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Luther H. Martin, Deep History, Secular Theory. De Gruyter, 2014.

3. Teoria Secular e o Estudo Acadêmico da


Religião [2000]
E v o c ê p e n s a v a q u e i r ia m e d a r m a i s a lg u m m a t e r i a l? O r a , d i s s o e u j á
t e n h o d e m a is . . . E u n ã o p r e c i s o d e m a i s d a d o s . O q u e e u p r e c i s o é d e u m a
t e o r ia q u e o s e x p l iq u e m d e v e z .
– Morris Zapp (Lodge 1984, 28)
I

O estudo acadêmico da religião, como sugere a própria rubrica, deve obedecer,


em princípio, ao mesmo protocolo que o estudo acadêmico do que quer que seja.
As visões anteriores de “religião” como sui generis, juntamente com os
argumentos consequentes de algum método especial que é em si “religioso” ou
que “coloca parênteses” o que é considerado “religioso” da investigação
acadêmica, negam essa premissa fundamental. O estudo acadêmico da religião
não deveria, em outras palavras, ser privilegiado - a menos, é claro, que as
alegações e pressuposições contra-intuitivas características da expressão religiosa
sejam aceitas como verdadeiras (no sentido comum desse julgamento). Caso
contrário, algo além estaria em jogo na onipresença e perseverança da religião do
que seu apelo manifesto. Descobrir esse significado requer que o estudo da
religião seja teoricamente baseado.
A teoria é pouco mais que um tipo de generalização; ambos tentam explicar a
maior quantidade de dados em termos do menor número de princípios. A primeira
distingue-se desta última, no entanto, na medida em que as generalizações
teoricamente baseadas deveriam ser estabelecidas de modo reflexivo, elas
deveriam de alguma forma ser testáveis e, se consideradas válidas, deveriam
fornecer explicações. No estudo da religião, as generalizações baseiam-se em
dados relativos a determinados tipos de práticas humanas, discursivas ou não-
discursivas, geradas por pesquisas comparativas (antropológicas) e históricas, cada
uma com sua própria problemática teórica (Martin 1997c e Martin 2000).
Exemplos tradicionais de teorias que oferecem explicações para a religião incluem
teorias intelectualistas, que sustentam como sua suposição básica a visão de que
os seres humanos têm um interesse fundamental em entender racionalmente seu
ambiente. Essa visão, consequentemente, aborda as religiões principalmente em
termos de seu discurso, i. e., seus mitos, entendendo-os como primeiros exemplos
de atividade intelectual. Em reação a essa visão racionalista, nascida do
Iluminismo, alguns teóricos românticos do século XIX argumentaram que as
práticas religiosas eram expressivas de alguma outra característica da vida humana,
e. g., o psicológico ou o social, e eles definiram a religião, consequentemente,
como um fenômeno simbólico. Também surgida do romantismo foi uma explicação
da religião em termos de
36 3. Secular Theory and the Academic Study of Religion

recursos não racionais. Esses teóricos emotivistas explicaram a religião


principalmente em termos afetivos e concentraram-se em experiências pessoais
extraordinárias de algum transcendente ou “outro” universal. (Sobre essas três
teorias clássicas da religião, ver Marett, 1932, 1; J. Z. Smith, 1995, 1068-1069).
Claramente, as ciências humanas não podem testar as teorias da religião de
maneira apropriada às ciências naturais. Ao contrário das leis invariáveis da
natureza procuradas pelas ciências naturais, as ciências humanas, incluindo o
estudo da religião, podem tentar, no entanto, diferenciar entre generalizações
válidas e inválidas - estereótipos, por exemplo, ou ficções ideologicamente
produzidas. Escrevendo sobre generalização historiográfica, Louis Gottschalk
propôs que a validação deveria:

pelo menos conformar-se a todos os fatos conhecidos, de modo que, se não


apresentar a verdade definitiva, deve, de qualquer forma, constituir a forma menos
inconveniente de erro tentativo. Isso significa que deve estar sujeita a certos
padrões e testes gerais - do comportamento humano, dos antecedentes e
consequentes lógicos, das tendências estatísticas ou de massa (Gottschalk 1963,
vi).

Uma breve consideração das teorias emotivas ou afetivas da religião pode fornecer
um exemplo desses esforços probatórios.
Argumentei que a teoria amplamente aceita sobre religião como experiência
pessoal em resposta a algum “outro” transcendente é inválida, pois representa uma
generalização sobre religião baseada nos dados de uma tradição religiosa
particular, a saber, o princípio da Reforma Protestante de que “a salvação é
somente pela fé [individual] confirmada por uma experiência de graça”.⁵ Em seu
contexto cultural americano, essa visão teológica da religião recebeu sua primeira
formulação por Jonathan Edwards em seu "Treatise Regarding Religious Affections"
(Edwards, 1959 [1746]), um trabalho que foi considerado "a mais profunda
exploração da psicologia religiosa em toda a literatura americana" (Miller 1949,
177). Escrito em defesa do "Grande Despertar", a primeira instância de
reavivamento em larga escala que começou na década de 1720 e se espalhou pelas
colônias americanas, Edwards afirmou que "a religião verdadeira consiste tanto nos
afetos, que não pode haver religião verdadeira sem eles” (Edwards 1959, 120). A
principal “base objetiva” para essas experiências, argumentou, “é a
transcendentalmente excelente e amável natureza das coisas divinas, como elas
são em si mesmas” (Edwards 1959, 240). Para Edwards, em outras palavras, a
religião era baseada em uma experiência pessoal, não mediada, em resposta ao e
confirmada pelo sagrado. Essa ênfase na experiência individual relega outras
práticas religiosas

5 O exemplo seguinte é tirado de Martin 1993: 76 – 77, e usado aqui com as devidas
permissões. Ver também Martin 1994: n. 53.
3. Secular Theory and the Academic Study of Religion 37

como práticas discursivas ou rituais para expressões externas e secundárias


daquela graça interior tão apreciada pelos protestantes.
Um "Segundo Grande Despertar" varreu os Estados Unidos no início do
século XIX, associado de maneira interessante ao neto de Edward, Timothy
Dwight. Esse reavivamento foi reforçado pela influência de uma forma
popularizada de romantismo alemão (Gabriel 1950), que produziu sua
própria visão experimental da religião que pode ser traçada a partir dos
discursos de Friedrich Schleiermacher sobre Religião, publicada pela
primeira vez em 1799, até sua articulação teórica mais influente em O
Sagrado (1917), de Rudolf Otto. Independentemente de Edwards,
Schleiermacher escreveu de forma semelhante que "a soma total da religião
é sentir que, em sua mais alta unidade, tudo o que nos move no sentimento
é um" (Schleiermacher 1958, 49-50); “A verdadeira natureza da religião é…
[esta] consciência imediata da Deidade” (Schleiermacher 1958, 101). E como
Edwards, Schleiermacher concluiu que o conhecimento e as organizações
religiosas são apenas uma manifestação secundária dessa experiência de
unidade com o Infinito (Schleiermacher 1959, 60 - 61, 101, 155 - 156). No
início do século XX, o filósofo norte-americano William James propôs
essencialmente a mesma visão de religião que Edwards havia proposto
antes - não mais no discurso da Reforma ou da teologia romântica, mas
agora na do recém-definido campo da psicologia que James foi tão
instrumental na popularização. Em suas clássicas Conferências Gifford sobre
As Variedades da Experiência Religiosa (1902), James escreveu que a religião
consiste em “os sentimentos ... e as experiências individuais dos homens em
sua solidão, na medida em que se apreendem em relação a tudo o que
possam considerar divino ”(James 1929, 31-32), uma definição de religião
empregada também pelo filósofo AN Whitehead (Whitehead, 1926, 16,
embora sem referência a James). Para James, como para os protestantes
que o precederam, “a religião pessoal se mostrará mais fundamental que a
teologia ou o eclesiaticismo. As Igrejas, quando estabelecidas, ”ele afirmou,“
vivem de segunda mão sobre a tradição; mas os fundadores de todas as
igrejas deviam seu poder originalmente ao fato de sua comunhão pessoal
direta com o divino” (James 1929, 31). Consequentemente, na conclusão de
James, “a experiência religiosa pessoal tem suas raízes e centro em estados
místicos de consciência ”(James, 1929, 370).
De acordo com a Enciclopédia da Religião de 1987, pouco avanço teórico
sobre o assunto foi feito desde James. O autor do artigo sobre "Misticismo",
após expandir as características do misticismo oferecidas por James
sessenta anos antes, conclui que:

todas as religiões, independentemente de sua origem, conservam sua vitalidade


somente enquanto seus membros continuarem a acreditar em uma realidade
transcendente com a qual possam de algum modo se comunicar por experiência
direta (Dupré 1987, 246).
38 3. Secular Theory and the Academic Study of Religion

A condição necessária para a validação de generalizações sobre a religião baseadas


na experiência pessoal é preeminentemente aquela de uma antropologia
individualista, uma condição que não existia nas culturas da antiguidade ocidental,
por exemplo (Martin 1994), onde a desvalorização do sentimento em face da razão
pela cultura grega clássica, em todo caso, argumentaria em favor das teorias
intelectualistas. Tampouco essa valorização do indivíduo sobre o coletivo
caracteriza a maior parte do mundo moderno não ocidental (o que é bastante
diferente de valorizar a raison d’être da entidade social como o cuidado do
indivíduo, por exemplo, Platão, Lg. 9.875). Antes, essa antropologia individualista
surgiu com a diferenciação renascentista das “humanidades” em face das
“divindades” como um campo legítimo de investigação intelectual (ver “humanity.
4” OED 1971, 1346) e uma emergência concomitante de uma ideologia
individualista, incluindo uma psicologia individualista, cujas suposições são bem
compatíveis com os princípios da Reforma (vide “psychology: Nota”, OED 1971,
2347). Embora as questões relativas à experiência religiosa individual possam e
certamente tenham sido colocadas por religiões como o hinduísmo ou o
confucionismo, elas parecem impor mais do que revelar, muito da saliência a
respeito de tais sistemas ritual e socialmente estruturados. Teorias de religião
emotivistas são, em outras palavras, culturalmente específicas e,
consequentemente, não oferecem generalizações válidas para o estudo histórico
ou comparativo da religião.
Em contraste com as psicologias individualistas, a psicologia cognitiva oferece uma
alternativa teórica promissora na medida em que se refere aos processos mentais
comuns a todos os seres humanos. Uma vez que a contribuição ambiental
(perceptual, cultural) é atribuída apenas à medida que é processada pelas mentes
humanas, o funcionamento da mente torna-se central para a compreensão da
produção de qualquer formação cultural, incluindo a religiosa. Isso não sugere que
as tentativas de mapear o funcionamento da mente finalmente estabeleçam algum
tipo de “necessidade” humana inata para a religião; tais mapeamentos buscam
antes identificar uma arquitetura mental comum que tenha restringido a
construção de uma variedade virtualmente infinita de sistemas humanos de
significados. A esse respeito, também, a psicologia cognitiva oferece uma
alternativa promissora na medida em que procura validação empírica, i. e.,
intersubjetiva para suas conclusões. (Para tentativas substantivas de conectar
cognição e cultura especificamente com referência à religião, ver Lawson e
McCauley 1990 e Boyer 1992, 1994).
Os exemplos alternativos de teorias psicológicas da religião, individualista e
coletiva, chamam nossa atenção para uma segunda característica de generalização
teórica. Uma vez que tais generalizações devem ser testadas usando os mesmos
dados comparativos e históricos sobre os quais foram primeiramente baseadas, é a
teoria e não os dados que finalmente determina nossa visão da religião. Como as
formulações teóricas, como o exemplo da teoria emotivista sugere, estão sujeitas
às influências históricas de interesses religiosos, políticos, econômicos etc.
3. Secular Theory and the Academic Study of Religion 39
devem, por sua vez, estar rigorosamente sujeitos à sua situação histórica e à
reflexão crítica.

ii

A teoria da religião com a qual trabalho (atualmente, pelo menos) é que a religião
é (a) um sistema social (b) legitimado por reivindicações à autoridade de algum
poder sobre-humano. Esta formulação teórica oferece uma definição sociológica
provisória ou hipotética a ser testada contra a pesquisa empírica da psicologia
cognitiva, por um lado, e contra a pesquisa comparativa e histórica, por outro. Essa
teoria explica a maior quantidade de dados em termos dessas duas características?
Permanecem exceções significativas? Ou a teoria sobre-determina os dados a
serem selecionados para que as exceções sejam excluídas a priori? A teoria
diferencia o que explica de sistemas funcionalmente semelhantes?
Seres humanos, cientistas sociais e filósofos parecem concordar, são animais
sociais, como argumenta a existência universal da linguagem humana (os meios de
comunicação intersubjetiva). Essa sociabilidade é aparentemente uma
característica inata da espécie, quer as estruturas dessa característica sejam
explicadas como elaborações culturais da biologia (Boyer, 1990, Burkert, 1996) ou
como a consequência de uma competência ligada a domínios específicos da mente
humana (Hirschfeld, 1994). Podemos, em todo caso, concluir que produtos
culturais como a religião são, pelo menos, fatos sociais.
Os seres humanos organizam sistemicamente as suas produções sociais, as quais,
para retomar nossa pista da linguagem, podem ser vistas como o estabelecimento
de conjuntos fechados de relações nas quais o valor dos elementos
interdependentes resulta unicamente da presença simultânea dos outros
(Saussure, 1966, 114). Seguindo o trabalho de W. Robertson Smith, os
antropólogos identificam apenas dois tipos de sistemas sociais: “parentesco” e
“realeza” (W. R. Smith, 1972 [1889], cap. 2). Smith definiu "sociedades de
parentesco" como aquelas em que "todo ser humano, sem escolha de sua parte,
mas simplesmente em virtude de seu nascimento e criação, torna-se um membro"
(WR Smith 1972, 29) - uma noção das “sociedades naturais” que podem ser
traçadas a partir de Aristóteles (Pol. I. 1.4 - 6). Em contraste, Smith define “realeza”
como uma transformação de grupos de parentesco em “uma aristocracia dos
parentes mais poderosos” com uma consequente distribuição desigual da riqueza
(W. R. Smith 1972, 73). A diferença entre esses dois tipos pode ser resumida como
uma diferença na distribuição social do poder. Enquanto o poder nas sociedades de
parentesco é disseminado mais ou menos igualmente em toda a sociedade (W. R.
Smith 1972, 73), os reinados são caracterizados por consolidações de poder (ver
Sagan 1985, 236, 240; Martin 1997a e
40 3. Secular Theory and the Academic Study of Religion

1997b). Esses dois tipos de sociedades são, naturalmente, “ideais”; As sociedades


históricas representam diversas variações incrementais entre esses dois tipos.
As distribuições sociais de poder podem ser diferenciadas ainda mais em sistemas
especializados, como o político - preocupado com as estruturas do poder, com o
econômico - preocupado com regras de troca, o ético - preocupado com princípios
de relacionamento correto, o estético - preocupado com critérios de prazer. A
função especial dos sistemas religiosos é identificar e manter os marcadores da
identidade coletiva para a entidade social - sua história, por exemplo, é
frequentemente narrada em termos de origens de poderes sobre-humanos, como
heróis ou divindades, seus limites definidos em tais termos como pureza / impureza
ritual - e estabelecer a legitimidade desses marcadores apelando para a autoridade
do poder sobre-humano. Tais reivindicações de legitimidade são reivindicações de
privilégio consideradas indisponíveis para “outros”, a menos que eles também se
tornem sujeitos a essas reivindicações e, consequentemente, sujeitos a esse grupo
reivindicando legitimidade com base nessas alegações. Tais alegações de
legitimidade podem reforçar reivindicações religiosas no sentido de que a
proposição de que o sistema religioso, especialmente (ainda que não
necessariamente) quando opera em consonância com o sistema político (Dumont
1980), é o sistema dos sistemas, seja para uma entidade social particular ou para
uma utopia idealizada e universalizada.
O se e o como os sistemas religiosos são diferenciados de seus sistemas irmãos
deriva de suas histórias particulares. Nas culturas judaico-cristãs-islâmicas, por
exemplo, os sistemas religiosos são identificados com a moral, enquanto na Grécia
antiga a moralidade não era considerada de competência da religião, mas do
sistema intelectual (filosofia). Nos Estados Unidos, os sistemas religioso e político
são constitucionalmente separados, mas na Grécia e Roma antigas, o primeiro está
embutido no último, enquanto em algumas culturas islâmicas contemporâneas eles
são juridicamente identificados.
Embora sistemas comuns a um grupo social particular possam ser diferenciados de
acordo com alguma função especializada, eles se replicam formalmente, não
apenas como construtos delimitados por processos cognitivos comuns (Sperber
1996, 101), mas também como estruturas produzidas por uma história social
comum. Confederações de sociedades de parentesco, por exemplo, tendem para
confederações de divindades aparentadas ou para o politeísmo, enquanto
condensações de poder em sociedades de realeza tendem a ser caracterizadas por
alguma forma de heno ou monoteísmo. Nesta perspectiva, a religião é um sistema
social que é formalmente idêntico a qualquer outro sistema em uma determinada
sociedade. Independentemente de serem ou não identificados com seus sistemas
irmãos, incorporados ou considerados independentes entre si, a differentia
analítica para os sistemas religiosos continuam sendo suas reivindicações à
autoridade do poder sobre-humano.
O poder sobre-humano pode ser imaginado antropomorficamente ou
teriomorficamente, como no caso dos sistemas teístas, ou dendromorficamente,
petromorficamente, etc., como no caso de sistemas “animistas”, ou abstratamente,
como exemplificado pelo
3. Secular Theory and the Academic Study of Religion 41

a noção chinesa de “Tao” - que no contexto dessa cultura é em si mesma mais


imaginável esteticamente (“taoísmo”), ética, social e politicamente
(“confucionismo”), teisticamente (nas práticas locais “tradicionais”), etc. Além
disso, o poder sobre-humano pode ser imaginado como sobrenatural. As deidades
olímpicas da Grécia antiga, por exemplo, eram entendidas como super-humanas,
mas não sobrenaturais: ainda que possuíssem maior poder que os humanos,
estavam sujeitas às mesmas leis da natureza (ou seja, destino). A divindade
criadora do cristianismo, no entanto, é imaginada (antropologicamente) como um
poder sobrenatural, acima da natureza que ele criou e capaz de alterar suas
próprias leis (por exemplo, milagre). Em outras palavras, todas as imagens
sobrenaturais são sobre-humanas, mas nem todas as imagens sobre-humanas são
sobrenaturais.
Diferenciando analiticamente a religião de outros sistemas sociais em termos de
alegações de poder sobre-humano, somos capazes de evitar a tendência
funcionalista de analisar virtualmente qualquer coisa e tudo como “religião”. Essa
definição impede, por exemplo, a popular análise da era da guerra fria do
marxismo como uma "religião" (ainda que demoníaca!), pois o que quer que se
conclua sobre 0 marxismo, seu apelo à legitimidade não se baseia sobre um poder
sobre-humano, mas sobre uma dialética histórica materialista. Da mesma forma, o
apelo de Freud ao inevitável e onipresente conflito entre a natureza (id) e o
ambiente (civilização, internalizada como superego) como explicação para a
dinâmica da psique exclui, pela definição em consideração, a análise do freudismo
como religião - embora o junguianismo, parece, está bem de acordo com os
critérios de religião aqui sugeridos (Noll, 1997).
A generalização sobre a religião como um sistema social legitimado por
reivindicações da autoridade de um poder sobre-humano é, reconhecidamente,
uma teoria minimalista da religião. Embora ela represente uma grande quantidade
de dados religiosos – ainda mais, eu diria, do que as duas teorias mencionadas
anteriormente e a que foi brevemente discutida, e assim o faz enquanto ainda
distingue os sistemas religiosos dos não-religiosos - ela faz isso de uma maneira
totalmente formal. Como qualquer outro sistema social, no entanto, a religião é
um assunto humano. Resta aos estudiosos especializados dos vários sistemas
religiosos e de suas tradições o amplificar tais análises formais de sistemas
religiosos com aquelas práticas sociais historicamente produzidas e transmitidas,
tanto discursivas quanto não-discursivas, que estabelecem cada sistema de religião
como um sistema único de significado para seus participantes e praticantes.

iii

Se o estudo acadêmico da religião deve obedecer ao mesmo protocolo que estudos


acadêmicos do que quer que seja, então o papel do estudioso da religião deve
estar de acordo com o que é apropriado para o estudo acadêmico em geral. Este
estudo acadêmico,
42 3. Secular Theory and the Academic Study of Religion

que em nenhum lugar é definido de modo mais claro e franco do que por
Max Weber, que assim deveria estar "a serviço da autoclarificação [o que
eu quis dizer por teoria] e conhecimento de fatos inter-relacionados [o
que eu quis dizer por sistemas]". Weber continua dizendo que deveria
“não [ser concebido como] dom da graça de videntes e profetas
dispensando valores e revelações sagrados, nem participando da
contemplação de sábios e filósofos sobre o significado do universo”
(Weber 1946 [1919], 152). Esta é uma prática religiosa. “Nas salas de
aula da universidade”, concluiu Weber, “não há outra virtude senão a
integridade intelectual simples” (Weber 1946, 156). “Integridade” é um
valor frequentemente invocado, dentro e fora da academia, como uma
virtude nobre, mas esta é desprovida de muita especificidade. Invoco-a
aqui, no espírito de Weber, para indicar o compromisso com o ideal
acadêmico de investigação baseada na teoria, levando a princípios
explicativos apoiados por conclusões intersubjetivas.
Ao contrário de algumas tentativas anteriores de limitar o estudo da
religião a uma compreensão empática dos outros, essa integridade
intelectual na academia exige que este estudo seja também uma disciplina
crítica. Como tal, o papel do estudioso da religião deve finalmente incluir
a responsabilidade de se aventurar julgamentos sobre as religiões. Tal
crítica pode ser de alegações religiosas baseadas no senso comum, por
um lado, ou naquelas nascidas da propaganda, por outro. Vico definiu o
senso comum, uma consequência da natureza social dos seres humanos,
como “julgamento sem reflexão, compartilhado por uma classe inteira,
um povo inteiro, uma nação inteira ou toda a raça humana” (Vico 1970,
21), um exemplo do qual são as visões da religião como experienciais,
discutidas acima. A propaganda, por outro lado, é o desafio ideológico ao
consenso social por grupos de interesse especial (Merton 1968, 160, 563),
quer esses grupos sejam exemplificados por algum novo movimento
religioso interessado em propagar sua própria visão da religião, ou o
estudo de tais grupos a partir de uma perspectiva ideológica particular,
mesmo que no contexto da própria academia. Nem o senso comum nem a
propaganda são necessariamente falsos; nem, entretanto, os pressupostos
comuns nem a defesa fervorosa estabelecem validade. Nascida de estudos
comparativos e especializados, a avaliação crítica das reivindicações
religiosas, bem como das generalizações explicativas sobre as religiões,
constitui finalmente a tarefa pública do estudioso da religião.

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