deixam a desejar, sejam as músicas
ou as novelas, em termos de significação artística, cultural e formação. Ambas são interpretadas
e construídas para o nosso entretenimento ou lazer. Porém, será que para o nosso divertimento
será preciso destituir a arte do seu autêntico valor? A música, por exemplo, passa a ser
justificada como gosto do ouvinte, ou seja, tende a propagar que o que se toca é a preferência
musical, porém não detectamos que é a indústria a direcionadora do nosso gosto, que ela não
passa de uma fomentadora de produtos para alienar, para desviar o ouvinte. A qualidade dessas
músicas não é questionada, pensa-se que, para ser boa, basta ter uma boa vendagem3 E,
inocentemente, caímos nessa doce ilusão de que agimos por conta própria e o que possuímos
são autênticas obras artísticas. Somos conduzidos até mesmo quando estamos no momento de
lazer, somos controlados por uma programação que não traz nenhum desenvolvimento cultural e
de formação, aliás, o que percebemos nesses programas, como a novela, é a exploração através
do sentimentalismo, e detectamos como positivo e bom quando conseguimos profetizar, quando
“adivinhamos o final do enredo” de tal produção. Aí, sim, nos sentimos como verdadeiros
deuses. Por isso, a presença da indústria cultural se torna cada vez mais presente, porque não
percebemos a manipulação que sofremos, muito pelo contrário, o que imaginamos é uma
independência, sentimo-nos sábios, inteligentes.
A atividade da indústria cultural é tão ampla que não poderia nos abandonar no momento
de lazer, frisando no indivíduo a orientação de não pensar. O que nos é oferecido como

2
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: O esclarecimento como mistificação
das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução por Guodo Antonio
de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 113.
3
HORKHEIMER, Max. O fetichismo na música. In: _____. Textos Escolhidos. Tradução Zeljko Loparic.
5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.82.

1143
entretenimento é mais uma maneira de evitar a reflexão, a nossa formação intelectiva e cultural.
Por isso, é que a manipulação acontece em conjunto, para se ter o efeito devidamente almejado:
de manipulação. A produção mecânica e padronizada está superando o autêntico estilo, a
verdadeira arte. Quando a arte verdadeira é reproduzida, perde uma significação que não pode
ser recuperada, mas a indústria nos apresenta de uma forma que se mostra como ideal e
legítimo.

A indústria cultural no Nordeste Brasileiro

No Nordeste, especificamente no Sertão da Paraíba, nem mesmo o sertanejo, vivendo


afastado dos centros urbanos, preservando a sua cultura através do artesanato, das produções de
cordéis, do forró pé-de-serra, ou seja, valorizando suas raízes, está livre da mercantilização que
a indústria cultural está imprimindo a partir da padronização de valores falsos, tendo como
destaque as produções novelísticas e as músicas. Compreendemos essa profanação como uma
verdadeira agressão as nossas raízes, pois descaracteriza aquilo que outrora estava identificando
como cultura nossa, de sertanejo. A cultura é vista como uma mercadoria.
Se a cultura está reduzida à mercadoria, falar em indústria cultural é associar esta
mercantilização da cultura com a massificação em que encontramos os nossos bens culturais.
Procuramos a nossa cultura nas músicas de forró estilizado (é o ritmo que está substituindo ou
descaracterizando a nossa música original, pé-de-serra), bem como nossos valores e a própria
poesia, mas não parecem existir, por ser agora um produto encomendado; fica difícil (ou
impossível) encontrar arte nessas produções.
Em uma pesquisa que realizamos para sabermos do que se veicula hoje como música
através do rádio no Sertão paraibano, conseguimos identificar as dez músicas mais solicitadas
nas rádios das cidades de Sousa, Pombal e Cajazeiras. Deparamo-nos, pois, com uma seleção
de músicas que são assim distribuídas em ordem de classificação: 01- “Coelhinho”, de Saia
Rodada; 02- “ Meu ébano”, de Alcione; 03- “Arraste uma cadeira”, de Roberto Carlos; 04-
“Bola de sabão”, de Babado; 05- “Anjo”, de KLB; 06- “Adão e Eva”, de Calcinha Preta; 07-
“Swing louco”, de Companhia do Calypso; 08- “Choram as rosas”, de Bruno & Marrone; 09- “
Fique em silêncio”, de RBD; 10- “Abalou”, de Ivete Sangalo. O que mais nos entristece é saber
que a primeiríssima é, justamente, uma música de forró estilizado, o que vem comprovar a
presença da indústria na cultura sertaneja. Já não encontramos em execução nas rádios nenhum
cantor que venha a valorizar a nossa tradição de sertanejo, mas que utiliza letras tendenciosas e
sem outro valor que não seja aquela ditada pela oferta e a procura, portanto, um valor de
mercado, acessível a um número cada vez maior de consumidores.

1144
Refletindo sobre os motivos pelos quais essas músicas são bastante solicitadas,
comprovamos, mais uma vez, a presença controladora da indústria cultural, por exemplo, “Meu
ébano”, de Alcione. Seu êxito deve-se, primeiramente, à novela América, exibida pela Rede
Globo, canal de grande influência. Esta mesma conclusão podemos tirar do novo grupo musical
RBD surgido através da novela Rebeldes do SBT. Desse modo, constata-se a veracidade de que
o reconhecimento da música, segundo Adorno, se dá devido a sua grande divulgação por
intermédio do rádio e/ou televisão, e ficamos a perguntar pelo gosto do ouvinte. Essa mesma
conclusão obtivemos quando realizamos entrevistas com os locutores das cidades de Sousa,
Pombal e Cajazeiras.
Um fator comum que podemos atribuir para o sucesso dessas músicas é a sua
massificação. As letras das músicas selecionadas falam do cotidiano, de lugares comuns, na
linguagem do povo; é o sentimento do povo, ou seja, é a identidade que os ouvintes encontram
nessas letras, bem como nas produções novelísticas, que acabam sendo os pontos fracos que
passam ser focados pela indústria cultural. Esta é a justificativa encontrada pelo radialista
Invadaney e pelos próprios telespectadores, para que certas músicas e novelas se apresentem
com sucesso. Além disso, as letras dessas músicas são curtas e repetitivas, o que facilita uma
assimilação e que, conseqüentemente, leva a um desgaste rápido, por isso carrega em si a
projeção de ser descartável.
A reflexão sobre o significado dessa massificação da cultura que se expressa numa certa
degradação da qualidade musical nos conduz ao entendimento de Adorno sobre essa preferência
pela música a partir do que dita a indústria cultural. Segundo, ele, há muito tempo que se fala
em preferência musical e junto a esse gosto fala-se de uma decadência na música, ou seja,
perturbação da paz musical. Com isto nos deparamos com um grande abismo entre o conceito
de música e o que escutamos como música. Entretanto, de tanto ouvirmos basicamente as
mesmíssimas músicas (no sentido de que todas seguem um mesmo plano, isto é, são curtas, suas
letras são reconhecidas porque copiam a realidade do ouvinte), passamos a cantá-la. Será
correto designar de música “Swing louco” ou “Coelhinho”? Para a indústria cultural, sim,
porque não é do seu interesse produzir algo verdadeiro e que faça o ouvinte refletir, ter
conhecimento do que é digno de ser conhecido. O sucesso de uma música é engrenado de
maneira autoritária. O que a torna conhecida não é a sua beleza, mas a sua comercialização
forçada que nos faz crer ser a melhor. A exemplo disso podemos citar as músicas de forró, que
de nada dizem da nossa cultura de sertanejo, muito pelo contrário, somos levados a pensar o que
há de cultura sertaneja nas letras de Saia Rodada, onde o que está em evidência é o apelo sexual.
A reprodutibilidade técnica ganha cada vez mais espaço. Já não é possível falar na
qualidade da obra, pois há uma exclusão das concepções imprescindíveis para a criação

1145
da arte. E com isto nos damos conta de que são características, da indústria cultural
reproduzir tecnicamente a arte sem a preocupação de adulterar a sua verdadeira
significação e destruir a reflexão do que está sendo exposto por meio de obras não
convidativas ao recolhimento, mas à distração, ou melhor, ao alienamento, utilizando-se
para isso os anseios estabelecidos para a massa.
O que acabamos de dizer pode ser também exemplificado com a Belíssima, da Rede
Globo. Em entrevistas que realizamos com os telespectadores dessa novela, todos os
entrevistados afirmaram que assistem a essa programação por falta de escolha, mas gostam da
novela, principalmente, por retratar o comum, o real, o cotidiano, fazendo-nos pensar sobre o
que seria arte, poesia. Onde fica o fator surpresa nessa produção, a literariedade, o
estranhamento, se tudo está tão facilmente compreensível, se não nos permite outra
interpretação, se não há metáforas?
De acordo com Horkheimer e Adorno, os programas, as listas de “best-sellers”, os
prêmios de melhores filmes, tudo isso é a cultura sob medida. Na nossa sociedade, o homem foi
transformado em consumidor que se diz autônomo, livre e original, contudo, as definições com
as quais as pessoas se tornam independentes são formuladas pelo sistema de opressão. A
indústria desumaniza e deforma as pessoas. Os mesmos autores afirmam que: “Quanto mais
firmes se tornam as posições da indústria cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as
necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as e, inclusive
suspendendo a diversão: nenhuma barreira se eleva contra o progresso cultural.”4
Essas são as grandes vantagens proporcionadas pela indústria cultural que gera,
incessantemente, uma cultura alienante, massificante e padronizadora, mesmo durante a
diversão. As pessoas são coisificadas, se tornam objetos. Tornou o homem em um permanente
consumidor. Enfim, tudo está sintetizado a uma indústria que utilizam as pessoas como se
fossem marionetes, conseguindo no homem uma dependência, excessivamente, de uma boa
aparência, da sexualidade, do instinto, do material, em uma eterna imitação de tudo o que se vê
na TV, nas revistas, nos jornais, nos livros. Assim, por meio da mídia, compreendida pelo
conjunto desses veículos de comunicação, somos levados a conviver diariamente com
“produções artísticas” que muito deixam a desejar, sejam as músicas ou as novelas, em termos
de significação artística, cultural e formação. Todas “produções artísticas” são interpretadas e
construídas para o nosso entretenimento ou lazer. Porém, será que para o nosso divertimento
será preciso destituir a arte do seu autêntico valor? E o que poderemos dizer ainda do que nos
resta da cultura especificamente nordestina?

4
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Op. cit., p. 135.

1146
A descaracterização da cultura Nordestina

Ficamos aflitos quando percebemos, através das dez músicas mais solicitadas nas rádios
das cidades de Sousa, Pombal e Cajazeiras, que a nossa cultura está sendo suprimida por uma
outra que nada valoriza a nossa a raiz de sertanejo. Um fator comum que podemos atribuir para
o sucesso dessas músicas seria a sua massificação. As letras das músicas selecionadas falam do
cotidiano, de lugares comuns, na linguagem do povo, é o sentimento do povo, ou seja, é a
identidade que os ouvintes encontram nessas letras. Além disso, como não decorar letras curtas
e repetitivas?
A exemplo disso podemos citar a música de “forró estilizado” “Coelhinho”5, de Saia
Rodada. O que essa música evidencia ou valoriza da nossa cultura, visto que é um estilo que
representa as raízes dos sertanejos? Nada. Embora o forró seja a nossa cultura, esse estilo não é
o mesmo que o “forró-pé-de-serra”, pois já carrega toda uma carga de produto feito por
encomenda. Na letra dessa música identificamos, abertamente, um apelo sexual, é uma música
tendenciosa que de nada trata da nossa cultura de sertanejo, muito pelo contrário, somos levados
a pensar o que há de cultura sertaneja nas letras de Saia Rodada, onde o que está em evidência é
o apelo sexual. Ficamos, também, a nos perguntar sobre a mensagem poética da letra.
Assim, percebemos um grande abismo entre as músicas cantadas por Luiz Gonzaga6 e
as cantadas pela Banda Saia Rodada. Nesta última, estamos a procurar os valores intrínsecos
dos nordestinos. Como reconheceremos a nossa cultura, numa composição, em que verificamos
a discussão sobre sair ou não de casa porque se não o vizinho vai querer comer o coelhinho? É
impossível imaginar que esse coelho seja o animal propriamente dito, pois não dá margem a
outras interpretações. Na música “Asa Branca” percebemos, com um outro olhar, a presença
marcante das características da vida dos sertanejos, na composição de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira, relatando vários dos problemas que a seca abre no Sertão nordestino, o
sofrimento, a saudade, mas tudo isso é apresentado de uma maneira poética, bela. Enfim, é até

5
Ô minha prima/ o que é que tem nesse coelhinho que todo mundo/ quer pegar/ mulher/é que ele é bem
fofinho e bem bonitinho primo/ A minha prima tá criando um bicho/ o bicho é cabeludo e é muito bonito
(2x)/ Aí todo mundo quer pegar no bicho/ Porque o bicho dela é um coelhinho (2x)/O meu vizinho que é
muito atrevido/ Já anda falando que vai comer o bicho/ A minha prima não sai mais de casa/ Não quer
fazer nada, só agarrada no bicho/(REFRÂO) È o se vizinho que quer comer meu cuelhinho (2x)/ È o seu
vizinho que comer meu aiiiiiiiii/ Ô minha prima se acalma deixa eu segurar o bicho/ Eita coisa boa/ Ô
primo não deixa o seu vizinho comer meu/ Coelhinho não/ Com um coelhinho desse até Raí se acaba.
6
Quando olhei a terra ardendo/ Qual fogueira de São João/ Eu perguntei ao Deus do céu, ai/ Por que
tamanha judiação/Que braseiro, que fornalha/ Nem um pé de plantação/Por falta d’água perdi meu
gado/Morreu de sede meu alazão/Até mesmo a asa branca/Bateu asa do sertão/então eu disse, adeus
Rosinha/Guarda contigo meu coração/Hoje longe muitas léguas/Numa triste solidão/Espero a chuva cair
de novo/Pra mim voltar, pro meu sertão/Quando o verde dos teus olhos/ Se espalhar na plantação/Eu te
asseguro, não chore não, viu?/Que eu voltarei viu, meu coração.

1147
uma imprudência cotejar essas duas músicas, visto que entre ambas há um disparate que muito
deixa a desejar.

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como mistificação das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução por Guodo Antonio de Almeida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar,
1985. 356 p. Tradução de: Dialektik der Aufklärung - Philosophische Fragmente.
RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton. Educação: pensamento e sensibilidade. In:
RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN, Antônio Álvaro; PUCCI, Bruno (Orgs.).
Teoria Crítica, Estética e Educação. Campinas-SP : Autores Associados; Piracicaba :
UNIMEP; 2001. p. 43-59. (Teoria Crítica; 3).
LUIZ GONZAGA. Acervo Luiz Gonzaga. Gravadora BMG.
BANDA SAIA RODADA. O balanço gostoso do forró. Gravadora Poly Disc.

1148
Indústria Cultural: algumas visões críticas ao conceito

Tadeu C. C. Loibel

O trabalho, aqui apresentado, refere-se à segunda etapa de projeto de Iniciação


Científica, iniciado em setembro de 2004 e com previsão de conclusão em agosto de 2007,
incluído nos esforços mais amplos do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica e Educação (UFSCar,
UNESP – Araraquara e UNIMEP).
A pesquisa é formada pela apresentação do conceito Indústra Cultural, a partir de sua
gênese com Theodor Adorno e Max Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento, por
elaborações de comentaristas e, como conclusão, a comparação entre essas visões.
Essa apresentação, portanto, refere-se ao estudo do conceito Indústria Cultural, na obra
dos comentaristas selecionados, a saber Umberto Eco, Dermeval Saviani, Paulo Puterman e
Jürgen Habermas.
A metodologia utilizada na produção do trabalho é a leitura dos textos e produção de
resenhas analíticas dos mesmos. Os resultados são apresentados anualmente na forma de
relatórios, em que se estabelece a relação entre as idéias dos autores e a construção do sentido
do conceito Indústria Cultural.
No intuito de promover a necessária compreensão do contexto em que se encontra a
pesquisa, será apresentado abaixo um resumo das idéias levantadas, a partir da leitura de obras
de Adorno e Horkheimer, em sua primeira fase:
• Origem:O conceito aparece na obra Dialética do Esclarecimento escrita por Adorno e
Korkheimer na primeira metade da década de 40, durante o exílio dos autores nos
Estados Unidos.
• inversão da idéia de cultura de massa : o público, que aparentemente comandaria a
produção industrial teria, na verdade, seus gostos definidos pelo sistema. Os índices de
audiência se devem ao poder de influência da mídia e não a escolha autônoma do
público.
• submissão da produção cultural à lógica do mercado : o conceito Indústria
Cultural, marcaria o fim do limite entre arte e negócio, a produção cultural tornaria-se
mera peça de propaganda do sistema capitalista. O caráter disperso das obras
produzidas atualmente pode conferir aparência democrática, na verdade é fruto do
desenvolvimento capitalismo, que em sua fase avançada, consegue impor sua lógica a
toda a cultura, a aparente diversidade mascara a imposição de um estilo hegemônico,

1149
versátil na forma mas estanque na essência. Essa realidade evidência da hegemônia da
razão instrumental uma vez que atrela a qualidade à verificação empírica.
• Tempo livre : a lógica do mercado teria se expandido à todos os aspectos da vida, o
homem se divertiria através de um sistema administrado de entretenimento análogo ao
processo industrial
• Conciliação forçada entre particular e universal : a individualidade sempre precisou
se afirmar contra a sociedade. Essa situação permaneceria na sociedade contemporânea,
porém, a ideologia da indústria cultural, submissa aos interesses da classe dominante,
teria difundido a naturalização da atual estrutura social, aparecendo como forma de
uma suposta conciliação: se o capitalismo é o destino da sociedade, então é também
natural o homem adaptado a essa estrutura. Não precisamos buscar o paraíso pois já o
alcançamos.
• Conclusões: o estudo do conceito indústria cultural, nas obras de Adorno e
Horkheimer leva ao questionamento de nossa sociedade atual. Em nosso sistema
permanecem mecanismos de controle, que se valem da aparência democrática para a
manutenção de uma estrutura profundamente autoritária. O poder da mídia, atrelada ao
capital, de condicionamento hegemônico deve ser entendido criticamente e não apenas
aceito. A obra adorno-horkheimiana, pela pertinência de seus temas, permanece como
referência para a compreensão da realidade.
Após o estudo das obras de Adorno e Horkheimer, o projeto desloca sua ênfase para as
elaborações críticas de alguns comentaristas. O trabalho proposto para esse congresso refere-se
a essa etapa, que será resumida abaixo.
A notoriedade alcançada pelo conceito Indústria Cultural não pode ser entendida
apenas pelo prisma daqueles que a conceberam. Muitos são os pensadores que partiram das
idéias adorno-horkheimianas para a construção de novas teorias. A compreensão do sentido
alcançado pelo conceito passa pela análise dessas novas elaborações.
Foram selecionados textos de quatro obras para a produção desse painel crítico:
Apocalípticos e Integrados, de Umberto Eco, Indústria Cultural, a agônia de um conceito, de
Paulo Puterman, O discurso filosófico da modernidade, de Jürgen Habermas e Teoria da
personalidade na sociedade de massas, de Dario Ragazzini, do qual aproveitamos o prefácio de
Dermeval Saviani.
As obras apresentam diversidade quanto ao eixo argumentativo, época e formação dos
autores. Por outro lado apresentam convergências por constituirem-se de elaborações contrárias
à Dialética do Esclarecimento, que, contudo, não representam renúncia à problematização das
questões sociais. Não se negam as contradições, mas a forma como essas são tratadas.

1150
Abaixo será apresentado um resumo das críticas construídas pelos autores nas obras
citadas acima:

Umberto Eco
O texto de Umberto Eco, do qual destacamos o prefácio, foi publicado em 1964, ou seja
anterior às obras que o levaram a notoriedade como escritor de ficção e também aos
movimentos contestatórios do final da década de 60, que tiveram na Dialética do
Esclarecimento um importante referencial.
A crítica empreendida pelo italiano é tão suave e conciliadora na forma quanto
agressiva e desqualificante no conteúdo. Nos paragrafos seguintes será apresentada uma síntese
das idéias que levam a uma visão adesista, pessimista, elitista e paranóica da Escola de
Frankfurt.
Uma das bases da argumentação de Eco se refere ao uso pelos frankfurtianos daquilo
que ele denominou de conceito-fetiche. Estes seriam termos, como por exemplo Indústria
Cultural, que, ao simularem universalidade, serveriam à paralisia do debate. Ao afirmar-se
como insuperável o poder de um sistema, que é na realidade assentado em alicerce contextual,
acaba-se por supervalorizá-lo em detrimento da autonomia do indivíduo.
Torna-se interessante, portanto, a autocrítica do autor em relação ao próprio trabalho,
inclusive em relação ao título da obra, que poderia ser considerado como recorrência aos
conceitos-fetiche. Segundo Eco, contudo, sua escolha deve-se à exigências do mercado editorial
e ao título se remeter diretamente à discussão empreendida, servindo como introdução à
problemática.
A oposição formulada entre apocalípticos e integrados poderia gerar, a primeira vista, a
impressão de um confronto entre adversários e partidários do sistema. Para Eco, no entanto, as
duas posturas apresentariam a semelhança de redundarem em conformismo.
No caso dos integrados, a explicação é simples: uma visão otimista da realidade social e
dos desdobramentos do avanço tecnológico levaria à idéia de que está em construção um mundo
próspero e democrático. A ciência e o acesso a informação conduziriam o homem à satisfação
das necessidades vitais em um ambiente de profunda consciência individual. Para o autor, a
realidade histórica nega a validade dessa proposição.
Entender a postura daqueles que formalmente renegam o regime mas que se
converteriam em base para sua continuidade, entre os quais se destacam os frankfurtianos, exige
uma elaboração mais complexa, que Eco propõe-se a desenvolver como eixo central desse texto.
O conceito Indústria Cultural, trairia um fascínio dos seus propositores pelo estágio do
capitalismo, do qual se pretendem críticos. Para Eco, a existência de mecanismos de controle

1151
hegemônico por parte do sistema redundaria na aceitação da impossibilidade de uma oposição
efetiva. A Dialética do Esclarecimento não seria apreensão do sentido da realidade social, mas
argumentação por sua submissão a um domínio falsamente hegemônico.
Os frankfurtianos seriam, portanto, as primeiras vítimas de uma situação que sobrevive
apenas em seus delírios paranóicos. Dessa forma, aponta Eco, eles poderiam aderir ao sistema
que os fascinaria, com a salvaguarda moral de se mostrarem, formalmente, como adversários.
Outra característica imobilizadora do conceito Indústria Cultural, estaria na proposta de
que teria se estabelecido uma relação direta entre os interesses do capital e da arte. Essa
absolutização levaria à recusa em bloco de toda produção cultural e ao, consequente, desprezo
pela análise pormenorizada dessa.
Em síntese, Umberto Eco propõe uma unificação nos efeitos concretos das elaborações
de integrados e apocalípticos, que redundariam no conformismo. Os frankfurtianos, ao invés de
serem adversários, contribuiriam para a manutenção do sistema ao advogarem por sua
indestrutibilidade, desprezando assim a análise de seus mecanismos internos. O caráter abstrato
de suas formulações e a negação da autonomia dos indivíduos tornariam o pensamento adorno-
horkheimiano elitista.

Dermeval Saviani
Dermeval Saviani, no texto selecionado, apresenta um painel da influência da obra de
Gramsci no Brasil. Esse esforço leva o autor ao estabelecimento, em certo momento, da relação
entre o pensador italiano e a Escola de Frankfurt, tendo como base a utilização do referencial
teórico marxiano. Nossa elaboração tem como fóco essa discussão.
O ponto de partida de Saviani é um questionamento percebido como comum: “A
problemática originária é a mesma. Gramsci, diante do fracasso da tentativa de levante
operário na Itália, perguntou-se: por que a revolução proletária teve êxito na Rússia e
fracassou na Itália? A mesma questão é posta pela ´Escola de Frankfurt` diante do fracasso do
movimento operário na Alemanha. Em suma, em ambos os casos, o problema que se punha era
o das condições de realização da revolução socialista no Ocidente.”1 A não confirmação
histórica das expectativas socialistas de avanço das forças produtivas atrelado ao
desenvolvimento da consciência operária evidenciou a necessidade de uma redefinição na
esquerda.

1
SAVIANI, D. in RAGAZZINI, D. Teoria da personalidade na sociedade de massa. Autores
Associados, Rio de Janeiro, 2005, pp. 18

1152
O caminho tomado por Gramsci seria o da ortodoxia marxista, não como adesão
dogmática, mas como posição metodológica inflexível. Os erros e desvios devem ser analisados
sem a negação da leitura de mundo proposta por Marx.
Na Escola de Frankfurt, apesar da manifesta adesão à teoria marxiana, seria perceptível
a influência decisiva de outras correntes teóricas, notadamente a psicanálise. Para o autor, essas
interferências seriam desvios que comprometem a validade dos resultados.
Para a Teoria Crítica, portanto, o marxismo seria um componente para a explicação da
realidade e não uma teoria completa capaz de gerar uma práxis. Seria uma abordagem
intelectualista, que enfoca a compreensão e o questionamento da sociedade mas não traz em si a
ação transformadora.
A crítica de Dermeval Saviani, portanto, à Escola de Frankfurt se embasa na
comparação entre esta e Gramsci quanto ao marxismo. A parcialidade e o intelectualismo, para
o autor, fazem com que os alemães retirem desse pensamento a relação essencial com a prática.
Dessa forma, não obstante o caráter questionador, nega-se a validade das reflexões de Adorno e
Horkheimer por essas serem mero exercício abstrato em um contexto que demanda ações
transformadoras.

Paulo Puterman
Dois eixos básicos orientam a contestação do autor às formulações adorno-
horkheimianas em geral e à sua conceituação para indústria cultural em particular. O primeiro
se refere à inconsistência na unificação dos pensamentos de Hegel e Marx. O segundo está
ligado ao caráter absoluto das proposições que, ao não se realizar, torna-as meros exercícios
intelectuais.
Puterman defende, a partir da Dialética do Esclarecimento2, a tese de que Adorno e
Horkheimer teriam realizado uma articulação forçada entre Hegel e Marx. Esses, apesar da
coincidência na metodologia dialética, apresentariam diferenças inconciliáveis3.
Hegel seria um idealista, ou seja, defenderia a idéia como base da explicação possível
das coisas. Marx, ao contrário, teria sua teoria embasada no concreto. Essa diferença invalidaria,
para Puterman, a articulação empreendida por Adorno e Horkheimer entre esses teóricos. Essa
crítica ocupa apenas dois parágrafos do texto, mas constitui forte ataque à Frankfurt. Uma vez
desqualificada a base de um pensamento, este fica comprometido por inteiro. No caso específico

2
Puterman prefere Dialética da Razão, porém preferimos manter a tradução adotada em todo projeto.
3
Essa linha de argumentação adotada por Puterman é polêmica, a suposta impossibilidade na articulação
dos pensamentos hegeliano e marxista apresenta pouca aceitação na acadêmia.

1153
dos autores da Dialética do Esclarecimento, o ataque é mais significativo, por ser a filosofia
alemã alicerce de suas reflexões.
O outro ponto de apoio das criticas de Puterman estaria na falta de consistência prática
das teorias frankfurtianas. O embasamento filosófico teria levado a um pensamento abstrato
que, ao ser confrontado com a realidade, não se mostraria pertinente. O resultado, condicionado
pela vivência do terror nazista, foi uma absolutização negativa da indústria cultural e a
consequente negação da práxis. A incorporação da cultura à lógica capitalista apontaria para
uma negação em bloco de toda a produção artística, desestimulando a análise de mecanismos
internos que a regulam.
Puterman aponta uma suposta nostalgia pela espontaneidade do passado e a convivência
com o nazismo como fatores que poderiam explicar a construção em Frankfurt de uma teoria de
viés pessimista, elitista e caráter paralisador. Aos argumentos contra o controle exercido sobre o
indivíduo formulados por Adorno e Horkhiemer, Puterman apresenta exemplos de
manifestações subversivas surgindo no seio do sistema.
Em seu livro Indústria Cultural, a agônia de um conceito, Paulo Puterman constrói uma
dura crítica ao pensamento de Adorno e Horkheimer. O autor aponta a suposta fragilidade da
base filosófica e a ausência de verificação prática do pensamento frankfurtiano.

Jürgen Habermas
Habermas tem sua trajetória acadêmica intimamente ligada à Escola de Frankfurt. Foi
colaborador de Adorno e é considerado uma das mais proeminentes figuras da segunda fase
dessa tendência. Seu pensamento, não obstante, se afasta do de seus mestres, algumas de suas
objeções estão contidas nesse texto sobre Adorno e Horkheimer.
Na Dialética do Esclarecimento, segundo Habermas, os autores teriam proposto a
existência e análise do processo de auto-destruição do esclarecimento. Para Habermas o
determinismo contido na idéia de indústria cultural desmontaria seu potencial libertador. Na
reflexão de Walter Benjamin acerca da esperança dos desesperançados, Adorno e Horkheimer
apoiam a defesa do conceito que se revela falho. O autor defende a superação dessa visão.
Habermas apresenta uma síntese das idéias contidas na Dialética do esclarecimento e
aponta elementos básicos como a permanência de aspectos mitológicos na modernidade, a
submissão da razão à técnica e a incorporação da cultura pela lógica capitalista. Para o autor, as
reflexões contidas nessa obra são profundamente pessimistas e negam a dinâmica social.
Adorno e Horkheimer, segundo Habermas, para assentar sua visão apocalíptica de
mundo negariam a dinâmica social real, para isso se valeriam de conceitos absolutos que
mistificariam mais do que desvendariam os processos. A crítica da razão empreendida pelos

1154
frankfurtianos se torna paradoxal por se basear em parâmetros racionais, o ataque impiedoso
ao positivismo impede-os de enxergar suas qualidades.
O trabalho aqui resumido refere-se as críticas de Eco, Saviani, Puterman e Habermas
acerca do conceito indústria cultural, concebido por Adorno e Horkheimer. A opção
metodológica adotada foi a leitura e análise de textos desses autores. A preocupação com o
levantamento cuidadoso da reflexão dos críticos pode apontar para a concordância com seus
argumentos, o que não se verifica necessariamente.
A última etapa desse projeto de pesquisa, a ser realizada entre setembro de 2006 e
agosto de 2007, tem como objetivo a realização da comparação entre as visões originais e essas
críticas externas.
Apesar das diferenças nas abordagens dos comentaristas, é possível se estabelecer
pontos comuns em suas críticas. Todos os textos apontam o pensamento adorno-horkheimiano
como abstrato, pessimista e elitista, por esse expressar uma idealização negativa da realidade
social.

Bibliografia

ECO, U. Apocalípticos e Integrados. Editora Perspectiva, 6ª Ed. 386 pp, 2001.


HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Editora Martins Fontes, 2ª Ed. 544
pp. 2002.
PUTERMAN, P. Indústria Cultural: a agonia de um conceito. Editora Perspectiva, 1ª Ed.
118 pp, 1994.
RAGAZZINI, D. Teoria da personalidade na sociedade de massas. Autores associados, 176
pp, 1999.

1155
Pensando uma proposta de educação estética na formação universitária de professores

Verussi Melo de Amorin (PUC-Campinas)


Maria Eugênia de Lima e Montes Castanho (PUC-Campinas)

Objetivos e objeto

É-se professor ao formar-se professor. Em assim considerando a formação docente, como um


continuum que se faz indefinida e inacabadamente, e não meramente através de obtenção de
títulos ou cursos de licenciatura, a questão que se coloca refere-se à possibilidade de uma
educação estética na universidade, por entender-se que a arte, enquanto desautomatizadora da
percepção, convidaria o aluno/universitário a reorganizar o mundo, experimentando novas
versões de si. Neste sentido, esta pesquisa se sustenta num diálogo teórico, em que estudiosos
da área de Educação Estética, em entrevistas à pesquisadora, falam a respeito da formação
docente como um processo (permanente) de descobertas e rupturas, completamente imbricada à
subjetividade do docente em formação, delineando uma docência particular, em que cada sujeito
é o fazedor de sua própria história. Cada docente entrevistado fala a partir de suas leituras
dialógicas com outros autores, o que intensifica e amplia a discussão provocada. O intento da
pesquisa é, portanto, ao analisar a maneira como a arte pode educar, formular uma proposta de
educação estética para a formação universitária de professores, entendendo que a experiência
estética pode promover rearranjos subjetivos no universitário, instigando-o a pensar-se e,
conseqüentemente, a formar-se sujeito [e dono de sua própria prática], ao invés de consumista
de modos-de-ser pré-construídos.

Palavras-chave: Educação estética – Arte – Universidade – Formação docente

In-sensibilização contemporânea: um ponto de partida


O Racionalismo, que põe no centro da questão a condição intelectual do homem, extirpa deste
sua esfera sensível, senão a cala. O presente texto não pretende discorrer sobre a maneira como
a ciência busca explicar os fenômenos de um ponto de vista objetivo e distante do objeto, ou
como as ciências foram divididas [e assim se mantêm] em Humanas e Exatas. Não será
delongada a discussão sobre isto, tão claro e exaustivamente posto que está o assunto. Pretende-
se aqui, em contrapartida, indicar um caminho a partir do qual se possa contar a história do
homem, marcadamente dividido em mente-corpo – privilegiadamente mente, decorativamente
corpo/sentimento. Para tanto, Michel Maffesoli, e seu Elogio da Razão Sensível (1998), vem
advogar com Boaventura de Souza Santos (2000) contra o desperdício da experiência, na
medida mesma em que Vandana Shiva nos fala dos sistemas de saber desaparecidos,

1156
proclamando as Monoculturas da Mente (2003). O diálogo entre estas vozes converge à
discussão sobre o lugar do sensível e dos saberes pouco [ou menos]
representativos/considerados na esfera social, a favor de culturas dominantes, centradas em uma
única [e bem explicitada] verdade, de base intelectual. Em palavras de Santos (2000):
“(...) o mundo moderno se empenhou numa ‘busca faustina’ de poder
cognitivo, tecnológico e administrativo que nos obriga a trocar o velho
mundo humanamente rico e sensível por um outro ‘mais previsível e mais
manejável, mas frio, indiferente e desconfortável’(Gellner, 1987: 153)” (p.
115)

E nas de Maffesoli (1998):


“É preciso compreender que o racionalismo, em sua pretensão científica, é
particularmente inapto para perceber, ainda mais apreender, o aspecto denso,
imagético, simbólico, da experiência vivida (...). É preciso, imediatamente,
mobilizar todas as capacidades que estão em poder do intelecto humano,
inclusive as da sensibilidade” (p. 27)

O racionalismo, ao postular que tudo deve estar contido numa categoria explicativa e
totalizante, nega a exaltação do sentimento de vida, em qualquer tempo e lugar (MAFFESOLI,
1998: 31). O que acontece, sob o rótulo de “científico” senão esta sacralidade em torno da
cultura dominante, que é a ocidental? É ele – o científico – que dita a certeza, a ordem das
coisas, passando por seu crivo somente os conceitos/atitudes/ideologias consonantes com a
cultura na qual se enraíza. Desta maneira, há o gradativo “desaparecimento do saber local por
meio de sua interação com o saber ocidental dominante” (SHIVA, 2003: 21), cuja cultura vai se
tornando invisível, inexistente. A ciência concentra determinados saberes como relevantes, à
medida que descarta outros: o racionalismo privilegia a mente, em detrimento de saberes da
sensibilidade. O conhecimento local, o senso comum, o saber advindo da experiência cotidiana
têm seu lugar não legitimado, em nome de saberes considerados universais – o que significa
corresponder ao universo da ideologia dominante. A razão, privilegiada e tornada central na
concepção da ciência, provoca o apartamento do sensível no homem:
“É ficando enclausurada na consciência pura que, pouco a pouco, a razão se
distancia do mundo circundante, torna-se assunto de especialistas ou, ainda,
serve de garantia a todos os processos de organização e de gestão que
caracterizam a tecnoestrutura contemporânea” (MAFFESOLI, 1998: 34)

Na abordagem que Shiva (2003) faz em relação à silvicultura e à agricultura, nota-se justamente
este ponto – o do apartheid entre as culturas local e mercadológica/industrial, cada qual com
seus sistemas (incompatíveis) de saber. Os saberes locais, de domínio e relação com a natureza,
com o ambiente vivente, o saber sensível da população é descreditado, posto que não serve ao
interesse industrial. Neste sentido, parece haver um deslocamento do saber in-corpo-rado,

1157
construído a partir da relação direta e sensível do homem com o mundo, de seu respeito para
com a natureza, para um saber menta-lizado, que pensa cifras e lucros.
É deste lugar, em favor da apreciação da experiência, do elogio do sensível, que este texto
pretende iniciar o vislumbre de uma educação na contramão do que vimos assistindo. Uma
educação que não se esqueça de que “além ou aquém da racionalização da fé, há a experiência
vivida fundando a vida corrente”(MAFFESOLI, 1998: 172).

Arte como leitura de mundo


A leitura do mundo, segundo Paulo Freire (2002), é precedente à das palavras, que acontece
quase como conseqüência daquela. Ao narrar sua experiência de alfabetização, Paulo Freire
(2002) fala do seu encantamento em desvendar o significado das letras, sentado no chão do
quintal de casa, rodeado por mangueiras, ao som dos pássaros: “O chão foi meu quadro-negro;
gravetos, o meu giz”(p. 15). Leitura seria, portanto, de acordo com estas considerações, o modo
particular com que o sujeito apreende o mundo, a realidade que o circunda e o contexto no qual
está imerso. Outra consideração, também, pode-se fazer sobre a experiência narrada por Paulo
Freire (2002): ele pôde transformar o chão no qual pisava na lousa em que se desenham letras;
pôde olhar para gravetos, pedaços pequenos e finos de madeira, e imaginá-los giz, instrumento
de escrita. Sua visão transcendeu a real significação das coisas e deu-lhes outro sentido. Leitura
é isto: olhar o habitual e vê-lo diverso. Esta capacidade de voltar o olhar ao objeto, re-
significando-o é princípio da arte:
“A arte aumenta ‘a dificuldade e a duração da percepção’, descreve o objeto
‘como se o visse pela primeira vez’ (como se não existissem já fórmulas
para o descreverem) e o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa
compreensão a significação que veicula, mas criar uma percepção particular
do objeto” (ECO, 1997: 70)

O processo de desarticulação da percepção – característica das artes, em geral – é possível


devido à particularidade proposta pela arte: transgressão do código vigente. Eco (1997), ao se
referir à mensagem com função estética, afirma o caráter de ambigüidade que deve existir, a fim
de pôr o código em desordem, possibilitando um conseqüente choque de compreensão no
fruidor e tornando não imediata a interpretação do visto. Sobre isto Eco (1997) discorre:
“O efeito de estranhamento ocorre desautomatizando-se a linguagem: a
linguagem habitua-se a representar certos fatos segundo determinadas leis
de combinação, mediante fórmulas fixas. De repente um autor, para
descrever-nos algo que talvez já vimos e conhecemos de longa data,
emprega as palavras (...) de modo diferente, e nossa primeira reação se
traduz numa sensação de expatriamento, numa quase incapacidade de
reconhecer o objeto (...)” (p. 64)

1158
A intenção, na obra de arte, se assim pode-se falar, não é a do autor, mas a de quem a frui: “o
objetivo da imagem é criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu
reconhecimento” (CHKLOVSKI, 1917: 50). Esta sensação de estranheza diante do já conhecido
provoca, no fruidor, a necessidade de reconsiderar a mensagem, transportando-a a um novo
lugar, de onde possa mirá-la. Deste lugar novo é que emerge um novo homem, pois o objeto
descrito – e previamente conhecido – tornou-se uma descoberta surpreendente: um objeto visto
sob ângulo jamais suposto. Neste aspecto, a arte possibilita ao sujeito viver sentimentos e
experienciar sensações que em seu cotidiano não o faz, devido à organização prévia das coisas.
Por exemplo, ao assistir a uma peça teatral dramática, o sujeito chora a dor do personagem,
sobressalta-se com as cenas, assusta-se e, não infreqüentemente, entristece-se ou irrita-se com o
enredo ou o destino de seu personagem eleito. Estas sensações levam o sujeito a uma outra
esfera de vivências e o ensinam a viver as dores [neste caso específico do Drama] que, em sua
vida diária, não vive. Estas dores o ensinam sobre si. Eco (2001), ao referir-se à Literatura,
afirma:
“A função das narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando
nosso desejo de mudar o destino, nos fazem experimentar a impossibilidade
de mudá-lo. E, assim, qualquer que seja a história que elas contem,
contarão também a nossa, e é por isso que as lemos e as amamos.
Necessitamos de sua severa lição ‘repressiva’. (...) As histórias ‘já feitas’
nos ensinam também a morrer. Creio que essa educação para o fado e para
a morte seja uma das principais funções da Literatura”

A fruição de arte é, pois, um momento que possibilita quebra de sentidos e construção de novos,
na medida em que permite a transcendência da realidade, convidando o sujeito a inaugurar a
visão das coisas. Em se tratando, especificamente, da Literatura, cita-se Iser (1996): “Mesmo
quando um texto literário não faz senão copiar o mundo presente, sua repetição no texto já o
altera, pois repetir a realidade a partir de um ponto de vista já é excedê-la” (p. 11). Nesta
direção, a leitura de mundo, provocada pela desestabilização da fruição da obra artística, dá-se
quando o sujeito, forçado pela necessidade de organizar a experiência caótica que a arte lhe
proporcionou, reformula sua percepção, conferindo novos sentidos ao vivenciado.

A estética da professoralidade1
A Literatura está recheada de histórias que contam a passagem de um estado de ser a outro, de
metamorfoses que os protagonistas sofrem no decorrer de suas vidas e que os marcam profunda

1
Marcos Villela Pereira (1996) produziu, no Doutorado em Supervisão e Currículo da PUC-SP, a tese
intitulada: A Estética da Professoralidade – um estudo interdisciplinar sobre a subjetividade do
professor, na qual baseei minhas colocações.

1159
e significativamente. Dr. Jekyll e Mr. Hyde, por exemplo, personagens da fantástica história2 de
Robert Louis Stevenson, revelam-nos, de forma quase in-crível, a maneira como um homem se
metamorfoseia noutro que, no fim das contas, é ele mesmo. Gregor Samsa, transformado em
inseto n’A Metamorfose kafkiana, parece, a partir de então, viver de maneira mais fiel aos
infortúnios de sua vida familiar – como um estorvo sem valor. Outras tantas metamorfoses, não
descritas sob a lente do fantástico, mas sob a escrita romântica ou intimista, são igualmente
metáforas do modo como o ser humano se vai transformando, recriando-se incansável e
interminavelmente. Momentos de epifania, de insights, não são infrequentes na Literatura, mas
pontos-chave da trama, que se vai desenrolando e se desenvolvendo em torno deles.
Todo acontecimento no mundo é uma potência de acontecimento no homem. Cecília Meireles
escreveu sobre uma folha3 que caía, tornando aquele momento – natural e cotidiano – algo sob o
qual nos detemos o olhar ao lê-la. Aquele foi, certamente, um momento sobre o que à escritora
pareceu importante falar. Estas como tantas outras experiências vão, diariamente, constituindo-
nos. Haverá um modo de precisar o momento em que, em se pensando na Educação, uma
pessoa se torna professor? Será que, ao receber o título de licenciatura, o estudante, a partir de
então, torna-se professor? Ou será que se torna ao ser contratado por uma instituição de ensino?
De que maneira medir, apontar, demarcar o momento em que esta constituição se dá? Será algo
instituído, alguma agência exterior ao sujeito lhe outorgando direitos; ou será algo construído,
que se vai fazendo, montando e se desmontando de acordo com as vivências de cada sujeito?
Segundo Pereira (1996), ser professor
“não é vocação, não é identidade, não é destino. É produto de si. E a busca
pela formação acadêmica caminha no sentido de buscar modos de
apropriação e ativação dessa marca em consonância com as singularidades
que constituem o campo de existencialização do indivíduo”(p. 15-16)

A formação não é algo que se recebe, mas que se faz num processo ativo que requer o
envolvimento com, a aproximação de, a mediação de outros (PEREIRA, 2005: 03). Formar-se é
constituir-se num processo, implicar-se nele. O texto de Pereira (2005) aponta a maneira como
algumas teorias têm tomado este lugar, enviesando a formação, por abafá-la em seu caráter
processual, delegando, exclusiva ou predominantemente, a teorias (e teóricos) a função de
formadores de professores. Diante disto, a experiência e a vivência individuais do docente
distanciam-se de sua formação, sendo desconsideradas como imprescindíveis na constituição do
sujeito. A titulação acadêmica ou o contrato institucional, que designam um nome à profissão
do sujeito, não são garantia de constituição professoral; as marcas produzidas no sujeito

2
Referência à célebre obra intitulada, em Português: O Médico e o Monstro.
3
“O vento voa,/ a noite toda se atordoa,/ a folha cai. / Haverá mesmo algum pensamento/ sobre essa
noite? sobre esse vento?/ sobre essa folha que se vai?” (Epigrama nº 9)

1160
(PEREIRA, 1996) o são. Docente é “aquele que está desenvolvendo um processo de ensinar”
(RIOS, 2003: 53), é no seu exercício que o professor se vai constituindo. Rios (2003) se detém
no significante docente, conjugado no particípio presente, para pensar a docência como este ser
em exercício – um ensinante. A autora se (e nos) põe uma questão: “Como os saberes da
docência podem auxiliar o professor na direção de uma atuação competente?” (p. 56). Numa
versão reformulada e, quiçá, complementar desta questão, coloca-se outra sobre formação de
professores, sobre a maneira como, na formação universitária – foco deste trabalho – poderão
ser possibilitadas/promovidas experimentações de si. Neste sentido, lida-se não com o intelecto,
com uma educação conceitual, de idéias, racional, mas com maneiras de fruição, em que o
sujeito seja convidado, através de seus sentidos, a experienciar os acontecimentos. Em palavras
de Rios (2003),
“é preciso resgatar o sentido da razão que, como característica
diferenciadora da humanidade, só ganha sua significação na articulação
com todos os demais ‘instrumentos’ com os quais o ser humano se
relaciona com o mundo e com os outros – os sentidos, os sentimentos, a
memória, a imaginação” (p. 45)

A maneira como esta colocação pode se transformar em proposta de uma educação voltada aos
sentidos, ao sensível, à dimensão estética do homem é o grande e nodal ponto deste trabalho. De
que modo(s) a Educação se voltará a este aspecto humano – estético – num momento em que a
razão (ainda) é a razão-de-ser do ensino? Talvez possamos começar a fazer ensaios de proposta,
até conseguirmos vislumbrá-la e, mais, praticá-la! Segue o tópico abaixo:

Nas entre-linhas4:
Por uma educação estética
A reflexão feita, abreviadamente, aponta para a preocupação com a dimensão estética na
educação, entendida, na verdade, como uma dimensão humana que tem sido relegada nas
instituições escolares, em nome de uma educação do intelecto. A educação, em palavras de
Marly Meira (2005), começa a se decepcionar “com suas parceiras racionalistas, a Ciência e a
Tecnologia”, pois estas “não admitem que o campo do sensível não seja redutível à linguagem
verbal e à matemática, nem que a invenção, a criatividade, o sonho, o devaneio, a fantasia façam
parte das operações mentais do mundo da consciência”. Dialogando nesta direção, Rios (2003)
aponta que “a sensibilidade e a criatividade não se restringem ao espaço da arte. Criar é algo
interligado a viver, no mundo humano. A estética é, na verdade, uma dimensão da existência, do

4
Este tópico pretende promover uma conversa entre os docentes entrevistados (através de
correspondência eletrônica) na pesquisa, bem como algumas de suas produções escritas, a fim de delinear
possibilidades de uma proposta de educação estética na universidade.

1161
agir humano” (p. 97). No ensino, de forma geral – tanto em escolas quanto em universidades –
há o privilégio da racionalidade ocidental, que torna alunos e professores pessoas
eminentemente voltadas ao saber teórico, encerrado em livros didáticos, em aulas-padrão, em
conteúdo não renovado. Sobre este ponto, Luciana Gruppelli (2005) aponta a crença no poder da
ciência, instituída como aquela responsável e capaz de encontrar a verdade, considerando
incômodos quaisquer desvios, erros ou descontinuidades. Em suas palavras,
“a universidade ainda é feita de ‘homens sérios’. E a formação docente
também, quando almeja a modelos ou lista de competências a serem seguidas.
A universidade precisa de mais estética, mais arte, mais desafios às verdades
únicas”.

A arte5, portanto, não seria apenas mais uma disciplina curricular, mas uma maneira através da
qual se poderá chegar a esferas outras do humano não alcançadas pelo ensino tal como
veiculado hoje nas escolas. O aluno seria, tal como os olhos de Paulo Freire, capaz de mirar o
chão e vê-lo lousa, sobre a qual desenhar seu próprio percurso, sua história. A arte educa o
sensível, parte adormecida do homem. Duarte Júnior (2004) discorre a este respeito, ao dizer
que a arte
“pretende ser uma maneira mais ampla de se abordar o fenômeno educacional
considerando-o não apenas como transmissão simbólica de conhecimentos,
mas como um processo formativo do humano. Um processo que envolve a
criação de um sentido para a vida, e que emerge desde os nossos sentimentos
peculiares” (p. 72)

Assim, a arte seria uma provocadora de sentimentos, na medida em que age sobre os sentidos
humanos, e, desta maneira, portanto, seria educadora. Porque possibilitaria ao sujeito conhecer
as nuances das coisas cotidianas, através de seu próprio corpo, encarnando a experiência,
incorporando os sentidos, fazendo da vida algo contextual, parte de si. Apreender o mundo,
ingenuamente, através da ótica de outrem é o meio contra o qual uma educação que se pretenda
estética luta, ao reivindicar que o sensível se presentifique e se faça janela por onde o aluno
possa ver-se, aos seus companheiros e ao mundo. Como disse Marly Meira (2005), “criar não é
sinônimo de solução de problemas, mas a capacidade de tecer questões em composição,
perceber como realizar algo compatível com a compreensão de que estamos interferindo na teia
da vida, redimensionando-a sob modo próprio”. É como seguir os mandamentos dos
modernistas6 e agir como antropófagos: devorar o que é estrangeiro, para digeri-lo e, então,

5
A educação estética abrange a arte-educação (ensino de arte nas escolas), sem deter-se nela. Refere-se a
um tipo de relação mais harmoniosa e respeitosa do homem com a natureza, com o saber advindo dos
sentidos. Há ramificações, por exemplo, para o campo da Educação Ambiental, Educação Física, etc.
6
Referência à Semana de Arte Moderna, acontecida em São Paulo, em 1922, quando grandes nomes do
cenário artístico brasileiro, em favor de uma arte nacional, lançaram o Manifesto Modernista, repudiando
estrangeirismos.

1162
reformulá-lo como algo próprio. Entendendo por estrangeiro aquilo que vem de fora, de outro, e
que nos é importante/interessante conhecer; mas digeri-lo eis o fundamental: tornar o
conhecimento algo próprio e não meramente ingerido. Com isto, pretende-se que a educação
não se fixe no conhecimento transmissivo (se é que se pode assim chamá-lo), repassando
informações, encadernando-as e cristalizando-as no entendimento dos alunos. O aluno precisa
inventar o conhecimento, produzir suas crenças, fabricar suas convicções, como adverte Marcos
Villela Pereira (2005). Pretende-se, como ressalva Marly Meira (2005), que o conhecimento
nasça de “atitudes poéticas diante das informações, da crítica que inclui a diversidade e a
simultaneidade no aporte das informações”, e completa:
“Lamentavelmente, a esteticidade cotidiana está poluída pelo marketing e
pelo uso inescrupuloso dos valores da beleza e da percepção”. “Como nos
vemos pelo outro, como somos acariciados ou maltratados pelo outro? Como
dar qualidade ao que somos ao nos relacionarmos com o que existe e se
mostra a nós, aliando a superfície à profundidade mais ampla que a contém?
Se pensamos assim, há estéticas que transcendem o vivido e tocam no
sagrado que nos constitui”.

É por esta dimensão estética – humana – que as vozes deste trabalho se fazem verbo e se
pretendem audíveis no campo educacional. Para que a educação faça, como bem nos lembra
Marcos Villela Pereira (2005), como o Barão de Munchausen: puxe-se pelo próprio cabelo e se
desenterre!

Referências Bibliográficas

CASTANHO, Maria Eugênia de L. M. Arte-educação e intelectualidade da arte. Dissertação de


mestrado. Faculdade de Educação, Unicamp, 1982.

CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento, 1917.

DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. Por que arte-educação? 15ª ed. São Paulo: Papirus, 2004.

ECO, Umberto. A literatura contra o efêmero. Publicado pela Folha de São Paulo, Caderno
“Mais”, de 18.fev.2001.

_____________. A mensagem estética. IN: A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1997.
pp. 51-66.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 43ª ed. São
Paulo, Cortez, 2002.

GRUPPELLI, Luciana Loponte. Entrevista concedida, por correspondência eletrônica, à


pesquisadora Verussi Melo de Amorim, em 20 de maio de 2006.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol I. trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: 34, 1996.

1163
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Trad. de Albert Christophe Migueis
Stuckenbruck. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

MEIRA, Marly. Entrevista concedida, por correspondência eletrônica, à pesquisadora Verussi


Melo de Amorim, em 19 de maio de 2006.

PEREIRA, Marcos Villela. A estética da professoralidade – um estudo interdisciplinar sobre a


subjetividade do professor. Tese de Doutorado em Supervisão e Currículo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 1996.

_____________________. Traços de fundamentalismo pedagógico na formação de


professores. (no prelo).

_____________________. Entrevista concedida, por correspondência eletrônica, à pesquisadora


Verussi Melo de Amorim, em 19 de junho de 2006.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política
na transição paradigmática. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.

SHIVA. Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia.


São Paulo: Gaia, 2003.

RIOS, Terezinha A. Compreender e Ensinar: por uma docência da melhor qualidade. 4ª ed.
São Paulo: Cortez, 2003.

1164
DIDÁTICA E INDÚSTRIA CULTURAL – TESES PARA DISCUSSÃO1

Andreas Gruschka

(1)

Não são apenas os produtos da indústria cultural que expropriam dos homens a possibilidade
de uma relação viva com as coisas, sobretudo quando estas são mediadas esteticamente pelo
mundo da experiência e do conhecimento. A escola pública, contrariamente a sua gênese e
seu programa – o esclarecimento amplo, cientifico, metódico, moral e social das gerações
futuras – tornou-se um agente dessa expropriação.

A educação escolar se imiscui cada vez mais nos mecanismos da indústria cultural. A escola
espera, ao confundir escolarização e consumo, adentrar o mundo dos negócios de forma mais
eficiente, na medida em que torna os alunos consumidores de uma mercadoria-lição que
promete valor de troca e trabalho não-fatigante, divertido e rotineiro, como acesso ao
conhecimento. Por trás desse rearranjo dos conteúdos escolares, desaparecem as
possibilidades do conteúdo formativo. Este aparece entrementes como estranho e intimidador:
os conteúdos da tradição cultural seriam não mais que postos à disposição do mercado, uma
vez transformados no âmbito da indústria cultural.

(2)

A indústria cultural recolhe, de diversas formas, o que a escola coloca à disposição. Esta é,
por sua vez, a escola dos futuros consumidores da indústria cultural e não aquela cuja
produção soubesse como “ferir” (Adorno) pessimistamente os alunos. Aquele que na escola
antes de tudo ouve os textos em lugar de lê-los, se agarrará com facilidade ao áudio-book.
Aquele que atribui, antes de tudo, reconhecimento a discursos descompromissados, estará
com o espírito preparado para o desfrute dos talk-shows. Aquele que na escola se limitar a
receber conhecimentos superficiais e inofensivos, estará disponível para a mera opinião, mas
não para a capacidade de julgar de maneira fundamentada. Aquele que na escola não teve a
experiência da exploração concentrada e precisa de um conteúdo, por meio da
estandardização, dispersão e justaposição, estará de acordo com a esquematização, a
volatilidade e vulgaridade das mercadorias da indústria cultural.

1
Tradução provisória de Alexandre Fernandez Vaz (UFSC/CNPq) para o Grupo de Estudos e Pesquisa Teoria
Crítica e Educação (UNIMEP).

1166
Ao adaptar seus conteúdos e formas de trabalho à indústria cultural, a escola pode, nesta
sociedade, fazê-la triunfar como solo da cultura e facilmente pôr tudo a seu serviço.

(3)

A Pedagogia prometeu que o ensino escolar, valorizando a curiosidade natural dos jovens,
seria capaz de levar ao “mais livre intercâmbio entre o eu e o mundo”, “da forma mais ampla
que fosse possível” (Wilhelm von Humboldt). Ao mesmo tempo, a escola burguesa moderna,
ao tornar-se obrigatória, propôs uma promessa bastante distinta, quer dizer, alcançar, com
meios didáticos uma facilitação radical dos conteúdos e dos caminhos de aprendizagem. A
mais antiga didática (a partir do século dezessete) foi talvez a primeira forma de indústria
cultural. Uma mirada mais precisa no cotidiano da escola mostra, no entanto, que as aulas
nem alcançam o plano ontogenético da formação dos alunos, nem são capazes de desenvolver
na esfera da linguagem o correspondente conteúdo que tornasse possível um adequado
conhecimento. Também no que se refere à prometida racionalização do ensino por meio da
didática, falta-lhe o balanço, depois de trezentos anos de jejum: até hoje não é ela capaz de
levar a totalidade dos alunos a um nível estável de compreensão dos mecanismos e estruturas
da cultura geral.

(4)

Desde seu começo a educação escolar orienta-se por um “decalque” didático do mundo, cujo
“formato” hoje corresponde ao registro das imagens da indústria cultural. Elas representam o
saber de tal forma que frente ao que se regulamenta como saber escolar, as capacidades não
previamente esperadas são desprezadas. Com isso são arrancadas do complexo no qual se
opera o conteúdo (Sachzusammenhang), de forma que também a capacidade subjetiva de
julgar seja posta entre parênteses. O mundo se torna um “mundo de aparência” (Adorno) da
materialidade escolar que, por sua vez, forja uma realidade própria em contraposição ao
mundo. A materialidade do conhecimento é apenas adquirida de maneira funcional, não mais
apropriada. Tudo deve correr de forma “rápida e agradável” e por isso jamais pode haver
“profundidade” (Comenius).

(5)

A recusa em confrontar os alunos com material ainda não didatizado, mas “porcionado” e
atomizado, o que dá clareza imediata ao que está sendo ensinado, é vista pelo professor como
uma antropologia escolar pessimista, “negativa” (o que mais deve ser temido).

1167
Esta, por sua vez, seria muito exigente, ao ocupar-se de forma ampla das problemáticas que
conformam o conteúdo escolar. Ao dedicar-se de forma tão intensiva às questões, não traria
nem interesse, nem motivação. Como isso a estrutura escolar não autoriza que se ocupe de
fato com os conteúdos, mas exige, por meio das normas de avaliação e controle, o incessante
ajustamento do processo de ensino e de seus resultados a essas regras.

Isso significa que também os alunos acabam esperando as correspondentes orientações muito
claras, com as quais possam, posteriormente, alcançar boas notas. Eles saúdam o auxílio
didático como uma entrada e, da mesma forma, as soluções mais claras possíveis e
rapidamente obtidas como uma saída oferecida pelos processos mediadores da didática. Sem
este tipo de orientação, sentiriam-se indefesos frente às problemáticas postas, sem saber mais
o que fazer com elas.

Essa imagem distorcida do aluno que compreende e consegue seguir as orientações, torna-se
uma regra do esperável otimismo, contexto no qual deve fracassar qualquer pretensão à
exigência. (Em todas as estruturas escolares alemãs há muitas críticas aos alunos que não mais
capazes de ler, escrever, fazer cálculos e pensar, problemáticas para as quais se colocam
muitas soluções mágicas. A tarefa mais desespiritualizada é, com isso, justificada.)

(6)

A atual reforma educacional, tanto a oficial quanto a informal, aproveita que se a observe
como urgente para fazer uma profecia autoreferente. Nas aulas, o aluno é tratado de forma
correspondente a isso.

Concomitantemente, as coisas seguem de forma não problemática, pelo menos enquanto a


apreensão temática e a cultura da praticidade seguirem confirmando as seguintes metas:

- Informação superficial;

- Conhecimento aparente, mas documentado por boas notas;

- Esquemas aprendidos por meio de “decorebas”;

- Conhecimento formal e operativo.

Isso tudo pode ser alcançado mesmo dispensando-se o pleno entendimento da coisa. Onde
não há expectativa de entendimento, problematiza-se o acordo com a aparência, arranha-se a
superfície da coisa ao ser ela tratada como aparência. Ao invés de levar os alunos à

1168
dificuldade da coisa mesma, cuja solução promete trazer à felicidade do conhecimento, essa
expectativa é didaticamente mistificada, trivializada. Contra sua perda de substância é posta
uma agradável resposta midiática, de tal forma que ao final o que conta é pacote, o invólucro,
e não mais o conteúdo.

(7)

Há dois lados na questão: o primeiro diz respeito a uma recusa dos alunos frente a um ensino
que sentem ser desprovido de sentido; o segundo se expressa por meio de uma involuntária
ruptura do próprio interesse pelo assunto em pauta, dado o descontentamento com as
explicações disponíveis.

No primeiro caso é preciso contar com problemas disciplinares. Os alunos imunizam-se por
meio de comportamentos censuráveis – não colaboração, distanciamento irônico, imitação das
orientações feitas a colegas – frente às dificuldades de entendimento e à inutilidade dos
próprios esforços.

A reação do professor nesses casos não é a do movimento de retorno à coisa mesma, mas de,
em paralelo à disciplinarização, tentar refletir como se poderia, com ainda mais didatismo,
fazer retornar a atenção dos alunos para a aula por meio de um tempero ainda mais saboroso.
É preciso dar ao macaquinho um pouco do açúcar cultivado por si mesmo.

A outra reação é talvez para nosso contexto mais interessante, uma vez que com ela não se
engendra propriamente uma resistência contra a aula, o desinteresse na semiformação e a
vivência da própria insuficiência, mas, ao contrário, o interesse pela formação.

Isso se articula, segundo observamos, a cada momento: desenvolve-se como um protesto


silencioso, como um ceterum censeo freqüente esperançoso e desesperançado:

“Do que se trata? (O que há para além do invólucro?)

Eu não compreendi (Mas, quero compreender).

Isso não é inteligível (e, por isso, não é para se aprender).”

(8)

1169
Mesmo tão didatizada, a atividade de ensino não pode renunciar inteiramente aos conteúdos,
cuja mediação ela deve promover. Para tanto, a estrutura disciplinar e seus métodos, que não
foram de todo desmobilizados, expressam-se da seguinte forma:

- Toda aula de matemática compõe-se dos esquemas idealizados com ponto, reta, raio e
distância, lidando antes com aquilo que é probabilidade calculável do que com o mero acaso.

- As ciências da natureza procuram com seus métodos experimentais a análise e síntese de


substâncias e a descrição de fenômenos naturais, o esclarecimento da natureza dada, sua
utilidade, processos de mudança e evolução.

- No ensino da língua se expressa de pessoa para pessoa a relação Eu-Mundo – o


entendimento intersubjetivo e a construção ficcional do mundo.

- A História lança a pergunta pelas condições fundamentais ou contigenciais de transformação


e pelas possíveis conformações do futuro.

- O ensino de religião nos faz confrontar o outro da razão.

- Artes plásticas e música evocam nos alunos formas não discursivas de compreensão do
mundo.

O sentido formativo desses cânones não se deixa inteiramente domesticar pela semiformação
escolar.

(9)

Isso se mostra com enorme vigor quando se analisa transcrições do cotidiano de aulas.
Incessantemente se colocam chances para professores e alunos captarem o sentido formativo
dos conteúdos. Elas se manifestam naqueles momentos simples e interessantes em torno do
que é próprio da disciplina e não apenas do que é peça rotineira. Mas, essas chances são
desperdiçadas. A aula aparece como uma cerimônia permanente de “cooling out” das
aspirações formativas.

Depois de anos de leitura de protocolos de registro de aulas, não verificamos nenhuma


ocasião mais duradoura em que o professor estivesse preparado para a situação de, por algum

1170
tempo, sair do que estava prescrito e dirigir-se para as problemáticas complexas dos alunos
que, por sua vez, não cessam de propor questões2.

(10)

Nas questões propostas pelos alunos é interessante observar que jamais se originam de uma
posição semiformativa, mas sim da ingenuidade (no sentido adorniano) ou de uma expectativa
muito bem posta, contrapondo-se ao que é falso e equivocado no que a escola apresenta.

O surgimento do impulso formativo tem a forma da admiração e das questões ingênuas, da


espontânea ligação por meio das coisas, do ceticismo frente ao valor do que é apresentado, da
reflexão ruidosa do sentido subjetivo.

Essas formas de exteriorização serão tratadas pelos professores, tendencialmente, como


situações que atrapalham o andamento das atividades. Freqüentemente nem sequer serão
percebidas e por isso nada sobre elas se dirá, ao se diluírem no fluxo das falas em sala de aula.

(11)

O disciplinamento do interesse formativo se dá não apenas por meio da prolongada ameaça


representada pelo controle dos resultados, mas de forma ainda mais dura pela forma com que
são propostas as tarefas específicas e dirigidas. Estas dão prosseguimento a um estreito
regime de trabalho do qual dificilmente se pode sair. Com elas se coloca a promessa dos
professores de que os alunos estariam livres do risco de não compreender as temáticas, desde
que estivessem prontos para realizar o que é prescrito. Em geral o material didático é
construído de tal forma que com eles o sucesso previsto estará garantido.

A escola justifica tais tarefas aludindo os interesses e carências dos alunos, assim como a
contemplação das expectativas de qualificação socialmente esperadas.

(12)

No contexto em que as aulas são a disposição espiritual em direção à semiformação e em


contraposição ao interesse vivo dos alunos em seu processo de descobrimento do mundo,
aquelas destroem a possibilidade do que até hoje ainda é a formação.

2
Rückfragen, no contexto aqui apresentado, aparece como “questões propostas pelos alunos”. Elas se referem às
questões que os alunos, em sala de aula, colocam como contraponto ao que é dito pelo professor, geralmente no
sentido de um pedido de mais esclarecimento. (Nota do Tradutor).

1171
Os resultados internacionais de exames como o PISA se encarregaram de tornar o domínio
instrumental de tarefas estandardizadas o substituto daquilo que na Alemanha era normativo e
teoricamente presente, o discurso sobre a formação e a formação integral.

Na medida em que não permanece o momento formativo que se livre, por sua própria
natureza, desse estado de coisas, não restará outro que o sombrio prognóstico: a escola
futuramente nada mais terá a ver com a formação, elemento fundamental pelo qual foi
instituída. Ela se reduz à alfabetização da massa calada e à disseminação de uma elite que não
passa de um aparato funcional.

1172
Hipertexto

Christoph Türcke
Uma “Sociedade do Conhecimento” não é composta por muitos “conhecedores”, mas
sim por pessoas que não sabem como podem concentrar o conhecimento, que foi
reunido em técnicas, aparelhos, arquivos e bibliotecas, em unidades transparentes ou ao
menos acessíveis. O problema não é novo. Trabalha-se nisto desde que se percebeu que
a ciência moderna, que não fora mais tutelada pela teologia, não se concentrava,
automaticamente, numa unidade de pesquisa amparada pela razão, ameaçava antes se
dispersar num grande número de conhecimentos distintos. Contrários a este risco,
Diderot e d’Alembert, já em 1750, assumiram a direção do gigantesco projeto de
construção de uma enciclopédia com a intenção de “amealhar os conhecimentos
espalhados pela superfície terrestre; de apresentar o sistema geral destes conhecimentos
aos homens com os quais vivemos e transmiti-los aos que estão por vir, para que o
trabalho dos séculos passados não fosse inútil para os séculos vindouros; para que
nossos netos se tornassem não apenas mais cultos mas também mais virtuosos e
felizes”. Eles reuniram o trabalho de 150 colaboradores e 72.000 artigos numa “Árvore
genealógica das Ciências”, a qual parecia brotar de três forças básicas espirituais: a
memória, a razão e a força da imaginação; junto à qual eles ordenaram todo tipo de
história (e tambem a historia da natureza) à memória, as artes e capacidades manuais à
força da imaginação, e áreas tão heterogêneas tais como Teologia e Ciências Naturais,
Moral e Lógica, Pneumatologia e Matemática à razão. No entanto, para que eles não se
emaranhassem nas ramificações precárias desta árvore, concordaram em realizar uma
ordenação alfabética de contribuições com referências abundantemente cruzadas de
outras palavras-chave, termos genéricos e conceitos subordinados, ou seja, pelo método
que prevaleceu em todo Léxico como o mais prático. Mas isto à custa de que o
“Entrelaçamento das ciências”, tal como foi desejado por Diderot, permaneceu
superficial e esporádico. Ele já padecia da enfermidade básica de todos léxicos
posteriores, os quais representam, novamente, a disparidade que desejam superar. Tão
mais imprescindíveis os dicionários se tornaram para o estudo das línguas estrangeiras e
das disciplinas científicas, tão mais eles se revelaram insuficientes para tal empreitada.
Por mais que juntem os fatos, mais se privam do contexto interior. Hegel desejou
reconstituir tal contexto num singular ato de força espiritual e apresentou uma
enciclopédia filosófica que deixava provir, facilmente, a estrutura lógica do universo, e

1173
as formas da natureza, do espírito humano, da sociedade, da arte, religião e filosofia.
Contudo, o todo, para o qual ele os juntou, foi adquirido por meio do suprimir de um
volumoso e incontável número de detalhes. Hegel sabia muito, mas nem de longe ele
sabia tudo. À luz de sua enciclopédia, a de Diderot e de d’Alembert dá a impressão de
ser como uma pedreira, para não falar de outros léxicos.
Entretanto, à luz de cada léxico surge a paranóia de uma enciclopédia arduamente
trabalhada para se tornar um sistema filosófico. O mundo não cabe numa única cabeça e
muito menos se equilibra apenas em uma.
E se houvesse uma unica máquina que fosse capaz de processar o mundo como texto?
Esta foi a visão do engenheiro americano Vannevar Bush que teve a idéia, em 1940, de
gravar tudo que já fora escrito em microfilme, de armazenar tal gravação numa
escrivaninha e fazer aparecê-lo em dois monitores. Por que dois? Porque dois textos
diferentes poderiam ser vistos simultaneamente e associados um ao outro por meio de
um código registrado em ambos os textos nos cantos inferiores da tela. Se numa outra
oportunidade se reativa o código do texto por meio do pressionar de uma tecla,
automaticamente também surge o outro texto. Bush nomeou seu invento como Memory
extender (Memex). Na verdade, não passou de um mero recurso mnemônico maquinal
que, no entanto, produziria algo revolucionário: a libertação do pensamento humano de
seus espartilhos auto-culpáveis. Catálogos seguem o alfabeto, os índices seguem os
números, a árvore genealógica do conhecimento segue os conceitos genéricos e
subordinados, quão complicado e restritivo e este procedimento! “A mente humana não
trabalha desta forma. Ela opera por meio de associações”. Bush quis recuperar este
processo associativo original do cérebro por meio de uma simulação maquinal. O
objetivo do Memex não seria somente reduzir gigantescas bibliotecas ao tamanho de
escrivaninhas, mas principalmente elevar textos para um estado de associação
omnilateral. Neste estado eles tanto representariam quanto possibilitariam um
pensamento flexível e emancipado dos esquemas estúpidos de ordenação. Em tal estado
mais elevado o texto merece também um nome mais elevado: hipertexto.
Esta palavra ainda não existia na era de Bush, mas ele pode ser identificado como o pai
do hipertexto graças ao seu ousado programa de associação de texto e cérebro.
Entretanto, as associações vivas são espontâneas, mas nunca totalmente sem motivos, e
também nunca totalmente transparentes. Não existe nenhuma regra que explique porque
elas aparecem exatamente aqui e agora, desta forma e não de outra. Elas têm um grau de
liberdade, um momento de não derivabilidade, por conta do qual são inversamente

1174
volúveis e fugazes, dependentes do contexto e da disposição. Se hoje, num dia de tempo
ruim, me ocorre o texto B por causa do texto A e eu associo ambos por meio de um
código, então talvez na próxima semana, depois de uma ida ao cinema, me venham à
mente textos totalmente diferentes e mais produtivos. Quando as associações são
fixadas e tão mecanizadas em códigos que regressam num pressionar de uma tecla, isto
significa matá-las. Associação fixada não é mais associação, e quem deseja arrancar
dela o segredo do associar é sugado num regresso sem fim. A tentativa de captar a
associação livre num “link” evoca a existência de uma armadura infindável de “links”
posteriores, sem que nunca ocorra a captação. Por isso o Memex de Bush não teve êxito.
Os códigos, com os quais se associavam os textos, deveriam, por sua vez, ser ordenados
de algum modo e, para isto, precisava-se de códigos cada vez mais complicados, além
de que livros de códigos cada vez mais complexos necessitaram ser escritos para
atender tal demanda. Bush nem sequer pôde criar uma “máquina bibliográfica”
funcional.
Doenças infantis de um projeto genial? O fracasso de Bush foi assim interpretado pelos
seus sucessores. Em essência, eles atribuíram o fracasso, tal como Stephan Porombka
demonstrou num brilhante estudo, a defeitos técnicos sem suspeitar, de forma alguma,
do próprio objetivo: que se produzisse maquinalmente um espaço de associação livre de
pensamento e de texto. Ted Nelson apostou, neste processo, em novos métodos de
software nos anos sessenta. Todos os documentos ao alcance deveriam ser registrados e
associados a um “Dokuversum” que “consiste em tudo o que fora escrito sobre um
determinado tópico [...] no qual se pode ler em todas as direções que se desejar
prosseguir”. Em 1965, Nelson criou o nome Hipertexto e o atribuiu a este
“Dokuversum” (universo documentado). “Por hipertexto compreendo a escrita não
seqüencial”. Esta definição lapidar age até hoje como uma fórmula mágica cujo encanto
é absolutamente compreensível, caso se atente contra quem ela se refere: contra
“Gutenberg”, quero dizer, contra a própria cultura do livro e sua forma de ler e escrever
rigidamente seqüencial ou linear, identificando-a como a essência de um progresso
moderno rígido e repressivo. Quando o discurso do hipertexto também se difunde,
concorda-se com a seguinte observação: o futuro deve pertencer ao escrever, o ler e o
pensar “não seqüencial” e “não linear”.
Mas como isto é possível? Mesmo os menores textos, as palavras pequenas tais como
“sim, não, ou” formam uma determinada seqüência de letras que se deve ler exatamente
nesta ordem, sendo que até mesmo os mais entusiastas do hipertexto também procedem

1175
desta maneira totalmente convencional e bem comportada. Se não fosse desta forma,
tais entusiastas não entenderiam absolutamente nada, do mesmo modo que eles não
deixam de falar sequencialmente, pois articulam sons na seqüência aprendida. Ler e
escrever de forma não linear? Bobagem. Que desta insensatez se possa fazer algum
sentido a curto prazo, algo como o protesto contra as estruturas de sentido desgastadas,
tal como no caso dos poemas dadaístas, isto não muda nada o fato de que ninguém, a
longo prazo, conseguiria se entender assim. Onde se diz “não linear”, se quer dizer, na
verdade, outra coisa, a saber: não mais em grandes unidades lineares.
Mas com isto se coloca a questão de revide: Quão lineares foram estas unidades
“gutemberguiana”, cuja tirania dever-se-ia abolir? Elas foram mesmo unidades no
sentido rígido da palavra? Certamente, se se compara com o estado atual, no qual os
leitores mais apaixonados se queixam de que dificilmente conseguem ler um livro do
início ao fim. Porém, como era antes quando começávamos a ler um romance policial e
nao sabíamos, até a penúltima página, quem era o assassino? Ou quando acreditávamos
ter devorado um romance numa tacada? Provavelmente esquecíamos de tudo ao nosso
redor e penetrávamos madrugada adentro. Ora, tal procedimento é totalmente diferente
do que um processo linear. Quem conta as pequenas interrupções que ocorrem quando o
leitor por um momento se afasta e se entrega às suas próprias associações; quando olha
novamente duas páginas para trás, observadas de forma imprecisa, e olha de soslaio
uma página para frente para averiguar se a leitura de fato continua a estar de acordo com
suas expectativas, para não falar da ida à cozinha ou ao banheiro para poder se tornar
novamente receptível? O que aparece para olhos de toupeira como um processo
obstinadamente linear se revela, por meio da observação um pouco mais precisa, como
uma oscilação de uma linha com um excedente de associação contínuo que é inevitável
quando de fato se imagina o que se lê, ou seja, quando há desvios, superficialidades,
repetições, pausas para pensar, olhares para trás e para adiante. E se fosse necessário
empregar um conceito chique para tal procedimento, este conceito seria “navegar”. Ora,
aquilo que é válido hoje para a Internet na condição da forma mais nobre de movimento
não fora impróprio para as formas anteriores a ela. Quem se aproveita da rivalidade do
hipertexto como meio não linear na comparação com o livro não sabe o que significa
ler. Já o tradicional ler nunca fora meramente linear, bem como o “novo” ler não deixa
de sê-lo. O real processo de pensamento, escreve Adorno na Minima Moralia, seria
“tampouco uma progressão discursiva de etapa em etapa, assim como, inversamente,
tampouco os conhecimentos caem do céu. Ao contrário, o conhecimento ocorre numa

1176
rede na qual se entrelaçam preconceitos, opiniões, inervações, autocorreções,
antecipações e exageros, em poucas palavras, na experiência que é densa, fundada,
porém de forma alguma transparente em todos os seus aspectos”. Mas tal experiência
não pode se representar ao copiar-se a sim mesma. Ela deve se traduzir nas formas da
mímica e dos gestos, da linguagem, da imagem e do som, os quais ela encontra em seu
meio ambiente.
De modo que a experiência traduzida não é mais a experiência feita originariamente,
mas só assim se torna concreta da mesma forma como uma peça musical só é
concretizada quando ela é tocada, embora o tocado não seja mais aquilo que fora
imaginado pelo compositor. Ele é menos, mas também mais. Todo texto situa-se aquém
da experiência que ele comunica, mas é apenas por meio do texto e das estruturas de
linguagem que a experiência consegue superar sua limitação monádica.
E tais estruturas não podem existir sem a seqüência de sujeito, predicado, objeto, e sem
a hierarquia de conceitos genéricos e subordinados. Elas são tão indispensáveis e
insuficientes como a ordem alfabética nos léxicos. Sua insuficiência incomoda, mas ela
faz com que o texto aponte para além de si mesmo. Sem provocar o leitor para
elaboração de seu próprio construto representacional, o qual é tampouco trivialmente
identico com a seqüência de palavras impressas, quanto com construto do autor,
nenhum texto poderia ser palpitante.
Portanto, exige-se uma dupla resistência. Tão mais é preciso resistir às estruturas
seqüências e hierárquicas da língua e do texto por meio da prova constante de sua
insuficiência, tão seguramente elas, por sua vez, formam a resistência que a experiência
precisa para se representar como diferente das seqüências. Cada resistência é produzida
para que possa um dia cessar. Seu ponto de fuga é o estado de reconciliação utópica. A
princípio, nele se dispersa toda contradição; e então toda contradição teria um bom fim.
O inconveniente da visão-hipertexto não é o utópico, mas sim o prematuro declínio da
tensão: a utopia adquire o preço de liquidação. Um espaço livre do pensar, ler e escrever
não linear deve ser produzido por meio de máquinas, mas no velho mundo capitalista.
O Dokuversum, que produz texto legível em todas as direções, deve instituir não apenas
a liberdade, mas também já ser sua imagem autêntica. Entretanto, o texto que se
desprende da forma do livro não paira assim tão facilmente sobre todas as partes. Ele
adquiriu, de imediato, uma nova forma. Ele é, desde o princípio, texto programado.
Toda liberdade decorrente, toda associação e combinação das partes do texto totalmente
distantes e heterogêneas funcionam continuamente apenas conforme um esquema fixo.

1177
Subentende-se que ligar tudo com tudo, portanto todos os “e”, “ou”, “mas”, um com o
outro, conduziria para o nada. Apenas palavras-chave tornam-se aptas e, portanto, só
servem para alguma coisa, quando são apuradas por serem inteligentes. Eles têm que
compreender algo do conteúdo dos textos ligados estando na condição de separar o
essencial do não essencial e de associar com outro essencial, de tal modo que possam
fixar os resultados de seu trabalho de diferenciação e associação em links. Mas o quão
estes links se deixam ser combinados depende das normas do respectivo programa
digital, que se compõe, por sua vez, de inúmeras conexões 0-1, ou seja, em links de
miniatura que conduzem o percurso do impulso elétrico. O texto conectado, que tais
links possibilitam, deve ser incrivelmente amplo, mas se diferencia qualitativamente de
um “Dokuversum”. Ele permanece constantemente parcial e, apesar de todas as
afirmações opostas, fechado. Apenas com a chave correta é que ele se deixa abrir. Tem
que se dominar seu Software para fazê-lo expandir novos textos e associações, e isto
significa trabalho duro. Entrar alegremente, acrescentar seus próprios textos e idéias e
continuar, desta maneira, a escrever o texto universal, tal como as crianças procedem na
escola com as histórias abertas: Exatamente isto nenhum software vai permitir. É por
isso que muitos jogos de computador, os quais o programador de experimenta com
prazer, têm desde o princípio o gosto insosso do substituto. Ao invés de oferecer ao
leitor uma história pronta, tal como fazem o romance tradicional ou a revista de
histórias em quadrinhos (sendo que tal leitor pode aceitá-los ou colocá-los de lado), os
jogos de computador lhe apresentam um texto do qual ele deve produzir sua própria
história: ele mesmo tem que salvar a princesa, esclarecer o assassinato, redescobrir a
cultura desaparecida, reativar uma memória suprimida, ou até mesmo ele próprio
escolher as tarefas que se deseja solucionar.
O leitor de um livro não fora sempre um mero sequaz bem comportado do autor? Agora
ele se torna um criativo co-autor. Entretanto, sua criatividade total consiste apenas a
escolha de possibilidades que são, todas elas, afirmadas de antemão. A associação livre,
a favor da qual o projeto de hipertexto foi posto em marcha, é espontânea e livre apenas
quando ela está aberta, a qualquer momento, para o imprevisto.
A práxis do Hipertexto consiste em reduzir a liberdade de escolha ao previsto; o que
ocorre aos partidos, às companhias telefônicas, aos seguros de saúde, aos detergentes e
aos aparelhos de televisão tanto mais acontece ao hiperespaço: abre-se um labirinto
total, são quase infinitas as possibilidades de nele se movimentar. Porém, todos os

1178
caminhos já são dados de antemão e nenhum deles conduz para fora. O programa de
computador é a versão high tech da providência.
Certamente se trata de um reino de liberdade bem miserável, no qual um contemporâneo
que clica o mause e olha fixo para a tela dispõe, ad libitum, de todos os comandos e
conexões que já são pré-determinados por um programa de computador, tal como se
fosse um senhor que exercesse sua soberania sobre um prato pré-preparado. Mas porque
não ignorar isto? Não é a utopia do hipertexto simplesmente o carro-chefe extravagante
de uma série de conquistas altamente prestimosas? Contudo, é fantástico ter o Goethe
ou Nietzsche inteiros num CD e, por meio de uma palavra-chave, poder encontrar a
qualquer citação desejada. E quando todas as bibliotecas forem digitalizadas, conectadas
e acessíveis por todos, então o “Dokuversum” não se tornará uma realidade prática que
se pode utilizar como puro subsídio sem que se deva preocupar com a utopia associada?
Não se salvará disto tão facilmente. A revolução midiática do século vinte atingiu em
cheio o texto. E não cessa de conseguir aliados para o hipertexto, do quais McLuhan foi
apenas o mais proeminente. Ele também anunciou, tal como Nelson, o fim da cultura do
livro. Entretanto, assim o fez não a favor do texto não linear, pois preferiu a apostar suas
fichas na fita magnética, no telefone e na televisão. Eles deveriam remediar o prejuízo
que veio ao mundo por conta do alfabeto e que atingiu seu ápice com a imprensa. Por
meio do texto escrito e suas leituras taciturnas os seres humanos se isolaram uns dos
outros e foram reduzidos ao visual. “Gutenberg” se firma como a incorporação da
alienação social. A ligação eletrônica entre locais distantes deve anulá-la e aquela
comunicação imediata que acolhe todos os sentidos, e que outrora demarcava a ligação
tribal primitiva, deve se restabeler num nível mais alto e numa dimensão global. Por
meio do telefone, do rádio e da televisão “o sistema nervoso central é ampliado numa
rede mundialmente unificada” e o “processo de conhecimento criativo, coletiva e
corporativamente à toda sociedade humana”, como se esta extensão técnica já tivesse,
por si própria, uma qualidade moral e social e permitisse à humanidade dar as mãos para
uma nova proximidade e cordialidade.
Para que isto se torne crível, deve-se, entretanto, esquecer rigidamente como se realiza,
de fato, a união da humanidade por meio da eletricidade. Órgãos isolados,
principalmente o olho e o ouvido, são conectados a um aparelho que transmite
estímulos e impulsos apenas quando ele os decompõe de acordo com uma regularidade
mecânica, quando os canaliza, filtra, para serem sons separados ou cortes imagéticos
das perspectivas centrais ou, quando a técnica já possibilita, para serem sensações táteis

1179
mensuráveis. A participação ou a comunicação eletrônica consiste de uma dispersão de
acontecimentos pontuais, os quais são ligáveis ou desligáveis. Eles são igualmente
separados tanto do meio ambiente concreto do emissor quanto do receptor. Um lugar
onde ambos se encontram não é mais especificável. Os meios eletrônicos ganham sua
força de abrangência mundial e de poder conectar a humanidade apenas às expensas de
que eles, com perfeição, descontextualizam e isolam os sentidos e as vivências numa
medida que nunca fora atingida na época da imprensa. Aquilo que parece como a
superação da alienação gutemberguiana revela-se como sua mera potencialização. O
inimigo está em toda parte, até mesmo nas próprias novas mídias. Só que seu pioneiro
não pode admitir tal fato. Tão mais intensamente ele deve projetar seu inimigo interno
para fora e atestar constantemente à cultura da escrita um caráter seqüencial forçoso e
isolador, como se a lírica, a literatura e a dialética nunca tivessem provado a imensa
variedade espiritual que se encontra na escrita. Não por acaso a força de poder conectar
a humanidade atribuída aos novos meios de comunicação se alimentam do venerável
lema concernente ao apogeu da imprensa: “Todos os homens se tornam irmãos”.
Beethoven precisava de uma sinfonia inteira para transmitir tal força congenialmente.
Atualmente, os meios eletrônicos devem fazer isto diariamente por conta própria.
Sugere-se que eles sejam esta mensagem.
De um ambiente espiritual totalmente diferente partiu um ataque geral filosófico ao
livro escrito de forma tradicional. Para Deleuze, o livro é o centro de todas as estruturas
hierarquicamente lógicas; seu inimigo é a árvore lógica, da qual de um tronco brotam
dois galhos, dos quais outros dois se originam na mais bela ordem até chegar aos
menores ramos. “De um se originam dois. Toda vez que nos deparamos com esta
fórmula, mesmo se Mao a usasse como estratégia ou se ela fosse compreendida tão
“dialeticamente” quanto fosse possível, fazemos isto utilizando o pensar clássico mais
antigo e mais refletido, o qual é totalmente desgastado. A natureza não procede assim,
pois as raízes se tornam raízes mestras com um riquíssimo número de ramificações
laterais e circulares; em todo caso, elas não são dicotômicas”. Elas são rizomáticas. O
rizoma (tal como o título do famoso panfleto de Deleuze e Guattari, de 1976) que
corresponde propriamente ao termo tubérculo, carocinhos, se espalha,
concomitantemente, para todos os lados e, como “a natureza” procede desta forma, deve
finalmente dar cabo ao chatíssimo “livro-raiz” e à sua lógica binária autoritária. Até “as
palavras de um Joyce, às quais se atribui, com razão, a palavra “ramificabilidade”,
rompem a unidade linear das palavras, e até mesmo a unidade linear da língua, para

1180
produzir uma unidade cíclica da frase, do texto ou do conhecer em movimentos iguais”.
De tal unidade se salva apenas por uma coisa: “o princípio da pluralidade”. “Não sejam
um ou muitos, sejam a pluralidade”. De acordo com este lema deve-se pensar, ler ou
fazer política. “Não há nada para se compreender num livro, mas muito do que se pode
se servir”.
Que estas frases seguem uma gramática totalmente convencional; que elas confrontam o
pensar dualístico e rizomático numa rigidez dualística; que nenhuma destas pluralidades
exaltadas como rizoma ou “Platô” seria principalmente identificável se não fosse
considerada como unidade, bem, isto nunca atrapalhou Deleuze e seus fãs. Foi
suficiente “rizoma” - como “não linear” - ter se tornado uma palavra mágica, um eco do
maio parisiense de 1968. Naquele tempo, quando os partidos comunistas e os sindicatos
se enrijeceram hierarquicamente, e o risco para o capitalismo parecia partir unicamente
das ações espontâneas dos estudantes e trabalhadores, surgiu a imagem de uma nova
guerrilha crítico-radical. Ela vicejava de uma experiência de totalidade, na qual se sentiu
antecipadamente aquilo que hoje significa “Globalização”.
A extensão desta guerrilha é espantosa. “Um rizoma pode ser quebrado e destruído em
qualquer lugar, mas ele sempre se espalha ao longo de suas próprias linhas ou de
outras”. Ora, nos anos sessenta, esta colocação foi levada em consideração pelos
estrategistas militares antes mesmo de ser formulada. Eles elaboraram o descentralizado
ARPANET para o pentágono com o objetivo de que um primeiro ataque soviético não
paralisasse as centrais de informações militares. O ARPANET foi uma peça de
guerrilha de alta tecnologia, mas inventado no centro da maior potência mundial e se
tornou revolucionário não apenas no sentido técnico. Ele converteu a resistência
descentralizada, o último recurso dos humilhados e oprimidos contra a supremacia do
ocupante, em um recurso do mais poderoso. Esta foi uma rebelião silenciosa, mas de um
alcance que se torna evidente apenas de forma gradativa. E assim se iniciou a volta
neoliberal do capitalismo high tech, a guerrilha de cima. O APARNET nunca precisou
captar o temido ataque atômico soviético. Ao invés disso, ele foi aberto para o tráfico
público. Dele se originou a Internet. De uma defesa militar ele se transformou em uma
ofensiva civil, cuja vitória sobrepuja toda vitória militar. Um rizoma se tornou
hegemônico.
Mas com isto o hipertexto teve um salto qualitativo, pois desde então ele não se
dissemina apenas pelo CDs, mas também por meio de linhas telefônicas e transmissões
via satélite. A massa de dados da Internet, para a qual todos que não podem renunciar ao

1181
e-mail e à observação do mercado eletrônico são sugados, tende realmente para o
“Dokuversum” previsto por Ted Nelson, só que de outra maneira. As hiper-histórias,
embora inflacionadas neste novo ambiente digital, são degradadas a um play ground. O
próprio hipertexto, por sua vez, se torna sério, e cada vez mais se torna apoditíca a
alternativa de ou ser deixado para trás, ou de se clicar, por bem ou por mal, através das
massas de dados. Ninguém acredite que isto deixe totalmente intocada sua forma de
pensar. Talvez o saltar brusco de um link para o outro lhe impinja estímulos acelerantes,
talvez ele acione a busca para conceitos precisos. No geral, entretanto, ele torna o
pensamento cada vez mais fugaz e sem fôlego. Copiar um texto manualmente, de forma
correta, exige dos alunos atuais incomparavelmente mais concentração do que a que era
exigida dos seus pais. Ler “de forma não linear” é a grande sensação para todos que não
têm mais paciência para o romance mais longo. Uma vez incapazes de se aprofundar no
texto, se aprofundam no computador. Olhar constante e fixamente para a tela do
monitor, aliado à falta de movimento, resulta, atualmente, no surto de crianças com
sobrepeso e problemas de visão.
Ted Nelson também se considerou um guerrilheiro. Sua defesa de um “Dokuversum”
foi também uma defesa para o livre acesso a todos os dados, PCs para todos e luta
contra o então monopólio e política de restrição da IBM. Deste modo, ele também é o
pai dos Hackers. Certamente, eles têm seus méritos. Sem dúvida, o ato de penetrar nos
dados secretos das grandes firmas ou dos militares é um ato de guerrilha. Ele mostra
que toda codificação é decodificável; que nenhum código é totalmente seguro. Ainda
assim, ele é subversivo limitadamente enquanto sua intenção não for nada mais do que
um livre navegar para todos os dados.
Os métodos de guerrilha não são facilmente identificados como subversão crítica. A
Internet mostra o que ocorre quando eles se transformam em domínio público. Plantas
que se espalham rizomaticamente podem ser podadas. Não por acaso, o jardim foi o
antigo ideal da natureza pacificada. A Internet, entretanto, se deixa represar apenas
parcialmente, não se consegue dominá-la totalmente. Ela se transformou no meio
principal e no símbolo do capitalismo neoliberal globalmente espalhado. Em tais
condições, lê-se o Rizoma como cartilha da desregulação. E a “não linearidade”,
glorificada como recurso radical contra todo progresso linear falso, se revela como o seu
melhor lubrificante.

Tradução de Antonio Zuin

1182
Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe

Robert Hullot-Kentor
1.
Quem quer que tenha estudado os escritos de Adorno nas últimas décadas, talvez
até incluindo aí alguns anos durante os quais o filósofo ainda estava vivo, pode ter
percebido que, apesar da grande quantidade de novos comentários e da publicação
recente de sua correspondência e cursos de graduação, os textos de Adorno estão
tornando-se cada vez mais obscuros. Isto não é porque ele seja mais difícil de ser
compreendido hoje do que fora outrora. Pelo contrário, as explicações, os comentários e
anos de uma crescente familiaridade com a obra de Adorno tiveram resultado, e agora
podemos começar a juntar as peças com bastante facilidade: a reificação representa a
rígida rede que urdimos sobre o mundo; a dialética rasga este véu no conflito do “um” e
do “múltiplo”, no qual fica manifesto o primado do objeto; as relações de produção são
isso; as forças de produção são aquilo; o sortilégio, o tabu, o fetiche e a barbárie são
ainda tantas outras coisas. Mas a força motriz por detrás destes conceitos, seu noeud
vital, desapareceu. Se, há algumas décadas atrás, ao tomar o livro em mãos, o leitor
ficava surpreso com a ousadia do projeto, este mesmo leitor, hoje, não mais percebe
como tomar o partido do negativo poderia ser equivalente a arriscar tudo, a confrontar
todos. Conferências como a nossa, esta semana, indicam que ainda há um interesse
urgente nestas idéias, e que ele pode intensificar-se, mas não há como negar que
conceitos que outrora pareciam descortinar universos inteiros hoje permanecem mudos
diante do mundo. Sem dúvida, pode-se enfrentar o peso histórico acumulado nas
engrenagens de qualquer um destes conceitos e, livrando-se dele, fazê-las funcionarem
de novo, mas nem por isso a “subjetividade”, por exemplo, seria recuperada como se
nada houvesse. Acabar-se-ia falando daquilo que qualquer revista acadêmica de língua
inglesa chama de agency, uma ação pretensamente transformadora. Para ser bem direto,
está para além de nossa volição individual determinar quais idéias são utilizáveis com
rigor pelo pensamento e quais não o são. Mas se não nos cabe decidir quais conceitos
trazem o mundo em si, como para dentro de um vórtice, e quais repentinamente se
retraem, deixando seus fenômenos dispersar frouxamente, podemos por vezes entender
o momento no qual esta virada acontece. Isso nos será central nesta manhã.
A “indústria cultural” é um dos conceitos de Adorno cujo fantasma, por certo, já
se foi. Mas também é o conceito cuja existência paradoxal nos fornece uma visão sem

1183
igual do destino de sua obra na contemporaneidade. O paradoxo potencialmente
iluminador é o seguinte: se o conceito não escapa à aparente exaustão das palavras de
Adorno; se não resta dúvida que seu fantasma se foi; ainda assim, ele vivencia uma
sobrevida vigorosa, completamente indiferente ao fato de ter, há muito, falecido. Pois,
diferentemente de qualquer outro conceito que possa ser retirado do corpus de Adorno,
a indústria cultural é largamente citada, em plena convicção de corresponder à voz do
tempo, como se o mundo estivesse arduamente estudando o capítulo de mesmo nome da
Dialética do Esclarecimento. Se alguém, hoje, minimamente alerta para o que pode ser
dito e o que não pode, hesitaria em encher os pulmões para se lançar em um discurso
sobre as forças de produção, ninguém pensa duas vezes em discorrer ad libitum sobre a
indústria cultural. Pode-se documentar isso de várias maneiras; por exemplo,
percorrendo o uso desta expressão e catalogando a presença segura do conceito como
uma língua franca mundial, seja em publicações acadêmicas, ou nos jornais de qualquer
cidade grande. Estatísticas de citação do conceito também poderiam ser apresentadas.
No entanto, um só caso já bastaria como prova suficiente de sua onipresença, para
delinear o paradoxo de um conceito cujo fantasma se foi, mas ainda assim se perpetua.
Eis aqui, então, duas frases tiradas de uma publicação, preparada pelo governo chinês,
para a Organização Mundial do Comércio. O artigo é sobre aquilo que suas páginas
chamam de o estado da indústria cultural na China.
A China tem testemunhado um enorme desenvolvimento de sua indústria
cultural, desde os anos 90. Todavia, a indústria cultural na China ainda é
muito incipiente se comparada com a dos países desenvolvidos.1

O artigo prossegue lamentando o persistente atraso da indústria cultural chinesa e exibe


gráficos e estatísticas para garantir ao mundo dos negócios que esta é uma situação
transitória e que as devidas providências estão sendo tomadas.

2.
Como a razão para um norte-americano estar citando esta publicação chinesa
sobre a indústria cultural – aqui, em um auditório brasileiro – é corroborar o argumento
sobre a obviedade da frívola onipresença deste conceito, seria impróprio parar para

1
. Meus itálicos. “China and the WTO”. Http://www.chinaculture.org/gb/en_focus/node_322.htm.

1184
analisar a hermenêutica chinesa do termo. Todos nós sabemos o que ele significa. O
conceito é um esperanto confiavelmente intercambiável nas mentes antenadas, presente
e não-presente, aqui, hoje. Em um contraste absoluto, contudo – e aqui a existência
paradoxal do conceito de Adorno de indústria cultural começa a tomar forma – a
palavra que não está em nossas cabeças, a que está fora de nosso alcance, a que de
forma alguma podemos pronunciar, na esperança de obtermos uma compreensão
recíproca espontânea daquilo que outrora significou – é o achado homófono na
Dialética do Esclarecimento mais de cinqüenta anos atrás. Um dicionário exato de
português contemporâneo marcaria a palavra deles, aquela indústria cultural, como
obsoleta. E se o verbete deste dicionário fosse responsavelmente completo, se esforçaria
para mostrar o equívoco, falsamente evidente na homofonia, de se supor que exista um
desenvolvimento contínuo entre estas duas locuções. Embora seja um fato amplamente
conhecido que foi Adorno e Horkheimer que cunharam a expressão, o termo que
utilizamos com um tom monótono e uma fluência fácil não veio ao mundo, primeiro,
como um embrião germânico, que depois teria sido adaptado aos propósitos correntes,
por meio de uma evolução etimológica. Ele, o nosso termo, as palavras que proferimos
com essa desenvoltura monótona e essa fluência fácil quando pronunciamos as sílabas
indústria cultural, deve sua existência a um ato independente de geração espontânea.
Pois é um rebento daquele acúmulo e compressão de entidades comerciais que geraram
uma massa, a partir da qual, há algumas décadas, foram desovados uma multidão de
conceitos já completamente maduros. Tomemos um instante para reconhecer esta
multidão, de uma forma geral, e não em casos específicos – porque não temos tempo –
mas tomando como base algo como: a indústria hospitalar, a indústria da educação, e a
indústria ecológica. Estas expressões industriais, das quais a indústria cultural
corresponde apenas a uma derivação e a uma simples permutação de termos, existem
em um agregado cujos elementos confirmam-se uns aos outros junto com outras
multidões de frases feitas e seguramente pseudo-orgânicas como: a “árvore genealógica
da indústria”, “uma família de aparelhos eletrônicos”, “cultura corporativa”, “a
comunidade empresarial”, “a comunidade dos bancos” e “a comunidade das nações”.
A super-realidade deste agregado de termos usurpou e agora obstrui aquilo que
as palavras indústria cultural outrora significavam. O pensamento de Adorno como um
todo é, freqüentemente, especialmente nos estudos de mídia, identificado pura e
simplesmente com este conceito substituto. E se o pensamento de Adorno está agora
urgentemente vivo e urgentemente não-vivo, estamos na posição mais privilegiada para

1185
entender como isto acontece. No entanto, ainda é necessário dar mais um passo para
decifrar as pistas sobrepostas no paradoxo da indústria cultural, antes que cheguemos
ao centro das coisas. Mas acontece que tal passo está fora de nosso alcance; podemos
tão-somente simulá-lo. E como este passo de faz-de-conta exige um artifício de faz-de-
conta, escolhamos veículo lingüístico que nos levará diretamente para 1947, o ano de
publicação da Dialética do Esclarecimento. Alguns de nós, os sortudos e os azarados,
podem ser levados ainda mais longe, e ver, provar e ouvir o exato momento, a
ocorrência real, quando Adorno e Horkheimer pensaram pela primeira vez este
conceito, no que Habermas defendeu ser a mais pura folie à deux, em Santa Mônica,
Califórnia.
Eu gostaria de dizer para vocês, por sinal, que já tentei usar deste artifício antes e
– mesmo não querendo competir com a argamassa de Brás Cubas – posso garantir que
ele funciona. Ainda assim, dizer que seu efeito é fugaz, não o descreve por completo.
No instante em que se ascende, fecha-se. Para alguns, isso não provará nada, para
outros, será justamente o contrário, e eles terão razão. Porque o momento invocado
pertence a uma era longínqua, a um tempo distante; há uma própria lei que abole
intrusões nesta outra época, uma lei nossa, que dissolve seus traços de nossa memória,
no próprio instante de sua transgressão. Estejam, então, preparados para um tremor
particularmente leve. Podem estar certos, porém, de que algo vai acontecer. Percebam-
no. E a preparação suficiente – só leva um instante e então se vai. Para que funcione da
melhor maneira possível, certifiquem-se de que vocês estão me acompanhando,
pronunciem silenciosamente esta encantação de dias que há muito se foram, enquanto
leio em voz alta, lentamente: o fogo frio de Shakespeare, a permanência fugitiva de
Quevedo, os anões gigantes de Vitor Hugo, a abundância pobre de John Donne, o sol
negro de Baudelaire, a dor prazerosa de Spencer, o pálido fogo de Nabokov, o
humildemente audacioso de Oliver Swift, e aqui, de Adorno, Kulturindustrie,
Kulturindustrie. Bang! INDÚSTRIA CULTURAL. Estamos de volta.

3.
Este instante que volta sobre si mesmo, e que acabou de ser invocado, algo
bombasticamente, de uma semi-existência, almejou cortar em dois a indústria cultural
do vernáculo, rearranjando as partes do conceito de Adorno de forma a trazer à tona sua
fricção incontornável. Na medida em que isto tenha ocorrido, a locução está fragilmente
preparada para emitir seu pulso epigramático: uma unidade forçada daquilo que é

1186
incombinável, a junção triturante de cultura e indústria, compactados em um estado de
conflito. Tivemos que forjar uma estratégia para obter uma percepção, mesmo que
muito fraca, daquilo que transpira de auto-antagonismo no conceito, e que assim ainda
vibrará dentro de nós apenas por um curto espaço de tempo até extinguir-se. Trata-se de
um sentido obsoleto, que não mais pode ser comunicado espontaneamente. Mas o
próprio Adorno, é claro, nunca precisou de artimanhas para trazer à tona o conteúdo
antagonístico do conceito; ele ouvia perfeitamente o que estava em jogo. E à medida
que nós mesmos discernimos melhor a fissura persistente que está sedimentada no
interior deste conceito, a locução dialética passa a insistir, de maneira cada vez mais
clara, que ela deve ser entendida em uma relação de sinonímia estreita com seu conceito
de “história natural”, recusando decididamente qualquer homofonia com a indústria
cultural contemporânea.

Entretanto, a distinção entre o conceito de Adorno e a expressão vernácula não é


absoluta, e a intenção aqui não é a de insistir que os dois não têm absolutamente nada
em comum. Pelo contrário: se um conceito critica aquilo que o outro assevera
descaradamente; se são etimologicamente distintos, são também, para dizer o menos,
historicamente entrecruzados. O conceito de Adorno leva a crer que foi, para ele, um
achado preciso, o resultado de uma auscultação minuciosa das tendências históricas,
mais do que um neologismo historicamente oportuno. Por esta razão, estes conceitos de
aparência tão semelhante têm algo em comum para além da mera aparência; eles
compartilham percepções e estados de espírito solidificados, como parte de uma
dinâmica histórica. Um deles, todavia, está ciente destes conteúdos; a locução
vernácula, inversamente, parece estar anestesiada em relação àquilo que significa, assim
como todos os conceitos a ela afiliados. O aspecto mais surpreendente de todo este
agregado de conceitos é, na realidade, que, entre indústria doméstica, indústria do sexo,
indústria musical e assim por diante, encontram-se algumas das expressões mais
cáusticas de nosso linguajar. E, no entanto, não possuem nenhum caráter expressivo.
Recusam-se a mobilizar nossos ouvidos, senão às suas próprias custas, ou seja, como
simples fatos. Mas se podemos entender mais adequadamente a autoconsciência do
conceito de Adorno de indústria cultural; e, ao entender seu processo interno, ouvir
mais exatamente o que Adorno deve ter ouvido nele, então poderemos também obter
algo de sua habilidade para ouvir o que nosso agregado de conceitos vernáculos mantém
exclusivamente para si.

1187
4.
O problema de se entender o conceito de Adorno como uma instância da
situação de sua filosofia como um todo torna-se agora maior do que era quando
começamos. Ao diferenciá-lo mais precisamente de seu semelhante, esperamos que ele
revele alguma coisa a mais sobre o agregado no qual seu equivalente contemporâneo é
difundido. Estamos agora envolvidos com o que Adorno chamava de fisiognomonia
social. E, da perspectiva deste ensaio, não há diferença alguma entre compreender a
filosofia adorniana de crítica imanente e compreender a nossa própria realidade. Vamos
então considerar onde estamos nisso: com o martelo que Nietzsche recomendou para
toda a filosofia, conseguimos romper levemente a casca que envolve o conceito de
indústria cultural para sermos capazes de discernir nele um antagonismo entre cultura e
indústria. Mas ainda não entendemos o que transpira neste conflito. Para chegar a isso,
no pouco tempo de que ainda dispomos para esta discussão, este conteúdo deve ser
apresentado quase que dedutivamente, de uma forma – se vocês me perdoam por isso –
quase que pedantemente óbvia. E à medida que me dirijo ao centro do conceito de
Adorno de indústria cultural, e assim em direção ao ponto central em torno do qual
cada uma de suas frases era concebida, também nos dirigiremos em direção do ponto no
qual este vasto agregado de conceitos, exemplificado na expressão indústria hospitalar,
começará a falar. Mas estes conceitos apenas começarão a falar. Pois ao chegarmos no
ponto central do pensamento de Adorno, nosso interesse em sua filosofia, nossa
habilidade de nos concentrarmos nela, ficará, de uma maneira geral, enfraquecida e esse
agregado, de novo, calar-se-á completamente.

Em primeiro lugar, então, para entender mais precisamente o antagonismo entre


cultura e indústria na idéia de Adorno sobre a indústria cultural: a cultura, por mais que
possa ter outros sentidos, é tudo aquilo que é mais do que a autopreservação. É aquilo
que surge da capacidade de se suspender propósitos diretos. A indústria, a força
moderna por excelência, que – como todos sabemos – poderia ela mesma ser uma força
da cultura, como a capacidade para dar um fim à carência e ao sofrimento, é, no
imperativo de seu conceito, nascido no século XVII, de trabalho sistemático, limitada
sistematicamente para excluir tudo que não seja o propósito direto. Esta limitação

1188
acontece de tal forma que, ao produzir uma abundância específica, ela é obrigada – se
quiser sobreviver – a produzir a carência em medidas consistentemente iguais. Assim,
toda indústria – como entendida por Adorno – até hoje permanece estruturalmente
atrelada à autopreservação. A indústria cultural, então, é, como a produção de cultura
por meio da indústria, a redução de tudo aquilo que poderia ir além, e que de fato vai
além, da autopreservação da vida na violenta luta pela sobrevivência. Assim, a
manufatura da cultura como a produção da barbárie é a indústria cultural. Aqui, o
moderno é o mecanismo do arcaico na medida em que a cultura, transmutada em
indústria, converte-se em uma força abrangente de regressão.

Eis aqui aquela “unidade forçada daquilo que é incombinável, a junção triturante
de cultura e indústria compactados em um estado de conflito” que mencionei acima, e
que Adorno percebia na aglutinação do conceito de indústria cultural. E se a condição
atual do inglês norte-americano, assim como a do português brasileiro, faz com que seja
difícil imaginar um tempo no qual não se poderia juntar casualmente qualquer adjetivo
ao substantivo indústria, por séculos a combinação de cultura com indústria, em
qualquer forma que fosse, teria de tal maneira perturbado a percepção sensorial
histórica, teria ido tão contra a tendência da própria língua, que foram necessárias duas
guerras mundiais para aproximar estas duas palavras em um composto. Em seus
primeiros dias, o brilho deste conceito reluzia diretamente sobre o pano de fundo de
uniformes camuflados. Era isso – a qualidade categoricamente primitiva da expressão,
produzida pelo próprio mundo moderno – que assombrou Adorno com sua precisão
histórica. Cada palavra que ele escreveu sobre a indústria cultural foi direcionada para a
percepção deste processo inerente ao conceito. E se este está agora em grande medida
bloqueado por um agregado de conceitos, entre os quais indústria hospitalar, ou
indústria musical, estes conceitos podem, agora – se ouvirmos mais exatamente o que
Adorno pode ter ouvido neles – ser reconhecidos como manifestações de brutalização e
começar a falar, ainda que apenas por um instante, como forças de primitivização da
vida pelo poder do próprio progresso.

Mas à medida que estes conceitos comecem a falar por si só, nas primeiras
sílabas nossa atenção para o que têm a dizer já começa a esmorecer. Ouvimos, enquanto
a mente se desvia. Não conseguimos nos concentrar. O ponto principal, então, é o
seguinte: se perdermos o interesse pelo que a nossa língua corrente tem a dizer por si

1189
mesma, neste exato momento estamos demonstrando nosso desinteresse pelo conceito
de Adorno de indústria cultural. E como, sem termos parado para pensar nisso, nos
damos conta de que a compreensão deste conceito nos levou em cheio para o pleno
contexto da constelação de pensamento de Adorno – o sortilégio, o tabu, o primitivo, o
interdito, a barbárie, a mágica, a regressão – então nosso desinteresse expresso de ouvir
mais profundamente nossa linguagem corrente deve assim tocar no ponto central de
cada palavra e cada pensamento na escrita de Adorno. Queiramos ou não, nossa falta de
interesse em uma palavra expressa nosso desinteresse nas outras. Se em algum lugar, é
aqui que começamos a entender – precisamos entender – como a filosofia de Adorno
pode ser tão urgente para nós, e, no entanto, tão refratária àquilo que podemos entender
urgentemente.
5.
A pista para se entender o que aconteceu está contida em um breve ensaio de
Adorno, escrito nos anos cinqüenta e apresentado como uma palestra, “O Conceito de
Filosofia”2. Neste texto, Adorno nomeia o noeud vital, o ponto nevrálgico, de toda a sua
obra, este noeud vital que agora nos falta. Adorno o introduz sob a forma uma única
idéia, porém, é importante enfatizar, não como uma idéia criada por ele; não era uma
percepção sua apenas e não poderia ter sido; era uma idéia, além disso, que vocês todos
irão reconhecer, talvez com alguma decepção, como sendo uma que já encontramos.
Entretanto, esta idéia estava à espera de Adorno, no pensamento de seu tempo, da
mesma forma como ela não está à nossa espera. Ele a menciona como a idéia
embrionária do pensamento ocidental como um todo. É a idéia, diz ele, que expandiu
“infinitamente” o horizonte do conhecimento – referindo-se ao horizonte do
conhecimento no qual sua própria obra estava situada e ao qual devia a totalidade de
suas percepções:

O horizonte do conhecimento [escreveu Adorno] foi infinitamente


expandido; entraram em nosso campo de visão camadas que antes estavam
escondidas. Compreender o arcaico em nós e na realidade: este foi o
passo definitivo tomado pelo pensamento ocidental.

2
No Frankfurter Adorno Blätter no.2. (Nota do Trad.)

1190
Isto tem que ser repetido: o passo definitivo no pensamento ocidental, aquilo que
infinitamente expandiu seus horizontes, foi o reconhecimento do arcaico em nós e na
realidade. Não o arcaico no sentido do que Euclides da Cunha, por exemplo, chamou de
primitivo quando se deparava com “a existência primitiva e desoladora” nos vestígios
de Canudos devastada, e lamentou seu destino.3 Adorno, pelo contrário, quer indicar o
sentido de primitivo que resultou da reflexão deste conceito sobre sua própria barbárie
colonial e pré-colonial. No entanto, esta idéia também está evidente, de forma nascente,
no livro de Euclides, que assim se torna extraordinário na forma com que parece se
dirigir a seus leitores urgindo para que acordem para algo que o autor ele mesmo nunca
poderia ter reconhecido – que a própria civilização continua primitiva. Esta idéia
permaneceu inconsciente em Euclides, alojada por detrás das muralhas de sua etnografia
densa. Mas se não se pode dizer, então, que tenha dado o passo indicado por Adorno,
que não tenha cruzado a fronteira delineada por Adorno, ele deve ser considerado como
um daqueles que, começando com o ensaio de Montaigne sobre os canibais, e passando
por Baudelaire, Darwin e Marx, aprofundou a perspectiva histórica do pensamento
ocidental, que o levou decisivamente ao limiar deste horizonte infinitamente expandido.

Esta amplitude de horizonte não é facilmente considerável a partir do local que


ocupamos. Mas começamos a compreender algo de sua dimensão real quando
percebemos que o horizonte indicado no texto “O Conceito de Filosofia”, tem a mesma
amplitude que Adorno nos convida a ponderar, nas primeiras frases da Teoria Estética,
como o “mar do que era anteriormente inconcebível, a partir do qual os movimentos
artísticos revolucionários foram lançados.”4 Esta é a dimensão do modernismo. Ele
representou uma profundidade absoluta nas profundezas da consciência histórica do
Ocidente, e, com isso, alcançou um sentido de possibilidade do novo de uma forma que
nunca havia sido alcançada anteriormente no pensamento ocidental. O que pode ser
surpreendente no comentário de Adorno em “O Conceito de Filosofia” é a idéia de que
esta amplitude tenha se desdobrado na conquista de uma única idéia, a do primitivo em
nós e na realidade, recolhendo em si o oposto absoluto da história concebida como

3
. Euclides da Cunha, Rebellion in the Backlands, trans. Samuel Putnam (Chicago: University of Chicago
Press, 1944), p. 452.
4
. Theodor W. Adorno, Aesthetic Theory, trans. Robert Hullot-Kentor (Minnesota: University of
Minnesota Press, 1997), p. 3.

1191
história do progresso e conseqüentemente condensando a consciência crítica do
modernismo como um todo.
Mas o que quer que esteja, hoje, distante de nós, Adorno, em sua época, percebia
e compreendia como sendo evidente nas telas de Picasso inspiradas pela África (1907-
1910); na “Dança da Bruxa”, de Mary Wigman; e no que reconhecia na luminosidade
áspera pré-histórica, em cada linha de Kafka. E se, como Adorno indica em “O
Conceito de Filosofia”, tal percepção do primitivo correspondia a um desenvolvimento
das artes como um todo, assim como da filosofia, ele mesmo realizou a ligação entre
essas esferas, acima de tudo por meio de seu envolvimento com Schoenberg, Benjamin
e, especialmente, Freud. É por isso que a constelação de conceitos de Adorno – o
fetiche, o tabu, o sortilégio – quando projetados no horizonte no qual seu pensamento se
originou, pode muito facilmente dar a impressão de misturar-se indiscriminadamente
com a famosa coleção de estatuetas arcaicas na escrivaninha de Freud. Com efeito, a
diferenciação que se faz necessária entre Adorno e Freud, assim como entre Adorno e
Benjamin, refere-se, em primeiro lugar, à compreensão de suas divergências a respeito
da natureza do primitivo. Isso nos faz perceber que, por mais genial que seja a teoria de
Adorno, sua dialética do esclarecimento representa apenas uma das formas nas quais
várias gerações de artistas e de pensadores conceberam uma nova reflexão sobre o
primitivo. O próprio Adorno perseguiu este impulso em cada frase que escreveu,
procurando assim mostrar que o domínio da natureza corresponde à reprodução do
primitivo, que é somente ao compreender isso que a dominação pode ser reconciliada
consigo mesma, que pode abandonar sua violência e reconciliar-se com o primitivo – o
ato por meio do qual o progresso enfim tornar-se-ia progresso. Adorno procurou dotar
esta idéia de uma perspicácia irresistível, de uma intensidade à altura de sua genialidade
e da sua convicção de que compreender isso corresponderia à diferença entre a
sobrevivência e a autodestruição completa da humanidade e do mundo.

Todavia, se, ao querer entender este pensamento, nos voltássemos para este
horizonte infinitamente expandido mencionado por Adorno, ficaríamos frustrados, pois
ele não mais está lá para ser visto. A idéia da auto-reflexão do primitivo simplesmente
desapareceu. Isso não significa a perda de um tipo específico de compreensão, ou um
momento entre outros, mas representa uma diminuição absoluta da profundidade da
percepção histórica. E isso fica claro em toda parte no pensamento contemporâneo, seja
em relação à narrativização da realidade, no despeito soberbo em relação aos chamados

1192
grandes pensadores, e na cega incompreensão que se tem agora de Freud. Se, ao
repentinamente reconhecer que este horizonte se foi, tentássemos nos situar e
começássemos a procurar por balizas para definir o que aconteceu, aquilo que é
chamado de pós-modernismo é – em seu caráter difuso, e de forma alguma como uma
única linha escrita em areia – uma fronteira que se mostrou impermeável à percepção do
primitivo em nós mesmos.

O desaparecimento desta forma de se perceber o primitivo, e, com ela, todo o


horizonte que a inclui, representa o exato sentido no qual a indústria cultural não mais
existe. Não podemos entender o conceito de Adorno – não podemos nem mesmo
comunicá-lo e esperar que haja reciprocidade em sua compreensão – a não ser sob o
pano de fundo de um horizonte que agora sumiu. Eis porque a compreensão do
paradoxo de uma indústria cultural que floresce, enquanto que seu fantasma já se foi,
nos leva adiante e nos deixa entrever porque a obra de Adorno como um todo – neste
exato momento – está tão urgentemente viva em nossa necessidade de entendermos a
nós mesmos e tão urgentemente morta em nossa incapacidade para relacionar os
conceitos de sua obra com nossa própria experiência. Na Teoria Estética, que procura
entender porque o modernismo foi a pique, e o que pode ser recuperado dele, Adorno
escreve que “o processo que foi desencadeado consumiu as categorias em nome das
5
quais foi levado a cabo.” Mas ele não previu, em seu magnum opus, que o mesmo
processo iria consumir a inteligibilidade de seu próprio pensamento. O problema
colocado para um engajamento real com o pensamento de Adorno, hoje, é como
poderíamos encontrar um caminho por estas realidades, para que chegássemos ao ponto
onde pudéssemos começar uma discussão de fato do exato sentido no qual a indústria
cultural continua a existir. Pois, em algum sentido – e se, ao insistir nisso, tudo o que
foi introduzido nesta discussão parece absurdo, esta é a única maneira de apresentar o
paradoxo urgente de nossa situação presente – em algum sentido não resta dúvida de
que a indústria cultural envolve processos, processos sociais totais que, ao transformar
em forças de regressão tudo o que vai além da autopreservação, produziram nossa
incapacidade de perceber a primitivização, que de alguma outra forma está agora
completamente clara para nós.

5
. Ibid.

1193
6.

Isto nos leva, para concluir uma discussão que se debruçou sobre a questão do
que somos capazes de pensar, e do que não somos – aquilo no que podemos nos
concentrar, e no que não podemos –, isto nos leva a um comentário que Walter
Benjamin fez à certa altura, quando escreveu que o próprio poder de concentração
diminuiu, junto com a desintegração da idéia de eternidade. Adorno, ele mesmo, nunca
teria escrito tal frase. Mas teria concordado completamente com Benjamin que a
capacidade de pensar, o próprio poder de concentração, depende do objeto e de sua
coerência. Deve ser a própria realidade, e em seu sentido mais enfático, deve ser ela que
exige da mente seu poder de identidade, que a mente dificilmente poderia forjar por si
mesma, e incentivar a si própria. Se este for o caso, passem os olhos, talvez como um
experimento na filosofia da primazia do objeto, sobre as notícias que chegaram, em
agosto de 2002, da maior enchente da história que danificou e destruiu museus e seus
objetos por toda a Europa Central; leiam o pedido de socorro emitido pelo Museu da
Boêmia Central – um dos museus mais famosos da República Tcheca – que “os prédios
ficaram completamente submersos debaixo da água [...] as exibições permanentes
completamente destruídas”; leiam a mensagem do Castelo Libechov, “inundado até o
segundo andar, as instalações todas, incluindo o parque, totalmente devastadas”; a
mensagem enviada pelo prédio dos Inválidos; leiam a mensagem da Sinagoga de
Pinkas, também em Praga, que “as inscrições, recentemente restauradas, em memória
das vítimas do Holocausto, foram destruídas até a altura de 2 metros.”6 Tendo em mente
as centenas de anos, e, em alguns casos, os milhares de anos, pelos quais passaram esses
locais de importantes cidades, situados em vales ribeirinhos, na junção e ao longo de
costas, ou sob os ventos e ritmos marinhos, e quando não se tem outra alternativa senão
aceitar que num futuro determinado muito destes sítios, seus museus sendo o que é, ao
mesmo tempo, o mais e o menos importante, terão desaparecido, parcialmente ou
totalmente, e que o que está agora ameaçado é a continuidade e a coerência da própria
experiência humana – ou seja, talvez qualquer possibilidade da verdade histórica –
parece claro que muito do que percebemos neste momento, e justamente na medida em
que não mais podemos perceber isso sob o pano de fundo do horizonte descrito por

6
. H-New Discussion Networks, “First estimate of damage, 30 August 2002,” ttp://www.h-
net.org/~museum/.

1194
CONGRESSO INTERNACIONAL

De 28/8 a 1/9/2006

CONFERENCISTAS
CONGRESSO INTERNACIONAL

De 28/8 a 1/9/2006

EXPOSITORES
Adorno em “O Conceito de Filosofia”, no qual poderíamos ser capazes de compreender
a barbárie do que está se passando e agir a partir daquilo que sabemos – tudo isso parece
indicar que o pensamento já está a ponto de se tornar intolerável para si mesmo.
Traduzido por Fabio Akcelrud Durão.

1195
CORPO, ESPETÁCULO, CULTURA POPULAR: QUESTÕES PARA A COMPREENSÃO DO
*
MOVIMENTO DA INDÚSTRIA CULTURA HOJE

Alexandre Fernandez Vaz1

Quando se faz o debate sobre Educação sob os auspícios da Teoria Crítica da Sociedade da
Escola de Frankfurt, costuma-se freqüentemente recorrer, com acerto, aos ensaios e
entrevistas contidos no pequeno volume Educação e emancipação (ADORNO, 1995), e ao
texto Teoria da semiformação (ADORNO, 1996), ambos surgidos em português em
meados da década de noventa do século passado. Não é sempre que se recorre a outros
textos, tanto pela fecundidade daqueles ensaios, quanto porque grande parte da imensa obra
de Adorno e outros frankfurtianos não está disponível em língua portuguesa. Parece-me, no
entanto, que as grandes questões da Educação sob o escopo da Teoria Crítica da Sociedade
só podem ser alcançadas se tomarmos as formulações mais densas de obras seminais dos
frankfurtianos. Sem esse movimento, não apenas de visita, mas de tentar prosseguir numa
reflexão que faça justiça simultaneamente àquele legado e às questões do presente, ficamos
a meio-caminho. Se não se pode prescindir dos ensaios de ocasião, tanto quanto é o caso
das obras de fundo como Dialética do esclarecimento, Minima Moralia, Dialética
negativa, Teoria estética e assim por diante.

Por outro lado, ao pensarmos o tema da indústria cultural e sua possível atualidade, não
podemos esquecer o famoso capítulo no qual por primeira vez o termo foi empregado. Mas,
como sabemos, há uma série de ensaios, relatos de pesquisa, rascunhos e pequenas
intervenções, nos quais o tema da indústria cultural aparece na obra de Adorno com maior
ou menor protagonismo, mas, muito freqüentemente, com uma força avassaladora.

Escolhi para esta comunicação duas sugestões que faz o próprio Adorno em textos algo
periféricos de sua obra. Vou comentar cada uma dessas sugestões, citando como aparecem
nos respectivos textos para, então, retomar uma questão pedagógica – e aqui tomo esta
expressão em sentido amplo – do presente. Faço isso porque são temas eloqüentes na obra
de Adorno, indicações importantes para pensar a indústria cultural em tempos
contemporâneos, mas, também porque remetem a uma questão talvez um pouco mal
resolvida nos debates sobre indústria cultural e sobre a cultura contemporânea. Trata-se do
tema da cultura popular, suas expressões e frágeis delimitações em relação aos esquemas
da indústria cultural. Parece-me importante que o visitemos pelo menos por um motivo, que
é fato de que no Brasil a força do recurso à idéia de popular e nacional é enorme, tanto em

*
O texto apresenta resultados parciais do projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação, financiado pelo
CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Auxílio Pesquisa, Bolsa de Apoio Técnico e Bolsas de Iniciação
Científica) e pela FAPESC (Auxílio Pesquisa – Editais Ciências Humanas e Sociais 2004 e Universal 2006 –,
Bolsa de Apoio Técnico, Bolsa de Iniciação Científica). Esta comunicação retoma idéias e fragmentos de
outros textos, em especial Vaz (2003, 2004, 2006).
1
Doutor pela Universidade de Hannover, Professor do Programas de Pós-graduação em Educação e Educação
Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Educação e Sociedade Contemporânea; Membro do GEP Teoria Crítica e Educação (UNIMEP); Pesquisador
CNPq (Nível 2 – Ciências Humanas, Educação, Fundamentos da Educação).

1197
versão populista, quanto naquela mediada pelos grandes conglomerados produtores de
entretenimento. Isso se nos autorizamos, hoje, no Brasil contemporâneo, separar uma coisa
da outra.

Os dois textos periféricos dos quais tomo de empréstimo as sugestões de Adorno são a
pequena conferência Tempo livre e os apontamentos que compõem uma espécie de
rascunho para o capítulo sobre indústria cultural de Dialética do esclarecimento, O
esquema da cultura de massas (Das Schema der Massenkultur) O primeiro está publicado
em Palavras e sinais (Stichwörte) coletânea do próprio Adorno, o segundo no volume 3 de
suas Obras reunidas (Gesammelte Schriften) logo após o texto completo de Dialética do
esclarecimento.

Do primeiro texto tomo emprestada uma sugestão interpretativa que Adorno faz ao dar um
exemplo sobre como o caráter fetichista se apodera do corpo reduzindo-o à condição de
mercadoria. Diz ele:

Exemplar é o comportamento daqueles que se deixam queimar ao sol, só


por amor ao bronzeado e, embora o estado de letargia a pleno sol não seja
prazeroso de maneira nenhuma, e talvez desagradável fisicamente, o certo
é que torna as pessoas espiritualmente inativas. O caráter fetichista da
mercadoria se apodera, através do bronzeado da pele – que, de resto, pode
ficar muito bem – das pessoas em si; elas se transformam em fetiches para
si mesmas. A idéia de que uma garota, graças à sua pele bronzeada, tenha
um atrativo erótico especial, é provavelmente apenas uma racionalização.
O bronzeado tornou-se um fim em si mesmo, mais importante que o flerte
para o qual talvez devesse servir em princípio. Quanto um funcionário
retorna das férias sem ter obtido a cor obrigatória, pode estar certo de que
os colegas perguntarão, mordazes: “Mas não estavas de férias?” O
fetichismo que medra no tempo livre está sujeito a controles sociais
complementares. Que a indústria de cosméticos, com sua propaganda
avassaladora e inevitável , contribua para isso é tão natural e evidente
quanto o é que as pessoas condescendentes o reprimam. (ADORNO,
2004, p. 118).

Ora, Adorno não diz que o caráter fetichista se apodera do corpo, mas da pessoa. De certa
forma, ele tem razão, ao não ter: é que des-subjetivadas, as pessoas se tornaram não mais
que corpo, dado o maciço investimento pulsional sobre a corporalidade que acompanhamos
contemporaneamente. Dito de outra forma, trata-se de pensar a subjetividade, o que dela
restou, como coincidente com corpo, como se sugere nas notas e esboços de Dialética do
esclarecimento, ao se falar de um interesse pelo corpo. É o corpo, não como possibilidade
mimética e espontânea que nos recorda a condição de natureza e indeterminação, mas como
naturalidade culturalmente desqualificada, que toma o lugar da imaginação na investidura
subjetiva. Essa naturalidade desqualificada não apenas permanece, mas se acirra, mesmo
que sobre a corporalidade se invista de maneira brutal. Lembremos que Horkheimer e
Adorno (1997) falam de um corpo que permanece um cadáver, mesmo que seja cada vez
mais exercitado. Essa primeira sugestão me fará visitar alguns elementos do culto do corpo
na sociedade contemporânea .

1198
A segunda sugestão, como dizia há pouco, vem do texto O esquema da cultura de massas.
Lá aparece um tema algo marginal na obra do autor, que mereceu seus comentários em
vários de seus ensaios, que é o esporte. Tema que certamente ecoa sem uma obra anterior e
posterior, mas que não chegou a merecer um estudo específico, como pretendia Adorno,
como nos relata Rolf Tiedmann (1997).

Aqui nos interessa nem tanto o que ele diz sobre o próprio esporte, algo que já foi tema de
vário de meus trabalhos, mas como ele é tomado como exemplar em relação à idéia de
espetáculo. Lembremos, apenas para o início de nossa conversa, que o esporte não é um
fenômeno social com muita sorte com Adorno. Ele o critica duramente em praticamente
todos os escritos, como expressão da dominação sádica da natureza, de celebração do
sacrifício. Diga-se, no entanto, que há momentos de condescendência nos quais o esporte é
considerado um elemento formador pela disciplina corporal que pode proporcionar,
promovendo, inclusive, valores como solidariedade, compromisso em colaborar e
entusiasmo – valores o Autor considera poder ser positivos em momentos políticos críticos
–, muitos deles recorrentes o ideário aristocrático, ao qual Adorno recorre, a exemplo do
que faz, ironicamente, em Minima Moralia, para criticar a vida danificada do tempo
presente. Como é também a defesa do fair-play, movimento pertencente ao etos
aristocrático, em Educação após Auschwitz (ADORNO, 1995).

Vejamos duas passagens de O esquema da cultura de massas nas quais o esporte aparece
em sua face mais sombria:

Os dominados celebram a própria dominação. Eles fazem da liberdade


uma paródia, na medida em que livremente se colocam a serviço da cisão,
mais uma vez, do indivíduo com seu próprio corpo. Por meio dessa
liberdade confirma-se a injustiça – fundada na violência social – que mais
uma vez se destina aos corpos escravizados. Funda-se aí a paixão pelo
esporte, na qual os senhores da cultura de massa farejam o verdadeiro
substrato para sua ditadura. É possível arvorar-se de senhor na medida em
que a dor ancestral, violentamente repetida, mais uma vez é provocada em
si mesmo e nos outros (ADORNO, 1997a, p. 328).

Os recordes, nos quais os esportes encontram sua realização, proclamam o


evidente direito dos mais fortes, que emerge tão obviamente da
concorrência, porque ela cada vez mais os domina. No triunfo de tal
espírito prático, tão longe das necessidades de manutenção da vida, o
esporte se torna uma pseudopráxis, na qual os praticantes não mais podem
agir por si mesmos, mas mais uma vez se transformam em objetos, o que,
na verdade, já são. Em sua literalidade sem brilho, destinada a uma
gravidade [seriedade] brutal, que entorpece cada gesto do jogo, torna-se o
esporte o reflexo sem cor da vida endurecida e indiferente. Só em casos
extremos, que deformam a si mesmo, o esporte mantém o prazer do
movimento, a procura pela libertação do corpo, a suspensão das
finalidades (ADORNO, 1997a, p. 329).

Mas, interessa nesse texto tratar do caráter de espetáculo dos esportes como modelar para
as análises de Adorno sobre indústria cultural, questão muito importante para um país cuja
mobilização em torno do espetáculo esportivo da Copa do Mundo de Futebol – uma as

1199
máximas expressões da cultura popular brasileira – ganha ares de liturgia cotidiana a cada
quatro anos. Vejamos como isso acontece, comparando um pouco das idéias de Adorno às
de Hans Ulrich Gumbrecht e, para tanto, façamos um pequeno exercício de interpretação do
significado do espetáculo esportivo que, repito, é para Adorno, modelar para a
compreensão da cultura de massas. Interessará, portanto, menos o esporte e mais o
espetáculo.

II

Falava de um movimento que subsume aquela que é designada como uma última fronteira,
o corpo. Parece-me que os investimentos sobre ele podem ser uma espécie de subproduto
da atrofia da imaginação e da espontaneidade, tal como as compreenderam Adorno e
Horkheimer. Talvez o que sobre como superfície seja mesmo o corpo, então é preciso
fortalecê-lo ou mutilá-lo a ponto de buscar um momento de gratificação que não ocorrerá,
que será não apenas adiado, mas portador de exigências ainda mais duras.

As grandes galerias parisienses inauguraram, no século XIX, os espaços públicos que


reuniam mercadorias e passantes, sintetizadas na fascinação pelas cores e formas que
enfeitiçavam – o “fetiche da mercadoria”. As Arcadas de Paris são as antecessoras dos
modernos shoppings centers. Os grandes ginásios ginásticos antecedem as academias de
fitness, certamente porque Paris, que Walter Benjamin chamou de a capital do século XIX,
era pura exposição (BENJAMIN, 1997).

Assim como os shoppings centers são os templos do consumo, as academias de ginástica e


musculação são, por excelência, os templos contemporâneos de celebração do domínio e do
sacrifício do corpo. Não por acaso muitas academias instalam-se justamente nos shoppings
centers. Como nos templos religiosos de outros tipos, elas exigem vocabulário, hierarquia,
roupagem, gestos, sons, gostos, olhares e odores muito próprios, assim como as orações
sempre repetidas e as penitências peculiares. São uma espécie de Altagsreligion, uma
liturgia diária, para empregarmos uma expressão de Detlev Claussen. Possuem também os
seus confessionários e lugares de contrição, de onde nada pode escapar desconhecido: as
balanças e os espelhos, fundamentais numa sociedade na qual a imagem atingiu
insuspeitada importância.2 O sofrimento do corpo não se exige mais para purificar a alma,
mas o próprio corpo tornado alma deve purificar-se de seus piores males: a gordura, a
flacidez e a feiúra. Não é à-toa que o quesito boa aparência é um distintivo importante no
mercado, que começa a excluir os obesos, vítimas preferenciais da fúria persecutória dos
modelos idealizados ou aceitáveis de corpo. Interessante é observar, em muitos dos
ambientes de culto ao corpo, como a dor é justificada, celebrada, fonte de prazer, júbilo,
expressão meritocrática (HANSEN; VAZ, 2004). Na sociedade brasileira, na qual a
visibilidade do corpo é a própria presença da alma, essas questões podem atingir
proporções dramáticas.

Tomemos ainda, como exemplo, as cartilhas evangelizadoras do fitness, verdadeiros


manuais iniciáticos e prescritivos dessa religiosidade oscilante, que a cada dia erige novos
pastores, rituais e liturgias, as revistas ilustradas para o corpo. Elas repetem, até a exaustão,
2
César Sabino tem escrito interessantes trabalhos sobre a dinâmica das academias de ginástica e musculação.
Nos interesses do presente trabalho, consulte-se Sabino (2000).

1200
a mesma fórmula, o sempre igual com rosto de novidade, premissa fundamental da
indústria cultural, na forma de promessas que nunca podem ser cumpridas, configurando o
que Adorno chamou pseudoprazer. Fotos de mulheres destinadas a outras mulheres, sem
tanto interesse sensual, mas corpos à mostra o suficiente para serem admirados, invejados,
copiados; uma receita de dieta; outra de exercícios; fármacos para o cabelo e a pele; alguma
recomendação “para o espírito” – geralmente trazendo junto a imagem de alguém com o
corpo muito esculpido, num claro exemplo de falsa reconciliação entre natureza e cultura,
entre corpo e uma dimensão não-corporal –; e cada vez mais cirurgias “reparadoras”, que
prometem fazer do envelhecimento e daquilo que o establishment não considera belo,
paradoxalmente, “coisa do passado”. Interessante nesse contexto é que as técnicas quase
não variam, assemelhando-se ao que Adorno e Horkheimer (1997, p. 144) chamaram de
classificação por levels que só na aparência são distintos.

Essencial nessa lógica é a promessa do curto prazo e dos resultados certos, seguros, claros:
duas semanas para perder celulite, oito semanas para doze quilos a menos, menos de um
mês para dois centímetros de barriga ou de culote, e assim por diante. Tudo matematizado,
racionalizado, em “calorias que valem pontos”, como, há trinta ou quarenta anos, avaliavam
os receituários de K. Cooper.

Ou como há mais tempo. Em uma análise de uma Página Feminina de um jornal de


circulação diária em Santa Catarina nas décadas de 1930 e 1940, estão lá, já, enquanto
Adorno escrevia seus ensaios sobre indústria cultural, as assertivas e técnicas para o
embelezamento feminino, a anatomização dos corpos em partes sobre as quais o
investimento deveria recair, os fármacos a serem empregados, os exercícios ginásticos, os
sorrisos alourados que deveriam expressar felicidade. Tudo isso aparecia, semanalmente,
aos domingos e fazia, junto com o cinema e as revistas mais ocasionais, um conjunto de
dispositivos de controle que hoje são apenas atualizados (ALBINO; VAZ, 2005).

É interessante perceber que o fitness, ao mesmo tempo em que se estrutura pela crendice na
ciência – sempre há um especialista dizendo que cada uma das fórmulas é
“cientificamente” comprovada – baseia-se nas mais íntimas estruturas mitológicas,
sobretudo no que se refere à idéia de destino manifesto.

Uma das revistas ilustradas mais vendidas, consumida com voracidade nas academias de
ginástica e musculação3, apresentava uma sugestiva seção chamada “Diário de uma
gordinha”. Em uma de suas edições a “gordinha” pedia desculpas às leitoras porque de um
mês para outro se desviara da dieta, somando quilos outrora perdidos. O diário ganha ares
de confessionário e de penitência, uma vez reconhecidos os deslizes disciplinares da saída
da dieta e do engano das leitoras que haviam supostamente acreditado na diarista,
culminando então com a promessa do sacrifício e do pronto retorno à dieta.

Por outro lado, a legitimidade das assertivas e conselhos se dá em dois momentos: nas
revistas pelo arcabouço científico associado às promessas ou pelo produto do resultado
obtido; nas academias de ginástica, pelo capital corporal e imagético alcançado. Trata-se de
uma espécie de culto à personalidade-corpo.

3
Tomo aqui como exemplo um número da Revista Boa Forma, n. 8, ed. 182, agosto/2002.

1201
Interessante também é verificar a linguagem bélica e religiosa dessas revistas. Como numa
guerra instituída contra o corpo é preciso “exterminar”, “destruir”, “dinamitar”, “eliminar”
os inimigos em células de gordura, excessos, rugas, desvios. Além disso, é o caso de
delimitar os alimentos amigos e inimigos, antropomorfizados e hierarquizados conforme o
valor calórico. Isso é apontado como um conhecimento “libertador”, uma vez que, segundo
se pode ler em um editorial, a liberdade da mulher aumenta quando ela sabe a diferença
entre o valor calórico de um pêssego in natura em comparação com seu congênere em
compota (ALBINO, 2006).

Se é justamente na guerra que se destrói a última camada de proteção contra a dilapidação


da experiência, como indicam Adorno (1997b) nas Minima Moralia e Benjamin (1977) no
ensaio sobre o Narrador, então o que pensar da instituição dos seus mecanismos e
vocabulário contra o próprio corpo, o lugar mesmo da experiência? Talvez se trate de um
exagero da minha parte esse último comentário. Mas, por outro lado, de alguma forma a
guerra se atualiza, cotidianamente, assim como acontece com o campo de concentração e
extermínio, ambos estruturas modelares a operar o cotidiano. Sabemos o destino que
ambos, guerra e campo, inscrevem nos corpos.

É importante destacar ainda que quando miramos as revistas, tratamos de um projeto que
vai se atualizando segundo os desígnios da indústria cultural; quando pesquisamos o
universo das academias de ginástica, tomamos em conta a interpretação, a recepção e a
prática desses consumidores. Se essa prática é expressão dos ardis reificadores da indústria
cultural, é preciso destacar que isso se dá de diferentes maneiras, em distintos graus, e que
não se pode fazer uma completa generalização.

Vou lembrar aqui a parte final da conferência de Adorno (2004, p.127; 1978, p. 66-67)
sobre o tempo livre:

Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para,


dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isto
coincidiria com o prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade,
cujas condições fundamentais permanecem inalteradas, também não
poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona
assim tão sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dúvida,
envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode fazê-lo
completamente sem que isso fosse demasiado para elas. Renuncio a
esboçar as conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma
chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com sua
parte para o tempo livre se transforme em liberdade [dass Freizeit in
Freiheit umspringt].

O problema é, no entanto, saber até que ponto estamos em condições de avaliar de que lado
da fronteira essas coisas acontecem e como elas, às vezes clandestinamente, a ultrapassam.

III

1202
Retomo o tema do caráter modelar do espetáculo esportivo, para Adorno. Lembro, antes de
prosseguir, que para ele o caráter do esporte é, de certa forma, o mesmo da música ligeira e,
coloco entre parênteses, do cinema.

Nada é mais aparente do que seu teor de verdade [Sachlichkeit]. A jogo


interpretativo infantilizante [infantile Spiel] tem pouco a ver mais do que
o nome com as atividades produtivas das crianças. Não por acaso, o
esporte burguês quer estar tão marcadamente separado do jogo. Seu rigor
brutal significa que, em lugar de manter a confiança no sonho da liberdade
por meio do distanciamento quanto aos fins, acaba-se por colocar o jogo,
como obrigação, sob o jugo das finalidades úteis, por meio do qual
extingue-se qualquer vestígio de liberdade. Esse processo se fortalece com
a música de massas atual. [...] Tal jogo interpretativo é apenas uma
aparência de jogo; por isso a aparência torna-se, de forma importante,
inerente à música esportiva [Musiksport] dominante. (ADORNO, 1997c,
p. 47)

Se para Adorno a prática esportiva e ginástica ainda poderia deter algum momento
emancipador, como citei há alguns parágrafos atrás, do consumo do espetáculo nada se
poderia esperar a não ser o caráter aterrador do tempo livre como disciplina, da
continuidade da lógica do trabalho, da repetição, da diversão como justificadora do
sofrimento. O esporte seria uma forma de sobrevivência da competição brutalizada em
tempos em que a concorrência já não existe de fato, diz Adorno (1997a) em Os esquemas
da cultura de massas. Sabemos o quanto eram problemáticas para Adorno as manifestações
do arcaísmo que faziam recordar nossa condição de subsunção à natureza. Para ele, a
simples curiosidade contemplativa destrói o último resquício de espontaneidade.

Diz Adorno (1997a, p. 329):

Mas a cultura de massas não está interessada em transformar seus


consumidores em praticantes dos esportes, mas em torcedores devotos nos
estádios. Na medida em que a cultura de massas reflete, a totalidade da
vida como um sistema completo de disputas competitivas abertas ou
clandestinas, ela entroniza o esporte como se fosse a própria vida e
elimina a tensão e diferença entre o domingo esportivo e a miserável
semana de trabalho, a tensão que a melhor parte do esporte preserva. Isso
é o que se obtém com a liquidação completa do brilho estético. Até a
pseudopraxis é neutralizada pela cultura de massas numa plasticidade que
se renuncia, no mesmo instante, na esportificização dos produtos.

Podemos de fato observar o quanto o espetáculo esportivo faz encontrar uma forma de
identificação imediata, regressiva e infantilizante com o objeto, seja com aquilo que
acontece no campo de jogo, seja com as pessoas que formam o coletivo nos estádios. Nos
Elementos do Anti-semitismo, Horkheimer e Adorno (1997) mostram como a associação
perversa entre mimetismo e falsa projeção leva a comportamentos regressivos, sobretudo
em situações limítrofes, ritualizadas ou não. Importante é dizer, no entanto, que essa
ordenação coletivista, que faz desaparecer a subjetividade autônoma (ADORNO, 1995)
uma resposta coisificada, segundo Adorno, à reificação social como um todo.

1203
O fascínio do público pelo esporte, que muitas vezes se manifesta pela excitação com os
acidentes, com as jogadas violentas, com o sofrimento dos atletas e seu extremado
sacrifício, é uma expressão da consciência reificada, da mobilização de energias psíquicas
adaptadas aos esquemas da indústria cultural. Não se trata de apenas de esquecer o
sofrimento, mas, como indicam Horkheimer e Adorno (1997, p. 167) de celebrá-lo para a
ele estar adaptado nas engrenagens da sociedade administrada. O processo parece ser muito
semelhante àquele que acontece nos comics, já que,

O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em


violência contra o espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do
espectador nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram
como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da
esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela
presteza que o espetáculo exige e propaga. (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p.130, 1997, p. 160-161).

Mas, evidentemente, a grande tribuna do espectador é a onipresente televisão, algo que


Adorno intui na década de sessenta do século passado, e que em anos de Copa do Mundo
de Futebol fica mais do que claro.

Nesses anos não deixa de ser curioso verificarmos um pouco como se coloca na ordem do
dia essa questão. Nas duas últimas edições da Copa, tanto o Jornal Nacional quanto o
Jornal da Globo, ambos da emissora televisiva mais abrangente e importante do Brasil,
eram transmitidos, em parte, desde as sedes do Mundial, noticiando o torneio e,
principalmente o selecionado brasileiro. O monopólio da transmissão em TV aberta por
uma emissora faz confundir informação, entretenimento e propaganda do próprio produto
que coloca à venda, isso tudo sempre temperado com um nacionalismo que ganha ares
xenófobos com alguma freqüência. Esse emaranhado de mensagens que nos tomam a
superfície dos sentimentos, ou mais do que isso, também se faz presente no enorme
conjunto de opiniões de intelectuais importantes que julgam que ao selecionado de futebol
brasileiro, derrotado, faltou “honra” e “garra”, realocando o vocabulário bélico que o
esporte, de fato, faz sobreviver como experiência dramática da guerra4.

4
Em vários estudos recentes encontramos uma louvável expectativa na formação crítica do espectador,do
“receptor crítico”. Dela faz parte a esperança de que alguém que assiste aos programas de TV poderia refletir
criticamente sobre aquilo que atua sobre seus sentidos; que seria capaz de perceber, por exemplo, o
merchandising da novela ou do jogo de futebol. Trata-se de uma expectativa plausível, e o espectador
esclarecido e atento pode perceber estes esquetes e comentários nas transmissões e programas televisivos.
Mas corremos novamente o risco de considerar como razoável aquilo que só o é no sentido de uma
racionalidade vinculada aos meios fetichizados, deixando de observar que o próprio evento é um produto dos
esquemas da indústria cultural, que não foi por ela “tomado” – como se o espetáculo, em sua “grandeza”, não
fosse ele mesmo um produto banalizado. Não se pode pensar o esporte como algo que foi absorvido pela
indústria do entretenimento, mas como um produto dela. Não tivesse a sociedade ocidental tanto mudado
depois da II Grande Guerra, com a explosão da indústria cultural no mundo todo, não teríamos o esporte
como hoje o conhecemos. Note-se, por exemplo, como um locutor esportivo pode acelerar o ritmo do jogo de
futebol em suas locuções e o quanto isso determina nossa percepção. Verifique-se também o tipo de “debate”
que se faz presente nas mesas-redondas dos programas sobre futebol: se é “ético” ou não um jogador fazer
“embaixadinhas”, se um futebolista é ou não um “bom menino”, se ajuda ou não os seus parentes, se “ama”
ou não o seu clube ou seleção brasileira de futebol; observe-se também o tipo de produção do outro como

1204
IV

O conceito de indústria cultural vem sendo continuamente criticado como, pelo menos,
insuficiente para a compreensão dos fenômenos da cultura contemporânea. Muitos daqueles
que são reconhecidos como importantes autores dos Estudos Culturais observam que
Adorno não conhecia a cultura popular, urbana (MARTÍN-BARBERO, 1987); outros,
como Mezáros (2004), consideram as assertivas de Adorno sobre o jazz e sobre a cultura de
forma geral, como elitistas, reacionárias e equivocadas. Gilles Lipvetsky (2004) observa
que as novas equações entre arte e luxo, e o consumo e cultivo de si (do corpo, da moda, do
lazer) fazem o conceito de indústria cultural encontrar limites. No Brasil, um antropólogo
como Hermanno Vianna (2004) diz que é preciso que nos livremos dessas amarras que não
nos fazem ver o potencial da televisão como produtora e disseminadora de uma cultura
nacional. Certo é que se trata aqui de uma cultura conciliadora, sem tensões, que segue
fazendo o elogio do “tropical” e da “malandragem”. Sabemos que conseqüências daí
advém.

Mas, ao final, gostaria de contrapor uma posição sobre o espetáculo esportivo exposta por
por Hans Ulrich Gumbrecht (2001), um entusiasta do esporte e de sua estética, alguém
capaz de dizer o seguinte:

Pensar sobre a questão de por que gostamos de esportes, desenvolver uma


rematada estética dos esportes, é um sério desafio para nós intelectuais. É
sério, em primeiro lugar, porque realmente não sabemos a resposta. Em
segundo lugar, é sério porque não há provavelmente nenhum outro
fenômeno que tenha assumido as dimensões dos esportes nas sociedades
atuais, dimensões perante as quais as nossas ferramentas analíticas
permaneceram muito ineficazes. Acima de tudo, porém, quero insistir que
uma "estética dos esportes" filosoficamente séria não é necessária para
dignificar os esportes. (...) No que diz respeito à definição clássica do
conceito de "estética", tal ponto de partida reside na incontroversa
competência dos verdadeiros fãs de dizer se um jogo foi bonito ou feio
_independentemente do placar final. Tal juízo será sempre ponto pacífico
para quem aprecie o jogo, embora normalmente não sejam capazes de
dizer com base em quais conceitos ou critérios acham-no belo. Ora,
simples como possa parecer essa descrição, ela corresponde exatamente à
resposta de Immanuel Kant à questão referente à especificidade do juízo
estético. A especificidade do juízo estético, segundo Kant, repousa
justamente em sua capacidade de produzir consenso baseado num juízo
que não tem consciência de seus próprios critérios e conceitos _o que nos
conduz a mais outra expressão famosa da "Terceira Crítica" de Kant (a
sua "Estética").

Ora, para Gumbrecht (2005), não podemos cair na armadilha do que ele chama, não sem
certa ironia, de perspectiva “crítica”. Para ele, apenas nossa obsessão contemporânea pelo
individualismo e nossa lembrança, nesse caso, mesclada, algo confusa, leva com tanta força
a criticar o prazer da diluição coletiva, aquilo que ele, Gumbrecht, considera como a

inimigo, tal como as narrativas futebolísticas o fazem ao erigir esse ou aquele clube ou país à condição de
objeto de nossa hostilidade – a República Argentina e seu selecionado de futebol, por exemplo.

1205
expressão máxima e mais adequada, em comunhão, da relação do espectador com o
esporte. A Gumbrecht pouco importa que os espectadores continuem como tais, mas que
desfrutem de forma efetiva, mais ou menos intelectualizada, mas sempre visceral, dos
esportes, vistos como fenômenos cuja beleza lhe parece inegável.

A pergunta que fica é, então: não estaríamos nós sem as ferramentas conceituais necessárias
para a devida análise da cultura popular? Não sei a resposta, mas, desconfio, que ela nos
tem sido pouco perturbadora. E então, temos, me parece, um problema.

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VIANNA, H. A voz do vivo. Revista Cult. Ano VI, n. 79, 2004. (Entrevista a Janaina
Rocha).

1207
O Orkut, os Alunos e a imago dos Professores

Antônio Á. S. Zuin1

Introdução
A cena se repete cotidianamente nas instituições escolares: o professor expõe o raciocínio
sobre um tema da disciplina que ministra e questiona os alunos se concordam ou não com sua
análise. Os alunos que conseguem dominar o receio de serem mal interpretados, e que arriscam
elaborar uma reposta que contrarie a interpretação anterior são, em muitas ocasiões, reprimidos pelo
mestre que descarta sua opinião. E tal descarte pode ser feito tanto de forma mais explícita quanto
de maneira mais sutil, porém nunca deixa de sê-lo.
Os professores que respondem explicitamente aos alunos que são incompetentes para poder
contrariá-los, ou que afirmam, sarcástica e dissimuladamente, que os alunos são incapazes de
elaborar um raciocínio consistente por meio da questão: “Vocês realmente pensam?”, contribuem
efetivamente para solapar as bases da chamada experiência educacional/formativa. Tal experiência
não se esgota no processo de auto-reflexão, mas procura exercer o conceito aprendido na prática
cotidiana, uma vez que há uma reapropriação do conteúdo histórico que lhe é imanente. Portanto,
não adianta saber, por exemplo, o que Paulo Freire escreveu sobre preconceito se as ações
cotidianas continuam sendo preconceituosas. Recuperar a história imanente ao próprio conceito
significa religar-se, objetiva e subjetivamente, com a história humana.
São justamente tais características do processo educacional/formativo do aluno que são
dirimidas a ponto de ser, em certas ocasiões, destruídas, pois o aluno desrespeitado pelo mestre não
se sente estimulado a aproximar o conceito aprendido de sua práxis educativa, que dirá memorizá-
lo. Diante deste quadro, destaca-se uma questão presente desde os primórdios das relações entre os
corpos discentes e docentes, e que ainda permanece objeto de reflexão: como estimular o aluno para
o controle das suas pulsões, de seus desejos, de tal modo que internalize a necessidade de
memorizar e elaborar os tópicos estudados durante o cotidiano escolar? No transcorrer da história
pedagógica, foram várias as metodologias aplicadas com o escopo de se obter os melhores
resultados possíveis, o que aqui significa motivar o aluno para que ele próprio reconheça a
importância da autodisciplina para a obtenção das benesses do processo educacional/formativo. A

1
Professor-Assistente do Departamento de Educação da UFSCar, Coordenador do Grupo
de Estudos e Pesquisa: Teoria Crítica e Educação – sede UFSCar, Pesquisador CNPq e
Assessor Fapesp.

1208
despeito das várias opções metodológico-didáticas que podem ser identificadas nas tendências e
correntes pedagógicas, tais como as denominadas pedagogias tradicional e moderna, houve sempre
a preocupação quanto à forma como a relação professor-aluno se desenvolveria no transcorrer de tal
processo. Seguindo esta linha de raciocínio, a investigação dos fatores subjetivos, que muitas vezes
determinam as diretrizes do processo educacional/formativo, passaram a ser objeto de estudo de
pesquisadores de diferentes concepções teóricas da sociologia da educação, tais como Bourdieu,
Passeron e Henry Giroux. Os fatores subjetivos, presentes no chamado currículo oculto,
demonstraram ser tão relevantes para a formação educacional quanto os conteúdos objetivos que
deveriam ser assimilados pelos alunos. Se o desejo de se motivar o processo de autodisciplina do
aluno é um dos principais objetivos da prática pedagógica, então se torna fundamental entender o
modo como os alunos são muitas vezes incentivados a reprimir o descontentamento que possuem
em relação aos comportamentos de seus professores, fato este que recrudesce o ressentimento que
pode derivar muitas vezes para o ódio em relação à imago do mestre. Além disso, será que a
repressão de tais sentimentos aversivos dos alunos com relação aos seus professores nas salas de
aula implica no desaparecimento destes sentimentos? Ou os alunos encontram meios para, numa
espécie de catarse regressiva, expor suas desilusões em relação ao modelo idealizado que tinham da
figura do professor? O objetivo deste artigo é o de argumentar que os alunos encontram espaços
dentro e fora das instituições escolares para a realização desta catarse regressiva, e que o sítio de
relacionamentos Orkut, e suas respectivas comunidades virtuais é, atualmente, um dos principais
“espaços” utilizados pelos alunos para poder objetivar aquilo que verdadeiramente pensam em
relação a seus mestres.

Disciplina, Idealização e Sadomasoquismo.

Não é tarefa das mais fáceis precisar o momento histórico no qual a exigência da internalização da
disciplina, por parte dos educandos das primeiras escolas de massa, se destacou como um dos
principais objetivos dos educadores. Mas certamente as palavras de Comênio (1985, p.403),
expostas na Didática Magna, podem ser reconhecidas como um momento determinante, na história
da pedagogia, quanto à intenção de se promover tais práticas disciplinares nas salas de aula. Já em
1638, o educador da antiga Boêmia, hoje República Tcheca, asseverou o seguinte:

Se, porém, por vezes, é necessário espevitar e estimular, o efeito pode ser obtido por meio
de outros meios e melhores que as pancadas: às vezes, com uma palavra mais áspera e com

1209
uma repreensão dada em público; outras vezes, elogiando os outros: “Olha como estão
atentos este teu colega e aquele, e como entendem bem todas as coisas! Porque é que tu és
assim tão preguiçoso?”; outras vezes suscitando o riso: “Então tu não entendes uma coisa
tão fácil? Andas com o espírito a passear? Podem ainda estabelecer-se “desafios” ou
“sabatinas” semanais, ou ainda mensais, para a quem cabe o primeiro lugar ou a honra de
um elogio...desde que se veja que isto não vai resultar num mero divertimento ou numa
brincadeira, e por isso inútil, mas para que o desejo do elogio e o medo do vitupério e da
humilhação estimulem verdadeiramente à aplicação.

Não é por acaso que tais assertivas de Comênio façam parte do capítulo da Didática Magna
intitulado: “Da Disciplina Escolar”. A percepção de Comênio de que as punições físicas nos alunos
não surtiam o efeito desejado, a saber, a difusão de um clima cultural favorável à promoção da
disciplina, o fez refletir sobre o modo mais producente que deveria ser utilizado pelos mestres nas
escolas, ou seja, dever-se-ia promover o estímulo à competição e, principalmente, o pavor do aluno
em se sentir constrangido diante dos colegas de classe por não saber a resposta de uma questão,
tornando-se então alvo de chacotas. O medo da humilhação exerceria um papel fundamental para a
obtenção da disciplina e, conseqüentemente, do auto-controle do alunado. De fato, Comênio intuiu
com grande propriedade aquilo que Freud constataria séculos depois a respeito do desenvolvimento
da consciência moral, pois a ameaça da punição devidamente internalizada é muito mais eficiente
para o fortalecimento da disciplina do que a simples presença física do agente que pune. A presença
física daquele que castiga pode resultar no sucesso em reprimir imediatamente algum
comportamento considerado inadequado, mas assim que o agressor não se encontrar mais presente,
o agredido pode se sentir encorajado a questionar ou até mesmo violar o que lhe fora solicitado. É
por isso que as punições psicológicas ocuparam com êxito o espaço das físicas que ocorriam nas
escolas, posto que o temor do aluno em ser identificado como incompetente pelos colegas o
acompanhava para além dos muros escolares.
Comênio soube como poucos reconhecer que novas metodologias precisariam ser aplicadas
nos estabelecimentos escolares e que seriam bem mais afeitas a um novo tempo. Diferentemente do
que ocorre no feudalismo, cujas relações de dominação e de punição são bem mais explícitas, na
sociedade capitalista do fetiche das mercadorias, cuja forma social hegemônica do trabalho é sua
generalidade abstrata, as relações de dominação são bem mais dissimuladas embora não menos
eficazes. E é nesse contexto que as punições psicológicas, as quais são bem menos evidentes que as
físicas, erijem, passo a passo, sua hegemonia.

1210
A gradual permuta das punições físicas pelas psicológicas nos ambientes escolares porta
consigo uma ambigüidade, pois se, por um lado, a construção simbólica da punição contém em si
um caráter progressista em relação à física que pode, em certas ocasiões, reverter na morte do
agredido, por outro lado, a dificuldade de se identificar os vergões psicológicos não arrefece o seu
poder, bem como os danos devastadores produzidos no processo educacional/formativo do aluno. O
medo de não saber responder uma questão exposta pelo professor não se restringe à preocupação de
ser objeto de humilhação por parte do mestre e dos colegas de classe, mas também se caracteriza
pelo anseio não desapontar o professor, de não destruir a imagem objetivada no rótulo que o
professor faz do próprio aluno. É nesse momento que os elementos constituintes da consciência
moral se entrelaçam com tipo de modelo de professor idealizado pelo aluno, formando-se, assim, as
bases do que Freud conceituou como superego, uma instância psíquica fundamental para o
desenvolvimento de qualquer tipo de processo de sociabilização.
As tensas relações estabelecidas entre professores e alunos sempre tiveram grande relevo na
esfera literária, tais como os romances dos irmãos Mann Professor Unrat, (Professor lixo), de
Heinrich Mann e Os Buddenbrook, de Thomas Mann e O jovem Torless, de Robert Musil. Mas há
um livro que merece uma menção especial: A vida de Galileu, de Bertold Brecht (1977, p.111).
Trata-se do roteiro de uma peça de teatro, cujo tema central versa sobre as famosas contendas
ocorridas entre Galileu e os padres católicos, pois enquanto aquele elaborara argumentos
concernentes à defesa do sistema heliocêntrico, estes defendiam a existência do chamado sistema
geocêntrico. De acordo com os clérigos, era inadmissível que a terra fosse identificado como um
planeta qualquer, a exemplo de tantos outros. Ao criticar Galileu, o velho cardeal diz o seguinte:

O senhor está cagando na sua própria habitação. Mas não pense que eu vou tolerar. Eu não
sou uma coisa qualquer numa estreleca qualquer, girando por aí, ninguém sabe até quando.
Eu piso em terra firme, com passo seguro, ela está em repouso, é o centro do universo, eu
estou no centro e o olho do Criador repousa em mim, somente em mim.

O notório narcisismo do velho clérigo não pode ser interpretado somente como uma
característica de sua personalidade. Sua condição de representante, no planeta Terra, do modelo
divino idealizado, reverbera uma luta para além de seus conflitos com Galileu, ao expressar o
desejo de manutenção de relações sociais de poder e dominação do clero, cujas estruturas já sentiam
os abalos sísmicos decorrentes da aurora dos novos tempos. Mas o que mais se destaca na asserção
do oponente de Galileu é o seu desespero em se aferrar à idealização de um modelo, no caso o

1211
divino. A onipotência de tal modelo não pode ser objeto de refutação, pois, se isto ocorresse, os
seus seguidores também teriam que refletir e, por que não dizer, questionar o seu próprio
egocentrismo. Se a terra deixasse de ser o centro do universo, também estaria arruinada a imagem
dos clérigos como figuras centrais na construção das normas e regras que ditariam as formas de
conduta dos partidários da igreja católica.
Em outra passagem memorável da peça, o pequeno monge questiona Galileu sobre a
tragédia que aconteceria caso a regularidade dos sofrimentos de seus pais, os quais, como
camponeses, trabalhavam arduamente a terra, fosse rompida em virtude da prova irrefutável da
inexistência de uma força superior, que recompensaria a dor sofrida em terra com a promessa do
recolhimento das benfeitorias de uma vida pós-morte: “Qual é o cabimento da Sagrada escritura que
explicou tudo e disse que tudo é necessário, o suor, a paciência, a fome e a submissão, se ela agora
está toda errada?” E Galileu lhe responde que a igreja põe a Terra no centro do universo com o
propósito de que ”o trono de Pedro possa ficar no centro da Terra!” (Brecht, 1977, p.134). A meu
ver, esta é a questão central da peça de Brecht, ou seja, o anseio da máxima aproximação possível
com o modelo que fora idealizado, tal qual o dedo de Adão que quase toca o de Deus no afresco
central da capela Sistina, magistralmente pintado por Michelangelo. Este desejo de aproximação
também pode ser observado na relação estabelecida entre Galileu e seu aprendiz Andrea.
No início do livro, o imberbe Andrea idolatrava Galileu como se fosse um deus. O mestre
recebe tal tratamento até o momento em que, temendo por sua vida, renega suas teorias
heliocêntricas diante da iminência de ser torturado até a morte pelos clérigos. Torna-se quase
palpável a frustração de Andrea frente ao recuo de Galileu. Anos após o acontecido, o cientista
Andrea reencontra o recluso Galileu e descobre que o mestre havia escrito, ainda que na
clandestinidade, um tratado revolucionário de física. Ávido por recuperar a imagem que tinha do
modelo de professor idealizado, Andrea lhe diz que finalmente compreendera o recuo de Galileu,
pois se ele fosse torturado, provavelmente até a morte, jamais teria escrito este tratado. Mas Galileu
lhe diz que abjurou de suas convicções simplesmente porque teve medo de morrer. Novamente,
Andrea sente desmoronar os alicerces de seu porto seguro e é em meio a esta relação de amor e ódio
com o mestre que Brecht engendra dois poderosos imperativos categóricos: “Infeliz é a terra que
não tem heróis!”, diz Andrea. E Galileu lhe retruca desta forma: “Não. Infeliz é a terra que precisa
de heróis” (Brecht, 1977, p.201, 202).
O Galileu brechtiniano tinha certa razão em sua assertiva. Se as pessoas se entregam
totalmente aos mandos e desmandos de seus ídolos, há uma grande possibilidade de que haja a
anulação da própria individualidade, uma vez que o ídolo ocupa o posto de ideal de ego, a ponto de

1212
se tornar, em certas ocasiões, o objeto hegemônico da projeção libidinal de seu seguidor. Mas a
questão não é assim tão fácil de ser respondida. Será que Andrea não tem também certa razão em
almejar o contato com seus ídolos? Antes de se elaborar uma reflexão mais aprofundada do
ambíguo, e não menos instigante, processo de idealização entre preceptores e alunos, é importante
observar que tal processo, bem como os sentimentos de satisfação e frustração que lhe são
subjacentes, praticamente não são discutidos entre os agentes educacionais. A tendência da opção
por este procedimento é a de que os alunos não tardam a perceber, via de regra, que a imagem
projetada de seus professores geralmente não corresponde àquilo que são na realidade. No texto:
Sobre a psicologia do relacionamento entre professores e alunos, Adorno (1986, p.723) afirma que:

Como se sabe, toda pressão estimula uma contrapressão e o aluno se torna desperto para a
resistência...Num primeiro momento, o ódio se faz presente em sua forma mais primitiva,
ou seja, na resistência simples e imediata diante das influências externas e sobejamente
mais fortes. Depois prevalecem outras de suas derivações, tais como a inveja, o rancor e,
principalmente, o impulso para a representação, para um jogo de cena.

Ao perceber que não há correspondência entre a imagem que tinha do professor e suas reais
características, o aluno rapidamente se enraivece em relação às posturas assumidas pelo mestre em
sala de aula. É como se ocorresse uma espécie de “traição”, pois o preceptor que parecia ser adepto
de um discurso liberal se comporta autoritariamente no transcorrer das atividades do cotidiano
escolar. É claro que tal contradição não passa despercebida pelos alunos, os quais aprendem
rapidamente as tácitas regras sadomasoquistas do jogo do ensinar e aprender. Se eles sofrem
calados as barbáries que lhes são impingidas, por meio do prazer sádico do professor (que também
se identifica masoquistamente com o sofrimento do aluno, haja vista que já ocupou seu lugar),
chegará o momento de estar na condição de professor algoz, e finalmente poder se vingar da dor
que foram obrigados a suportar em silêncio. Ao investigar os mecanismos da psique infantil, a
psicanalista Anna Freud (1986, p.96) elaborou um conceito que pode ser utilizado para o
entendimento das características do processo sadomasoquista de ensino-aprendizagem, a saber, a
chamada identificação com o agressor.

Uma criança introjeta uma certa característica de um objeto causador de ansiedade e, assim,
assimila uma experiência de ansiedade que acabou de ser sofrida. Neste caso, o mecanismo
de identificação ou introjeção combina-se com um segundo e importante mecanismo. Ao

1213
personificar o agressor, ao assumir os seus atributos ou imitar a sua agressão, a criança
transforma-se de pessoa ameaçada na pessoa que ameaça.

No caso dos alunos, a identificação com o mestre agressor redireciona o eixo norteador do
processo de idealização, pois o aluno ambiciona um dia estar no lugar do professor verdugo que
passa a ocupar o posto de ideal de ego do alunado, em substituição ao herói que fora anteriormente
idealizado. Daí a importância da representação de papéis, de um jogo de cena, por meio do qual o
aluno dissimula certa subserviência diante do mestre, mas, na primeira oportunidade que tiver, se
desforrará da aflição decorrente das humilhações sofridas. Atualmente, não são poucas tais
oportunidades de desforra, tanto dentro quanto fora das instituições educacionais. Adorno (2001, p.
112-113) chega a asseverar que o conceito de identificação com o agressor não pode se delimitar
apenas a uma característica da personalidade de algum indivíduo, mas deve ser utilizado para a
compreensão do modo como este indivíduo se identifica com um, digamos, cosmo social agressor.
No caso das instituições educacionais, pode-se pensar no exemplo dos trotes aplicados pelos
veteranos nos calouros que ingressam na vida acadêmica. Há vários tipos de trote no quais os
veteranos reproduzem atitudes vexatórias semelhantes àquelas que sofrem cotidianamente na
presença de seus professores, numa espécie de catarse regressiva, posto que ocorre o extravasar de
afetos, porém carente de uma reflexão crítica. E se a aplicação dos trotes é um fato que corrobora a
assertiva inicial deste artigo, de que a raiva e ressentimento dos alunos em relação aos professores
não desaparecem quando são explicita ou implicitamente reprimidos nas salas de aula, surge a
questão: em que outras ocasiões os alunos se sentiriam estimulados a expressar a raiva e o
ressentimentos contidos? É nesse momento que se justifica uma análise do Orkut e de suas
respectivas comunidades virtuais.

O Orkut, Os Alunos e a Imago de seus Professores

Certas frases adquirem o poder de expressar o sentimento de uma geração. As palavras de


ordem: “Faça amor, não faça guerra” tiveram o mérito de resumir e transmitir os anseios de toda
uma geração de jovens revoltados com barbáries, tais como a guerra do Vietnã, até a ponto de se
transformar no logotipo avidamente consumido pela indústria da moda, cujos jeans e camisetas
foram associados aos seus dizeres pacifistas. Respeitadas as devidas proporções, observa-se que,
atualmente, outra frase adquire o poder de sintetizar tal sentimento coletivo, a saber: O Orkut atrai
tanto que vicia. Criado em 22 de janeiro de 2004 pelo projetista chefe e engenheiro do Google

1214
chamado Orkut Büyükkokten, o Orkut é um sítio de relacionamentos on line que “permite que o
internauta tenha sempre, a um clique do mouse, uma lista de amigos, chegados e comunidades com
perfis semelhantes” (2004). Cada um dos membros do Orkut possui uma conta e um perfil que
comunica aos outros internautas características de personalidade, tais como hábitos de leitura,
gostos musicais e culinários, por exemplo. Caso algum internauta se identifique com as preferências
de determinado usuário, ambos podem se incluir como “amigos” em suas respectivas contas, de tal
maneira que, gradativamente, são formadas as comunidades virtuais, cujos tópicos amealham os
mais variados assuntos.
É difícil pensar em alguma palavra-chave, que, ao ser digitada no instrumento de busca do
Orkut, não corresponda a algum tipo de comunidade virtual já existente. Tais comunidades são
sobejamente acessadas e denotam interesses cujos temas transitam desde os mais remotos desenhos
infantis transmitidos pela televisão até o comércio de drogas, tais como a Ecstasy (2005a),
comunidades formadas por membros racistas (2005b) ou adeptos ao neonazismo (2005c). A
sensação de impunidade parece, a princípio, motivar o pedófilo ou o simpatizante de regimes
totalitários a compartilhar, via on line, seus distúrbios sexuais e seus preconceitos, porém, a própria
dinamicidade da Internet possibilita com que os delitos de tais pessoas sejam descobertos por meio
de denúncias feitas por e-mail, por exemplo. Mas tal coibição não se torna fator impeditivo do uso
cada vez mais constante do Orkut, quer seja por meio de objetivos lícitos ou não. É nesse sentido
que a expressão: “O Orkut vicia” adquire cada vez mais força, pois é reveladora de um espírito de
um tempo, de uma determinada cultura. Em tempos hodiernos, nota-se cada vez mais a presença de
uma pressão (que também é uma compulsão) para emitir, sendo que tal pressão se torna a força de
sucção do capitalismo sob condições microeletrônicas.
O campo de atuação do computador não se circunscreve apenas ao de um instrumento de
trabalho, mas se metamorfoseia num aparelho que possibilita: a realização de encontros sociais e
particulares, processamento e transmissão de dados, a elaboração de atividades de trabalho e de
diversão, televisão e comunicação, concentração e dispersão, ser ignorado ou ser percebido, a ponto
de todas essas potencialidades se tornarem indiscerníveis entre si. Quando um adolescente, que
ainda não enviou uma mensagem por e-mail, diz de si próprio: “ainda não me conectei”, tal jargão
da juventude retrata a lei fundamental de uma nova ontologia: quem não se conecta não é percebido
e, portanto, não existe. De acordo com as palavras de Christoph Türcke (2002, p.64), em tempos
eletrônicos há a consolidação de uma ontologia paradoxal, a saber: “uma existência sem a presença
eletrônica é um aqui e agora sem um aí, ou seja, trata-se de uma não existência viva”. De fato,
impressionam os efeitos das transformações estéticas, ou melhor, das novas formas de percepção

1215
que são estimuladas na medida em que os indivíduos não só se acostumam, como também exigem o
contato com choques imagéticos numa freqüência cada vez maior. Se na imanência do próprio
modo de produção capitalista se encontra uma dinâmica que vicia no consumo das mercadorias,
atualmente ela se apresenta na forma do vício dos choques audiovisuais. Compreende-se, portanto,
a compulsão paranóica de verificarmos, num intervalo de tempo cada vez menor, se somos
observados por novas mensagens que abastecem a caixa de e-mails, ou então a avidez dos
adolescentes (e, em muitos casos, adultos) por computadores, pois se “conectam” a outros
adolescentes madrugadas inteiras.
E quando o tema das discussões virtuais envereda para a relação professor/aluno, são estes
mesmos jovens que encontram “espaço” para poder expressar aquilo que verdadeiramente pensam
de seus professores. São mais de mil comunidades virtuais do Orkut que discutem o tema:
Professor, sendo que este número cresce cada vez mais a cada dia. No que diz respeito ao objetivo
deste artigo, eis algumas das comunidades mais significativas: Eu tenho um professor F.D.P. São
milhares os inscritos nesta comunidade. No seu portal de entrada, há a seguinte mensagem: “Quem
não tem ou não teve um professor filho da puta? Daquele de falsa amizade, que sempre ferra na
prova, não deixa colar, faz num sei quantos tipos de prova, terrorista e tal? Pois é, há muitos desses
por aí, querendo cada vez mais botar no seu c...Mostre sua indignação e revolta entrando pra nossa
comunidade!”
Já em outra comunidade, com título praticamente idêntico a anterior: Eu tenho/tive um
professor F.D.P, observam-se os seguintes dizeres: “Você tem um professor que pega no seu pé?
Você sofre com um professor que não sabe a matéria e bota a prova fudendo? Você tem um
professor burro que se acha “o bonzão”? Em suma, você tem um professor filho da puta? Se você
respondeu sim a pelo menos uma dessa perguntas, esta é a sua comunidade!!!”. Ex-alunos também
formaram uma comunidade com os seguintes título e protestos: Eu já tive um professor F.D.P. Essa
comunidade é pra aqueles ke já tiveram um ou mais professores filhas da puta....aquele que da
risada quando passa a nota das provas ou ki axa super divertido quando dexa alguém di exame”. Em
outra comunidade, a repulsa dos alunos com relação a seus mestres é exposta da seguinte forma:
Odeio professor Filho da Puta. Se você tem ou já teve um professor filho da puta essa é a sua
comunidade! Entre e meta o pau nesses sacanas, que se acham cheios de merda e só pensam em
fuder a galera!”
É interessante observar, nestas falas dos alunos, a decepção decorrente da ausência de
correspondência entre a imagem que tinham do professor e a forma como ele se comporta em sala
de aula. O falso amigo é aquele que, na primeira oportunidade, prejudica os alunos com avaliações

1216
descabidas e que não permitem que os alunos “colem” na provas. Então, o professor
verdadeiramente amigo seria aquele que liberaria as “colas” nas provas? Ora, nota-se, neste caso, a
ausência de comunicação entre os preceptores e os alunos, principalmente no que se refere à
relevância da avaliação e de suas normas que poderiam ser, na medida do possível, discutidas
coletivamente. Mas tal hiato comunicativo entre professores e alunos não pode ser atribuído
exclusivamente às idiossincrasias dos agentes educacionais, pois conserva em si uma contradição
social, ou seja, a contradição de uma sociedade que promete tudo, porém não cumpre. Basta ligar a
televisão para nos depararmos com propagandas de produtos que prometem a realização plena e
imediata da felicidade, sem que haja quaisquer obstáculos para a sua concretização. Pedagógica e
filosoficamente falando, o que se realiza é uma negação das idéias de Kant (1996, p.34), sobretudo
quanto à contradição fundamental observada em seu tratado: Sobre a Pedagogia: “Um dos maiores
problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o
exercício da liberdade”.
Kant tinha plena consciência de que o cultivo da liberdade em meio a práticas coercitivas
nunca fora uma tarefa fácil. Influenciado, de forma decisiva, pelo Emilio, de Rousseau, o filósofo
alemão sabia que o incentivo ao desenvolvimento da consciência moral precisaria ser amparado por
um processo de disciplinamento consentido e não simplesmente imposto. E uma vez que
deslocamos este raciocínio para o entendimento das relações conflituosas entre os agentes
educacionais, as nuances de tal contradição precisam ser, de algum modo, expostas e discutidas em
conjunto. Se o professor opta por um sistema de avaliação, o que é que de fato lhe impede de, no
início das atividades educacionais, discutir com os alunos as razões de tal escolha e ouvir a opinião
do corpo discente a este respeito? Ora, se o alunado percebe que participa efetivamente, que tem
voz ativa na discussão dos problemas educacionais diários, há uma chance de que ocorra o processo
de internalização da disciplina, de tal modo que a pausa na realização imediata do seu desejo possa
ser compensada pela concretização de benefícios individuais e coletivos posteriores. É como se o
aluno afirmasse ao professor: “Então podemos realmente jogar limpo”. Quando não há tal
possibilidade de discussão coletiva, o aluno geralmente não entende como é que aquele professor
que se apresenta como amigo não permite que se “cole” nas suas avaliações.
Tal contradição não é compreendida apenas por conta das dificuldades apresentadas pelos
alunos, mas também em virtude da postura do professor em sala de aula e que pode ser ilustrada nas
seguintes reclamações: “Você sofre com um professor que não sabe a matéria e bota a prova
fudendo?” “Você tem um professor burro que se acha “o bonzão”?” Esta é a mesma temática da
comunidade: O meu professor “se acha”, cujos dizeres são: “Se você já passou por uma situação

1217
em que o professor te deixou como a cara “NO CHÃO” porque ele simplesmente se acha o tal, o
inteligente, o todo poderoso, o educado, o intelectual, o sabe-tudo, o gostosão (eka!), então essa é a
sua comunidade porque nós sabemos que ele apesar de gente boa “demais” não é nada disso, né?!
Se você não tem sangue de barata junte-se a nós! Não temos nada contra o nosso professor querido,
mas se ele fosse mais humano talvez nós iríamos gostar mais dele!”.
São afirmações como estas que iluminam todo ressentimento do aluno. O mesmo aluno que,
diante da figura do professor, representa um determinado papel ao participar de um jogo de cena,
mas que encontra no Orkut um meio capaz de romper com o acordo silenciosamente estabelecido
com o mestre na sala de aula. Aqui, no espaço virtual, o aluno se sente encorajado a confessar o
quanto odeia os professores que se aproveitam da condição de “educador” e destilam sua soberba
intelectual. Aquele professor que parece ser “gente boa”, de acordo com a fala dos alunos, na
verdade não é nada disso, pois se Nietzsche (1998) estava certo ao observar que no ato mais terno
de compaixão humana se encotra a vontade de poder dominar aquele recebe algum tipo de auxílio,
não se pode subestimar a capacidade do aluno de identificar em tal professor a soberba intelectual
que culmina na sua humilhação. Os próprios alunos reagem a tal situação e engendram uma
comunidade intitulada: Eu tenho um professor picareta: “Esse seres que povoam as universidades
estão cada vez mais presentes...opa, presentes em nossas vidas, porque na aula mesmo é bem difícil.
E ainda, quando dão aula, ficam enchendo lingüiça, falando do currículo deles e nos enchendo de
trabalhos”.
A verdade da existência de professores que fingem ministrar aulas, os chamados
“professores amigos”, e que acordam um pacto de mediocridade com os alunos que deixam de ser
avaliados, não pode obnubilar o fato de que muitos preceptores se isentam da necessidade de
disciplinar o impulso autoritário, pois se consideram os senhores da verdade absoluta, sendo que tal
soberba pode ser eficazmente dissimulada na forma da pretensa camaradagem com os alunos.
Torna-se cada vez mais difícil um professor assumir, defronte aos alunos, que é um ser
humano como outro qualquer, sujeito à falhas e acertos. Ao contrário, predomina atualmente uma
predisposição para a negação das próprias debilidades, pois quem é que pode confessá-las
publicamente sem correr o risco de ser demitido do trabalho ou mesmo eliminado da relação
íntima? Não deixa de ser comovente a sinceridade dos alunos quando clamam a mesma sinceridade
deste professor, tal como foi exposto anteriormente: “se ele (o professor) fosse mais humano talvez
nós iríamos gostar mais dele!”. Mas o resquício de humanidade é imediatamente minado diante da
intimação feita pelos partícipes da comunidade: Eu odeio professor picareta. “Se você odeia
aqueles professores que FINGEM que dão aulas nas faculdades públicas e privadas...você faz parte

1218
dessa comunidade. Cansado de picaretagem? Aqui é seu espaço para CRUCIFICÁ-LOS. Xinguem,
Critiquem, Escomunguem. AQUI VALE TUDO..., pois é permitido QUALQUER tipo de ofensa,
contato que seja aos professores. Os professores tem direito de Defesa, mas os alunos tem DEVER
de contra-atacar”.
E esse contra-ataque é elaborado de diversos modos, mas um que se sobressai é a
quantidade de comunidades virtuais cujos membros achincalham os preceptores de filhos da puta ou
então aquela que conclama: Professor: vai p/ puta que o pariu. Tais palavras de ordem ilustram o
quanto a questão sexual é um tabu distante de ser resolvido entre professores e alunos, os quais
demonstram também o desejo de contato sexual por meio das comunidades: Eu tenho um professor
gato; Meu professor é muito gostoso; Eu já beijei um professor, i daí?; Eu peguei meu professor;
Sou apaixonada por um professor; Eu amo meu professor; Eu já fiquei com um professor”. É
interessante observar a associação da questão sexual com a agressão focada na imagem do
professor. O ódio em relação ao professor é acompanhado de uma conotação sexual que lembra as
palavras de Freud (S. 2004, p.105) de que quaisquer processos afetivos mais intensos que
ultrapassassem um certo limite, tais como as excitações assustadoras e angustiantes, seriam
propagados para a sexualidade, ou seja, teriam um efeito sexualmente excitante. Para o psicanalista,
isso explicaria o fato de muitas pessoas sentirem prazer no contato com situações que engendrassem
afetos aparentemente desprazerosos, tais como angústia, medo ou horror, desde que houvesse algum
tipo de circunstancia secundária que atenuasse um pouco a gravidade desta sensação. De certa
forma, a “distância” estabelecida pela Internet amaina a intensidade da sensações de angústia e de
medo, de tal maneira que se compreende o porquê de Freud ter afirmado que o sadismo é, na
realidade, um componente da pulsão sexual. É excitante admoestar o professor porque ele também é
objeto de desejo do aluno. Não é fortuita a auto-exaltação dos alunos que beijaram, que “ficaram”
com seus professores, pois romperam a barreira da distância intelectual e provaram para si e para
seus colegas que seus mestres são também seres humanos, de carne e osso. É como se os alunos se
vangloriassem pela violação do tabu do professor rotulado como ser inatingível, por meio da
intimidade física, de uma afinidade eletiva corpórea. Neste caso, o desejo de contato físico não é
auto-suficiente, mas sim fornece o esteio para a aspiração do aluno de se aproximar daquele que se
distancia intectualmente. Este querer estar próximo também pode ser notado nos títulos das
comunidades: Eu já bebi com meu professor; Meu professor fuma maconha; Meu professor fala
errado; e Meu professor se parece com....
Não é fácil para o professor contribuir para que o aluno reflita sobre este processo de
idealização, uma vez que o professor também sente prazer com a percepção de que ocupa o lugar do

1219
ideal de ego do aluno, quer seja na forma de identificação com o herói idealizado, quer seja no
transcorrer do processo de identificação com o agressor. Em ambos os casos, a admiração e o desejo
de possuir o poder do professor são revelados não só por meio das palavras, mas também dos
olhares e gestos que valem mais que mil palavras porque justamente as expressam. Atualmente, os
alunos encontram um canal extremamente eficiente para poder extravasar suas desilusões, alegrias,
frustrações e, principalmente, ódio e ressentimento com relação à imagem que têm de seus mestres.
Este canal é o Orkut, um manancial consideravelmente profícuo para aqueles que se interessam em
pesquisar as instigantes e tensas relações desenvolvidas entre os alunos e seus preceptores.

Conclusão

Parece não haver limites para a realização da catarse regressiva dos alunos por meio do
Orkut. Além destas comunidades relatadas, há dezenas de outras cujos membros mencionam algum
tipo de insatisfação com seus professores, tais como: “Meu professor me enche”, formada por
alunos que se queixam dos mestres que os rotulam como bagunceiros e que nunca lhes dão chance
de explicar o que de fato ocorreu na sala de aula; “Eu odeio professor chiliquento”, cujos
participantes reclamam daqueles professores que gritam com os alunos e que “chamam a
coordenadora, a diretora, a polícia e o Papa para brigar com você”.
Após a constatação de tantas comunidades virtuais, cujos participantes expressam ódio e
ressentimento quanto à figura do professor, pode causar certa estranheza a menção das alegrias que
os alunos evidenciam com relação aos seus mestres. De fato, há dezenas de comunidades formadas
com o escopo de se homenagear professores, inclusive os falecidos, mas cujas imagens
permanecem presentes nas memórias de seus ex-alunos. As mais variadas demonstrações de afeto e
carinho dos alunos, que se encontram nas dezenas de comunidades virtuais, são por si só objeto de
grande relevância para a realização de uma outra pesquisa. Porém, nem sempre o elogio significa o
reconhecimento de alguma qualidade do mestre que contribua para o incremento do processo
educacional/formativo. No caso da comunidade Adoro o professor Xico, os alunos reverenciam o
professor que consegue transformar o aprendizado dos conteúdos de sua disciplina em algo
agradável, pois se erra algum conceito faz a seguinte mea-culpa: “dei um minuto de mulher”.
Quando o professor recebe como recompensa o riso de identificação e de aprovação do
aluno, logo após o comentário preconceituoso, dificilmente consegue disfarçar o prazer de se sentir
o modelo no qual os alunos se espelham. É verdade que os mestres se tornam modelos de conduta
por meio de vários tipos de processos de identificação, só que nos dias de hoje parece prevalecer a

1220
chamada identificação com o agressor. Mas há uma diferença decisiva em comparação com os
períodos que antecedem a revolução microeletrônica. Se anteriormente a tal revolução, o aluno teria
que esperar pacientemente ser professor para poder se desforrar da dor e das humilhações que teve
de suportar em silêncio nas salas de aula (ou então aguardar pelo menos um ano para, na condição
de veterano, sadicamente admoestar seus calouros), nos dias de hoje o mesmo aluno pode criar uma
comunidade virtual que aglutina seus protestos e homenagens com as representações aversivas e
afetuosas de outros alunos com relação a seus professores. O rompimento deste silêncio pode ser
nitidamente observado nos gritos, convertidos em letras garrafais, que compõem os comentários a
respeito dos preceptores, tal como foi exposto neste artigo.
Justamente a força da ambigüidade destes sentimentos recupera a discussão sobre as etapas
dos processos de idealização dos alunos quanto a seus mestres, bem como a questão de como se
pode estimular o processo de autodisciplina do aluno, ao mesmo tempo em que ele perceba que
pode e deve intervir na discussão das temáticas estudadas. A autoridade pedagógica pode contribuir
para que isto ocorra, pois se está envolvida numa relação de poder com seus alunos, também tem
consciência de que sua superioridade é contingencial ao portar em si sua superação. Há uma
superação da autoridade que não significa sua eliminação, uma vez que a intervenção do professor
se conserva modificada no raciocínio elaborado pelo aluno, o qual se sente respeitado como
partícipe do processo de ensino-aprendizagem. O Zaratustra, de Nietzsche (2005, p.105), numa
passagem primorosa, assim provoca seus sequazes: “Retribui-se mal um mestre quando se
permanece sempre e somente discípulo. E porque não quereis arrancar folhas da minha coroa?”.
Ora, a máxima liberdade não seria aquela exercida com limites consentidos por todos os
envolvidos na sua elaboração, kantianamente falando? Se for assim, as cores da tensa relação entre
o indivíduo e o modelo que ocupa o posto de ideal de ego podem adquirir uma outra tonalidade,
pois se o modelo, no caso o professor, é um elemento relevante para a construção da identidade do
aluno que se sente estimulado a superá-lo, o próprio mestre precisa deixar de se aferrar ao gosto de
se sentir o centro das atenções e perceber que, ao ensinar, uma parte de si “morre” para que possa
renascer mediada na intervenção do aluno. Infeliz é a terra que precisa de heróis ou aquela que não
tem heróis? Talvez tanto Galileu quanto Andrea tivessem, afinal, a sua parcela de razão.

1221
Referências bibliográficas

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Artigos obtidos na Internet

1) http:// www.folha.uol.com.br/informatica/ult124u16038.shtml Orkut é a mais nova febre


da rede a pegar no Brasil, 2004, 2p.
2)http://www.folha.uol.com.Br/folha/cotidiano/ult95u111287.shtm1“Venda”de ecstasy é
freqüente no Orktu, 2005a, 1p.
3) http://www.folha.uol.com.Br/folha/esporte/ult92u91559.shtml Orkut já foi usado para a
acusação de crime de racismo, 2005b, 1p.

1222
4) http://www.folha.uol.com.Br/folha/cotidiano/ult95u109653.shtml Veja trechos de
diálogos travados por neonazistas na Internet, 2005c, 1p.

Resumo do artigo: As Comunidades Virtuais, os Alunos e a Imago dos Professores.

Autor: Antônio A.S.Zuin

Os fatores subjetivos que, em muitas ocasiões, determinam o desenvolvimento do processo


educacional/formativo, sempre foram objeto de interesse dos pesquisadores das mais variadas
tendências e correntes pedagógicas. No transcorrer das investigações destes fatores, destacou-se a
necessidade de se compreender o modo como os alunos são muitas vezes incentivados a reprimir o
descontentamento que possuem em relação aos comportamentos de seus professores, fato este que
recrudesce o ressentimento que pode derivar muitas vezes para o ódio em relação à imago do
mestre. Ora, será que a dificuldade de manifestação de tais sentimentos aversivos dos alunos com
relação aos seus professores nas salas de aula implica no desaparecimento destes sentimentos? Ou
os alunos encontram meios para, numa espécie de catarse regressiva, expor suas desilusões em
relação ao modelo idealizado que tinham da figura do professor? O objetivo deste artigo é o de
argumentar que os alunos encontram situações dentro e fora das instituições escolares para a
realização desta catarse regressiva, e que o sítio de relacionamentos Orkut, e suas respectivas
comunidades virtuais é, atualmente, um dos principais “espaços” utilizados pelo corpo discentes
para poder objetivar suas representações aversivas com relação a seus mestres.

1223
Problemas de atualidade da Teoria Crítica? Indústria educacional hoje1
Cláudio Almir Dalbosco2

Nesta comunicação pretende-se mostrar a atualidade do conceito de indústria


cultural de Adorno no tocante à análise do intenso processo de mercantilização
desregulamentada do ensino superior no Brasil a partir do final do século passado. Neste
sentido, reconstroem-se as linhas gerais da interpretação que Helmut Dubiel (1999, p. 293-
313) faz das possibilidades de atualização da teoria da sociedade de Adorno, submetendo-
se tal interpretação também à crítica. Esta reconstrução deve auxiliar no balizamento de um
aspecto atual do conceito de indústria cultural, a saber, o conceito de indústria educacional,
que está na base do diagnóstico sobre o processo acelerado de privatização mercantil da
educação superior no Brasil. Por fim, como forma de recuperar aspectos do conceito
clássico de formação integral (Bildung) e de confrontá-lo, como ideal normativo, às
exigências mercadológicas atuais do ensino, recorre-se ao significado do conceito
adorniado de formação cultural, no modo como é tematizado em suas conferências
radiofônicas dos anos sessenta do século passado. Tal recurso deve servir, ao mesmo
tempo, como contraponto crítico a objeção de que a teoria da sociedade adorniana teria
sucumbido, ela mesma, à tese da sociedade sistemicamente fechada.

As conferências sobre Adorno (Friedeburg/Habermas, 1999), proferidas em 1983 na


Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, tiveram como objetivo avaliar as
influências atuais do trabalho sociológico e filosófico daquele autor. Presentes estavam
vários conferencistas que procuraram cobrir, cada um ao seu modo, os mais diferentes

1
Texto apresentado no Congresso Internacional “A Indústria Cultural hoje”, realizado em
Piracicaba/SP, entre os dias 28/08 a 01/09/2006.
2
Doutor em filosofia pela Universität Kassel e Professor do Curso de Filosofia e do PPG em
Educação da Universidade de Passo Fundo/RS.

1224
aspectos da produção intelectual adorniana, sem deixar, evidentemente, de formular
objeções a partir de suas perspectivas teórico-filosóficas. Meu propósito, ao me reportar a
estas conferencias, não é o de relatá-las por completo, mas sim resumir o conteúdo da
interpretação de Dubiel sobre a teoria de Adorno. Em sua conferência intitulada “A
atualidade da teoria da sociedade de Adorno” (“Die Aktualität der Gesellschaftstheorie
Adornos”) o referido autor busca atender um duplo objetivo: primeiro, livrar o pensamento
de Adorno daquelas interpretações baseadas no renascimento de uma crítica cultural
pessimista, que não só afastaria o pensamento adorniano do campo originariamente crítico
do qual emergiu, como também o encurralaria no desfiladeiro de uma posição
conservadora. Em segundo lugar, Dubiel pretende reintroduzir tal pensamento, novamente,
no âmbito de uma refletida teoria filosófico-social do capitalismo tardio. Para poder dar
conta destes dois objetivos, o autor defende a tese de que a atualidade da teoria da
sociedade de Adorno depende da capacidade dela poder incorporar, em seu arcabouço
teórico, as profundas transformações ocorridas na estrutura político-econômica da
sociedade tardo-capitalista.
Para Dubiel a teoria crítica clássica da sociedade, no moldes de Adorno, se constitui
como teoria da forma autoritária do capitalismo tardio que se justifica em um topos teórico
tripartido: a) como teoria do capitalismo estatal, influenciada pelas análises de Pollock; b)
como teoria do caráter autoritário, de procedência freudiana e; c) como teoria da cultura,
enraizada na contraposição estilizada entre duas eras burguesas, uma alta (elevada) e outra
tardia. Depois de resumir os traços característicos de cada uma dessas teorias, Dubiel chega
a seguinte conclusão: uma racionalidade de troca totalitária e hermeticamente crescente;
uma estrutura socializadora que ancora a pretensão autoritária de uma dominação tornada
anônima na estrutura do eu do próprio sujeito e uma cultura de massas fabricada
industrialmente que serve ao objetivo excludente de um consenso manipulado conduzem,
todas conjuntamente, a um quadro assustador de uma sociedade sistemicamente integrada
(Dubiel, 1999, p. 299).
Esta conclusão é acompanha por uma análise crítica do topos teórico tripartido, na
qual Dubiel procura mostrar as transformações sociais e teóricas que se seguiram depois
das formulações de Adorno. Deste modo, em relação ao primeiro ponto, a teoria capitalista
na qual Adorno se baseou para formular sua teoria da sociedade teria seu foco centrado a tal

1225
ponto na teoria do fascismo que o levou a conclusão da correspondência entre teoria
capitalista e teoria do fascismo. No entanto, segundo Dubiel, o desenvolvimento da teoria
crítica do período capitalista pós-guerra concentrar-se-ia cada vez mais na formulação de
uma teoria da crise e, neste contexto, teoria do capitalismo tardio passaria a ser entendida
como teoria da crise. A palavra crise é empregada aí, contudo, para indicar um novo estágio
de desenvolvimento capitalista, no qual a estrutura de mediação dos interesses sociais
conflitantes se alterou substancialmente. A crise tornar-se-ia saliente, como descreve
Dubiel, quando a práxis política dos compromissos do Estado do bem estar social depende
de um conjunto de condições econômicas sobre as quais, no entanto, seus próprios
portadores políticos não podem ou não querem mais satisfazer. Isso abriria espaço então ao
desenvolvimento de uma política econômica neoconservadora, cujos resultados deixar-se-
iam sentir imediatamente: elevação dos impostos, desconstrução do social e, entre outros,
desregulamentação e desmontagem de estruturas solidárias e cooperativas. Todas estas
iniciativas, que visam melhorar as condições de acumulação do capital em prejuízo dos
interesses do trabalho assalariado, apontariam, claramente, na direção da “dessocialização”
do Estado para fins predominantemente voltados à acumulação privada do capital (Dubiel,
1999, p. 301-302).
No que diz respeito ao segundo ponto, ou seja, sobre a teoria do caráter autoritário,
Dubiel critica o fato de que as interpretações psicológico-sociais de Adorno pressuporem
ainda uma correspondência direta entre exigências funcionais do capitalismo tardio
autoritário e ações dominantes do caráter social burguês. Isto é, as análises de Adorno sobre
a constituição da identidade e da personalidade na sociedade de sua época desenvolver-se-
iam mediante a tese da influência decisiva do ritmo coercitivo do aparato produtivo e
dominante sobre a célula interna da subjetividade. E, segundo Dubiel, seria este o grande
motivo teórico que formaria a dimensão psicológico-social do quadro adorniano de uma
sociedade que se encontrava, do ponto de vista sistêmico, completamente integrada. No
entanto, a literatura psicológico-social atual, que mal pese sua diversidade e seus limites,
contradiria esta tese de Adorno: estudos sobre o comportamento social e político de grupos
juvenis, bem como o significado acentuado da problemática adolescente, mostrariam que os
tipos hoje dominantes de perturbações não são mais conseqüências do forte controle de
impulsos e afetos exercidos por estruturas institucionais fixas (como família e Estado).

1226
Portanto, as análises de Adorno pressuporiam uma relação direta entre exigências
funcionais sistêmicas e orientações subjetivas individuais na formação social do caráter,
relação esta que o próprio comportamento de adolescentes e jovens atuais, motivados pelas
novas exigências oriundas da racionalização extrema da produção, poria em cheque. Em
um capitalismo pós-industrial desfazem-se, entre a juventude de todas as camadas sociais,
àqueles aspectos auto-repressivos de formação social do caráter burguês clássico, como
uma ética de realização ascética, um status de concorrência e uma disposição autoritária à
busca de resultados, os quais confundiriam e tornariam insegura a idéia do que seria
propriamente o novo caráter social resultante deste processo. Estas transformações
apontariam, segundo Dubiel, não só para o enfraquecimento do poder paterno, mas também
para o enfraquecimento do papel familiar e indicariam para uma dificuldade de
identificação coletiva na estruturação social. Isto é, a progressão dramática da
modernização cultural e tecnológica provocaria, por um lado, a erosão dos domínios
tradicionais de experiência e as ofertas clássicas de constituição da identidade e, por outro,
assinalaria para um “eu transformado”, oriundo dos novos padrões de socialização pautados
por uma cultura narcisista.
Por último, a teoria da cultura e sua correspondente teoria da indústria cultural
precisariam ser analisadas mediante as novas transformações sociais e teóricas. A teoria
crítica da cultura repousava, segundo Dubiel, na tese de que o duplo caráter da arte
burguesa fora arruinado pelo capitalismo tardio totalitário. Isto é, cultura, como
confirmação ideológica da dominação e como imagem crítico-utópica de possibilidades
inalcançáveis, transforma-se na parte de uma cultura de massas puramente manipulativa e
em uma arte esotérica de vanguarda. Ora, as análises de Adorno pressuporiam aqui uma
determinação relacional entre arte e sociedade que não corresponderia mais às profundas
transformações do caráter social burguês indicadas acima e que se deixariam resumir pela
expressão “transformações na estrutura de trabalho e consumo no capitalismo tardio
desenvolvido”. Estas transformações possibilitariam o desenvolvimento de uma cultura
pós-vanguardista que confrontaria entre si uma pluralidade de materiais e formas
lingüísticas, cujo resultado, embora seja ainda imprevisível em termos de lógica de
desenvolvimento artístico, seguramente questiona o papel emancipador atribuído por
Adorno à arte concebida em termos vanguardistas.

1227
II

Até aqui tenho parafraseado, em largos traços, a reconstrução que Dubiel fez do
topos teórico que, segundo ele, sustenta a teoria da sociedade de Adorno. Inúmeras
questões estão implicadas em sua reconstrução. A primeira delas é se este topos teórico
tripartido consegue apanhar, efetivamente, o significado atribuído por Adorno à sua teoria
crítica da sociedade e, segundo, caso se considere sua tripartição como adequada, como este
topos pode ser unificado, cruzando-se seus pólos dinamicamente, para formar o todo que
compõe a teoria adorniana da sociedade. Independentemente destes questionamentos,
parece-me que dois aspectos da interpretação de Dubiel tornam-se instrutivos à recepção do
pensamento de Adorno no Brasil.
O primeiro refere-se ao seu esforço de distanciar o pensamento de Adorno daquelas
tentativas de integrá-lo no marco de uma crítica pessimista da cultura. No entanto, no caso
da interpretação de Dubiel, para que pudesse tornar conseqüente este aspecto, ela teria que
ter relativizado a tese de fundo que sustenta sua leitura de Adorno, a saber, de que a teoria
da sociedade de Adorno culmina no conceito de uma sociedade completamente integrada
do ponto de vista sistêmico. Ora, o dilema, não enfrentado por Dubiel, consiste em querer
livrar a teoria da sociedade de Adorno de uma crítica pessimista da cultura, mas aferrando-
se, ao mesmo tempo, na reconstrução de tal teoria a partir de um conceito de sociedade
como instância completamente administrada. Para tornar sua pretensão mais conseqüente,
Dubiel deveria ancorar sua análise nos potenciais crítico-reflexivos de Adorno que lhe
ajudaram a contrabalançar a tese de uma sociedade completamente administrada. Neste
contexto, reforça-se também a idéia de que uma recepção produtiva do pensamento de
Adorno, para o campo educacional brasileiro, precisa amparar-se na origem claramente
crítica de seu pensamento, pondo-se aí a exigência de que uma teria educacional, com
pretensão crítica, não pode torna-se prisioneira de uma crítica pessimista da cultura, como
também não pode querer tornar Adorno adepto de tal pessimismo.
O segundo aspecto diz respeito ao fato de que a atualidade da teoria da sociedade de
Adorno depende da condição de se poder interpretá-la como um processo aberto e,
enquanto tal, passível de ser reformulado. Mas Dubiel também parece fraquejar neste

1228
ponto, uma vez que toma o projeto da Dialética do Esclarecimento como referência
exclusiva para traçar o conceito de teoria da sociedade de Adorno, projetando-o para o
restante da produção adorniana. Dois problemas estão implicados aí: o primeiro refere-se
ao fato de saber se a Dialética do Esclarecimento culmina, necessariamente, como a análise
de Dubiel parece pressupor, em uma teoria que concebe a sociedade como um sistema
totalmente administrado; o segundo refere-se ao fato de Dubiel desconsiderar outras
formulações importantes, como àquelas feitas por Adorno em seus pronunciamentos
radiofônicos, nas quais, por exemplo, ele atribui poder emancipador à educação. Estes
problemas não descaracterizam, no entanto, a validade da afirmação de Dubiel sobre a
importância de se conceber a teoria da sociedade como processo aberto. Parece-me, pois,
que nesta afirmação está indicado, como qualificação importante do próprio sentido que o
conceito de crítica deve abarcar – inclusive como forma de revidar um possível caráter
retórico que possa estar subjacente ao primeiro aspecto acima referido - de revisão e de
autocorreção de seu âmbito conceitual; isto é, crítica deve assumir o sentido de negação de
qualquer forma de dogmatismo e estagnação da teoria. Ora, é este sentido que se contrapõe
à existência de uma ortodoxia cega, a qual, aferrando-se a defesa intransigente da letra da
doutrina, esquece, freqüentemente, o fato de que a atualidade do seu conteúdo repousa no
confronto permanente com exigências e situações postas pelo contexto social contra o qual
a teoria é vertida. Assim, em um processo dinâmico de mão-dupla, uma teoria crítica da
sociedade pode tornar-se produtiva à interpretação do contexto histórico do qual faz parte
no mesmo grau de abertura que deve dispor-se a ser por ele reformulada.

III

Se a análise de Dubiel autoriza este resultado geral, esboçado acima, ela auxilia-me
a perguntar pela atualidade do conceito de indústria cultural. Isto é, a posição de Dubiel
tornaria inválida a atualidade do conceito de indústria cultural à análise de problemas
educacionais? Embora uma resposta a esta pergunta não seja tarefa fácil, gostaria de
defender a idéia de que, embora se concordássemos com a tese de que a teoria da sociedade
de Adorno precisa ser atualizada naquelas três dimensões do topos teórico apontado por
Dubiel, esta atualização não só não descaracteriza o conceito de indústria cultural

1229
formulado por Adorno, como deve manter um aspecto de seu núcleo originário. Para tornar
isso claro vou recorrer agora ao próprio texto de Adorno.
O conceito de indústria cultural, embora já esteja subentendido nos textos de
Adorno e Horkheimer dos anos trinta do século passado, é introduzido, sistematicamente,
na Dialética do Esclarecimento. Com tal obra os referidos autores pretendem compreender
porque a humanidade, contrariando previsões otimistas de alguns iluministas modernos, em
vez de progredir parece estar regredindo a uma nova fase de barbárie. O diagnóstico
oferecido pelos autores consiste em mostrar que a principal causa de tal regresso reside no
monopólio exercido por uma racionalidade de tipo instrumental, que, ao assumir a lógica
do capitalismo moderno e sendo sofisticada pelo aparato tecnológico constantemente
inovado por tal lógica, invade todas as formas de vida, transformando suas produções
culturais em valor de troca.
Com a expressão indústria cultural Adorno e Horkheimer querem dar conta daquele
processo no qual a cultura é transformada em mercadoria no capitalismo tardio e
comercializada em grande escala. Mas, como advertem os autores, trata-se de uma
mercadoria paradoxal, pois a cultura “está completamente submetida à lei de troca que não
é mais trocada. Ela entrega-se tão cegamente ao uso que não se pode mais usá-la. È por isso
que ela se amalgama com a publicidade. Quanto mais sem sentido apresenta-se diante do
regime do monopólio, mais todo-poderosa ela se torna. Os motivos são suficientemente
econômicos” (GS, 3, 185). Ao ser absorvida pelos motivos econômicos, a cultura precisa se
transformar em mercadoria e, para tornar-se essencial como mercadoria, precisa assumir a
forma de valor de troca e, com ele, perde, sob uma outra perspectiva, aquilo que seria sua
característica mais própria. Os autores resumem esta transformação que os bens culturais
sofrem em seu significado numa outra passagem com a seguinte afirmação: “O que se
poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de
troca; no lugar do usufruir (prazer) coloca-se o assistir e o estar informado e coloca-se o
conquistar prestígio no lugar de se tornar um conhecedor” (GS, 3, 181).
Estas duas breves citações permitem-me resumir um aspecto do núcleo central do
significado do conceito de indústria cultural que é assumido pelos autores nesta obra. Com
tal conceito querem indicar a absorção, pelo processo produtivo capitalista, das mais
diversas manifestações culturais, promovendo a incorporação da produção cultural pelas

1230
leis do mercado e a conseqüente transformação dos bens culturais em mercadoria, mediante
a qual o valor de uso de tais bens configura-se, hegemonicamente, em forma de valor de
troca com fins eminentemente ideológicos, comerciais e lucrativos. Ideológico no sentido
de que a produção industrial da cultura visa integrar socialmente os membros da sociedade
nos interesses e no modo de pensar dos grupos dominantes e, lucrativo, porque os grandes
monopólios industriais das primeiras décadas do século passado não tardaram em ver no
vasto campo da produção cultural e artística das sociedades capitalistas desenvolvidas
novas possibilidades de aplicar seu capital e obter com isso um nova fonte de ganhos
econômicos.
Este significado do conceito de indústria cultural desenvolvido pelos autores nos
anos quarenta, embora seja reformulado em suas elaborações subseqüentes, não é alterado,
no entanto, naquele aspecto de seu núcleo central por mim acima reconstruído. Ao
contrário disso, tal aspecto é constantemente reforçado. Isso ocorre, por exemplo, na
conferência radiofônica proferida por Adorno em 1962, com o título “Resumo sobre
indústria cultural” (“Résumé über Kulturindustrie”). O aspecto central desta conferência
consiste em mostrar o papel que a indústria cultural exerce na “economia psíquica das
massas” e, portanto, na formação de suas consciências. “O que se considera como
progresso na indústria cultural, o insistentemente novo que ela oferta, permanece na
obscuridade do sempre igual (homogêneo); toda mudança encobre um esqueleto no qual se
muda tão pouco como na própria motivação do lucro, desde que tal motivação ganhou
ascendência sobre a cultura” (GS, 10.1, 339). Para dar conta de explicar o caráter
ideológico exercido pela indústria cultural, Adorno enfatiza, novamente, a idéia de que ela,
graças aos meios atuais da técnica e à concentração econômica e administrativa, configura-
se em um sistema de produção de bens culturais “adaptados ao consumo das massas e que
em grande parte determinam esse consumo” (GS, 10.1, 337). A comercialização das
mercadorias culturais produzidas pela indústria, visando deliberadamente o lucro, e não a
criação cultural e a formação dos indivíduos, é o que, segundo Adorno, caracteriza a
indústria cultural.

1231
IV

Portanto, o conceito de indústria cultural assume, na sociedade capitalista tardia,


segundo Adorno, uma dupla finalidade: ideológica, no sentido de exercer o controle social
e, econômica, na medida em que a comercialização capitalista da cultura tornou-se uma
poderosa fonte lucrativa para grandes monopólios financeiros. Desta dupla finalidade,
principalmente a função ideológica atribuída por Adorno ao conceito de indústria cultural
tornou-se alvo de muitas críticas. Kellner (1982), não sem se deixar inspirar pelo trabalho A
mudança estrutural do espaço público de Habermas, formula três objeções à teoria
adorniana da indústria cultural. A primeira consiste em afirmar que a indústria cultural só
poderia desempenhar realmente a função ideológica atribuída a ela por Adorno mediante a
condição da existência de um sistema tão monolítico e manipulativo que, além de ser
impossível, caso existisse, colocaria seus integrantes (“receptores dos bens culturais”) numa
passividade quase absoluta. Portanto, segundo esta primeira objeção, a teoria de Adorno
não consideraria adequadamente o fato de que os próprios indivíduos recebem as
informações da mídia e da cultura de modo muito diversificado. A segunda objeção
questiona a tese de que a indústria cultural reproduz, simplesmente repetindo, de modo
uniforme, a ideologia da sociedade existente. Tal tese ignora, por um lado, o fato de que os
interesses e experiências pessoais do público podem não coincidir necessariamente com os
da indústria cultural e, por outro, ignora também a capacidade criativa de ressignificação
própria do público diante da mensagem ouvida e ou assistida. Por fim, a terceira objeção
volta-se contra a tentativa a-histórica de universalizar o modelo de indústria cultural para
todos os tempos e acontecimentos, desconsiderando as diferenças existentes entre, por
exemplo, o período da República de Weimar, o do Fascismo e o da cultura de massas nos
Estados Unidos (Kellner, 1982, p. 507-510).
Se estas objeções põem dificuldades à atualidade do papel ideológico atribuído por
Adorno ao conceito de indústria cultural, não invalidam, de modo algum, aquele aspecto
que forma o núcleo de seu conceito acima referido, a saber, a finalidade econômica que o
sustenta. Isto é, as transformações da sociedade capitalista tardia e suas novas formas de
legitimação não descaracterizam o fato de que as mais diferentes manifestações culturais
continuam sendo transformadas em mercadorias e, enquanto tais, comercializadas com fins

1232
lucrativos. Não só não houve uma perda de validade deste fenômeno, como a indústria
cultural ampliou, gigantescamente, sua finalidade econômica para outros âmbitos da esfera
cultural, âmbitos estes que ainda eram poucos expressivos na época de Adorno. O
fenômeno mais recente e que mostra a atualidade deste aspecto do conceito de indústria
cultural é a mercantilização irracional e desenfreada da educação e, de modo especial, do
ensino superior no Brasil3, configurando o que se pode chamar, conceitualmente, de
indústria educacional.
A indústria educacional denota, do ponto de vista de sua definição, o processo no
qual o capital (investimento financeiro) invade o processo formal de ensino-aprendizagem,
submetendo a educação e, em sentido mais específico, o próprio processo pedagógico, às
leis de mercado e, portanto, às suas leis de valor e lucro. Dito de forma simples, escolas,
faculdades, universidades, alunos e professores tornam-se parte do complexo empresarial
dominado por grandes corporações privadas, as quais se transformam em verdadeiras
agencias comercializadoras do saber. O que se constata, neste processo, é a invasão da
lógica econômico-mercantil no âmbito da educação, impondo sua forma mercadoria ao
processo pedagógico e transformando, com o apóio e incentivo da política educacional
governamental, o ensino superior em negócio rentável. Com isso, processos formativo-
educacionais deixam de ter sua dinâmica e seu tempo próprios, sendo absorvidos pela
lógica econômico-lucrativa e tornando-se prisioneiros de suas exigências. Torna-se
evidente com isso a subordinação do significado da formação cultural (Bildung) e dos
critérios de uma educação de qualidade à lógica da indústria educacional.
A política educacional adotada no país, a partir da metade nos anos noventa do
século passado impulsionou, dando legitimidade administrativo-legal, a especificação da
indústria cultural em indústria educacional. Souza parte, em seu livro a Revolução
Gerenciada (2005), do diagnóstico de que a sociedade mundial passou a viver, a partir das
últimas décadas do século passado, a “terceira revolução industrial”, a qual se
caracterizaria, fundamentalmente, pela passagem de uma sociedade baseada no trabalho
para uma sociedade do conhecimento, da qual uma das principais características seria a
rapidez com que surgem e desaparecem novos conhecimentos. Isso provocaria alteração no

3
Mas esta não é apenas uma tendência brasileira, mas também mundial. Prova disso, são as novas
exigências postas pelo acordo de Bolonha às universidades de países que integram a Comunidade

1233
quadro rígido e fixo de carreiras profissionais, exigindo um novo perfil de profissional que
fosse capaz de se adaptar, com agilidade e rapidez, a esta freqüente mudança do
conhecimento e dos interesses do mercado. Especificamente, do ponto de vista educacional,
esta “nova sociedade” exigiria um processo permanente de educação, que não poderia mais
repousar na simples idéia da “transmissão de conhecimento”, mas sim no desenvolvimento
da “capacidade de aprender”.
As exigências oriundas deste novo cenário mundial, aliadas à constatação das
disparidades e a estagnação do sistema educacional brasileiro fortaleceram a decisão,
segundo Souza, de promover uma profunda reforma educacional, a qual passou a ser
implantada sob sua coordenação no Ministério da Educação das duas gestões do Governo
Cardoso. Esta reforma deveria culminar, considerando as novas exigências postas pela
“terceira revolução industrial” e, nela, sobretudo, as exigências de um novo mercado, em
um novo papel a ser assumido tanto pelo ensino básico como pelo ensino pós-médio na
formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos, a saber: estimular sua integração
social, formando consciências que se voltem criticamente contra qualquer tipo de
discriminação e a favor da tolerância. Em síntese, a educação do século XXI e, incluindo
nela a educação brasileira, deveria ser, nas palavras do então Ministro, “bastante
humanista”, sendo de competência, neste contexto, às instituições formais de ensino
oferecer educação integral aos seus membros, visando à formação de um “cidadão global”.
Mas a implantação desta reforma educacional não ocorreu sem conflitos e
contradições. No que diz respeito, especificamente, ao ensino pós-médio, sobretudo o
ensino superior, a política educacional adotada pelo referido Ministro escancarou as portas
à iniciativa privada, sem que isso viesse acompanhado por uma política adequada de
regulamentação, que pelo menos exigisse, entre outras medidas, critérios claros no sentido
de buscar a qualidade do ensino superior. Isto é, o que na prática efetivamente aconteceu,
foi a criação de “imensas oportunidades” para o investimento privado na educação sem que,
no entanto, fosse estabelecida uma regulamentação clara “dos serviços educacionais”,
deixando, como critério exclusivo de uma qualidade seletiva, a própria competição do
mercado educacional. Por isso, o que se verifica na atualidade, como desfecho desta
política, é a proliferação irracional e desordenada de uma multiplicidade de Faculdades

Européia. Sobre isso ver: (BOLOGNA-ERKLÄRUNG, 1999).

1234
ocupando fatias rentáveis do mercado educacional, no qual buscam maior lucro com menor
custo possível. Isso caracteriza a corporificação empírica do que denomino de
industrialização mercantil da educação superior no Brasil.
Mas esta política educacional adotada pelo governo Cardoso é perpassada por uma
questão que Souza não enfrenta em seu livro: em que sentido o estímulo desregrado à
mercantilização do ensino superior é compatível com a busca enfática pela qualidade do
ensino, que deveria estar voltada, nas palavras do próprio Ministro, ao desenvolvimento da
capacidade de pensar e à formação integral da pessoa humana na sua dimensão ética e
cidadã? Ao meu ver, o paradoxo deixa-se ver no fato de que a formação integral visando a
formação do cidadão global - que traz como exigência elementar de sua realização a
formação intelectual mínima das novas gerações que as possibilitem entabular um diálogo
vivo e criativo com a tradição cultural passada, condição esta indispensável, inclusive, para
se entender as mudanças do “novo mundo” e as exigências por ele postas – não é
compatível com a pressa e as exigências de uma formação profissionalizante voltada quase
exclusivamente para atender as demandas do mercado. Portanto, a consistência e
vagarosidade do diálogo com a tradição, que proporciona uma formação cultural ampla e
sólida e que, certamente, coloca-se com auxílio indispensável ao aprendizado para o pensar,
não coincide, necessariamente, com a pressa e a versatilidade imposta à educação pela
lógica do mercado do “novo mundo”. Eu penso que, no que diz respeito à formação
cultural, com uma perspectiva crítica à indústria educacional, Adorno ainda nos tem algo a
dizer e, com isso, passo ao ponto conclusivo de minha comunicação.

Em diferentes momentos de sua produção intelectual Adorno se reporta ao conceito


de formação cultural (Bildung). Para meus propósitos, interessa agora rastrear seu
significado em uma conferência radiofônica dos anos sessenta. Tal escolha não é aleatória,
pois deve servir, além de referência normativa crítica ao processo de mercantilização do
ensino superior, também como aval crítico do próprio Adorno à imagem de uma sociedade
completamente administrada, uma vez que, ao se referir ao conceito de formação cultural
como núcleo do processo educacional, Adorno insere-se naquela mais alta e produtiva

1235
tradição iluminista que via na educação uma fonte indispensável da busca pela maioridade
humana e social.
Na conferência radiofônica intitulada “A filosofia e os professores” (“Philosophie
und Lehrer”) Adorno analisa a rejeição dos candidatos à presença da disciplina de filosofia
no concurso para docência em ciências nas escolas superiores do Estado de Hessen,
Alemanha. O fato analisado por ele diz respeito à ausência de sentido, de parte dos
candidatos, em relação à presença da filosofia nos exames a serem prestados. Considerando
sua experiência de anos de aplicação de tal exame, tanto oral como escrito e também o
perfil dos candidatos e os resultados das provas, Adorno chega à conclusão de que o que
este fenômeno revela é, de modo geral, a ausência de formação cultural (Bildung)
necessária a quem pretende ser um educador. E isso revela então, na opinião de Adorno, um
fato preocupante, pois quem pretende se dedicar à tarefa de ensinar e formar, humana e
profissionalmente as novas gerações, deveria ter um espírito aberto e, principalmente, um
espírito amoroso que o permitisse compreender os sujeitos envolvidos no processo
pedagógico como sujeitos aptos a desenvolverem sua capacidade de reflexão. E, justamente
com este sentido é que se justificaria a presença da filosofia nos exames, rejeitada pelos
candidatos.
Para Adorno, o problema de tal rejeição está associado a uma “formação geral de
espírito” - que também constitui o modo de pensamento de parte dos candidatos -, oriunda
de um pensamento formalmente conformado que apresenta, entre outras características, a
“disposição a se adaptar ao vigente, uma visão com valorização distinta entre massas e
lideranças, ausência de relações diretas e espontâneas entre seres humanos, coisas e idéias,
convencionalismo impositivo e crença a qualquer preço no existente” (Adorno, 1971, p.
39). Esta forma de pensamento legitima, em última instância, o ensino voltado à formação
especializada, excessivamente centrado no foco profissionalizante, desconectada da
formação cultural ampla. Esta situação revela então a formação de um profissional apto a
legitimar o estado de coisas existente e, por isso, ela conduz ao questionamento sobre a
ausência do aspecto humano e cidadão na formação de tal profissional.
Para contrapor-se a esta situação Adorno reafirma a importância do estudo da
filosofia, como um dos caminhos viáveis para se chegar à formação cultural enquanto
complemento necessário ao estudo profissionalizante. Não se trata, no entanto, de um

1236
estudo mecânico dos temas e das disciplinas que compõem o arcabouço do saber filosófico
e nem de repeti-lo, por meio de uma prova oral ou escrita, mas sim de sua apropriação viva
e dinâmica, que leve o candidato a pensar sobre o seu próprio fazer profissional. Isto é, a
importância da filosofia e da formação cultural, em sentido mais amplo, na formação dos
futuros professores justifica-se em auxiliar no desenvolvimento de sua auto-reflexão e na
construção de seu espírito crítico sobre seu próprio fazer profissional, levando-os a se
“desprovincianizar” de seu mundo e exigindo-os a se relacionar criativamente com a
cultura elaborada e, com isso, evitando querer imitar mecanicamente o que é considerado
como culto ou erudito.
Ao conceber a formação cultural como uma disposição aberta, constituída pelo
esforço e capacidade espontâneos de se abrir a elementos do espírito, apropriando-os de
modo produtivo na consciência, Adorno estava profundamente interessado na formação
humana e crítica dos professores, responsáveis pela formação profissional e humana de
futuras gerações. Com isso ele também estava consciente do fato de que a busca pela
formação cultural não poderia compatibilizar-se inteiramente com a lógica do processo de
mercantilização da cultura.

Bibliografia

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SOUZA, P. R. A revolução gerenciada: Educação no Brasil 1995-2002. São Paulo:
Prentice Hall, 2005.

1238
Indústria cultural, consumismo e a dinâmica das satisfações no mundo administrado

Conrado Ramos (Universidade Paulista – UNIP)

RESUMO
Pretende-se discutir o “- Goza!” – expressão de Jacques Lacan para significar que a
exigência de satisfação é posta ao sujeito na forma de um imperativo categórico –
como o representante moral do mundo administrado. Para tanto, a indústria cultural
será pensada como um processo “que desapropria seus consumidores forçados de
seus últimos impulsos internos” (HORKHEIMER e ADORNO, 1991, p.190).
Como resultado, questionar-se-á o quanto que a necessidade, como justificativa da
produção capitalista, está sendo substituída pelo prazer.

Este trabalho é parte da pesquisa A administração de modelos identitários para crianças


através dos comerciais de televisão, financiada pela UNIP. Nessa pesquisa compõem nosso
objeto os mecanismos da indústria cultural e não seus receptores. Porém, para a melhor
compreensão dos mecanismos é necessário investigar seus efeitos e objetivos junto à dinâmica
pulsional dos receptores, posto que neles reside a própria dominação, em sua mais profunda
manifestação, da totalidade sobre o particular. É por meio também da psicodinâmica do receptor
que se pode buscar e compreender as formas de resistência ainda presentes no particular. É neste
sentido que compreendemos a aproximação dos principais autores da Escola de Frankfurt da
teoria psicanalítica – muito embora não se possa esquecer de todas as críticas que dirigiram a
ela. Vale ressaltar ainda que para marcar as diferenças entre arte e indústria cultural, Adorno
não recorreu somente à objetividade e historicidade de seus procedimentos de produção, mas
também aos diferentes efeitos pulsionais que implicam o artista e o receptor, compreendidos de
modo socialmente mediado.
Ao observarmos com olhos da psicanálise o fenômeno do consumo, notamos que o ato
de consumir reserva ao indivíduo duas possibilidades de satisfação, sendo que uma delas,
aparentemente mais imediata e material, encontra-se no prazer permitido pelo objeto, prazer este
que se confunde com o plano das necessidades. A outra possibilidade de satisfação encontra-se
não no objeto, mas em sua transcendência, isto é, no próprio ato, no que ele tem de proximidade
com a vontade kantiana e sua conformação à lei. Segundo Safatle (2003, p. 210):

[...] essa determinação transcendental do ato não pode ter apenas uma
definição negativa como aquilo que resiste aos argumentos
utilitaristas. Ela deve também ter uma definição positiva enquanto ato

1239
feito por amor à Lei. Dessa forma, Kant promete uma reconciliação
através da determinação perfeita da vontade pela Lei. Momento no
qual a vontade seria Logos puro. Das Gute se confunde aqui com o
amor pela Lei, o que permite a Kant reintroduzir o conceito
aristotélico de Soberano Bem enquanto síntese entre a virtude e a
felicidade. Síntese que produziria uma “agradável gozo da vida
[Lebensgenuss] e que, no entanto, é puramente moral” (KANT, Die
Metaphysik der Sitten, p. 485).

Esta é a dimensão do que Lacan chamou de gozo, que se localiza além do princípio do
prazer e, portanto, de modo transcendente em relação ao mundo patológico, isso é, independente
do objeto que se esteja consumindo ou qualquer que seja o objeto.
Se colocarmos neste gozo do consumo a liberdade do sujeito, temos antes que
questionar o quanto que, na verdade, esse gozo implica a liberdade da produção: quaisquer
porcarias, inutilidades, besteiras, futilidades, superfluidades e coisas ruins poderão ser
produzidas porque serão consumidas se oferecidas ao gozo. O indivíduo gozador, neste caso,
livre do mundo patológico, acaba submetido e aprisionado aos interesses da produção industrial.
Acontece que, para Lacan, a conformidade do gozo à lei não pode ser pensada como
conduta moral resultante da submissão do ato à transcendentalidade da lei, na forma do juízo
interno. Tendo em vista a divisão subjetiva implicada no conceito de inconsciente, para Lacan a
enunciação da lei viria do Outro, isto é, do inconsciente colocado como outro. Neste sentido, a
estrutura triádica comum aos romances sadianos seria revelador por colocar de modo explícito a
divisão subjetiva negada em Kant. Em Filosofia na alcova (s.d.), por exemplo, Madame de Sait-
Ange representa e enuncia a Lei; Eugénie, enquanto vítima a ser assujeitada à Lei, é o eu
patológico, submetido às identificações e às dinâmicas próprias do mundo empírico; e
Dolmancé é o agente executor da Lei, apático ao mundo patológico, dominado pela vontade
compreendida como Logos puro. Seus atos não respondem ao prazer, mas ao amor à Lei.
Dolmancé, em sua “feliz apatia” (HORKHEIMER e ADORNO, 1991) responde como um
instrumento do Gozo do Outro da Lei (LACAN, 1989; SAFATLE, 2003).
Na condição de instrumentos do gozo do Outro que enuncia o dever de consumir
encontramo-nos destituídos de subjetividade, reduzidos a meios e afastados da possibilidade do
prazer egóico, ou seja, do prazer mediado. Claro está que não pretendemos utilizar dos
elementos da teoria lacaniana para interpretar e explicar a sociedade de consumo. Nosso
objetivo é, ao contrário, tomar esta circunstância como um momento esclarecedor do
pensamento lacaniano, enquanto atualização histórica da estrutura subjetiva freudiana.
Compreendemos que, se Freud pôde teorizar a subjetividade do capitalismo liberal, Lacan

1240
parece apresentar características próprias da subjetividade possível no mundo administrado, isto
é, da “feliz apatia”.
Estas características saltam aos olhos quando buscamos a totalidade no particular
formulado a partir da teorização lacaniana. Neste percurso, trata-se, antes, de pensar o tempo no
objeto, mais do que pensar o objeto no tempo. Ou noutros termos:

História e temporalidade não são, portanto, negadas, mas se


encontram, por assim dizer, concentradas no objeto: relação intensiva
do objeto com o tempo, do tempo no objeto, e não extensiva do objeto
no tempo, colocado como por acidente num desenrolar histórico
heterogêneo à sua constituição. (GAGNEBIN, 1999, p. 11)

Nossa compreensão do conceito lacaniano de gozo, neste contexto, não tem pretensões
clínicas, mas o intuito crítico de esclarecer as mediações objetivas das transformações subjetivas
que se dão na passagem do particular resultante da teoria freudiana para o particular concebido
na teoria lacaniana. A transformação principal diz respeito à passagem do gozo de suspensão
temporária do superego, como em geral aparece no pensamento freudiano, a instrumento do
próprio superego, como é colocado na teoria lacaniana. O que antes significava um momento de
exceção torna-se a regra, o que corrobora a afirmação de Horkheimer e Adorno (1991, p. 111)
de que os vícios privados são em Sade a historiografia antecipada das virtudes públicas da era
totalitária.
Se houve um tempo em que as paixões tiveram que ser excluídas, dominadas ou
controladas, o que marcou de modo inegável a dimensão da contradição entre indivíduo e
sociedade, em nossos dias encontramos as paixões desencantadas e, de modo operacional,
colocadas a serviço da sociedade que ameaçavam. Entre indivíduo e sociedade, neste contexto,
paira uma ilusória reconciliação que só se sustenta sobre o sacrifício do indivíduo e a
deformação de sua subjetividade.
A indústria cultural se caracteriza, assim, sob a perspectiva da subjetividade do receptor,
como o processo de manipulação e operacionalização das paixões desencantadas, o que acentua
seu caráter industrial para além da produção de bens culturais, atingindo também a profundidade
(agora não mais profunda) da vida pulsional do indivíduo. Deste modo, se o produto da TV,
conforme nos aponta Maia (2002, p.117), é a audiência e não os programas, então sua matéria
prima é a satisfação alienada, que é manufaturada e transfigurada segundo os interesses dos
consumidores reais das empresas emissoras dos sinais de televisão, isto é, os anunciantes. Cabe
a uma teoria crítica investigar a industrialização das pulsões do particular e, neste sentido, faz-se

1241
necessária a aproximação com a psicanálise. Sugerimos aqui, por se tratar de satisfação
alienada, que esta aproximação seja feita com o conceito de gozo de Lacan.
Para que haja prazer, é necessário entregar-se em certa medida às satisfações prometidas
pelo mundo empírico, alienando o desejo na lógica narcísica do imaginário. A efetivação do
prazer precisa do ego e do retorno ao patológico. O gozo, por sua vez, ao implicar a
transcendência de ambos, ego e mundo empírico, representa uma satisfação para além do prazer,
isto é, a ação por amor à lei, à forma da lei, que por aliar-se à dominação do indivíduo, constitui
uma satisfação repressiva. Nas palavras de Horkheimer e Adorno (1991, p.100): “A
formalização da razão é a mera expressão intelectual do modo de produção maquinal. O meio é
fetichizado: ele absorve o prazer.”
Podemos perceber nas diferenças entre prazer e gozo o quanto que o primeiro cede à
dominação por sua particularização, plasticidade e imediaticidade enquanto que o segundo alia-
se à falsa possibilidade de reconciliação com o todo através de imperativos universalizados que
escondem interesses particulares da classe dominadora. Sob estes dois pólos opera a indústria
cultural, ora sugerindo modelos egóicos de satisfação imediata e alienada, ora atravessando
mensagens na forma de imperativos morais universalizados. Fica claro que falta à dimensão das
satisfações subjetivas uma compreensão política, e isto a psicanálise não pode dar.
Compreender a história do homem como a história de sua repressão, como propõe
Marcuse (s.d.), nos leva a sustentar o alívio do sofrimento como o telos da sociedade, como
propõe Adorno (1992). Na raiz desses dois princípios podemos encontrar a negação e a
dominação do corpo e das paixões como meios de atingir o controle do particular em sua
profundidade subjetiva. Compreendida de modo materialista e associada ao corpo, a pulsão
adquire, entre os principais autores da teoria crítica, um valor crítico e histórico, por remeter
àquilo que do homem foi negado para que a civilização pudesse surgir e se consolidar, mas cuja
promessa de satisfação não foi cumprida por força de uma opressão cada vez mais absurda e
desnecessária tendo em vista o avanço tecnológico alcançado pela produção industrial. Aliar-se
às pulsões, contra a negação e a mutilação cotidianas do corpo, é uma conseqüência ética de tais
considerações. A fruição e o prazer, politicamente compreendidos, passam a ser a memória
daquilo que é negado e que deveria orientar o esclarecimento. Porém, não se trata da fruição e
do prazer imediatos, movidos pela necessidade higiênica da catarse e do desafogo como meio
apático de adaptação mimética à realidade totalitária. Trata-se, sim, da fruição e do prazer como
a possibilidade do reencontro com o que é negado, sem submetê-lo ao peso da identificação ao
existente. Esta é uma possibilidade de fruição e de prazer vinculada à experiência estética,
distante, portanto, da imitação compulsiva característica da indústria cultural e reveladora de
indivíduos subjetivamente esvaziados que buscam no que lhes é oferecido pronto e facilitado a

1242
identificação narcísica com objetos manipulados ou a submissão passiva a falsos imperativos.
Ao buscar no prazer com o mundo empírico uma substância para o ego e na transcendência do
gozo um sentido para a vida, o indivíduo reproduz um mundo em que o prazer negado se tornou
possível às custas de seu desencantamento e em que as tensões entre particular e todo foram
superadas às custas do sacrifício do particular.
O gozo e o prazer compulsivos encontrados no consumismo, devem, no entanto, ser
compreendidos como defesa do particular diante do encontro insuportável com sua realidade
material, isto é, a reificação e a mutilação cotidianas. A identificação com o instrumento de
gozo do Outro ou a busca desesperada de substância egóica pelas vias narcísicas da indústria
cultural não devem ser tomadas como decorrentes de um “vazio existencial” próprio da vida
contemporânea. O “vazio” é apenas a dimensão imaginária, particularizada, que pela
sedimentação psicológica do sofrimento cotidiano impede ao indivíduo a percepção da
materialidade da dominação no controle, na negação e na dominação cotidiana de seu corpo e de
suas pulsões. Se o vazio é aquilo que a civilização devolve aos indivíduos em troca de seu
sacrifício, é na dor provocada pelo sacrifício, no entanto, que devemos buscar os motivos
materiais das defesas e resistências dos indivíduos e a compreensão de suas formas e conteúdos.
Neste sentido, podemos supor que as energias utilizadas pelos indivíduos para negarem sua dor
talvez sejam as mesmas necessárias para transformar as condições que a produzem (ADORNO
e SIMPSON, 1994, p.146).
De modo engenhoso e perverso, a dominação parece ter transformado seus efeitos na
fonte de sua manutenção. Não à toa, o medo precisa ser sempre reposto e alimentado: o medo de
perder o emprego, o medo de não cumprir as metas, o medo de sair de casa, o medo do outro, o
medo de si mesmo, o medo do terrorista e do bandido, o medo do exército e da polícia, o medo
de acabar inteiramente integrado e o medo de ficar à margem. As cicatrizes deixadas pelo medo
precisam estar sempre à mostra para que o indivíduo se ocupe, constantemente, em recobri-las.
Nem tanto feridas abertas para que o indivíduo morra, nem tanto “dodói sarado” para que o
indivíduo viva: a cicatriz é a dor calculada e de efeito progressivo, pois em pele endurecida
pode-se bater mais forte. A cicatriz, enquanto marca da dor, é a memória da dor, e o indivíduo
que esconde suas cicatrizes não o faz somente para protegê-las, mas para tentar esquecê-las. O
organismo cicatrizado segue em frente, mas temeroso, porque já sabe identificar o perigo e não
se arrisca mais diante dele: esconde-se ou fica paralisado. A paralisia provocada pelo medo é a
mesma do status quo. Vivemos constantemente em calculados estados de sítio que não são
meramente artificiais, mas bastante reais se considerarmos a opressão do todo e a impotência do
particular. Em sua prisão monadológica o indivíduo reproduz as condições da sociedade
totalitária em que vive. Diante do medo os indivíduos correm para as suas casas e não para as

1243
ruas. O isolamento e a solidão provocados pelo medo e pela pele endurecida impedem a
identificação com o outro. Os bate-papos à distância e a comunicação por e-mail talvez ganhem
sentido por oferecer uma forma de relação em que o olhar e quaisquer outras mediações
corporais podem ser evitados, em que o anonimato pode estar garantido, em que a identificação
e o rompimento da proteção do isolamento e da solidão não são necessários. O corpo, quanto
mais negado, mais aparece como aquele que conta verdades que devem ser evitadas; é
necessário esconder o corpo, modificá-lo, moldá-lo, transformar o sinal denunciante da fraqueza
seja ele a ruga, a barriga, a voz, o olhar, a cor, o cheiro. Os contatos sem corpo dificultam a
identificação e a ruptura do isolamento protetor.
O medo das relações e o recolhimento decorrente parecem ter gerado novas formas de
expressões narcísicas, como as pessoas que vivem sozinhas e que expõem publicamente, através
de webcams, suas monótonas existências privadas. Como contrapartida, as oportunidades de
invadir as mônadas, transpor suas barreiras, sustentam um gozo vouyerista sem precedentes: o
outro se tornou um completo estranho a ser desvendado, mesmo que seja, ilusoriamente, pelo
acompanhamento cotidiano de seus monótonos afazeres domésticos. A bigbrotherização da vida
contemporânea precisa ser pensada também como efeito do recolhimento monadológico dos
indivíduos e a partir da necessidade do contato sem a entrega da identificação: o isolamento
maior não está naquele que fica sob as câmeras, mas naquele que o assiste. O temor das novas
relações e a desconfiança das relações mais antigas traduzem sempre o risco de subjugar ou de
ser subjugado. Em nossa sociedade o abandono, a traição, o esquecimento, são sempre
iminências das relações cotidianas, por mais antigas e duradouras que sejam. Ninguém mais
consegue escapar plenamente de descontar nos mais fracos, mesmo que sejam os filhos, ao
chegar em casa, a opressão que sofreu ao longo do dia: seja através da irritação e da bronca
gratuita, seja pelo isolamento defensivo ou pelo atendimento excessivo e compensatório de suas
demandas. A criança, mesmo com sua ingenuidade, muitas vezes percebe a agressão que está
por trás da sufocante atenção. Passamos adiante a opressão que sofremos, seja na relação com
os filhos, com os subordinados, com os excluídos. E fechamos nossos ouvidos ao choro do
outro, pois senão, corremos o risco de nos identificarmos e, amolecidos, tornar-se-ia
insuportável a opressão que pesa sobre nós.
Por vezes, as angústias e sofrimentos vêm à tona, mas são prontamente desviados de
suas origens objetivas e cristalizados como deficiências internas ou problemas de adaptação.
Neste sentido:

O caráter particular do sofrimento de um indivíduo não justifica [...]


a desresponsabilização das condições que lhe são exteriores, e o
"sofrimento psíquico" não se reduz apenas ao efeito de um conflito

1244
no âmbito mais próprio e independente do sujeito, mas revela a
própria falência e impossibilidade deste âmbito por fatores não
meramente psíquicos. Antes de se reservar ao sujeito, o sofrimento
psíquico aponta para o vazio que há no lugar deste, detrás da
máscara da "frustração", que ao reduzir ao particular a origem de
suas desgraças, perdoa a sociedade e lhe dá a ilusão de ser
naturalmente o senhor de seu destino. Numa crítica aos revisionistas
da psicanálise, Adorno desmonta o conceito de "sentimento de
impotência", não como uma irracionalidade do eu, mas como a
sedimentação psicológica defensiva da experiência concreta de
impotência do indivíduo diante das forças da totalidade, de tal forma
que ao interiorizar sua experiência e transformá-la em "sentimento",
este possa ser abordado como irracional e possa ser recalcada
qualquer reflexão que vá além deste estado "psicológico". A
"psicologização" do sofrimento peca contra a sociedade, pela
ideologização de seu efeito mais atual, e peca contra o indivíduo,
por servir de apoio à racionalização de seu sentimento mais concreto
(RAMOS, 1997, p. 76).

Para a sociedade totalitária o emburrecimento do indivíduo provocado pelo medo e pela


psicologização do sofrimento precisa alcançar um nível em que ele não seja mais capaz de
identificar suas fontes objetivas. Ele deve estar sempre atento, pois o golpe pode vir de qualquer
lado. Não devem sobrar energias para refletir sobre a situação: é como nos videogames: “se
você parar para pensar você morre” (MOLA, inédito). Mas, em compensação, qualquer coisa
pode ser tomada como remédio: não se sabendo ao certo qual é o mal tudo pode ser considerado
como tentativa de alívio ou de cura: de florais a frases repetidas de livros de auto-ajuda. Diante
do desespero da doença e quando se nos diz que não há remédio, tomamos o remédio que
aparecer, do chá da benzedeira ao pó de não se sabe o quê. É deste modo que funciona o
consumismo, colocando-se e repetindo-se como remédio, sendo, porém, o veneno. E é neste
caráter defensivo que se pode vislumbrar o quão ilusório e desesperado é o prazer nele buscado.
O prazer como remédio torna-se meio e não fim, por isso, não pode mais ser prazer. Daí decorre
um sentimento de falsidade experimentado em toda satisfação prometida pela indústria cultural.
Num momento em que a ameaça social era objetivamente compreendida como tal, as
justificativas da produção pautavam-se no atendimento das necessidades do todo. A coerção e o
sacrifício do particular eram experimentados em sua realidade objetiva e a dominação se
apoiava ideologicamente atrás de uma promessa de fartura e de divisão dos bens produzidos.

1245
Hoje em dia, internalizada e experimentada na forma do superego, a ameaça perde seus vínculos
com a objetividade da qual se origina e, vivenciada subjetivamente, facilita a busca de soluções
e justificativas subjetivas. Ao invés de abolir a necessidade do pai e permitir aos homens a
experiência do desamparo, a sociedade de massas virou do avesso sua função: o pai proibitivo –
cujo modelo era dado pela religião – que impunha o sacrifício e prometia o gozo para outro
mundo (e ao fazer isso sustentava, de modo conformista, o princípio de realidade), transforma-
se no pai permissivo, que une sacrifício e gozo, dor e remédio, arrancados de sua origem
objetiva e, por isso, confundidos, sem que se possa saber, do sacrifício e do gozo, qual é a dor e
qual o remédio. Este pai contemporâneo não precisa mais agir dentro do princípio de realidade,
pois o conformismo foi estendido ao princípio do prazer:

No atual sistema, o mundo do sacrifício coincide com o da satisfação,


como também, cada vez mais, o sacrifício e a satisfação. O pai perde
pouco a pouco sua face de proibição moral - expressamente repressiva
- para vestir a nova máscara de regulador e conhecedor do gozo. O pai
da igreja não quer que se goze, o pai do consumo não deixa ninguém
parado; não é mais garantia de proteção, é garantia de satisfação; não
ameaça com o castigo, mas com o vazio. [...] Os shopping centeres
são os templos contemporâneos, onde a fruição, o desejo e a
compulsão, são paixões surdas a quaisquer argumentos racionais.
Comprar é um novo dogma que sustenta, pela satisfação infantilizada,
o comportamento econômico racional: não mais se trabalha só para
viver, mas para comprar, porque comprar, cada vez mais, é "viver".
(RAMOS, 2004, p.66)

Transformada em Lei a busca da satisfação subverte o princípio do prazer. Formalizado,


o prazer é desencantado e tomado como transcendência de si mesmo. Assimilado pela sociedade
opressiva e expropriado do particular o prazer torna-se gozo, administrado por um pai que
impõe a satisfação ao invés de proibi-la. Como Outro da Lei do gozo, este pai objetivamente
constituído e subjetivamente sedimentado, submete o particular ao sacrifício, mesmo que seja de
si próprio, em nome da satisfação a qualquer custo. A maior alienação subjetiva do mundo
administrado é aquela que impede diferenciar a dor da satisfação. Ao tomar a dor como
satisfação, o indivíduo cede, enquanto subjetividade plenamente adaptada ao mundo
administrado, enquanto “instrumento de gozo”, aderindo à “feliz apatia” necessária à
manutenção e ao desenvolvimento do status quo. Se a um psicanalista lacaniano é possível
supor a identificação da indústria cultural com o Outro da Lei do Gozo, de uma teoria social

1246
crítica deve-se esperar que se compreenda o Outro da Lei do Gozo, tal como o estamos
descrevendo em suas relações com o consumismo, como a histórica internalização da indústria
cultural transformada em segunda natureza através da sedimentação particular subjetivada.
Diante da profundidade da dominação subjetiva alcançada pela indústria cultural, é
importante considerar o papel histórico da arte e da experiência estética, uma vez que este papel
também remete, como já dissemos, à dinâmica pulsional do particular e uma vez que devemos
compreender a dimensão do gozo em sua própria dialética, ou seja, enquanto encantamento o
gozo responde como reconciliação e resistência, e não apenas como negação e sacrifício.

Enquanto possibilidade de encantamento, a arte se caracteriza como mimesis que tem


consciência de seus limites de aproximação do objeto. A experiência estética pode aproximar o
indivíduo do que é negado, sem negá-lo, mas também sem reproduzi-lo de maneira imediata.
Deste modo, compreendendo-se a partir da teoria das pulsões, enquanto à indústria cultural
cumpre a repressão direta e a falsa realização imediata da promessa de felicidade da civilização
frente à necessidade do sacrifício do indivíduo, à arte cabe ser a memória da promessa não
cumprida. Nisto reside, de um lado, a resistência da arte, e de outro, o opressivo conformismo
da indústria cultural.

O momento projetivo que se encontra na experiência estética é, em si mesmo, um


esforço reconciliatório; seu valor crítico precisa ser buscado na mutilação das pulsões que, se
por um lado, pode ser encontrada na história particular do artista – como muitas vezes, de modo
reducionista e ideológico, propõem as análises psicanalíticas da arte, incluindo as do próprio
Freud (FREITAS, 2006) –, por outro denuncia a opressão cotidiana quando a objetividade da
obra (o processo histórico que ela concentra) e não só a subjetividade do artista, é considerada.
Ao tirar-se do momento projetivo sua base pulsional, perde-se um componente crítico
materialista que resulta da tensão entre particular e todo, isto é, da histórica negação e
dominação das paixões (por meio das vozes corporais – pulsões). Neste caso a obra se torna
uma resposta imediata do todo e a tensão e a denúncia possíveis são compreendidas como o
espelho das contradições das forças de produção ou como transitório desequilíbrio funcional de
uma totalidade naturalizada. Nessas duas vertentes a ausência da mediação do particular impede
que se compreenda a profundidade da tensão e da denúncia presentes na arte e, por
conseqüência, a profundidade da opressão do particular. Por outro lado, a hipervalorização do
movimento projetivo transforma a obra numa resposta imediata do particular, seu reflexo, e a
tensão e a denúncia ficam escondidas atrás dos caprichos da neurose.

Se a experiência estética puder ser considerada um esforço reconciliatório, a arte pode


ser, num mudo desencantado, uma possibilidade da resistência pelo encantamento. Num mundo

1247
totalmente desencantado a imaginação e a fantasia não são possíveis ou não passam de mentiras
e idéias falsas, pura perda de tempo. Para haver imaginação é preciso que haja encantamento.
Ninguém, realmente em pleno desencanto, é capaz de investir tempo e energia em devaneios,
sonhos e fantasias. No mundo totalmente desencantado todas as coisas (incluindo as pessoas)
não passam de massa e energia organizadas por leis universais (naturais ou naturalizadas). Mas
isso não quer dizer que não haja encanto: o encantamento é deslocado para o mero fazer; os
meios, a engrenagem, o sistema, a forma, o ato racionalizado, o cálculo, todas as possibilidades
da razão formalizada e fetichizada parecem absorver o encantamento – e neste caso preferimos
chamar de gozo – que a própria racionalização retirou do mundo. No entanto, é necessário que o
mundo recupere algum encantamento para que a poesia seja possível e faça a crítica e a
resistência à ciência absoluta. E para haver encantamento é preciso que o ego se deixe perder na
experiência imediata com o objeto, sem perdê-lo submetido aos meios racionalizados ou
esvaziado em sua própria formalização. A arte possibilita o contato mimético com o não-
idêntico; permite o encontro com aquilo que do objeto é para além de suas identificações. A arte
permite separar o encantamento da satisfação facilitada: no encantamento, o objeto aparece
como um fim em si mesmo, possui uma densidade que, embora carregada de magia, permite
alguma alteridade; na satisfação facilitada, ele é reduzido a meio, não passa de um recurso
operacional formalizado, não tem densidade nem peso; desencantado, é sempre o mesmo apoio
à repetição narcísica. Na arte o objeto é efêmero, mas remete à rememoração de uma grandeza
negada e de uma eternidade não cumprida; na satisfação facilitada o objeto é fungível, mas age
como o mofo sobre a memória e como cosmético sobre a velhice e a decadência da ideologia.

Neste sentido a arte não é só projeção, mas também mimesis. Não se trata apenas do
encontrar-se no objeto, como compreende a psicanálise, mas de encontrar o objeto para além de
suas identificações. Resumidamente, como dissemos em outro trabalho (RAMOS, 2004, p.209):

Se entregar-se momentaneamente ao encantamento pode ser um


sacrifício do eu, e se este sacrifício permitir certa consciência da
natureza negada (isto é, sacrificada por sua vez), a dialética que este
processo implica, contrária à autoconservação burguesa, pode levar o
homem não a um reencantamento mítico, mas à limitação da razão,
pelo reconhecimento de seus aspectos dominadores e pelo resgate dos
elementos dominados. [...] De outro modo, aliado à sacralização do eu
– abstrato, lógico e vazio – e não ao seu momentâneo auto-abandono,
o encantamento inverte sua dialética, tornando-se aquilo que
estivemos chamando de gozo: o encantamento desencantado.

1248
Revertido em gozo, o sacrifício do ego implicado no encantamento converte-se em
auto-entrega à razão formalizada; na impossibilidade da experiência de um ego autônomo, a
auto-conservação burguesa promove a identificação imediata do particular ao sistema, no qual o
ego, formalizado e negado em sua natureza, só pode aparecer sob a forma de instrumento. No
encantamento há ainda certa ruptura da existência monadológica imposta ao indivíduo; no gozo,
apesar do apagamento do ego como mediação, a mônada é cristalizada: o indivíduo perde a
possibilidade de comunicar-se com o outro e transforma a angústia de sua solidão em
necessidade de pertencer ao sistema. Assimilado racionalmente ao sistema o indivíduo adquire o
status de unidade formal: ganha uma existência lógica, mas perde a singularidade. O “vazio
existencial” de nossos dias é fruto da identificação com o objeto matemático. A ânsia por
marcar o corpo a todo o custo, cortá-lo, furá-lo, sangrá-lo, rasgá-lo nas auto-mutilações, bem
como o seu desaparecimento na anorexia, são sintomas que merecem ser pensados à luz desta
identificação com objetos definidos por sua essência formal, sem aparência necessária. Se o
encantamento permite a memória do que deveria orientar o esclarecimento, o gozo submete o
próprio esclarecimento à natureza por ele superada:

A autoconservação do sistema, dada pela autonomização da mediação


formalizada própria da racionalidade tecnológica, não é somente a
expressão intelectual do modo de produção maquinal, é também a
prótese mais artificial e vazia da natureza. No sistema, tanto quanto na
natureza, o indivíduo deixa-se perder. Ao sistema ele se entrega como
desejaria fazê-lo à natureza, com o mesmo gozo que seria necessário
para isso, mas o faz como quem vence a natureza, inconsciente de ter
sido vencido por ela. O sistema é a expressão intelectual contaminada
pela vingança da natureza dominada e diante dele o homem tem as
mesmas reações das quais foge com todo terror: entrega-se
supersticiosamente, perde-se em gozo, sacraliza, demoniza, fetichiza
etc. (RAMOS, 2004, p. 210)

“Eu era um funcionário exemplar” era a resposta comum dos nazistas quando
questionados sobre a barbárie que sustentaram. Numa sociedade em que os indivíduos se tornam
instrumentos do sistema, cabe à indústria cultural a administração das satisfações autorizadas.
Ela é a voz que dita as regras e as derruba segundo a lógica da produção capitalista: “seja um
consumidor exemplar”. Segundo Marcuse (1997), no mundo atual, a fruição só é possível se o
objeto (o que inclui o homem) for tomado em sua aparência. Qualquer relação que ultrapasse a

1249
superfície do objeto depara-se com sua promessa, isto é, com aquilo que poderia ser, mas não é.
A indústria cultural não pode apresentar seus objetos para além dessa aparência. Tudo o que
produz deve estar, de certo modo, previamente estabelecido, deve ser esperado, reafirmando a
experiência prévia, consolidando as percepções filtradas pelo sistema. A indústria cultural
submete a dinâmica pulsional à mimese do sistema:

[...] na era das grandes corporações e das guerras mundiais, a


mediação do processo social através das inúmeras mônadas mostra-se
retrógrada. Os sujeitos da economia pulsional são expropriados
psicologicamente e essa economia é gerida mais racionalmente pela
própria sociedade. A decisão que o indivíduo deve tomar em cada
situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna da
consciência moral, da autoconservação e das pulsões. Para as pessoas
na esfera profissional, as decisões são tomadas pela hierarquia que vai
das associações até a administração nacional; na esfera privada, pelo
esquema da cultura de massa, que desapropria seus consumidores
forçados de seus últimos impulsos internos (HORKHEIMER E
ADORNO, 1991, p.190).

O fato da indústria cultural não poder ultrapassar a aparência não a impede de assimilar
o choque que, segundo Benjamin (apud MAIA, 2002, p. 71):

[...] correspondente ao movimento intenso das grandes cidades, das


multidões, das imagens que se sucedem rapidamente no cinema, da
existência cada vez maior de aparatos que, com um movimento dos
dedos desencadeiam uma série complexa de movimentos imediatos e
principalmente devido ao fato de que os homens foram desapropriados
do tempo e da própria experiência pela produção industrial em série e
pelo fetichismo das mercadorias.

Assim, o mundo contemporâneo exige cada vez mais da consciência condições para
assimilar o choque à experiência cotidiana e, para tanto, a indústria cultural assimilou o choque,
no ritmo das imagens, do corte das cenas, da velocidade das falas. O ritmo de video clip da vida
contemporânea impede a percepção e a compreensão paciente e reflexiva do todo, o que
caracterizaria a experiência particular e mediada. Ao contrário, o indivíduo é submetido ao

1250
esforço de absorção de fragmentos, estímulos desconexos e sem sentido: “quanto maior for o
êxito com que ele (o consciente) operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência” (BENJAMIN, apud MAIA,
2002, p.71). Neste sentido vale a pena citar Lauro César Muniz, autor de novelas da Rede
Globo:

Agora o telespectador tornou-se impaciente, parece exigir uma


dramaturgia que o estimule permanentemente com golpes fortes.
Então, a qualidade, a introspecção das personagens, a idéia, foi
substituída por lances dramáticos e melodramáticos (MUNIZ, apud
MAIA, 2002, p.163).

Submetido ao fluxo dos choques, o indivíduo é forçado a manter toda a sua atenção aos
estímulos, reduzindo-se a consciência ao sistema perceptivo; sem ter mais o relaxamento e o
desprendimento necessários ao trato dos estímulos a compreensão da realidade não consegue
mais ultrapassar a superfície e o instantâneo da captação dos mesmos. Sem poder vincular-se à
experiência, a velocidade dos estímulos só possibilita o consumo imediato dos mesmos: não há
mais tempo para a mediação da memória e da tradição, o estímulo fica imediatamente velho
após sua apreensão instantânea; a lembrança e as relações que permite não é cultura, apenas
informação. A organização do mundo se reduz ao processo superficial e limitado da ação
perceptiva e se fragiliza, assim, às imposições de modelos administrados. Além disso, a
violência do fluxo de choques de estímulos impede ao ego a realização de suas funções
mediadoras. Como resultado, resta ao particular a mimese irrefletida do todo e a ansiedade
neurótica diante da realidade que invade de modo traumático um psiquismo com suas funções
protetoras impedidas ou reduzidas: burrice e medo.
Este conjunto de fatores talvez explique um fenômeno observado e comentado entre
docentes de diversas Universidades acerca de alunos que lêem, mas não compreendem um texto
acadêmico. A organização do pensamento não parece dar-se a partir da compreensão e reflexão
do texto, mas nos moldes de uma tentativa de articular conceitos e palavras como se fossem
estímulos fragmentados. Lê-se superficialmente: captação perceptiva e consciência imediata,
sem o pensamento reflexivo e a assimilação à experiência. Esta leitura, que não consegue entrar
no texto, parece decodificá-lo a partir de palavras-chaves extraídas do contexto, como na
montagem de anúncios publicitários. Isto resulta em outro texto na grande maioria das vezes
distante dos sentidos originais propostos pelos autores. Supomos que este outro texto, produzido
por esta leitura operacional e codificada, possua uma lógica interna cuja compreensão exigiria
que fosse investigada a partir da comparação com a lógica própria à produção de textos

1251
publicitários, nos quais certas palavras são tratadas como coisas e outras como coadjuvantes,
com significações fechadas e endurecidas ao esforço reflexivo e dialético; trata-se de ler as
palavras como coisas ou imagens e não como palavras; é a palavra que deve ser percebida mais
do que pensada, captada e não entendida; é o conceito reduzido e colado à sua função icônica. A
leitura regredida retira-se da esfera da semântica para localizar-se inteiramente no âmbito da
semiótica, dando já sinais de encaminhar-se à reflexologia; o entendimento e a construção de
significações cede à mera habilidade para o reconhecimento de palavras e para as associações
automáticas.
A aceleração da vida moderna e a redução da experiência à necessária e eficiente
captação e organização de estímulos, sem a qual o indivíduo capitula diante do ritmo que lhe é
imposto, promove a operacionalização do mundo, de seus objetos e de si mesmo. A
racionalidade tecnológica emerge como a única capaz de articular e dar coerência às coisas
reduzidas às suas funções. Os trancos, solavancos e ruídos, a bateção de latas e o estrondo de
metais, o corte, o furo, todos os movimentos violentos das grandes máquinas das esteiras
industriais são tolerados se as funções de cada uma de suas peças estão sendo articuladamente
cumpridas. Assim também opera a consciência diante dos choques cotidianos. Para colaborar
com o treino das consciências, a indústria cultural, da música ao cinema, da organização dos
espaços à produção e destituição de ídolos, cada vez mais se assemelha aos ritmos, aos choques,
aos solavancos da maquinaria. A captação e organização do mundo pela consciência se
assemelham ao gesto fabril: é o tempo do estímulo e da informação que dita o ritmo da
percepção e do pensamento; o tempo da satisfação possível é, do mesmo modo, submetido ao
ritmo do consumo. O desejo, enquanto tal, precisa da história do particular e de suas mediações
com a cultura para preencher-se, expressar-se e realizar-se. O encantamento não existe sem o
tempo da rememoração.
O gozo, por usa vez, reduzido ao gesto, ao ato, consome-se instantaneamente,
formalmente, como energia calculada que se desprende do sistema. A satisfação imediata só
pode se dar no âmbito reduzido dos órgãos dos sentidos. Esta regressão abre espaços novos à
indústria cultural e a todas as manipulações do prazer virtual: não é necessário mais estar com
uma mulher, goza-se com a audição de seus gemidos ou com a visão de sua imagem; não é
necessário mais assistir TV, goza-se com o ver e com o ouvir, cada vez menos importando o
conteúdo do que se vê e ouve. Há pessoas que, sozinhas, precisam da televisão ligada para se
sentirem acompanhadas; outras não conseguem dormir sem estar na frente de uma TV ligada; é
o estímulo que conta, como se houvesse uma dependência orgânica, um vício. Aqueles que
podem conseguem ter uma TV em cada cômodo da casa, cada familiar com sua TV, às vezes
ligadas num mesmo programa: difícil não remeter ao prazer masturbatório, solitário e a portas

1252
fechadas. Via de regra o vício de ficar à frente da TV pede outros prazeres automáticos e
repetitivos como o gesto de ficar pondo algo à boca. Anestesiados pela imagem e pelo som
somos capazes de comer pacotes inteiros de porcarias sem percebermos. São estímulos e gestos
ritualizados e fragmentários de satisfação instantânea.
Com o ego enfraquecido o indivíduo obtém satisfações próximas àquelas de seu
fragmentário auto-erotismo pré-narcísico. De modo perverso e polimorfo a busca do prazer
imediato dispensa a necessidade do outro e de si mesmo integrado. As fontes de estímulos
prazerosos agem em contato direto com o id, num fluxo cujo ritmo não pode dar tempo à
reflexão, ao afastamento, à integração egóica: se a máquina parar os indivíduos acordam; se
perder aceleração, descobrem que a satisfação é ilusória. Ao mesmo tempo, a entrada direta de
choques, sem a mediação protetora de um ego organizado, remete o indivíduo à compulsão à
repetição com o objetivo de tentar elaborar psiquicamente o estímulo que o invadiu sem
proteção. Repete-se a entrega aos choques também em busca da defesa possível.
Esta relação da indústria cultural com a satisfação imediata impõe o estudo não só dos
conteúdos veiculados, mas fundamentalmente da ação das próprias formas adotadas pelos seus
veículos sobre a dinâmica psíquica e pulsional de seus receptores. É neste caminho que temos
conduzido nossa pesquisa sobre comerciais de televisão dirigidos a crianças, primeiramente
buscando esclarecer os aspectos formais dos comerciais. Esperamos trazer à luz novos aspectos
para aprofundar a compreensão dos meios de dominação sobre a dinâmica pulsional do
particular. Nossa esperança, ainda possível, é a construção de categorias objetivas para a
mobilização refletida de alguma resistência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ADORNO, T. W.; SIMPSON, G. Sobre música popular. In: Theodor W. Adorno. São Paulo:
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FREITAS, N.A. de Algumas relações entre arte e psicanálise a partir da teoria crítica.
2006. Dissertação (Mestrado)- Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006.
GAGNEBIN, J. M. História e Narração em Walter Benjamin. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1999.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
LACAN, J. Kant con Sade. In: Escritos 2. México: Ed. Siglo XXI, 1989, p. 744-70.

1253
MAIA, A. F. Televisão e barbárie: um estudo sobre a indústria cultural brasileira. 2002. Tese
(Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2002.
MARCUSE, H. Eros e civilização: uma introdução filosófica ao pensamento de Freud: Rio de
Janeiro: Editora Guanabara, 8a edição, s/d.
MARCUSE, H. Para a crítica do hedonismo. In: Cultura e sociedade. Vol.1. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997, p. 161-199.
MOLA, L. G. C. “Se você parar para pensar você morre.”: eficiência e pragmatismo na
prática de jogos de computador. Trabalho inédito.
RAMOS, C. A autodestruição da crítica e o gozo inconsciente na dialética do
esclarecimento: uma articulação entre os pensamentos de Adorno e Lacan. 1997. Dissertação
(Mestrado)- Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
RAMOS, C. A dominação do corpo no mundo administrado. São Paulo: Escuta/FAPESP,
2004.
SADE, D. A. F. A filosofia na alcova. São Paulo: Círculo do Livro, sem data.
SAFATLE, V. O ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento
lacaniano. In: SAFATLE, V. (org.) Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São
Paulo: UNESP, 2003, p. 189-232.

1254
Da Superprodução semiótica: caracterização e implicações estéticas

Fabio Akcelrud Durão


Teoria Literária – UNICAMP

Uma das armadilhas mais traiçoeiras de se estudar a indústria cultural, hoje, está na

facilidade de se adotar uma postura moralizante, na tendência quase natural a uma

condenação in toto, no impulso, advindo da visão crítica, para a lamentação a respeito do

valor ou da qualidade dos produtos culturais de massa. Em oposição a isto, é sempre bom

lembrar que o aspecto determinante no funcionamento da indústria cultural, sua força

motriz, não tem, a princípio, nada a ver com a qualidade ou mesmo a natureza das coisas,

porque esta força motriz é econômica: qualquer que seja o conteúdo a ser veiculado, o

importante, antes de qualquer coisa, é que se gere lucro, que se leve à acumulação de

capital. Para muitos críticos do conceito de indústria cultural, no entanto, esta lógica

implicaria uma natureza monolítica da mídia, que assim seriam dominados por uma

racionalidade malévola, maquiavélica, que faria dos consumidores meros fantoches em suas

garras manipuladoras. Tais críticos mencionam a pulverização dos gêneros e a abundância

de escolhas como fatos que desmentiriam uma pretensa homogeneidade no conceito de

Adorno. Puterman, por exemplo, argumenta que a “possibilidade real e atual que a

tecnologia apresenta de colocar à disposição do espectador quinhentos canais de tevê em

sua casa é muito mais um reflexo do processo de segmentação verificado na sociedade do

que uma imposição da indústria. [...] A criação de mercados e grupos consumidores do

maior número possível de manifestações culturais nos parece uma boa saída para a crise

que identificamos hoje em dia.” (1994, p. 113) A resposta a isso não é difícil, pois mesmo

1255
ignorando a supremacia absoluta real do mainstream neste caso, o fato de que existe muito

de semelhante nos quinhentos canais, o argumento a ser defendido é o de que a

multiplicidade, a diversidade, ou para usar um o conceito da moda, o de diferença –

nenhum deles é, em si, incompatível com a lógica do capitalismo.1 Isso não quer dizer, é

claro, que a indústria cultural possa produzir diferenças incessantemente; pelo contrário, há

uma tendência aqui para a uma dialética de pé quebrado envolvendo o par do mesmo versus

outro, uma dialética segundo a qual pode mesmo haver uma multiplicidade de gêneros e

uma grande variedade de produtos dentro de cada um deles, mas nunca a dissolução dos

gêneros sob a lógica formal de cada artefato, como acontece com aquilo a que chamaríamos

de arte em seu sentido enfático. Esta, com o desenvolvimento das vanguardas do início do

século XX, teria tornado os gêneros supérfluos na medida em que eles seriam absorvidos

pela lógica formal de cada obra. Para tomar dois exemplos extremos, o princípio de

expansão dos Cantos, de Ezra Pound, ou do Finnegans Wake, de James Joyce, traz para

dentro de sua imanência as convenções e os protocolos de leitura que antes pré-

determinavam os textos em gêneros.2

Seja como for, toda esta problemática situa-se no que seria um prisma qualitativo de

abordagem da indústria cultural, mesmo que um aspecto numérico esteja aí presente.

Gostaria, no entanto, de propor uma mudança provisória de enfoque, que se debruçasse,

não tanto sobre a questão do valor, quanto sobre a natureza quantitativa da experiência de

linguagem ocasionada pela indústria cultural. Pois suspeito que nesta virada – que coloca o

conteúdo propriamente dito dos produtos em segundo plano – é possível vislumbrar algo de

1
O Empire, de Hardt & Negri, contém observações persuasivas a respeito da adequação do múltiplo ao
capitalismo transnacional de hoje. Cf.p.137-156.
2
Essa dinâmica deve ser entendida no contexto mais amplo de racionalização da arte e sua conseqüente
desartificação, o que Adorno chamou de Entkunstung der Kunst.

1256
novo na já velha lógica da indústria cultural. Diga-se de passagem, esta guinada, por mais

iconoclasta que possa parecer, já era prenunciada pela dificuldade de bons teóricos em lidar

com o problema do valor dos artefatos culturais. Steinert (2003), por exemplo, vê-se

obrigado a repetidas vezes a enfatizar que a distinção entre “cultura erudita” e “cultura

popular” é ela mesma um fruto da indústria cultural, e que o crítico deve sempre estar

aberto a todas as práticas significantes sociais, independentemente de sua origem. Seria o

caso de se perguntar, em outras palavras, o que acontece, quais são os pressupostos, bem

como as conseqüências, do domínio absoluto da produção capitalista sobre o âmbito da

linguagem, que está se dando agora. Fredric Jameson (1991), em uma hipótese de trabalho

já bem conhecida, argumentou que, nas últimas décadas, o âmbito da cultura teria sido

completamente absorvido pela lógica do mercado, e que um cultural turn teria colocado a

cultura no centro da lógica de acumulação do capitalismo atual, que ele chama de pós-

moderno. Esta idéia merece ser levada adiante, mas com uma mudança de objeto: não mais

a cultura e os artefatos ou manifestações que necessariamente a compõem, mas a própria

linguagem, sua natureza e forma de operação, quando completamente submetida à lógica de

acumulação de capital.

Para tanto, o primeiro passo necessário não é mais do que uma mera constatação,

mas que freqüentemente não recebe o devido apreço, saber, o fato de que os contínuos

avanços das tecnologias midiáticas permitiram que nosso universo se tornasse, como nunca

antes, saturado de linguagem, permeado de significação. Basta apenas um pouco de

desprendimento para que se note, em qualquer grande cidade do mundo, essa proliferação

de signos e códigos; e basta apenas um pouco de memória para que se dê conta da

velocidade espantosa de seu avanço. Há muito pouco tempo atrás não havia filmes em

ônibus, aparelhos de televisão em restaurantes, comerciais nas camisas de jogadores de

1257
futebol, outdoors margeando as estradas, celulares tocando nos concertos, teatros ou

congressos. Com efeito, a superprodução semiótica – eis aqui o conceito que gostaria de

sugerir – é um fenômeno que adquiriu tal amplitude, que faz em muito lembrar a noção de

Marcel Mauss (2000) a respeito do dom, a de um fato social total, algo que engloba uma

formação social como todo e que, no caso que nos interessa, tem a sua negação, a fuga de

tanta linguagem, exatamente como isso, como uma negação, que carrega em si aquilo que

nega.

O pressuposto principal subjacente à superprodução semiótica refere-se à

necessidade estrutural do capitalismo de escoar sua produção de mercadorias,

primeiramente, em vista da competição entre empresas (cf. Türcke, 2003, p. 18-26). Isto, de

certa forma, contradiz um juízo que Adorno compartilhava com outros membros do

Instituto de Pesquisa Social a respeito do processo de monopolização do capitalismo,

segundo o qual a competição intercapitalista teria se convertido em uma casca ideológica,

sem fundamentação na realidade. O desenvolvimento recente do capitalismo mostrou,

entretanto, que a competição não pode ser completamente abolida, que mesmo na fase

monopolista do capitalismo um mínimo de concorrência será sempre necessário, ainda, é

claro, que esta de forma alguma corresponda aos efeitos benéficos propagados pelos

defensores do sistema. Mas para além disso, a superprodução semiótica tem ainda uma

outra razão de ser, pois dela depende a continuidade de uma injunção constante ao

consumo; ela corresponde ao resultado do esforço de se promover uma aprendizagem,

constante e difícil, um processo de formação de sujeitos-consumidores. Mesmo que não

houvesse concorrência intercapitalista, existiria o imperativo de se impor aos indivíduos a

disciplina do consumo, o que na tradição marxista ficou conhecido como a produção das

necessidades. É como se os produtos estivessem constantemente competindo com a

1258
possibilidade de sua própria ausência, muitas vezes mais racional do que eles próprios. E

isso porque se precisa de muita energia, vinda tanto de fora quanto de dentro do próprio

sujeito, para a perpetuação da dominação da qual a superprodução semiótica é tanto efeito

quanto resultado.

A palavra “superprodução” não é usada aqui ao acaso; ela representa a transposição,

para a esfera da linguagem, de um conceito pertencente à economia. E vem deste

deslocamento a pergunta: se é a própria linguagem que está agora submetida à lógica de

acumulação do capital, o que acontece com as crises de superprodução, que são as crises

por excelência do capitalismo? Quais as especificidades destas crises quando o produto a

ser vendido é simbólico, ou seja, quando é dotado de uma natureza inerentemente ambígua,

sendo constituído por algo palpável (o significante), e algo inalienavelmente imaterial (o

significado)? E quais os efeitos da fusão, no sujeito, entre meio e objeto, a linguagem como

o que veicula e aquilo que é veiculado? O que acontece quando se pensa no caráter

instaurador da significação dentro deste quadro teórico? E, por fim, como a arte relaciona-

se a este estado de coisas; quais as estratégias e procedimentos composicionais e

interpretativos que podem, dentro do âmbito da estética, fazer frente a um mundo

encharcado de linguagem? É uma avalanche de questões que, naturalmente, não podem ser

respondidas no espaço deste texto; o que pode ser tentado, ao invés disso, é tão-somente

colocar algumas balizas que limitem o problema em sua perspectiva mais ampla,

estabelecer alguns marcos deixem entrever os contornos mais gerais desta configuração sui

generis de linguagem. Gostaria, em primeiro lugar, de oferecer seis destas balizas

concernentes à superprodução semiótica, seis indagações inter-relacionadas, para em

seguida mencionar muito brevemente duas categorias estéticas que parecem adquirir uma

relevância especial neste estado de coisas.

1259
Primeira baliza: A superprodução semiótica promove uma histerização da linguagem. Ela

alça um aspecto lingüístico, o do imperativo, à posição de função lingüística predominante.

Já há algum tempo Louis Althusser (1992, 1995), em um texto bastante conhecido,

propunha a noção de interpelação como central no modo de funcionamento dos Aparelhos

Ideológicos do Estado. A teoria de Althusser está fora de moda, assim como o

estruturalismo com o qual estava associada. No entanto, o conceito de interpelação agora

merece ser expandido, para além de qualquer aparato institucional, podendo ser

equacionado com a própria natureza dominante da linguagem atual (cf. Durão 2006a).

Diga-se de passagem, há nisso uma idéia, em germe, a respeito da evolução lingüística,

segundo a qual o desenvolvimento da linguagem aparece como a reconfiguração de

diferentes potenciais; diferentemente da concepção estruturalista, de acordo com a qual

linguagem seria constante (e, conseqüentemente a-histórica), pode-se pensar aqui na

linguagem como sujeita a fatores externos, tanto se adequando quando reagindo a eles.

Segunda baliza: Isso traz conseqüências óbvias para a constituição da subjetividade, pois a

superprodução semiótica impõe-se, de uma forma ou de outra, ao sujeito. Talvez fosse

apropriado designar o imperativo básico da superprodução semiótica como uma injunção a

ser. Sem dúvida, a propaganda, o modo fundamental de comunicação neste estado de

coisas, produz carências ao dizer “determinado produto ‘x’ possui as características ‘y’ que

são desejáveis”, sugerindo assim que o ouvinte/espectador não as possui; mas o que ela tem

de traço mais básico, para além de qualquer conteúdo que possa veicular, é o “você” para o

qual ela está constantemente apontando. O ser, agora identificado com um “ter de ser”,

passa a constituir-se como um problema. Diga-se de passagem, o interesse recente da

1260
Teoria Literária por questões de identidade, um interesse muitas vezes exagerado, adquire

neste contexto uma justificativa possível, ainda que não suficiente.

Terceira baliza: Dada esta expansão do aspecto interpelativo da linguagem, é possível dizer

que a superprodução semiótica promove um adensamento do tecido social. Adorno

menciona repetidas vezes em seus escritos de sociologia (mas não apenas lá) a socialização

da sociedade (Vergesellschaftung der Gesellschaft), que ele via ocorrer por meio do

alastramento e da consolidação do princípio de troca. Ele resultava em uma

comensurabilidade entre as coisas, auxiliando, assim, o processo de abstração,

racionalização e desencantamento do mundo, além, é claro, de estar no cerne da Dialética

do Esclarecimento, na formação da subjetividade como interiorização do sacrifício. Ora, o

mesmo pode ser dito em referência à explosão contemporânea de linguagem, pois esta, a

linguagem, por mais que seja alienadora, por mais que não pertença ao sujeito, por mais

que envolva uma dialética da natureza (a qual veremos em breve), não deixa de ser algo

socialmente produzido e socialmente veiculado. Dizer que a linguagem é inerentemente

social é, sem dúvida, um truísmo; trata-se, aqui, no entanto, de expandir esta associação

para concluir que, dada a exacerbação do potencial interpelador, de um aumento do

volume, da massa de linguagem, segue-se uma intensificação da proximidade social, da

inter-relação entre tudo e todos.

Quarta baliza: A superprodução semiótica obriga que se repense a categoria fundamental da

falta. Em um pequeno texto, “Teses sobre a carência” [Bedürfnis], Adorno apresenta um

tratamento verdadeiramente dialético A carência não pode ser medida em termos absolutos,

mas tem sempre que ser relacionada ao grau de desenvolvimento das forças produtivas; ela

1261
não pode simplesmente ser equacionada ao biológico, mas deve ser considerada em sua

relação com a cultura (e.g. é possível morrer de fome tendo uma variedade de substâncias

orgânicas comestíveis à sua volta, como insetos, fezes e urina – o nojo é socio-cultural); a

distinção entre necessidades primárias e secundárias, fundamental para qualquer plataforma

de esquerda, também não pode ser fixada de forma abstrata e atemporal, mas deve ser

analisada levando em conta a totalidade social. Em relação a esta série de oposições –

progresso e persistência do arcaico, biologia e cultura, parte e todo – a superprodução

semiótica adiciona mais uma, flagrante, entre abundância e falta. Como a própria

linguagem constitui-se necessariamente por uma natureza material e imaterial, a sua

explosão leva, por um lado, a um estado de coisas no qual há uma abundância desmedida,

até mesmo inescapável. Ninguém é carente de mensagens; elas permeiam de tal forma o

ambiente social que mesmo a pessoa mais pobre, mais subalterna ou periférica, está

completamente exposta a elas, talvez até mais to que os outros (cf. Durão 2006).

Quinta baliza: A superposição semiótica tem como precondição, e produza como

conseqüência, uma modificação na concepção do espaço, uma vez que ele se converte no

suporte material necessário para a veiculação de mensagens. Como algo do qual se pode

apropriar, como algo que pode ser vendido e alugado, o espaço adquire uma autonomia

maior em relação ao sujeito, configurando como uma instância potencialmente antagônica a

ele. O que antes era uma categoria vazia torna-se um recurso a ser explorado. E como

recurso disponível, âmbito submetido à racionalidade do cálculo, o espaço integra a

natureza. Passa a fazer sentido defender uma ecologia do espaço. Diga-se de passagem, é

interessante observar a temporalidade reversa em jogo aqui, pois é somente após tornar-se

um elemento manipulável, um componente fundamental para a auto-reprodução do capital,

1262
que o espaço exibe plenamente a sua naturalidade. É algo como a Nachträglichkeit de

Freud, uma constituição intrínseca de um passado a partir de um desenvolvimento futuro.3

Sexta baliza: Tudo isso aponta para uma dialética da natureza presente no próprio

funcionamento da linguagem quando ela é submetida aos imperativos capitalistas de

acumulação. Se a semiose, o processo de formação de signos, envolve a utilização de

materiais concretos (o ar dos pulmões, a fumaça, o pigmento) para fins de linguagem; e se a

linguagem articulada é por definição humana, poderíamos pensar na semiose como fazendo

parte de um processo de humanização do homem em sua luta com o mundo natural. Ora,

não seria difícil imaginar, neste contexto, uma concordância com aquela lógica da Dialética

do Esclarecimento. A linguagem, então, reverteria em horror natural. Diga-se de passagem,

esta rearticulação da dialética do esclarecimento talvez fosse mais acessível hoje do que a

original, que se dá com a oposição entre razão e mito.4

II

Como o fenômeno lingüístico por excelência do capitalismo, a superprodução

semiótica possui implicações estéticas relevantes. Note-se bem, não é o caso que a arte

responda diretamente a este estado de coisas, ou pior, que ela seja um mero reflexo do grau

de desenvolvimento das forças produtivas, mesmo que a idéia de produção lingüística

esteja no centro da questão aqui. O procedimento mais interessante, ao invés disso, é

3
Também é interessante notar que esta disposição do espaço à significação confere um novo estatuto ao
desenho animado, pois é este o gênero no qual todo o espaço é significável. Desta forma, o desenho animado
transforma-se na manifestação mais representativa do capitalismo sob o imperativo da superprodução
semiótica.

1263
investigar a forma pela qual, a partir do próprio desenvolvimento interno à arte, surgem

conceitos, estratégias ou movimentos que podem ter algo a dizer sobre o desenvolvimento

da sociedade como um todo. Gostaria de oferecer duas categorias que penso ter uma

relevância especial em um contexto de superprodução semiótica. São duas modalidades de

funcionamento estético que adquirem uma relevância especial neste estado de coisas. Elas

possuem um funcionamento que pode ser visto como contraditório, mas ambas têm em

comum uma grande proximidade com a reflexão teórica. A primeira modalidade é a da

negatividade. À proliferação incontrolada da superprodução semiótica, a negatividade exibe

a recusa de sentido. Esta recusa, no entanto, não está, por assim dizer, na obra em si (o que

quer isso queira dizer); diferentemente do que muitas vezes se pensa, a negatividade, pelo

menos como é concebida aqui, não é sinônimo de hermetismo, obscuridade ou dificuldade.

Ela constitui-se, ao invés disso, por meio do processo de interpretação, pela desfeitura de

um sentido que é dado. Dado pela tradição de leituras de determinada obra, ou dado pelo

próprio sentido primeiro oferecido por ela. De uma forma ou de outra, trata-se de produzir

uma leitura que anule a positividade de um sentido existente, seja ele oriundo de um lugar

comum estético-teórico, seja ele aparentemente favorecido pelo próprio texto. Não importa,

assim, se um objeto artístico é fácil ou difícil, claro ou obscuro; pelo contrário, é muito

possível que uma obra simples, de sentido aparentemente óbvio, seja mais interessante para

análise do que uma complexa demais.

A outra modalidade de funcionamento estético não se refere à problematização do

sentido por meio da negação, sempre muito próxima do nada, mas pela indeterminação,

que, de acordo com seu próprio conceito, implica a existência de um resto, de um excesso,

4
Cf. o texto de Robert Hullot-Kentor neste volume sobre a dificuldade de se ter a experiência do conceito de
indústria cultural.

1264
irredutível à forma. Neste caso, confronta-se fogo com fogo: à proliferação contemporânea

de signos, a indeterminação apresenta uma abertura para o impensado em um ambiente

delimitado. Talvez o exemplo mais didático e extremo de indeterminação seja a peça

silenciosa de John Cage, o 4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos), durante a qual,

em seus três movimentos, nenhum som é produzido pelo instrumentista (para uma

discussão pormenorizada da obra cf. Durão 2005). Seja como for, também aqui a reflexão

encontra-se intimamente colada ao artefato artístico; sem ela, em primeiro lugar, uma peça

como o 4’33’’ permaneceria simplesmente flutuando no mundo das coisas; em segundo

lugar, cabe à crítica determinar aquilo que é relevante no gesto da indeterminação e aquilo

que simplesmente se perde. Trata-se de definir a própria existência do objeto como tal. Seja

como for, a negatividade e a indeterminação representam, assim, duas modalidades de

resistência estética, de forma alguma suficiente, ainda que necessária.

Referências bibliográficas
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----. “Thesen über Berdürfnis” in Sociologische Schriften I. Frankfurt a.M., 1979.
ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. W.J. Evangelista e M.L.V.
Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
----. Sur la reproduction. Paris: P.U.F. 1995.
BUTLER, J. The Psychic Life of Power. Stanford: Stanford U.P., 1997.
----. Kritik der ethischen Gewalt. Frankfurt a.M.: Suhkamp, 2003.
Durão, Fabio A. “Towards a model of inclusive exclusion: marginal subjectivation in Rio
de Janeiro” in A contracorriente vol.3, no. 2. 2006. [reimpresso em Afolabi, Niyi
(ed.) The Afro-Brazilian Mind. Trenton: The Africa World Press, 2006.]
----. “Contornos e potenciais do conceito de interpelação” in Stylus. 2006a.

1265
----. “Duas formas de se ouvir o silêncio: revisitando 4’ 33’’. ” Kriterion, Belo Horizonte,
v. XLVI, n. 112, 2005.
Hardt, Michael & Antonio Negri. Empire. Cambridge: Harvard U.P., 2000.
Jameson, Fredric. Postmodernism; or, the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke
U.P., 1991.
Mauss, Marcel. The Gift. New York: Norton, 2000. [1923-1924]
Puterman, Paulo. Indústria Cultural: a agonia de um conceito. São Paulo: Perspectiva,
1994.
Steinert, Heinz. Culture Industry. Cambridge: Polity Press, 2003.

1266
Resumo da proposta de palestra para a mesa “Industria Cultural, Literatura
e Educação”, coordenada pelo Prof. Dr. Renato Franco.

Adorno e Huxley no admirável mundo novo da indústria cultural

Jorge de Almeida

As idéias de Aldous Huxley sobre o sentido do entretenimento na sociedade


moderna tiveram profunda influência nas formulações de Theodor Adorno sobre a
indústria cultural. Com formações e pressupostos teóricos bastante diferentes, ambos
refletiram sobre o papel das novas tecnologias na redefinição do significado da
cultura e da educação. O confronto entre os dois autores pretende revelar o quanto
suas obras incorporam e iluminam, por ângulos diferentes, contradições
fundamentais da arte e da sociedade contemporâneas.

Jorge de Almeida é doutor em Filosofia e professor do Departamento de Teoria


Literária e Literatura Comparada da USP, tradutor de Adorno e crítico literário.
Autor de “Crítica dialética em Theodor Adorno. Música e verdade nos anos vinte”
(Ateliê, 2006).

Adorno e Huxley no admirável mundo novo da indústria cultural

Todo leitor interessado nas discussões a respeito da “indústria cultural” deve


se lembrar de uma interessante passagem do ensaio O fetichismo na música e a
regressão da audição, na qual, ao criticar a música de entretenimento e suas
conseqüências, Adorno escreve: “Aldous Huxley levantou em um de seus ensaios a
seguinte pergunta: quem ainda se diverte realmente hoje num lugar de diversão?”1.
Como de hábito, e no espírito do ensaio como forma, Adorno não fornece indicações
precisas de sua fonte, o que, se por um lado dificulta o acesso ao texto citado, por
outro recupera a questão em um novo contexto, preservando a sua originalidade e
alcance. O leitor insatisfeito, que resolvesse ir atrás do texto mencionado, enfrentaria
várias dificuldades, pois de 1920 até 1963, ano de sua morte, Aldous Huxley

1
Adorno, T.W. “O fetichismo na música e a regressão da audição”, em Os pensadores (vol. Escola
de Frankfurt). São Paulo, Abril, 1983, p.166.

1267
escreveu centenas de ensaios sobre os mais variados assuntos. Felizmente, a
publicação, entre 2000 e 2002, dos Complete Essays do autor, em seis volumes2,
tornou possível uma visão geral dessa importante produção ensaística, trazendo
novamente para o debate reflexões surpreendentemente argutas e instigantes sobre a
situação da arte e da cultura na sociedade de massas.
Já há algum tempo venho pesquisando as afinidades eletivas que aproximam
esses dois grandes ensaístas, menos com o propósito de estabelecer relações entre a
“obra filosófica” de Adorno e a “obra literária” de Huxley, do que o de buscar
compreender o quanto determinados problemas históricos se impunham, como
problemas teóricos, no ensaísmo crítico de autores tão fortemente marcados pela
reflexão sobre temas fundamentais do Modernismo e das Vanguardas3. Grandes
críticos, como Adorno, Lukács, Benjamin e o próprio Huxley, não são meros
“observadores” ou juízes da produção artística e da cultura de sua época; eles
também são delimitados, em seus pontos de vista e nos conceitos que criam ou
utilizam, pela história, ou seja, pela constelação de problemas que, em determinada
época, se impõem à reflexão, tanto dos escritores quanto dos filósofos.
Nesse sentido, para além da abordagem biográfica ou genealógica, o interesse
da aproximação entre Adorno e Huxley fica evidente já pelo muito que une os dois
autores, formados em tradições intelectuais tão diferentes: a atividade profissional
como crítico de música (Huxley, assim como Adorno, assinava colunas como crítico
de música em revistas especializadas por toda a década de 1920, acompanhando
com interesse o confronto entre progresso e reação no âmbito musical); a
desconfiança em relação aos propósitos da vanguarda mais radical, que gostaria de
dissolver na práxis vital os pressupostos contemplativos da experiência estética
clássica (tema fundamental do debate entre Adorno e Benjamin, do qual faz parte o
texto sobre o fetichismo na música); uma sensível autoconsciência do próprio papel

2
Editado e organizado por Robert S. Baker e James Sexton. Chicago, Ivan Dee, 2000-2002.
3
Tema também de minha tese de doutoramento, defendida em 2000 e publicada com o título
Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia, Ateliê, 2006.

1268
enquanto críticos e intelectuais (irônica ou trágica, conforme o contexto); a tentativa
de pensar as conseqüências políticas da nova sociedade de massas, marcada pelo
olhar atento ao fenômeno da mercantilização e estandardização da arte e da cultura;
e finalmente o exílio nos Estados Unidos, acompanhado da crítica ao potencial
totalitário presente na sociedade americana.
Sabemos, além disso, que Adorno era um atento leitor de Huxley, chegando a
recomendar vivamente a Horkheimer e Marcuse a leitura dos romances do escritor
inglês. Em 1942, o grupo do Instituto de Pesquisa Social, já no exílio americano,
dedicou um seminário à análise de Brave New World (1932), que gerou um belo
ensaio de Adorno, “Aldous Huxley e a utopia”, publicado posteriormente em
Prismas4. Como Huxley não lia alemão, e os textos de Adorno não haviam sido
traduzidos até a data de sua morte, é difícil encontrar uma contrapartida nesse
interesse, embora ambos tenham certamemente se encontrado na agitada vida
cultural e social dos exilados europeus em Los Angeles.
Como a pesquisa ainda está em andamento, gostaria apenas de adiantar
alguns pontos interessantes dessa possível aproximação, no que concerne aos
problemas da sociedade de massas e da indústria cultural. Para isso, vou me referir
especificamente a alguns textos de Huxley, publicados na década de 1920,
certamente lidos e incorporados por Adorno em sua formulação do conceito de
“indústria cultural”, na década de 1940. Além do romance Antic Hay, de 1923, são
importantes para nossa discussão os ensaios “Pleasures” (1923); “The spread of bad
art” (1925) e “Recreations” (1927).
Adorno considerava Huxley um nome importante no conjunto de autores que
praticaram, na primeira metade do século XX, uma crítica não-dialética da cultura,
justamente por estabelecerem uma oposição, de modo abstrato e idealista, entre o
sentido tradicional da “cultura” e os avanços, já historicamente visíveis, da “massa”,
da “barbárie”, ou mesmo da “vulgaridade” (como prefere Huxley). No ensaio sobre

4
Adorno, T.W. “Aldous Huxley e a utopia”. Tradução de Jorge de Almeida e Augustin Wernet. Em
Prismas, São Paulo, Ática, 1998. pp. 91-116.

1269
crítica cultural e sociedade, Adorno ressalta a importância de uma compreensão
materialista (e dialética) desse problema, capaz de “suspender” [aufheben] o próprio
conceito de cultura, evitando o lamento da “decadência”, que gira em falso por ser
incapaz de reconhecer que “a própria cultura surge da separação radical entre
trabalho intelectual e trabalho braçal”5. É justamente a questão do “trabalho”, e sua
relação antagônica ou complementar com o “prazer”, que norteia um importante
ensaio de Huxley, cujos argumentos reverberam em vários dos textos fundamentais
da crítica adorniana à indústria cultural:

“As horas de trabalho de um dia já são, para a enorme maioria dos seres
humanos, ocupadas na performance de tarefas puramente mecânicas, nas quais
nenhum esforço mental, nenhuma individualidade, nenhuma iniciativa é requerida. E
agora, em nossas ‘horas de lazer’, nos voltamos para distrações tão mecanicamente
estereotipadas, e que demandam tão pouca inteligência e iniciativa, quanto nosso
trabalho”6.

A reflexão sobre o “tempo livre”, que Adorno irá acompanhar em textos


posteriores, parte também da crítica ao trabalho alienado. O reconhecimento da
divisão entre trabalho intelectual e braçal é, em Huxley, baseado menos em uma
análise da base econômica do que em uma observação (a partir de cima), do caráter
“mecânico e repetitivo” da “performance de tarefas”, que afeta inclusive o trabalho
intelectual (tema presente em vários de seus contos e romances, principalmente em
Contraponto, de 1928). A mesma lógica rege, na sociedade industrial, o tempo de
trabalho e as horas de lazer; por isso as “distrações”, longe de terem o aspecto
político positivo vislumbrado por Benjamin, também seriam irremediavelmente
“estereotipadas”, o que as aproxima da esfera da produção de mercadorias em
massa. Huxley está interessado nas conseqüências humanas, para a “civilização”,
dessa nova configuração do lazer, analisadas na questão (mais ética do que
psicológica) dos “prazeres”:

5
Adorno, T.W. “Crítica cultural e sociedade”. Em Prismas, ed.cit.. p. 16.
6
Huxley, Aldous. “Pleasures” (1923). In Collected Essays, ed.cit., vol. I, p.356.

1270
“De todos os diversos venenos que a civilização moderna, em um processo de
auto-intoxicação, fermenta secretamente em suas próprias entranhas, poucos, a meu
ver, são mais letais (embora nenhum pareça tão inofensivo), quanto essa coisa
curiosa e assustadora, conhecida tecnicamente como ‘prazeres’ (pleasure).
‘Pleasure’ (coloco a palavra entre aspas para mostrar que estou me referindo, não ao
prazer real, mas às atividades organizadas, conhecidas oficialmente pelo mesmo
nome). ‘Pleasure’, que pesadelo de imagens a palavra evoca! Como todo homem
razoável e sensível, eu abomino o trabalho. Mas preferiria perder oito horas por dia
em um escritório do governo a ser condenado a viver uma vida de ‘pleasure’”7.

Como bom escritor, Huxley percebe (antes mesmo da manipulação da


linguagem realizada pelos estados totalitários, tema constante das críticas de Adorno
e Horkheimer) que o aparato industrial recria “tecnicamente” o sentido de
determinadas palavras. No caso de “prazer”, a distorção afeta tanto o termo quanto
seu conteúdo, substituindo a promessa de real satisfação (necessariamente individual
e criativa) com a reprodução, em forma de pesadelo, das “atividades organizadas”.
Antes de reconhecer o sentido pleno da “sociedade totalmente administrada”,
concebida por extrapolação no romance Brave New World (1932), Huxley já
analisava, na década de 1920, o processo histórico, pensado em termos da “auto-
intoxicação da civilização moderna”, que fundamenta o caráter estereotipado da
nova sociedade de massas. O fato de ele ver isso como “pesadelo” próprio à
sociedade industrial, observando com desconfiança extrema qualquer possibilidade
de solução política, o aproxima das teses posteriores de Marcuse, expostas em Eros
e Civilização e na análise do homem unidimensional.
Mas também o aspecto econômico desse novo estágio das “diversões” é
percebido por Huxley, preocupado com o sentido dessas modificações no âmbito da
própria arte: “A oferta de diversões ready made tornou-se uma indústria lucrativa”8.
O caráter estereotipado da mercadoria afeta tanto a forma da distração quanto seu
próprio conteúdo. Na busca de lucros, a nova indústria cria produtos cada vez mais

7
ibidem, p.355
8
ibidem, p.356

1271
simples, manipulando o consumo também esterotipado dessas mercadorias, em um
processo de “progressiva imbecilização”9. Não estamos longe da reflexão sobre o
fetichismo na produção de bens culturais para consumo, mas esse viés marxista,
presente nas análises de Adorno, está ausente das reflexões de Huxley, que tem
ainda uma atitude algo moralista, colocando a “culpa” desse processo tanto na
“civilização” como um todo, quanto nas próprias pessoas, que se deixam levar pelo
vazio de sentido de suas vidas, consumindo com avidez as “distrações” que,
industrialmente, lhes são oferecidas. Esse é o tema de outro artigo, escrito em 1925,
intitulado “The Spread of Bad Art”:

“Milhões e milhões de pessoas, aterrorizadas de tédio e apreciando um ócio


que elas não podem preencher por si mesmas, estão suplicando por distração,
implorando para serem livradas de sua própria e intolerável companhia, ansiando
para que lhes sejam dados substitutos para o pensamento”10.

O melhor “substituto para o pensamento” é, como vemos no texto sobre o


fetichismo, a música industrializada, em cuja crítica se aproximam novamente
Adorno e Huxley. Cabe lembrar que a década de 1920 é o período de expansão do
jazz na Europa. Incorporado por grandes nomes da música moderna e de vanguarda
(como por exemplo Stravinsky, Milhaud, Hindemith e Ravel), o ritmo norte-
americano, em suas variadas formas, torna-se o principal representante da moderna
indústria da diversão, sendo por isso exaltado por alguns e duramente criticado por
outros. Huxley não disfarça o caráter elitista, e por vezes racista, de sua crítica (que
vê como bárbara até mesmo a corrente russa representada por Stravinsky,
curiosamente o principal defensor do neoclassicismo musical na década de 1920),
mas é capaz de observações precisas, como a exposta no texto “Recreations”, de
1927:

9
ibidem, p.355
10
Huxley, Aldous, “The Spread of Bad Art” (1925) In Collected Essays, ed.cit., vol. I, p168

1272
“As bandas de jazz atacam, com sua música melancolicamente bárbara, por
horas a fio. Os good timers dançam. Nos abençoados intervalos de silêncio, eles
sentam e fumam e batem papo e bebem. Os guinchos reiniciam. His master’s voice,
e obedientemente os good timers se põem de pé e começam novamente a dançar. E o
ar se torna cada vez mais pesado, cheio de fumaça, quente e fétido, até que, por volta
da uma ou duas da madrugada, a good time chega ao fim. E por todo o mundo, em
milhares e milhares de hotéis e cabarés, cassinos e restaurantes e night clubs, uma
good time exatamente similar está sendo oferecida, ready made e estandardizada,
por aqueles cujo business é vendê-la”11.

Novamente podemos notar a atenção de Huxley à manipulação publicitária da


linguagem. Os “good timers” do texto são aqueles que “curtem sua diversão”,
obedecendo estereotipadamente aos impulsos estereotipados da própria música.
Huxley chama atenção para um aspecto que hoje está na ordem do dia: administrada
e “globalizada”, transformada em business, a diversão ready made não conhece
fronteiras, políticas ou culturais, espalhando-se pelo mundo na forma de diversas
modalidades de “entretenimento”, diversas apenas na aparência. O slogan da
empresa Columbia, “His master’s voice”, é reproduzido de forma irônica, remetendo
o leitor à imagem que forma o logotipo da empresa, um dócil cachorrinho ouvindo,
obediente, a um gramofone. A mesma imagem é analisada por Adorno, em um de
seus textos de crítica musical12. A mensagem é tão clara que quase não demanda
interpretação, o que sem dúvida contribui para a tese de uma “servidão voluntária”
dos consumidores da indústria cultural, cujos esquemas psicológicos foram
analisados por Adorno em seus trabalhos de pesquisa nos Estados Unidos.
Mas a questão da liberdade pode ser relacionada ao problema da divisão
social do trabalho, e assim voltamos à nossa primeira questão. Em seu segundo
romance, Antic Hay, publicado em 1923, Huxley acompanha um grupo de jovens
“modernos”, representantes da “geração perdida” do pós-guerra, que vagam por
Londres em busca de um sentido para a vida, a deles próprios e a dos outros. Em
determinada passagem, o protagonista, Theodore Gumbril, bacharel em artes por

11
Huxley, Aldous, “Recreations” (1927) In Collected Essays, ed.cit., vol. II, p.86.

1273
Oxford, tenta desenvolver uma invenção que o fará rico: um calça “pneumática”,
capaz de se inflar para proporcionar maior conforto. Aliás, a obsessão moderna pelo
“conforto” é criticada por Huxley em vários de seus romances, antes mesmo de sua
configuração utópica no Admirável Mundo Novo. Na conversa de Gumbril com um
alfaiate culto e perspicaz, o Sr. Bojanus, vemos o ponto de partida (e ao mesmo
tempo, segundo Adorno, o ponto fraco) da crítica de Huxley às causas e efeitos da
diversão administrada:

“Um homem sem ocupação definida seria livre? Eu digo que não. Não, a não
ser que fosse um homem como o senhor ou eu, Sr. Gumbril, um homem sensato, um
homem de idéias independentes. Um homem qualquer não seria livre, porque não
saberia como preencher o tempo, a não ser em alguma coisa que lhe fosse imposta
por outrem. Hoje em dia, ninguém sabe divertir-se por si; todos permitem que os
outros o façam por eles. Ingerem o que lhes é oferecido. E têm que ingerir, quer
gostem ou não. Cinemas, jornais, revistas, gramofones, jogos de futebol, telefone
sem fios – fora disso não há diversão. O homem comum não consegue viver sem
essas coisas. Aceita-as. E isso o que é senão pura escravidão?”13

Adorno ao mesmo tempo reconhece o interesse e vê os pontos cegos dessa


argumentação, típica da crítica não-dialética da cultura, como podemos ler em seu
ensaio sobre Brave New World. Atento às modificações no âmbito da cultura,
Huxley percebe a questão a partir de um conjunto de oposições: civilização contra
barbárie; elite contra massa; prazer real contra prazer administrado; liberdade contra
submissão à diversão industrializada. Nunca, entretanto, assume o caráter histórico,
fundamentado pelo modo de produção econômico, dessas oposições. Elas são, de
alguma forma, “naturalizadas”, transformadas em “destino”, sem que haja qualquer
modo de reação que não seja o puramente individual, na resistência consciente e
solitária ao poder do estado de coisas. A saída política está ausente, assim como a

12
Adorno, T.W., “Nadelkurven”, in Gesalmmelte Schriften 19, Frankfurt am Main, Suhrkamp,
1996, p.528.

1274
econômica, já que o julgamento moral se sobrepõe a tudo, ainda que muitas vezes
ironicamente. Já Adorno, por mais negativo que seja, não pode prescindir do
“otimismo prático”, tanto na tarefa do esclarecimento quanto na defesa, mesmo que
teórica, da possibilidade de mudança no estado de coisas (que aliás é tomada como
pressuposto fundamental por seus colegas Benjamin, Horkheimer e principalmente
Marcuse). Nesse sentido, ele critica Huxley por “fetichizar o fetichismo da
mercadoria”, ao separar as relações de produção de seu modo de produção
específico, e portanto histórico.

“Mas Huxley fetichiza o fetichismo da mercadoria. O caráter mercadoria


torna-se para ele algo de ôntico, existente em si mesmo, diante do qual ele capitula,
em vez de desmascarar esse sortilégio como mera forma de reflexão, como falsa
consciência que os homens têm de si mesmos, uma falsa consciência que deveria
desaparecer junto com seu fundamento econômico”14.

As questões suscitadas por esse debate estão mais vivas do que nunca. E, se
Huxley por enquanto tem um certa razão, já que não se percebe no futuro a
possibilidade de uma mudança radical do sistema de produção de cultura como
mercadoria, Adorno alerta, em insuspeito otimismo, para as dificuldades de se
“naturalizar” o fetichismo como fundamento último de qualquer produção de cultura
para o mercado. Resta esperar para ver o quanto o mundo do século XXI vai se
aproximar ou distanciar do terrível “admirável mundo novo”, visto como sonho ou
pesadelo pelos herdeiros da crítica cultural do século XX.

Jorge de Almeida é doutor em Filosofia e professor do Departamento de Teoria


Literária e Literatura Comparada da USP, tradutor de Adorno e crítico literário.

13
Huxley, Aldous, Antic Hay, Londres, Chatto & Windus, 1949, p.33. Tradução brasileira de
Eduardo Fonseca, com o título “Geração devassa”. São Paulo, Hemus, 1974. trad. p.37. Há outra
tradução, de Moacyr Werneck de Castro, com o título “Ronda Grotesca”. Porto Alegre, Globo,
1948.
14
Adorno, T.W., “Aldous Huxley e a utopia”. Em Prismas, ed.cit., p.110.

1275
Autor de “Crítica dialética em Theodor Adorno. Música e verdade nos anos vinte”
(Ateliê, 2006).

1276
Comunicação num mundo distópico
Small talk - conversas vazias
Newton Ramos-de-Oliveira*

“As relações entre linguagem e política são cada


vez mais importantes (Kellner)
“Guerra é paz, liberdade é escravidão,
ignorância é força” (Orwell)

Utopia e Antiutopia

Entende-se por utopia ou eutopia a descrição de uma sociedade imaginária,


ideal, na qual sociedade civil e estado convivem em perfeita harmonia. Platão, em
aproximadamente 360 a.C., foi o autor da primeira “utopia” cujo título foi “A
república”. Esse termo, no entanto, só foi cunhado em 1516 por Thomas More (1478-
1516) que o utilizou no título de seu livro De Optimo Reipublicae Statu deque Nova
Insula Utopia. Nele, Thomas More descreve uma sociedade organizada racionalmente
como uma república na qual vigora uma total comunhão de bens ⎯ que mais tarde
serviu de inspiração aos jesuítas na fundação das “Reduções”/ ou “Missões” para
cristianizar e civilizar nossos vizinhos guaranis do Paraguai. A importância desse

gênero é assim defendida por Oscar Wilde ao afirmar que “Um mapa que não traga o
país da Utopia não merece sequer um olhar, porque desconhece o único país a que a
humanidade aporta constantemente. E, sempre que a sentinela lança a âncora /.../ a
humanidade novamente abre as velas”.

Já o conceito de uma antiutopia recebeu a designação de “cacotopia” pelo


filósofo Jeremy Bentham (1748-1832) e de “distopia” pelo também filósofo John Stuart
Mill (1806-1873) para indicar o oposto exato de utopia, ou seja, designar uma sociedade
fictícia totalmente indesejável.

O conceito de utopia é amplamente discutido em vários campos do saber, em


especial na literatura e na sociologia. Na sociologia basta citar as concepções de Karl

*
Prof Dr. da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (apos.) e da Fadisc. Membro da União
Brasileira de Escritores - UBE. Pesquisador do CNPq.

1277
Mannheim que diferencia o pensamento ideológico, que se refere a uma versão
idealizada da realidade corrente, e pensamento utópico, que deseja um novo tipo de
sociedade. A esse respeito, assim comenta Aldo Maffey no Dicionário de Política, de
Bobbio, Matteucci e Pasquino:

“A mentalidade utópica pressupõe não somente estar em


contradição com a realidade presente, mas também romper os
liames da ordem existente./../ Transcende a situação histórica
enquanto orienta a conduta para elementos que a realidade
presente não contém: portanto não é ideologia na medida em
que consegue transformar a ordem existente numa forma mais
de acordo com as próprias concepções. Utopia é, isto sim,
inatuável somente do ponto de vista de uma determinada ordem
social já sedimentada.” ( 1991, p.1285)

Para Herbert Marcuse a utopia é um conceito ultrapassado porque hoje qualquer


transformação do presente técnico e natural é uma possibilidade real. A utopia como
força cinética orienta-se pela convicção de que não se pode contestar a efetiva
possibilidade de eliminar a fome e a miséria com as forças produtivas materiais e
intelectuais já existentes1. O cientista estadunidense Skinner é autor de um livro
denominado “Walden Two”2 no qual cria uma comunidade utópica em que, através de
uma tecnologia do comportamento, todos os cidadãos são felizes e consideram sua
sociedade perfeita.(bem aparentada com o “Brave New World”/ “Admirável Mundo”
como se vê...) O antagonismo entre as duas concepções demonstra a amplitude dos
desencontros teóricos a esse respeito.

Além dessa multiplidade de sentidos atuais, deve-se recordar que, desde os


tempos gregos clássicos, há uma certa indecisão sobre as sociedades completas: são
utópicas ou distópicas? Esparta foi concebida e constituída por Licurgo como uma
utopia, mas aos olhos de Atenas era uma distopia. O contraste já citado entre Skinner e
Huxley (e, ainda, Adorno) comprovam também essa duplicidade de julgamentos.

Ficção cientifica: do diabo à ciência

1
Cf. Marcuse – “O fim da utopia”.
2
O título indica uma seqüência ao original “Walden” , de Henry David Thoreau.

1278
Na verdade, a distopia indica uma crítica, advertência ou sátira de tendências
que já se fazem presentes para as pessoas mais sensíveis, pessoas com abertura para
percepções avant la réalité. Nesse sentido as distopias são imagens do presente embora
ainda como presságios. Nos tempos modernos, com o imenso desenvolvimento da
tecnologia e de um certo mal-estar quanto a suas possíveis conseqüências à sociedade e
a seus indivíduos, surgem romances de ficção científica freqüentemente designados pelo
termo inglês “Sci Fi”. Este termo inicia-se como expressão inglesa possivelmente pelo
fato de que o impulso por criações científicas em todos os campos de atividade é um
traço que caracteriza a sociedade norte-americana através dos tempos. Hoje o termo
“Sci Fi” ingressa no que já está sendo designado como palavras universais, este imenso
patrimônio mundial que acolhe termos oriundos de vários países como as palavras
“alô”, “ciao”, “avant la lettre”, “bye-bye” e tantas outras que, para o mundo cultural,
começa a criar um moderno e natural Esperanto. A produção de uma ficção que
desdobra e unifica o sonho e o pesadelo sob a regência do diabo cresce paralelamente à
expansão da ciência e da tecnologia. Não é dessa época que cresce o impulso do
capitalismo? De certa maneira diretamente dos pactos faustianos medievais, este mito
revigora-se pelo “Dr. Fausto”, obra prima de Goethe (1749-1832) e moderniza-se por
Oscar Wilde (1854-1900), no romance “O retrato de Dorian Gray”. O maravilhoso e o
demoníaco cedem seus poderes à ciência e às suas aplicações. Trata-se de uma
coincidência simbólica essa passagem do instrumento diabólico ao instrumento
científico, mas no símbolo, muitas verdades mais profundas existem. Também deve-se
notar que tais romances iniciam-se no estilo de época do romantismo e sob a hegemonia
de um capitalismo que vai se tornando mais agressivo. No sentido moderno da
expressão, a Ficção Científica inicia-se em 1818 com o romance “Frankenstein”, de
Mary Shelley (1797-1851), bem como as obras de H.G.Wells como “A guerra dos
mundos” e “A máquina do tempo”. No cinema, são muitas as obras de grande sucesso
econômico chamadas de “blockbusters”, como “Uma odisséia no espaço”3 , que hoje
pretende constituir-se como filme cult, uma espécie de Harry Porter um pouco mais
adulto. Como vemos, o cinema apresenta uma indústria cultural bem agressiva.

A Inglaterra ⎯ berço da distopia?

3
- Deixamos de citar outras obras de ficção científica por não constituirem tema central desta palestra.

1279
Há uma certa interrogação quanto ao seguinte fato: a composição de romances
distópicos é prática corrente na Inglaterra, onde se destacam “As Viagens de Guliver”,
de Jonathan Swift (1667-1745). “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carroll (1832-
1898); “Admirável mundo novo”4, de Aldous Huxley; “1984”, de George Orwell (1903-
1950); “Laranja mecânica”, de Anthony Burgess (1917-1993) e “The children of men”,
de P.D.James. Há nessa abundância de distopias no solo britânico algo a ser
investigado. Por que, desde Shakespeare os autores ingleses ou sob domínio inglês em
vez de criticar diretamente a sociedade e o tempo em que vivem, refugiam-se ou no
tempo ( Henrique IV e Henrique V, Ricardo II etc) ou no espaço (Macbeth, Hamlet,
Othelo etc) ou, ainda, em ambos (Julio César, Romeu e Julieta etc)? Com certeza,
repetiria o dramaturgo “Há algo de podre no reino da Dinamarca”... Sabemos bem que
esta Dinamarca não era a Dinamarca. Após Shakespeare, os autores de críticas ao
sistema social hegemônico em seu país, usam artifícios para ocultar que suas previsões
sombrias já estão presentes na sociedade inglesa. Não que inexistam distopias em outros
países: nos Estados Unidos, por exemplo, destaca-se “Fahrenheit 451”, de Ray
Bradbury.5 Mas a tradição distópica inglesa ultrapassa a de outros países do primeiro
mundo.Se somarmos este grande número de distopias inglesas ao fato de que obras
importantes e estilisticamente avançadas sofreram freqüentemente a ação inflexível da
censura, poderemos apontar a uma onipresença do Estado e sociedade civil no campo
das idéias. Obras de James Joyce, sofreram muito freqüentemente a ação da censura e
proibição de serem editadas. Os contos de “Os Dublinenses” demoraram dez anos para
poderem ser publicados . Quanto ao “Ulysses”, James Joyce iniciara sua publicação
seriada em 1918 na revista “The Little Review” , mas, em 1920, a revista teve que
interromper a edição dos capítulos seguintes. Somente em 1922, o autor consegue
publicar o romance na França. No Reino Unido é liberada a publicação desta obra
revolucionária apenas em 1936. Outro exemplo, apenas para levantar a beira do tapete é
dado pelos autores ingleses que se auto-exilam, como Oscar Wilde e Samuel Beckett ou
os americanos cunhados por Gertrude Stein como “geração perdida”⎯ dos quais se
destacam Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Estes fatos ⎯ opção pela forma
distópica e auto-exílio ⎯ desmentem a visão dos países anglo-americanos como berços

4
Este foi analisado por Theodor W. Adorno em “Prismas”.
5
Romance convertido em filme por François Truffault.

1280
da democracia e da tolerância nos tempos modernos. Eis justificada a metáfora irônica
com que Huxley denominou o Reino Unido: a “Pista de Pouso n.1”, simples ponto
intermediário numa viagem aos Estados Unidos.
Os romances distópicos costumam desenvolver temas como a divisão da
sociedade em classes sociais hierárquicas e intransponíveis, um sistema opressivo de
coletar informações a respeito dos indivíduos; a predominância da resignação entre os
cidadãos. Com certeza esses são alguns dos temas que conformam a vida de nossos
contemporâneos.

Leituras marxistas não marxianas

No marxismo ocorreu, nos seus redutos ortodoxos, uma desvalorização da


palavra utopia o que a colocou em desvantagem perante o chamado socialismo utópico.
Na imensa obra marxiana há todo um percurso de investigação a respeito da utopia. Os
marxistas ortodoxos basearam-se, sobretudo, em dois textos: O “Manifesto
Comunista”, de Marx e Engels, e “Socialismo utópico e socialismo científico”, escrito
por Engels. Na obra de Marx, não se trata de uma incrustação positivista, mas de uma
formulação que convive com outra totalmente oposta, antagônica ⎯ este tema é tratado
exaustivamente por Miguel Abensour em seu livro “O novo espírito utópico”. Sem o
princípio esperança, para tomar emprestado o termo de Ernst Bloch, sem um espírito
utópico, como lutar por um mundo melhor? Por que os meios conservadores agarram-se
com todas as forças ao combate contra o que não é agora? Por que Margareth Thatcher
cunhou a expressão “Tina”, “There is no alternative” ? Por que a mídia exalta um
mundo imutável? Por que o sonho por uma humanidade mais .... humana e a denúncia
da barbárie são combatidos pelos setores hegemônicos? Os setores dominantes preferem
um futuro como repetição do mesmo, por isso rejeitam e resistem às utopias e até às
distopias. Querem que a utopia, como “sonho diurno” ou como “o ainda não
consciente” não os ameace; nem que os denunciem as distopias. Quais as fronteiras
entre utopia e distopia?

Tempos de Shakespeare e tempos de Huxley

Adorno analisou o “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, num ensaio


que integra o livro “Prismas”. Basta-nos fazer apenas alguns breves comentários.

1281
Huxley publicou seu livro em 1932, enquanto George Orwell terminou o “1984” em
1948, mas só o teve publicado em 1949.
O “Admirável mundo novo” – este título é um uso intertextual cujo sentido foi
ironicamente alterado. Admirável por quê? No texto de Shakespeare, que cunhou a
expressão e a empregou na peça novelesca “A tempestade”, o sentido é literal. O
dramaturgo inglês tinha motivos para ufanar-se pois o mundo crescia e se ampliava
profundamente com as descobertas marítimas e as novas invenções. Para Huxley, no
entanto, o mundo já é visto como um pesadelo. O autor poderia ter usado outra
expressão também de Shakespeare, agora em Hamlet: “O mundo está fora dos eixos, ah,
maldita sorte!” Huxley visava também elaborar uma crítica à utopia escrita por
H.G.Wells em seu livro “Men like gods”, “Homens que se assemelham a deuses”.
O “Admirável mundo novo” era originalmente uma denúncia da falsa felicidade
que Huxley via nos Estados Unidos e que Adorno bem caracteriza no ensaio como
“campo de concentração que se toma por paraíso”. Seus prisioneiros, no entanto, não se
revoltam, mas se adaptam, se integram, anulando-se como seres autônomos. Essa
distopia que se quer utopia foi antevista pelo autor “a partir do estado atual da técnica”
(Adorno, 1998, p. 92). Por seu desenvolvimento e por sua liderança no processo de
globalização, o “American way of living” atinge todos os países. Comparando essa
sociedade integrada com os ideais da Revolução Francesa, vemos que Huxley substitui
os lemas libertários da “Igualdade, liberdade e fraternidade” para “Comunidade,
identidade e fraternidade”, que correspondem, grosso modo, a seres estandardizados que
passivamente se sujeitam a uma sociedade administrada, na qual “a coletivização total
corresponde à dominação total” (id.,1998, p.94)
Nesta fantasia de enredo elementar (a expressão é de Adorno) a existência de
seres humanos envoltos em relações mercantis vazias de conteúdo existencial faz a
comunicação restringir-se aos pensamentos e formulações do tipo “small talk”,
conversas vazias. Nessas não-falas o não entender transforma-se em virtude. Homens e
mulheres perdem seus tempos com assuntos banais e acríticos. Como as relações
deixam de ser humanas e adotam a forma de relações mercantis, comerciais, tais falas
vazias ocorrem não entre cidadãos ou seres autônomos, mas entre simples
consumidores. Observemos que, hoje em dia, este caráter de insignificâncias já se
dissemina pelo mundo todo, dado o crescente predomínio da indústria cultural
fortalecida pelos movimentos conflitantes de uma globalização que é, ao mesmo tempo,
inclusiva e exclusiva.

1282
No Brasil (e parece que também em outros países6) um certo tipo de camada
social exibe em seus carros e calhambeques frases grosseiramente erradas7 de propósito
e tais pessoas tentam ⎯ em acontecimentos de massa, tais como as partidas de esporte
⎯ atrair as filmadoras das estações de televisão para cartazes desse tipo. Se a televisão
passa por segundos pelas suas imagens, está realizada a glória que foi antevista como
“cinco minutos de fama” por Andy Wahrol. A cultura e a escolarização eram
prometidas como instrumentos de ascensão social; hoje o neoliberalismo abandonou tal
engodo porque a realidade que o contradiz está aos olhos de todos. Resta, então, a tais
pessoas consolarem-se com a afronta e a desvalorização da cultura. Forma-se nos
subterrâneos sociais uma língua própria dos vencidos que, destituídos de forças reais
para o protesto, espalham a inutilidade da escola e do patrimônio cultural da língua
materna. Também na Internet (blogs, chats etc) os que escrevem adotam a grafia que
lhes aparece mais descuidada num movimento que demonstra também um mecanismo
de defesa preventiva. Parece que o “netspeak” com sua eliminação das vogais (tipo vc=
você.) ou emprego de qualquer letra sem respeitar a ortografia (tipo “kda koiza
ecitante”) firma-se em todo o mundo. O que interessa é comunicar –se. Quem assim
procede acaba sendo analisado, não como ignorante ou analfabeto, mas como rebelde e
indiferente aos fatos e convenções da cultura oficial. A incultura muda os sinais
algébricos. Alguns lingüístas desorientados acharão tal atitude até interessante e
indiferente.

Sorria, você está sendo filmado

Huxley concentrou suas críticas ao modelo norte-americano de vida, enquanto


George Orwell descreveu uma sociedade totalitária. Surgido em pleno período de
“guerra fria” exacerbada pelo macarthismo8 ⎯ que aceitava acusações sem prova para
condenar “suspeitos” e cassarem-lhes os direitos civis ⎯, o romance distópico de
Orwell foi imediatamente simplificado como uma crítica e um alerta contra apenas o
estalinismo. Descreve ele uma sociedade opressora na qual todos são ininterruptamente
observados pelas chamadas “teletelas” que, ao mesmo tempo em que transmitem

6
Um desses países é a Inglaterra, segundo comentou meu amigo Prof. Dr. John Lyons (A situação na
Inglaterra pode ter causa diferente da nossa por envolver a população de emigrantes lá).
7
Como exemplo: “Xike no urtimo!”.
8
Referência à prática política obscurantista liderada nos anos 50 pelo senador estadunidense Joseph
Raymond MacCarhy.

1283
imagem e som, filmam e arquivam dados sobre as pessoas. Por enquanto a tecnologia
ainda não construiu um aparelho com essas duas funções, mas recebemos imagens e
sons via satélites num sistema que cada vez mais se universaliza e que já reune
condições técnicas para efetivar esta peça terrível. Somos todos filmados nos mais
variados ambientes. Obedecemos ao mandamento “sorria, você está sendo filmado” nas
casas comerciais, bancárias e de diversão, nas fábricas ⎯ em suma, em todos os
lugares. Já há cidades em que a Internet filma os transeuntes naquele exato momento em
pontos específicos. Os radares também. O “searcher” Google Earth está bem próximo
de tais realizações. Se observamos bem nossos, computadores gravam dados de cujo
destino possível não temos a menor idéia. Pairam como ameaças implacáveis. Cada
computador tem um registro (tipo nossos R.Gs.) denominado I.P. que permite recolher
informações sobre ações e pensamentos do usuário do aparelho. Estabelecimentos e
instituiçõe, como as universidades, colocam tais tipos de espiões nos corredores e salas
de aula. Já nos anos 50 do século passado, algumas escolas SENAC tinham aparelhos
que tanto gravavam as aulas quanto, ao mesmo tempo, podiam transmitir aos alunos as
vozes das autoridades. Um programa rotineiramente usado como o Word registra
variadas propriedades dos documentos ⎯ alguns que conhecemos, outros que
desconhecemos.
Orwell destaca também a manipulação de informações, que vão tecendo e
destecendo diferentes versões para os mesmos fatos, ou para fatos forjados. É de
conhecimento geral que as fotos iniciais da Revolução Soviética foram sendo, como
passar dos anos e permanência de Stalin, pouco a pouco reduzida: personagens, como
Trótski, foram sendo apagados.Confiar não é mais possível numa sociedade assim
totalitária. Sabemos todos as dezenas de guerras feitas pelos E.U.A. após a II Guerra
Mundial? O que muitos saúdam como um instrumento extraordinário para firmar
relações democráticas sem fronteiras, não parece manter-se. Acordos das grandes
corporações de tecnologia da informação, Google e Yahoo, com o governo chinês
impressionam as pessoas mais alertas. A google pré-censura qualquer artigo que tenha
ligações com relatos e análises sobre o massacre da praça da Paz Celestial. Tais
informações estão no espaço cibernético chinês apenas se favoráveis à interpretação
governamental. São de conhecimento público no Ocidente os casos em que a Yahoo
forneceu informações para que o jornalista Shi Tao e o ex-funcionário público Li Zhi
pegassem respectivamente oito e dez anos de cadeia . Orwell pressentiu acontecimentos
desse tipo, dando-lhes o nome de “crimidéia”. Eis a Internet usada para vigiar e punir.

1284
Os PCs brasileiros “começaram a receber uma atualização automática do Windows que
instala um programa capaz de identificar o registro do sistema operacional, o modelo do
computador e o número do disco rígido.”(MAGNÓLI, 2006)

Um instrumento manipulador

Um dos instrumentos que nem Huxley, nem Orwell, foram capazes de localizar
foi detectado por Adorno e Horkheimer. Trata-se da indústria cultural. Os programas de
televisão denunciados por Orwell como também gravadores, transmitem notícias com
sabor e corpo semelhantes às leituras de órgãos da imprensa oficial. Já a indústria
cultural tem ares de grandes revelações e de agradável peça de arte. Atrai, conquista,
adultera, emburrece, anestesia, destrói ⎯ mas numa atmosfera psicológica de algo que
faz bem, eleva. Como dizia Adolf Hitler; “nunca fomos tão informados”!, hoje ouvimos
dizerem “nunca fomos tão autônomos!” A informação vazia e a arte vulgarizada são
instrumentos da semiformação vencedora. Lá era deixar de sentir; agora é ter a ilusão de
sentir.

O problema lingüístico

O século XX foi o século do confronto triangular entre o estalinismo, o fascismo


e a sociedade administrada pelo regime que se denomina democracia. A comunicação se
tornou, ao mesmo tempo, urgente e deformada. As palavras foram tomadas por campos
semânticos flutuantes. “A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da
verdade, a sabedoria, está agonizando” (BENJAMIN, 1980, p. 59) dizia Benjamin ao
contrapor que toda narração só é real quando apresenta amplitude de oscilação
(id.,ib.61) ao que Hans Robert Jauss completaria: “quando se abre ao receptor”. Uma
nova variável tem se firmado desde os tempos de Descartes: o mundo se mundifica.
Torna-se um Admirável Mundo Novo shakespeareano no sentido aparente e distópico
no sentido real. As relações humanas decrescentes e as crescentes relações mercantis
colocam em xeque a narrativa, o indivíduo e a própria linguagem. Grandes artistas
como James Joyce cunham novos vocábulos e expressões para fugir ao vazio semântico
e os aplicam em contextos constituídos por “streams of consciousness”, discursos
interiores.Uma língua artificial é criada por Schleyer em 1880 e recebe o nome de
Volapük/Volapuque. Em 1887, L.L. Zamenhof cria um projeto que encontra maior
aceitação, o Esperanto. Movimentos desse tipo evidenciam que há no ar, impreciso em

1285
suas conseqüências, um grande mal-estar e uma certa ânsia por uma solução definitiva.
Pretende-se disseminar uma língua-ponte que sirva para a compreensão entre povos e
pessoas de diferentes línguas, pois a transmissão de conhecimentos só se realiza
plenamente quando os parceiros estão em igualdade lingüítica, ambos usando a língua
materna ou a língua ponte, neutra. A língua nacional hegemônica eleva seus falantes por
nascimento porque é seu proprietário e o outro é o adventício, o estrangeiro, o outsider.
Um indevido “jus sanguinis”. O natural daquele país lingüisticamente hegemônico tem
o conhecimento fundamental da língua, o certificado de propriedade mesmo quando
emprega “erradamente” seus vocábulos e sua estrutura.Apenas uma língua planejada
poderia abrir uma brecha, pequena ,mas importante, nesse diálogo desigual.
O patrimônio lingüístico de um país é um dos seus maiores bens. Com sua
transmissão intergeracional são dados e conservados milhares de características, fatores
e costumes especiais e únicos daquele país ou de uma de suas comunidades lingüísticas.
A morte de um idioma representa, portanto, numa perda inestimável a um país e à
humanidade. A Constituição Federal brasileira tutela nosso patrimônio lingüístico pelos
artigos 215 e 216. Temos 234 idiomas falados em nosso país: outros 41 idiomas já estão
extintos e alguns em processo urgente de extinção, como a língua Kuruaya que é hoje
falada por meia dúzia de índios, a língua Xypaia é falada por 2 senhoras, a língua
Arikapu por 6 pessoas, a Puruborá por duas pessoas, a língua Máku por 1 indígena de
75 anos.Tais dados e outros igualmente impressionantes estão recolhidos pela ong
Ethnologue – languages of the world.9
No entre-guerras do século XX, a difusão do Esperanto dava-se com certa força,
o que possibilitou uma proposta na Sociedade das Nações para que esta língua planejada
fosse usada como língua neutra entre os estados-membros. A proposta foi rejeitada em
especial por pressão do governo francês que lutava para que sua língua continuasse com
o status de língua diplomática.

Línguas nacionais empobrecidas

Nos anos finais dessa mesma década, o inglês Charles Kay Ogden propôs um
projeto alternativo ao Esperanto, o “Basic English”. Grande foi a recepção dessa nova
língua nos setores conservadores por suas conseqüência(s) imediata(s) de evitar uma

9
http://www.ethnologue.com (agosto de 2006)

1286
solução linguisticamente determinada e acelerar a internacionalização da língua inglesa.
Um de seus entusiastas foi I.A.Richards, expoente da corrente de crítica literária
chamada “New Criticism”. Logo outros países que financiam a exportação de seus
idiomas, lançaram projetos, dos quais basta destacar apenas os seguintes: nos Estados
Unidos o Toito Spike (1923), a Alemanha o Wede (1915), a França o Patoisglob (1898).
Charles Kay Ogden lança em 1930 um projeto para permitir a comunicação por um
inglês simplificado em seu vocabulário e em sua gramática.. Ogden é claríssimo:

“Se alguém pegar os 25.000 vocábulos do Oxford Pocket


English Dictionary e as redundâncias de nossa rica língua para
eliminar palavras descobrirá que os conceitos daquele dicionário
podem ser atingidos com 850 palavras. /.../ BASIC como
instrumento de pensamento: é uma garantia de que as palavras
mais necessárias à estrutura serão trabalhadas tantas vezes que o
usuário as terá sob controle de tal modo que as idéias mais
complexas virão a sua mente como partes de um sistema e não
como ficção solta no ar”

Como podemos ver, simplifica-se a língua para tornar simples ou simplórias a

expressão e a comunicação. O Esperanto pretende, como língua ponte, permitir a

comunicação integral entre falantes de idiomas diferentes e a conservação das línguas

existentes. O BASIC, segundo seu criador, foi difundido na esperança, de que as línguas

menores sejam eliminadas e um inglês capenga faça a ponte entre povos de expressão

diferente. Ogden continua firme em suas declarações ao dizer, em 1991, segundo Baily:

“O mundo precisa de aproximadamente mil línguas mortas e mais uma viva “ (Ogden,

1991).

Como se vê, é objetivo da união anglo-americana que o Inglês torne-se língua

internacional em sua forma natural ou abreviada. Também os regimes totalitários

perseguiram o Esperanto, como documentam vários livros, dentre os quais, por sua farta

documentação, os de Ulrich Lins, que demonstram tanto Hitler quanto Stalin

consideravam que essa era uma “língua perigosa”. Outros países de regimes diversos

também perseguiram e até assassinaram esperantistas.

1287
Tempos de guerra fria, tempos de macarthismo

George Orwell foi cuidadoso leitor do “Admirável Mundo Novo”, de Huxley,

publicado em 1932, e publicou seu romance 17 anos mais tarde, em plena guerra fria e,

mais ainda, na vigência do período macarthista. Seu currículo indica que participou da

Revolução Espanhola lutando pelas brigadas democráticas; findo esse conflito, passou

anos de pobreza em Paris e Londres, exercendo a função de jornalista: este percurso lhe

deu a percepção de que a década de trinta havia trazido dois autoritarismos, o

nazifascista e o estalinista, mas também que, no pós-guerra e na democracia, o homem

tendia a ser monitorado e a perder a emissão e recepção de conteúdos significativos.

Compreendeu bem a importância fundamental da língua, motivo pelo qual elaborou na

distopia uma língua em extinção provocada pela sociedade administrada e a formação

de uma língua especial para restringir a possibilidade de pensar e refletir:

respectivamente o oldspeak e o newspeak. O old speak é o inglês como língua natural

que cumpre eliminar e o newspeak a nova língua, o novo estilo de não-pensar e não-

refletir. O newspeak seria gradativamente implantado calculando-se que estaria

completamente em vigor por volta do ano 2050. O cálculo de Orwell combina bem com

a estimativa de ongs como a Ethnologue. Alguns pesquisadores calculam que, por volta

de 2100, metade das atuais línguas estarão extintas, em grande parte pela supremacia

política, cultural e econômica dos Estados Unidos.10

Newspeak ou Basic-2

Na Oceania de 1984, o autor afirma a permanência provisória do Standard

British, agora denominado Oldspeak, e a progressiva emergência de uma língua oficial

do Ingsoc, o Newspeak. Orwell descreve longamente o newspeak, mas teria sido mais

10
Gordon, Raymond G.(Editor) Ethnologue:languages of the world.15a. edição. U.S.A.:Academic
Bookstore, 2005.

1288
claro se houvesse denominado este idioma oficial como “Basic-2”, pois o vocabulário

inglês é em parte mantido, em parte simplificado e, em parte, eliminado; quanto à

gramática esta continua a mesma, mas eliminadas as exceções (traço de todas as

línguas planejadas). O propósito do newspeak não é a expressão e a comunicação, mas

cumprir os objetivos do Ingsoc e, acima de tudo, impedir o exercício de outros estilos de

pensamento. De ano a ano, o dicionário oficial da Oceania traria um número menor de

palavras.

Para nossos propósitos, os aspectos abaixo devem bastar para explicar as 3

camadas do newspeak, a saber, A, B e C. Poderia, portanto, afirmar que o newspeak

eliminaria redundâncias, a polissemia conotativa, declarações que não estivessem

inseridas numa doutrina total(itária), ou seja, nas palavras de Ogden, impediria a

“ficção solta no ar” -⎯ ou seja, implantaria um pensar inescapável: o neopositivismo

newspeak.

O vocabulário A teria constantemente o expurgo de palavras até reduzir-se

apenas a ações rotineiras e a objetos: comer, dormir, respirar; mesa, bola, sapato. Às

vezes, a palavra não seria extinta, mas expurgada de sentidos perigosos. Exemplo: a

palavra “free/livre” serviria apenas para frases que demonstrassem carências, como

“Este campo está livre de ervas daninhas” ou “os cães estão livres de piolhos”. Jamais,

portanto, em sentidos “no ar”, com sentido político, existencial ou intelectual.

Contribuiria para limitar as dimensões semânticas do pensamento.

O vocabulário B seria construído claramente por propósitos políticos, uma

espécie de taquigrafia com o intuito de eliminar sua trajetória histórica ⎯ em especial

se esta “ficção no ar” tivesse encaminhado o vocábulo para integrar um ramo do

conhecimento. Elimina-se, desse modo, o pensamento do processo e da dialética

1289
denominada “duplopensar” e confundida com antônimos; paradoxos e contradições

lógicas. “Filosofia”, por exemplo, seria substituída pela expressão “pensar bem”, os

filósofos seriam “oldthinkers”/velhos-pensadores.Algumas palavras seriam

completamente eliminadas por serem “oldthoughts”/velhos pensamentos, como honra,

justiça, moralidade, democracia, ciência etc.

O vocabulário C refere-se a palavras empregadas por determinados setores da

atividade humana e cada conjunto de palavras-C pode ser vista apenas por seus

especialistas. Assim, um médico conheceria só palavras técnicas como “anidrose,

estomative, carcinoma ” etc, enquanto um engenheiro em eletricidade conheceria

palavras como “ohm, amplificador, indutância, díodo etc”. O técnico fica, portanto,

limitado a seu próprio campo de atividades, desconhecendo profundamente os demais

campos do saber.O ideal da Oceania e do Ingsoc é formar o homem super-

especializado, a quem não se permite a interrelação entre saberes.

A realidade ultrapassa a distopia?

Os aspectos do newspeak ocorrem no dia a dia sem que haja necessidade de se

alterar a língua usada entre pessoas e povos. Quem não se lembra das “democracias

populares.” O jornal da cidade de São Carlos, “Primeira página”, demonstra que sabe

empregar tanto o oldspeak quanto o newspeak: na página A5 da edição de 22 de agosto

de 2006, publica a manchete “Tecumseh anuncia reformulação de quadro funcional” e,

na página A1 da mesma edição, publica a manchete “Tecumseh demitirá até o final de

setembro” e a submanchete “...as demissões oscilarão entre 700 e 1.000 trabalhadores”.

O neoliberalismo é um dos motores atuais do newspeak. E quem domina o significado

de várias siglas e abreviaturas?

1290
O empobrecimenot vocabular e expressional não se restringe a países

periféricos. Pesquisas empreendidas por especialistas ingleses apontaram que dos textos

de Shakespeare centenas desapareceram mesmo para pessoas cultas. De nova em nova

geração alteram-se os campos semânticos.

A sociedade de 1984, como dissemos, tem apenas a repetição monótona de

índices econômicos e políticos pela teletelas. Diante da repetição constante o receptor se

cansa e desvaloriza seu significado primeiro. Hoje a indústria cultural é muito mais

eficaz e colorida. A imagem é sua máxima expressão. Gradativamente a escrita vai

sendo substituída pela imagem e pela oralidade. Seus instrumentos são coloridos,

atraentes, sedutores, variados. Suas mensagens são as mesmas, mas os nomes dos

personagens e dos locais se alteram com tal multiplicidade (“o múltiplo é um”, poderia

dizer o habitante da Oceania numa frase do duplipensar) que atinge com impacto rápido

e fulminante todas as mentes; pior, as configura. O pior é que os receptores acabam por

esquecer de seus antigos critérios para aceitar afirmativas e para fruir uma obra de arte.

A indústria cultural mata o conhecimento e a arte, sem necessidade de novos artefatos.

Há inúmeros setores deformados pela comunicação que não comunica. É também o

grande enigma, desafio e obstáculo à literatura e à dramaturgia que, em seus melhores

momentos, giram em torno dessa problemática. O grande dramaturgo de nossos tempos,

Samuel Beckett, autor de peças como “Fim de jogo” e “Esperando Godot” e, ainda, por

suas peças minimalistas, como “Come and go”11 demonstra bem essa centralidade, a

incomunicabilidade não por razões ontológicas, mas, por razões sociais que nos

sufocam e esvaziam. As comunicações tornam-se “small talks”, conversas vazias num

mundo distópico.

11
Cuja tradução deveria ser invertida: “Ir e vir”....

1291
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36-37.

1292
Crítica e Filosofia

Oswaldo Giacoia Junior


Departamento de Filosofia
IFCH/Unicamp
giacoia@tsp.com.br

Ciente da imensa diferença entre ambos, pretendo sugerir aqui algumas afinidades
entre Adorno e Nietzsche presentes nas respectivas compreensões da natureza e do papel
da filosofia. Penso que a exploração reflexiva de tais afinidades poderia oferecer alguma
contribuição para se pensar a relevância atual da filosofia e a importância estratégica de
seu potencial emancipatório e crítico num projeto pedagógico e social que pretenda ser
mais do que dócil e útil adaptação a cânones cegamente obedecidos e aos interesses
dominantes da indústria em que se transformou a cultura.
Também gostaria de propor uma aproximação dessa reflexão com um pensador
que, para muitos, apresenta-se como um adversário da teoria crítica da sociedade, a saber
Michel Foucault. Meu atrevimento nessa comunicação consiste em explorar uma faceta
do pensamento de Foucault que o aproxima como aliado da Escola de Frankfurt e, diria
mais, em tomar ambos como epígonos e herdeiros que, juntamente com Nietzsche,
partilham o legado da filosofia crítica de Kant. Minha intenção pouco velada é sugerir
que, na base de tudo, encontra-se o problema até hoje em aberto do Esclarecimento e do
projeto político dele se origina.
Passo, então, à exposição de cada um desses segmentos, iniciando por Adorno. Ao
perguntar-se pela condição atual da filosofia, Adorno observa que esta deveria renunciar
à sua vocação originária de apreender o Absoluto, à sua antiga pretensão de constitiur-se
como sistema do saber ou mathesis universalis, assim como de instituir-se como Saber
Absoluto – ela deveria mesmo proibir-se pensar nisso sem, no entanto, abrir mão de um
conceito forte de verdade. Essa renúncia ao Absoluto – conseqüência inevitável da
fragmentação imposta pelo modo de organização da sociedade moderna – tem de
conviver, no caso da filosofia não despojada de sua vocação essencial, com a
manutenção da exigência de um conceito enfático de verdade. Se isso é uma contradição,
esta é também hoje o próprio elemento da filosofia – que a determina como filosofia
negativa.“O dito célebre de Kant, de que o caminho crítico seria o único ainda aberto,
pertence àquelas proposições nas quais a filosofia da qual procedem passa pela prova,
porque, como fragmentos, elas sobrevivem ao sistema”1.
Para Adorno, a filosofia crítica se confronta hoje em dia com duas outras escolas,
que se apresentam na cena cultural e política como o espírito do tempo, espraiando seus
efeitos para além dos círculos meramente acadêmicos: por um lado, o positivismo lógico
oriundo do Círculo de Viena e tornado pensamento dominante nos países anglo-
saxônicos, de que Adorno destaca Rudof Carnap como figura exponencial; por outro
lado, as diferentes correntes ontológicas, cujo representante principal seria a ontologia

1
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 461.

1293
fundamental do segundo Heidegger, predominante na Alemanha, mas com ampla
influência na assim chamada filosofia continental.
Fundamentalmente divergentes quanto às posições e filosofemas, a ponto de
constituirem uma o anátema da outra, elas seriam, no entanto, essencialmente
complementares, tanto em sua recusa comum da metafísica, como enquanto modalidades
de ofuscamento e embotamento do pensamento crítico e emancipatório.
O positivismo lógico – do qual deriva a filosofia analítica e a filosofia da
linguagem efetivamente dominante até mesmo em nossos dias – aparece como mais
adequada à era da expansão planetária da ciência e da tecnologia. Para Adorno, seu
momento de falsidade encontra em seu deslumbramento ingênuo perante o existente (em
especial o progresso da ciência e da técnica), e assume a divisão do trabalho – aquela das
ciências da praxis social, , bem como a divisão do trabalho no interior da própria ciência
– como a medida do verdadeiro, e não admite qualquer teoria que mostre o caráter
derivado e mediato da própria divisão do trabalho, despojando-a de sua falsa autoridade.
O positivismo lógico seria, portanto, capitulação do pensamento filosófico. O recurso
positivista à ciência, às suas regras, métodos e procedimentos como tribunal universal da
verdade, transforma-se em instância de controle e policicamento, que persegue o livre
pensamento e nada mais tolera do que aquilo que foi metodologicamente aprovado
segundo os critérios científico-positivos.
Por outro lado, o retorno heideggeriano a uma experiência originária do Ser não é
ofuscada pela aceitação ingênua do existente e efetivo, especialmente não pela ciência e
pela tecnologia que dela deriva, mas pela cegueria diante da mediação do conceito. O que
a ontologia fundamental deixa de perceber, a despeito de sua recusa do apego aos fatos
do positivismo, é que as experiências originárias a que pretende retornar, as
essencialidades que opõe à facticidade do positivismo, não são um ditado ou
destinamento diretamente brotado do ser, mas desde sempre pensamento e, portanto,
implicando mediação, sujeito, espírito. Estes, no entanto, não remetem ao Ser, ou ao
Nada, mas aos homens em sociedade. Na morada do ser e no santuário da filosofia da
repristinação, deparamo-nos novamente com a falta de auto-reflexão e com o
entorpecimento do pensamento – justamente aquilo que os profetas infortúnio
pretendiam superar.
Desse modo, ambas são figuras da heternomia do pensamento – portanto, a não-
verdade (Unwahrheit), nos termos de Adorno -, passíveis de serem demonstradas como
tal pelo pensamento crítico; com tal demonstração, então, não apenas se acrescentaria
mais um capítulo na desolada cadeia história da filosofia, “mas com isso anuncia-se
também um vestígio de esperança de que a não-liberdade , a repressão, o mal (que não
carece de uma prova filosófica de que é o mal, bem como de sua existência) poderia
todavia não ter a última palavra.”2 Com efeito, deixar-lhes a última palavra seria
promocer a auto-demissão da filosofia.
Se, de acordo com Hegel, a filosofia é o seu tempo apreeendido no conceito;
então positivismo e ontologia fundamental, como represetantes das duas tendências
filosóficas dominantes no mundo contemporâneo são o sintoma do espírito do tempo
como regressão do esírito, como potência do regressivo, destruição do conteúdo
2
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 465.

1294
emancipatório ainda presente na filosofia do Esclarecimento, de modo que sua crítica
seria, então, destruição da destruição. Ela não pretenderia o desaparecimento de filosofia,
ou sua substiuição pelas ciências socias, mas auxiliar a liberade de espírito que não tem
mais lugar nem na morada do ser nem do edifício da ciência e da técnica administrado
como indústria cultural.
Para que, então, ainda filosofia, se ela não pode mais apreender o Absoluto, se
tem de abrir mão de seu conteúdo de verdade, embora sem renunciar ao conceito enfático
do verdadeiro? Para que então ainda filosofia, se ela não pode mais exibir seus títulos de
préstimo em concorrência com os demais saberes especializados que integram a
realidade efetiva como elementos funcionais e prestantes do sistema? Para que então
ainda filosofia, se ela nem sequer se situa mais na vanguarda de um movimento destinado
a subverter o curso tradicional da história; se, já é passado o momento perdido em que o
inferno existente poderia ter sido transformado em paraíso, em que o pensamento do
verdadeiro poderia ter sido realizado?
Filosofia é necessária ainda hoje como crítica do existente precisamente porque
persistem e se intensificam a dor, a necessidade, a angústia e a ameaça do infortúnio,
precisamente porque é sempre ainda preciso saber porque o mundo pode ser tornar
amanhã um inferno ainda mais assustador do que o de hoje.
Filosofia é necessária justamente porque não tem função, porque não serve a nada.
“Só o pensamento sem reserva mental, sem ilusão de seu reinado interno, confessando
para si mesmo sua ausência de função e sua impotência, alcança talvez um olhar numa
ordem do possível, do não existente, onde os homens e as coisas estariam em seu justo
lugar. Porque filosofia não é boa para nada, ela é ainda não perdeu sua validade: mesmo a
isso ela não deveria recorrer, se ela não quiser repetir cegamente sua culpa, a culpa da
auto-imposição.”3
Anacronismo, no sentido mais radical do termo, seria substituir a filosofia por
uma modalidade qualquer de ciência particular, ou então colonizar a filosofia como
adminículo epistemológico das ciências, cuja tarefa seria explicitar sua metodologia ou
relegá-la a uma teoria do conhecimento científico. Isso seria transformar a filosofia numa
praxis que perpetuaria inevitavelmente o estado de coisas existente, do qual fazer a
crítica constitui justamente o seu elemento vital. Nesse sentido, escreve Adorno: Uma
“praxis que tem como finalidade a criação de uma humanidade racional e maior
permanece no sortilégio do infortúnio sem uma toeria que pense o todo em sua
inverdade”.4
Num tempo, porém, em que Nietzsches Hinterweltler sind buchstäblich wieder zu
Hinterwäldern geworden,5 uma filosofia que não reproduza a consciência reificada teria
de se afirmar e atestar como outra figura da consciência, embebida no potencial utópico

3
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 471.
4
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 471.
5
Cf. Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 472.

1295
daquilo que poderia ser de outro modo, crescida e elevada, porém, por sobre a violência
do regressivo, que teria assimilado em si e compreendido.
“Se a filosofia é ainda necessária, então, como desde sempre, como crítica, como
resistência contra a heteronomia que se alastra, seja também como tentativa não violenta
do pensamento de continuar a ter-se a si mesmo sob domínio, e expor a inverdade da
mitologia trapaceada, assim como da insidiosa adaptação resignada, conforme a medida
de inverdade de cada uma delas. Desde que não se a proíba, como na Atenas cristianizada
da antiguidade tardia, nela [na filosofia crítica, OGJ.] se poderia criar um abrigo para a
liberdade.”6
É justamente aqui que encontramos uma proximidade muito grande com o
potencial crítico que Nietzsche percebe na filosofia, entendida por ele como má
consciência de seu tempo. “A mim quer me parecer sempre mais que o filósofo, como um
necessário homem do amanhã e depois de amanhã, sempre se encontrou e teve de se
encontrar em contradição com seu hoje: seu inimigo foi, a toda vêz, o ideal de hoje. Até
agora, todos esses extraordinários promotores do homem, que são denominados filósofos
e que raramente sentem a si mesmos como amigos da verdade, porém antes como
desagradáveis loucos e perigosos pontos de interrogação -, encontraram sua tarefa, sua
dura, involuntária, incontornável tarefa, finalmente, porém a grandeza de sua tarefa em
ser a má consciência de seu tempo. Ao colocar justamente no busto da virtude do tempo o
bisturi de vivisecação, eles delataram qual era o seu segredo: saber de uma nova
grandeza do homem, um novo, não percorrido caminho para seu engrandecimento. Eles
desvelaram, a cada vez, quanta hipocrisia, comodidade, deixar-se levar e deixar-se cair,
quanta mentira se esconde sob o tipo mais venerado de sua moralidade contemporênea,
quanta virtude foi sobrevivida, a cada vez, eles disseram: ‘temos que ir para lá, para fora,
onde vós hoje menos vos sentis em vossa casa”.7
Percebemos claramente, pois, como a filosofia autêntica, para Nietzsche, só pode
subsistir como auto-reflexão e auto-crítica do existente. A despotencialização da filosofia,
sua verdadeira rendição e demissão seria adaptação resignada ao atual e ao existente, seu
infortúnio seria a acomodação deslumbrada à positividade auto-suficiente da ciência
moderna, para a qual não existem senão fatos. “Insisto em que finalmente cessemos de
confundir os operários filosóficos e, em geral, os homens de ciência com os filósofos, -
em que precisamente aqui seja dado com rigor ‘a cada um o que é seu’ e àqueles não
demais, a estes não de menos. Pode ser necessário, para a educação do efetivamente
filósofo, que também ele uma vez tenha estado nesses níveis em que permanecem seus
servidores, os operários científicos da filosofia, - em que eles têm que permanecer”.8
Como em Adorno, o papel emancipatório, crítico e formador (pedagógico, se
tomarmos esse termo num sentido ampliado) seria justamente o reconhecimento por si

6
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 464.
7
Nietsche, F. Para Além de Bem e Mal, aforismo número 212. In: Sämtliche Werke.
Kritische Studienausgabe (KSA). Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York,
München, 1980, vol. 5, p. 145s.
8
Nietsche, F. Para Além de Bem e Mal, aforismo número 211. In: Sämtilche Werke.
Kritische Studienausgabe (KSA). Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York,
München, 1980, vol. 5, p. 144s.

1296
mesma de sua ausência de função, de seu não servir para nada, pois, para dizê-lo com
Adorno, “aquilo que tem uma função está enfeitiçado no mundo funcional”.9 Exigir da
filosofia que se renda aos padrões e standards da ciência positiva é compactuar com o
existente e repetir cegamente a dominação, assim como seria pretender que ela possa
retroceder aquém das posições alcançadas na história do espírito. Justamente isso seria
regressão em sentido forte. E aqui, justamente a propósito da regressão, se apreende a
pointe pensada por Nietzsche sob a forma de promiscuidade entre ciência e ideal ascético.
A ciência não constitui, para ele, o oposto, a negação do ideal ascético, mas conservação
de seu mais recôndito âmago, sua verdadeira medula espiritual:
“Essa ciência moderna que, sendo propriamente uma filosofia-da-efetividade,
pelo visto acredita somente em si própria, pelo visto possui a coragem de ser ela mesma,
a vontade de ser ela mesma, e se saiu bastant bem até agora sem Deus e sem além e sem
virtudes negadoras. No entanto, com tal alarido e tagarelice de agitadores não se
consegue nada comigo: esses corneteiros da efetividade são maus musicistas, suas vozes,
bastante audivelmente, não vêm da profundeza, neles não fala o abismo da consciência
científica – pois hoje a consciência científica é um abismo – a palavara ‘ciência’, nessas
bocarras de corneteiro, é simplesmente uma indisciplina, um abuso, uma sem-
vergonhice. Precisamente o contrário do que é afirmado aqui é verdade: a ciência não tem
hoje simplesmente nenhuma crença em si, sem falar de um ideal sobre si.”10
Por deficit de auto-crítica e auto-reflexão, essa filosofia-da-efetividade, como
glorificalção do existetente, seja sob a modalidade do positivismo, do historicismo, do
utilitarismo, da fé a-crítica no progresso e nas ‘idéias modernas’, representa o contrário
da filosofia; ela promove a regressão do espírito e toma parte ativa no empreendimento
histórico espiritual de uma vontade de poder coletiva que leva a cabo o auto-
rebaixamento da humanidade, a transformação da sociedade ocidental no rebanho
autônomo de anões uniformes.
Esse seria, talvez, o locus adequado para refletir sobre um tema que, pelo que
conheço, ainda se encontra pouco refletido no Brasil. Refiro-me aos últimos trabalhos de
Michel Foucault, em que este se coloca em linha de parentesco e afinidade com os
trabalhos críticos da escola de Frankfurt. Penso que é justamente o tema da crítica e da
herança crítica da Audklärung que constitui o eixo de transmissão teórica e o relais que
permite distinguí-los e aproximá-los.
Na reunião de 27 de maio de 1978 da Société Française de Philosophie, Michel
Foucault proferiu uma conferência cujo título era Qu´est-ce que la critique? Critique et
Aufklärung, que no entanto só foi publicada em 1990. Nesse texto, pode-se perceber o
modo como Foucault, no final da década de 70 do século passado, tematizava as relações
entre crítica e Esclarecimento, assim como compreendia os rumos da filosofia
contemporânea a partir dessa problematização.
Entre o grande empreendimento crítico kantiano e todos os outros movimentos
que, sob o nome de crítica, o precederam Foucault busca escavar as raízes do que
9
Adorno, T. Wozu noch Philosophie. In: Kulturkritik und Gesellchaft II. Trata-se dp
Segundo tomo do volume 10 dos Gesammelte Scriften (Band 10). Ed. Rolf Tiedermann.
Darmstadt: WBG. 1998, p. 471.
10
Nietzsche, F. Para a Genealogia da Moral. Dissertação III, par. 23. In: Obas
Incompletas, 1a. Ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Coleção Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural 1974, p. 325.

1297
denomina ‘atitude crítica’no Ocidente moderno, identificando seus seus traços mais
distintivos por volta dos séculos XV e XVI . O foco desse atitude crítica seria “o feixe de
relações que liga um ao outro, ou um aos dois outros, o poder, a verdade e o sujeito. E se
a governamentalisação 11 é bem o movimento pelo qual trata-se, em realidade, de uma
prática social de assujeitar os indivíduos por meio de mecanismos de poder que se
reclamam de uma verdade, – pois bem! – eu diria que a crítica é o movimento pelo qual o
sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre esses efeitos de poder e o poder
sobre esses discursos de verdade. Pois bem! – a crítica será a arte da inservidão
voluntária, aquela da indocilidade refletida. A crítica terá essencialmente por função o
desassujeitamento no jogo disso que se poderia chamar, numa palavra, a política da
verdade”.12
De acordo com a interpretação de Foucault, essa sua definição de crítica, ainda
que aproximativa, não difere do que Kant entendia por Aufklárung, definida por ele em
relação a um certo tipo de minoridade, esta entendida, por sua vez, como uma
incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem a direção de outrem, situação em
que a humanidade é mantida principalmente pela atuação combinada da religião, do
direito e do conhecimento (os três exemplos mencionados por Kant em sua célebre
resposta à pergunta: o que é a Aufklärung).
“Aquilo que Kant descrevia como a Aufklärung, é bem isso que tentei há pouco
descrever como a crítica, como essa atitude crítica que vemos aparecer como atitude
específica no Ocidente a partir, creio eu, do que foi historicamente o grande processo de
governamentalização da sociedade”.13 Nesse sentido, se o grande movimento de
Aufklärung que precedeu o sistema crítico pode ser caracterizado pelo próprio Kant sob a
insígnia do sapere aude. Daí porque, conclui Foucault, a atitude crítica que o anima o
movimento crítico anterior a Kant era sobretudo um esforço para não se deixar governar

11
Para se compreender melhor a noção de ‘governamentalização’, seria oportuno citar
sua definição por Foucault: “Seria necessária uma enquete aprofundada sobre a história
não apenas da noção, mas dos procedimentos e meios postos em ação em uma sociedade
dada, a ‘governação dos homens’. Numa primeira aproximação, parece que, para a
sociedade grega e romana, o exercício do poder politico não implicava nem o direito
nem a possibilidade de um ‘governo’ entendido como atividade que empreende conduzir
os indivíduos ao longo de toda sua vida, colocando-os sob autoridade de um guia
responsável pelo que fazem e pelo que lhes ocorre. Segundo as indicações de P. Veyne,
parece que a idéia de um soberano-pastor, de um magistrado-pastor do rebanho humano
não se encontra de modo algum senão nos textos arcaicos ou em certos autores pouco
numerosos da época imperial. Em revanche, a metáfora do pastor velando sobre suas
ovelhas é aceitável quando se trata de caracterizar a atividade do pedagogo, do medico,
do mestre de ginástica. A análise do Político confirmaria essa hipótese. É no Oriente
que o tema do poder pastoral tomou sua amplitude – e sobretudo na sociedade
hebraica.”(Foucault, M. Sécurité,Tterritoire et Population. In: Dits et Écrits III. Paris:
Gallimard, 1994, p. 719).
12
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 39. Não havendo
indicações em contrário as traduções são de minha autoria.
13
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 40.

1298
por outrem, para não ser governado, esforço que pode ser identificado tanto em relação
ao governo da Igreja, do poder soberano e do saber institucionalizado. Se temos de ser
governados, se temos de obedecer, trata-se de provar a autenticidade e a legitimidade
dos títulos daqueles que pretendem nos conduzir, nessas diversas frentes, que foram
investidos do direito de comandar.
Ora, de acordo com Foucault, o modo como Kant responde a essa pergunta - e, ao
fazê-lo reflete sobre o sentido de seu projeto crítico -, marca uma inflexão na história das
relações entre Aufklárung e crítica, que determina os rumos da história posterior do
Ocidente. Com Kant opera-se uma décalage entre crítica e Aufklärung, pela qual a
primeira é colocada numa certa posição de recuo em relação à segunda. Para Kant, a
coragem e a ousadia de saber consistiria, essencialmente, em reconhecer os limites do
próprio conhecimento, para fundar uma obediência legítima unicamente sobre a própria
autonomia, esta conquistada a partir do justo conhecimento da extensão e dos limites do
conhecimento possível. Para Foucault, Kant, por relação ao jogo entre poder e verdade,
teria fixado como tarefa fundamental do Esclarecimento – tanto para seu presente como
para o futuro, fazer a crítica do próprio conhecimento, ou seja, conhecer o conhecimento,
auto-crítica auto-reflexão.
“A história do século XIX expôs-se muito mais à continuação da tarefa crítica tal
qual Kant a tinha situado, de algum modo e recuo em relação à Aufklärung do que a
alguma coisa como a própria Aufklärung. Dito de outro modo: a história do século XIX –
e, certamente, a história do século XX mais ainda –pareceu senão dar razão a Kant, pelo
menos oferecer uma vinculação concreta a essa nova atitude crítica, a essa atitude crítica
em retração por relação à Aufklärung, para a qual Kant tinha aberto a possibilidade.”14 No
texto de que ora nos ocupamos, Foucault identifica esses vetores de continuidade
histórica abertos muito mais à crítica kantinana do que à ousadia emancipatória da
Aufklárung que a precedeu basicamente a partir de três segmentos: uma ciência
positivista, confiante em suas próprias bases e procedimentos, e criticamente vigilante em
relação a resus resultados; o desenvolvimento do Estado nos moldes dos modernos
estados de direito que se colocavam a si mesmos como razão profunda e finalidade da
história; e, entre ambos, soldando-os, uma cência do Estado.
É em virtude dessa linha de continuidade histórica - que remete ao modo como
Kant, em 1784 colocou e respondeu a pergunta: o que é a Auflärung, e fixou a seu modo
a relação entre Aufklärung e crítica -, em função dela, pois, aquela pergunta adquire
doravante, legitimamente, o aspecto de uma “desconfiança ou em todo caso de uma
interrogação cada vez mais suspeitosa: de que excessos de poder, por que
governamentalização, tanto mais incontornável quanto ela se justifica com a razão, essa
mesma razão é historicamente responsável·.15
Tendo situado desse modo o problema da relação entre crítica e Aufklärung na
esteira histórica do legado crítico kantiano, Foucault tematiza o devir dessa questão, seus
diferentes avatares na Alemanha e na França, para explicitar sua raiz comum e suas
diferenças de percurso. Para as finalidades desse trabalho, não se apresenta como de
interesse seguir as peripécias descritas por Foucault como marcando a trajetória histórica
14
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p.41.
15
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 42.

1299
da resposta a essa pergunta na França, bem como suas razões. Entretanto, é indispensável
prestar atenção para alguns aspectos trabalhados por ele em relação à Alemanha.
Para Foucault, é menos pelo desenvolvimento, na Alemanha, de um estado novo,
recente e racional, diferentemente do que ocorrera na Inglaterra e na Fança, e mais pela
ligação das universidades tanto à ciência quanto às estruturas administrativas do Estado
que se aprofunda, sobretudo no âmbito do pensamento alemão de esquerda, a suspeita de
que alguma coisa no processo de racionalização da sociedade – e até mesmo na própria
razão – seria responsável pelos excessos do poder.
“Em todo caso, da esquerda da Escola de Frankfurt houve toda uma crítica do
positivismo, do objetivismo, da racionalização, da techne e da tecnalização, toda uma
crítica das relações entre o projeto fundamental da ciência e da técnica que tem por
objetivo fazer aparecer os laços entre uma presunção ingênua da ciência, por um lado, e
as formas de dominação próprias à forma da sociedade contemporânea, por outro”.16
Foucault separa a situação da questão na França nos últimos anos daquela
existente no curso do século XIX e mesmo boa parte do XX, para observar que, nas
condições em que atualmente se coloca, a abordagem desse problema da Aufklärung
como a questão central “nos torna fraternos da Escola de Frankfurt””17, tendo feito notar,
algumas linhas atrás do trecho citado, que o problema da Auffklärung constitui, antes de
tudo, o problema da filosofia moderna.
Na atualidade, encontram-se presentes as condições para que o problema da
Aufklärung seja retomado na França em toda sua importância (do mesmo modo que o era
para a tradição que vai de Mendelssohn e Kant, passando por Hegel, Nietzsche, Husserl,
Escola de Frankfurt, etc.), em termos de uma ‘vizinhança significativa com os trabalhos
da Escola de Frankfurt. Tais condições, em termos histórico-filosóficos, estão ligadas à
fenomenologia e aos problemas por elas colocados em relação ao sentido e àquilo que
constitui, ou pode constituir, o sentido:
“Penso igualmente que a as análises de história das ciências, toda essa
problematização da história das ciências (que também ela se enraíza sem dúvida na
fenomenologia que seguiu, na França, através de Cavaillès, através de Bachelard,
através de George Canguilhem, toda uma outra história), parece-me que o problema
histórico da historicidade das ciências não deixa de ter algumas relações e analogias, de
fazer eco, até certo ponto, a esse problema da constituição do sentido: como nasce, como
se forma essa racionalidade, a partir de alguma coisa que é inteiramente outra? Eis a
recíproca e o inverso do problema da Aufklärung: como ocorre que a racionalização
conduza ao furor do poder?”18
Cinco anos depois da conferência pronunciada na Société Française de
Philosophie, num curso ministrado no Collège de France em 1983 (portanto, um ano
antes de sua morte), Foucault retoma a interpretação do texto de Kant Zur Beantwortung
der Frage: Was ist Aufklärung? e, ao fazê-lo, recoloca o problema do destino da filosofia

16
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 42.
17
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 45.
18
Foucault, M. Qu´est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé
Française de Philosophie, Annee 84, nr. 2, Avril-Juin 1990, p. 44.

1300
ocidental contemporânea, na seqüência da herança crítica kantiana em termos
consideravelmente modificados.
Nesse novo quadro, a filosofia contemporânea passa a ser dividida em duas
grandes tradições críticas, ambas reportáveis e fundadas na obra de Kant. Uma desssas
tradições se desenvolve, desde o século XIX, como uma analítica da verdade,
prolongando o empreendimento crítico de Kant ao se colocar o problema das condições
de possibilidade do conhecimento verdadeiro. A outra vertente da tradição crítica da
filosofia contemporânea nasce da conexão pensada por Kant entre Aufklärung e
Revolução:
“Essa outra tradição crítica coloca a questão: o que é nossa atualidade? Qual é o
campo atual das experiêncas possíveis? Não se trata de uma analítica da verdade, tratar-
se-á disso que se poderia chamar uma ontologia do presente, uma ontologia de nós
mesmos, e parece-me que a escolha filosófica com a qual nos encontramos confrontados
atualmente é a seguinte: pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresentará como
uma filosofia analítica da verdade em geral, ou bem pode-se optar por um pensamento
crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da
atualidade; é essa forma de filosofia que, de Hegel à Escola de Francfort, passando por
Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual tentei trabalhar”.19
Para concluir, não gostaria de deixar passar a oportunidade que me é oferecida
por esse forum privilegiado para observar o quanto tais considerações de Adorno,
Nietzsche e Foucault podem ser fecundas quando se pensa no papel emancipatório que a
filosofia pode desempenhar num programa de educação para a liberdade, que tenha um
alcance outro que não uma repetição dócil da esterilização vigente.
Nesse sentido, escreve Nietzsche: “E agora pense-se em uma cabeça juvenil, sem
muita experiência da vida, em que cinquenta sistemas em palavras e cinquenta críticas
desses sistemas são guardados juntos e misturados – que aridez, que selvageria, que
escárnio, quando se trata de uma educação para a filosofia! Mas, de fato, todos
reconhecem que não se educa para ela, mas para uma prova de filosofia: cujo resultado,
sabidamente e de hábito, é que quem sai dessa prova – ai, dessa provação – confessa s si
mesmo com profundo suspiro: ‘Graças a Deus que não sou filósofo, mas cristão e
cidadão de meu estado”.20
Refiro-me, primeiramente, ao risco envolvido na especialização extrema e
atomizante, a que pode conduzir uma erudição meramente histórico-filológica,
desacompanhada de motivação e interesse vital; um risco, aliás, firmemente fomentado
pela racionalização utilitarista e pela moderna divisão mercantil da produção intelectual.
Refiro-me, em associação com isso, ao perigo de submeter o ideal filosófico de
formação a injunções e interesses que lhe são estranhos e avessos, e que podem conduzir
ao barateamento irreversível do talento filosófico. É porisso que devemos estar atentos ao
que nos apregoam como ‘flexibilização’, adaptação às necessidades regionais ou
mercadológicas.
Refiro-me também à urgência e à necessidade de fazer com que o estudo rigoroso
e especializado da história filosofia não se esgote na minuciosa ourivesaria conceitual

19
Foucault, M. Un Cours Inédit. In: Magazine Littéraire, n° 207, mai 1984, p. 39. Texto
republicado em Dits et Écrits, vol. V. Paris: Gallimard, 1994.
20
Ibid.

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das opiniões alheias, que persevera em inibir a coragem e o impulso para o pensamento
independente.
Refiro-me, por fim, a essa perigosa auto-demissão da filosofia de sua condição de
gestora do fim supremo da razão. Num momento em que se encontra gravemente
ameaçada a base somática da personalidade moral, numa época em que se anuncia – com
todo rumor do sensasionalismo midiático – a reduplicação tecnológica de seres humanos
e a produção mercantil de material humano, de acordo com as necessidades de mercado,
seria indispensável retornarmos aos antigos arquivos onde ficaram conservadas as
inspirações ideais de nosso esforço de formação para a filosofia.

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